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CAMOMILA

Para Caio
Contents

Title Page
Dedication
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
XXII
XXIII
XXIV
I
LIBRAS foi sempre tão importante para mim quanto o português.
Aprendi a língua de sinais com minha mãe, surda, e a língua falada com meu
pai, ouvinte.
De minha família, todos são ouvintes, exceto minha mãe. Talvez seja
por isso que quase todos seus amigos são surdos ou têm baixa audição.
Sempre tive a sensação de que ela se sente excluída nas reuniões de família.
Meus avós diziam que meus pais não deveriam ter filhos biológicos.
Eles não podiam correr o risco de colocar mais alguém surdo no mundo.
Minha avó rezou a gravidez inteira para que eu não nascesse com o mesmo
problema da minha mãe.
Bom, nasci com a audição completamente boa. Mas também nasci
consciente de que pessoas surdas são como pessoas ouvintes: completamente
normais.
E também aprendi que surdez não é um problema. O problema é a
falta de acessibilidade e a exclusão.
No meu primeiro dia de aula do ensino médio, o diretor entra na sala e
diz que precisa ter uma conversa com a turma.
Há um aluno novo.
Ele é especial.
É essa a palavra usada: especial.
Não sei porquê. Não sei o quê ele tem de especial.
O nome dele é Martino.
Ele não pode ouvir nada.
Também não se comunica verbalmente.
Nós devemos ser gentis com ele.
— Qual é o problema com esse garoto? — um dos meus colegas
pergunta.
— Ele é surdo. — é a resposta.
Rostos de pena. Risadas.
Martino entra na sala logo depois.
A primeira coisa que penso é como ele parece absurdamente
deslocado ali, com as mãos nos bolsos e a mochila azul nas costas, como se a
sala toda fosse uma pintura pronta e ele algo pintado de última hora de uma
maneira toda errada.
Ninguém fala com ele.
Uma intérprete de LIBRAS senta bem na frente de Martino e passa a
interpretar a aula toda para ele. Eu acho divertido poder acompanhar a
explicação do professor tanto ouvindo sua voz quanto olhando para a
intérprete.
A três primeiras aulas — duas de história, uma de gramática —
passam rápido. Eu observo Martino por tanto tempo que decoro a ordem das
pintinhas na nuca dele. São três. Duas mais embaixo e uma em cima, quase
no centro. Dá pra fazer o desenho de um triângulo, se juntar os pontos. O
cabelo dele está crescendo, quase tapando a pintinha mais de cima.
No intervalo entre as aulas, eu vou primeiro ao banheiro, porque é
quando há menos garotas ali.
Não gosto quando muitas garotas estão juntas. Elas falam alto demais
e me trazem um sentimento de estranheza. Talvez seja assim que Martino
tenha se sentido quando entrou na sala.
Eu caminho em direção à biblioteca. É onde sempre passo a maior
parte do tempo do intervalo. É silencioso e quase ninguém vai ali. Consigo
ficar apenas eu, sem a companhia de quem eu não quero — que é
basicamente todas as pessoas da escola.
Normalmente, quando estou perto dos meus colegas de classe, pareço
ser de outro planeta. É assim com as pessoas no geral. Me sinto um
alienígena em minha própria casa.
Há quase dois anos em que sento na mesma mesa, no fundo da
biblioteca, bem perto da estante de poesias. Ninguém senta ali. É distante
demais e ninguém se importa com poesia.
Eu mordo a parte de dentro da minha boca quando o vejo ali, sozinho.
A intérprete provavelmente está no próprio horário de intervalo. Deve
ser cansativo passar tanto tempo interpretando LIBRAS.
Martino não me vê. Não inicialmente, ao menos. Ele está com a
cabeça abaixada, lendo algum livro que não consigo ver a capa dali.
Não o incomode. Ele está sozinho. Talvez ele só queira ficar sozinho,
assim como você.
Estou andando até Martino antes que eu possa realmente pensar no
que estou fazendo. Meu corpo estremece. Uma sensação esquisita. Tiro uma
das duas barrinhas de chocolate de banana do bolso da minha calça. É todo o
meu lanche.
Deslizo uma das barrinhas na direção de Martino. O chocolate bate na
ponta do livro e logo em seguida ele levanta o rosto, confuso.
Levanto minhas mãos para perguntar.
“Você gosta de chocolate de banana?”
A primeira reação de Martino é surpresa. Ele apenas concorda com a
cabeça.
“Posso me sentar com você?” pergunto.
Ele concorda com a cabeça novamente.
Quando me sento e tiro a minha própria barrinha de chocolate do
bolso, ele dá um pequeno sorriso. Faz o sinal de “obrigado” com as mãos
antes de começar a comer.
“A maioria das pessoas não gosta de chocolate de banana” eu digo,
mastigando.
“É o meu favorito.”
“O meu também.”
“Qual o seu nome?”
Eu dou a última mordida no meu chocolate e mastigo devagar antes
de responder.
“Não gosto do meu nome.”
Ele pisca duas vezes, provavelmente pensando Nossa, que tipo de
pessoa se recusa a dizer o próprio nome? então pergunta: “Como devo te
chamar?”
Eu penso por um instante. Soletro cada letra de Capitão América
porque não sei qual é o sinal que devo usar.
Martino ri e me mostra qual é o sinal para Capitão América.
“Eu prefiro o Thor” ele diz e eu estou feliz que ele não me julga por
não querer dizer meu nome “Mas o Capitão é bem legal também”
“O Thor é ótimo, mas os filmes dele são péssimos”
“O terceiro filme do Capitão é que é péssimo”
“Eu preciso concordar com você nisso”
Martino dá um pequeno sorriso. O sorriso dele é lindo. Ele tem uma
pintinha perto do lábio, um pouco abaixo do nariz.
“Você é a única garota que falou comigo até agora” ele fala “Na
verdade, você é a única pessoa que falou comigo até agora. Nenhum dos
nossos colegas quis chegar perto de mim”
“Acho que ninguém além de mim realmente sabe LIBRAS na nossa
sala”
“Provavelmente. Como você sabe?”
“Minha mãe é surda”
“Legal. A minha também. Temos uma coisa em comum. Eu coloquei
meu celular pra vibrar no horário do fim do intervalo. Ele está vibrando agora
no meu bolso. O sinal já tocou?”
“Ainda não, mas a gente deveria ir descendo pra aula já. O professor
de química odeia atrasos”.
Nós dois voltamos juntos para a aula, lado a lado.
Antes de entrarmos para a sala, ele me cutuca para chamar minha
atenção e fala:
“Muito obrigado pelo chocolate. É meu favorito de verdade. Nunca
achei que você encontrar alguém que gosta de chocolate de banana também”
II
No segundo final de semana depois da nossa primeira conversa,
Martino vai até a minha casa, na tarde de um sábado.
Eu compro uma caixa de chocolate de banana só para nós dois.
Comemos tudo na frente da TV, onde um dos filmes do Thor está rodando.
Com legenda, claro. Martino está convencido de que eu não assisti os filmes
do jeito certo. Eu estou convencido de que ele gosta demais do Thor pra
reconhecer que os filmes dele são ruins.
Martino continua me chamando de Capitão América, ou às vezes só
de Capitão, ou de Cap, nas nossas conversas pela internet, mesmo que, nesse
ponto, ele já saiba qual é o nome que as pessoas me chamam. Ele sabe ler
lábios razoavelmente bem, ele me contou, então com certeza já leu os lábios
de alguém quando estava me chamando. Martino também viu minha mãe
usando o meu sinal para se referir a mim, mas ele continua a usar o sinal de
Capitão quando quer dizer meu nome. Isso me deixa incrivelmente feliz. Eu
nem ao menos sei exatamente o porquê.
Eu misturo chocolate de banana com pipoca salgada. Ele acha nojento
no começo, mas depois experimenta e acha muito bom. Quando o filme
acaba, eu digo que continuo achando péssimo. Ele fala que eu não tenho bom
gosto e depois diz que nós deveríamos ir juntos na estréia do terceiro filme do
Thor.
Eu concordo, mesmo que o filme só vá estrear dali oito meses. Será
que nós vamos ser amigos até lá? Eu o conheço há apenas duas semanas.
Martino está gesticulando para mim, no meio de um discurso tentando
me convencer de que Thor é um ótimo personagem, quando alguém bate na
porta entreaberta do meu quarto.
“Sua mãe está aqui” minha mãe diz, com as mãos, para Martino.
Meia hora depois eu e Martino estamos na cozinha de minha casa,
comendo torta de limão que a mãe dele trouxe para gente. Nossas mães
conversam em um ritmo frenético, com gestos rápidos. A mãe de Martino ri
alto demais. Acho que ela talvez não tenha noção do quão barulhenta é.
Martino me contou que seu único irmão também é surdo e seu pai tem baixa
audição, então talvez não tenha ninguém para avisar a mulher de como ela ri
alto.
Eu pego mais um pedaço de torta para mim quando Martino dá uma
pausa de seu discurso sobre como o próximo filme do Thor será ótimo. Ele
está realmente empenhado nisso.
Meu pai aparece na cozinha quando eu dou a primeira garfada do meu
quarto pedaço.
— Uau. — ele diz. — Quanta gente nessa cozinha.
— E eu sou a única pessoa que pode te escutar claramente. — eu falo.
Ele se apresenta para todos, na língua de sinais, e Martino pega mais
torta para si mesmo antes de voltar a me falar sobre Thor.
Apesar de tudo, eu acho amável a forma como ele gesticula.
III
Quando o terceiro trailer de Thor: Ragnarok sai, está frio.
Martino e eu estamos em seu quarto. Eu feito uma bolinha em um
cobertor azul marinho e ele todo enrolado em um edredom branco.
Ele segura o celular com uma das mãos para que nós dois possamos
assistir ao vídeo. É recente, não tem nenhuma legenda ainda, em nenhum
idioma, então ele para o vídeo de cinco em cinco segundos para que eu posso
interpretar as falas em língua de sinais para ele.
“Eu falei” ele diz, assim que termino meu breve momento de
intérprete “Esse filme vai ser ótimo”
“Depois desse trailer eu concordo com você. Finalmente Thor vai ter
um filme decente”
Martino dá um sorriso de vitória.
Eu passei a chamar ele de Thor, um tempo atrás. Se ele me chama de
Capitão, nada mais justo do que o chamar pelo nome do herói favorito dele
também.
“Você ainda vai na estréia comigo?” ele pergunta.
“Óbvio” respondo “Mas antes, isso” aponto para os dois livros de
história em cima da cama dele. Precisamos fazer um trabalho para a escola,
juntos.
Martino suspira, nada animado. Totalmente o contrário de mim,
óbvio. Eu gosto demais de história para não me empolgar com esse trabalho.
“Você quer um chá antes?” ele pergunta “Pra aquecer. Está muito
frio”
Dez minutos mais tarde, ele volta para o quarto com uma xícara em
cada mão.
Se senta ao meu lado, no chão, me entrega uma das xícaras e pega o
próprio livro de história.
Quando dou o primeiro gole, não consigo não pensar que chá
camomila e Martino combinam perfeitamente.
IV
Nós dois saímos da sessão do cinema da mesma forma como
entramos: juntos.
Martino está muito mais animado que eu, embora eu também esteja.
Ele fala muito, mas é ruim andar ao mesmo tempo em que olho para suas
mãos, então nos sentamos na praça de alimentação e eu tomo um milkshake
enquanto ele fala tudo o que gostou do filme, o que é muita coisa.
Ele deixou o cabelo crescer nos últimos meses. De algum jeito, acho
isso muito bonito. Meu cabelo é maior que o dele, mas queria que não fosse
assim. Queria cortar curtíssimo. Queria ter tanto cabelo quanto Martino tinha
quando nos conhecemos: acima da nuca.
Eu tento dizer o que gostei e não gostei no filme, mas Martino me
atropela nas palavras. A pessoas ficariam surpresas em saber o quanto um
surdo pode falar.
Um grupo de adolescentes sentados atrás dele olha estranho para nós
dois. Um deles faz gestos incoerentes e exagerados com as mãos, em uma
imitação ridícula da língua de sinais. Fico feliz que Martino não veja isso.
Minha mãe odeia quando esse tipo de coisa acontece, imagino que Martino
também odeie. Não quero que ele passe por isso.
O chamo para ir para casa porque estou desconfortável com aquele
garoto zombando da maneira como eu e Martino nos comunicamos.
Se eu tivesse coragem, bateria nele. Bateria em todas as pessoas
estúpidas do mundo. Em todos que são babacas e sabem que estão sendo
babacas.
É sábado a noite e a minha casa é muito mais perto do cinema do que
a dele, então ele dorme no meu quarto, em um colchão no chão. A porta
aberta, obviamente — regra do meu pai, que queria que Martino dormisse no
sofá da sala, mas que minha mãe acabou dizendo que não era necessário.
Antes de eu cair no sono, Martino tira da mochila um pequeno pacote
com chá de camomila. Prepara duas xícaras, uma para mim e outra para ele.
Ele sempre toma chá de camomila antes de dormir.
Enquanto Martino bebe da xícara, eu finalmente tenho a oportunidade
de dizer tudo o que gostei do filme. Ele concorda comigo em quase tudo. Nós
dois combinamos de ver outro filme no cinema logo.
Adormeço com gosto de camomila na boca, porque esqueço de
escovar os dentes.
V
Apenas dias antes das aulas do segundo ano começar, eu conto para
Martino.
“Quero cortar o cabelo”
Ele me olha, não muito surpreso, mas levanta as sobrancelhas.
Estamos sentados no chão, tomando sorvete, no quarto dele, assistindo um
filme ruim de terror dos anos 70.
“Eu gosto do seu cabelo assim” Martino diz.
“Mas eu não gosto”
“Como quer cortar?”
Eu pego meu celular e mostro para ele uma imagem que tenho salva
há meses.
“É um corte masculino” é a reação dele.
“E daí?” é a minha resposta.
Ele volta a atenção para o pote de sorvete em sua frente. Demora um
pouco para dizer “Acho que ficaria muito bom em você. Acho que qualquer
corte de cabelo ficaria muito bom em você”
Essa é a minha motivação.
Duas semanas mais tarde, eu vou ao cabeleireiro. Não aviso ninguém.
Apenas vou. Só eu.
Sinto vontade de contar para alguém, mas reprimo isso. Por mais de
uma vez penso que estou fazendo algo de errado, quando claramente não
estou.
Mas por que eu me sinto daquela forma?
Uma quadra antes do salão do cabeleireiro, eu paro na esquina e me
pergunto se estou enlouquecendo. O que é que eu realmente estou fazendo?
O que eu quero de verdade com isso?
Penso em voltar para casa, mas, mesmo assim, vou até o fim.
É o que eu quero, mesmo que eu não tenha respostas claras.
Mais tarde, quando olho para o espelho, me sinto melhor do que
jamais senti.
Eu sorrio quando lembro qual é a minha aparência agora. Sorrio
quando toco na nuca e sinto apenas a pele, sem fios de cabelo ali.
Assim que chego em casa, minha mãe pergunta o que aconteceu.
Minhas mãos travam um pouco, mas digo “Nada, eu só quis cortar”
— Você está parecendo um menino. — é o que meu pai diz, logo
depois, mas não parece achar nada de errado nisso. É apenas um comentário
dele. É apenas ele ditando um fato.
Minha mãe passa o dia todo me olhando estranho. Finjo que não
percebo. Finjo que não há problema algum.
Quando deito na cama à noite, um sentimento inusitado toma conta de
mim.
Estou feliz com meu cabelo, mesmo que eu saiba que, em teoria, é
algo fútil. É apenas a minha aparência.
Mas não é o suficiente.
O que é que eu quero?
VI
O meu segundo ano no ensino médio começa um pouco estranho.
Já era costume para mim que nenhum dos meus colegas prestasse
atenção de verdade em mim, exceto Martino. Mas, nesse ano, algumas
pessoas estão me olhando.
Em uma manhã, ouço alguém me chamar de sapatão. É pelo meu
cabelo, eu sei. É estúpido.
Nenhuma outra garota na minha turma tem o cabelo curto.
Esse pensamento me desagrada.
“Não dê atenção para eles” Martino me diz, quando reclamo disso
com ele.
“Isso é chato” eu falo “Por que estão concluindo isso só pela minha
aparência?”
“É o que as pessoas fazem”
“Eu queria que não fizessem”
“Todo dia alguém conclue que eu sou incapaz de fazer algo só porque
sou surdo. Como se a minha surdez me tornasse incapaz de fazer qualquer
coisa. É o que as pessoas fazem, concluem coisas. E na maioria das vezes
estão erradas”
Eu fico em silêncio. Martino está certo. Encaro meus pés. Nós dois
vamos à biblioteca em todo intervalo de aula, esse não é diferente.
Martino está me ajudando a procurar um livro de história sobre o
Egito Antigo. A bibliotecária disse que ele estava por ali. Não é para nenhum
trabalho nem nada, apenas quero saber mais sobre essa parte da humanidade.
Martino me chama de nerd às vezes.
Em pé em frente à uma das estantes, eu toco a capa amarelada de um
dos livros com a ponta dos dedos, enquanto penso.
Se pudesse, iria para um lugar que ninguém mais me conhece. Apenas
eu e todos os livros do mundo. Seria o lugar perfeito. Um lugar onde não há
ninguém para dizer coisas sobre mim. Eu poderia me virar muito bem sem a
ajuda de ninguém.
Martino me cutuca para que eu olhe para ele.
“Ou eles estão certos?”
Eu não entendo a pergunta dele.
“Certos sobre o quê?”
Ele morde o lábio, hesitante, parecendo procurar as palavras certas.
Ou, no caso, os sinais certos.
“Eles estão certos em dizer que você é lésbica?”
Eu faço o sinal de “não” muito rápido, duas vezes.
Tenho certeza que não sou lésbica.
Martino se apressa a dizer “Porque eu não teria problema nenhum se
você fosse. Só queria que soubesse”
“Mas eu não sou” eu digo “Mesmo assim, sempre bom saber que eu
teria seu apoio”
“Você tem sempre meu apoio”
“Meloso” eu brinco.
Ele ri, meio nervoso, mas ainda assim ri. A risada dele é gostosa.
Me faz esquecer que coisas ruins existem.
Martino encontra o livro que quero apenas alguns minutos antes de o
sinal tocar e nós dois voltarmos para a sala de aula juntos, como sempre
fazemos.
VII
Enquanto eu copio os exercícios de seu trabalho da escola, Martino
revê um filme antigo de super herói, pelo notebook, deitado na própria cama.
Eu, no chão, com o caderno apoiado nas minhas pernas, encaro
aquelas contas de física e tento entender alguma coisa. Pra mim não é nada
além de vários números e letras sem sentido. Decido apenas copiar tudo o
que Martino fez porque preciso de nota e confio nele o suficiente pra isso.
Martino é inteligente demais. Às vezes eu o invejo. Consegue fazer
qualquer conta e resolver qualquer equação de química antes mesmo que eu
termine de ler a questão. Nós sempre fazemos as atividades em dupla. Eu
nunca ajudo em nada que envolva números ou elementos químicos, mas ele
não se importa em fazer tudo sozinho. Na verdade, acho que até gosta. Parece
gostar, principalmente, de como as pessoas se surpreendem em saber que ele
é muito bom em química e física.
A única coisa que me distraí do que estou fazendo é o som do irmão
mais velho de Martino, o Luigi, na cozinha.
Luigi está tentando fazer um bolo de comemoração para o dia das
mães. Ele quer surpreender a mãe.
Obviamente, Luigi não tem muita noção do barulho que faz, assim
como Martino ou a mãe dos dois. Ele está batendo as panelas toda hora, o que
me distraí um pouco. Luigi também colocou no celular uma música um
pouco alta. É um rap muito antigo. Ele diz que gosta de sentir as vibrações
das músicas e o rap tem as melhores vibrações. Eu precisei pedir para que ele
abaixasse um pouco o volume, mas não adiantou muito. Continuo a me
distrair.
Luigi fez mais uma de suas provocações assim que me viu. Ele
sempre faz piadinhas sugestivas quando vê eu e Martino sozinhos. Para ele,
eu sou uma menina e Martino é um menino e o sistema heteronormativo é
bem claro sobre não existir amizade entre homens e mulheres.
A lembrança disso me faz corar um pouco.
Me sinto besta.
Não gosto das provocações de Luigi. Sempre me sinto uma garota
bobinha atrás de um namorado. A parte de ser uma garota bobinha é o que
mais me incomoda.
Queria poder nascer de novo. Queria poder dar restart na minha vida.
Quando escrevo o último número da última conta do trabalho, minhas
mão direita está doendo. Massageio o pulso enquanto me deito ao lado de
Martino e ligo o som do computador.
Ele está vendo algum dos filmes dos X-Men, um dos mais antigos.
Antes que eu consiga identificar qual filme exatamente é, Martino dá um
pause na tela. A imagem do Magneto nos encara.
Eu olho para meu amigo, mas Martino levanta da cama e coloca o
computador de lado. Ele fica em pé, bem em minha frente. Não olha
exatamente para mim. Coça a sobrancelha, estala um dos dedos.
Me sento mais na beirada da cama para dar um chute de leve em sua
canela. Isso o faz olhar para mim.
“O que foi?” eu pergunto.
Martino parece… Nervoso? Ansioso? Envergonhado? Uma mistura
dos três?
“O que aconteceu?” pergunto de novo.
Martino coça a sobrancelha mais uma vez. É uma coisa que ele faz
quando está nervoso, eu tenho notado.
Ele move as mãos de uma maneira hesitante.
“Preciso te contar uma coisa” diz.
Fico em silêncio, sem me mover, esperando que continue.
Como ele não faz nada além de me encarar, preciso o motivar.
“Tudo bem” falo “Pode me contar qualquer coisa”
Ele dá um pequeno sorriso, mas ainda parece nervoso.
Muito nervoso.
Quando eu acho que ele vai continuar sem dizer nada, finalmente diz.
“Eu sou gay”
Ah.
Eu engulo em seco.
Uma coisa puxa meu estômago.
Eu não sei o que é.
Eu aperto minhas duas mãos no lençol da cama.
Eu sou gay.
Eu sei o que isso significa.
Quero dizer, não é bem como se eu não soubesse.
Nós somos melhores amigos.
Seria difícil eu não notar.
Ele nunca falou de garota nenhuma comigo.
Não que só isso seja um indicativo.
Mas…
Eu já tinha notado.
Pequenos detalhes, pequenas coisas.
Eu só…
Martino é gay.
Martino está me olhando, nervoso, esperando por uma reação.
Eu dou uma pequena risada.
Sei como aquilo parece pra ele.
Ele nunca vai saber como eu me sinto.
Nunca.
“Eu sei” eu falo “Eu já sabia. Você não precisava me contar”
Ele parece aliviado e surpreso ao mesmo tempo. Um sorriso aparece
em seus lábios.
“Como você sabia?”
“Eu só notei as coisas”
“Que coisas?”
Eu suspiro.
“Pequenas coisas” respondo “Tipo você olhando pro professor de
filosofia ao invés de prestar atenção na sua intérprete”
Ele dá um chute na minha canela, levemente envergonhado, mas
ainda sorrindo.
“Tudo bem pra você então?” Martino pergunta “Isso não vai mudar
nada entre a gente?”
“Por que mudaria? Você continua sendo você”
Ele se senta ao meu lado, com seu ombro encostando no meu.
“Obrigado” ele diz “Você é a melhor amiga que eu poderia ter”
Engulo em seco de novo.
Essa frase toda me dá náuseas por vários motivos.
Nós voltamos a assistir ao filme, mas não consigo prestar atenção.
Sinto que estou longe de Martino, mesmo que ele esteja bem do meu
lado, rindo de qualquer coisa sobre o filme. A risada dele, assim como da
mãe, é muito alta. Eu nunca tive coragem de dizer para ele como sua risada é
barulhenta. Eu gosto demais do som que ele faz quando acha algo engraçado
para correr o risco de nunca mais ouvir isso.
Eu deveria contar para Martino como me sinto?
Mas… Como exatamente eu me sinto?
VIII
Em uma tarde, com a casa silenciosa, eu encaro a árvore de natal por
tempo demais. Meu pai e eu montamos ela.
— Você está agindo de um jeito estranho ultimamente. — ele
comentou enquanto pendurava uma bolinha vermelha na árvore.
— Estranho como? — eu perguntei.
— Não sei. Parou de usar a maioria das suas roupas. Agora só usa
coisas largas. E continua com esse cabelo parecendo um menino.
— Por que isso é estranho?
Ele apenas deu de ombros.
Acho que meu pai estava certo quando disse isso.
Com essa memória na cabeça, eu vou para meu quarto.
Mesmo que só eu use aquele computador, abro a aba anônima para
fazer minhas pesquisas.
Quase duas horas depois, quando ouço o som de minha mãe chegando
do trabalho, fecho todas as páginas abertas e limpo o histórico por pura
paranóia. Desligo o computador e me sento na cadeira em frente à
escrivaninha. Finjo estar estudando história.
Encaro as palavras e demoro um pouco para perceber que o livro está
de ponta cabeça.
Eu o viro para o sentido certo e percebo que aquele é, na verdade, o
meu livro de literatura.
Passo a ponta do dedo em cima de uma fotografia do Fernando
Pessoa.
Minha mãe aparece logo em seguida, me chamando para ajudar ela
com a lasanha para o jantar.
Meu pai chega enquanto nós estamos montando a lasanha. Ele dá um
beijo na bochecha de minha mãe e diz que eu deveria colocar mais queijo.
Minha mãe diz que está bom de queijo. Meu pai pega o queijo em fatias de
cima da mesa e coloca mais no meio da lasanha enquanto minha mãe tenta
bater nele com uma colher.
Mais tarde, enquanto eu janto, Martino me manda uma mensagem.
Meu celular vibra no meu bolso. Meu pai diz que não aceita celulares na
mesa.
Tudo está normal.
Exceto eu.
IX
Eu me sinto completamente fora de sintonia de todo mundo.
É como se todo mundo dissesse que eu sou uma coisa e eu não sei
como avisar que eu não sou isso.
Não consigo me concentrar na escola.
Não consigo nem mesmo me concentrar nos filmes quando eu e
Martino vamos ao cinema.
Me sinto uma farsa.
Martino diz que está preocupado comigo.
Eu digo que estou bem.
Mas continuo a deletar o meu histórico de buscas.
Continuo a não querer ser isso que eu tenho sido.
Continuo a não me sentir eu.
X
Talvez seja o ano novo que está chegando.
Talvez seja o clima de mudanças que o final do ano sempre me trás.
Talvez seja porque eu não aguento mais.
Eu coloquei na minha cabeça que preciso contar para Martino antes
que dezembro acabe.
Faltam dois dias para dezembro acabar.
O quarto dele sempre me pareceu um lugar confortável,
aconchegante. Eu conheço bem. Os pôsteres de filmes antigos, a luminária ao
lado da cama, o lençol azul — a cor favorita dele.
Mas, no momento, é um lugar repressivo para mim.
Eu não sei como contar.
Então só conto de uma vez.
Meu dedos parecem robóticos quando eu os movo e digo algo que
estive ensaiando há muito tempo.
“Eu sou homem”
Sentado na cama, com as pernas cruzadas, Martino me encara.
Ele ergue as sobrancelhas, confuso.
“O que você quer dizer com isso?” pergunta.
Eu pisco. Meus olhos estão enchendo de lágrimas.
“Significa que eu sou trans” eu digo “Significa que eu não sou mulher
e nunca fui”
Quase não consigo terminar de falar e sinto seus braços me puxando
para um abraço. Eu estou chorando. Chorando muito. Eu apoio o rosto na
curva de seu pescoço e não digo nada.
Todos aqueles textos que li na internet, todos aqueles sites com
depoimentos de pessoas trans que encontrei, todos eles me ajudaram a me
descobrir.
Eu sei quem eu sou.
Só não sei como mostrar isso para o mundo.
Sinto medo.
O abraço de Martino me acalma.
Eu me afasto um pouco dele, sem o encarar.
Ele seca as minhas bochechas o dedo e pede se eu estou bem.
Apenas confirmo com um aceno.
Ele me puxa para a cozinha, dizendo que preciso de um chá de
camomila para me acalmar. Mesmo que esteja calor demais para isso, eu
aceito.
Martino parece um pouco nervoso enquanto coloca água na chaleira e
acende o fogão.
Eu observo cada movimento dele, enquanto algumas poucas lágrimas
continuam a escorrer no meu rosto. Eu observo como ele parece um pouco
perdido e forçando uma concentração exagerada no ato de esquentar água.
Ele pega duas xícaras no armário e não me encara até que o chá esteja
completamente pronto.
Se senta bem em minha frente, na mesa da cozinha, entregando uma
das xícaras para mim. Está quente demais.
Martino respira fundo.
“Então você não é uma garota” ele diz. Eu confirmo timidamente.
“Caramba, e eu achei que era chocante eu ser gay”
Não consigo não dar uma risada alta.
Me sinto mais aliviado quando ele ri também.
“Você quer que eu te chame de ele agora?”
Eu comprimo os lábios em uma linha reta. Me sinto esquisito.
“Sim” eu digo.
“E você nunca gostou do seu nome por que é um nome de garota?”
“Sim”
“Por isso o negócio do Capitão América? Inteligente”
Eu seco mais uma das lágrimas. Não consigo parar de chorar.
“Como você descobriu?” ele pergunta.
“Não faz muito tempo” eu penso “Eu acho que sempre me senti mais
homem do que mulher, mas nunca soube explicar. Uns meses atrás eu
comecei a pesquisar sobre pessoas trans e entendi o que eu sinto”
“Meses? Você devia ter me contado antes”
“Eu não sabia como. E não é como se você tivesse me contado que é
gay assim que descobriu”
“Justo”
“E eu só tive certeza mesmo uns dias atrás”
“Então eu sou a primeira pessoa que você conta?”
“Pra quem mais eu contaria? Eu não quero contar para meus pais”
“Desse jeito parece que você não tem amigos”
“Cara, você é meu único amigo de verdade”
“E você é meu único amigo de verdade. Nós somos uns fracassados”
“Eu não diria assim”
Martino dá um gole no seu chá de camomila. Eu assopro minha
xícara.
“Você precisa de um novo nome” ele diz.
Eu já pensei nisso.
Devagar, soletro as letras com minhas mãos.
I-S-A-K.
Meu nome é Isak.
XI
Eu não sei dizer se me abrir para Martino tornou as coisas melhores
ou piores.
Todo mundo continua me chamando por pronomes femininos e me
tratando por um nome que não é o meu, exceto Martino.
Me sinto eu mesmo apenas quando estou com Martino.
Ele foi mais receptivo do que eu esperava. Até inventou um sinal para
meu novo nome, na língua de sinais. Disse que se eu tinha um novo nome em
português, eu devia ter um novo nome em LIBRAS também.
É o punho fechado, apenas com o dedinho para cima — o sinal da
letra I — formando um círculo bem na frente do coração.
Quando ele me mostrou, eu quase chorei, mas dessa vez por um
motivo bom.
Tenho chorado muito e geralmente é por motivos ruins.
Eu não me sinto eu mesmo na maior parte do tempo. Na escola é pior,
porque os professores fazem chamada e eu sou obrigado a responder por
outro nome na frente de todo mundo. Ao menos estou no último ano e isso
tudo vai acabar logo. É o que me alivia.
Espero que a faculdade seja muito melhor.
Quando estou conversando com alguém, não consigo me referir a
mim mesmo com pronomes femininos. Quando falo, procuro dizer palavras
que não definam gênero. É cansativo. Preciso ficar alerta na maior parte do
tempo.
A relação com meus pais parece ter piorado. Não quero contar para
eles, mas também não quero esconder. Não me sinto seguro para contar, ao
menos não agora. Não quero decepcionar eles.
Martino tenta me animar sempre. Diz que eu não sou o que as pessoas
dizem de mim.
Às vezes acho que ele está certo. Às vezes não tenho tanta certeza
assim.
Um dia, nós fomos juntos comprar algumas roupas novas para mim.
Saí da loja com duas novas camisetas masculinas e uma blusa de frio. Isso me
deixou muito feliz, de um jeito bobo. É estranho. Eu sei que são apenas
tecidos, mas aqueles tecidos me deixam muito mais confortáveis do que os
tecidos que sempre fui obrigado a comprar na sessão feminina.
Quando minha mãe viu minhas roupas novas, ela perguntou se era
aquilo que eu queria mesmo. Quando eu disse que sim, ela torceu o nariz e
disse que eu deveria usar mais vestidos. Eu decidi ignorar isso.
Minha mãe entrou em uma missão de tentar me fazer usar vestidos e
coisas que ela considera mais adequadas. Sempre que passamos na frente de
uma loja, ela diz que alguma blusa ficaria linda em mim.
Eu nunca gosto das roupas que ela escolhe para mim.
Fico pensando o que ela diria se soubesse que na verdade tem um
filho e não uma filha.
Martino diz que eu deveria contar para meus pais. Talvez ele ache que
seja fácil para mim porque seus pais receberam muito bem a notícia de ter um
filho gay, mas não é nada fácil. Isso é muito diferente.
XII
No começo de junho, em uma noite de sexta-feira, eu estou todo
enrolado em um dos cobertores azuis de Martino quando ele me trás uma
xícara de chá de camomila.
O computador em nossa frente está com várias páginas de várias
universidades diferentes aberta.
“Você deveria fazer história” Martino diz pela quinta vez só naquele
dia.
Eu bebo um gole do chá, me aquecendo.
Martino deixa a xícara dele na cômoda ao lado da cama enquanto
continua a pesquisar sobre engenharia química. Ele está praticamente certo
sobre o curso que quer. Eu não.
Gosto de história, mas o que vou fazer depois de me formar? Não sei
se sirvo para dar aulas.
Eu tomo todo o meu chá enquanto vejo Martino ler a grade curricular
de engenharia química no site de alguma universidade.
Ele deixou o cabelo crescer, cortando apenas as pontas às vezes. Não
consigo mais ver nenhuma de suas pintinhas na nuca. O cabelo está passando
do ombro, com pequenos cachinhos se formando. Eu gosto da cor do cabelo
dele, é um castanho escuro muito bonito.
Ainda estou perdido, olhando para os cachinhos dele quando ele
arrasta o computador na minha direção e me faz encarar a tela.
Ele se vira para mim.
“Se você fizer história” diz “Essa universidade tem história e
engenharia no mesmo campus”
Olho para ele.
Eu e Martino estudando no mesmo campus?
“É em outra cidade” eu digo.
“Nós podemos morar juntos”
Eu pego o computador para mim e leio toda a página do site que fala
sobre o curso de história. Martino bebe chá de camomila e me encara
enquanto eu analiso a grade curricular.
Sinto que ele está sorrindo para mim.
Eu gosto desses momentos entre a gente.
XIII
É no começo de uma tarde de agosto que eu recebo a notícia.
Sentado na cadeira do meu quarto, com um livro no meu colo e uma
xícara de café na mão, meu celular vibra.
Eu sei que é Martino, porque ele é a única pessoa que me manda
mensagens.
“Meu pai morreu”
Leio a mensagem três vezes antes de entender realmente o que
significa.
Horas mais tarde eu estou ao lado de Martino, em uma capela.
A maior parte da família de Martino se comunica apenas com língua
de sinais. Perco as contas de quantas vezes vejo as pessoas explicando aquele
acidente de carro usando as mãos.
Martino não fala muito. Na verdade, ele mal se move. Está sentado ao
meu lado, nossos ombros se tocando. Não se afasta de mim em momento
algum. Acho que é só disso que ele precisa. Às vezes o melhor é não fazer
nada. Eu apenas fico do lado dele.
Meus pais estão aqui. Minha mãe pede várias vezes para Martino
como ele está e se precisa de algo. Meu pai precisa parar ela e dizer que é
melhor deixar Martino em paz nesse momento.
Meu pai sempre sabe o que fazer.
Algumas das tias de Martino tentam conversar com ele. Uma delas,
que claramente tem baixa audição, não sabe LIBRAS e fala gritando. Martino
encara ela e eu sei como aquilo o estressa. Ele odeia precisar ler lábios. Por
mais que saiba ler muito bem, é muito difícil e geralmente não entende
totalmente o que é que a pessoa está falando, então eu fico aliviado quando a
mulher vai embora e o deixa em paz.
É estranho estar ali.
Do outro lado da capela, eu vejo Luigi e sua mãe, abraçados.
Martino me cutuca.
Eu me viro para ele.
“A gente pode ir para sua casa?”
Eu o encaro, sem entender.
“Eu não quero ficar aqui” ele diz “Por favor”
Eu preciso pedir as chaves de casa para meu pai. Ele parece não
concordar com isso, mas não diz nada. Martino diz para a mãe que só quer
ficar um pouco longe dali.
Nós dois caminhamos lado a lado até a minha casa. Martino encara o
chão o tempo todo.
Me pergunto se eu deveria dizer algo, mas não sei o que poderia
melhorar a situação, então não digo nada.
Assim que chegamos, o gatinho que minha mãe adotou da rua mia
para nossa direção. Deitado no sofá, deixando pêlos brancos por todo canto.
Martino vai até o gatinho e o segura no colo.
Eu tranco a porta e vou até os dois.
“Você quer que eu faça chá de camomila?”
Martino olha para mim. Eu não entendo o que passa em seus olhos,
mas ele confirma.
Enquanto esquento a água, ele brinca com o gatinho.
Se senta em uma das cadeiras da cozinha, bem ao meu lado.
Nós dois bebemos chá em silêncio.
Eu pergunto se ele quer voltar ao velório, ele diz que não, então nós
dois dormimos juntos, na minha cama. Eu ouço seu choro baixinho no meio
da noite, sufocado no travesseiro, mas finjo que estou dormindo.
XIV
Martino e eu estamos juntos quando o resultado do vestibular sai.
Eu passei em quarto lugar em história. Ele, em oitavo em engenharia
química.
Minha mãe parece mais empolgada que eu, mesmo que tenha dito que
eu tenha potencial para fazer um curso mais vantajoso, o que eu não entendo
muito bem.
Nossas famílias fazem, juntas, uma festa de comemoração. Eu como
tanta bolo de chocolate e torta de limão como nunca comi. Até Luigi me
parabeniza, dizendo que sempre soube que eu era nerd.
Meu pai parece tão feliz por mim quanto por Martino. Ele chama
Martino de filho e tudo, o que eu acho bem fofo.
No fim do dia, percebo como estou nervoso com a faculdade. Mal
consigo acreditar que consegui terminar o ensino médio, quanto mais
consegui passar na faculdade.
Martino tenta me animar dizendo que eu posso usar o meu nome de
verdade na universidade.
“É em outra cidade” ele lembra “Ninguém sabe quem você é”
Aquilo me deixa feliz.
Nós nos sentamos lado a lado, com Martino brincando com o gatinho
— que continua sem ter nome porque meus pais não concordam com
nenhum, então nós o chamamos de gatinho mesmo — e eu comendo mais
torta de limão.
“Nós vamos mesmo morar juntos?” eu pergunto.
Ele sorri.
“Vamos procurar um apartamento”
Eu sorrio de volta.
Estou com mais um pedaço de torta na boca quando ele fala
novamente.
“Queria que meu pai estivesse aqui”
“Ele está orgulhoso de você” eu afirmo “Seja onde ele estiver”
XV
Meu pai não gosta muito de eu e Martino morando juntos.
— Você deveria dividir apartamento com outras garotas.
Mesmo assim, no fim de janeiro nós fazemos nossa mudança.
É um apartamento pequeno, de dois quartos. É tão pequeno que quase
não cabe Martino e eu na cozinha ao mesmo tempo. Mas é bonito.
Tem uma pilha de livros meus no meu quarto. Minhas roupas estão
dentro de caixas porque meu guarda-roupas não cabe ali. O armário da
cozinha está cheio de camomila. Martino trouxe alguns de seus pôsteres e
colou na parede de seu quarto. A geladeira é bamba e treme toda vez que eu a
abro. Tem um tapete felpudo na sala. Eu e Martinos o compramos juntos, em
uma loja de coisas usadas. Ele é em um tom de bege claro, meio feio, e tem
uma mancha de vinho. Mas é nosso e é incrível.
Na primeira noite em que passamos juntos no nosso apartamento,
pedimos uma pizza para comemorar. E também porque estamos cansados
demais da mudança para fazer qualquer comida.
Sentados na mesa da cozinha, com uma fatia de pizza na m;ão,
decidimos que cada um lava a louça que sujar. A limpeza do chão fica uma
semana para cada um.
É um sentimento estranho e bom ter Martino tão perto de mim.
No dia seguinte, quando eu acordo, ele já está acordado, sentado no
chão da sala.
“Não consegui dormir” ele explica “Pensando demais”
“O que você está fazendo?” eu peço, mesmo que esteja óbvio.
Ele está pintando as unhas, com um esmalte preto.
“Eu sempre quis fazer isso” Martino explica “Mas nunca tive
coragem”
“Aposto que Luigi tem várias piadas sobre isso”
Martino torce o canto da boca em desgosto.
Eu tomo café na sala, olhando para ele e mexendo no celular.
Quando Martino termina de pintar as próprias unhas, ele se senta do
meu lado, em um dos puffs que sua mãe deu de presente para nós.
“Acho que tenho uma coisa pra te contar” eu falo.
Ele me olha, com as mãos levantadas para cima, para não estragar o
esmalte, provavelmente.
“Eu estive pensando na minha sexualidade” comento “E acho que sou
pansexual. Não, na verdade eu tenho certeza. Pensei muito nisso”
Martino reflete por um momento.
“Você tem energia de pansexual mesmo” ele diz, por fim.
Eu rio.
“O que é que isso significa?” pergunto.
Ele dá de ombros,.
“A gente devia comprar uma bandeira LGBTQ” Martino sugere “E
pendurar em algum lugar do apartamento”
“Não é má ideia”
“E você deveria ter uma bandeira pan. É azul, amarela e rosa. É tão
bonita”
“É linda. Eu deveria ter uma tatuagem dela”
“Pan e trans. Você ficou com as bandeiras mais bonitas. Eu só tenho a
bandeira do arco-irís”
“Bem, errado você não está. Que culpa eu tenho de ser perfeito?”
Martino mostra a língua para mim. Eu retribuo.
XVI
Engenharia química é do outro lado do campus, bem longe de
história. Além disso, o turno de Martino é de manhã e o meu à noite.
Mesmo depois de uma semana, eu ainda sinto falta de Martino
durante as aulas.
Não consegui fazer nenhuma amizade. Exceto, talvez, pela garota que
sempre senta ao meu lado, bem no canto da sala. Nós conversamos algumas
vezes, mas nada demais. O nome dela é Isabelle. Ela tem o cabelo curto
pintado de azul. As sobrancelhas dela também são azuis e ela está sempre
com a camiseta de alguma banda de punk rock que eu nunca nem ouvi falar.
Todo mundo na faculdade sabe que sou trans. Meio que não tem
como saber. Meu nome no sistema da universidade está Isak. É assim que
assino a lista de chamada. Falo sobre mim mesmo no masculino. As pessoas
perceberam isso no primeiro dia de aula, quando todo mundo se apresentou.
Ninguém comentou nada, mas eu vejo algumas pessoas olhando estranho
para mim ainda.
Minha aparência me agrada mais agora, mesmo que eu esteja mais
andrógino do que de fato masculino.
Isabella é a única com quem falo abertamente sobre isso.
— Você é trans, não é? — ela me pergunta, em uma das nossas
primeiras conversas.
— Sou.
— Você conhece a Samantha?
— Que Samantha?
— Ela está no terceiro ano de história. É trans também. Ela meio que
lidera o coletivo trans daqui. Ano passado tentaram impedir um garoto trans
de usar o banheiro masculino. O pessoal de biologia daqui é bem
conservador. Samantha armou um escândalo. Foi incrível.
Não consigo não pensar em como Samantha parece maravilhosa, só
de ouvir Isabelle falando sobre ela.
No fim, acabo conhecendo Samantha por acaso.
Isabella e eu estamos sentados em um dos bancos do corredor, no
intervalo entre duas aulas, quando uma garota passa entre a gente,
concentrada no celular.
Isabella grita “Samantha!” tão alto que eu quase me assusto. Assusta
Samantha também, mas ela vem em nossa direção mesmo assim.
— Esse é o garoto que eu te falei. — Isabella diz, apontando para
mim. — Isak.
Eu sorrio, meio envergonhado, me sentindo intimidado.
Samantha é baixinha, mas passa uma energia surreal. Ela tem o cabelo
loiro, cheio de cachinhos. As unhas, curtas, pintadas de azul. Está vestindo
saia de couro, meia arrastão e um coturno preto. Tem uma tatuagem de um
anjo no braço esquerdo e um batom vermelho nos lábios.
— Isak. — ela diz, para mim. — Bom te conhecer. Finalmente
alguém trans em história. Eu estou cansada de interagir com tantos cis. Por
que as pessoas trans sempre vão pra filosofia ou ciências sociais?
Samantha se senta ao meu lado. Diz que, se qualquer um for
transfóbico comigo, eu posso conversar com ela.
Eu me sinto cheio de energia ao lado dela. Nunca tinha realmente
conhecido alguém como eu tão perto assim. Me sinto encaixado em algum
lugar, finalmente.
Quando volto para o apartamento, Martino está no computador
assistindo algum filme e, claro, bebendo chá de camomila. É sempre
reconfortante o encontrar ali.
Conto para ele sobre Samantha. Conto para ele como a acho incrível.
“Humanas é tão diversificado” ele fala “Eu acho que não tem sequer
um gay cis padrão em engenharia” ele ri “Além de mim”
À noite, vou dormir pensando em Samantha.
Eu não estou sozinho.
XVII
Acabo encontrando Samantha mais vezes do que eu esperava.
Ela, Isabelle e eu temos várias conversas, sentados em algum dos
bancos espalhados pela universidade.
Descubro que Samantha divide um apartamento com outras três
garotas ali perto. Ela quer ser professora no futuro, assim como Isa.
Descubro, também, que foi Sam quem descoloriu e pintou as sobrancelhas de
Isa, em uma noite em que as duas estavam bêbadas.
Samantha ajuda Isa e eu com as provas e os trabalhos da faculdade.
Quando um professor passa algum texto que não entendemos, ela explica
rapidamente. É um anjo.
Na metade do semestre, eu já estou acostumado com a voz de
Samantha e todas as suas roupas de couro. Também estou acostumado com
os as músicas de bandas de rock antigo que Isabelle vive cantando.
Pela primeira vez, sinto que estou me encaixando em algum lugar.
É pensando nisso que abro a porta do apartamento naquela noite.
Passo pela cozinha e vou para a sala, que é onde a luz está acesa.
Eu espero encontrar Martino digitando algum trabalho, ou talvez
comendo pipoca enquanto assiste à algum filme de super herói.
Meu corpo todo trava.
Sentados em um dos puffs, Martino e um garoto que eu nunca vi na
minha vida estão se beijando.
Eu aperto a chave de casa com força contra a palma da minha mão.
Eles não me me notam ali. Estão ocupados demais.
Rápido, vou para meu quarto.
Sem pensar, bato a porta com força e desejo que eles percebam. Que
Martino saiba que eu estou ali. Que aquele garoto saiba que está na minha
casa beijando o meu amigo enquanto eu estou ali.
Jogo a mochila no chão, tiro o tênis e me sento na minha cama.
Me sinto frustrado. E com raiva. Não sei porquê.
Quero bater em alguma coisa. Ou em alguém. Provavelmente em mim
mesmo.
Busco o meu fone de ouvido no meio do lençol. Se Martino e aquele
garoto começarem a fazer sons além de beijos, eu não quero saber.
Deixo a música no último volume. Fecho os olhos e me deito.
Por que isso está acontecendo? Eu não deveria ficar feliz por
Martino?
“Tem um garoto na minha turma” Martino tinha me dito, semanas
atrás “Que é bissexual e acha o Thor o melhor Vingador. Acho que é o
destino”
Talvez seja esse o tal garoto. Não sei o nome dele. Não quis saber.
Quis fingir que ele não existia.
O que será que os dois estão fazendo lá na sala?
Eu não deveria me incomodar tanto com isso.
Alguém me cutuca nas costelas. Abro os olhos e enxergo Martino,
parecendo preocupado.
“Você está bem?” ele pergunta.
Eu me sento na cama.
“Quem é aquele garoto?”
Martino parece envergonhado.
“O bissexual da minha turma. Lembra?”
É claro que eu lembro.
“Você está bem?” ele pergunta de novo. “Chegou mais cedo”
“Você esperava que eu chegasse mais tarde?”
Acho que minha expressão me faz soar muito bravo. Martino levanta
as sobrancelhas.
“Eu tinha só uma prova hoje” eu falo “Terminei rápido”
Martino assente.
“Me desculpe” ele diz.
“Pelo quê?”
“Não sei. Você parece bravo”
“Eu não estou bravo. Você não vai voltar para o garoto?”
“Ele já foi”
Reprimo minha vontade de responder Ainda bem.
“Você está bravo por ele?” Martino pergunta.
“Por que eu estaria bravo por ele?”
“Eu não sei”
“Eu não estou bravo. Já falei. Você é bem grandinho pra beijar quem
quiser. Eu não me importo”
Martino levanta as sobrancelhas mais uma vez.
Suspiro.
“Desculpa” eu peço “Só estou estressado com a faculdade. Muitos
trabalhos. Não tem nada a ver com você. De qualquer jeito, bom te ver com
alguém. Você gosta dele?”
Martino dá uma risada.
“Não” ele responde. Graças a Deus “Ele só veio aqui pra gente
conversar sobre um projeto e me beijou do nada”
“Eu achei que você gostasse dele” falo “Eu gosto de uma pessoa, eu
acho”
Isso o deixa interessado.
“Quem?” pergunta.
Soletro o nome da Isabelle, porque ela não tem nenhum sinal.
Não sei porque digo que gosto dela. Eu apenas a acho atraente, nada
demais.
Mordo a parte de dentro da minha boca. Me sinto perdido em mim
mesmo.
“Isso é legal” Martino diz, mas ele não parece achar nada legal “Ela
parece ser uma boa garota” por algum motivo, sua expressão não diz isso.
Eu apenas assinto.
“Você quer um chá?” ele pergunta “Está meio frio”
“Eu quero, mas depois. Vou tomar banho primeiro”
Ele sai do meu quarto.
Eu me sinto em pedaços.
XVIII
O cabelo de Martino já está grande o suficiente para que ele o amarre
em um coque com facilidade. Martino fica ainda mais bonito de cabelo preso,
se é que isso pode ser possível.
Eu deveria estar lendo um artigo de história antiga, mas só consigo
prestar atenção nele. Sentado na outra cadeira da mesa da cozinha, com uma
maçã pela metade em uma mão e o celular na outra, Martino assiste um vídeo
no celular. Suas unhas estão pintadas de preto novamente, o esmalte todo
descascado. Eu gosto disso.
Pego um dos clipes de papel e jogo nele, para que olhe para mim.
“Como vai o Vitor?”
É estranho dizer o nome dele. Em minha cabeça, ele é Apenas o
garoto bissexual que estuda com Martino. E não Vitor, o garoto que Martino
beijou.
Martino coloca o celular e a maçã em cima da mesa para me
responder.
“Não sei” ele diz “Não tenho falado com ele. Acho que ele está
namorando um menino de filosofia”
Ah.
“Por que quer saber?” Martino pergunta.
Eu dou de ombros.
“Achei que gostasse dele” falo.
“Não gosto. Nunca falei que gostava” ele faz uma careta esquisita
“Falando nisso, Vitor me contou que algumas pessoas na nossa sala têm feito
piadas sobre mim, igual no ensino médio. Eu achei que seria diferente na
faculdade”
Eu respiro fundo. Também achei.
“Eu entendo” falo “Tem uma garota na minha turma que me chamou
de sapatão quando achou que eu não estava ouvindo”
“Tem gente que sai do ensino médio, mas o ensino médio não sai da
pessoa”
“As pessoas só gostam de ser um lixo mesmo, dentro ou fora do
ensino médio”
Martino concorda. Nós ficamos um minuto refletindo, tristes pela
falta de esperança na humanidade, até que ele volte a falar.
“Acho que gosto de alguém. E não é o Vitor”
Eu me curvo para frente. Sinto meu estômago revirar.
“Quem?”
Martino dá um sorriso enigmático.
“Não vou te contar”
Eu mostro a língua para ele, como uma criança. Ele devolve o gesto.
Volto a prestar atenção no artigo, sem querer insistir no assunto.
Não quero saber qual é o interesse amoroso de Martino.
Não agora que percebi que ele é o meu.
XIX
Eu ando muito distraído.
O fim do semestre está cada vez mais perto. Martino e eu planejamos
passar as férias do meio do ano na casa dos nossos pais. Vai ser estranho
voltar depois de meses.
Meus pais ligam toda semana para mim. Converso com eles por meia
hora, sempre. Mesmo assim, me sinto distante de lá. Aqui se tornou minha
casa. Martino se tornou minha casa.
Tenho pensado muito nele.
Quando não estou pensando em Martino, estou estudando. Preciso ler
tantos textos para as aulas que sinto que vou enlouquecer.
— Não deixe a faculdade acabar com sua saúde mental.
Samantha está vestindo suas roupas de sempre: saia e meia arrastão.
Dessa vez, ela está de jaqueta de couro. É divertido ver ela ao lado de
Isabelle, toda vestida de moletom.
— Eu não estou fazendo isso. — Isa responde.
Sentado no banco de sempre, eu me encolho no meu casaco de
moletom. Está muito frio. Ao mesmo tempo, Sam torce o nariz e dá uma
cheirada na própria jaqueta.
— Você está fedendo? — Isa pergunta. Agora suas sobrancelhas estão
rosa. O cabelo está roxo.
— Não. — Sam fala. — Essa jaqueta é do meu namorado. Acho que
ele andou fumando de novo. Tá fedendo.
— Que nojo. — eu digo. — Odeio o cheiro de cigarro.
— Eu também. — Sam se vira para mim. — E você também não
deixe a faculdade acabar com a sua saúde mental, tá?
— Eu não estou fazendo isso. — repito o que Isa disse.
— A sua saúde mental é sempre em primeiro lugar. — Samantha me
olha bem nos olhos. — Ok? Não esqueça disso.
Eu assinto.
— Como vai seu namorado? — Isa pergunta. Agradeço a mudança de
assunto. — Diga para ele parar de fumar.
— Bem. — Sam responde. — E eu digo. Sempre. Ele gosta de me
desobedecer.
Eu suspiro com a menção de namorado tantas vezes, mas acaba
saindo um som estranho da minha garganta, como um chiado. Isso faz
Samantha se virar para mim.
— O que foi? — ela pede.
— O que foi o quê? — eu solto.
— Isso aí. — ela responde. Aperta os olhos para mim. — O que você
tem contra meu namorado?
— Eu nem conheço seu namorado.
Isa dá uma risada.
— Ele está assim porque está apaixonado. — ela diz, para Sam.
— Eu não estou apaixonado. — reclamo.
— Tá sim.
— Não.
— Tá sim.
— De onde você tirou isso?
— Você está com cara de apaixonado.
— Como é cara de apaixonado?
— Cara de besta.
Samantha dá uma risada.
— Isso é verdade. — ela concorda.
Isa ri junto e se curva para frente:
— Ei, eu vou ir comprar alguma coisa na cantina pra comer. Querem
que eu pegue algo pra vocês?
Eu e Sam negamos, então ela sai, nos deixando sozinhos.
Eu respiro fundo. Samantha pega o celular, mas logo guarda no bolso
de novo.
— Como você contou para seu namorado que gostava dele?
Ela não precisa pensar para responder:
— Na verdade, eu meio que só joguei na cara dele. Por quê?
— Não sei. Não entendo como as pessoas fazem essas coisas.
— Essas coisas?
— É, sei lá, se declarar.
— Você está mesmo apaixonado.
Eu abro a boca, então fecho e abro de novo.
— Apaixonado é uma palavra forte.
— Hummm.
— Como ele reagiu depois de você jogar na cara dele?
— Ignorou o assunto por meses até dizer que gostava de mim
também.
— Uau.
— Sim. Foi difícil. Você pode só jogar na cara da pessoa também.
Vai que funciona.
— Esse é o seu conselho?
— Não, meu Deus, não faça nada do que eu digo. Eu sou péssima pra
dar conselhos.
Eu rio. Ela passa o braço atrás de mim e me puxa para perto, de um
jeito que me soa bem fraternal, embora ela seja só três anos mais velha.
— Mas quem sabe funcione. — diz. — Talvez só jogar na cara da
pessoa seja um ótimo método. O que você tem a perder?
— Uma amizade de anos? A única pessoa com quem me sinto
totalmente confortável no mundo? A oportunidade de não descobrir que ele
não quer nada comigo porque é gay e ainda me vê como uma garota? A
chance de eu não ficar triste em ser rejeitado?
— Eita. — ela dá uma risadinha. — Intenso.
Eu me aconchego nela.
— Queria ter sua coragem. — falo. — De só jogar na cara e não me
importar com a resposta.
— Ah, mas eu me importei com a resposta. Ou com a falta da
resposta. Por meses. Foi triste.
— Mas no fim deu tudo certo pra você.
— Vai dar certo um dia pra você também, Isak.
Eu não acredito tanto assim nisso, mas fico em silêncio.
XX
Eu estou embaixo de duas cobertas, com um livro nas mãos quando
Martino abre a porta do meu quarto. Ele abre primeiro uma frestinha e,
quando me vê ali, abre a porta toda.
“Preciso de sua ajuda para trocar a lâmpada da cozinha”
Eu solto o livro no meu colo para responder.
“Agora? Eu estou bem quentinho aqui”
“Eu preciso estudar e a mesa da cozinha é a melhor. Por favor”
Preciso reunir alguns segundos de coragem para sair debaixo das
cobertas. Com minhas meias de lã, sigo Martino até a cozinha.
Juntos, nós dois tiramos a mesa do meio do caminho. Ele pega uma
cadeira e sobe em cima dela. Segurando a cadeira para que ele não caia,
ilumino, com a lanterna do celular, a lâmpada para que ele consiga enxergar.
Depois, com a lâmpada nova nos iluminando, arrumamos tudo de
volta. A mesa da cozinha está uma bagunça, cheio de livros e canetas.
Eu paro ali, em pé, vestindo meu pijama azul com estampa de
peixinhos.
“Obrigado” Martino diz para mim.
Eu apenas faço um aceno com a cabeça. Por um momento, penso em
voltar para meu quarto, mas então me viro para ele, já sentado na cadeira.
“Posso te perguntar uma coisa?”
Martino está segurando uma caneta preta entre os dedos.
“O quê?” ele pede.
“Você me vê como uma garota?”
Ele parece confuso. Demora um pouco para responder.
“Você é uma garota?” ele pergunta.
Eu nego com a cabeça.
“Eu não te vejo como uma garota” ele fala “Você é Isak. Meu melhor
amigo. E você é homem. E um homem muito melhor do que muitos que eu já
conheci”
Não sei como reagir a isso, então apenas fico ali, parado, por alguns
segundos.
“Por que perguntou isso?” Martino me questiona.
“Eu não sei” confesso “Tenho medo de você me ver como uma
mulher ainda”
“Eu não vejo”
Cumprimo meus lábios em uma linha reta. Estalo um dos dedos de
minha mão direita.
Martino se levanta e se aproxima de mim.
“Você está bem?” ele pergunta.
Eu sinto que vou chorar, mas confirmo com um aceno fraco.
Nós estamos do mesmo tamanho quase, eu percebo. Ele está apenas
alguns centímetros mais alto que eu.
“Você pode fazer um chá de camomila pra mim?”
Ele responde com um pequeno sorriso. O chá dele sempre fica mais
gostoso, não sei porquê.
Enquanto Martino coloca água na chaleira e procura a camomila no
armário, eu me encosto na mesa, abraçando a mim mesmo por culpa do frio.
Ele está vestindo uma calça de moletom cinza e uma blusa verde. Seu cabelo,
como quase sempre, preso em um coque, o que eu acho exageradamente
bonito.
Ele se vira para mim, logo depois de colocar mel na xícara.
“Lembra do Vitor?” pergunta, mas não espera eu responder “Ele está
mesmo namorando”
Ah.
“Isso te deixa triste?”
Ele se encosta na pia da cozinha.
O lugar é muito pequeno, se eu der meio passo e esticar o braço para
frente, consigo tocar nele.
Martino nega.
“Eu não penso mais nele” diz “Além disso, ele ficou no lado do
Homem de Ferro na guerra civil”
“Esse é um grande desvio de caráter”
“Eu sei”
“Então agora você vai me contar quem é o garoto que você está
apaixonadinho?”
Martino parece travar. E eu não sei porquê.
Nós nos encaramos.
Ele coça a sobrancelha.
Eu tenho vontade de me aproximar dele, de tocar nele, de o abraçar,
qualquer coisa, mas fico parado.
“Não” ele fala, coçando a sobrancelha mais uma vez “Agora eu vou
terminar de fazer o seu chá e depois voltar a estudar”
Ele coça a sobrancelha novamente depois de me entregar a xícara e eu
o deixar sozinho, estudando.
XXI
Eu checo o calendário na tela do computador mais uma vez.
Em uma semana semana e meia Martino e eu estaremos dentro de um
ônibus, direto para passar as férias do meio do ano com nossos pais.
Volto a dar play no vídeo. É um garoto trans dando dicas de como sair
do armário para os pais. Eu mordo meu dedo enquanto assisto.
Pedi para Samantha como foi a experiência dela, mas não me ajudou
muito. Ela foi expulsa de casa.
Isa disse que eu deveria primeiro saber qual é a opinião geral dos
meus pais sobre pessoas trans. Acho que é o que vou fazer.
Um rap muito alto começa a tocar, vindo da direção do quarto de
Martino. O que, no nosso apartamento, significa que a caixa de som está
praticamente do meu lado. Eu me encolho dentro do meu moletom. Martino.
Meus pais. A faculdade. Eu deveria estar estudando agora. Tenho uma prova
importante em dois dias. Eu deveria estar tendo uma conversa com meus pais
agora. Eles me ligam sempre, não é difícil. Eu deveria estar resolvendo minha
relação com Martino agora. Ele mora comigo. É meu melhor amigo.
Minha vida parece de cabeça para baixo e eu não sei resolver nada.
Ouço Martino trocar de música três vezes seguidas. Ele quase sempre
ouve música à tarde. Talvez tenha aprendido com Luigi. E é sempre as
mesmas músicas. Eu já decorei a maioria das letras.
É estranho o sentimento que Martino me passa, mesmo com as coisas
mais irritantes que ele faz.
Procuro outro vídeo. Dessa vez sobre uma mulher, de quase quarenta
anos.
Eu espero que meus pais não me abandonem. Eles ainda estão
pagando todas as minhas coisas aqui. A minha metade do aluguel, as compras
do mês. E eu preciso deles. Preciso de meus pais. Preciso saber que minha
mãe vai estar ao meu lado quando eu precisar de um abraço e que meu pai vai
estar aqui se um dia eu me casar, não importa o gênero da pessoa que esteja
no altar comigo ou se eu estarei de vestido ou de terno.
XXII
Exatamente uma semana para o fim das aulas do semestre, Martino
ainda está acordado, sentado em uma cadeira da cozinha, quando eu chego da
aula.
Não é uma novidade, claro. A novidade é ele levantar e me encarar
assim que me vê.
Eu paro ali, com a mochila nas minhas costas.
“Tudo bem?” pergunto.
Ele coça a sobrancelha.
“Precisamos conversar”
“Sobre o quê?”
“Coisas”
“Você está bem?”
“É difícil responder isso agora”
Martino aponta para a sala.
Eu tiro meu tênis e jogo a minha mochila no chão antes de seguir ele.
Nós dois sentamos no tapete da sala, frente a frente, porque os dois
puffs estão cheios de livros e de papéis com resumos. Passei a noite anterior
inteira estudando.
De pernas cruzadas, ele não está exatamente olhando para mim.
“Eu preciso te contar uma coisa” Martino diz “E eu preciso que você
preste atenção em mim”
“Você está bem?” eu estou ficando nervoso. Meu estômago está
dando voltas dentro de mim.
Ele respira fundo.
Por algum motivo, sinto que ele ensaiou aquilo.
“É você” Martino fala “É você o garoto de quem eu falei aquele dia”
Eu não tenho reação, porque não consigo entender do que ele está
falando.
“Eu gosto de você” ele continua “E não é só como um amigo. Eu
gosto de você de verdade” ele dá uma risada, mas é uma risada nervosa,
exagerada, fora de tom “Meu deus, eu me sinto na segunda série. Mas eu
gosto de você mesmo. Eu demorei pra perceber isso. Eu preciso que você
saiba disso. Há algum tempo eu parei de pensar em você só como um amigo.
Eu não sei se consigo ficar perto de você sem que saiba disso. E está tudo
bem que você não sinta o mesmo, de verdade, porque eu sei que não sente.
Em minha cabeça, às vezes, eu fantasio que nós dois estamos casando. Eu
não consigo parar de pensar em como você me entende tão bem. Acho que eu
penso isso desde o dia em que me encontrou na biblioteca e me deu aquele
chocolate de banana e eu fingi ser o meu favorito mesmo nunca tendo comido
ele. E depois ele realmente virou o meu favorito. Eu só queria que você
soubesse disso tudo. Isso é bobo. Você com certeza vai encontrar alguém
melhor algum dia. Eu vou superar isso tudo. Só não quero esconder esses
sentimentos de você. Como eu falei, você é o meu melhor amigo. E melhores
amigos contam coisas um para o outro, mesmo coisas como essa. Eu pensei
muito e decidi que, se eu não contasse pra você, eu estaria mentindo para nós
dois. E eu não quero isso. Não quero mentir para meu melhor amigo. Não
consigo viver com isso”
Ele termina de falar e me encara.
E eu o encaro de volta.
Talvez eu esteja imaginando isso tudo.
Talvez eu esteja louco.
Talvez eu esteja na faculdade ainda, dormindo durante uma aula
entediante.
Talvez isso seja real mesmo.
Eu não consigo parar de encarar ele.
Não consigo mover minhas mãos.
Então ele se levanta.
E não olha para trás.
Eu fico ali, sentado no tapete.
Eu fico ali sentado por tanto tempo que minhas pernas formigam.
Eu ouço a porta do seu quarto abrir, a do banheiro fechar e abrir e a
do quarto fechar de novo.
Eu me levanto.
Eu deveria ir falar com Martino.
Aquilo pode ter sido uma piada. Mas a expressão deve estava clara
como água: não era piada.
Eu caminho, o mais silenciosamente que consigo, até seu quarto.
Paro bem em frente da porta. Chego até a encostar na maçaneta. Meu
corpo todo está desconectado de mim.
Eu dou meia volta e vou até meu próprio quarto.
Não consigo dormir direito.
XXIII
Quase oito da manhã eu ouço a água do chuveiro batendo no chão.
Ele sempre toma banho antes de ir para a aula.
Eu me sento em minha cama. Preciso falar com ele. Mas estou com
medo.
Medo de que?
De não ser real, provavelmente.
Me sinto um covarde.
XXIV
Eu estou roendo minhas unhas.
Martino deveria estar em casa há quase meia hora. A aula dele acabou
há dez minutos. A faculdade é há dez minutos daqui.
Eu deveria ter falado com ele mais cedo, quando eu o ouvi se
arrumando para sair de casa. Ou melhor, eu deveria ter falado com ele na
noite anterior.
Eu sou tão burro.
Quando a porta se abre, quase dou um pulo.
Ele me encara assim que me vê ali, de pé no meio da cozinha.
“Eu fiz chá pra gente” aponto para as duas xícaras na mesa.
Martino parece desconfortável. Eu engulo em seco.
Ele se aproxima de mim.
“Obrigado” diz, pegando uma xícara.
Então, se vira de costas e começa a ir em direção ao próprio quarto.
Não, eu penso.
Toco seu ombro, o que o faz se virar para mim.
“Nós precisamos conversar” eu digo.
Ele suspira. Parece cansado e desconfortável.
“Por que?”
“Por favor” eu peço.
Um pouco a contragosto, ele larga a mochila e se senta em uma das
cadeiras. Eu fico em pé. Ele levanta as sobrancelhas.
“Eu estou agitado demais para me sentar” comento. E é verdade.
“Nós não precisamos fazer isso”
“Precisamos sim”
Martino se levanta. Fica bem em minha frente. Suas unhas estão
pintadas de um vermelho bem escuro, que parece quase marrom. As unhas
dele sempre estão pintadas agora. É só mais uma das coisas que eu gosto
nele.
“Beba seu chá” eu digo.
“Estou agitado demais para beber chá” eu não sei se ele está sendo
sincero ou zoando com a minha cara.
“Você não precisa superar” eu digo.
Isso o deixa confuso, óbvio.
“Superar o quê?”
“Eu”
Ele me encara.
“Se você quiser, óbvio” eu completo.
“O que você está dizendo?”
Eu sinto meu coração falhar.
Como você ensaiou, Isak.
Mas todas as palavras sumiram de mim.
“Lembra quando eu falei que sentia algo pela Isabelle?” eu pergunto.
Preciso soletrar o nome dela porque ela nunca conheceu alguém surdo para
lhe dar um sinal.
Martino assente.
“Era mentira” eu revelo “Eu nunca senti nada por ela.
Romanticamente falando. Porque eu estava sentindo algo só por você. Eu
ainda estou sentindo”
Ele desvia o olhar.
Não consigo ler sua expressão.
Estou tremendo.
“Você não precisa mentir” ele diz “Pra fazer eu me fazer se sentir
melhor”
Eu fico em choque.
“Eu não estou mentindo” me apresso a esclarecer. Ele não pode
pensar que eu estou mentindo. Não agora. Não quanto estou sendo o mais
sincero que poderia ser “Eu fiquei bravo quando te vi com o Vitor, você tinha
razão, mas era porque eu queria estar no lugar dele.”
Me sinto um bobo falando isso em voz alta, mas não quero esconder
isso dele. Ele precisa saber.
Martino não me responde. Não imediatamente.
Ele olha para a xícara de chá na mesa. Seus dedos parecem nervosos
quando segura a xícara e bebe um longo gole. Eu imito seu gesto, mais por
não saber o que fazer do que realmente querer beber chá.
Está um pouco frio e eu adocei demais. O gosto de mel está muito
forte.
Nunca soube fazer chá de camomila direito.
Mesmo assim, Martino não reclama. Ele coloca a xícara de novo na
mesa e olha para mim.
“E eu queria que você estivesse no lugar do Vitor”
Nós dois nos encaramos.
Eu estou segurando a minha xícara com a mão direita. Com a
esquerda, faço um sinal.
Um sinal que nós conhecemos muito bem.
Eu amo você.
Martino repete o sinal sem hesitar.
Coloco minha xícara perto da dele.
Os lábios de Martino têm gosto de camomila.
Ele é calmo, como eu soube que seria. Tudo nele sempre foi calmaria.
Calmaria e conforto. Calmaria e conforto e amor. Calmaria e conforto e amor
e casa. É esse o gosto dele. A essência dele. É isso que sinto quando suas
mãos encostam delicadamente em minha cintura e ele me puxa para mais
perto dele. Tão delicado que tenho vontade de chorar. Acho que ninguém
nunca tocou tão gentilmente em algo como ele toca em mim.
Isso é estranho é o que eu penso assim que me afasto.
“Isso é estranho” eu digo “Mas um estranho bom”
Martino dá um pequeno sozinho.
“Seu chá está péssimo” ele fala.
“Desculpe”
“Não peça desculpas”
Ele me puxa para perto dele novamente e eu agradeço. Tudo nele é
bom. A forma como ele é tão calmo e gentil, como toca minha nuca
delicadamente. Até o cheiro dele é bom.
Dessa vez é ele quem se afasta, mas não muito. Ele ainda está aqui.
Tem um pequeno sorriso nos lábios. Ainda está tocando em mim, na minha
bochecha.
É tudo tão bom, tão perfeitamente bom.
Dou um sorriso.
O sorriso dele aumenta.
E é tudo o que importa.

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