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PRECEDENTES
1ustificativa do novo CPC
LUIZ GUILHERME MAR!NONI
AGRADECIMENTOS
-m •
Este uvro ram~>ern pode ,e,
aclquhido na versão eBook
1 VISite; tlvrarlart.com.br Após as reformas implementadas no curriculo de minha
l lnivcrsidade, tive a oportunidade de conferir a uma disciplina do
t urso de Graduação um conteúdo voltado ao estudo das relações
<O desta edição 12014]
1' 111 rc "direito processual e cultura". Muito recentemente e com grande
EDITORA R EVISTA DOS TRIBUNAIS LTOA.
proveito, essa disciplina teve como objeto o estudo da influência da
MARISA HARMS 1t'ligião sobre o direito processual. A partir daí o livro brotou.
Diretora responsável
Esse livro, além de contar com aportes de sociologia do direi.to,
Rua do Bosque, 820- Barra Funda t' xigiu compreensão de ordem teológica. Sou grato à inteligência e à
Te I. 11 3613-8400- Fax 11 3613-8450 gt' nerosidade do Dr. Rogério Kampa pelos diálogos esclarecedores que
CEP 01136-000- São Paulo, SP, Brasi l
inspiraram o desenvolvimento do texto.
Tonos os DIREITOS RESERVADO'i. Proibida a reprodução total ou parcial, A Ricardo Alexandre da Silva agradeço pela discussão da obra de
por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos. Max Weber e pelas suas preciosas sugestões para o aperfeiçoamento da
microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos.
Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a argumentação. Também agradeço a Paula Pessoa pela sua colaboração
inclusàodequalquerpartedestaobraemqualquersistemadeprocessamento nas aulas da disciplina de "Processo e cultura" e na discussão do tema.
de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da
obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como Agradeço, ainda, a Daniel Mitidiero pela análise do texto, e a
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conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas {arts. 101 a
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ProiÕ»ional
Fechamento desta edição !07.07.20141
ISBN 978-85-203-5402-5
SUMÁRIO
11
Mais recentemente, preocupado em evidenciar que os prece- ()presente livro, invocando a ideia wcberiana de direilo racional
dentes obrigatórios, no direito brasileiro, devem ser fixados pelas 1 , ••n..,lderando a célebre obra A ética protestante e o "espírito" do capi-
Cones Supremas, escrevi O ST] enquanto Corte de Precedentes, 2 em que t.r/r,nw- de Weber 3 -,busca demonstrar que a racionalidade jurídica
demonstrei que a função das Cortes Supremas, diante do impacto do lt11 111.11. própria ao direito continental europeu do final do século XlX
constitucionalismo e da evolução da teoria da interpretação, c atribuir 1 lllll iodo século XX, tem um nítido componente da "ética prOles-
sentido ao direito e contribuir para a sua evolução mediante decisões l.ultl' . mais claramente dos valores calvimstas- que, como é sabido,
que não podem deixar de ter força obrigatória, na medida em que são 1,uuhcm estiveram presentes na Rcvoluçao Inglesa de 1688 (a Revo-
autônomas em relação aos textos legal e constitucional, agregando lu~.lo Gloriosa) e, logo depois, à base da criação da Constituição dos
algo de novo à ordem jurídica. I ..,,,,dos Unidos." Os valores religiosos que determinaram o modo de
Restei absolutamente convencido, diante de tudo isso, que estava , ul.1 do protestante, que propiciou o desenvolvimento do capiralismo,
demonstrada a razão para o nosso sistema não poder prescindir dos 1 "~1 ram um direito racional e previsível, expresso na abrangência e
precedentes obrigatórios, assim como esclarecidas as questões que via- 11.1 dareza organizacional peculiares ao positivismo científico ou ao
bilizariam a operação com precedentes em prol dodesenvolvimentodo 11111Ccitualismo alemão do início do século)(){.)
direito. Não obstante, intrigou-me a circunstância de alguns fingirem O cornmon /aw inglês, visto por Weber como um direito destituído
não enxergar a minha proposta. dl· racionalidade formal fundamentalmente por não permitiragenera-
Foi quando percebi que o probl.ema não estava mais em demons- ll.mçào e a abrangência, converteu-se num direito previsível mediante
trar, em termos teóricos, que o stare decisis não se confunde com o o ,Lare decisis. o que serve para evidenciar não apenas que esse não se
common law ou não pode ser privilégio de um direito não legislado, , onfunde com o common law, mas especialme!lle para esclarecer que
bem como que o civi/law, em virtude da transformação do conceito de 1h "precedentes obrigatórios" se tornam necessários na medida em
direito e da evolução da teoria da imerpretação, não pode continuar <1ue o direito se afasta da calculabilidade.
atribuindo às suas Cones Supremas a função de tutela do legislador. A transformação do civi/law em virtude do impacto do constitu-
Surgira o momento de disculir os motivos pelos quais, apesar da cionalismo, do emprego cada vez mais difundido das cláusulas gerais
evolução do nosso direito, muitos convivem com naturalidade com l' da evolução da teoria da interpretação eliminaram as pretensões
um direito incoerente e com um sistema despido de racionalidade, do positivismo logicista e, por consequência, a previsibilidade que
incapazes de propiciar a previsibilidade, a igualdade e a liberdade. mediante ele seria alcançável. Porem, se o direito cogitado por Weber
Essa nova perspectiva deixa de lado questões já superadas pelos
dois primeiros livros- vinculadas a como o sistema deve ser-, pois
está atenta especialmente à cultura, tentando relacionar, em termos 3. Max Weber,A éliw proLesltltltcco "espírito" do capitalismo (edição de Antônio
sociológicos, aspectos culturais com a vocação para a irracional idade, Flávio Pierucci), São Paulo: Companhia das Letras, 200-+.
4. Sanford Levinson , Consliturioncrl Ferir/r , Princeton: Princeton University
a fa Ita de previsibilidade e a indiferença diante da desigualdade pcran te
Press, 1988; Gorclon S. Wood, /Ire Crearicm of Llrc Ameriam Republic: 1776
o direito. -1787, Nonh Carolina: The Univcrsit}' ofNonh Carolina Press.l998; Fer-
nando Rey Martinez, Lrr élica protcstantf y elespn·itu dcl conslituci011CIIisrno.
Bogotá: Univcrsiclad ExLernado de Colombia, 2003.
2. Luiz Guilherme Marinoni. O ST] enquanto Corte de precedentes, 2. ed., São 5. Max Weber,Economia c sodcci(lc/c, Bras! lia: UnB, 2004, vol. 2, p.1-153; Max
Paulo: Ed. RT, 2014120131. Weber. Essais de sociologic eles religirms , Paris: Gallimard, 1996.
14 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC)
lNTRODUÇ;\0 I 15
deixou de existir e o novo direito passou a depender em boa medida da 1 ...... romo algo natural. De modo que a ausência de reação a um
subjetividade do julgador, isso não quer dizer que a sociedade poderia , '' 111.11udicial que nega a igualdade e a previsibilidade pode revelar
restar desamparada ou destituída das garantias da previsibilidade e da 11111 tnllll'ssc de várias posições sociais, inclusive de grupos de juízes
igualdade, como se o novo perfil do direito de civillaw não pudesse se d\ p.tH ela dos advogados.
compatibilizar com uma ordem jurídica coerente e com a distribuição 1 l personalismo, outra característica da nossa formação cultural,
racional da justiça. llll •lllluu-se num obstáculo para a coesão social a ponto de poder ser
Considera-se, ainda, o impacto dos valores do catolicismo tri- qu11t1.ulo como uma causa da conhecida tibieza das nossas institui-
dentino sobre a colonização do Brasil e, especialmente, o conceito ,,. A [alta de visão institucional de alguns juízes tem atrás de si a
weberiano de patrimonialismo sob a ótica de Sérgio Buarque de Ho- t ,dl.u,.tuda autonomia e do individualismo, ainda que mascaradas de
landa , demonstrando-se o seu significado na relação do brasileiro ltln 1dade para julgar" e de "submissão exclusiva à lei". Também não
com a Administração Pública. O patriarcalismo e o patrimonialismo, , ttupossível perceber, desde aqui, que um juiz que não tem qualquer
traços particulares da formação da nossa cultura, deram origem ao , u111prometimento com objetivos gerais não pode compreender que
conceito buarqueano de "homem cordial"/' o sujeito que, acostuma- 1 Jllll'>uição depende de várias funções, uma das quais a de atribuir
do ao ambiente íntimo e de troca de favores da família, transforma o , 11t1do ao direito mediante precedentes obrigatórios.
espaço público em privado e, exatamente por não poder suportar a Ao final, busca-se demonstrar a fundamentalidade dos prece-
impessoalidade e a racionalidade, também vê a lei como algo que deve dt llll's para a unidade e o desenvolvimento do direito, a clareza e a
ser contornado mediame o auxílio do "funcionário patrimonial" ,1 isto ~~~ nnalidade, a promoção da igualdade, o fortalecimento inslitucio-
é, do funcionário que está na Administração Pública ou da justiça 11.11 , a limitação do poder do Estado, a previsibilidade, a racionalidade
apenas para dela se beneficiar. , tonômica, o respeito ao direito e o incremento da responsabilidade
Note-se, desde logo, que não é difícil estabelecer uma ligação pt·ssoal.
bastante clara entre uma cultura que sustenta, sem qualquer cons- Ajustificativa, ou melhor, a eticização dos precedentes, além de
trangimento, a possibilidade de o homem resistir à lei que o prejudica ,...,lar relacionada a todos estes fatores, implica ver que o respeito aos
mediante o uso das suas relações e um sistema que ecoa a falta de uni- Jlll't:edentes é uma maneira de preservar valores indispensáveis ao
dade na solução de casos iguais, vendo o tratamento diferenciado das 1 ..,tado de Direito, assim como de viabilizar um modo de viver em que
,, dtreito assume a sua devida dignidade , na medida em que, além de
.n aplicado de modo igualitário, pode determinar condutas e gerar
6. Sérgto Buarque de Holanda, Raizes do Brasil, São Paulo: Companhta das um modo de vida marcado pela responsabilidade pessoal.
Letras, 1995 [19361; Sérgio Buarquc de Holanda, O homem cordial, Sào
Paulo: Companhia das Letras e Penguin Group, 2012. Para se ter uma vida pautada no direito- uma ética pessoal de
7. A categoria "funcionário patrimonial", devida a Max Weber. é utilizada tc-;peito ao direito independentemente dasconsequências da sua inob-
por Sérgio Buarque de Holanda: "para o funcionário 'patrimonial', a pró- ...crvãncia-, assim como para que o direito tenha força para regulá-La,
pria gestão política apresenta-se como assumo de seu interesse particular; r indispensável a unidade do direito e, portanto, que as Cones Supre-
as funções, os empregos e os benefícios que deles aufcre relacionam-se a
direitos pessoais elo funcionário e não a interesses objetivos, como sucede
mas funcionem como Cortes de Precedentes, com o que também será
no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a cspecializaçào das possível estimular um ética baseada na responsabilidade pessoal.
funções e o esforço para se assegurarem garantias jundicas aos cidadãos
(Sérgio Buarque de Holanda, Raizes do Brasil cit., p. 146).
PROTESTANTISMO, CAPITALISMO, RACIONALIDADE
DO DIREITO E PREVISIBILIDADE EM WEBER.
ENTRE O COMMON LAWE O CIVIL LAW
DO FIM DO SÉCULO XIX
, •• 1 responder críticas. 1
I. "Webcr nos deixou não somente duas edições d'A ética protestante, mas
duas versões. A ptimeira, publicada em duas levas, em 1904 e 1905, e a
outra, revista e ampliada, editada em 1920. Todas as traduções que até hoje
conhecemos, a começar da primeira, de l 930,assi nada porTalcon Parsons,
usaram a versão ampliada de 1920, inserida por Weber no volume I dos En-
saios reunidos deSociologiada Religião. Hadiferenças importantes entre as
duas versões, j á que a segunda recebeu do autor não só pequenas alterações
e ajusles terminológicos o u gramaticais, mas também e principalmente
ac resci mos preciosíssimos·· (AntOnio Flávio Pierucci, O desencantamento
do mundo- Todos os passos do conceito em Max Webcr, São Paulo: Editora
34,2005, p. 187).
18 \ L riCA DOS PRECEDENTES 0USTIFICATIVA DO NOVO CPC)
PROTESTANTISMO. CAPITALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO I 19
O propósito de Weber é demonstrar que o modo de vida das '"" ' () terceiro CapíLulo refere-se ao conceito de vocação em Lutero.
pessoas de religião protestante, entre as quais situa os calvinistas, os Ir ''·' -;c de um conceito relacionado à ideia de trabalho como missão
luteranos, os metodistas, os menonistas e os quakers, contribuiu para ti ui.• por Deus, presente nas expressões Beruf e calling. Pretende-se
o desenvolvimento do capitalismo. lniciahnentc o livro faz uma rela- , , 11lrnciar que os protestantes, ao contrário dos católicos, rejeitaram
ção entre progresso econômico e populações de religião protestante, , , ll'"õe monástica (vista como ascese extramundana) como meio de
demonstrando existir um nítido vinculo entre as orientações religiosas th .t~·ão, vendo no estrito cumprimento dos deveres intramundanoso
protestante e católica, a escolha da profissão e o subsequente destino 5
111111 "meio de viver que agrada a Deus. A glorificação a Deus, segundo
profissional. 2 Relata-se que os católicos tinham maior interesse pelos
''I" otcsLantismo, deveria ocorrer nas práticas cotidianas, não na redu-
Gymnasicn humanísticos, enquanto os protestantes preferiam os esta-
·'" de uma vida monástica. O dever de bem exercer a profissão, assim,
belecimentos especialmente destinados a preparar para as profissões
, tl.tum dos efeitos da Reforma. Daí a ideia de "vocação profissional"
comerciais e industriais, ou seja, para a vida de negócios, fenômeno
, "' 1 utero e, mais precisamente, a relação entre um modo de viver
que não poderia ser explicado pela diferença de fonunas , mas que
trdlucnciado pelo protestantismo- em especial pelo calvinismo- e o
explicaria o reduzido interesse dos católicos pela aquisição capi talista.
t•-;ptri to" do capitalismo. t>
No segundo Capitulo da Parte I Weber faz referência ao que chama de
"cspfrito" do capitalismo. Alude a um texto de Benjamin Franldin de Na Pane 11, Webertrata, no primeiro Capítulo, dos "fundamentos
que se extrai a ide ia de "profissão como dever" e de "ganho de dinheiro" 11 I igiosos da ascese intramundana". Ou seja, dos valores da religião
como resultado e expressão da habilidade na profissão. As máximas de I" otcstante que teriam conduzido à ide ia de que a devoção a Deus deve
Franklin , ao recomendarem o trabalho árduo e sistemático, aliadas à ·• 1 demonstrada mediante práticas c condutas que fazem parte do co-
austeridade, sintetizariam o "espírito do capitalismo". Trata-se, segun- lld mno, corno a busca de perfeição no exercício da profissão. A ascese
do Weber, de uma "ética·· cuja violação representa o descumprimento
de um dever. 3 É nesse contexto cultural que surge a ideia, atualmente
trivial, de "profissão como dever", elemento constitutivo do capitalis- -+. Cf. Max Weber, A élica protestante c o ··espírito" do capitalismo cit., p. 4 7.
>. ~No conceito de Beruf, portanto, ganha expressão aquele dogma central de
todas as denominações protestantes que condena a distinção católica dos
imperativos morais em 'practptu' c ·consilia' c reconhece que o único meio de
2. ~os artesãos católicos mostram uma tendência mais acentuada a permanecer viver que agrada a Deus não está em suplantar a moralidade intramundana
no artesanato, tomando-se portanto os mestres artesãos com frcquência pela ascese monastica. massim, exclusivameme. em cumprir com os deveres
relativamente maior, ao passo que os protestantes anuem em medida rela- intramundanos, tal como decorrem da posição do indivíduo na vida, a qual
tivamente maior para as fábricas para af ocupar os escalões superiores do por isso mesmo se torna a sua 'vocação profissional"' (Max Weber, A ética
operariado qualificado e dos postos administrativos'' (Max Wcber, A etica protestante e o ~espfrito" do capiwlismo cit., p. 72).
protestante e o "csp1rito" docapiwlismo (edição de Antônio Flavio Picrucci) 6. "Foi o ensino reformado, com efcito,que proclamou pela primeira vezquea
CÍl., p. 32-33).
atividade profissional e a funç:losocialtinham um valornãosomememoral,
3. "Com efeito: aqui não se prega simplesmente uma técnica de vida, mas corno também essencialmente religioso. O que a Deus agrada não é o ascetismo
uma 'ética' peculiar cuja violação não é tratada apenas como dcsalino, mas dos monges, mas, bem pelo cont ráno, o consciencioso exerctcio de todas .as
como uma espécie de falta com o dever: isso, antes de tudo, é a essência da atividades profissionais c seculares que o homem executa na vida cliaria. E à
coisa. O que se ensina aqui não é apenas 'perspicácia nos negócios'- algo minuciosa execução dessas tarefas profanas que o homem é chamado por
que de resto se encontra com bastante rrequência -. mas é um etilO!> que Deus, são elas que constituem o objeto de sua vocação'' (André Biéler, O
se expressa, c é precisamente nesta qualidade que ele nos interessa" (Max pensamento econômico e soei e~/ ele Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2012,
Webcr, A ética protestante c o "espfrito" do wpicalismo cit., p. 45). p. 586).
20 I A ETICA DOS PRECEDENTES OUSTIFICATIVA DO NOVO CPC)
PROTESTANTISMO, CAPITALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO 21
intramundana parte da premissa de que o trabalho é um dever religioso Nn último Capítulo, Weber relaciona a ascese proveniente do
que deve ser exercido com rigorosa disciplina, caracterizando-se como l''""'siHillismo com o "espírito" do capitalismo. Demonstra queacom-
o meio id:al para o cristão cumprir, no "interior do mundo", o desejo l''' , ttsao do trabalho como dever religioso, como meio de comprovação
de Deus. E nesse senüdo que Weber fala de "protestantismo ascético" , ,, lt ,. ela própria eleição, teria sido uma poderosa alavanca para uma
e, com cautela, considera os conteúdos dos valores primordiais do \ "'" marcada pelo "espírito" capitalista. Esse trabalho si.stemáüco e
calvinismo, do pietismo, do metodismo e dos movimentos anabatistas 111111nuado, de que naturalmente surgem ganhos, colaborou com o
para evidenciar e caracterizar os fundamentos religiosos da ascese in- d1 ot iiVOivimentodocapitaJismoprecisamente por significar uma ma-
tramundana. Assim, Weber adverte, ao se referir ao calvinismo, que a tio 11.1 adequada de se glorificar a Deus dentro do mundo. O lucro seria
doutrina da predestinação-nenhum ato praticado pelo homem pode 1111 •.1dtado de uma conduta de vida sistemática, inclusive no trabalho,
1 111 "''i 1ui ndo uma forma adequada de louvor a Deus. Mas a ascese pro-
influir sobre a salvação, estando todos os homens já condenados ou
li .1.1111C não só rompeu as amarras que inibiam o lucro, como ainda
eleitosmediantedecretodivino-éumfundamentodogmáticodamora-
1 o11dcnou o gozo descontraído das posses, estrangulando o consumo
lidade puritana no sentido de uma condu ta de vida ética metodicamente
11 tvo lo , especialmeme o consumo de luxo, daí resultando, no dizer de
racionalizada. Weber demonstra que o calvinismo rejeitou os meios
\\ t•hc r, acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança.Q
sacramentais de salvação característicos ao catolicismo, especia Imente
A relação entre a ascese, derivada especialmeme do calvinismo,
a salvação por meio de obras ou mesmo pela confissão, centrando-se
111111 o "espírito" do capitalismo, passa pela racionalização da conduta
na preocupação com a conduta intramundana, especificamente com
l111111ana. A ascese intramundana ou o exercício do trabalho como dever
o trabalho profissional, meio de ação que daria ao calvinista a com-
11 ligioso não só é clarameme ligado à racionalização do controle da
provação da sua eleição. 7 A preocupação com a correção da conduta e , o11d ução da vida, como constitui uma forma racional de ver a salvação,
com o adequado exercício das tarefas do cotidiano, necessária para o 1t.tr11cdida em que essa, para os adeptos da doutrina da predestinação,
calvinista comprovar a sua salvação, estimulou o controle metódico na I·Huais poderia depender de meios mágicos ou sacramentais - como
condução da vida. De acordo com Weber, essa racionalização da con- ,, .• obras - , mas apenas demandar comprovação mediante o controle
duta de vida no mundo mas de olho no "outro mundo" é o resuhado , 11e imwl do desempenho profissional ou dos atos da vida intramundana.
da concepção de profissão do protestantismo ascético. a O repúdio aos sacramentos, vistos como magia, e a concepção de
qtu· apenas a perseverança em uma conduta orientada à glorificação
O desencantamento do mundo ou a desmagificação da salvação tttu l" tlt .unrclo com o Seu desígnio eterno e imutável, Sua secreta
relacionam-se com a ascese intramundana e com o exercício do traba- I ltlu t " .111 t' o be l-prazer de Sua vontade, escolheu-os em Cristo para
lho impregnados pelos valores do protestantismo, que conduziram a ••" 11 111.1gloria, por livre graça e por amor, sem qualquer previsão de
uma forma de vida racional e orientada a fins. Trata-se de uma form a I '" •h ho,,.., obras, ou de perseverança numa e noutras, ou qualquer
peculiar de racionalização, advinda de valores religiosos. Portanto, é 11 1• • , .,1.,,, na criatura, como condições ou causas que O movessem
ceno que não se pode pensar em desencantamento como (sinônimo 1 '"'" 1 tudo em louvor da Sua gloriosa graça" (Capítulo lll, n. 5).
de) racionalização, como se essa última não pudesse ter ouLrasorigens 1 l, .tlv1 nista, por aceitar a doutrina de que determinados homens
ou intensidades ou, enfim, como se a racionalização operada pelo 1 •• wttii'JlOsousalvosantesdeahumanidadeviraomundo,nãopodia
desencantamento do mundo não fosse uma particularracionalização I•••' ''·•salvaçãoemsuavida,sejapormeiodeobrasousacramentos,
"' 1 qwnas tentar encontrar a comprovação de que havia sido eleito
10. Como esclarece Pierucci, um dos mais importantes Weberólogos das últi- , 111 111 11:t época em que o "outro mundo" era mais importante e, em
mas décadas, "o termo desencantamento entendido como desmagificação d1 • ,.. u... aspectos, também mais seguro do que os interesses da vida
assume a dimensão de um 'grande' processo histórico que é especificamente
ético-religioso e especificamenre ocidental, e assim pretende designar,
quase à guisa de um nome próprio e não comum, o longuíssimo perfodo
de peculiar racionalização religiosa porque passou , mercê de moüvos pura- I• Ora,o que- nospaísesondeoCapitalismoeaculturaeram maisdesenvol-
mente históricos [reiu historisch ],a religiosidade ocidental sob a hegemonia v•das, a Holanda, a Inglaterra e a França dos séculos 16 e 17-, caracterizou,
cultural alcançada por esta forma 'caracteristicamente moralizada' de fé ele- maueira a mais !fpica, as igrejas e as seitas calvinistas, na época em que
monoteísta repressora da magia universal chamada judeu-cristianismo. nam mais ardentemente combatidas, é seu dogma da predestinação. É em
Seus criadores e primeiros portadores [Ti·ãger] foram os profetas de Israel, 10 1 no deste dogmaquese travaram as mais violentas lutas eclesiásticas du-
norào do judaísmo antigo; e fo ram as sei tas protestantes seus radicais e ran te os séculos 17 e 18; é, pois, ele que deve ser havido poro mais especifico
autoconfiantes portadores [Tr·àger] na época heroica do parto culwral da tlogma da fé calvinista. É ele que, para um reformado (diz Weber), lhe dá
moderna civilização do trabalho, seu ponto de chegada religioso" (Amônio sentido a todos os atos da vida, até mesmo aos que mínimos se afiguram. O
Flávio Pierucci , O desencantamento do mundo- Todos os passos do conceito homem não vive para si, mas só para a honra de Deus, soberano único, os
em Ma..x Webercit., p. 199). decretos de quem detem1inam toda a história da humanidade e decidem a
11. An tõnio Flávio Pierucci , O desencauLamenLo do muudo- Todos os passos do salvação de cada indivíduo·· (André Biéler, O pensamento econômico e social
conceito em Max Weber cit., p. 206. de Calvino cit. , p. 588).
24 I A ETICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) I'IHll r.STANTISMO, CAPITALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO I 25
nesse mundo. 13 Uma vez que a incerteza da eleição gerava extrema li II l'.lt matica, capaz de propiciar ao calvinista a "certeza" de que
angústia, Weber adverte que o trabalho profissional sem descanso foi I li I· 1111 I •
distinguido como o meio mais saliente para se conseguira autoconfian-
N"" .. c. portamo, que a ideia de dever profissional, a que se
ça na eleição, visto como a única forma de dissipar a dúvida religiosa
,,, htlllllll fone acento sobre a responsabilidade- resultante dane-
e dar a certeza do estado de graça.
lil.uk de comprovaçàodaeleiçào-,consisteem um modo de viver
Como o trabalho sistemático auxilia na comprovação da elei- 1 •t .. 1,,, h· 1acionalidade. A busca da comprovação da eleição nos atos
ção, é natural que daí surja um fone acento sobre a responsabilidade 11 \ ultlllll amundana, especificamente no exercício da profissão, não
pessoal. O calvinista, exatamente porque sente o peso do "dever da 1 11 1!,,," 0 , rer sem um mélodo capaz ele pem1itir o controle ra<.:ional
profissão ", não pode deixar de cumprir as obrigações inerentes a
ela. Não há apenas dever de bem cumprir a "missão profissional",
mas também dever de cumprimento das obrigações derivadas do ''"'t•c•rais que aft se verifica. Se é ele um réprobo, aparecerá o homem vis i-
exercício da profissão. Descurar do rigoroso e contínuo exercício ela ', lnu:ntc como tal em sua maneira de comporta-se nas tarefas profanas; se
profissão, mas também deixar de pagar uma dívida , tudo isso é indí- rkito, ao contrário, todas as suas atividades exteriorização a marca das
,/1 1
J,,, 11w.ç divinas" (And ré Biéler, O pensamento econõmico e social de Calvino
cio de ausência de eleição. O exercício da profissão e o cumprimento
•li • p. 590).
das obrigações como dever religioso geram ao calvinista um extre- 1, \ 1·1iminaçãoda nwgiacomo meio de salvação, não foi realizado na piedade
mo rigor consigo mesmo, isto é, uma rigorosa e contínua inspeção , .1h1lica com as mesmas consequencias que na religiosidade puritana (e,
da sua conduta profissional e pessoal. A comprovação da eleição, ,ult 1·.; dela, some me na judaica). O cato li co tinha à sua disposição a graça
como nada tem a ver com a realização de obras meritórias isoladas, ' "' •wncntal de sua Igreja como meio de compensar a própria insuficiência:
,, p;1drc era um mago que operava o milagre da transubstanciação e em
ou seja, com obras para a salvação ,I~ exigia uma autoinspeção contí- , IIJ<IS mãos estava depositado o poder das chaves. Podia-se recorrer a ele
, 111 arrependimento e penilencia, que ele ministrava expiação, esperança da
~ 1 . 1 ~,1 , certeza do perdão c dessa forma e.nscjava a dcscarg~ d_aqu~la tensão
rtwrme, naqualeradcsLino mescapavel c tmplacaveldocalvm1sta vJVer. Para
13. "Ora, o problema para nós decisivo é antes de tudo: como foi suportada essa r..,lt' não havia consolações amigavcis e humanas, nem lhe era dado esperar
11 parar momentos de fraqueza e leviandade com redobrada boa vom~d_e em
doutrina numa epoca em que o Outro Mundo era não só mais importante,
mas em muitos aspectos também mais seguro do que os interesses da vida ''111 ras horas, como o católico e também o luterano). O Deus do calv1msmo
neste mundo" (Max Weber, A tLica protestante e o "esplrito" do capitalismo , , igia dos seus, não 'boas obras' Isoladas, mas uma santificação pelas obras
cil., p. 100). l'llgida em sistema. [Nem pensar no vai vem católico e autenticamente hu-
14. "O que, portanto, da moral católica distingue essencialmente o moralismo mano entre pecado, arrependimento, pcnitência,ahvio e, de novo, pecado,
puritano équeo zeloaLivodo calvinista é estimulado prla unica e inabaldvd 111•111 pensar naquela especic de saldo da vida imeira a ser quitado se}a por
certeza de que esta salvo pelo único c soberano decreto de Deus, enquamo o pl'nas temporais seja por intermédio da graça eclesial.) A práxis é.uca do
católico crê dever agir moralmcmc para iuflueuciaro decreto final de Deus. nunum dos mortais foi assim despida de sua falta de plano de conJUnto e
E o que desse ascetismo distingue o ascetismo medtcval é que o crente de .,i..,tematicidade e convertida num mctodo coerente de condução da vida
então buscava a fidelidade em uma ngida moral que se ndo deveria deixar 1 omo um todo. Não [ot por acaso que o rótulo 'metodistas' colou naqueles
conspurcar pelas ali vidades do século; Lutero tinha suprim ido imeiramente que [oram os portadores do ultimo grande rcdespertar de ideias puritanas
as barreiras do convento; seu ascetismo, porém, persevera a tradicional do século XVlll, da mesma forma que aos seus antepassados espirituais do
relutância para com as atividades de um determinado mundo polrtico e ~cculo XVll fora aplicada, com plena equivalência de sentido, a designação
profissional. O Calvinismo. ao contrát;o, imroduziu w11 iclwl ascético no uc 'precisistas'" (Max Weber, A ~tica protestante e o ''esprríto" do capitalismo
i11terior elo séwlo (innerhalb eles wclt/ichcll Benifsle!Jcns) , e até c·m atividades ti L, p. 106-107).
profissionais as mais profanas. Vai até mais longe: ~ na prova elas alividadcs
JV\CIONALIDADE DO DIREITO I 27
26 I A ETI CA DOS PRECEDEN TES (Jl)STIFICATIVA DO NOVO CPC)
1'1{1111 .
1 \N IISMO. CAPITALISMO.
vida racional e para a racionalização do direito. Em tem1os estritamente "' gm:ios - , mas ao mesmo tempo exercia uma ação social racional
weberianos, pode-se afirmar que o direito previsível está em relação " ' h'nt ada ou também determinada por um valorreligioso-adouuina
de causalidade adequada com o modo de vida sistemálico e metódico ,J., predestinação. Seria mesmo possível dizer que a ação racional
resultante da ascese intramundana. • tlll..,islente no trabalho metódico e sistemático estaria determinada,
Perceba-se que, se o aprimoramento dos negócios é uma busca ' lll ttm só tempo, porumfime por um valor. Pierucci,emsua tese sobre
racionalmente orientada a partir de valores religiosos e se, para tanto, "' IIIH.:eito weberiano de "desencantamento do mundo", afirma que
\Vt hcr procura mostrar que, com essa coincidência entre a ativi.dade
Jlltt fissional e a certeza interior da salvação da alma adquirida no ato
19. "Naturalmente, cabesobrewdoaos interessados burgueses exigir um direito dt 1rabalharracionalmente, o protestanlismo ascético produziu uma
ine<.Juívu<.:u, daru, livre <le a rbítrio admin istrativo irracional e de pertur- uutdade inquebrantável e singular entre a ação racionaL referente
bações irracionais por pane de privilégios concreLOs: direito que, antes de 1 ltns !Zwec hationalitãtl e a ação racional referente a valores
mais nada, garanta de [orrna segura o caráter juridicamente obrigatório de
comratos e que, em virtude de todas essas qualidades, runcione de modo
I \Vntralionalitãtl e que ai terla ocorrido, em outros termos , um
calw ldvel" (Max Weber, Economia e sociedade, voL 2 cit., p. 123).
20. David M. Trubeck , Max Weber o n Law anel the Rise o f Capitalism, Wisconsin
Lmv ReviCII\ 1972, p. 737. 'I Max Weber, Economia e sociedade, Brasrtia: UnS, 2009, vol. l , p. 15.
3o I A t:TICA DOS PRECEDEJ'ITES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) I'ROITSTANTISMO. CAPI rALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO I 31
encaixe hislOricameme inaudito entre a racionalidade prático-técnica ll"''"·•do por Weber é o direito positivo, por ele visto como um
e a racionalidade prático-éticaY • t 1111• mo para aumentar a probabilidacle de que certas ações ocorram
Contudo,seépossivelaíverumamodalidadedeaçãodetemTinada ""'''" dctcnninaclo, ou seja. da maneira como foram prescritos por
por um fim e por um valor, que perfaz as condições da racionalidade ••ltr••·· ,. kis. Por garantir o respeito à propriedade, assegurar a vali-
prática em sua inteireza, não há como deixar de perceber que essa ação, t .. J, c 11 cumprimento dos contratos, oferecer aos agentes econõmi-
' 1 .q•urança de que precisam para investir e tomar previsíveis até
seja para alcançar o fim seja para não descurar do valor, não pode pres-
1111 '""·'"mudanças de suas próprias regras e procedimentos, o direito
cindir de um direito racional e previsível. Sem dúvida, além de a conduta
"protestanre'' constituir uma ação inegavelmente racional , orientada I" 111\ o funciona como um 'mitigador' da indeterminação das ações
por um valor religioso e preocupada com a obtenção de um fim, essa ''' '"" como mecanismo facilitador das interações humanas e como
111 "' , , referencial para as chamadas 'regras do jogo'. É com base nessa
ação exigia, para não ser frustrada, um direito capaz de garantir o fim
ll•tlt.c dr raciocínio que Weber explica como o pensamento político, a
ou o resultado. O direito, é certo, obviamente não objetiva garantir o
1, f' .l.u;ão, a administração da justiça e as práticas econômicas vão, na
valor, mas sim o fi m cuja realização importa para a concretização do
1 1 ••tgt·m do mundo medieval para o mundo moderno, libertando-
valor. O direito opera aí como instrumento de racionalização da vida
' dt· todos os grilhões expressos por mitos, tabus e mistérios, de tal
orientada pela religião e dirigida à obtenção de fins.
uuuln que a separação entre o Deus transcendente e um mundo sem
José Eduardo Faria, em prefácio à conhecida obra de Anthony 111 •1:•a~ é concluída pelo protestantismo de natureza calvinista e pelo
Kronman a respeito da sociologia jurídica weberiana, lembra que Weber ''""''quente advento da modernidade c do capitalismo". 2"
mostra, ao estudar o islamismo, o judaísmo e a China antiga, como a
1\ lembrança ao prefácio de José Eduardo Faria tem o objetivo
história moderna é caracterizada pela progressiva racionalização de
tlt drmonstrar a relação umbilical emre ação racional dirigida a fins e
todos os setores da vida, convertendo a eficiência e o cálculo em crilérios
1111111tivada por valores, própria à vida marcada pelo protestantismo
supremos. A ação racional daí decorrente, sempre relacionando meios
' " ' tiJCO, e a racionalidade do direito. O exercício da profissão pelo
e fins, poderia ser vista como (i) ação racional prdtica- que envolve a
• th·mista, uma ação dirigida ao sucesso para a comprovação da elei-
escolha de meios disponíveis e eficientes para o alcance de um fim - ,
' toe. portanto, igualmente pautada em valor, não podia prescindir de
(ii) ação racional material- fundada em valores escolhidos segundo a
tllll.lacão racionalfonnal, isto é, do direito posilivo. única forma capaz
convicção pessoal - , e (iii) ação racional fonncll- que exige regras im-
de· ~arantir as expectativas depositadas na energia despendida com o
pessoais, abstratas e gerais encadeadas de maneira lógica para orientar 11 ,thalho. Vale dizer: única maneira de justificar o próprio exercício
as condutas sociais. 23 Após advertir que, por fixar marcos referenciais d,t profissão como mecanismo de comprovação da predeterminação
e gerar expectativas de que sejam observados, a ação racional formal é d.t eleição.
a que mais oferece previsibilidadc e probabilidade de sua ocorrência,
Em suma: a ascese intramundana, ou mais especificamente o exer-
Faria enfatiza que "um exemplo emblemático de racionalidade for-
' •rio do trabalho como meio de comprovação da salvação, nada mais
' do que uma clara expressão do "desencantamen to com o mundo",
22. Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo- Todos os passos do drcorrente do rompimento com a magia dos sacramentos salvíficos,
conceito em Max Wcber ciL, p. 205.
23. José Eduardo Faria, Prefácio em "M(lx Weber", de Amhony Kronman, Rio
dcJanctro: Elscvier, 2009. H . José Eduardo Faria, Prdádo Ctl.
32 I A ETICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) PROTESIANTlSMO. CAPITALISMO. R.-\CIONALIDAD[ DO DIREI TO I 33
uma ascese que consistia numa ação racional impulsionada por valores '" • tlt 'materialmente irracional. Webercompreendia "justiça do cádi"
e dirigida afins. Exatamente por isso, essa ascese não podia prescindir '''''n 11111 conceito mais amplo que o de justiça administrada pelo juiz
de um mecanismo - o direito - que, com clareza e lógica, fosse apto a 111111 1d11tano local. Na sua visão, tal conceito representava a ideia de
garantir o resultado da energia e do valor depositado nos atos da vida. Inh• lllll'nto feito de acordo com o próprio senso de equidade do juiz e
1 111 'I' t<1lq uer consideração das regras.
28 No direi to substandalmenle
Mas é a categoria do direito formalmente racional que aqui inte- ""l •tos podealegarque fala em nome de Deus ou de um poder trans-
ressa. Para se tentar entender o que é direito formalmen te racional para nrh me, podeexistirpouca pressão para que ela apresente os motivos
Weber é preciso ter em conta que, para ele, apenas os sistemas que se I'"·' decidir, uma vez que ela mesma é um oráculo. Porém, quando os
desenvolveram a partir do direito romano e que foram moldados po 1 .11· "ao solucionados por um homem e não por poderes oraculares,
meio da ciência do direito dos Pandectistas são capazes de reOetir, em 1 .11 grande necessidade prática de justificação. Isso significa que a
grausignificativo,condutasemétodosde natureza formal e racionat.l' •o\ntt•.-.ao da responsabilidade do ser humano pela decisão não só in-
Como pondera Anthony Kronman, o elevado grau de racionalidade
'""'" 1u a necessidade de justificação, mas, antes, tornou-a possível. 35
formal desses códigos tem explicação no fato de eles se basearem na
''in terpretação lógica do sentido" e possuírem uma natureza altamcntl' 'desencantamento do direito" -que não pode ser confundido
t)
previsibilidade. Como escreve Kronman. se uma pessoaquesoluci 11 ''llll'ncias das ações sociais praticadas sob a sua guarda.
o português, História do direito pnvado moderno. tradução de AntOn \rrtl1t1ny Kronman, McL'I: Wcbcr cit., p. 120.
Manuel Hcspanha, 2. ed. Lisboa. rundaçào Caloustc Gulbcnkian, l9tll nh11· 1sso, v. AntOnio Flávio Pierucci. O dcscnccrnlwnerrrodo mundo- Todos
p. 397 e ss). 1''""1~ do com cito em McLx- \Vcbcr cil.
33. Anthony Kronman,MaxWrbcr cit., p. 127-128. \11thony Kronman, /lfCLY \Vcbcrcit., p. 129.
34. ldrm, p 120-121. I li 111 , p 137-138
36 I A [TICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC)
PROTESTANTISMO, CAPITALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO I 37
Isso indica, portanto, que a ideia de previsibilidade, em Weber 0 CHAMADO "PROBLEMA DA INGLATERRA"
não se desliga da ideia de sistema jurídico e, bem vistas as coisas,
uma noção dotada de relatividade, na medida em que pode O argumento de que a obra de Weber teria uma contradição ou
conforme o sistemajuridico seja mais ou menos abrangente ou c 11111 equívoco surgiu, fundamentalmente, a partir de um ensaio de
Ciente disso, adverte Kronman que, "conforme demonstra o ll,l\ 1d Trubeck, intitulado "Max Weber on Law and the Rise of Capi-
law inglês, uma certa previsibilidade - talvez até um grau significa 1 dl"m",publicadoem 1972na Wisconsin LawReview. Trubeck, nesse
dela - pode ser alcançada sem a construção de um sistema · • ll',.lio, refere-se a artigo de aluno seu,Jerold Guben, intitulado de
verdadeiro. Todavia, a previsibilidade máxima só pode ser ai I hr England Problem' and the Theory o f Eco no mie Development",
quando as regras da ordem jurídica tiverem sido organizadas deu 11111 wor/úng paper presente no Program in Law and Modcntization da
modo abrangente e claro em termos conceituais; por maior que seja \c~lt' I c1w School.
sua previsibilidade, é sempre possível tornar umsistemajuridico lrubeck alega que Weber equipara racionalidade jurídica a previ-
previsível por meio de sua sistematização". 39 tlulidade (oucalculabilidade) e entende que a última não está presente
Não existe identidade entre racionalidade formal do direito 111' c 11111111011 law, de modo que a Inglaterra seria uma exceção à teoria de
previsibilidade, uma vez que a previsibilidade é uma consequência 'i' u· há uma relação entre calculabidade e capitalismo ou uma exceção à
um sistema jurídico a despeito da sua maior ou menor racio '"''u."•u.-..• 11lc 1a de que a racionalidade fonnal e a calculabilidade necessariamente
A previsibilidade é objetivo de um sistema dotado de abrangência uul,tm juntas.~' Trubeck advertiu que alguns observadores42 teriam
clareza organizacional, mas pode decorrer de um sistema menos •l1to que a Inglaterra desenvolveu um sistema de direito racional antes
nal ou até de um direito formalmente irracional, como é o prim 1111''>1110 da ascensão do capitalismo e que o grande defeito da análise
common law inglês para Weber. Lembre-se que, segundo a conce ,,,. Wcber estaria na equivocada distinção por ele feita entre o common
de Weber, no common law o grau de racionalidade jurídica é ·'""'·'LU'... l~tw inglês e o direito continemal europeu.H
cativamente menor e de uma modalidade distinta da dos sistemas
Europa continental..,0
Chega-se, assim, ao ponto: considerando-se que a lnglatena é li "lf these comrasüng positions indicate that Weber had no clear image of
English hiswry in mind, they also refiect his concern wi.Lh the issue o[ legal
berço do capitalismo e um local em que o calvinismo se projetou calculability and his tendency to equate it with one mode oflegalthought-
modo muito incisivo, como explicar a conclusão de Weber no sen -a mode o f l hought which clearly was not well developed in England. His
de que o common law inglês é um direito fo nnalmente irracional constanttemptalion was to maintain Lhe keyimportance o f calculability, and
não dotado do mesmo grau de racionalidade do direilO continen <.leal with England either as an exception to the Lheory thatlegal calculability
europeu? Teria Weber feito uma leitura inadequada da relação and capitalism are related, o r asan exception to the idea thatlogically forma(
rationality and calculability necessarily go together" (David M. Trubeck,
religião e capitalismo? Haveria, no raciocínio de Weber, uma m Max Weberon Law and the Rise ofCapitalism, Wisconsín Law Review, 1972,
compreensão do common1aw inglês ou da história da Inglaterra? p. 748).
simplesmente, o sistema de precedentes obrigatórios nada teria a 1.!. Não obstante, em nora de rodapé,citeapenaso trabalho doseualunojerold
com a racionalidade formal do direito? Guben, "The England Problem~ anel the Thcory ofEconomic Development.
I I "some observers have argued that Englancl clicl develop a tmly 'rational'
legal system before the rise o f capi talism, and thatthe major Oaw in Weber's
analysis was t he false disLincuon he drew betwecn English and eontinental
39. Anthony Kronman, Mm: Wcbcr cit., p. 138.
law~ (David M. Trubeck, Max Wcber on Law anel the Rise o[ Capitalism.
40. Max Weber, Economia c socicdcrdc. vol. 2 cit.. p. 150. Wísconsin Law Revicw, 1972, p. 748).
38 A ETICA DO!> PREO::DENTES UUSTlFlCATlVA DO NOVO Cl'C) PROTESTANTISMO. CAPITALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO I 39
O "problema da Inglaterra" também foi objeto da análise de l''l'll.tllvel com um grau reduzido de racionalidade formal. Recorda
Swedberg ..... O sociólogo sueco sustenta que Trubeck se equivoca ao I' h \Vcbcr afirma que o common law inglês, ainda que não dotado de
afirmar que, na obra de Weber, existe uma identidade necessária entre 1 11 11111alidade formal, é previsível. Argumenta, ainda, que está impli-
previsibilidade e um grau e levado de formalismo lógico ou de raciona- ' 11.1 11a rormulação de Trubeck acerca do problema da Inglaterra uma
lidade formal. Adverte que Weber deixa claro que os grupos burgueses \ 1•.. 11t demasiadamente estreita da relação entre capilalismo e direito ,
exigiam do sistema jurídico previsibilidade e que essa é inteiramente 11111.1 'l'Z que, para que o capit.alismo racional exista, não é suficiente
[ll1'\ ~'>lbil idade e um alto grau de racionalidade fonnal, mas é também
111 11 ..,..,ario que existam regras jurídicas sofisticadas acerca de grande
44. Sally Ewing. no ensaio Formal justice and the spirit of capitalism: Max llllllll' ro de instituições econômicas avançadas, especialmente contra-
Weber'ssociologyorlaw, publ icado na LawanciSociety Review, rejeita a ideia ''',,. empresas econônúcas, o que é reconhecido por Weber.
de que Weber teria sustentado que um alto grau de racionalidade jurídica
seria essencial para o desenvolvimento do capilalismo. demonstrando que, () principal argumento de Swedberg está em que Tmbeck teria
na verdade, Wcber teria admitido que, para o desenvolvimemo do capita- ' lltltt 1ido um erro ao ver em Weber uma identidade necessária entre
lismo, bastaria um "direito" capaz de facilitar as transações comerciais e 1111 '1..,ibilidade e um alto grau de racionalidade jurídica formal. Esse
garanlira prcvisibi lidade. "For Weber, the 'legal order' that was relevant to
1 •Jitl voco, aliás, foi antecipado pela funda memação exposta no tópico
the rise o f capitalism was nota particular type oflegalthought but a social
orcler in which law facilitated capitalisttransactions by contrilJuting to the lltlt'l ior, quando se esclareceu que a previsibilidade é objetivo de um
predicwbility of social action. ( ... ) Thus, according to Weber, the legal arder l' tl'ma dotado de abrangência e clareza organizacional, mas pode
that wasessential to tltcgrowt/1 of capitalismwasacontractual one tltat limited ch 1 orrer de um sistema menos racional ou até de um direito formal-
patriarchal discretion and protected its subjects' rigltts to establish contractual ltlllltc irracional. Como afirma Anthony Kronman, a instauração de
relaLions and to mobilize Lhe coercive apparaws LO enforcc those contracts. By
thus protecting anel enforcing a set o f social relations,law beccunc explicitly 11111 modo de produção capitalista eficiente não pressupõe o nível
rclcvant to economics. Lt was, in other words, 'a complexo f aclual determi- 111.1\imo de previsibilidade alcançável pela racionalização formal do
nants o f human conduct'. lL made no particular difference whether those d11dto, de modo que não há contradição entre a afirmação de Weber
relations were defineel by a logically formal system ora more informal .~lu c a menor racionalização do direito inglês e o desenvolvimento
common law system. To Lhe extent that each system defended Lhe freeelom
• .q11talista da lnglaterra.~ 5
o f comract anel protected guaranteed righ LS, the capltalist eco no mie order
could thrive. This brings us back to Lhe question abouL the relalionship be- 'iem dúvida, não só é possível extrair da argumentação de Weber
tween types oflegal thouglu anel the rise o[ capitalism. I fone concentratcs, "t ntcndimento de que o common law inglês, embora não dotado do
as Rhcinstein did, on legal thought itself, then according to Weber's ideal
types conunon law would be considered 'substantively irralional', while
civi I law would be classified as 'logicall) formally rational' (Weber, 1954:
xlii). 8111 if onc is concemed 1101 with legal thought but witll empírica! validity, I, "A luz dessa interpretação. a aparente tensão entre a alegação de Weber
then Weber quite clecwly sct ollt the histortcal conditions that in England gave de que o ·dLreito e a administração fonnalmcnte racionais' sejam um pré-
birtll to a le~al system dwt II'CLS pari icularly well suitccl to the demancls of Lhe requisito para que se atinja o maior grau posstvel de previsibilidade na
b011rgeoisie for guaranteed rigllts and fonnal jus/ ice, the charactcrislics that ação econômica e a sua afirmação de que o empreendimento capitalista
distinguish a bourgeois, or liberal, legal systemfrom ali tlwse that preceded it se desenvoh•eu na Inglaterra a despeito da irracionalidade do commou law
ln this SCILSC the commonlaw systcm, wit!J its formal raUonal adm inistration of 5implcsmente desaparece: só existe uma contradição se comparamws o
jusI ice' (WeJJel; 1978: vol. 2, p. 81 3) and in spite of ali itsjllridical irralionality, grau máximo de previsibilidade ju1 ídica que pode ser alcançado por meio
was certainly afomwl, rationallegal system in thc sociological sense of tlle de racionalização fom1al ao grau mínimo exigido para o estabelecimento
tenn" (Sally Ewing, Formaljusliceand the spirit o f capitalism: Max Weber's inicial de um sistema de produção capitalista eficiente" (Anthony Kronman,
sociology oflaw, Law anel Society Rcvicw. n. 21, p. -+98--+99; grifou-se). Ma..X"Webercit., p. 189).
40 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) PROTESTANTISMO. CAPITALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO 41
mesmo grau de racionalidade do direito europeu continental, era tlll.tll~cncia das situações imagináveis. Kronman afinna claramente,
prevísível,46 como se encontra na obra de Weber passagens que clara- 111 .iludir à discussão de Weber, que, mesmo que a ordem jurídica ca-
mente assim afirmam.- como a lembrada por Swedberg. l' • 11k abrangência e clareza organizacional, um grau suficientemente
1 1, '.1do de previsibilidade pode ser alcançado "se os responsáveis pela
Para que se compreenda o motivo pelo qual Weber não viu ra-
cionalidade jurídica formal no direito inglês primitivo, é preciso •tltttlllistração das regras compreenderem e respeitarem os acordos
1 ••1111.tl uais e e11tendimentos baseados no direito costumeiro que defi-
observar que o common law, por não se preocupar com a abstração,
, .. 111 a maior parte das transações comerciais".-t
9
não impulsionava a elaboração de princípios gerais. H Não havia como
produzir "conceitos gerais",já que, a partir dos casos, surgiam regras WdJer também considera o stare decisis (o sistema de precedentes
concretas, que se diferenciavam a partir de critérios externos. Regras ''h''l',atorios) um elemento de importância para o alcance da previsi-
dessa modalidade, ainda que numerosas, não podem ter pretensão de htltd.tdc. }(' Isso, aliás, é reconhecido expressamente por Kronman ao
"abrangência", que, como visto, ao lado da clareza organizacional, tltul1r ao contraste que Weber faz entre o direito baseado no oráculo e
caracterizava o ideal de sistema jurídico weberiano. 48 '.1.-n-,ao judicial do commonlaw, que, porexigirjusúficação,segundo
\' lw1 tende a tornar a ordem jurídica mais previsível: "na verdade, a
Mas isso não significou que o commo11 law inglês, para Weber,
"'' 1111.., 4ue suponhamos que a elaboração de precedentes !refere-se à
não fosse dotado de qualquer grau de previsibilidade. Weber admite
I llttd.unentação do precedente) e a regra do stare decisis aumentem a
que a prevísibilidade pode ser alcançada não só apenas mediante um
1,,, '1..,1bilidadedos resultados jurídicos de modo significativo, é difícil
sistema dotado de princípios gerais e, por isso, capaz de alcançar a
• plu ar a contribuição positiva feita pelo sistema jurídico inglês ao
•t. ·• nvolvimento, na Inglaterra, de uma economia capitalista racional
''' •I .ul,t na troca de mercado, uma fonna de organização econômica
46. Huben Treiber, ao tratar do "problema da Inglaterra" em Weber, observa:
"'The peculiar nature of modem capitalism, especially its technical and
'I'" ..,t·gundo Weber, exige a aplicação previsível de um conjunto
51
1.1\1 I de regras jurídicas" .
economic substruclllre, requires thatsuccess be calculable, and law figures
as one means to assure this. However- and this is decisive to the argumenl I t·ndo em vista que a fundamentação é um requisito para a racio-
-in England and Gem1any the chances Lhat law and adjudication would
be rendered calculable depended on differente premises. (. .. ) Despite the
'' 'l11 laclc do sistema de precedentes, é evidente que a contribuição para
rationalization dí(ferenúal between England and Germany wilh respect to 1 111 ,•vi.,ibilidade e, por decorrência, para o desenvolvimento do capi-
Lhe formal qualilies o f law, legal proceedings were predictable in both places 1 !11 ,111o, foi identificada no stare decisis, ou seja, na crença justificada e
dueto the predictability o f the judges, though this may have been assured 1" 11 111al de que a adrn in isrração da justiça não deixaria o empreendedor
in differente ways" (Hubert Treiber, .. Eiec1ive afllnities'' between Weber's
I .uuparado. Note-seque Kronman nãoapenasdizqueostaredecisis
socíologyof religion and socíologyoflaw, Thco1y anel SocieL_v, n. 14, p. 841-
-842).
-H. Lembre-se que parte da doutrina inglesa do linal do século XVlll e início
do século XlX, descomente com a falta de racionalidade e de previsibili- I • \ulhonyKronman,MaxWebercit.,p. 187-188.
dade do common luw , fez coro ao direito escrilo. Assim,jeremy Belllham, ti M.tx Weber, Economia e sociedade, vol. 2 cit., p. 150: "E também para o [or-
Truth versus Ashhurst; or law as it is. contrasted with what iL is said Lo be. utalismo jurfdico há válvulas de escape. Na área do clireitoprivado,commoll
Tl1e worhs ofjcremy Bentlwm. vol. 5, Edinburgh: William Tait,l843;]ohn lrlll' <' equiLy são, sem dúvida, em grande pane, 'formalistas' na aplicação
Austin, Lcctures on jurisprudcncc, or Lhe p/1ilosophy of positive law, 5. ed., 111atica,já em virtude da vinculaçào a precedentes". É digno de nota que
vol. 2. London:john Murray, 1911. ur'>lC contexto o termo ~formalismo " é sinônimo de previsibilidade.
48. Anthony Kronman, Max Wcber ciL, p. 139. \u1hony Kronman, Max Weber cit., p. 135.
42 A ETICA DOS PRECEDENTES 0USTIF1CATIVA DO NOVO CPC) PROTESTAJ'\TISMO. CAPITALISMO. RACIONALIDADE DO DIREITO I 43
con tribuiu para a pre\risibi lidade de" modo significativo", como ainda • 1" ,·visibilidade e, ainda, enxergou no stare dccisis um meio capaz de
pondera que, sem o slare clecisis, seria "difícil explicar" a contribuição l'•ll.tllll-la, o que teria permitido o desenvolvimento do capilalismo
positiva feita pelo commo11 law ao desenvolvimento do capitalismo. 1111 '>1110 num direito destituído de racionalidade formal.
Assim, é correto afirmar que o stare decisis foi um importante rica claro que Weber, ao comparar o common law com o direito
elemento de balanceamento da falta de sistematicidade do common 1 • •1111 ncntal europeu, admitia a racionalidade formal deste em virtude
law, tendo contribuído notavelmente para a previsibilidade e. assim, d11 .,, u modo de ser naquele momento histórico, lembrando-se que
para a atenuação da falta de racionalidade jurídica formal do direito \\' hn estava particularmente diante do positivismo científico, do
inglês nos termos weberianos. t•lltt dLualismo alemão, do cognitivismo interpretativo e do logicismo
11.1 .tplicação do direito. Isso quer dizer que, como será visto adiante, a
• 'otlul,"ão da teoria da interpretação, o impacto elo constitucionalismo
5. SíNTESE DAS IDEIAS
1 " rransformação do próprio conceito de direito fizeram surgir uma
Os valores calvinistas deram origem a um comportamento racio- 1111\ a racionalidade jurídica no civillaw, que, portanto. pode exigir e
nal que contribuiu para o desenvolvimento do capitalismo e exigiu 1••11v1vcr com um sistema de precedentes obrigatórios.
um direilo racional e previsível. Isso quer dizer que os valores e a Além disso, o common law, por não possuir a mesma raciona-
cultura de um povo podem e devem ser relacionados à racionalidade lld.~tk formal do direito legislado, teria adotado o stare clecísís como
do direito e da administração da justiça. Essa primeira ide ia é muito 1111 ro para contrabalançar a sua pouca racionalidade e previsibilidade.
importame, na medida em que se pretende, mais adiante, relacionar a llt.d1rmar que o common law não se identifica com o stare decisis é
cultura do brasileiro com a irracionalidade da distribuição da justiça dr~n que obviamente não precisa ser evidenciado mediante a obra de
e com a ausência de um sistema de precedentes. \ rhn. 53 Mas a oportunidade que Weber oferece para a demonstração
Por outro lado, Weber não identificou racionalidade jurídica ,J, que o stare decisis é um instrumento para o alcance da previsibili-
formal com previsibilidade, mas, ao contrário, viu no stare decisis um ,f.u k num direüo percebido como de menor racionalidade do que o do
mecanismo capaz de propiciar a previsibilidade num direito formal- .lu. 110 ela época do positivismo científico tem grande relevância para
mente irracional, o que não compromete a icleia de que, embora o • .tpontar para a imprescindibilidade de um sistema de precedentes
common law não detenha a mesma racionalidade do direito continental "''11gatórios num direilo como o brasileiro contemporâneo, em que se
europeu, ele teria sido capaz de garantir, em virtude do sistema dos
preceden tes obrigatórios, um grau de previsibilidacle que pem1itiu o
florescimento do capitalismo. " ro a historian at least any identification bctween the common /mv system
and the doctrine o[ precedent, any attempL to explain Lhe naturc or the
A alegação de Trubeck,52 no sentido de que a tese de Weber teria ((1111111011 /aw in tenns of slare decisis, is bound LO seem unsatisfactory, for
gerado uma incoerência ao admitir que a Inglaterra , berço do capita- thc elaboration o[ ru les anel principies governing Lhe use o f precedents
lismo, tinha um direito formalmente irracional, não resiste ao argu- anel their status as auLhorities is relatively modem, and the idea that there
rou ld be binding precedents mo re recentstill. The commo11/aw had been in
mento de que Weber jamais identificou racionalidade jurídica forma l
l'Xistence forcenturies before anybody was vcry excited about thesemauers,
ancl yeL it functioned as a system o [ law withouL sue h props as Lhe concepL
o f lhe ratio clccidwdi, and funcLioned well enough .. (A. W. B. Simpson, Til e
52. David M. Trubeck, Max Weber o n Law and the Rise o[ Capilalism, Wisconsin 111111mon law and legaltheory. l n: Horder,jeremy (ed .). Oxford cssays in
Law Review, 1972, p. H8. turisprudence. Oxford: Clarendon Press. 1973, p. 77).
44 \ A ÉTICA DOS PRECEDENTES OUSTlfl CATlVA DO NOVO CPC)
No Brasil, o impacto do constitucionalismo foi maior, na m edida Embora a decisão judicial não possa se esquivar da compreensão
em que todo c qualquer juiz, com base na elaboração teórica de que a do significado dos direitos fundamentais e da consideração d e elemen-
validade da lei se s ubordina aos direitos fundamentais, passou a reter o tos que, não estando definidos nas normas jurídicas, são imprescindí-
poder de conferir significado aos direitos fundam entais. Não é preciso veisàsuacomprcensão, não há racionalidad e em clara todo e qualquer
dizerquea tarefa d econferirsignificadoa um direito fundamental é algo o j uiz o poder de afirmar o significado de um direito fundamental e,
que está muito longe do raciocínio judicial moldado pelos esquemas não obstante isso, deixar-lhe desobrigado perante a palavra final da
do positivis mo clássico- interpretação cognitivista de uma norma Corte Suprema. Isso simplesmente porque, em todo c qualquer sistema
judicial dotado de racionalidade, cabe à corte de vérticedefinirosentido
dos direitos, particularmente dos direitos fundamentais, sendo apenas
24. Tullio Ascarell i, Giurisprudenza costituzionale e teoria dell'imerpretazionc, por essa razão lógica incompreensível a possibilidade de um juiz ou
Ri vista di dililloprocessuale, 1957, p. 351 ess; Vez io Crisafulli, Disposizione tribunal ordinário conferir a uma norma constitucional significado
(e norma). Enciclopcdia dei diritto. 1964; Giovanni TareUo, li "problemaft diverso daquele que já lhe foi atribuído pela Corte Suprema.
dell'interpretazione: una formulazione ambígua, Ri vista internazionale di
filosofia clel diritto, 1966, p. 349-357; G iovanni Tarello, L'interpretazione Realmente, um s is tema que admite o controle difuso de cons-
della legge, Milano: Giuffre, 1980: Riccardo Guastini, Interpretare e argo- titucionalidade não pode deixar os juízes e tribunais ordinários des-
mentare. Milano: Giuffre, 2011 ; Riccardo Guastini, Disposiz ione vs. norma, respeitarem os prececlen tes constitucionais da Corte Suprema. Se não
Giurispnulenza costitu zionale, 1989, p. 3- 14; Pierluigi Chiassoni, TecniCCI
dell'inrerpretazione g iuridica. Bologna: ll Mu lino, 2007. p. 62; Pierluigi for assim haverá incoerência interna, irracionalidacle e estímulo ao
Chiassoni, Disposición y norma: una distinción revolucionaria. Disposición caos. Na verdade, o direito brasileiro, ao admitir o controle difuso de
vs. nonna, Lima: Palestra, 2011, p 8. constitucionalidade- típico do direito estadunidense - , tornou-se
56 I A J:TICA DOS PRECEDENTES OUSTLFICATIVA 00 NOVO CPC) A TRANSFORMAÇÃO DO CIVIL LA\V I 57
incompatível com a sua prática jurídica, em que os tribunais ordinários positivo.26 Não há dúvida de que essa tarefa criativa ganhou fôlego com
não se curvaram à autoridade dos precedentes constitucionais. o reconhecimento da força normativa das normas constitucionais,
Isso, com efeito, merece análise sociológica, pois a explicação para dado o seu papel no desempenho da função jurisdicional em caso de
insuficiência de tutela legislativa aos direitos fundamentais.
o desrespeito aos precedentes constitucionais-que, bem vistas as coi-
sas, interessa há muitas posições sociais- deve ser buscada nos fatores No Brasil, são frequentes as ações coletivas em que o legitimado,
que estimularam e ainda estimulam a incoerência e a inacionalidade. ao pedira tutela de determinado direito de natureza difusa ou coletiva
deduz ausência de norma de proteção a direito fundamental. Tambén~
Uma vez que o significado de um direito fundamental não pode
são comuns as ações individuais em que, sob o fundamento de direito
variar conforme o juiz ou o tribunal, parece certo que o modelo do
fundamental não protegido normativa mente, postula-se prestaçãofáLica
controle difuso é incompatível com um sistema que ignora algo pa-
que estaria a cargo do Estado.
recido ao stare decisis. Lembre-se que a oportunidade do controle
d ifuso no âmbito do civillaw já foi discutida por Mauro Cappelletti. Lembre-se que a proteção de direito fundamenta l pode depender
Segundo ele, a introdução no civillaw do método estadunidense de de norma impositiva ou proibitiva. É possível que, para a tutela do di-
controle de constitucionalidade conduziria à consequência de que reito ambiental, do direito do consumidor etc., seja necessária norma
uma lei poderia não ser aplicada por alguns juízes e tribunais que a impondo conduta positiva ou negativa ao administrado. Assim, por
entendessem inconstitucional, mas, no mesmo instante e época, ser exemplo, para obrigá-lo a instalar (norma positiva) tecnologia desti-
nada a diminuir a efusão de gazes e poluentes ou a não comercializar
aplicada por outros juízes e tribunais que a julgassem constitucional,
(norma negativa) produto com determinada substância. Além disso, há
o que poderia gerar uma grave situação de incerteza jurídica e de con-
caso em que a prestação estatal, embora de natureza fática, depende de
Oito entre órgãos do judiciário. 25 Essa constatação, de uma obviedade
norma. É o caso, por exemplo, dos medicamentos, em que o indivíduo,
impressionante, foi por muito tempo ignorada no Brasil, cenameme
afirmando direito fundamental à saúde, postula, em face do Estado-
por alguma razão inconfessável que prefere apostar na irracionalidade
-Administração, determinado remédio não previsto na legislação.
do sistema jurídico.
Cana ris adverte que os direitos fundamentais têm função de man-
damento de tutela (ou de proteção), obrigando o legislador a proteger
3. A DECISÃO JUDICIAL EM CASO DE INSUFICIÊNCIA DE TUTELA NORMATIVA A DIREITO um cidadão diante do outro. No caso de inexistência ou insuficiência
FUNDAMENTAL dessa tutela, o juiz deve tomar em conta essa circunstância, projetando
o direito fundamental sobre as relações en tre os sujeitos plivados para
Após a segunda guerra mundial, provavelmente em virtude da
conferir a proteção prometida pelo direito fundamental, mas esquecida
projeção cuh:ural dos Estados Unidos, tornou-se frequente no âmbito
pela 1ei·21
do civil law a alusão ao judge made law, dando-se início à elaboração
de teorias que davam ao juiz, com base nas máximas de experiência
e nos princípios gerais, o exercício de função que ia além do d ireito 26. Mario G. Losano, Sistema e estmtura 110 direito, São Paulo: Martins Fontes,
2010, vol. 2, p. 245.
27. Claus-WUhelm Cana ris, Grundrcchtswirkungcn und Verhãltnismãssigkeit-
25. Mauro Cappelletti, li controllo giudiziario di costituzionalitc'l delle leggi nel zprinzip in der richterlichen Anwcndung und Fortbildungdes Privatsrechts,
diritto comparato, Milano: Giuffre, 1968, p. 62 e ss. juS, München, Beck, 1989, p. 161 e ss.
58 I A éTICA DOS PRECEDENTES QUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) A TRANSrORMAÇÃO DO crviLLAW I 59
Quando se tem presente dever de proteção e, portanto, que uma do que responder a um dever de tutela, o judiciário garante o controle
medida idônea deve ser instituída pelo legislador, a ausência de tutela da insuficiência da tutela devida pelo legislador. Na verdade, o controle
normativa pode ser levada a qualquerjuiz, pedindo-se medida de prote- da insuficiência tem, no raciocínio argumentativo judicial, o dever
ção que supra a omissão inconstitucional. Porém, as normas de direitos de proteção como antecedente lógico, no exato sentido de que o juiz,
fundamentais não definem a forma, o modo e a intensidade com que para controlar a insuficiência, deve verificar se há dever de proteção e
um parLicular deve ser protegido diante do outro. Os direitos funda- analisar como a Legislação deve se manifestar para não descer abaixo do
mentais, ao gerarem dever de proteção por pane do Estado, não dizem mínimo de proteção jurídico-constitucional exigido. Só depois o juiz
"como" essa tutela deve se dar. Pensarem '·como" o Estado protege os vai definir o meio que, tutelando o direito fundamental, não excede o
direitos fundamentais é o mesmo do que considerar as providências que mínimo necessário.
o Estado deve necessariamente tomar para tutelá-los. A Constituição
O controle de insuficiência de tutela normativa aos direitos
possui, quando muito, disposições fragmentárias sobre as medidas
fundamentais, ao impor a consideração do significado do direito fun-
de tutela que devem ser utilizadas à tutela dos direitos fundamentais.
damental e ela extensão do dever de tutela estatal em sua relação, bem
Frise-sequeadecisão a respeito de como um dever de tutela deve como a definição do "modo" que, suprindo a omissão do legislador,
ser cumprido é, antes de tudo, questão afeta aoparlamento 28 Quando o adequadamente o tutela, constitui decisão obviamente impensável ao
legislador viola um direito fundamental na sua função de mandamento juiz do positivismo clássico e, portanto, insuscetível à previsibilidade
de tutela, cabe ao juiz atuar apenas para garantir que o dever de proteção que por seu intermédio seria obtenível.
satisfaça as e.xigéncias mínimas na sua eficiência. 29 Perceba-se que, mais
Decisão desse porte, pelo seu conteúdo, ainda que possa ser pro-
ferida por qualquer juiz ou tribunal ordinário, não pode fugir de pre-
28. Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da Rcpublica Federal da cedente constitucional firmado pela Corte Suprema.lsso pela simples
Alemanha, Pono Alegre: Fabris,l998, p. 279. circunstância de dizer respeito ao significado de direito fundamental, à
29. Canaris, em "Grundrechtswirkungen und Verhãltnismàssigkeitsprinzip in extensãododeverestatal de tutela e, maisainda, ao "modo" adequado
der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrccht~", adverte de tutela ao direito fundamental- que, em princípio, deveria ter sido
que no direito privado frequentementedefron tam-se interesses que podem
ser garantidos como direitos fundamentais. Caso o legislador proteja titular definido pelo legislador.
de um direito fundamental, por conseguinte intervém, muitas vezes ao
mesmo tempo, na posição de outro titular de direito fundamental. O exame
const iwcional, por consequênda, orienta-se tipicamente em cluas cli reções: por 4. As CLÁUSULAS GERAIS
um laclo a proteção não deve se reter atrâs do mfnimo COIIStitucimwl exigido;
por outro lado, não deve ser "excessiva", ou seja, excedente ao proporcional e Mas não foi apenas isso ou o poder de afirmar o sentido dos
ao necessdrio, intervindo nos direitos fundamclltclis de outros sujeitos privados. direitos fundamen tais- considerando aspectos que não podem ser
No original: "Dieverfassungsrechtlich Prüfunggcht folglich typischerweise apreendidos a parti r das normas- para invalidar a lei ou para dar-lhe
in zwei Ricluungen". einerseits darf der Schlllz nicht hintcr dem verfas-
"interpretação conforme" que minou o positivismo, inviabilizando o
sungsrechlliche gebotenen Minimum zuruckblcibcn, andererseits darf
nicht 'úbermãBig', d. h. mehr als erforderlich und vcrhãltnismãBig, in die alcance da previsibilidade que mediante ele seria a ti ngivel.
Grundreehte desanderen Privalrechtssubjckt eingrcifcn" ( Claus-Wilhclm A percepção de que determinadas "conclusões" dependem das
Canaris, Grundrecbtswirkungen und Verhãltnismãssigkeitsprinzip in der
richtcrlichen A nwendung und Fortbildung des Privatsrechts,JuS, 1989, p. circunstâncias específicas das situações concretas e dos momemos
164). históricos fez o legislador compreender que, nessas hipóteses, deve-
60 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) A TRANSFORMAÇJ\. o oo CIVIL I.AW I 61
ria editar normas dotadas de conceitos vagos ou indeterminados ou manifestações se baseiam no fato de a cláusula geral não permitir e,
dar ao juiz o poder de expressamente completar o texto legislativo, ao mesmo tempo , esvaziar de sentido qualquer atividade substantiva,
escolhendo uma opção adequada à justiça do caso concreto. Normas desde que ela, por seu lado, não remeta para a situação bem definida
desse tipo, ditas cláusulas gerais, resultam de uma técnica legislativa de uma moral estabelecida e de uma técnica judicial firme. Enquanto
que se contrapõe à técnica casuística. A técnica casuística é utilizada a teoria do direito e a tradição judicial não desenvolverem uma técnica
quando, para a estruturação da lei , são estabelecidos critérios para a refletida do liSO con·etoda cláusula geral, ela constitt{i um perigo crescente
qualificação dos fatos normados, ao passo que as cláusulas gerais são para as nossas ordensjwidicas". 31
caracterizadas por vagueza ou imprecisão de conceitos, tendo o obje- É exato que a técnica das cláusulas abertas tenha dado ao juiz um
tivo de permitir o tratamento de particularidades concretas e de novas espaço que ele não tinha, que, por conta disso, deve merecer atenção
situações, inexistentes e imprevisíveis à época da elaboração da regra. 30 da teoria jurídica para se evilar a multiplicação de normas jurídicas
Diante da cláusula geral, o juiz tem poder para elaborar a nor- para casos iguais, a traduzir perda de previsibilidade e violação da
ma adequada à regulação do caso; a cláusula é texto legislativo que igualdade. Aliás, advertejohn Henry Merryman, em estudo de direi-
conscientemente lhe dá amplo espaço para participar da elaboração to comparado acerca da tradição do civillaw , que não se exige muita
da nonnajurídica. A técnica das cláusulas gerais tem como premissa imaginação para se perceber que cláusulas como a da boa-fé dão ao
a ideía de que a lei é insuficiente e, nesse sentido, constitui elemento juiz grande porção de poder equitativo indefinido , deixando-o quase
que requer complementação pelo juiz. que sem responsabilidade diante da formulação legislativa e distante
do modelo de juiz concebido pela tradição do civillaw.32
Franz Wieacker, em sua importante História do direito privado
modem o, ao analisar o processo de formação do Bü rgerliches Gesetzbuch A preocupação de Wieacker e ncontra resposta na racionalidade
(Código Civil alemão) advertiu que "o reverso das cláusulas gerais da argumentação que deve presidi r a justificativa das decisões fundadas
foi de há muito notado. Se a disciplina dogmálica do juiz se torna em cláusulas gerais e, especialmente, na necessidade dessa jusúfica-
mais rigorosa, dá-se uma tentativa de 'fuga para as cláusulas gerais' tiva advir da Cone Suprema incumbida de definir o modo como uma
(Hedemann), para uma jurisprudência voltada exclusivamente para cláusula geral deve ser aplicada diante de determinada circunstância
a justiça e liberta da obediência aos princípios; em épocas depredo- específica que se repete em casos similares.
mínio da injustiça elas favorecem as pressões políticas e ideológicas
sobre a jurisprudência e o oportunismo político. Mesmo abstraindo
31. Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichteder Neuzeic cit., p. 4 76-477; citou-se
destas épocas de degenerescência, elas possibilitam ao juiz fazer valer a tradução de AntOnio Manuelllespanha, Históriadodireito privado moderno
a parcialidade, as valorações pessoais, o arrebatamento jusnaLUralista cil., p. 546-547.
ou tendências moralizantes do mesmo gênero contra a letra e contra 32. "lt is true thatthe legislature has acted and that its action is expressed as a
o espírito ela ordem jurídica. Por outro lado, o uso inadequado, hoje substantive rule oflaw, butthe terms areso broad ('good faith', which is not
defined in the code, has an almost unlimited area of potential application)
cada vez mais frequente, das cláusulas gerais pelo legislador atribui ao
that tllejudge is hardly constraincd by the legislalive fonnulation. What that
juiz uma responsabilidade social que não é a do seu of(cio. Todas estas stature means de pends on whatjudges do with it in concretecases. What
they do with it in concretc cases bccomes the law in fact, altho ugh not in
theory" (Jo bn Henry Merryman, The civillaw traclition: an introduction to the
30. Ver Nicola Picardi, La voca:ion e del nostro tempo per la giurisdizione, legal systems ofEurope and Latir1 America, Standford: Standford University
Ri vista trimestrale di diritto e procedura civile, 2004, p. 46. Press, 2007, p. 53).
62 I A ~TlCA DOS PRECEDENTES OUSTIFlCATlVA l)() NOVO ( 1'(.) A TRANSFORMAÇÃO DO CfVfl I.AW I 63
Só o respeiLo aos precedentes da Cone Suprema pode deixar claro de dar a devida autoridade às decisões das Cortes Supremas- isto é,
que a cláusula geral se destina a dar ao judiciário poder de elaborar do STJ e do STF.
norma de aplicação geral, ainda que atenta a uma circunstância es-
pecífica insuscetível de ser definida à época da edição do texto legal.
5. A EVOLUÇÃO DA TEORIA DA INTERPRETAÇÃO
Ou seja, a norma judicial derivada da técnica legislativa das cláusulas
gerais, não obstante considere uma circunstância que surge no caso a tradição de civil/aw, as decisões judiciais são tão estáveis e
concreto, deve ter caráter universalizante, na medida em que não terá seguras quanto a lei, podendo-se dizer, até mesmo, que a lei é quem
racional idade caso não puder ser aplicada a casos futuros marcados decide o caso concreto. 35 Os valores jurídicos que orientam a decisão
pela mesma circunstãncia. 33 judicial são certeza, estabilidade e previsibilidade. A teoria da interpre-
Os doutrinadores do common 1aw percebem, quando analisam o tação que se aproxima da época ela Revolução Francesa é denominada
civillaw, que nas decisões sobre matéria constitucional e naquelas em formalista ou cognitivista. A interpretação, enquanto atividade, tem
que se aplicam cláusulas gerais não há sequer como admitira distinção natureza cognitiva, resultando numa descrição ou declaração. 36 Nessa
entre precedentes interpretativos e precedentes de solução. Afirma-se teoria- que tem ao seu lado as ideias de completude e coerência do
que, em tais casos, a interpretação tem tamanho alcance e é guiada por direito - , oconteúdoda lei está implícito no texto legal. O juiz investiga
argumentos tão frágeis e vagos da lei escrita que a decisão poderia ser ou conheceparadeclararo que está gravado no texto. O intérprete está
explicad a tanto pela teoria interpretativista quanto pela teoria positi- preso a uma norma preexistente. Por isso, a interpretação, enquanto
vista da criação judicial do direito. 3"' produto, é um mero enunciado descdtivo, sujeito ao teste da verdade
e falsidade.
Isso quer dizer, em outras palavras, que as decisões dos juízes
de civillaw, no mínimo quando abordam matéria conslitucional ou Essa modalidade de interpretação deu origem ao slogan do "sen-
se valem ele cláusula geral, relacionam-se com a previsibiliclacle nos tido exato da lei" e serviu de fundamento à Corte Suprema cuja função
mesmos moldes das decisões ele common law, o que significa que a é a correção da legalidade das decisões- que hoje ainda sobrevive nas
nossa real idade, que convive com a correção da legislação a parti r dos ordens jurídicas de civillaw.
direitos fundamentais por qualquer jutz ou tribunal ordinário e com Porém, a evolução ela teoria da interpretação fez ver que o intérpre-
o emprego cada vez mais difundido de cláusulas abertas, não pode te valora e decide entre um dos resultados interpretativos possíveisY
adiar a teorização de um sistema de precedentes obrigatórios, capaz
35. jerzy Wróblewski, Funcl ions oflaw anel legal cenainty,Anuario de Filosofia
33. Na verdade, em uma perspectiva lógico-argumenLativa, toda c qualquer de! De recito, XVll, 1973-1974, p. 322 e ss.
decisão deve ser universalizável, sob pena de não ser justificada do ponto 36. "Secondo la teoria che converremo di chiamare 'cogniúvistica'- ma talora
de vista do sistema jurídico (Luiz Guilhenne Marinoni, O ST) cnquauto della 'formalistica' -la qualc risalc allc doLtrine giuridiche deli'IUumittismo,
Corte Suprema cit., p. 106-109; Daniel Mltidiero, Co rtes Superiores e Cortes l'interpretazione (i vi inclusa que lia giud iziale) e ano dl scoperta o conos-
Supremas, São Paulo: Ed. RT, 2013, p. 82-86). O caso das cláusulas gerais é cenza del significato" (Riccardo Guastini, Interpretare e argomentare cit.,
um em que essa necessidade é ainda mais sensível. p. 409).
34. Zenon Bankowski, Neil MacCormick, Lech Morawski, e Alfonso Rui z Mi- 37. jerzy Wróblewski, Lenguajc jurídico c intcrpretación jurídica, Sentido y
guc I, Rationales for precedem, lnterpreting preccdents: a comparalive study, heclroenel clerecho. México: Fonramara, 2008, p.l36ess; MariojorieAnna
London: DartmouLh, 1997, p. 485. Pintore, Manual e di teoria general e ele! diritto, Torino: Giappiche~ 1995,
64 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES OUSTIFICAIIVA DO NOVO CPC)
A TRANSFORMAÇÃO DO CIVIL LAW I 65
A norma, portanto, não está implícita no texto legal, ou seja, não an- opção interpretativa deve ser justificada mediante argumentos racio-
tecede à interpretação, mas dela deriva. 36 A norma, enquanto decisão nalmente aceitáveis. 42 A decisão d~ixa de se situar no local da procura
judicial, é reconstruída a partir de elementos textuais e extra textuais da do sentido exato da lei e passa a ocupar o lugar da justificativa das
ordem juridica.39 Para tanto, o juiz valora, seja ao eleger determinada opções interpretativas, ou seja, da racionalidade da interpretação. O
diretiva interpretativa, seja ao optar por um dos resultados da atividade- direito então é interpretação e prática argumentativa e, assim, ganha
-interpretação.-10 Guastini demonstra que a crença difusa, no sentido da autonomia em relação à lei.
correspondência biunívoca entre disposição (ou norma) e formulação
A decisão da Corte Suprema, ao expressar o sentido do direito,
de norma, é uma crença falaz, uma vez que "toda disposição é (mais
passa a orientar a vi dia social e a guiar as decisões dos juízes e tribunais
ou menos) vaga e ambígua, de modo que tolera diversas e conflitantes
de apelação. Se as Cortes Supremas têm a [unção de desenvolver o
atribuições de significado. Neste sentido, a uma única disposição- a
direito ao lado do legislativo, as suas decisões devem ganhar a auto-
cada disposição - corresponde não apenas uma só norma, mas uma
ridade que lhes permita c01-responder ao significado que possuem na ,
multiplicidade de normas dissociadas. Uma úniica disposição exprime
ordem jurídica. É precisamente aí que as decisões das Cortes Supremas
mais normas dissociadamente: uma ou outra norma, de acordo com
assumem a qualidade de precedentes.
as di versas interpretações possíveis".41
Sucede que, não obstante a evolução da teoria da interpretação, o
A evolução da teoria da interpretação coloca nas mãos das Su-
modelo de Corte associado ao formalismo interpretativo sobreviveu e
premas Cortes a função de atribuir sentido ao direito (ou definir a
ainda está presente no Brasil e, com maior ou menor intensidade, em
interpretação adequada do texto legal), evidenciando a necessidade de
quase todos os sistemas de civillaw. Note-se que, quando a função da
a decisão da Corte ser legitimada por uma argumentação racional. A
corte de vértice se res ume à declaração do sentido exato da lei, nada é
adicionado à legislação e, assim, não há como ter decisão que revela
p. 205 e ss.; Enrico DicioLi, Interpretazione de/la legge e discorso razionale,
um sentido atribuído à lei e, por consequência, motivo para ter pre-
Torino: Giappichelli, 1999, p. 200 e ss.; Rodolfo Sacco, lnterpretazione dei cedente dotado de autoridade. Se a decisão da Corte define o sentido
diriuo. Dato oggettivo e spirito dell'inLerprete. Diritto, giustizia e interpre- exato da lei basta um sistema que garanta a correção das decisões que
tazione, Roma/Bari: Laterza, 1998, p. 111 e ss. dele cbscrepem, dirigida ao passado.
38. Recorde-se da doutrina de TareUo: "Soventesi di ce e si scrive, impropriamen-
te, che l'imerprete 'scopre'ilsignificaro delle'norme'.ln realtà né !'interprete Entretanto, quando a decisão da Corte atribui sentido ao direito
'scopre', né lasuaattivüà haperoggeuodelle'norme'. (. .. ) I.:espressionecor- -porque se acredita na dissociação entre texto e norma-, outorga-se
rente deve p erciõ essere corre na, perché non sia ambígua, cosl: !'interprete unidade ao direito com a elaboração do precedente. Proclamar a inter-
rileva, o decide, o propone il significaLo di uno o piu enunciaú precettivi,
rilevando, o decidendo, o proponendo che il di ri Lto ha incluso, o include,
o includerà una norma" (Giovanni TareUo, L'interpretazione della legge,
Milano: Giuffre, 1980, p. 61, 63-64). 42. j erzy Wróblewski, Legal syllogism and rationalily of judicial decision ,
39. Riccardo Guaslini, Se i giudici creino diriuo, lstituzioni e dinami che de/ di- Rechtstheorie, Berlln: Duncker & Humblot, 1974. vol. 5, parte l, p. 35 e
ritLo, Milano: Giu(fre, 2009, p. 395; Humberto Ávila, Teoria dos princípios, ss; Giuseppe Zaccaria, Complessità della ragione giuridica. Queslioní cli
15. ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p. 51-55. interpretazione, Padova: Cedam , l996, p.3-20; Pierluigi Chiassoni, Tecnica
40. Jerzy Wróblewski, Transparency and doubt. Understanding and interpre- dell'interpretazione giuridíca. Bologna: li Mulino, 2007; Frank Michelman,
tation in pragmaricsand in Law, law andPhilosophy, 1988, p. 322 e ss. Justificalion (andjusrifiabilit)') of law in a comradictary world, Nomos
XXVIII:justificaLion, New York, New York University Press, vol. 71 , 1986,
41. Riccardo Guastini, Interpretare eargomentare ciL., p. 65 e ss. p. 71-99.
66 \ A ÉTICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC)
pessoas as quais o povo não aulorizou para assim o fazerem , então tais
l. Ver Sanford Levinson, Constitlltional Faith ciL pessoas elaboram leis sem autoridade, as quais o povo, em consequência,
2. Fernando Rey Martinez, La ética protestantey el espfrítu del constitucionalis- não está obrigado a obedecer; em tais condições, o povo ficará novamente
mo c iL, p. 55 e ss. Gordon Wood adverte que, "do mesmo modo que todos desobrigado de sujeição, e poderá constituir novo legislativo conforme
os ingleses, os colonos estavam familiarizados com documentos escritos julgar melhor, estando em inteira liberdade para resistir à força aos que,
como barreiras ao poder ilimitado" (Gordon S. Wood, The Creation of the sem autoridade, quiserem impor-lhe qualquer coisa" Oohn Locke,Second
American Republic: 1776-1787 cit., p. 268). Treatise ofGovernmenc. Hacken: lndianápolis, l980 (1690] p. 80).
3. A "declaração de independência", adotada pelo Congresso Continental em 4. Fernando Rey Marúnez, La ética protestante y el esp!ritu de I constitucionalismo
4 de julho de 1776,já no primeiro parágrafo refeTe-se às "Leis da Natureza" cit., p. 57-61.
como fundamento para o ato de separação política entre as colônias norte- 5. Os Framers,embora tenham tido experiência com os precedentesdecommon
-americanas e a Lnglaterra. A seguir considera "verdades autOeviden tes" o law, certamente não conheciam precedentes de natureza constitucional, ou
fato de que "todos os homens são criados em igualdade, que eles possuem seja, precedentes interpretativos de normas constitucionais. A jurisdição
cerws direitos inalienáveis atribuídos pelo Criador, que entre esses di reitos constilllcional era algo absolutamente novo. A teorização dos precedentes
encontram-se a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que para assegurar constitucionais deve ter exigido ao menos o inicio da discussão acerca da
esses direitos, governos são ins tituídos entre os homens, c derivam seus interpretação constitucional. Em 1958, no caso Cooperv. Aaron, a Suprema
poderes do consenso entre os governados. Q~1e sempre que alguma forn1a Cortedecidiuque "a interpretaçcloda 14a. Emenda anunciada pores ta Corte
de governo torne-se d estrutiva desses direitos, é Direito do Povo alterar no caso Brown é lei suprema do pafs e o art. Vl da Constituição faz com que
ou abolir o governo, e institllir um novo governo". É explrcita a aceitação esta decisão tenha efeito vinculante ("binding eff ect") sobre os Estados". Ver
de princípios jusnaturalistas, especificamente na formulação dcjohn Lo- Michaelj. Gerhardt, Tll epowerofprecedenL, NewYork: Oxford University
cke: "Quando uma pessoa ou várias tomarem para si a elaboração de leis, Press, 2008, p. 48 e ss.
72 I A ÉTI CA DOS PRECEDENTES QUSTIFICATIVA DO NOVO CPC)
PERSONALISMO, PATRIMONlAUSMO, CULTO A IRRACIO NAUOADE I 73
intrinsecamente, a força unificadora do direito, na exata medida em salientando a invalidade dos sacramentos ele salvação, bem como das
que, num sistema de recíproco controle entre os poderes- checks and obras como meio de salvação, os qÚais serviam para dar força política
balances-, não se pode conceber a fragmentação do que é dito pelo e econõmica à Igreja.
PoderJudiciário- decisões judiciais variadas sobre a validade das leis. Lembre-se que o calvinista acabou por entender que a comprova-
No Brasil, muitos juízes ainda imaginam que podem atribuir ção da salvação se daria mediante o controle racíonal elos atos da vida
intramundana. Os sacramentos de salvação e as obras foram vistos
significado aos textos que consagram direitos fundamentais a seu
como magificação. N essesentido, a Reforma conlribuiu para o homem
bel-prazer- como se a Constituição fosse uma válvula de escape para
racionalizar a sua vida e, por consequência, para a racionalização
a liberação dos seus valores e desejos pessoais- e, assim, decidir sem
dos grupos de que fazia parte e da própria vida em sociedade. Daí ter
qualquer compromisso com os precedentes constitucionais, numa
a Reforma dado origem - conforme demonstrou Weber em A ética
demonstração clara de ausência de compreensão institucionaL
protestante e o espírito do capitalismo- a um modo de viver centrado
Estão por detrás da falta de respeito aos precedentes argumentos na ascese intramundana, da qual decorre a compreensão do trabalho
retóricos de natureza jurídica, valores culturais e, inclusive, um nítido como dever religioso, propiciando o desenvolvimento do capitalismo
interesse num sistema judicial incoerente e aberto a mudanças repen- e a necessidade de um direito dotado de racionalidade formal , ao qual
tinas. É importante perceber que a falta de autoridade das decisões das era inerente a previsibilidade.
Cones Supremas não deriva apenas da rejeição teórica à ideia de que as
Roma e os povos latinos a ela aliados sentiram a necessidade de
suas decisões devem definir o sentido do direito e, portanto, orientar
responder aos ataques da Reforma protestante. A resistência do Pa-
os demais tribunais, mas também do desinteresse de posições sociais
pado a uma conciliação levou Roma a manipular um Concílio que se
significativas na racionalização da distribuição do direito no país.
tornou inevitável - designado ele Concílio de Tremo - , donde surgiu
Bem vistas as coisas, várias posições que estão no mercado, assim a chamada contrarrefonna, uma opção absolutista que fortaleceu a
como governos, corpos de juízes e parcela dos próprios advogados ortodoxia e enrijeceu a disciplina da Igreja, instituindo valores que
podem ter mais interesse na incoerência e na irracionahdade do que foram responsáveis pela decadência dos povos peninsulares.
no contrário. Esse ponto, apesar de nunca descortinado, tem grande
O catolicismo elo Concílio de Trento, em substância, negou a
relevância nos países de civillaw marcados por culturas avessas à
grande conquista da Reforma: a liberdade moral, que levou ao exame da
racionalidade e à impessoalidade na administração pública, inclusive
consciência individual, responsável peloforte acento sobre a responsabili-
na administração da justiça.
dade pessoal, tudo isso imprescindível para a postura que o protestante
assumiu diante da sua viela. Ora, o Concílio de Trento condenou a ra-
2. Ü IMPACTO DOS VALORES DA CONTRARREFORMA NOS PAÍSES IBÉRICOS E NA COLO- zão humana e o pensamento livre, revelando-os como um crime contra
NIZAÇÃO DA AMÉRICA Deus. A proibição da leitura da Bíblia , por exemplo, nada mais é do que
qualificar como pecado a razão humana ou suspeitar da capacidade
AReforma, liderada por Lutero e mais tarde por Calvino, demons- cognitiva do homem, obrigando-o a ter um modo de viela pautado no
trou os desvios da Igreja Católica, que, de lugar para a propagação da "entendimento" de alguns poucos iluminados.
fé, transformara-se em local de manipulação do poder político e eco-
Note-se que a impossibilidade de questionar os dogmas religio-
nõmico. A Reforma enfatizou, entre outros ponttos, a necessidade da
sos e a solução mágica oriunda dos sacramentos de salvação, como a
leitura da Bíblia como forma de desmitificação dos dogmas da Igreja,
74 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES (JUSTlFICAIIVA DO NOVO CPC) PERSONALISMO, PATRIMONlALISMO, CU LTO AIRRAClONALIDADE I 75
confissão, não estimulam o exame de consciência para a investigação com a oscilação contínua da n_oção do dever, e aniquila os caracteres
da responsabilidade pessoal e, assim, eliminam o motivo para uma sofismando-os.' amolecendo-os: o ideal da educação jesuítica é
vida guiada por uma pauta racional. um povo d.e cnanças mudas, obedientes e imbecis, realizou-o nas
Antero de Quental, em discurso proferido em Lisboa no ano de famosas IUlSsões do Paraguai; o Paraguai foi o reino dos céus da
Companhia deJesus; perfeita ordem, perfeita devoção; uma coisa
1871, argumentou que o catolicismo do Conselho de Trento não só foi
só faltava , a al~a, i: to é, a dignidade e a vontade, o que distingue 0
um dos principais responsáveis pela decadência dos povos peninsulares
~ornem da arumahdade! Eram estes os benefícios que levávamos
nos séculos XVII, XVIII e XIX, como também teve influência nefasta
as raças selvagens da América, pelas mãos civilizadoras dos padres
sobre a colonização em solo americano: da Companhia! Por isso o gênio livre popular decaiu , adormeceu
"E a nós, Espanhóis e Portugueses, como foi que o catoli- por toda a parte: na arte, na literatura, na religião.
cismo nos anulou? O catolicismo pesou sobre nós por todos os ( ... )
lados, com todo o seu peso. Coma Inquisição, um terror invisível
paira sobre a sociedade: a hipocrisia toma-se um vício nacional Há, com efeito, nos actos condenáveis dos povos penins~
e necessário: a delação é uma virtude religiosa: a expulsão dos lares, nos ~rros da sua politica, e na decadência que os colheu,
judeus e mouros empobrece as duas nações, paralisa o comércio al~uma cotsa de fata l: é a lei de evolução histórica, que inflexível
e a indústria, e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul ~ nnpasst~elmente tira as consequências dos princípios uma vez
da Espanha: a perseguição dos cristãos-novos faz desaparecer os mtroduZtdos na sociedade. Dado o catolicismo absoluto era
capitais: a Inquisição passa os mares, e, tomando-nos hostis os impossível que se lhe não seguisse, deduzindo-se dele, 0 ab; olu-
índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, tismo monárquico. Dado o absolutismo, vinha necessariamente 0
torna impossível o estabelecimento duma colonização sólida e espírito aristocrático, com o seu cortejo de privilégios, de injustiças
duradoura: na América despovoa as Antilhas, apavora as popula- com o predomínio das tendências guerreiras sobre as industriais. o;
ções indígenas, e faz do nome de cristão um símbolo de morte; o erros políticos e econômicos saíam daqui naturalmente; e de tudo isto
terror religioso, finalmente, corrompe oca rácter nacional, e faz de pela transgressão das leis da vida social, saia naturalmente també~
duas nações generosas hordas de fanáticos endurecidos, o horror
a decadência sob todas as formas.
da civilização. Com o jesuitismo desaparece o sentimento cristão, E essas falsas condições sociais não produziram somente os
para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu efeitos que apontei. Produziram um outro, que, por ser invisível e
a consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo insensível, nem por isso deixa de ser o mais fatal. É 0 abatimento
brutais e requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à a prostração do espírito nacional, pervertido e atrofiado por un~
memória, com ofim de matarem o pensamento inventiva, e alcançam pou.cos de séculos da mais nociva educação. As causas, que indi-
alhear o espírito peninsular do grande movimento da ciência mo- quet, cessaram em grande parte: mas os efeitos morais persistem, e é
derna, essencialmente livre e criadora: a educação jesuítica faz das a eles que devemos atribuir a incerteza, o desânimo, 0 mal-estar da
classes elevadas máquinas inteligentes e passivas; do povo ,fanáticos nossa sociedade contemporânea. À influência do espírito católico,
corruptos e cméis: a funesta moral jesuítica, explicada (e praticada) no .seu pesado dogmatismo, d eve ser atribuída esta indiferença
pelos seus casuístas, comas suas restrições mentais, as suas subti- umversal pela filosofia, pela ciência, pelo movimento moral e
lezas, os seus equívocos, as suas condescendências, infiltra-se por social 1~oderno, este adormecimento sonambulesco em face da
toda a parte, como um veneno lento , desorganiza moralmente a revoluçao do século XIX, que é quase a nossa fei ção característica e
sociedade, desfaz o espírito de família, corrompe as consciências nacional entre os povos da Europa. já não cremos, certamente, com
76 I A ÉTlCA DOS PRECEDENTES OUSTIFI CATIVA DO NOVO CPC) PERSONALISMO, PATRIMONLAUSMO. CULTO À IRRACIONAL! DA DE I 77
o ardor apaixonado e cego de nossos avós, nos dogmas católicos: pontos de grande i mportância ppra a compreensão do nosso destino
mas continuamos a fechar os olhos às verclades descobertas pelo histórico. 9
pensamento livre" .6
No famoso capítulo intitulado "Homem cordial", Buarque de
Os valores do catolicismo tridentino não apenas são distintos dos Holanda trabalha com os conceitos weberianos de patrimonialism<;>
do calvinismo. Eles tiveram impactos opostossobreomodo do homem e burocracia. Esses conceitos são usados como ferramentas para a
conduzir a sua vida pessoal e, por conseguinte, sobre o desenvolvimen- demonstração do significado de "homem cordial", um modo de com-
to da soci.edade. Enquanto o catollcismo proibiu o pensamento livre e
portamento pessoal ápico à formação da cultura brasileira, avesso à
tornou o homem dependente da Igreja- por exemplo com a confissão
impessoalidade e à racionalidade formal, nitidamente relacionado ao
obrigatória ao padre, sublinhada na Sessão 14do ConcíliodeTrento -,
modelo das instituições e da Administração Públlca brasileiras- que
o calvinismo, fundado na vontadesoberana de Deus e na predestinação,
ainda permanece na cultura do país.
obrigou-o a buscar sinais de salvação nos atos do cotidiano, especial-
mente no exercício da profissão, o que demandou a racionalização do Importa recordar que Weber, ao tratar da legitimidade das rela-
seu modo de vida, com a investigação metódica da consciência e um ções de dominação, apresenta três fundamentos- vistos como tipos
sentimento muito acentuado de responsabilidade pessoaU ideais- para a sua legitimação, que são classificados comó (i) racional
ou burocrático-legal, (ii) tradicional e (iii) carismático. A dominação
tradicional é fundada na crença na "santidade das tradições vigentes
3. Q PATRIMONIALISMO NA FORMAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA: DE WEBER A
desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tra-
BUARQUE DE HOLANDA
dições, representam a autoridade (dominação tradicional)" .10 Essa
espécie de dominação, quando contrastada com a dominação racio-
Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raizes do Brasil, analisa
nal, possui características bem claras. Como diz Weber, a dominação
as bases e os fundamentos da nossa história a partir do critério tipoló-
racional se assenta em estatutos, de modo que se obedece à ordem
gico de Weber.8 Buarque de Holanda utiliza sempre dois tipos ideais
(trabalhador e aventureiro, impessoalidade e impulso afetivo etc.) impessoal, estabelecida objetivamente na lei, e aos superiores por essa
para, relacionando-os e conrrapondo-os, extrair o esclarecimento de ordem reconhecidos. Na dominação tradicional, porém, a obediência
é prestada ao senhor, reconhecido como tal pela tradição, o que se faz
em respeito aos costumes. 11
6. Antero de Quental, Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos
três séculos, Discurso proferido numa sala do Cassino Lisbon ense, em Lisboa,
no dia 27.05.1871, durante a 1." sessão das Conferên cias Democráticas. 9. Antonio Candido, O significado de "Rafzes do Brasil", in: Sérgi o Buarque
7. Em sugestiva análise, David Landes, Professo r Emérito de Economia da de Ho landa, Raízes do Brasil cit., p. 13.
lí.arvard University , realça o diferente impacto que os valores protestantes 10. Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1 ciL, 2000, p. 141.
e católicos tiveram sobre o comportamento social e relaciona-os com o 11. "No caso da dominação baseada em estatutos, obedece-se à Ol'dem impes-
desenvolvimento econômico das nações (David S. Landes, The Wealth anel soal, objetiva e legalmente estatuída e aos superiores por ela determinados,
Poverty ofNations: Why Some Are So Rich and Some So Poor, New York: W. em virtude da legalidade forma l d as s uas dis posições e dentro do âmbito
W. Norton, l999). de vigência destas. No caso da dominação tradicional, obedece-se à pessoa
8. Para Weber, os tipos ideais, delineados com base em exageros deliberad os do senhor nome ada pela tradição e vinculada a esta (d entro d o âm bito de
de características do fe nômeno investigado,são instrumentos para a análise vigência d ela), em virtude d e devoção aos hábi LOS cosLU meiros" (Max Weber,
da realidade. Economia e sociedade, vol. l ciL, p . 141).
78 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES OUSTlFICATIVA DO NOVO CPC) PERSONALISMO. PATRlMONIALISMO, CULTO À IRRAOONAUDADE I 79
Na dominação tradicional não importa a impessoalidade e a entre patrimoniahsmo e sultanismQé fluida, designando Weber como
racionalidade da forma de dominação, ao contrário do que ocorre na patrimonial a dominação exercida "de pleno direito pessoal" . 15
dominação racional ou burocrático-legal, nem a qualificação carismá- A nota essencial deste tipo ideal é o personalismo das decisões do
tica do líder que a exerce- dominação carismática-, uma vez que se senhor, decorrente da expressão "de pleno direito pessoal", empregada
obedece à pessoa nomeada pela tradição e aos hábitos costumeiros. 12 por Weber. Por isso se pode afirmar que o patrimonialismo é a forma de
Quando trata da dominação tradicional, Weber indica como dominação em que o senhor atua mediante considerações pessoais, sem
tipos primá rios a gerontocracia e o patriarcalismo. Em ambos inexiste submissão a critérios objetivos ou impessoais retirados de estatutos.
um quadro administrativo para o senhor. Na gerontocracia a domi- No patrimonialismo, a legitimidade-fundamento para a obediên-
nação dentro da associação é realizada pelos mais idosos, os quais cia -é baseada em uma autoridadesacralizada, que existe desde tempos
presumivelmente conhecem melhor a tradição. No patriarcalismo imemoráveis. "Seu arquétipo é a autoridade patriarcal. Por se espelhar
primário a dominação é atribuída a um sujeito de acordo com regras no poder atávico, e, ao mesmo tempo, arbitrário e compassivo do pa-
sucessórias. 13 triarca, manifesta-se de modo pessoal e instável, sujeita aos caprichos e
A indicação dos tipos patriarcalismo primário e gerontocracia é à subjetividade do dominador. A comunidade política, expandindo-se
a partir da comunidade doméstica, toma desta, por analogia, as formas
importante para que se compreenda a noção de patrimonialismo. Para
e, sobretudo, o espírito de 'piedade' ro espfrito de devoção puramente
Weber, apenas quando o senhor passa a contar com um quadro admi-
pessoal ao pater ou ao soberano, relacionado à reverência ao sagrado
nistrativo e militar pessoal a dominação tende para o parrimonialismo
e ao tradicional) a unir dominantes e dominado". 16
e, quando extremo o poder do senhor, para o sultanismo. H A diferença
Como demonstrado, ao contrário da gerontocracia e do patriar-
calismo primário, o paLrimonialismo exige um quadro administrati-
12. Aris teu Ponelajúnior, Florestan Fernandes e o conceito de patrimonialis- vo, uma vez que, quando a comunidade doméstica- fundamento do
mo na compreensão do Brasil, Revista do Programa de Pós-Graduaçclo em patriarcalismo- é descentralizada , ou seja, quando os membros da
Sociologia da USP, vol. 19.2, p. 12, 2012. comunidade passam a residir em propriedades dependentes do auxílio
13. uos tipos primários da dominação tradicional são os casos em que falta um do patriarca, passa a ser necessário uma administração organizada e um
quadro administrativo pessoal do senhor: a) a gerontocracia e b) o patriar-
calismo primário. Denomina-se gerontocracia a situação em que, havendo
grupo de funcionários-o funcionalismo patrimonial. 17 Esse, contudo,
alguma dominação dentro da associação, esta é exercida pelos mais velhos
(originalmente, no senúdo literal da palavra: pela idade), sendo eles os
melhores conhecedores da tradição sagrada. A gerontocracia é encontrada 15. "Denominamos patrimonial toda dominação que, originariamente orientada
frequentemente em associações que nào são primordialmente econômicas pela tradição, se exerce em virtude de pleno direito pessoal, e sultanista toda
ou familiares. t chamada patriarcalismo a situação em que, dentro de uma dominação patrimonial que, com suas formas de administração, se encontra
associação (doméstica), muitas vezes primordialmeme econômica e fami- em primeiro lugar, na esfera do arbltrio livre, desvinculado da tradição. A
liar, a dominação é exercida por um indivíduo determinado ( normalmente) diferença é inteiramente Ouida" ( Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1
segundo regras fixas de sucessão" (Max Weber, Economia c sociedade, vol. cit., p. 151).
1 cit. , p. 151). 16. RubensGoyatá Campante, O palrimonialismoem Faoroe Weber e a socio-
14. "Ao surgir um quadro administrativo (e militar) puramente pessoal do logia brasileira, Revista de Ciências Sociais, vol. 46, n.1, p. 162 e 190,2003.
senhor, toda dominação tradicional tende ao patrimonialismo e, com grau 17. Aristeu Ponelajúnior, Florestan Fernandes e o conceito de patrimonialis-
extremo de poder senhorial, ao sultanismo" (Max Weber, Economia e socie- mo na compreensão do Brasil , Revista do Programa de Pós-Graduaçào em
dade , vol. 1 cit., p. 151). Sociologia da USP, vol. 19.2, p.l3, 2012.
80 I A trlCA DOS PRECEDENTES OUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) PERSONALISMO, PATRJMONIALISMO, CULTO À IRRAOONALIUADE I 81
não observa a separação entre as esferas privada e oficial, uma vez que Sérgio Buarque de Holanda. nos cinco primeiros capítulos de
a administração, na dominação patrimonial, é problema exclusivo- é Rafzes do Brasil, alude a vários pontos de grande importância para a
patrimônio -do senhor. Cabe-lhe, com base em critérios puramente compreensão de como o patrimonialismo e particularmente o "ho-
subjetivos, escolher os funcionários e delimitar as competências. No mem cordial" inserem-se na cultura brasileira. No primeiro capitulo
funcionalismo patrimonial, sendo o cargo preenchido com base em Sérgio adverte para o personalismo, peculiar aos povos ibéricos, e sua
relações pessoais e de confiança, não importa a capacidade ~o beneficia- influência sobre a ausência de coesão social e a tibieza elas organiza-
do nem mesmo a prévia definição de realização de determmada tarefa. ções: "Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que
Como diz Weber, "todas as ordens de serviço que segundo nossos con- aUibuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um
ceitossão 'regulamentos' constituem, portanto , bem como toda a ordem dos homens em1elação aos semelhantes no tempo e no espaço, elevem
pública dos Estados patrimonialmente governados em geral, ~m _última os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional. Para
instância um sistema de direi tos e privilégios puramente subJenvos de
eles, o índice do~~llor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão
determinadas pessoas, os quais se originam na concessão e na graça
em que não ptecis~ depender dos demais, em que não necessite de ninguém,
do senhor. Falta a ordem objetiva e a objetividade encaminhada a fins
em que se baste. ( .. ) iÉ dela [dessa concepção] que resulta largamente a
impessoais da vida estatal burocrática. O cargo e o exercício do_ pod~r
singular tibieza t!as formas de organização, de todas as associações que
público estão a serviço dapessoadosen.hor,por um ~ad~, ~dot~~wndno
agraciado com o cargo, por outro, e não de tarefas obJeuvas . impliquem solidcriedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde
todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por
É importante reiterar que o patiiarcalismo primário, a gerontocra-
uma força exterbr respeitável e temida".2o
cia o patrimonialismo e o sultanismo são tipos ideais, não encontráveis
na ~eaüdade histórica, como destacado pelo próprio Weber. Trata-se,
19 No capítuh segundo, chamado "Trabalho e aventura", Sérgio
como todos os tipos ideais, de instrumentos para a observação da reali- refere-se à tipolcgia que compara o trabalhador e o aventureiro- duas
dade. Assim, quando se fala em "patrimoniaüsmo", há referência a uma éticas que se cho(am 2 1- , demonstrando que o colonizador, inserido no
forma de dominação baseada no personalismo e, consequentemente, tipo "aventurein", almejava apenas a recompensa imediata e o lucro
na falta de objetividade e generalidade. No patrirnoniaüsmo as de~isões fácil: "O que o p<rtuguês vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas
seguem critérios pessoais do senhor, em tudo alheios à impessoalidade riqueza que cusu ousadia, não riqueza que custa trabalho(. ..) Todos
que prepondera na dominação racional. queriam extrair lo solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios.
Portanto, quando se vincula patrimonialismo ao Poder Judiciá- (. .. ) Nos ofícios.1rbanos reinavam o mesmo amor ao ganho fácil e a
rio faz-se referência ao caráter pessoal das decisões, estimulado num infixidez que tatto caracterizam, no Brasil, os trabalhos rurais. (. .. )
sis~ema em que não há respeito a precedentes das Cortes Supremas. Poucos indivídtos sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister
sem se deixarematrair por outro negócio aparentemente lucrativo. E
ainda mais raroseriam os casos em que um mesmo ofício perdurava
18. Max Weber, Economia e sociedade, vol. 2 cit. , p. 255. na mesma famila por mais de uma geração, como acontecia normal-
19. "O fato de que nenhum dos três tipos ideais, a serem examinados ~1ais de
1Jerto no que segue, costumam existir hisLoricamem e em form_a rea menLe
'pura', não deve impedir em ocasião alguma a fixação do concett~ na [orma
mais pura possível" (Max Weber, Economia e sociedade, vol. 1 c1t., p. 141, 20. Sérgio Buarq.e de Holanda, Raizes do Brasil cil. , p. 32.
nota de rodapé 2). 21. Antonio Cartido, O significado de "Raízes do Brasil" cit., p. 14.
82 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFlCATIVA DO NOVO CPC) PERSONAUSMO, PATRlMONlALISM O, CULTO À IRRACION AUDADE I 83
mente em terras onde a estratificação social alcançara maior grau de O capítulo quarto, intitulad9 "o semeador e o ladrilhador", estabe-
estabilidade" .22 lece uma comparação e uma diferença entre o espanhol e o português,
argumentando-se que o primeiro - o 1adrilhador- traçou cidades
Daí resulta importante a ideia de que os colonizadores, vistos
planejadas, demonstrando uma intenção de dar ao solo colonizado
dentro do tipo ideal "aventureiro", desprezavam o trabalho e o es-
forço pessoal sem perspectiva de rápida obtenção de resultado e, por aspectos da metrópole, ao passo que o português foi um semeador de
consequ.ênda, a estabilidade e a previsibilidade das relações sociais e co- cidades que brotavam e desenvolviam-se sem critérios, a demonstrar
merciais. Ora, se o objetivo é o lucro imediato e fácil, e há na sociedade falta de cuidado ou de preocupação com a colônia. 25
"uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, Ao tratar do "homem cordial", no quinto capítulo, Sérgio Buarque
do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente de Holanda serve-se dos elementos antes referidos para identificar a
23
das quaHdades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras" , não personalidade do brasileiro, delineando um padrão ideal que ajuda a
só não há motivo para preocupação com a calculabilídade em torno das compreender o modo como esse se inseriu na vida social, bem como as
ações sociais, como não há qualquer estfmulo para um direito dotado de causas das históricas mazelas da nossa administração pública- i.nclusive
racionalidade ou previsibilidade. da administração da justiça.
No capítulo terceiro aparece a dicotomia rural-urbano, lembrando- Acostumado ao modo de viver do círculo familiar- na tipologia
-se, já no primeiro parágrafo, que toda a estrutura de nossa sociedade weberiana patriarcalismo primário, convertido em patrímoniahsmo
colonial teve sua base fora dos meios urbanos. O meio rural resta carac- após a implantação de um quadro administrativo-, em que vigoram
terizado como o lugar da família patriarcal, que se estendia mediante as relações de afeto e de mera preferência, o brasileiro, ao se deparar
a ocupação de cargos por escravos e agregados em plantações e casas, com o mundo exterior, não consegue vê-lo de forma impessoal e racio-
arrastando, por consequência, o poder do pater-famílias. Demonstra-se,
ainda, que o modelo da família patriarcal, marcado pelo afeto e pelas
preferências pessoais, projetou-se sobre toda a vida social, contami- sttbordinado ao patriarca, os liberi (...)O quadro familiar torna-se, assim, tão
nando o espaço público com os seus modos e sentimentos, o que aponta poderoso e exigente, que sua sombra persegue os ioclividuos mesmo fora
para a ausência de impessoalidade e de mcionalidade na administração do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade
pública. A nostalgia dessa organização compacta, única eiutransferfvel, onde
pública e, portanto, para o patrimorlialismo.24 prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laçosafeúvos, não
podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas
atividades. Representando, como já se notou acima, o ünico setor onde o
22. Sérgio Buarque de Holanda, Rafzes do Brasil ciL., p. 49, 52, 58, 59. princípio de autoridade é indisputado, a famllia colonial fornecia a ideia
23. Idem, p. 61. mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre
os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos
24. "Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas
clássicas do velho direito romano canônico, mantidas na península Ibérica próprios à comttnidade doméstica, naturalmente particularista e antipolrtica,
através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda a uma invasão do público pelo privado, do Escado pelafamrlia" (Sérgio Buarque
organização. Os escravos das plantações e das casas, e não somente escravos, de Holanda, Raízes do Brasil cit., p. 81-82).
como os agregados, dilatam o cfrculo familiar e, com ele, a autoridade imensa 25. "A rotina e não a razão absnata foi o princípio que norteou os portugueses,
do pater-famrlias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora.
seu modelo da Antiguidade, em que a própria palavra 'famllia', derivada de Preferiam agir por experiências sucessivas, nemsemprecoordenadas umas
Jamulus, se acha estreitameme vinculada à ideia de escravidão, e em que às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até ao fim" (Sérgio
mesmo os Jillws são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente Buarque de Holanda, Rafzes do Brasil cit., p. 109).
84 I A ÉTICA DOS "PRECEDENTES (]~STIFlCATIVA DO NOVO CPC)
PERSO'IALISMO, PATRIMONlALISMO, CULTO À IRRACIONALTDADE .I 85
Quer dizer que o ambiente ~a família, transportado para a esfera
nalizacla, procurando moldar t:>clas as relações e locais, especialmente pública, leva o funcionário e aqueles que com ele devem estabelecer
a administração pública, com base em critérios afetivos e de pessoa- relações a se comportarem em detrimento da Impessoalidade e sem que
lidade. Projeta-se, assim, comJ um "homem cordial", ou seja, como possa prevalecer a racionalidade legal. A esfera pública é invadida pelos
alguém que não suporta a imPessoalidade e tenta reduzi-la a custa de ares do círculo {lmiliar, elo privado, passando o funcionário a se portar
um comportamento de mera ahrência afetiva, nào sincera, que sempre comose tivesse tlm cargo de que deve usufruir, inclusive a favor daqueles
busca simpatia, benefícios peSsoais e facilidades. 26 que lhe são íntinos, e esses a reivindicarem benefícios, e curiosamente
É no exato momento em 'tue trata do "homem cordial" que Sérgio tambéJ11 os seusreais direitos, sempre com base em artifícios de cordia-
lança mão elos conceitos webe~ianos de patrimonialismo e burocracia. lidade, animadcs por gestos de simpatia e busca de intimidade.
Lembra, em passagem que aq'ti não pode deixar de ser registrada, que
Afirma Sé-gio Buarque de Holanda que "pode dizer-se que só
não era fácil aos detentores ela~. posições públicas de responsabilidade,
excepcionalme1te tivemos um sistema administrativo e um corpo <\e
formados a partir do ambient~ do tipo primitivo da família patriarcal,
funcionários pvamente dedicados a interesses objetivos e fundados
compreenderem a distinção fu1damental entre os domínios do privado
nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de
e do público, motivo pelo qua1 "eles se caracterizam justamente pelo
nossa história, o predomínio constante elas vontades particulares que
que separa o funcionário 'patrimonial' do puro burocrata conforme a
encontram seu 1mbiente próprio em círculos fechados e pouco acessí-
definição de Max Weber" .27 Afinal, prossegue Sérgio, "parao funcionário
'patrimonial', a própria gestã<> política apresenta-se como assunto de veis a uma orde1ação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida
seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que 0
da família aqtde que se exprimiu com mais força e desenvoltura em
deles aufere relacionam-se a %·eitos pessoais do jtmcionário e não a in- nossa sociedace. E um dos defeitos decisivos da supremacia incon-
teresses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado bul'Ocrátiço, em que testável, abso~nte , do núcleo familiar- a esfera, por excelência dos
prevalecem a especialização dc1sJunções e o esforço para se assegurarem chamados 'con:atos primários', do laços de sangue e coração - está
garantias jurídicas aos cicladãa5 . A escolha dos homens que irão exercer em que as rehlç•es que se criam na vida doméstica sempre forneceram
[unções públicas faz-se de acOrdo com a co11jiança pessoal que merecem 0
modelo obrigHório de qualquer composição social enu·e nós. Isso
os candidatos, e mui.to menos de acordo com as suas capacidades próprias. ocorre mesmo mele as instituições democráticas, fundadas em prin-
Falta a tudo a ordenação pess<)al que caracteriza a vida no Estado buro- cípios neutros tabstratos, pretendem assentar a sociedade em normas
. l .... , 29
crático. O funcionalismo paO.ünoniaL pode, com a progressiva divisão antiparucu an;:cas .
das funções e com a racionall!ação, adquirir traços burocráticos" , mas [sso LU do :ertamente penetrou na administração da justiça, le-
na essência esse tipo de funcionalismo afasta-se do runcionalismo vando, por exenplo, à formação dos famosos "grupos" nos tribunais,
28
burocrático quanto mais os ctois tipos estejam caracterizados. quando passa aprevalecer a ética do tudo em favor do colega alinhado
e, pior do que sso , a manipulação das decisões em favor daqueles-
inclusive dos glVernos e das pessoas e corporações ligadas ao poder
26. Diz Sérgio Buarque de Hol:mda que 0 temperamemo do brasileiro admite
politico-quechêm relações com os que ocupam os "cargos". Sem dú-
fórmulas de reverência, ma~ até onde não suprimam a possibilidade de con-
vívio do tipo familiar. " A m:anifestação normal do respeito em outros povos vida, não há m<tivo para supor que a administração da justiça não seria
----
tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade"
(Sérgio Buarque de Holané\a, Raízes do Brasil cit. , p. 148).
27. Idem, p.l46. 29. Sérgio Bua1]Ue de Holanda, Raízes do Brasil ciL., p. 146.
28. Idem, ibidem.
86 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES OUSTIFlCATIVA DO NOVO CPC) PERSONALISMO, PATRlMONIALISMO, CULTO À IRRACIONAUOADE I 87
contaminada pela lógica e pelos impulsos que, desde os primórdios da Produto do patrimonialismo brasileiro, o "homem cordial", vesti-
nossa história, fazem supor que o espaço público deve ser usufruído do de parte, advogado ou juiz, evidentemente inviabilizou a aplicação
não só a favor do funcionário, roas também dos que merecem a sua igualitária da lei, uma vez que essa deveria ser neutra e abstrata apenas
confiança, ou melhor, a sua estima e sim.patia. àquele que não tivesse "boas razões" -ou seja, que não participasse do
Também ai teve e ainda tem lugar o "homem cordial", o juiz e "circulo íntimo"-para ser tratado defonna individualizada. Na verdade,
o promotor que atuam com base nos velhos motivos que presidiam a lógica da aplicação da lei, numa cultura marcada pelo patrimonialismo
a famflia patriarcal, quando tudo girava em torno da pessoalidade. O e dominada pelo cidadão que lhe corresponde-o "homem cordial"-, só
advogado igualmente é investido dessa figura, tornando-se o "baju- pode ser a da manipubção da sua aplicação e interpretação, bem sinteti-
lador" que deixa de ser defensor dos direitos para se tornar lobista de zada na conhecida e popular expressão: "aos amigos tudo, aos inimigos
interesses privados, para o que são mais efetivas as relações peculiares a lei! " Note-se que essa expressão, cuja autoria é controversa, mas que
ao chamado "jeitinho" ou "jeito"30 do que conhecimento técnico- certamente há muito expressa o ambiente brasileiro, além de confinnar,
-jurídico ou capacidade de convencimento do juiz. a aversão da nossa cultura pela impessoalidade e pela racionalidade,
evidencia que a igualdade e, mais clara e concretamente, a aplicação
uniforme do direito sempre foram fantasmas a quem se acostumou a
30. O "jeho", ou "arranjo", é um modo simpálico, muitas vezes até mesmo viver em um mundo destituído de fronteiras entre o público e o privado,
tocante ou desesperado, de relacionar o impessoal com o pessoal, de forma
a permitir a justaposição de um problema pessoal a um problema impesso- acreditando na lógica das relações "pessoais".
al, de maneira a solucionar este utilizando aquele como escada ou aríete. Porém, se a universabilidade das regras é algo indispensável a uma
Normalmente invoca-se uma relação pessoal, da regionalidade, do gosto, da
religião e de o utros fatores externos ao problema formal/legal burocrático sociedade que pretende se desenvolver e não privilegiar alguns poucos,
a ser enfrentado, mediante o que se obtém a simpatia do representante do é preciso parar para pensar a quem sempre interessou a irracionalidade
Estado e, consequentemente, uma solução satisfatória. A distância entre o e o que fazer para eliminar o caos em que está mergulhada a nossa ad-
direito escrito e a sua aplicação prática fez do "jeito" uma instituição para le-
gal altamente cotada no Brasil, uma parte integrante da nossa cultura, a ponto ministração da justiça. Sem rodeios, é preciso decidir se queremos abrir
de, em muitas áreas do direito, constiluir a regra. O "jeito", para arlacar o mão do "jeiro" e privilegiara universabilidade do direito e a autoridade
rigor da lei, é potencializado pelo sentimentalismo, provavelmente fundado do Poder judiciário. Se queremos ser uma "famflia " ou uma nação.
na ética católica do perdão, na tendência cultural à conciliação e na prover-
bial "cordialidade" do brasileiro. O "j eiLO" é a variante cordial do "sabe com
quem está falando", pois ambos estão fundados na rede de relações pessoais
4. CULTURA DO PERSONALISMO, FALTA DE COESÃO SOCIAL E FRAQUEZA DAS INSTI-
que dão amparo às pretensões do malandro, seja ele cordial (que se utiliza
do j eito) ou arrogante (que pode ser a mesma pessoa, após ver frustrada a TUIÇÕES
tentativa do arranjo). Nos dois casos, promove-se a superação da estrutura
formal igualitária e impessoal mecliame- por exemplo -a invocação de Uma das características dos povos ibéricos é o personalismo: a
parentes (jeito) ou de autoridades ("sabe com quem está falando") e a burla exaltação da autonomia ou a preocupação exclusiva com a afirmação
à lei assume ares de "honrosa exceção". Enfim, a aplicação diferenciada da lei
ocorre ao sabor do j eito e da rede de relações pessoais de cada um ( Cf. Luiz
Guilherme Marinoni e Laércio A. Becker, A influência das relações pessoais
sobre a advocacia e o processo civil brasileiros, Trabalho apresentado no XX Roberto Da mattat, Camavc:;is, malandros e heróis. 6." ed. Rio de janeiro:
World Congress of Procedural Law, cidade do México, 2003). Ver Keith S. Rocco, 1997; Roberto Dam:ma, O que faz o brasil, Brasil? 12." ed. Rio de
Rosenn, Ojeito na cultura.jurídíca brasileira, Rio de janeiro: Renovar, 1998; janeiro: Rocco, 2001.
88 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC) PERSONALISMO, PATRIMONIALISMO, CULTO À l RRACIONAUDADE I 89
individual e a fa lta de comprometimento com objetivos que não se trabalho uma configuração peculiar, uma vez que o seu exercício de
relacionem a interesses especificamente pessoais. 31 forma digna e adequada era um dever e representaria uma comprova-
A cultura do personalismo é o oposto daquela marcada pelo ção de eleição. Porém, a ascese intrarnundana não estava relacionada
associativismo, em que os interesses da comunidade prevalecem e apenas a uma forma de trabalho voltada a realizações pessoais. O que
congregam o esforço dos seus participantes em nome da realização de importava, afinal, era o cumprimento dos deveres (entre eles o trabalho)
objetivos comuns. O associativismo é animado pelo valor da solida- indispensáveis à comprovação da predestinação. Esses deveres, rela-
riedade, que, por algum motivo, estimula o indivíd uo a se preocupar cionados à vida diária, não poderiam deixar de estar ligados ao esforço
com os seus semelhantes e com um ambiente comum. necessário ao atingimento dos interesses do grupo ou da comunidade.
O trabalho, ao importar como valor, vincula-se à solidariedade, que
A visão comunitária, voltada à realização de objetivos comuns,
estimula a coesão social e requer a organização e a ordem.
naturalmente colabora para a coesão social e, por consequência, exige
a organização das vontades dos indivíduos no inter\or do grupo. Ou Sucede que, como sublinha Buarque de Holanda, um fato que não
seja, a relação que se estabelece é entre solidariedade, coesão social e se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia dos
organização. povos ibéricos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda
moral fundada no culto ao trabalho. Desse desdém ao valor do trabalho
De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, as teorias negadoras do deriva uma reduzida capacidade de organização social. "Efetivamente
livre-arbítrio (predestinacianas, calvinistas) sempre foram encaradas o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da
com desconfiança e an tipatia por espanhóis e portugueses. Isso por- solidariedade dos interesses e, como tal, estimula a organização racio-
que, na medida em que negam a capacidade do individuo para alterar nal dos homens e sustenta a coesão entre eles. Onde prevaleça uma
o que foi predestinado por Deus, não poderiam deixar de ser despre- forma qualquer de moral do trabalho dificilmente faltará a ordem e a
zadas por uma cultura definida pelo personalismo. Essa mentalidade tranquilidade entre os cidadãos, porque são necessárias, uma e outra, à
personalista, própria aos espanhóis e portugueses, "teria sido o maior harmonia dos interesses. O certo é que, entre espanhóis e portugueses,
óbice ao espírito de organização espontânea, tão característica de povos a moral do trabalho representa sempre fruto exótico. Não admira que
protestantes, e sobretudo de calvinistas. Nas nações ibéricas, à falta fossem precárias, nessa gente, as ideias de solidariedade" .33
dessa racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas A cultura do personali.smo, ao não abrir margem para acordos e
terras protestantes, o princípio unificador foi sempre representado compromissos em favor da comunidade, bem como o desprezo ao valor
pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de orga- do trabalho, ao desestimular a organização racional em proveito de
nização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, "todos", obstaculizaram a solidariedade e a ordenação social. Inibiram
nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características a coesão social, inviabilizando o associativismo em prol da realização
nas ditaduras militares".32 de interesses comuns.
Lembre-se, ademais, que a ascese protestante, isto é, a preocupa- Na administração pública, em que o cargo era exercido em pro-
ção com a correção dos atos que são praticados no cotidiano, deram ao veito do funcionário e para beneficiar aqueles que com ele tinham
ligação, não havia qualquer possibilidade de conjugação de esrorços
7. A QUEM INTERESSA A IRRACIONALIDAOE? Por outro lado, também é certo que os advogados podem não se
sentir à vontade num sistema em que a solução dos casos não pode
Numa cultura patrimonialista e marcada pela pessoalidade, os variar no que toca às questões de direito já resolvidas pela Corte Su-
juízes tendem a tratar de modo diferente casos iguais. Como é óbvio, prema. Não há dúvida de que lhes sobrará menos espaço- quando
aqui não se pretende acusar ninguém de desvio de conduta ou algo sobrar- para a sustentação da posição de seus clientes. 34 Isso, porém,
dessa natureza. Do mesmo modo que se sustenta, em nível teórico, a ao contrário do que supõe uma visão corporativa, de defesa viciada da
necessidade de se garantir o direito do litigante participar adequada- profissão, é absolutamente racional e ético.
mente do processo- para que, por consequência, não vigore o obscu- Ora, a Corte Suprema existe exatamente para dar unidade ao
·rantismo e o arbítrio-, pretende-se deixar claro, nesse momento, que direito, de modo que, após a sua intervenção e decisão, ficam os advo-
para se evitar a manipulação das decisões é imprescindível conferir gados com o ônus de informar aos seus clientes acerca do precedente da
a devida e natural autoridade aos precedentes das Cortes Supremas, Corte, explicando-lhes os riscos em face de eventual conflito judicial.
retirando dos juízes e tribunais ordinários a "opção" de não tomá-los Cabe-lhes advertir sobre os prejuízos na propositura de demanda ou
em consideração quando da resolução dos casos conllitivos. na resistência a uma pretensão fundada , com o que são naturalmente
estimulados acordos, inibindo-se a expansão da litigiosidade com todas
Na verdade, ao se tomar em conta os motivos que conspiram
as suas nefastas consequências.
contra o respeito aos precedentes das Cortes Supremas, não há como
deixar de atentar para a obviedade de que um juiz que não tem um Some-se a isso que não há racionalidade nem ética - como deve-
padrão impessoal de conduta não se sente bem num sistema em que há ria ser evidente- em reservar espaço de trabalho ao advogado à custa
prévia definição de critérios decisionais. É claro que, nessa situação, a da imprevisibilidade das decisões judiciais. A previsibilidade, além
margem subjetiva e, portanto, de arbítrio do juiz é Limitada. Ao menos de constituir um resultado natural da unidade do direito e do devido
exercício da função constitucional das Cortes Supremas, não só é fator
no que diz respeito à aplicação do direito , não te m ele como se com-
de grande importância para a otimização da administração da justiça,
portar de modo a privilegiar qualquer dos litigantes.
mas, especialmente, algo imprescindível para o desenvolvimento da
Como é evidente, um precedente pode ser afastado quando o sociedade num ambiente de respeito ao direito.
caso sob julgamento tem particularidades que o distinguem do caso
que levou à sua edição. Entretanto, o juiz ou o tribunal tem um pe-
sado ônus argumentativo para deixar de aplicar um precedente que,
34. A falta de previsibilidade, derivada da ausência de respeito aospreceden tes,
segundo a argumen tação de uma das partes, em p rincípio se aplica ao é um estimulo à "cordialidade" e, portanto, no mínimo à proliferação de
caso em vias de solução. lobistas travestidos de advogados.
96 I A ~ncA oos PRECEDEN1cS (JUSTIFICATIVA oo Novo CPC) PERSONALISMO, PATRIMONLALISMO, CULTO À lRR.AClONALIDADE 97
•
Isso não quer d izer que não existam posições sociais interessadas
eventualmente podem ocorrer em suas vidas, são chamados de "even-
n a falta de prev isibilidade, ou melhor, na irracionalidade da distribui-
tuais". Os primeiros são as empresas que exercem atividades que podem
ção da j usliça. É certo que determinados litigantes não têm qualquer
atingir grande número de pessoas, que contratam em massa, e que,
preocupação com a previsibilidade. Preferem acreditar nas relações de
por isso , podem praticar violações e provocar prejuízos corriqueiros.
simpatia, estima e influência pessoais, reproduzindo a "mentalidade
Trata-se de classificação que já foi utilizada por Cappelletti para tratar
cordial" que marcou o sujeito que, provindo da família patriarcal,
da questão do acesso à justiça.35
passou a ocupar o espaço público sem abandonar os seus hábitos.
É certo que não se pode dizer qu e os litigantes habituais têm
Lembre-seque a trajetória elo '' homem cordial" tem inicio quando
interesse na irracionalidacle da distribuição da justiça . Eles também
ele percebe sua dificuldade em viver em um espaço racional e impes-
dependem, e muito, da previsibilidade. Porém , esses litigantes podem
soal, em que as relações pessoais não importam para a sua inserção no
se acomodar a um sistema que confere decisões diferentes para casos
ambiente social. O seu pavor diante desse lugar, levou-o a utilizar da
iguais. Em face ela m ul tiplicidade de casos que possui no Poder ju-
aparência afetiva para seduzir e buscar intimidade para alcançar os seus
d iciário, o litigante habitual pode compensar uma derrota por uma
propósitos. Essa cordialidade aparente, que o caracteriza, obviamente
vitória em outro caso, equilibrando o seu orçamento segundo a lógica
não pôde propiciar qualquer forma ele associativismo ou congregação
nem ele respeito ao direit.o, uma vez que revelou apenas um interesse empresarial. Ao co ntrário, o litigante eventual, ao receber uma decisão
individual que, como consequência,gerou uma repulsa a qualquer lei contrátia, não tem qualquer chance para tentar reverter a sua perda
capaz de contrariá-lo. A lei, diante da sua natmeza impessoal, "não é em outro caso do mesmo calibre.
para o homem cordial"; esse supõe um mundo que, como a família , Portanto, do ponto de vista exclusivo do resultado da ação, o li-
rem que ser presidido pela pessoalidade e, portalllo, naturalmente tigante evenlUal sofre maior risco ao buscar justiça num sistema não
permitir o afastamemo das regras que lhe fazem mal. marcado pela u n idade do direito. Em caso de decisão desfavorável, não
Precisamente, o homem cordial é a antítese da i.deia de que a lei é lhe será possível tentar um resultado positivo, o que não acontece com
igual para todos e, po r mera consequência, o patrimonialismo que se o litigante habitual. É por isso que, além de ser imponante verificar
incorporou à cultura brasileira é completamente avesso a uma ordem quem tem interesse na irracionalidade do sistema judicial, há que se
jurídica coereme e a um sistema racional de distribu ição de justiça. pensar em quem pode suportá-la. Afinal, não são todos que podem
Os governos autoritários, as posições sociais que sempre foram pri- se dar ao l uxo de tentar obter uma decisão favorável em outro caso
vilegiadas, os ambiemes deformados da magistratura e da advocacia, "entTegue à sorte do Judiciário".
não só não necessilam de previsibilidade, mas não querem igualdade
nem mui to menos coerência e racionalidade. Por isso fingem não ver
9. M EDO DE OUTORGAR PODER ÀS CORTES SUPREMAS?
a imprescindibiliclade de uma teoria que privilegie a aULoridade da
função desempenhada pelas Cortes Supremas. Por outro lado, uma circunstância, própria à origem e à tradição
de civillaw, ainda marca a dificuldade de se au·ibu ir au toridade aos
8. 0UEM PODE CONVIVER COM A IRRACIONALIDADE?
Há litigantes que podem ser ditos "habituais", em con fronto 35. Mauro Cappelletti , Acesso à justiça, Porto Alegre: Fabris, 1988; Mauro Ca-
daqueles que apenas episodicamente, em virtude de con Oitos que ppelletti, Dimensioni elel/a giti.Sti::da ndle società contemporanee, Bologna: ri
Mulino, 1974.
98 I A eTICA Dos PRECEDENTES ousTIACAnvA oo Novo crc> PERSONALISMO. PATRIMONLALISMO. CULTO À IRRACIONAUDADE I 99 •
precedentes das Cones Supremas. Estava presente no ambiente da que decorre naturalmeme da conclusão teórica de que o intérprete
Revolução Francesa o sentimento de que as Cones judiciais, especial- reconstrói o direito a partir de valoração e racionalização pautada no
mente as de vértice, seriam um perigo para o poder revolucionário. texto legal- motivo pelo qual o juiz colabora com o legislador para a
Havia fundados motivos para se imaginar que as Cones poderiam frutificação do direito aderente às necessidades da sociedade-, como
manipular a lei. 36 Daí por que o poder d os juízes foi misticamente re- também tem ancoragem na Constituição, que lhes confere o dever de
duzido à descrição do texto da lei na célebre teorização da separação dar "unidade ao direito" e, portanto, de "atribuir sentido ao direito".
de poderes de Montesquieu Y
Quer dizer que a autoridade dos precedentes das Cones Supremas
Curiosamente, porém, a natural evolução- que perpassou vá rios
não apenas não pode rivalizar com o poder elo parlamento, na medida
per(odos da história- do poder dos juízes, resultante, inclusive, do
em que naturalmente resultado desenvolvimento da teoria da interpre-
desenvolvimento da teoria da interpretação e do impacto do consti-
tucio nalismo, não foi suficiente para espantar o receio de se outorgar tação e da evolução do conceito ele direito, como é imprescindível para
autoridacleàs decisões das Cortes Supremas. Ainda se pensa que o poder a coerência da ordem jurídica, sem a qual não há segurança jurídica
elas Cortes pode rivalizar com o direito produzido pelo parlamento. nem possibilidade de igualdade perante o direito.
Não só isso: há no cenário social a sensação de que as Cortes podem Ademais, a ideia de que as Cortes Supremas podem ser manipula-
ser instrumentalizadas pelo executivo em detrimento do legislativo. das pelo governo, em virtude de incumbir ao Presidente da República
Contudo, o poder do STJ para definir o sentido do texto legis- nomear os seus Ministros, igualmente não resiste a uma melhor percep-
lativo e do STF para definir o sentido ela Constituição não só é algo ção dos fatos. Na verdade, ao se cogitar ele excesso de poder entregue a
essas Cortes, o problema não deveria estar apenas na eventual pressão
do governo- até porque do processo de indicação de um Ministro não
36. No período da monarquia absolutista os juízes enfrentaram o próprio participa apenas o Presidente da República, mas também o legislativo,
soberano, assumindo funções praticamente legislativas. Na batalha entre e, no caso do STJ , ainda os Tribunais Estaduais e Regionais Federais,
os juizes e o monarca a arma dos primeiros foi a manipulação da lei, de o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil, conforme o
modo que também uma história secular demonstrava aos revolucionários
caso-, mas se relacionar à influência que vários setores da sociedade
da França a necessidade de preservar e tutelar a autoridade da lei contra
os corpos judiciais. Cf. Luiz Guilherme Marinoni, O ST) enquanto Corte de aí podem exercer.
precedentes cit., p. 27. Ocorre que se as Cortes Supremas podem ser influenciadas pelo
37. Lembre-se que, segundo Montesquieu, o "poder de julgar" deveria ser
governo e por setores organizados, há também uma natural contra-
exe rcido mediante uma atividade puramente intelectual, capaz ele apenas
revelar o direito já produzido pelo Parlamento. Se o "poder de julgar" não partida, inerente ao reflexo social do poder exercido por uma Corte de
estivesse separado do Poder Legislativo, "o poder sobre a vida e a liberdade precedentes. É indispensável lembrar que uma Corte com essa função ,
dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador". O "poder de julgar" ao contrário das Cortes ele revisão e cassação, trata de uma situação
também é li miJado pela atividade executiva, que teria o poder de executar
jurídica que interessa à sociedade, is to é, da questão ele direito que,
as decisões. Não fosse assim, "o juiz poderia ter a força de um opressor".
Diante disso, como ao juiz deveria ficarreservado somente o poder de dizer uma vez definida por precedente, vai iluminar a viela social e servir de
o que já havia s ido dito pelo Legis lativo, concluiu Montesquieu que o "po- bússola para os demais jufzes e tribunais resolverem os casos concretos.
der de julgar" era, de qualquer modo, um "poder nulo" (cn que/que façon,
nu l/e). Cf. Luiz Guilherme Marinoni, O ST] enquanto Corte de pr-ecedentes Significa dizer que, mais do que as partes envolvidas no litígio,
cit., p. 25-26. Ver Giovanni Tarello, Storia de/la cultura giuridica moderna toda a sociedade tem interesse em controlar o exercício do poder das
(assolutismo e codificazione del diritto) cit., p. L92, 280. Cortes Supremas. Mais claramente, Lêm concreto interesse todos aque-
1 00 I A ÉT ICA DOS PRECEDENTES (JUSTIFICATIVA DO NOVO CPC)
negam ao direito a sua força intrínseca de estimular e evitar condutas ao invés de dar valor a uma vida baseada no direito, está unicamente
e, dessa fonna, a sua capacidade de fazer com que os homens se sintam interessado em usufruir da vida de modo a não ser surpreendido pelo
responsáveis. Não há dúvida de que eventual sanção, quando aplicada direito. O calvinista, é certo, tinha medo de não ser salvo, mas vivia de
sem qualquer compromisso com a unidade do direito, soa mais como acordo com os preceitos da Bíblia para, convencendo-se a si mesmo
arbítrio do que como responsabilização, mas a circunstância mais -e a mais ninguém-, sentir-se digno diante de Deus. O homem que
grave, quando se tem em conta a responsabilidade enquanto ética de resolve ter uma vida pautada no direito não está preocupado em não
comportamento, é a de que ninguém pode orientar a sua vida com sofrer sanções, mas deseja ter uma vida de acordo com o direito por
base num direito que não pode ser identificado ou é aplicado de modo um imperativo de ordem moral e pessoal. Tem um modo de vida que,
contraditório pelos tribunais.
para ser digna a ele mesmo, só pode estar em consonância com as regras
É interessante lembrar que, conforme demonstrou Weber, 8 a estatais que regulam a vida em sociedade.
ascese protestante deu origem a um modo de vida em que os atos do Sucede que uma vida conforme o direito e, por consequência,
cotidiano, particularmente os ligados ao exercício do trabalho, deve- permeada pela responsabilidade, só é viável num Estado que resguarda
riam conter um conteúdo que dignificasse a Deus. Especialmente os a coerência da ordem jurídica. A multiplicidade de decisões diferentes
calvinistas, crentes na doutrina da predestinação do homem, sentiam-
para casos iguais inviabiliza a postura de respeito ao direito, com o que
-se constrangidos a realizar avaliações introspectivas para verificar se
perde força ou desaparece a responsabilidade sobre o sujeito.
realmente estavam se comportando como eleitos. Essa cobrança do
homem pelo próprio homem a partir de conteúdos bíblicos, deu origem Mesmo quando se pensa nas vantagens de um comportamento
a uma responsabilidade pessoal dotada de enorme peso, em que as fi- que observa o direito por temor da sanção, fica claro que, quanto mais
guras de acusador, defensor e juiz estavam investidas numa só pessoa. diversas são as decisões acerca de uma questão de direito , menor é a
A ética protestante, além de ter feito do trabalho um dever religioso, carga de pressão psicológica sobre o sujeito. Aqui não mais importa
teve grande acento sobre a responsabilidade pessoal, de modo a ser se o homem pode ter um comportamento eticamente orientado , mas
possível confundir comportamento protestante com comportamento apenas se o direito tem capacidade para inibir condutas e, assim , au-
pautado por uma quase que insuportável responsabilidade pessoaJ.9 toridade para se fazer respeitado.
Alguém pergunta ria o que isso tem a ver com um comportamento Não há dúvida de que o direito perde autoridade na proporção
pautado no direito. É realmente necessário deixar claro que uma vida direta da sua indeterminação. A fluidez do sentido do direito conspira
pautada no direito obviamente está longe do comportamento do ho- contra a sua autoridade, podendo destituí-lo de força para a regula-
mem que vive de modo a não ser alcançado pelo direito. Esse último, ção social. O direito, enquanto ameaça, é tanto menos efetivo quanto
mais abre oportunidade para o sujeito pensá-lo como não incidente.
Nesse sentido , é claro, falece autoridade ao direito para evitar odes-
8. Max Weber, A ética protestante e o 'esplrito' do capitalismo, cit. Ver o capítulo virtuamento do comportamento social. Note-se, aliás, que, mesmo
r do presente livro. que o sujeito possa se sentir constrangido por um dos sentidos que os
9. A fundamental proposition from which the Puritanrproceeded was the doc- tribunais outorgam ao direito, ainda assim é possível que ele prefira
Lrine that man was a free moral agent with power to choose what he would não observá-lo para correr o risco quanto à sua eventual aplicação.
do anda responsibility coincident with that poweT. He pul the individual
and individual judgement in Lhe fi rst place" (Roscoe Pound, Puritanism Portanto, tanto para se ter uma vida pautada no direito , quanto
and the common law; American Law Review, n. 45, 1911 , p. 819). para o direito ter força para regulá-la, é fundamental a unidade do di-
1 16 I A ÉTICA DOS PRECEDENTES OUSTIFICATIVA DO NOVO CPC)
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