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ENTRE A INVISIBILIZAÇÃO E A CRIMINALIZAÇÃO DE COMUNIDADES

TRADICIONAIS: O CASO DO CUMBE, ARACATI-CE*.

Luana Viana Costa e Silva*


Edson Vicente da Silva**

*Autora correspondente - Doutoranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela


Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil.
luambient@yahoo.com.br

**Professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em


Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
Ceará, Brasil.
cacauceara@gmail.com

*Artigo publicado nos anais e no livro do IV CEURCA – Colóquio Sociedade, Políticas Públicas, Cultura
e Desenvolvimento. ISSN 2316-3089. Universidade Regional do Cariri-URCA, Crato Ceará-Brasil
RESUMO

Há tempos comunidades tradicionais vêm sendo alvos prioritários da invasão de


empreendimentos, marginalizadas desde a implantação até a operação. Esse artigo
se propôs a discutir processos de invisibilização e criminalização instaurados nesses
territórios. Para isso, realizou-se um estudo de caso no Cumbe, comunidade
quilombola cearense que, com a invasão da criação intensiva de camarão, nos anos
de 1990, e a instalação de 67 aerogeradores nas dunas circunvizinhas, em 2008,
vem vendo seu modo de vida ser destruído e sua luta ameaçada. Através de
vivências e da análise do histórico dos conflitos locais e suas relações, pôde-se
constatar que diversas pessoas que resistem vêm sendo criminalizadas e vivem sob
constantes ameaças. Mesmo diante de todas as dificuldades e com a perspectiva
dos conflitos se acirrarem diante do anúncio da expansão das áreas de tanques e
aerogeradores, pescadoras e pescadores permanecem na luta, com a pauta
prioritária da regularização do território.
Palavras-chaves: Invisibilização. Criminalização. Cumbe.

ABSTRACT
It´s been a while that traditional communities have been priority targets of the
invasion of enterprises, marginalized from implementation to operation. This article
aims to discuss the invisibility and criminalization processes brought to these
territories. To this end, a study case was conducted in Cumbe, a maroon community
in Ceará, that with the invasion of intensive shrimp farming, in the 1990s, and the
installation of 67 wind turbines on the surrounding dunes in 2008, has been seeing its
way of life be destroyed and its fight threatened. Through experiences and historical
analysis of local conflicts and their relation, it appears that many of the people who
resist have been criminalized and live under constant threat. Even with all the
difficulties and the prospect of conflict to intensify before the announcement of the
expansion of the tanks and wind turbines areas, fishermen remain in the fight, with
the priority agenda of territory regularization.
Keywords: Invisibility. Criminalization. Cumbe.
ENTRE A INVISIBILIZAÇÃO E A CRIMINALIZAÇÃO DE
COMUNIDADES TRADICIONAIS: O CASO DO CUMBE,
ARACATI-CE.

1 INTRODUÇÃO

Os conflitos ambientais surgem da relação homem x natureza, entretanto, são


reflexos do relacionamento entre os seres humanos. Mesmo sendo relacionados
diretamente ao meio ambiente, podem ter diversas origens: políticas, históricas,
religiosas, étnicas, econômicas e/ou culturais. Então, pode-se afirmar que os
conflitos ambientais necessariamente são sociais.
No Brasil, por exemplo, há muita injustiça proveniente de conflitos instigados
pelos usos predatórios dos territórios, principalmente após a Segunda Guerra
Mundial (1939 a 1945), quando ocorre a assimilação do padrão de desenvolvimento
estrangeiro e dos processos industriais intensivos no uso de recursos naturais e
energia, além de altamente poluidores (CUNHA, 2003).
Fantasmas da colonização, como o direcionamento da economia do país para
a exportação de commodities com a indevida apropriação dos espaços, continuam a
nos incomodar, reproduzindo e/ou ampliando as injustiças tanto no campo quanto na
cidade.
Diegues (2000) considera que para sociedades não urbanas\industriais há
uma interação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a estrutura social.
Diante dessa concepção e à luz do tripé da sustentabilidade, que deve considerar o
social, o econômico e o ambiental em um mesmo patamar, pode-se dizer que a
sintonia dessas comunidades faz com que, salvo poucas exceções, haja uma
convivência harmoniosa com o espaço onde se desenvolvem.
O Sítio Cumbe, comunidade quilombola do município de Aracati, é composto
tradicionalmente por famílias de pescadores, catadores de caranguejo e
marisqueiras. Está inserido na planície fluviomarinha, unidade ambiental que, como
define Lima et al. (2000), decorre de processo combinatório entre agentes fluviais e
oceânicos, com solos de mangue continuamente afetados pela preamar.
A inserção de novas territorialidades nestas áreas, pelos projetos econômicos
instalados no local, pode ser caracterizada por elevado índice de desorganização
espacial e invisibilização das comunidades, o que, no caso do Cumbe, vem
desencadeando inúmeras injustiças ambientais como a criminalização da luta e
resistência de pescadores/as do mangue. A privatização crescente das terras,
principalmente pelos empresários do camarão e da produção de energia eólica, vem
atingindo os locais da comunidade, coletivos – como para deslocamento, lazer,
sustento, sepultamento dos mortos -, e individuais – como para a construção de
moradia, práticas culturais, saberes e modo de fazer.
Nesse artigo pretende-se, portanto, analisar os processos de invisibilização e
criminalização de comunidades, tendo a comunidade do Cumbe e as lutas de
resistências realizadas pelos pescadores/as do mangue, como referência para
confirmar as constatações mencionadas no texto. A relação entre esses conceitos e
o de injustiça ambiental será levada em consideração, após as análises
apresentadas sobre a realidade e relatada pelos sujeitos sociais e políticos que
resistem à invasão de seus espaços, por novas formas de produção capitalista, que
chegam nos seus territórios tomados por empresários que, com o incentivo e
aparato dos Governos, criminaliza, exclui, viola direitos em detrimentos aos
interesses econômicos, o que nos revela a situação de injustiça ambiental que os
lutadores/as da comunidade passa, evidenciando a escolha intencional dessas
áreas para a instalação dos empreendimentos econômicos e a atuação e o papel do
Estado nesse processo
Nesse intuito, será realizado um relato da atual situação de injustiça ambiental
que essa comunidade está passando, evidenciando a escolha intencional do local
para instalação desses tipos de empreendimentos e a atuação do Estado nesse
processo.

2 AS RAÍZES DE INJUSTIÇAS/CONFLITOS AMBIENTAIS

A história humana, sempre repleta por injustiças das mais variadas formas, vê
ressurgir o acirramento, sobretudo nas últimas décadas, dos mais diversos conflitos,
principalmente em torno da posse da terra e dos bens naturais não comerciais,
como sementes, água, vento, fauna, flora, solo, combustíveis fósseis e fontes
alternativas de energia tidas como limpas. Esses tipos de embates desencadeiam,
invariavelmente, processos que, didaticamente, passaram a ser chamados de casos
de injustiças ambientais.
A noção de justiça ambiental surge dentro de um movimento de
ressignificação da questão ambiental. Resulta da inserção na temática ambiental de
dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça
social. Esse processo está associado à reconstituição das arenas onde se dão os
embates sociais pela construção de futuros possíveis (ACSELRAD, 2010).
Com o intuito de fortalecer o combate dessas injustiças, em 2001, foi criada a
Rede Brasileira de Justiça ambiental que estabeleceu Justiça Ambiental como uma
categoria de luta, ampliando o conceito e definindo um conjunto de princípios e
práticas. Nessa ocasião, elaborou-se uma Declaração de Princípios da Rede na qual
os próprios participantes estabeleceram o que compreendiam por injustiça e justiça
ambiental. Definiu-se, então, injustiça ambiental como:

[...] o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista


econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do
desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais
discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários,
às populações marginalizadas e vulneráveis (HERCULANO, 2002,
p.144).

Ao contrário do que possa parecer não se trata apenas de dois lados com
objetivos incompatíveis e que disputam determinados bens entre si ou de
ambientalistas radicais com seus ideais conservacionistas, conflitos ambientais são
conflitos de classe e, sendo assim, como afirma Schmid (1997), a estrutura social é
de tal forma, que os ganhos de uma das classes são as perdas de outra.
Nessa perspectiva, não se pode considerar que o desequilíbrio ambiental é
democrático, ou seja, que pessoas de diferentes classes sociais o sentem de
maneira similar. Murphy (1994) sugere que as sociedades estão se organizando em
“classes ambientais” – umas que ganham com a degradação e outras que pagam os
respectivos custos ambientais.
A adoção desses conceitos deve considerar que as classes ambientais são
apenas espelhos das classes sociais, ou seja, que, na realidade, há um
entrelaçamento entre ambas. Essa postura é essencial na busca de soluções para o
problema, a fim de que as ações não se limitem apenas a medidas paliativas.
Acselrad (2010) considera que a injustiça social e a degradação ambiental
têm a mesma raiz, o modo de distribuição – desigual – de poder sobre o ambiente
natural. Portanto, a solução seria retirar dos poderosos a capacidade de transferir os
custos ambientais do desenvolvimento para os mais “despossuídos”.
Essas desigualdades são decorrentes, principalmente, da manutenção de
mecanismos de privatização do uso desordenado dos bens não comerciais, como
solos, florestas, minerais, ar e água, que os transformam em objetos do capitalismo,
sistema econômico predominante atualmente, parasitário dos ecossistemas. Tudo é
transformado em mercadoria e, para isso, invariavelmente, há destruições na
natureza e de atividades artesanais desenvolvidas pelos povos étnicos, raciais e
comunidades tradicionais.
Muitos projetos são licenciados, entretanto, com base em estudos
insuficientes e ineficientes, ancorados no paradigma ambiental dominante, que
acredita na “modernização ecológica”, ou seja, na capacidade das tecnologias
preverem e reduzirem os riscos e efeitos inerentes às atividades humanas,
trabalhando dentro da racionalidade econômica instrumental. Dessa forma,
configuram-se como ações políticas direcionadas pela lógica econômica, “atribuindo
ao mercado a capacidade institucional de resolver a degradação ambiental”
(ACSERALD, 2004b, p.23), através de medidas mitigadoras e compensatórias. Esse
modelo dominante, chamado de “paradigma de adequação ambiental”, opõe-se ao
“paradigma da sustentabilidade” (ZHOURI et al., 2005).
No “paradigma da adequação”, a obra assume lugar central, apresentando-se
de forma inquestionável e inexorável. O ambiente é tratado como externalidade a ser
modificado e adaptado aos objetivos do projeto técnico. Dentro desse processo,
arranjos e ajustes tecnológicos, orientados por medidas mitigadoras e
compensatórias, funcionam como adequação. A propósito, a “necessidade” e a
viabilidade socioambiental da obra não são levadas em consideração. Já o
paradigma da sustentabilidade – ao contrário do que se costuma ver ou ouvir falar,
de maneira deturpada, como abordagem desse conceito - vem de encontro com
esse modelo, ao colocar no debate os padrões de produção e consumo,
demandantes desse tipo de obra, além dos interesses e valores que estão
envolvidos em sua construção e seus verdadeiros beneficiários. Para isso, esse
paradigma pressupõe a análise efetiva da viabilidade socioambiental da obra, que
contemple as potencialidades do ambiente a que pretende inserir-se e sua relação
com os usos e significados já conferidos localmente ao território (ZHOURI e
OLIVEIRA, 2007).
Acreditar que se pode solucionar um conflito espacial, por exemplo, apenas
por meio de mecanismos técnicos e/ou tecnológicos é desconsiderar a natureza
sistêmica intrínseca a eles e, sobretudo, invisibilizar populações tradicionais,
marginalizadas e vulnerabilizadas, inclusive pela carga de danos imputada a elas.
As diversas ideologias e maneiras de pensar a natureza revelam muitas
contradições históricas em uma complexa relação de aparente domínio antrópico
sobre o universo natural.
Na realidade, à medida que o homem tenta controlar a natureza através de
suas inovações tecnológicas reforça dinâmicas naturais intrínsecas que
preponderam diante desse comportamento humano, transformando-o em um ser
ultrapassado e inconsequente, e, contraditoriamente, torna-o cada vez mais
dependente.
Essa tentativa dos homens de dominar a natureza vem exaurindo a natureza
e, concomitantemente, desencadeando outra forma de servidão, ao capital
(BARREIRA, 1991). Populações que antes retiravam da natureza a subsistência
familiar, após a invasão de empreendedores externos e a destruição do meio
ambiente que vêm acontecendo, ficam reféns dessa lógica de produção que
mercantiliza tudo que vê pela frente, até os seres humanos. Com isso, necessitam
buscar outros meios de sobrevivência, fragilizando e, muitas vezes, abandonando
seus costumes e modos de vida tradicionais.
Na zona costeira brasileira, por exemplo, devido a sua localização privilegiada
e particularidades ambientais, muitos dos atributos que proporcionam fartura na
mesa dos pescadores/as, marisqueiras e moradores/as que vivem nestas áreas, ao
mesmo tempo, despertam interesses particulares crescentes por obtenção de lucros
com os quais se chocam com essa realidade, comprometendo a manutenção da
soberania alimentar e econômica dos grupos sociais.
Essa expansão da fronteira econômica do mercado global vem acontecendo
através da intensificação do uso de áreas economicamente marginalizadas, nas
áreas historicamente ocupadas por atividades de subsistência familiar e pelas
minorias étnicas, numa total harmonia com o território tradicional e os bens não
comerciais.
Na medida em que a utilização de um espaço ambiental ocorre em detrimento
do uso que outros segmentos sociais possam fazer de seu território, configura-se em
assimetria na apropriação social da natureza, gerando uma má distribuição
ecológica e, portanto, conflitos ambientais (MARTINEZ-ALIER, 1999; 2001;
ACSERALD, 2004a). Com isso, criam-se zonas de conflito e, devido à
desproporcionalidade de poder entre as classes em disputa, resultam em contínua
expropriação das populações locais.
Também se podem classificar esses conflitos como sociais, ao passo que,
conforme Opschoor (1995), a concepção de tais projetos industriais acontece dentro
de uma política de desenvolvimento voltada para o crescimento econômico com
ênfase na exportação, concentradora de “espaço ambiental”.
Quando os bens naturais são apropriados segundo a lógica de acumulação
capitalista, há uma constante divisão entre sociedade e natureza. A análise
separada de sociedade e natureza é uma consequência da lógica interna capitalista
(SMITH, 1988).
A apropriação e comercialização do ambiente natural o ressignifica para bem
de troca e, rapidamente, transforma a primeira natureza em segunda natureza, não
apenas devido à modificação da natureza, mas também à produção de espaços,
embora essas ações estejam imbricadas.
A respeito disso, pensadores ultraliberais contra-argumentam afirmando que
não há injustiça quando as pessoas decidem, voluntariamente, aceitar esses riscos
desproporcionais em troca de vantagens econômicas (PERHAC, 1999).
Primeiramente, para que um ser humano aceite viver em um ambiente
arriscado em troca de dinheiro, esse antes deve estar vulnerabilizado
economicamente. Como pensar no futuro incerto dos filhos, diante da ameaça dos
perigos aos quais serão expostos, perante a carência financeira que não permite se
ter o básico? Como condenar alguém que, dominado pelas ideologias capitalistas
propagadas pela mídia burguesa, vê o aumento de seus recursos financeiros como
oportunidade de melhorar sua qualidade de vida?
Portanto, o modo de produção capitalista, propositadamente, vulnerabiliza
economicamente as pessoas para dominá-las com mais facilidade. Entretanto, na
contramão dessa lógica, muitos lutam pela manutenção de seus modos de vida e
pela visibilização de sua identidade e práticas culturais.
3 NÃO SOMOS FANTASMAS: A INVISIBILIZAÇÃO DE COMUNIDADES
TRADICIONAIS

Por volta de 1500, Portugal invadiu o Brasil a fim conquistar mais terras,
ampliar seu comercio e expandir seu domínio continental. Diante da possibilidade de
invasão por outros países, a mando da corte portuguesa, em 1530, como medida
inicial, o militar Martim Afonso de Souza chegou com sua expedição trazendo a
bordo os primeiros colonos na incumbência de se instalar definitivamente no
território invadido, fundar vilas, povoados e, segundo eles, expandir a economia
local. Talvez quem não conheça a história ou tenha conhecimento apenas através
dos clássicos livros de história do Brasil, imagine que não existia ninguém nessas
terras. Esse episódio, certamente, marcou o princípio, no país, da prática de vários
conceitos mais tarde teorizados, como invisibilização social e injustiça ambiental.
Os primeiros habitantes da Terra não conheciam a propriedade territorial,
viviam em comunidade de bens, não tinham apego às coisas materiais, facilmente
abandonavam um lugar onde o sustento se tornasse difícil, queimando todos os
utensílios e partiam para outro (THÉBERGE, 1973). O que importava era a obtenção
do sustento diário, não existia acumulação de riquezas de maneira individual.
Com a chegada da colonização dos portugueses, esse modo de vida passou
a ser inferiorizado, desprezado, substituído a contra gosto, na maioria das vezes. A
ideologia europeia passou a ser difundida como verdadeiro dogma, utilizando-se
inclusive de representantes da religião como intermediários no processo.
Dando continuidade ao projeto de expansão de suas fronteiras, Portugal
instaura as capitanias hereditárias instituindo, definitivamente, o conceito de posse
da terra em um local onde tudo era de todos e todos tinham tudo. Embora, nesse
sistema, os posseiros não tinham autorização para a venda, a terra, bem essencial à
vida e que nenhum ser humano deveria ser impedido de ter acesso, foi transformada
em propriedade privada, o que deflagrou uma gama de injustiças, intensificadas,
continuamente, nos dias de hoje, inclusive com a apropriação de terras públicas com
aval do Estado.
Mesmo com a ardorosa resistência dos índios, os colonos conseguiram
invadir o interior do país, através de muitas prisões, escravidões e tomadas de terras
para o desenvolvimento da pecuária. Posteriormente, solicitavam o reconhecimento
da propriedade a Portugal (PANTALENA, 2012).
A invasão das terras brasileiras, tradicionalmente ocupadas pelos indígenas,
foi uma extrema violação de direitos inerentes à vida humana, pois, além de não
respeitar a historicidade ambiental local, invisibilizou homens e mulheres que há
muito tempo estavam naquele espaço, com suas crenças e tradições.
De maneira semelhante, hoje, as comunidades invadidas por projetos
econômicos, públicos e/ou privados, são ignoradas ou ludibriadas desde o momento
do planejamento até a instalação, ficando à margem de toda tomada de decisão.
Fuks e Perissinotto (2006) consideram que os constrangimentos
socioeconômicos, simbólicos e políticos podem funcionar como um poderoso
obstáculo à participação ou até mesmo aprofundar a desigualdade política.
Há alguns conflitos que ainda se encontram em estado de latência, ou seja,
nem se manifestaram politicamente no espaço público formal, porque os grupos
sociais envolvidos são politicamente marginalizados ou mesmo invisíveis aos olhos
do Estado (LITTLE, 2006).
A discriminação política, a qual grande parte da população é submetida, não
acontece por acaso, faz parte de todo um ciclo gerador do conflito, alimentado e
fortalecido por legislações vazias e inutilizadas, e, inclusive, instituições públicas
descompromissadas com suas funções.
Como na atual forma de governo quem, na realidade, decide sobre as formas
de uso dos territórios são, prioritariamente, o Estado e a burguesia, muitas
comunidades se sentem impotentes diante do novo que lhes é imposto e findam
como expectadores dessa lógica perversa dos novos usos do território,
marginalizados e vulnerabilizados, sem perspectivas condizentes com suas
realidades.
Em muitos casos, as políticas e medidas públicas para preservação e
conservação ambiental funcionam apenas para legitimar os empreendimentos, pois
se limitam, no máximo, a elencar condicionantes e medidas de mitigação ou de
compensação aos projetos econômicos apresentados, desconsiderando os danosos
riscos aos quais as pessoas e/ou o meio ambiente estão sendo expostos. Nessa luta
desigual de interesses, os povos atingidos, seus modos de vida e suas percepções
quase sempre são invisibilizados.
Os conflitos envolvem interesses imiscuídos que vão do individual ao coletivo
em uma mesma situação (BARBANTI JR, 2002). A tentativa de consenso entre as
partes se torna uma negligência, pois o que está em questão são modos de pensar,
agir e ser totalmente distintos e inegociáveis. Nesses casos, o mais grave é a
ocorrência do círculo vicioso do poder na forma capitalista de dominar os bens
naturais, o qual determina injustiças ambientais.
Nesse processo, diversidades socioculturais são anuladas devido a uma visão
parcelar legitimada pela cientifização e juridificação das políticas e de sua imposição
com o argumento de representar o bem comum (ZHOURI, 2008).
Essa tese de defesa da coletividade é enfatizada pela teoria do consenso,
pela qual o conflito permanece mascarado ou menosprezado. Discute-se mediante
um recorte simplista do caso, no qual a proteção ambiental figuraria como objeto
unificador de vários setores da sociedade em prol de uma causa comum. Nessa
lógica, a “consciência ecológica” se basearia em valores e interesses universais, os
quais transporiam fronteiras sexuais, raciais, nacionais e de classes.
A consolidação dessa ideologia ambientalista caminharia em direção à
construção de posicionamentos consensuais, já que setores diversificados
participariam e convergiriam para a elaboração de um diálogo em que diagnósticos
comuns seriam realizados sobre problemas caracterizados como ambientais
(VIÉGAS, 2009).
Outro conceito bastante utilizado, regido por essa crença de que é possível
um consenso, é governança. Para Zhouri (2008) governança remete à ideia de
gestão e acredita em uma possível conciliação entre interesses econômicos,
ecológicos e sociais, eliminando dessas dimensões as relações de poder que, de
fato, transpassam a dinâmica dos processos sociais.
A parte da sociedade chamada a se envolver, por influência dessa
governança, é a “organizada”, nos moldes determinados pelos setores que a
dominam. A grande maioria dos cidadãos, sobretudo moradores de comunidades
rurais e étnicas ou das periferias urbanas, não preenche os pré-requisitos
estabelecidos como condição à participação, permanecendo excluída (ZHOURI,
2008).
Governança ambiental se assemelha bastante ao paradigma de “adequação
ambiental”, procedimento tributário peculiar à visão de mercado inerente à lógica
capitalista. Com esse instrumento, conforme as especificidades de cada caso,
medidas de compensação e mitigação são utilizadas com o propósito de
compatibilizar projetos técnicos, já instituídos previamente, ao ambiente natural e às
comunidades atingidas, com “externalidades” ambientais viáveis economicamente
para o empreendimento. Esse mecanismo, apresentado como uma ação que visa à
preservação do meio ambiente, em muitos casos é, inclusive, utilizado para
transmitir à sociedade uma imagem de empresa sustentável, como é o caso de
desmatamentos de florestas nativas compensados pelo reflorestamento de
monoculturas de eucalipto. Configura-se, na realidade, mais uma vez, na
invisibilização de direitos de sujeitos coletivos para dar preferência aos interesses
dos atores particulares.
A adequação dos processos produtivos, por exemplo, dá destaque a apenas
uma possível “revolução da eficiência” em detrimento à fundamental “revolução da
suficiência” (SACHS, 2000), ou seja, à mudança nos modelos de produção e
padrões de consumo.
Portanto, de acordo com Viana (2005), a expectativa de um momento de
institucionalização da questão ambiental fundada no enfrentamento e na negociação
de interesses díspares unindo diferentes setores da sociedade na defesa de
bandeiras comuns enfrenta, necessariamente, dificuldades estruturais e, portanto,
constitui mitos.
Essa problemática pode ser constatada nas injustiças geradas pela instalação
arbitrária de parques eólicos e tanques para criação intensiva de camarão em
cativeiro (carcinicultura) em comunidades tradicionais que recorrem ao ambiente
físico do entorno para manter seus modos de vidas peculiares. Nesse caso, por
exemplo, ações de “mediação” inevitavelmente anulam um dos interesses em jogo,
omitindo as relações de poder e opressão na análise dos conflitos e estimulando a
manutenção e/ou reprodução desse círculo vicioso.
Esse modo de agir demonstra a ausência do Estado no atendimento de
necessidades básicas das populações, como o direito de ir e vir e direitos territoriais,
colocando-as no item derradeiro a ser considerado nas decisões.
Ao contrário, o Estado vem legitimizando os projetos ditos de
desenvolvimento, atuando na desapropriação de terras e pagamentos de
indenizações em áreas de substituição de culturas, liberando créditos pelos bancos
públicos aos empresários que fixarem suas produções nestas áreas, investindo em
pesquisas tecnológicas e infraestruturas necessárias como apoio logístico
(RODRIGUES, 2007).
Direitos culturais e/ou sociais desconsiderados pelo Estado só passam a ser
inseridos no cenário político a partir do momento em que os direitos em conflito são
identificados em debates amplificados, transvestidos de medidas compensatórias
e/ou mitigadoras. Dessa maneira, os dois discursos, hegemônico e contra-
hegemônicos, e a relação entre eles ganham destaque, muito embora a assimetria
de poderes não permita que, pelos caminhos formais, as pautas das populações
atingidas sejam atendidas, reforçando novamente sua invisibilização.
Os direitos humanos e sua inscrição na legislação somente avançam quando
setores sociais oprimidos ou explorados fazem com que a sociedade compreenda,
através da persuasão ou até pela violência, a profunda injustiça que eles estão
sofrendo (LEROY, 2011).

4 NÃO SOMOS BANDIDOS: A CRIMINALIZAÇÃO DA LUTA DO CUMBE

Por meio de estratégias argumentativas e formas de lutar inovadoras, os


atores sociais resistentes à lógica dominante têm procurado fazer do ambiente um
espaço de construção de justiça e não apenas da razão utilitária do mercado
(ACSELRAD, 2010).
Contra a mera “modernização ecológica”, que resulta em condição de
invisibilidade e desvalorização das pessoas e ambientes (ZHOURI et al., 2005),
organizam-se os sujeitos dos movimentos de resistência que reivindicam e
anunciam a construção do paradigma original da sustentabilidade.
No Ceará, grandes áreas de planícies fluviomarinhas já foram invadidas pela
denominada carcinicultura marinha, principalmente nos últimos 15 anos, em função
das condições morfoclimáticas favoráveis à atividade e dos incentivos públicos.
Entretanto, recentemente, sobretudo após a aprovação do Novo Código Florestal, o
setor vem acenando rumo à expansão dos negócios seja por aumento de área ou
por intensificação da produção.
No município de Aracati, comunidades vêm sendo expulsas de seus territórios
devido a essa proliferação de tanques de engorda e canais para passagem dos
afluentes e efluentes das fazendas. Aquelas que resistem vêm sofrendo com as
consequenciais que esse tipo de atividade produz. Na comunidade do Cumbe,
antigos terrenos de carcinicultura estão sendo reativados e novas áreas estão sendo
invadidas para construção de mais tanques. Essa nova demanda vem promovendo
o desmatamento de áreas de manguezais e de carnaúbas, matéria-prima dos
artesãos locais. Áreas antes ocupadas por essa mata ciliar já se encontram
desnudas, o que para a bacia do rio Jaguaribe é muito prejudicial devido à ausência
das características específicas a esses tipos de vegetação, essenciais para o
entorno do rio e seus braços - gamboas.
Essa constatação foi notória no município de Aracati, pois quando a
carcinicultura invadiu as primeiras áreas de manguezais para instalação de seus
tanques, essas não possuíam valor econômico de mercado. Posteriormente, com as
exigências impostas por órgãos de fiscalização ambiental para a produção de
camarão em áreas de mangue, outras áreas mais afastadas do manguezal
passaram a serem escolhidas para a expansão da atividade.
A região estuarina do rio Jaguaribe, mais especificamente a comunidade do
Cumbe e seu entorno, apresenta processos com alto potencial degradador, como
desmatamento de mata ciliar e mangue, corte de campos dunares, e aterramento de
lagoas interdunares, facilmente observados na comparação das imagens orbitais
atuais e antigas da área. Esses processos comumente são associados a diversos
impactos locais como, por exemplo, diminuição da quantidade de mariscos, meio de
sustento de muitas famílias da região, e salinização do solo e da água, elemento
base da agricultura de quintal e essencial para a boa qualidade da água dos poços.
Além disso, há o fato de gerarem conflitos com parte da comunidade que defende a
manutenção do modo de vida comunitário e de seus costumes e tradições.
Na análise dos confrontos do Cumbe, constata-se que esses são
consequência da expansão das fronteiras de acumulação financeira em articulação
com novas formas de exploração do trabalho – via flexibilização [negação] e
reversão de direitos – assim como de geração de lucros a partir da especulação
imobiliária (ACSELRAD, 2010).
Tais conflitos colocam em xeque a visão de desenvolvimento difundida por
adeptos desse sistema, assim como intensificam a luta por mais autonomia das
comunidades que resistem a esse modo de produção e organização.
O que é posto em questão pela dinâmica conflitiva como um todo - não
necessariamente por cada ator coletivo individualmente - é o modelo de
desenvolvimento - o modo como os bens territoriais estão distribuídos
socioespacialmente (ACSELRAD, 2010).
Diante das denúncias e pautas reivindicatórias locais, o Estado responde com
muita repressão, o que gera mais tensões. Assim, a construção dessas paisagens
industriais resulta em confrontos violentos e em vários casos de violação de direitos
humanos, como no caso do Cumbe. Nesse exemplo emblemático, os pescadores/as
do mangue demonstram resistência à invasão dos empreendimentos e se mobilizam
sendo, por isso, constantemente, são criminalizados pela mídia burguesa, pelo
poder público e iniciativa privada, todos seguidores de uma mesma lógica. As ações
repressoras variam desde hostilização, ameaças, prisões arbitrárias de lideranças e
manifestantes até perseguições e violência física e moral.
Nesse sentido, o caso do Cumbe remete a dois projetos confrontantes, que se
opõem entre duas racionalidades distintas: de um lado, para as comunidades
ribeirinhas a terra representa o patrimônio da família e da comunidade,
resguardados por regras de uso e compartilhamento dos bens não comerciais,
remetendo ao conceito de teritório por, inclusive, estar encravada por muitas
histórias e simbolismos; do outro lado, o Estado e empreendedores públicos e
privados que, a partir da perspectiva do mercado financeiro, entendem o território
como propriedade e, como tal, mercadoria passível de valoração monetária. Coloca-
se, pois, em confronto diferentes ideologias: de um lado, o desenvolvimento redentor
em nome da Nação e, de outro, a concepção de direitos territoriais articulados pelas
comunidades locais.
Nesse caso, trata-se da luta pelo direito ao espaço ambiental tradicionalmente
ocupado, uma luta pela apropriação material e simbólica da natureza, pela definição
e reconhecimento dos significados atribuídos ao território em que se contrapõem
cenários de pobreza e fartura, assumindo esses dois conceitos significados
diferentes dos constantemente difundidos pelos meios de comunicação burguesa.
Analisar o meio ambiente dissociado das relações sociais provoca o
esvaziamento de qualquer discurso, partindo do ponto de vista que o ser humano é
parte integrante do que se conhece como ambiente natural ou natureza.
Há muito tempo, teóricos marxistas já afirmavam que a economia é o fator
mais determinante das relações sociais e que, portanto, a origem dos conflitos se
encontra nas relações socioeconômicas, as quais necessariamente colidem entre si
e provocam mudanças no sistema capitalista (BARBANTI JÚNIOR, 2005).
Os discursos e ações dos envolvidos refletem a forma como concebem o uso
do espaço. É mais provável, por exemplo, que moradores/as que vivem no entorno
de áreas de manguezal dependentes de seus bens e serviços ambientais defendam
sua preservação do que aqueles que não mantêm essa relação de interdependência
direta dependendo, aparentemente, apenas do espaço para a instalação de
equipamentos. Esses têm condições de se deslocar para outro lugar caso o
ambiente se apresente desfavorável, entretanto, aquele, tradicionalmente ligado ao
território, certamente, possuirá mais resistência para tomar essa decisão, sejam
quais forem os motivos, econômicos e/ou culturais.
Visto assim, o conflito é produto primordialmente das estruturas sociais e
políticas que fomentam a desigualdade, e lidar e resolver o conflito implica em
procurar formas de empoderamento e de reconhecimento dos grupos,
historicamente, marginalizados, como forma de começar o processo de
transformação. Esta abordagem entende que os conflitos são positivos na medida
em que são agentes de mudança social. Neste sentido, tem-se uma visão dinâmica
e de longo prazo do conflito.
Como é do conhecimento dos diversos movimentos sociais e apoiadores das
lutas realizadas pelos povos do mar e costeiros do Ceará, a luta pela garantia e
defesa do seu território tradicional, áreas de pesca, moradia e lazer não é de agora.
Especialmente, aquela realizada pelos pescadores/as do mangue do Cumbe contra
as violações de direitos causadas pelos projetos de desenvolvimento econômico,
como a carcinicultura e os parques de energia eólica, que invadem, privatizam e
degradam o território coletivo e de uso comum.
Nos últimos anos do século XX e início do XXI, o território tradicional vêm
sofrendo com uma série de ameaças por conta de atividades implantadas na
comunidade, as quais não respeitam a natureza e tão pouco o modo de vida dos
pescadores/as que moram e trabalham há séculos nestas áreas, hoje invadida pelos
empreendimentos econômicos.
O cercamento da comunidade por essas atividades se dá por todos os lados,
ameaçando a continuidade das relações que os pescadores/as do mangue têm com
seu espaço comunitário. Além de comprometer, diretamente, a pesca artesanal de
peixes, caranguejos e mariscos, tendo implicação direta na soberania alimentar,
cadeia produtiva, qualidade de vida e nos usos e significados que os pescadores/as
dão ao seu território tradicional.
Após anos de luta na “justiça” pela posse de uma área de manguezal
abandonada pela carcinicultura, desde 2006, em 2008 os pescadores/as do mangue
do Cumbe entram com uma representação junto à Procuradoria Federal da Justiça
do Ceará solicitando das autoridades “competentes” que a área em questão, antes
intitulada a uma portuguesa (de nome desconhecido), fosse recuperada pelo
degradador e devolvida aos pescadores/as. A intenção era impedir a expansão dos
criatórios de camarão sobre as áreas de mangue, bem como o acirramento dos
conflitos entre os pescadores/as e empresários do camarão.
No dia 15 de março de 2013, após várias tentativas de um empresário do
camarão de se apropriar da área em questão, um grupo de 27 (vinte e sete)
pescadores/as do mangue do Cumbe resolve fazer uma ocupação na área como
forma de defender seu território contra a expansão das fazendas de camarão e
defesa do manguezal, já que a área de mangue vinha se recuperando naturalmente
da devastação, promovida por alguns funcionários do carcinicultor, que, a seu
mando, cortavam e arrancavam a vegetação de mangue que nascia, a noite para
não chamar atenção.
Durante todo o período de ocupação da área de manguezal, que durou 5
(cinco) meses, 8 (oito) dos 27 (vinte e sete) pescadores/as do mangue do Cumbe
foram criminalizados pelo carcinicultor, que usando do aparato da “justiça de direito”,
ajuizou uma ação de reintegração de posse com pedido de liminar na 1ª vara da
comarca do Aracati, requerendo a saída dos pescadores da área de manguezal
ocupada. O carcinicultor alegou ser dono da área em conflito, argumento aceito pela
Juíza da 1ª Vara da comarca do Aracati sem sequer ouvir os pescadores/as.
No dia 29 de agosto de 2013, às 9h da manhã, um grupo de
aproximadamente 10 (dez) mulheres e crianças foram surpreendidos com a chegada
de um oficial de “justiça” e 15 (quinze) policiais militares do Aracati, armados, além
do carcinicultor com todos seus funcionários e mais um trator de esteira, a fim de
retirar à força as mulheres pescadoras sozinhas com as crianças que se
encontravam na ocupação, pois os maridos, pescadores, tinham saído para o
trabalho/pescar. Desta forma, após várias ameaças a máquina derrubou tudo que foi
construído durante os 5 (cinco) meses.
Naquele momento, houve uma humilhação da luta dos pescadores/as com o
uso da força e do aparato do Estado (Figura 1), de forma violenta e desigual, contra
aqueles/as que lutam e defendem o manguezal, seu meio de vida. A desocupação
foi realizada e a área de manguezal em questão foi dada ao carcinicultor, que, logo
em seguida, constrói uma cerca em toda a área de manguezal ocupada pelos
pescadores/as.

Figura 1 – Aparato policial contra pescadores/as.

Fonte: cedida por morador do Cumbe.

Passados 4 (quatro) dias após a desocupação da área, um grupo de


aproximadamente 20 (vinte) pescadores/as do mangue, resolveram construir outra
barraca fora da área de mangue cercada pelo empresário do camarão, onde eles
têm um cultivo de ostras.
Durante o período da nova ocupação na área do manguezal, mais 3 (três)
Pescadores foram criminalizados pelo carcinicultor, o qual recorreu novamente ao
aparato da “justiça” do Aracati, conseguindo aplicar uma pena a um pescador, a
pagar 6 (seis) cestas básicas, no valor de R$ 60,00 (sessenta reais) cada, por ele
simplesmente defender o manguezal (Figura 2).

Figura 2 – Luta de moradores do Cumbe em frente ao fórum da cidade de Aracati.

Fonte: cedida por morador do Cumbe.

Além dessa situação, o carcinicultor, tentou vitimar outro pescador, jogando


seu carro contra o mesmo, quando este vinha de bicicleta da barraca para sua casa.
Na delegacia do Aracati, o carcinicultor afirmou que o pescador tinha se jogado
contra seu carro, na tentativa de incriminá-lo, nada sendo providenciado pela polícia
contra essa tentativa de assassinato, passando o empresário a ser vítima neste
caso.
No dia 30 de janeiro de 2014, a Juíza da 1ª Vara da Comarca do Aracati
assinou e autorizou uma nova liminar requerida pelo empresário do camarão, contra
cinco pescadores do mangue, inclusive determinando a retirada da criação de ostras
de dentro de um dos braços do rio Jaguaribe, ou seja, de dentro da gamboa que fica
ao lado da ocupação.
Fundamentou, em sua decisão, que a criação de ostras estaria ameaçando a
criação de cultivo de camarão. A juíza autoriza a retirada da criação de ostras de
dentro da gamboa sem, mais uma vez, ouvir os pescadores/as do mangue,
atendendo mais uma vez o pedido do empresário do camarão e, logo em seguida,
ausenta-se com uma licença de 1 (um) ano.
Diante dos fatos anunciados e apresentados, temos o Estado brasileiro como
um dos principais violadores de direitos dos povos étnicos, raciais e das
comunidades tradicionais que não aceitam a degradação, privatização e invasão dos
seus territórios de uso coletivos. O desenvolvimento de certas atividades
econômicas, desse modo, configura-se como o principal responsável pela
desorganização das práticas artesanais, culturais e econômicas dos grupos
tradicionais, além da criminalização e negação de seus direitos assegurados
constitucionalmente.
Entender como se processam e quais os reais interesses do Estado,
juntamente com os empresários, em invisibilizar esses grupos sociais e suas lutas
de resistências, passa por uma mudança de postura e pensamento que vai além das
condições que são postas. É preciso romper com a estrutura que está posta e ver
esses sujeitos políticos marginalizados como produtores de conhecimento e de
formas de convivência harmoniosa com os bens naturais, importantes para sua
continuidade e reprodução social nos territórios tradicionais livres das ameaças
econômicas capitalistas.
O aumento dos conflitos por disputas de ordem econômica e social tem
elevado o número da violência no campo, onde os grupos, historicamente,
vulnerabilizados e detentores de um grande patrimônio ambiental, estão sob
ameaças das atividades econômicas, que são incompatíveis com as práticas
realizadas pelos povos tradicionais. Resultando em diversas lutas de resistências
contra as políticas econômicas adotadas pelos empresários e governos, o que faz o
Estado atuar com todo o seu aparato flexibilizando leis, violando direitos e
criminalizando os grupos sociais que lutam e denunciam as formas como o
“desenvolvimento” age nos seus territórios e comunidades tradicionais.
Se os pescadores/as do mangue do Cumbe não podem pescar, criar ostras
dentro do braço do rio (gamboa), realizar suas atividades tradicionais no manguezal
porque “ameaça” a atividade do carcinicultor, onde vão encontrar o direito de fazê-
las? Porque a “justiça” no Brasil apenas funciona contra os “pequenos”, os já
excluídos pela sociedade por serem pretos, pobres e pescadores? Já passou da
hora da “justiça” brasileira deixar sua posição de falsa imparcialidade e enxergar
com os olhos arregalados as injustiças cometidas e legitimadas por si própria,
deixando de ser seletiva ao atender apenas aos interesses de uma pequena parcela
da sociedade sedenta por dinheiro e poder.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os casos de injustiças ambientais discutidos revelam a forma como são


impostos os projetos econômicos para as comunidades e territórios tradicionais,
onde são apresentados e naturalizados como de interesse coletivo, indo de encontro
às demandas dos grupos tradicionais, considerados por muitos como um entrave
para o “desenvolvimento”. Isso faz com que os governos, com todo o seu aparato
institucional, trabalhem na implementação de políticas que atendam aos interesses
do mercado financeiro, responsável pelo financiamento de suas campanhas
eleitorais e pela governança.
Verifica-se que desde o momento do planejamento dos empreendimentos,
com a escolha do local a ser implantado, até o periodo de funcionamento da
atividade, com os impasses e impactos advindos, os moradores das comunidades
tradicionais não são considerados e mais, são ludibriados com falsas promessas
que cumprem o objetivo de facilitar a aceitação dos nativos, mesmo que a opinião
deles, na verdade, não seja levada em conta.
Diante disso, percebe-se que grande parte das reinvindicações da luta
permanente contra os impactos ambientais surgidos após esses empreendimentos
só são atendidas, e quando são, perante mobilizações e interferência da Promotoria
Pública local.
Pescadores/as do mangue do Cumbe sofrem constantes criminalizações, por
defender seu modo de vida e o território tradicional de uso coletivo, demonstra de
que lado está o Estado e a quem ele serve. A luta do grupo de pescadores/as que
resiste a essa assimetria de poder é para que seja cumprido o que está na
Constituição Federal, como os direitos dos povos de decidirem sobre o que é melhor
para suas vidas e para a coletividade, atendendo a um princípio básico, a
demarcação dos territórios comunitários e a garantia da terra para quem mora e
trabalha nela.

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*Doutoranda em Desenvolvimento e Meio ambiente pela Universidade Federal do


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Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 18, p. 371-380, 2013.

**Pós-doutorado em Planejamento e Geoecologia da Paisagem pela Universidade


de Havana-Cuba e em Educação Ambiental pela Faculdade de Educação da UFBA.
The use of cartography to the application of the dpsir model to the diagnosis of the
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environmental management. Revista Brasileira de Cartografia (Online), v.67, 2015.

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