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DESAFIOS PARA A SUSTENTABILIDADE NO ESPAÇO URBANO

BRASILEIRO Alexandre Mello Santos e Athayde Motta 1 IDÉIAS E CONCEITOS EM


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DEBATE

Este texto, produzido no âmbito do Projeto Brasil Sustentável e Democrático4, discute aspectos
que podem contribuir para reflexões alternativas sobre a introdução do conceito de
sustentabilidade na análise e gestão do espaço urbano brasileiro. O ponto de partida para a
construção deste ensaio teve a influência de: a) idéias difundidas por organismos internacionais
e debatidas por estudiosos sobre urbanização, cidades e políticas públicas referentes ao espaço
urbano; b) de uma reflexão crítica sobre as políticas formuladas pelo Estado brasileiro
referentes ao urbano. Interessa-nos, em particular, a análise do espaço enquanto uma dimensão
da sociedade capaz de possibilitar tanto uma explicação para a insustentabilidade, herdada de
formas tradicionais de administração do espaço urbano, como uma especulação acerca da
sustentabilidade possível frente ao movimento de valorização do espaço com base nas novas
relações estabelecidas entre urbanização e globalização.1.1 SUSTENTABILIDADE E
GESTÃO DEMOCRÁTICA

Nos últimos trinta anos, desde a década de 1970, o somatório dos efeitos desastrosos dos
processos de urbanização ocorridos em várias nações do planeta colocou em pauta a continuidade
do desenvolvimento em meio a duas crises elaboradas como questões e compreendidas cada vez
mais como interdependentes: a questão urbana e a questão ambiental.

A busca de alternativas para a crise urbana vem produzindo experiências que têm
provocado impacto nas formas tradicionais de transformação da natureza e de gestão de recursos
(sejam estes humanos, ambientais ou naturais) promovidas historicamente pela urbanização. Estas
alternativas têm utilizado com freqüência um conceito, o de sustentabilidade, e uma estratégia de
administração para a ampliação da democracia, a gestão participativa.

Neste contexto, a sustentabilidade surge como uma inovação a ser incorporada no


movimento de valorização (e administração) do espaço urbano por aqueles interessados em um
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desenvolvimento de face menos econômica e mais humana. A sustentabilidade aparece também
como uma possibilidade de enfrentamento dos problemas que vêm se acumulando a partir da
urbanização em larga escala e que foram acentuados com a expansão acelerada dos espaços nos
quais assentamentos humanos têm se estruturado com base em um modelo que exaure os recursos
naturais, distribui desigualmente os recursos ambientais e privilegia de forma distinta os recursos
humanos.5 Tais experiências indicam a possibilidade de uma redefinição do movimento de
valorização do espaço6, pois apontam para um novo modelo de administração dos recursos e de
transformação da natureza fundamentados na sustentabilidade e na democracia. Para que este
novo modelo seja operativo, é necessário articular um conceito e uma estratégia de ação. Assim
sendo, a sustentabilidade7 é o conceito que remete à durabilidade dos recursos ao longo do tempo,
atuando de forma coordenada com estratégias de gestão participativa inovadoras no espaço urbano,
o que constitui o maior desafio deste projeto. O conceito de sustentabilidade foi colocado
em pauta pelo movimento ambientalista, que o adaptou a partir da definição criada no âmbito da
ecologia. Inicialmente, sua utilização prestava-se a enfatizar somente a preocupação com uma
primeira natureza, aquela dos espaços naturais, ou verdes, ameaçada pela degradação das águas
doces e salgadas, do solo, do ar, da flora e da fauna, decorrências do modelo hegemônico de
valorização do espaço vigente em nossa sociedade.

O conceito de sustentabilidade foi utilizado para qualificar a apropriação irrestrita dos


recursos naturais sem a devida atenção a seus ciclos de evolução ou reprodução e à capacidade de
suporte dos ecossistemas. Posteriormente, o conceito se ampliou para além do verde, passando a
ser utilizado também com referência a uma segunda natureza, aquela que integra os espaços que
tiveram sua natureza transformada pela urbanização. A diversidade destes espaços de natureza
transformada varia entre aqueles com poucos objetos técnicos8, como o meio ambiente rural de
baixa complexidade dos países periféricos; até aqueles com elevada concentração de objetos
técnicos, como o meio ambiente urbano de alta complexidade das grandes aglomerações
metropolitanas. Em relação às estratégias de administração urbana, formas tradicionais vêm
sendo combatidas por experiências de gestão democrática. Nestas, é imprescindível que a
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participação dos diversos atores sociais seja ampliada para que eles possam ser mais atuantes na
valorização do espaço urbano, especialmente a partir dos últimos anos quando a temática ambiental
se associa à das cidades. O relatório Bruntland9 (1987) consolidou o relacionamento entre a cidade
e o meio ambiente, uma tendência que vinha se afirmando desde o final da década de 1960. A
Agenda 21, o plano de ação da Conferência da ONU sobre o meio ambiente e desenvolvimento
(1992), dá mais objetividade à questão ao estabelecer como problema ambiental a qualidade dos
assentamentos humanos. A Agenda Habitat, o plano de ação da Conferência da ONU sobre
assentamentos humanos (1996), consagra a dimensão ambiental nas cidades e estabelece a
sustentabilidade e a gestão democrática como estratégias para o enfrentamento dos problemas
urbanos. Desta forma, uma nova questão urbana10 surge a partir de uma abordagem ambiental
e supera o que era tradicionalmente discutido a partir de uma ótica social incompleta, pois não
incorporava a dimensão espacial da sociedade, e uma ótica ambiental naturalizante. Nesta nova
questão urbana, a natureza é composta tanto pelo verde, presente nos espaços naturais e nos
espaços transformados, quanto pelos objetos técnicos, que predominam nos espaços transformados
pela urbanização. O acesso a ambos os objetos, naturais e técnicos, que integram o meio ambiente
do espaço urbano é uma demanda social crescente, pois passa a ser entendida como essencial para
a qualidade de vida e garantida pela consolidação de uma agenda que coloca em pauta a justiça
ambiental11 nas cidades. Após um longo e equivocado processo de transformação
insustentável da natureza, originado do movimento tradicional de valorização do espaço, podemos
destacar dois desafios para a sustentabilidade e a gestão participativa no espaço urbano. O primeiro
é difundir na sociedade um estímulo para que se criem novas formas de transformar e administrar a
natureza. Organizar e reorganizar os espaços urbanos de forma sustentável impõe uma correção no
passivo cultural (ou o comportamento equivocado herdado e reproduzido pelos diversos atores
sociais). O segundo é corrigir o passivo ambiental (ou a multiplicidade dos impactos negativos da
urbanização), sumarizado nos termos degradação e escassez.

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1.2 NATUREZA, MEIO AMBIENTE E ESPAÇO

A natureza neste texto não é somente aquela objeto da ecologia. São duas as naturezas de
que tratamos com os nomes de primeira e segunda, conceituação baseada no materialismo histórico
e dialético. A primeira natureza é aquela em estado natural e a segunda natureza é aquela
transformada pela sociedade no movimento de valorização do espaço, repleta de artificialismos ou
objetos técnicos criados e alocados pela ação dos atores sociais.

O meio ambiente é considerado em seus dois tipos, natural e transformado, pois ambos estão
presentes nas cidades.
O meio ambiente natural é resultado da evolução da primeira natureza, que se faz no tempo
de referência das ciências naturais, e localiza-se no interior das cidades e nos fundos territoriais12.
No interior das cidades, o meio ambiente natural é reconstruído ou preservado a partir de
elementos da natureza e atua para garantir qualidade ambiental. Nos fundos territoriais, a primeira
natureza ainda se encontra por inteiro, constituída por ecossistemas integrais, embora atualmente
encontre-se sobre a pressão de mudanças climáticas e ambientais em escala global. Os fundos
territoriais brasileiros destacam-se no cenário mundial por constituírem-se em uma grande vastidão
de espaços naturais que contêm grande quantidade de recursos. A abundância de espaço e recursos
pressupõe um valor e tem servido como justificativa para diversas práticas insustentáveis.O meio
ambiente transformado é resultado da ação do conjunto da sociedade ao valorizar o espaço, o que
se faz no tempo histórico, e manifesta-se neste espaço por meio de um continuum de
complexidades variadas no qual se integram elementos da natureza e objetos técnicos. Meios
transformados de baixa complexidade possuem poucos objetos técnicos e muitos objetos naturais,
sendo tradicionalmente associados aos espaços rurais. Já os meios transformados de alta
complexidade apresentam um grande predomínio dos objetos técnicos, ou artificialidades, sobre os
objetos naturais, sendo tradicionalmente identificados como espaços urbanos. A idéia que rural e
urbano constituem um continuum de um mesmo meio ambiente transformado opõe-se à noção
predominante que antagoniza rural e urbano, ao associar estes termos à idéia de campo e natureza
oposta às cidades, e como formas de organização dos hábitats humanos que se distinguiriam
enquanto modos de vida distintos.
A transformação do meio ambiente se dá para que atividades de produção e lazer ocorram.
Estas atividades, por sua vez, requerem a elaboração e implantação de tais objetos e elementos, que

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introduzem valor no espaço. O conjunto das atividades, objetos e elementos prestam-se
fundamentalmente à reprodução do capital e da força de trabalho. Toda a diversidade de objetos
técnicos e elementos da natureza que compõem o meio ambiente transformado, que nas cidades
pode ser especificamente chamado de construído ou edificado13, é resultado do conhecimento
técnico aplicado à transformação da natureza. As cidades, enquanto um meio ambiente
transformado de maior complexidade, são caracterizadas principalmente pelas artificialidades e
objetos técnicos em seu interior, os quais se combinam aos elementos da natureza reconstruídos ou
preservados pela sociedade. Enquanto as artificialidades formam o meio ambiente da cidade e se
constituem em seus recursos ambientais, a natureza reconstruída ou preservada é o meio ambiente
na cidade e se constitui em seus recursos naturais.
O meio ambiente nas cidades, isto é, o verde urbano presente na arborização, nos parques,
jardins e zonas especiais como áreas de risco e unidades de conservação, se faz necessário tanto
por influir no bem-estar dos atores sociais como para o adequado funcionamento do meio ambiente
da cidade. Já o meio ambiente da cidade, com seu tom marrom ou cinza, viabiliza a vida urbana ao
mesmo tempo em que causa a degradação, devido à concentração de atividades produtivas que aí
operam descoladas de uma abordagem de sustentabilidade democrática.
O meio ambiente nas cidades tem a função de prestar um serviço ambiental como elemento
urbanístico/paisagístico responsável por amenizar o clima e proporcionar lazer e segurança frente a
processos interativos14, cada vez mais freqüentes devido à dimensão do meio transformado,
colaborando com a redução de desastres naturais e tecnológicos. No entanto, cidades podem ser
divididas entre espaços formais, concebidos pelo planejamento urbano, e informais, nos quais a
espontaneidade da urbanização não implanta as infra-estruturas típicas da cidade formal (seus
recursos ambientais). Isto faz com que os recursos naturais na cidade informal substituam estas
infra-estruturas, dada a ausência de políticas públicas de qualidade para o conjunto da cidade. A
substituição leva ao uso insustentável dos recursos naturais, provocando a sua degradação e
escassez, e constituindo uma mais-valia para o capital.
Embora a cidade informal careça das condições necessárias à vida no cotidiano urbano, ela é
a única acessível aos assentamentos de baixa renda que a ocupam e que desempenham um papel na
estrutura econômica e social das cidades. Um agravante à qualidade da vida na cidade informal é a
sua localização, freqüentemente em áreas sujeitas a perigos naturais, como enchentes e

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deslizamentos, e a perigos tecnológicos, como contaminações e explosões, constituindo-se em um
risco para sua população.
Quanto ao espaço, existem muitas definições para esta categoria de análise. Neste texto, em
que se quer fomentar uma discussão sobre os condicionantes e as possibilidades de uma
sustentabilidade urbana à luz do movimento de valorização do espaço, duas definições assumem
maior relevância.
A primeira definição de espaço considera tanto os quatro atores sociais responsáveis pela
transformação e manutenção da natureza (o contingente populacional, as empresas, as instituições
e o governo), bem como o meio ambiente no qual estão inseridos. Os quatro atores, ao atuarem em
uma área da superfície terrestre para transformar e administrar a natureza, estruturam o meio
ambiente como hábitat humano, e por conseguinte, concretizam o espaço15. O espaço
socioambiental, produto da valorização do espaço físico, contém um palco equipado com infra-
estruturas, o meio ambiente transformado, onde a vida social, que resulta da atuação dos atores
citados, se desenrola. A segunda definição de espaço o caracteriza como um sistema de objetos16
que estrutura um meio ambiente e é animado pelos atores sociais, os quais atuam condicionados
pelo próprio sistema de ações que engendraram, embora participando em condições desiguais de
sua elaboração. Apesar de ambos os sistemas, de objetos e de ações, se originarem das relações
entre os quatro atores atuantes no meio ambiente citados na definição anterior, o espaço é
considerado apenas como um sistema de objetos animado pelas relações sociais e resulta da
contínua produção de inovações técnicas, ora alocadas como fixos, ora inexistentes, para atender às
demandas da sociedade. A distribuição espacial dos objetos, inevitavelmente, determina fluxos e
cria desigualdades. Os sistemas de ações, embora mantenham uma íntima relação com cada
coleção de objetos datados ao longo do desenvolvimento das inovações técnicas, não integram o
espaço. Suas funções de normatizar e regular os usos possíveis, dados os objetos técnicos, os
objetos naturais e os lugares, representam um dado da dinâmica da sociedade e têm um
rebatimento espacial ao influir na localização17 destes objetos e na funcionalidade dos lugares.
Ao considerar as duas definições, é possível analisar o espaço, que adquire cada vez mais
complexidade material, pela atuação dos quatros atores em seu interior. A crescente complexidade
da configuração espacial resulta do arranjo de objetos técnicos que, por sua vez, é condicionado

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pelas possibilidades ensejadas pelo sistema de ações. Inovações vêm sendo adicionadas ao longo
do tempo no espaço urbano e criam um meio ambiente carregado pela inércia que o capital aí
fixado atribui a objetos que, via de regra, não estão em condições de contribuir para uma dinâmica
urbana sustentável, pois foram elaborados e alocados segundo uma lógica tradicional de
valorização do espaço.
O espaço18, seja ele urbano, rural ou natural, é valorizado a partir das relações que se
estabelecem entre os atores sociais empenhados em transformar ou conservar o meio ambiente
onde atuam ou têm interesses. Estes atores encontram-se em interação permanente e desigual e
esta, no caso das cidades, dá origem aos espaços urbanos segregados, degradados ou qualificados
em expressões que apontam para a desigualdade espacial. A desigualdade decorre tanto do
pequeno valor fixado com objetos técnicos e naturais que qualificam a vida urbana, como da
localização inadequada das habitações, seja nas cercanias de atividades produtivas prejudiciais à
saúde e que comprometem o bem-estar e o tempo de lazer, seja nas áreas de risco onde operam
processos interativos ou naturais que constituem perigos em qualquer uso dado ao solo. Os
espaços urbanos não devem ser confundidos, entretanto, com a sua dimensão concreta, que é o
meio ambiente transformado. Em uma analogia com o teatro, o meio ambiente é o palco; o
governo, as instituições, as empresas e a população em toda a sua diversidade são os atores, que
têm papeis diferenciados em decorrência do poder econômico e político de que desfrutam; e o
espaço é a peça, constantemente reescrita pela dinâmica das relações sociais que alteram tanto as
funções do meio ambiente quanto os papéis dos atores sociais.

A desigualdade com que os setores menos favorecidos da população participam da interação


com os demais atores sociais para a valorização do espaço é marcada pela desvantagem que
lhes é atribuída por suas condições de gênero, raça, etnia, renda e educação, entre outras. Mas a
desigualdade também está presente nas relações entre as diversas classes nas quais se
distribuem a população, o governo, as instituições e as empresas. Ela existe entre todos os
atores sociais que têm suas ações de transformação e manutenção do meio ambiente ou do
espaço direcionadas para alguma das escalas espaciais19 de gestão e pode ser considerada como
um fator decisivo no movimento de valorização diferencial do espaço, introduzindo a
desigualdade como um elemento sempre presente em qualquer escala desta dimensão da
sociedade. Em uma análise intra-urbana, a cidade, qualquer que seja seu tamanho e função, é o
lugar de concentração da produção e tem no seu interior atividades instaladas que difundem
degradação, poluem com os resíduos desta produção e exaurem os recursos dos quais se
utilizam. Em uma análise do território, a cidade é o lugar onde determinados atores exercem

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funções de comando que articulam tanto outras cidades como o campo, obedecendo a uma
hierarquia em que grandes cidades agem sobre espaços territoriais mais extensos. A localização
das atividades produtivas nas duas escalas citadas coloca as cidades como lugares de consumo
intensivo de recursos e exportação constante de resíduos. Qualquer que seja a escala, a
seletividade espacial do capital elege espaços onde a presença ou ausência de determinados
atributos em seus meio ambientes, por exemplo a água ou o solo apto para edificações com
elevado valor de troca, oferece possibilidades de maior valorização, seja esta relacionada ao
uso do recurso ou à mitigação dos riscos provenientes de sua utilização. Por outro lado, o meio
ambiente desprovido de possibilidades de valorização para a construção da cidade formal é
utilizado por outro tipo de valorização20, promovida por grupos sociais em desvantagem que
realizam uma urbanização espontânea. Isto põe em evidência a injustiça ambiental a qual
estão expostos com mais freqüência os grandes contingentes de população em desvantagem
econômica, ocupantes de assentamentos humanos vulneráveis aos riscos naturais e tecnológicos
e, por isto, insustentáveis. Introduz-se assim, a vulnerabilidade21 ao espaço, com duas
conseqüências associadas tanto a esta forma de ocupação como àquelas promovidas nos meio
ambientes eleitos pelo capital: a degradação e a escassez dos recursos naturais e
ambientais22.1.3 DESENVOLVIMENTO E URBANIZAÇÃO

A partir da internacionalização acelerada da economia provocada pelo processo de


globalização, têm-se presenciado uma mudança no fenômeno da urbanização em vários países. De
fato, a ligação entre globalização e urbanização sugere uma conexão única entre processos
econômicos e a transformação do espaço. O papel das cidades em uma economia globalizada é
qualitativamente distinto a partir do momento em que cidades não são vistas apenas como elos de
ligação para operações comerciais e base para a produção industrial. Com a globalização, cidades
passam a ser um pré-requisito estrutural, um elemento a ser considerado no desenho de políticas
macroeconômicas de uma determinada nação. O documento inicial que estabelece esta nova
conexão entre cidades e processos econômicos data de 199123. Naquele momento, a questão
ambiental urbana estava prestes a se tornar um tema central e a sustentabilidade estava cada vez
menos ecológica e mais ambiental. De lá até aqui, o meio ambiente das cidades já se converteu
em fator de crise e o desenvolvimento sustentável, já constituído em um conceito relevante o
suficiente para provocar disputas em torno de seu significado, assume papel fundamental no debate
sobre a relação entre cidades e processos econômicos.

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Entretanto, os processos de urbanização em escala global e o próprio estado ambiental das
cidades forçam uma reflexão sobre qual tipo de desenvolvimento sustentável estamos falando e a
quem este serve.
A prerrogativa de que princípios de desenvolvimento sustentável sejam aplicados aos
assentamentos humanos tem levado à construção da idéia de cidades sustentáveis, que encerra em
si uma série de paradoxos desafiadores.
Em primeiro lugar, cidades nunca foram entendidas como meios ambientalmente seguros. Ao
mesmo tempo em que têm sido vistas como vibrantes centros de produção cultural e econômica em
oposição ao campo ou ao espaço rural, as cidades também têm sido usualmente associadas a
lugares cheios, movimentados, caóticos e poluídos. Por isto, a perspectiva de torná-las
ambientalmente corretas é menos uma decisão sobre sua viabilidade no presente e mais uma
revisão crítica em relação às suas funções e evolução ao longo da história.
Mas isto não significa apenas olhar para trás. O futuro dos assentamentos humanos neste
planeta passa necessariamente por sermos capazes de equacionar os elementos em jogo na nova
questão urbana e produzirmos diagnósticos e políticas que preparem o caminho para cidades onde
a vida seja produtiva e prazerosa em iguais proporções para o conjunto dos seus cidadãos.
Outro paradoxo desafiador neste momento, e que vem sendo cada vez mais percebido e
estudado por pessoas no mundo inteiro, é que a única fórmula de cidade conhecida é aquela que, ao
mesmo tempo, serve como potencializadora das atividades econômicas mas é insustentável para a
reprodução da vida com qualidade.
É em torno deste paradoxo, ou contradição, que se movem a maior parte das tentativas de
reforma ou sustentabilização das cidades no mundo. Para a maior parte dos países em
desenvolvimento, a urbanização passa a ser um fenômeno de transformação do espaço com
características cada vez mais econômicas, ainda que independente dos processos econômicos mais
tradicionais comumente associados a ela.
Na maior parte do continente africano e em alguns países asiáticos, a urbanização é marcada
pela multiplicação de assentamentos de forma acelerada e em taxas consideradas maiores do que a
média de outros países, sem ser precedida por processos econômicos tradicionais como a
industrialização, por exemplo. Além disto, esta urbanização também tem um impacto distinto no
território dos países ao priorizar o crescimento de aspecto intra-urbano em detrimento da
constituição de uma rede urbana nacional, o que atende primeiro à perspectiva de integração global
em vez de nacional ou regional. Segundo alguns especialistas, isto significa que, ao longo dos anos,
estes países carecerão de um sistema de cidades integrado e distribuído de maneira mais ou menos
uniforme dentro de seus territórios. Se isto possibilita um menor impacto ambiental nos fundos
territoriais, também apontaria para limitações ao pleno desenvolvimento, segundo aqueles que
supervalorizam o papel das cidades neste processo.
Na maioria dos países latino-americanos e naqueles países asiáticos que já possuem uma alta
taxa de urbanização24, entendida aqui como grandes quantidades de população vivendo em cidades,
o paradoxo assume outras formas. Cidades em estado avançado de insustentabilidade têm de
cumprir ou se ajustar a uma agenda segundo a qual exerceriam um papel fundamental para o
desenvolvimento econômico. Entretanto, estas cidades também geram intensos conflitos
socioambientais, consolidando no espaço as desigualdades que já se verificam em várias áreas.
Acentuar o processo de urbanização destes assentamentos para que cumpram sua suposta vocação
econômica significa também intensificar os problemas ambientais e sociais que já apresentam.
Enquanto isto, o debate sobre as possibilidades de uso e transformação dos fundos territoriais, uma
etapa importante para que se avaliem as condições ideais de um desenvolvimento com
sustentabilidade, não parece relevante na agenda dos governos nacionais, deixando que as formas
tradicionais de urbanização se reproduzam das vilas às metrópoles mantendo sempre o mesmo
caráter de insustentabilidade. A sustentabilidade das cidades também é uma questão complexa para
alguns países desenvolvidos da América do Norte e da Europa, que até dispõem de capital
financeiro e social, mas não dos amplos espaços não-transformados que representam um capital
natural. Neste sentido, a experiência dos Estados Unidos torna-se sintomática. Além de prestarem
especial atenção à densificação do meio ambiente construído e a densidade demográfica de suas
maiores metrópoles, os EUA estão tomando providências para controlar o ritmo do crescimento
urbano em todo o país.
Alguns dos exemplos de intervenção levados à pratica são: a) a compra e manutenção de
áreas verdes contíguas ao tecido urbano para que se criem espaços para amenizar os efeitos da
monotonia trazidas pelo asfalto e pelo cimento; b) a destruição de objetos técnicos, uma operação
que envolve altos custos, para que tanto os espaços já urbanizados e previamente abandonados
possam ser refuncionalizados, como para possibilitar a renaturalização do meio ambiente; c) o
controle rigoroso do crescimento urbano pelo estabelecimento de limites para o número de
empresas e funcionários em uma dada região, de forma a permitir o desenvolvimento econômico
sem gerar impactos sobre o meio ambiente construído.

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Todos estes exemplos de intervenções, destinadas a adequar o espaço às possibilidades do
suporte ambiental exigidas por cada lugar, expõem mais um paradoxo. Só podem, e precisam, agir
de forma tão radical em relação às suas cidades e ao seu espaço urbanizado aqueles que, por um
lado, têm acesso ao capital mas, por outro, sofrem de uma escassez dos fundos territoriais,
importantes para prover o equilíbrio sustentável necessário.
Por isto, a busca da sustentabilidade urbana deve levar em consideração a dimensão espacial
da sociedade em cada país e questionar as propostas de desenvolvimento econômico global
colocadas. O desenvolvimento previsto pelo receituário neoliberal tem intensificado a degradação e
escassez dos recursos que integram os meios ambientes construído e natural. Também tem
acentuado o comprometimento dos espaços naturais que integram os fundos territoriais por não
estimular a formulação de uma política clara de como incorporá-los ao crescimento geral da
sociedade, o que pode se dar mediante a sua transformação sustentável ou a sua preservação
enquanto reserva de valor. Estes são exemplos de medidas que evitam que os fundos territoriais
sejam colocados à margem do desenvolvimento.
Diante deste quadro, o desenvolvimento sustentável de assentamentos humanos torna-se uma
questão por demais complexa para as propostas atualmente em discussão. No caso brasileiro, onde
a capacidade da sociedade civil de debater e intervir no macroplanejamento tem sido extremamente
limitada, impõe-se a necessidade de uma discussão prévia às propostas de políticas setoriais. É
necessário que se discuta o conjunto do território brasileiro e quais propostas de desenvolvimento
devem ser implementadas para que se alterem as formas tradicionais de urbanização e gestão
urbana ainda vigentes.
2 AS HERANÇAS DA URBANIZAÇÃO NO TERRITÓRIO BRASILEIRO: COMO
CHEGAMOS AO BRASIL URBANO INSUSTENTÁVEL

Ao nos utilizarmo dos conceitos elaborados na primeira parte deste ensaio, podemos
exercitar uma análise do processo de transformação do espaço que consolidou o território
brasileiro. Tanto o espaço, enquanto categoria de análise, quanto o território, enquanto objeto de
intervenção, foram tratados de forma implícita25 pelos atores sociais à frente do Estado,
responsável por elaborar as políticas públicas de gestão urbana praticadas no Brasil. Parte
desta forma implícita de pensar o espaço e agir no território tem origens culturais na formação da
sociedade brasileira. O sentimento de abundância de recursos e a percepção de imensidão
territorial foram determinantes para moldar um comportamento e uma ética marcadas pela idéia de
ausência de finitude. Recursos naturais e mesmo o espaço têm sido historicamente tratados com
adjetivos como abundantes, ricos e incomensuráveis, justificando uma cultura do desperdício que
nasce com as classes dominantes, aquelas que detêm o poder para determinar os usos e mau usos
destes recursos, e se estende às classes populares, que acabam por se utilizar destes recursos para
suprir parte dos serviços que o Estado não provê.

Portanto, esta forma implícita teve influência determinante no modo como os vários atores
sociais vêm ocupando o território e transformando a natureza desde os tempos coloniais. A soma
das políticas formuladas pelo Estado e os modos de ocupação e transformação perpetrados pelos
demais atores sociais têm levado à insustentabilidade verificada nos dias atuais em diferentes
espaços do território brasileiro nas escalas intra-urbana e da rede urbana.

No caso do Estado, a idéia de não-finitude incentivou o uso de forma não-planejada dos


recursos e do território. Nos tempos de colônia de exploração, o Estado nacional português
preocupava-se apenas em amealhar a maior quantidade possível de matérias-primas, reduzindo a
ocupação do território a uma questão militar. As cidades existentes, meros entrepostos comerciais à
beira-mar, comunicavam-se mais com a metrópole colonial do que entre si. Esta situação perdurou
até a mudança da Família Real Portuguesa, quando o território e as cidades passam a ter novas
funções e significados. A colônia tem de aprumar-se para ser sede do Império; as cidades devem
adaptar-se à função de cortes, com os serviços e estruturas que tal status demanda. Assim, surge

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pela primeira vez no país a necessidade de conhecer e ocupar de forma coordenada o espaço
territorial brasileiro, mais como forma de controle social e de conhecimento do estoque de
recursos do que como uma etapa planejada do desenvolvimento.

Em relação aos recursos humanos, vários autores comentam o fato de que a idéia de nação
no Brasil sempre esteve associada tanto à imensidão do território quanto à abundância de recursos
naturais, relegando a população a um plano inferior. Se os nativos, erroneamente chamados de
índios, não foram considerados como candidatos a fazer parte da nova sociedade, esta população,
abundante neste período, foi privada do acesso aos recursos dos quais dispunha livremente, e
jogada à própria sorte. O Estado, passou a estimular, em conjunto com mercadores privados, o
comércio de negros trazidos da África em quantidades tão abundantes quanto os recursos da terra.

A Independência consolida uma classe dominante empresarial endógena para a qual os


recursos e o território são fonte primária de poder político e social. A ocupação do país já obedece
aos interesses econômicos e políticos dos grupos que formam estas elites. O desenvolvimento do
país esta reduzido a uma etapa da consolidação de seu poder e a preocupação com os recursos se dá
por sua importância enquanto objeto de acumulação privada. A idéia de abundância aplica-se tanto
aos recursos naturais quanto aos recursos humanos. Da mesma forma que se descartaram os
nativos, explorou-se o trabalho dos negros como se o fornecimento de escravos fosse infinito.

As elites agrárias e suas formas de agricultura extensiva foram determinantes para a etapa
seguinte de transformação do espaço. A concentração de amplos domínios territoriais nas mãos de
alguns proprietários, aliada às praticas agrícolas nocivas à natureza, ainda que extremamente
lucrativas, serviram de instrumento para consolidar um modelo tradicional de valorização do
espaço, marcado por aspectos negativos. Esta concentração se deu na faixa do território contígua à
faixa ao longo do litoral, ocupada pelas principais aglomerações urbanas. As duas características, a
concentração de recursos nas mãos de poucos e a sua utilização insustentável como forma mais
eficiente de gerar lucros, tornaram-se o modus operandi da elite brasileira e perdura até os dias de
hoje.

Enquanto os insumos agrícolas produzidos pelas elites agrárias eram dirigidos


principalmente para a exportação, os excedentes desta acumulação serviram de base para financiar
os assentamentos urbanos e a nascente indústria. A crise do modelo agrário-exportador levou à
decisão das elites, com o apoio e ingerência do Estado, de promover o potencial econômico
trazido pela urbanização e industrialização do país. As transformações no espaço introduzidas pela
urbanização neste período (principalmente modernização dos portos e estradas de ferro) são
diferentes das realizadas anteriormente e representam uma aceleração nos fluxos econômicos com
impactos sobre o ritmo de criação de uma segunda natureza. No entanto, enquanto uma etapa do
desenvolvimento, todo este processo foi realizado sem a atenção necessária a um planejamento
adequado que integrasse os espaços do território e equilibrasse as diferenças entre modelos que
estavam entrando em falência (agrário-exportador) e modelos para os quais não havia um projeto
que privilegiasse o desenvolvimento social e territorial junto com o crescimento econômico.
Novamente, os recursos naturais do território, adicionados aos recursos ambientais próprios do
meio urbano, foram considerados inesgotáveis e sem restrição de uso.

A maior acessibilidade da população às cidades e a consolidação destas enquanto mercado


de trabalho e lócus privilegiado da atividade econômica são o motor da mobilidade espacial que
inicia um processo de concentração populacional que transformou o Brasil em uma sociedade
urbana nos anos 1950. Esta nova realidade levou o Estado a uma primeira tentativa de
planejamento que timidamente relacionava território e atividades econômicas, mas ainda não
considerava a natureza ou o meio ambiente como elementos centrais nesta elaboração.

A partir deste período, consolida-se uma cultura tecnocrática de planejamento que deu
origem a uma série de planos de desenvolvimento (Plano de Metas,1955-1960; I PND,1972-1974;
II PND,1975-1979; III PND,1980-1984; Brasil em Ação,1994-1998; e Avança Brasil,1998-2002).
Tais planos têm sido formulados no contexto de uma sociedade em crescente aceleração de seus
processos de transformação da natureza e do espaço, com grande impacto sobre a qualidade de
vida da população. Os planos tinham como foco a implementação e difusão de um amplo conjunto
de objetos e sistemas técnicos no território26. A instalação destes objetos e sistemas no
território a partir do primeiro plano introduziu problemas ambientais característicos de um meio
ambiente urbano. Desde então, não houve uma diminuição ou estabilização deste ritmo, o que tem
levado à intensificação crescente destes problemas. A ausência de uma dimensão espacial na
formulação de políticas territoriais tem levado ao intenso ritmo de degradação e exaustão do meio
ambiente tanto no espaço rural quanto urbano.

No espaço rural, os problemas de desequilíbrio ambiental típicos têm sido o desmatamento,


que gera a perda de biomassa e a diminuição da biodiversidade, a erosão dos solos e as alterações
de ciclo hidrológico que afetam a quantidade e a qualidade das águas fluviais. Já no espaço urbano,
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os principais problemas do meio ambiente têm sido a deterioração da qualidade do ar, devido à
poluição industrial e à quantidade sempre crescente de automóveis para uso individual; o impacto
negativo da valorização do espaço sobre a terra urbana, que impulsiona a formação de clusters, ou
aglomerados intra-urbanos vulneráveis ambiental e socialmente; as alterações de ciclo hidrológico,
que ocasionam enchentes e enxurradas; e a produção em larga escala de resíduos sólidos e líquidos
para os quais não existe tratamento e disposição adequados.

Devido à densidade populacional do espaço urbano, seus desequilíbrios ambientais tendem


a gerar, ou intensificar, as desigualdades já existentes. Os conflitos socioambientais aqui passam a
se constituir, então, em questões de injustiça ambiental caracterizadas a partir da distribuição
espacial da população.

É importante destacar que a intensificação dos problemas ambientais dos assentamentos


humanos nos espaços rural e urbano ocorre em sua maior parte em um período de nossa historia
marcado por dois fatos que iriam marcar a formulação de políticas publicas: a ascensão da questão
ambiental na agenda internacional e a redemocratização da sociedade brasileira. Ambos
contribuíram para a formação de um sistema de ações (leis, normas e procedimentos) que cria
instrumentos para a gestão ambiental, por meio do controle dos impactos da poluição e da
ampliação dos mecanismos de preservação ambiental, e estabelece formas de participação social na
formulação e implementação destas políticas.

Entretanto, embora a ascensão da questão ambiental e a redemocratizacao da sociedade


tenham acontecido em paralelo à intensificação do ritmo das transformações do território, mais
aparentes no espaço urbano, não houve a necessária sinergia entre estes para criar modos
inovadores de tratamento da questão ambiental urbana. De fato, aprofundou-se uma percepção
equivocada de que o tema meio ambiente se restringiria à gestão da natureza e só seria aplicável
aos espaços urbanos enquanto uma forma de introduzir e administrar paisagens verdes na cidade.
Por outro lado, não se criaram mecanismos específicos e eficientes para lidar com os problemas
ambientais característicos do meio ambiente urbano. Só a partir de meados dos anos 1980 é que
começam a se criar as conexões que incorporam como questão ambiental os problemas típicos do
espaço urbano.
3 A AGENDA DA CIDADE SUSTENTÁVEL: POLÍTICAS URBANAS, POLÍTICAS
SETORIAIS E ATORES SOCIAIS

A formulação de uma agenda que oriente as atuações dos atores sociais e crie condições
que garantam a ampliação contínua da sustentabilidade nos assentamentos humanos brasileiros
impõe um novo olhar sobre o elenco de temas, práticas e atores que compõem o urbano.
Inicialmente, é importante definir a relevância da dimensão espacial no desenho e implementação
de uma politica urbana, já que a primeira dá a segunda um componente territorial fundamental para
lidar com os efeitos da degradação e da escassez.

Isto é, as políticas urbanas necessitam ter um sentido territorial mais explícito de forma a
orientar a transformação da natureza a partir da compreensão da interdependência entre os tipos de
meio ambiente (natural e construído) do espaço e entre os tipos de espaço (natural e transformado)
do território, pois não é possível que existam cidades sustentáveis em territórios insustentáveis, ou
vice-versa.

O que se convencionou chamar de política urbana no Brasil, com seus diferentes conteúdos
e desenhos institucionais, abordou o território sempre de forma implícita ao longo dos anos. De
fato, a política urbana no Brasil sempre foi condicionada pela hegemonia das políticas setoriais, às
quais respondiam as pressões e projetos dos agentes econômicos atuantes nestes setores.

Enquanto as políticas setoriais lidam com temas e demandas definidas de grande impacto
no meio urbano (transportes, saneamento, habitação etc.), a política urbana seria aquela que se
orienta a partir das possibilidades de integração de questões de macrodesenvolvimento econômico,
social e territorial para harmonizar as relações que se dão entre atores sociais (a população, as
empresas, as instituições e o governo) atuantes na cidade e no território.

O processo de urbanização brasileiro, com seu ritmo crescente de transformação da


natureza, foi ainda mais intensificado a partir do fenômeno da globalização. À luz desta realidade,
estabelecem-se novas dinâmicas entre cidades e território e surge a necessidade de um tratamento
do urbano orientado para a sustentabilidade, a qual deve se expressar tanto na escala intra-urbana
como na rede urbana.

Em um quadro institucional no qual existem poucas oportunidades para se debater quais as


políticas urbanas mais apropriadas para o Brasil, as políticas setoriais acabam por assumir uma
primazia que tende a orientar o discurso e ação dos vários atores sociais. É fundamental, portanto,
que as tentativas governamentais e da sociedade civil para debater a sustentabilidade no espaço
urbano tenham uma visão critica sobre a tendência a setorializar a análise e os indicadores do
urbano e de supor que da soma dos temas que focalizam cada problema urbano virá a solução para
o conjunto da cidade. Sem que se discutam as implicações espaciais de cada tema, não se alcançará
uma compreensão acerca de como estes rebatem em conjunto no território e de como a
sustentabilidade poderá beneficiar todos os atores que vivem na cidade.

Do mesmo modo, a prática institucionalizada de utilização de instrumentos técnico-


urbanísticos para planejar os espaços intra-urbanos municipais (sem que existam instrumentos
similares aplicáveis às regiões metropolitanas, aos estados e à união) tem sido recorrente ao longo
das ultimas décadas, sem que se pratique uma revisão critica a respeito de seus limites e de sua
baixa eficácia. A rigor, seria necessária uma discussão criteriosa acerca das escalas adequadas para
a gestão urbana do território.

O estudo das vinculações entre as escalas espaciais de gestão do território de uso mais
corrente (local, região metropolitana, estado, nação) deve ser mais aprofundado para que o enfoque
em cada uma delas possa refletir a diversidade deste território. A idéia equivocada de que as
escalas contemplem tal diversidade tem levado à tecnicalização e uniformização das políticas
setoriais. Por exemplo, o local que corresponde a São Gabriel da Cachoeira (AM), o município de
maior área no Brasil, não é o local que eqüivale à cidade de São Paulo (SP), o município mais
populoso do país.

Já as regiões metropolitanas, que não são uma escala formal de administração do território
mas já foram consideradas instâncias de planejamento no passado, teriam a capacidade de
proporcionar uma gestão do espaço mais eficaz para parcelas do território submetidas a processos
similares de densificação do meio ambiente construído e de adensamento populacional, mas cujos
problemas extrapolam a responsabilidade de um ou mais dos governos municipais que a compõem.
Um poder metropolitano, portanto, não serviria apenas para apontar soluções para os problemas no
interior de uma dada região, mas teria as condições para atuar efetivamente no processo de
urbanização que a criou, propondo alternativas sustentáveis que priorizem o equilíbrio de funções e
usos para cada um dos municípios que a constitui.

Um exemplo seria a gestão de recursos hídricos na região metropolitana do Rio de Janeiro,


que envolve problemas de abastecimento de água e poluição ambiental. Enquanto a maioria dos
municípios que compõem esta região metropolitana têm problemas de abastecimento de água e
contribui com resíduos sólidos e líquidos para a contaminação da Baía de Guanabara, nenhum
deles está plenamente capacitado para gerir políticas que equacionem o acesso à água e
implementem instrumentos de controle da poluição para o conjunto das cidades. A superposição de
regiões metropolitanas e bacias hidrográficas contribuintes às baias costeiras (com todos os
problemas daí advindos) é, aliás, um fenômeno recorrente no país e para o qual uma administração
metropolitana poderia proporcionar formas inovadoras de gestão sustentável para lidar com um
quadro comum de degradação. Regiões metropolitanas também seriam a escala mais adequada
para lidar com algumas políticas setoriais, notadamente transportes, saneamento e desenvolvimento
econômico sustentável.

Nos estados, seria importante enfrentar a desigualdade espacial recorrente que se


materializa entre a região metropolitana e/ou as capitais de estado e as demais regiões. A
descentralização de recursos de capital e o estímulo ao desenvolvimento da capacidade produtiva
de outras regiões dentro das unidades da federação são condições imprescindíveis na busca da
sustentabilidade, pois tornariam possível a distribuição mais equânime e justa de oportunidades e
custos, mantendo a transformação da natureza dentro dos limites da capacidade de suporte
ambiental. À descentralização de recursos se eqüivaleria uma descentralização administrativa que
proporcionasse condições políticas concretas para seu desdobramento. Na experiência brasileira é
comum que as regiões metropolitanas e as capitais de estado concentrem um número
desproporcional de órgãos pertencentes a diferentes instâncias de administração e com
competências conflitantes cuja atuação se reflete no território.

É nacionalmente que se encontram os maiores desafios para a adoção da sustentabilidade


no espaço urbano. A ausência de uma tradição de políticas urbanas dotadas de uma dimensão
espacial não tem uma série de causas especificas, mas vários fatores que podem ser objeto de
especulação. Por exemplo, no período anterior à consolidação de uma burocracia tecnocrática
(Plano de Metas), a idéia de planejamento urbano era associada a questões sanitárias, de uma
transformação massificada ou massificadora do espaço, aspectos que não eram de particular
interesse para as elites. Outra possibilidade é a de que a idéia de abundância de recursos e de
espaço fazia do planejamento urbano uma questão menos importante, para não dizer desnecessária.
Seja quais forem os motivos, o fato é que o Brasil não implementou um processo de transformação
de sua natureza de forma profunda e planejada para melhor estruturar seu território até o início do
empreendimento que levou à fundação de Brasília.
A partir dos anos 1960, qualquer tentativa de transformação sustentável, ao menos sujeita a
processos de planejamento com forte conteúdo de desenvolvimento social, estaria seriamente
comprometida pela estabilização em altos níveis do ritmo de crescimento urbano da sociedade e
pelas funções e usos característicos da cidade brasileira.

As tentativas de planejamento estabelecidas a partir daí foram tímidas para reverter a


tendência consolidada e criar as condições para a correção do passivo ambiental resultante da
valorização tradicional do espaço. Pelo contrário, esta valorização negativa do espaço intensificou-
se, expandindo a rede urbana no território e multiplicando os clusters de alta vulnerabilidade
espacial no tecido intra-urbano.

O resultado é uma rede de cidades cujas características básicas parecem conformar um


modelo: desigualdade no acesso aos recursos naturais e ambientais em seu interior; o uso da
natureza como prestadora de serviços ambientais; a ausência de participação, principalmente das
classes populares, na gestão das cidades, entre outros exemplos.

Tais características predominam na rede urbana brasileira independente do tamanho,


localização e quantidade de recursos e de população de uma cidade. Os mesmos problemas podem
ser encontrados em uma cidade colonial, como Salvador, em uma cidade planejada há 40 anos,
como Brasília, e em uma capital de estado recém-fundada, como Palmas, no Tocantins.

As possibilidades de intervenção dos atores sociais neste quadro são limitadas, seja pela
falta de transparência e participação na elaboração de políticas urbanas, seja pelas dificuldades em
compreender todos os elementos de uma discussão complexa, ou seja ainda pelo pesado passivo
cultural que condiciona e reproduz comportamentos e posturas notadamente insustentáveis em
relação aos meio ambientes da cidade.

A atuação dos governos é condicionada a vários fatores que vão da escala administrativa à
existência de instrumentos adequados para a formulação e implementação de políticas inovadoras.
Enquanto o Governo federal promove uma participação formal em fóruns pouco representativos, os
governos estaduais não percebem a sua importância estratégica para a concretização de medidas
impactantes no rearranjo regional de recursos e população. Fica, então, a cargo dos governos
locais, uma desproporcional responsabilidade sobre a administração de problemas urbanos cuja
natureza e alcance extrapolam sua competência administrativa e capacidade de recursos.
Os empresários têm sido tradicionalmente o principal agente na transformação da natureza
e na promoção de usos insustentáveis para as cidades. No caso do Brasil, ainda é muito baixo o
nível de responsabilidade empresarial para com o social que poderia estimular a criação de
programas pioneiros de recuperação ambiental no espaço urbano. De fato, as empresas se
beneficiam enormemente da mais-valia proporcionada pelos serviços ambientais prestados pela
natureza presente no espaço urbano e no seu entorno, situação proporcionada pela ausência de
instrumentos reguladores, fiscalizadores e penalizadores da ação poluidora e depletora decorrente
dos processos de transformação.

As instituições dividem-se em públicas e privadas e podem cumprir um importante papel


como espaços de produção alternativa de conhecimento e práticas sociais. Também podem
desempenhar o papel de fiscalizadores da ação pública e privada, com o objetivo de resguardar o
bem comum. Apesar da variedade de instituições existentes na sociedade brasileira, poucos grupos
têm uma ação mais consistente voltada para os interesses populares, notadamente ONGs,
sindicatos, associações de moradores e outros, ou exercem seus mandados com um senso aguçado
de responsabilidade social.

Entre todos os atores que atuam no espaço urbano, a população é aquela para quem os
impactos da transformação se fazem sentir de forma mais acentuada. Os impactos se distribuem de
maneira distinta entre os vários cortes possíveis pelos quais esta população pode ser definida ou
caracterizada. Além de classe, predominante na maioria das análises, é importante que se
incorporem também os cortes de gênero, raça, etnia e idade, pois cada um deles afeta as condições
concretas de vida dos indivíduos no interior da cidade e a sua soma tem efeito decisivo na
conformação da vulnerabilidade socioambiental. Isto permite uma melhor compreensão acerca de
como a valorização tradicional do espaço está associada à desigualdade, materializando-se na
forma de clusters no interior do tecido urbano. Estas mesmas características da população são um
importante fator para a construção da noção de justiça ambiental, pois permite reconhecer no
espaço padrões recorrentes que associam meio ambiente e população.

4 COMO COLOCAR A CIDADE SUSTENTÁVEL NO MAPA?

Devido à sua centralidade na dinâmica das relações sociais, políticas e econômicas, as


cidades são alvo de inúmeros projetos cujos objetivos parecem apontar para um mesmo dilema:
como lidar com os passivos ambientais e culturais que caracterizam as heranças insustentáveis
construídas em séculos de urbanização?

Posta deste modo, a questão é superficial e aborda apenas as conseqüências visíveis de um


processo cuja complexidade articula as mais variadas dimensões, esferas e dinâmicas da sociedade.

Não é possível que existam cidades sustentáveis sem que haja territórios sustentáveis
geridos por sociedades sustentáveis organizadas em torno da participação democrática.

Reiterando a analogia entre a cidade e o teatro, se tomarmos o meio ambiente das cidades
num palco, as ações insustentáveis dos atores no espaço serão o drama em foco. O movimento de
valorização tradicional do espaço que predomina em nossa época tem permitido a determinados
atores a acumulação de bens e poder político, ao mesmo tempo em que tem gerado degradação e
escassez dos recursos naturais e desigualdade de acesso aos recursos ambientais, com maior
impacto sobre a qualidade de vida de outros atores em situação de desvantagem. É neste
movimento de valorização que residem as grandes contradições da insustentabilidade urbana.

Opor-se a este movimento significa propor uma nova forma de fixação de valor ao espaço
que não seja apenas por meio de objetos e sistemas técnicos (a forma tradicional praticada pelo
capital financeiro, industrial, imobiliário, etc.), mas também pela valorização inovadora que
incorpora os capitais natural e social.

Isto significa priorizar o desenvolvimento social e humano em cidades com plena


capacidade de suporte ambiental e geradoras de atividades que podem ser igualmente acessadas
por todos que nela vivem.

Em um país como o Brasil, onde convivem espaços intensamente transformados e espaços


naturais, deve-se levar em conta tanto os custos de uma correção dos passivos herdados, como as
possibilidades que se abrem para o planejamento orientado para a criação de novos assentamentos
humanos sustentáveis. Ainda que os governos tenham papel central em consolidar esta perspectiva,
ela não será plenamente realizada sem a participação expressiva e qualificada da sociedade civil
em toda a sua diversidade.
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