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1. Introdução
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Dênis é educador popular, redutor de danos e cientista social. É ligado ao Rizoma Princípio Ativo, e
membro do Colegiado Nacional da Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA),
onde também integra o GT de Política internacional. É colaborador do Núcleo de Educação, Avaliação e
Produção Pedagógica em Saúde da Faculdade de Educação da UFRGS (EducaSaúde/FACED/UFRGS).
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Rafael é redutor de danos, acadêmico de Ciências Sociais, e militante do Rizoma Princípio Ativo. É
integrante do GT Marcha da Maconha na Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos
(ABORDA). Atualmente, acompanha o trabalho do Coletivo Balance, que realiza ações de Redução de Danos
junto ao público frequentador de festas rave na cidade de Salvador, Bahia.
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2. O dispositivo “droga” e a Redução de Danos como dispositivo da Reforma
As drogas tornadas ilícitas, devido à sua ilegalidade, são aquelas cuja inserção
em nossa sociedade excluem qualquer esforço de acolhimento, motivo pelo qual esta
questão precisa fugir às limitações da clínica convencional, e das próprias tecnologias de
cuidado. Não se pode conceber mudanças sérias somente a partir do cuidado em Saúde em
um contexto de políticas repressivas, que fazem apologia da guerra, da adulteração e do
crime nos territórios onde se dão a produção, a circulação, o comércio e o uso de drogas.
Todavia, há quem trilhe estes caminhos justamente pensando em promoção de saúde e
autonomia, e afirmando que, entre a opção de trabalhar ou não em tais configurações,
haveria uma série de revisões necessárias, no âmbito da moralidade de trabalhadores e
trabalhadoras consigo mesmos/as.
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que não é através destas histórias de campo que nos sentimos mais à vontade para falar a
respeito de nossas barreiras internas. Sobretudo, nos parece que diante de redes
extremamente marginalizadas e criminalizadas, o ideário da Saúde Coletiva - notadamente
a relação direta entre saúde e autonomia - se confunde com medidas assistencialistas
(crítica à RD que pode ser encontrada tanto fora quanto dentro da luta antimanicomial). É
que, na intersetorialidade das demandas, o significado de um programa de troca de seringas
está muito mais ligado à questão antropológica da dádiva (MAUSS, 2003), do que foi
possível a nossa epidemiologia sugerir, assim como nossa crença em uma educação em
saúde enquanto mera transmissão de conteúdos.
A RD não é uma clínica do caos, mas ela fornece respostas para as quais não
estamos preparados, na exata medida em que consideramos o preparo técnico excessivo de
trabalhadores e trabalhadoras da saúde como algo indispensável. Suas caminhadas
heterodoxas se unem em direção a problemas sem solução aparente, na medida em que
redutores e redutoras dispensam a formalização de suas regras; na medida em que lutam
contra todo e qualquer engessamento, tensionando as próprias estruturas gestoras da Saúde,
ainda muito apaixonadas pelo poder da estatística e da epidemiologia.
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situar historicamente as clínicas da RD e do AT em uma linha horizontal, rotulá-las e
assinar embaixo. Queremos poder fazer isso também, mas preocupando-nos menos pela
história destas tentativas, e mais por suas relações com a antropologia, num contexto de luta
antimanicomial; interessa-nos saber de que maneira RD e AT são porta-vozes de uma série
de outras idéias marginais, dentro e fora da academia e da própria Reforma, tensionando-as,
assim como também ocorre com outros agentes. Antes de tratarmos sobre o que
consistiriam, de fato, os tensionamentos específicos da RD e do AT para a Reforma,
abriremos um pequeno parágrafo quanto a suas condições de reprodutoras da mesma.
3. Reformas cíclicas
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Entendemos que toda luta contrária a institucionalização de uma clínica
constitui-se em luta antimanicomial. Ora, a Reforma Psiquiátrica é movimento
institucionalizante: dialoga com as instituições, e não poderá ser de outro jeito, uma vez que
representa uma conquista que se dá no eixo da Gestão, das políticas públicas. A Reforma
abrange os serviços de saúde e suas regulamentações e diretrizes, muito mais do que às
práticas e saberes das pessoas que trabalham nestes serviços. A Reforma, como toda e
qualquer lei, não atinge diretamente a ponta. A Luta, ao contrário, se mantém viva através
de pessoas, voltando-se igualmente para pessoas. A Reforma representa o acomodamento
sempre precário de um processo em constante movimento. E, interessante observarmos,
todas as relações construídas com a Reforma são relações de lutas através de pessoas -
valendo o mesmo tanto para os movimentos contrários ou favoráveis a ela, e até para
aquelas posições não consensuais que dividem cada um destes dois grandes grupos.
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ético e estético no cuidado. Para além do tom de registro, interessa-nos situar o que
simbolizam estas tecnologias, no campo político-reflexivo do cuidado: em relação a que
outras tecnologias são instituídas? No lugar de quais clínicas emergem como alternativas?
Em resposta a que demandas?
Os redutores de danos atuam junto a pessoas que usam drogas, nos locais onde
estas vivem e convivem, operando estratégias de promoção de saúde que tem como base o
acolhimento, a construção de vínculos e a busca de construção de itinerários terapêuticos
que privilegiem o sujeito. Uma proposta de busca ativa, cujo desenho é diferente daquele
traçado por agentes comunitários de saúde, na medida em que os territórios da RD são
concebidos pelos usuários dos serviços, e não pelos profissionais de saúde, numa fluidez
que é a do tempo real, assim como com o AT. Trata-se de “construir com”, e não de
“construir para”. Neste sentido, a prática da Redução de Danos, assim como a de AT, surge
em uma clínica que é avessa àquilo que traduz a essência dos manicômios: a construção
prévia do acolhimento, antes do próprio contato com a demanda. Ou, tal como na leitura
antropológica, a pretensão de traduzir o mundo do “outro” à revelia de suas visões de
mundo.
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Neste sentido, se reconhecemos as conquistas da Reforma Psiquiátrica
(inclusive quando esta nos ensina não se tratar somente de reforma na Psiquiatria, mas em
todas as áreas do cuidado), e se desejamos a extensão destas conquistas para as pessoas que
usam drogas, devemos pensar a natureza do surgimento destas figuras, que despertam
experiências radicais de estranhamento do “outro” que usa drogas.
Dada as relações extremas até mesmo com os fármacos, mesmo numa sociedade
em que diversas drogas concorrem para usos diversos, parece não haver lugar para a idéia
de que drogas possam fazer bem. Aceitamos mal a evidência dos usos controlados, e temos
um pavor calado diante da esfera do prazer. Assim como o dispositivo da sexualidade faz
calar certos discursos sobre o sexo, o dispositivo “droga” faz funcionar certas dinâmicas de
afirmação e de silenciamentos discursivos (FOUCAULT, 2005). Neste sentido, tal como
acolhemos a realidade do sexo, acolher os usos de drogas, em sua evidência histórica e sua
naturalidade, não significa fazer um elogio das mesmas como sendo remédios absolutos.
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Torna-se necessário, portanto, constituir pontes para que os movimentos e discursos
emergentes no âmbito da vida vivida tensionem os saberes constituídos das ciências da
Saúde, cada vez mais comprometidos com o ideário curativo e o pragmatismo de um
complexo médico-científico. A partir destes movimentos, torna-se imprescindível que a
clínica pense sobre contextos de uso associados mais ao prazer do que ao sofrimento
psíquico (ou ao utilitarismo farmacológico da clínica da doença), incluindo estas
possibilidades de vivência das drogas num possível repertório de caminhos terapêuticos
para as pessoas que usam drogas. Não seremos menos moralistas do que já somos: apenas
deixaremos de fazer a apologia ao sofrimento, pensando a promoção de saúde.
Ora: sabe-se que o uso de drogas emerge de modo diferenciado sob a lente dos
dispositivos de disciplinamento e controle do modelo manicomial. Não somente usos
problemáticos, como também o mero uso (não associável a sofrimento psíquico), numa
lógica normativa e positivista, são vistos como sintomas de uma saúde mental e social
desequilibrada.
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sociedade (moralidades antidrogas), naquilo que Pierre Bourdieu (2006) categorizou como
Violência Simbólica. Com efeito, as políticas de drogas atuais, embora objetivem a
proteção da saúde pública como bem tutelado maior, articulam esforços mais ligados à área
da Segurança Pública do que ligados à própria área da Saúde. A guerra às drogas tornadas
ilícitas, que na prática é executada através de efetivos policiais, é uma guerra sobretudo às
pessoas que as produzem, distribuem e usam. Esta ideologia de combate abrange o
imaginário sócio-cultural sobre drogas desde a metade do Século XX, se estendendo às
diversas instituições estatais que dialogam com estas pessoas, incluindo os serviços de
saúde. Não obstante, diante de uma nova lei (Lei 11.343/2006) que revê a figura das
pessoas que usam drogas enquanto criminosas (recolocando-as como cidadãos e cidadãs de
direitos), e diante de um já não tão novo conjunto de diretrizes a nortear o agir em saúde
coletiva, convém estudar os atravessamentos de algumas questões: qual o lugar, no âmbito
da gestão em saúde, para serviços de atenção organizados numa lógica repressiva e
persecutória? Qual o lugar, do ponto de vista epistemológico, dos discursos que organizam
práticas de promoção de saúde mental a partir de veredictos, e não de diagnósticos? De que
modo os diferentes campos em questão – justiça, segurança e saúde – lidam com a
excessiva relatividade quanto à suas respectivas autonomias? Para falar destas outras éticas
e estéticas, tentando resgatar os seus discursos no que caberia a nossa análise, olhemos para
algumas outras representações possíveis da RD e do AT, em imbricações suas que se
identifiquem como deslocadas da luta ou da Reforma.
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“Enquanto estudante de medicina, fui atendente psiquiátrico, acompanhante terapêutico,
instrutor de atendentes. Depois de formado e especialista em psiquiatria, fui titular da
cadeira de Psicopatologia no Instituto de Psicologia da PUC/RS e ainda dei aulas de
Técnica de Entrevista e de Psicologia Clínica. Essas vivências todas me permitem afirmar
que o surgimento do acompanhamento terapêutico não tem nenhuma relação com o
movimento da antipsiquiatria e muito menos com o movimento de reforma psiquiátrica
como tenho lido em vários "sites" dedicados ao assunto de AT”.
“(...) a Clínica Pinel de Porto Alegre, fundada por Marcelo Blaya em 28 de março de
1960 introduziu, no Brasil, uma nova maneira de encarar o tratamento dos doentes
mentais. Equipe multiprofissional focada nas necessidades reais ou imaginárias dos
pacientes, mantinha-se em atividade permanente nas 24 horas do dia. Isso só era possível
devido à presença da figura do atendente psiquiátrico. O nome pode variar, auxiliar
psiquiátrico, acompanhante terapêutico, enfermeiro psiquiátrico, mesmo que não seja um
profissional de enfermagem dentro dos conceitos tradicionais.”
Todavia, nos parece que a figura do AT, tal como se inscreve hoje, permanece
sobre nós muito especialmente ligada à luta antimanicomial, no momento em que, ao
contrário do que nos mostra a vivência de Piccinini, este profissional não parece estar mais
submetido ao plano terapêutico institucionalizado. Pelo contrário: o AT, justamente por
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distanciar-se da clínica tradicional, possui uma potência transgressora de difícil captura,
que possibilita novos agenciamentos terapêutico, lá onde a vida acontece. A clínica do AT,
hoje, surge não no lugar do tratamento de uma demanda pré-concebida (tarefa atribuída ao
Atendente Psiquiátrico), mas no lugar do vínculo com o “outro”. O vínculo não está dado, e
sua construção e manutenção são terapêuticas.
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entendimento do AT como dispositivo da Luta se encontraria em sua amplitude, na
promoção de saúde.
O policial me pegou pelo pescoço: “Tem documento aí? Tem ficha na polícia?”, e insistia
para saber porque eu queria o nome dele. Eu dizia: “pra fazer meu relatório. O senhor agiu
errado: aquele material é dinheiro público, e o senhor pisou em cima”. E ele dizia: “Olha
bem magrão, o que tu vai fazer! Agora eu sei onde tu mora, e qualquer coisa eu vou lá na
tua casa!” (PETUCO, 2007)
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esta classe profissional (risos). Aí enfim, as coisas ficaram bastante estremecidas durante
alguns meses. Depois eu me dei conta de que não tinha sido uma boa estratégia política.
Mas com o tempo a gente estava fazendo dois encontros semanais. (RIGONI, 2006)
Esta distância está presente, por exemplo, nos discursos que constituem as
drogas como “epidemia”, em uma edição contemporânea de lógicas campanhistas que
muitos dentre nós julgavam extintas. Diante do florescimento destas formas
contemporâneas de higienismo relacionadas ao uso de drogas, o antropólogo Edward
Macrae costuma dizer, em suas aulas de socioantropologia do uso de drogas, na UFBA: não
podemos acabar com a cultura das drogas. Concordamos: são justamente estas culturas,
estas trocas de informações - hoje criminalizadas - que possibilitam a promoção de saúde
entre pessoas que usam drogas, incluindo aí as experiências de RD e AT, sempre que não
confundidas com forças naturalizantes das culturas de uso: RD e AT podem (e devem!)
transitar nestas culturas, operando os tensionamentos da promoção de saúde, justamente por
não desejar combatê-las.
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6. Possíveis limites para a apreensão das clínicas abertas
Há uma idéia que perpassa tanto Dharma quanto o ensinamento de Paulo Freire:
a idéia de uma autonomia fundada em uma nova ética, que é pensada não na relação do
sujeito para consigo próprio, mas na relação sujeito/objeto. E, aqui, como contraposição,
lembramos Foucault (2001), em seu acompanhamento do olhar sobre a doença, dizendo que
a medicina exerceria um papel de mediação entre “sujeito e objeto que também é sujeito” -
médico e paciente. “Não é o patológico que funciona em relação à vida, mas o doente em
relação à própria doença” (Pág. 07). Ou, devemos dizer, funcionará o sujeito/doente em
relação à idéia de doença, inferida no saber do sujeito/médico - que busca, através da
medicina, enquadrar a doença... Esta clínica do pré-acolhimento não é privilégio do século
XVIII; a encontramos nos CAPS de hoje em dia. Não se trata aqui de relativizar as
conquistas da própria Reforma ao âmbito das instituições, dos serviços; mas sim de
apontarmos para os lugares nos quais as reflexões das clínicas abertas se dão. Lugares da
subjetividade.
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afinal estamos olhando para RD e AT enquanto dispositivos da Reforma, da promoção de
autonomia, e a última barreira deste posicionamento é conceber que o outro não pode
“depender” de nosso “conhecimento” – e aqui, a utilização de aspas homenageia
novamente a Paulo Freire.
7. À guisa de conclusão...
No que diz respeito ao fenômeno das drogas, que tomamos como analisador
para este artigo, a RD nos ensina que já estamos saturados de especialidades, ao mesmo
tempo em que nos faltam escuta e acolhimento. Falta trabalhar nossas barreiras, desafiando
o imperativo legal e a moral antidrogas, por meio de uma clínica essencialmente política.
Afinal, os usuários de serviços de atenção a pessoas que usam drogas, públicos ou privados,
não são criminosos, e afirmar isto constitui, necessariamente, uma clínica política.
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Bibliografia
FIORE, Maurício. Tensões entre o social e o biológico nas controvérsias médicas sobre
uso de drogas. 2005. Disponível em <http://www.neip.info> e acessado em 10/08/08.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1996.
FONTANELA, Bruno José Barcelos & TURATO, Egberto Ribeiro. Barreiras na relação
clínico-paciente em dependentes de substâncias psicoativas procurando tratamento. In.:
Revista de Saúde Pública. 2002. Pgs 439-47.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
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