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A Semiótica da Vilania:
uma análise iconográfica de
imagens produzidas por Inteligência
Artificial.
USP
2023
Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo realizar uma análise das representações visuais de
vilões criadas pelo artista visual Lucas Freitas, utilizando a tecnologia do MidJourney, uma
inteligência artificial inspirada no DALL-E 2. Por meio dessa ferramenta computacional, o
artista concebeu figuras que personificam vilões, vinculando-os ao conjunto mítico de
algumas nações mundiais. Nesse processo, foram exploradas diversas formas, elementos
simbólicos e estéticos distintos para representar esses personagens antagonistas.
Sendo assim, o objetivo central deste trabalho é realizar uma análise iconográfica das
imagens produzidas considerando o contexto de relações de sentido apresentadas e
buscando investigar camadas simbólicas presentes nas representações dos vilões criados
pela inteligência artificial, esperando-se assim obter uma análise significativa acerca das
dinâmicas contemporâneas de representação e de criação de alteridades.
1- Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar as representações visuais de vilões criadas
pelo artista visual Lucas Freitas, que utiliza a tecnologia do MidJourney para produzir figuras
relacionadas a categorias específicas, como signos do zodíaco, personagens de séries
ficcionais e países. Essa inteligência artificial opera de forma similar ao DALL-E 2, exigindo
a elaboração de um prompt, um texto descritivo detalhado, para a geração das imagens
(Canaltech (Lisboa; Ciriaco (edit), 2023). Por meio dessa interação entre arte e tecnologia,
Lucas personifica diversas categorias conceituais, resultando em obras que são divulgadas
em suas redes sociais, como Instagram e TikTok.
O objeto desta pesquisa são as imagens de vilões associadas a países criadas por Lucas
Freitas. As imagens relevantes para esse recorte foram extraídas do Instagram do artista e
estão disponíveis até 25 de julho de 2023. O estudo se concentrará na análise dessas
imagens, buscando compreender como os vilões, signos do mal e do medo, são
representados visualmente.
2- Fundamentação teórica
ECO (2007) discorre sobre a crença patrística da beleza inefável de Deus, através das
belezas ideais e corporais, e a ideia de "Pankalia", segundo a qual todo o universo é belo,
imbricando as valorações da beleza e da bondade como uma manifestação da presença
divina (p. 44) e que, por lógica, o mal se faria representar pelo grotesco.
O estigma, em sua definição original, pode ser uma cicatriz, uma marca visível, funcionando
tanto como um sinal infamante ou vergonhoso, quanto como uma característica natural do
corpo (Soares, 2015, p. 3). Essas marcas visuais que distinguem, diferenciam e isolam
podem estar associadas a aspectos físicos, culturais ou comportamentais que são
percebidos como desviantes em relação ao padrão socialmente estabelecido.
O termo "estigma", de origem religiosa, ganhou popularidade após ser abordado pelo
sociólogo Erving Goffman em seu livro "Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade
Deteriorada", publicado em 1963. Goffman descreveu o estigma como uma característica
que desqualifica uma pessoa em determinada situação social, levando a uma identidade
deteriorada. Essa marca negativa pode ser adquirida por diferentes razões, tais como
aparência física, origem étnica, condição de saúde, orientação sexual, status social, entre
outros.
Primeiramente, será realizada a coleta das imagens disponibilizadas pelo artista em suas
redes sociais, fornecendo o corpus visual necessário para a análise iconográfica e semiótica
das representações dos vilões gerados pela inteligência artificial.No que concerne à análise
iconográfica e semiótica das imagens, serão empregados os conceitos da Semiótica
Tensiva e do Quadrado Greimasiano.
Por sua vez, o Quadrado Greimasiano será empregado para categorizar as imagens dos
vilões em quatro grupos distintos, com base em suas características figurativas e
simbólicas. Dessa forma, será possível identificar relações de contradição, afirmação e
termos neutros ou contraditórios entre esses grupos de vilões representados pelo artista.
De nota, este estudo tem o objetivo de abstrair o repertório mitológico de cada país,
focalizando na compreensão da universalidade das figuras do mal e sua relação com o
campo do maligno. O intuito é transcender as particularidades históricas e culturais de cada
nação, buscando identificar elementos simbólicos comuns que evocam o mal e a ameaça,
com ênfase nos recursos estéticos.
Na análise semiótica plástica, o foco está na investigação do sentido das imagens a partir
do percurso gerativo e das relações semióticas entre as formas de expressão e as formas
de conteúdo. Isso significa que as escolhas estéticas, como cores, composição, objetos
representados e sua disposição na imagem, são estudadas em relação aos significados que
evocam e às ideias que comunicam.
Ao observar o corpus iconográfico das imagens de forma generalista, é possível notar uma
identidade visual presente nas figuras retratadas. Essa identidade é reforçada pela
presença marcante de cores escuras, que evocam uma sensação de frio e sombrio,
contribuindo para a uniformidade estética do trabalho.
Do ponto de vista das categorias cromáticas, a escolha das cores escuras cria uma
atmosfera sombria e enigmática ao redor dos vilões, sugerindo sua presença ameaçadora e
maléfica. Essa tonalidade estabelece uma conexão visual entre as diversas figuras
representadas, independentemente dos países aos quais estão relacionadas. Essa escolha
estética parece ter sido feita de forma intencional para evocar uma sensação de perigo e
temor em relação aos vilões retratados.
Para além disso, os recursos de ambiência, que não estão diretamente ligados ao corpo
dos vilões, também podem contribuir para sua representação ameaçadora. Por exemplo, a
sugestão de manipulação do sobrenatural pode realizar uma conexão com poderes místicos
e desconhecidos, enquanto a presença de sangue pode provocar a leitura de seus ímpetos
de violência e crueldade.
Assim, a análise semiótica plástica revela que as escolhas estéticas, como as cores escuras
e a centralidade do objeto, são elementos significativos na construção da identidade visual
das figuras analisadas. Esses elementos trabalham em conjunto para estabelecer uma
atmosfera ameaçadora e sinistra, reforçando a figura do vilão como o elemento de destaque
nas imagens e como representação do mal.
A análise tensiva na semiótica plástica, com ênfase na abordagem desenvolvida por Claude
Zilberberg e Jacques Fontanille, parte do pressuposto de que o plano de conteúdo é
formado no percurso gerativo do sentido e manifestado no plano de expressão. Nesse
modelo, a formação do conteúdo independe da forma como é expresso e está baseada em
relações de afirmação e negação que agregam sentido (PIETROFORTE, 2017, p.16)
No contexto da semiótica tensiva, é possível gerar termos complexos nos quais conceitos
opostos, como vida e morte, são afirmados conjuntamente propondo a fundamentação do
sentido a partir da articulação de dois eixos: o da intensidade e o da extensidade. Essa
abordagem investiga a maior ou menor tonicidade dos valores investidos nas
representações (IDEM).
A natureza dupla da figura do vilão, que engloba potência e corrupção, é uma das
proposições centrais a serem investigadas no conjunto de imagens desta pesquisa. Em um
nível fundamental, as construções imagéticas tensionam o eixo vida versus não vida,
preservando a capacidade de agência o vilão e tendo por medida de tonicidade sua
perversão, o que, num recorte simbólico, estará representado pela antinaturalidade das
formas. Nesse contexto, a categoria aspectual conformidade versus deformidade
desempenha um papel importante na descrição dessa tensão.
No percurso narrativo, o aspecto intensivo da conformidade à figura humana é explorado
através de uma curva de tensão inversa, na qual a deformidade é estabelecida de forma
extensiva. Isso implica que as representações do vilão, em geral, incorporam estigmas
antinaturais que se afastam das formas humanas naturais, distorcendo a aparência e
características típicas do ser humano. Esses elementos visuais e simbólicos são habilmente
utilizados para acentuar a natureza ameaçadora e corrupta do vilão, realçando sua potência
de agir e despertar o medo e a sensação de perigo.
O termo "S" (Sujeito) é representado pelos "vilões" em geral, que são o foco da análise. O
termo "O" (Objeto) é dividido em duas subcategorias: "humano" e "criatura". O termo "M"
(Modalização) pode ser interpretado como os elementos de corrupção e ameaça, que são
atribuídos tanto aos vilões "humanos" como às "criaturas". Por fim, o termo "A" (Atributo)
pode ser representado pelas características estigmatizadas que os vilões "humanos"
apresentam, tornando-os "desumanos".
As coisas (C) estão representadas na extremidade oposta ao dos humanos (B) e das
criaturas (D), não denotando elementos humanos e não possuindo as características
distintivas das criaturas (D).
Os vilões estigmatizados também podem ser caracterizados por possuírem vínculos com
poderes sobrenaturais, manipulando energias de uma forma diversa e desconhecida. Suas
habilidades transcendem assim o âmbito humano, tornando-os a personificação do mal em
sua forma mais destrutiva.
No Grupo B, os vilões humanos são concebidos pela IA sem estigma plástico, o que torna a
visualização de sua corrupção não tão explícita à primeira vista. levando a questionamentos
quanto à natureza malévola. Essa ausência de elementos gráficos que denotem violência
ou maldade exige uma análise mais profunda e contextualizada a partir do programa
narrativo, o que se verá mais adiante.
3.4.3 - Grupo C - Coisas Amedrontadoras
O Grupo C abrange vilões figurativos não humanos, incluindo animais e objetos inanimados,
cujas ações são regidas por instintos, estando assim desprovidos da esfera moral. A
princípio, não podem ser vistos como significantes da violência e amoralidade associadas à
vilania, a menos que se faça uma leitura contextual e sócio-histórica. Suas características e
simbolismos podem ser influenciados por mitos, crenças culturais, fobias e traumas
coletivos.
A ameaça representada por esses vilões decorre, em grande parte, de seu potencial de
violência e destruição. Animais selvagens são conduzidos por seus instintos predatórios,
enquanto objetos inanimados podem ser transformados em fontes de perigo. A
interpretação desses elementos como vilões está intrinsecamente relacionada ao contexto
em que são apresentados e às percepções culturais e sociais que moldam sua
representação como ameaças. Dessa forma, nesta categoria também será necessária a
apreensão da dinâmica do programa narrativo.
Os monstros criados nos contos demonstram os horrores do pesadelo daquilo que não se
pode compreender. Híbridos de animais ou homens e animais recheiam o imaginário
mitológico de vilões aterrorizantes como as sereias e outras criaturas fantásticas, abstratas
ou sobrenaturais, Como resultado, sua presença na narrativa é marcada por uma aura de
mistério e suspense, contribuindo para criar uma sensação de insegurança e incerteza no
receptor.
Para este grupamento, que são representações pertinentes ao campo do estigma plástico, o
programa narrativo pode ser considerado um programa narrativo de base, termo que se
refere à construção da narrativa em si. Nessa leitura, o programa narrativo de base se
manifesta por meio da utilização de objetos descritivos e significantes materiais que
enfatizem o conteúdo de medo e aversão.
Essa concepção da relação entre beleza e bondade pode ser transposta para a
representação clássica dos vilões. A associação do estigma plasma a ideia de que a
aparência externa está relacionada à sua natureza maléfica, justificando o emprego
intencional de elementos gráficos que irão criar uma identidade distinta para esses
personagens e evidenciar sua condição como antagonistas e potenciais ameaças ao
equilíbrio do universo.
De fato, o programa narrativo de uso do Grupo B dos vilões se manifesta de forma interativa
com o público receptor da narrativa. A interpretação desses personagens como
ameaçadores é influenciada por valores culturais, ideologias e percepções sociais
presentes na sociedade. Dessa forma, elementos como uma armadura samurai ou um
elefante violento evocam o risco associado a batalhas e confrontos, contribuindo para a
construção da ameaça que esses vilões representam.
No entanto, ao aplicar o programa narrativo de uso ao Grupo B dos vilões humanos, que
não ostentam estigmas plásticos, torna-se evidente que a compreensão desses
personagens como ameaçadores exige uma análise mais acurada. A ausência de
elementos visuais que denotem violência ou maldade requer que o programa narrativo de
uso seja interpretado de maneira mais abstrata para que se compreenda sua valoração
moral ou seu conteúdo de ameaça.
Nesse sentido, é essencial compreendermos a ação social como permeada por sistemas de
significado variados, que regulam a conduta humana e moldam as interpretações das
imagens e símbolos utilizados na construção dos vilões. Devemos estar conscientes de
como essas representações podem reproduzir preconceitos, estereótipos e desigualdades,
contaminando novas linguagens e perpetuando narrativas negativas.Nesse contexto, as
imagens e símbolos utilizados para representar essas nações não só refletem um histórico
de dominação, como também se projetam “para frente”, realinhando valores, ideologias e
estereótipos específicos que influenciam a percepção do "outro" e reforçam a visão
ocidental dominante.
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