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Marcus Vinicius de Freitas Rosa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS


O famoso Arraial da Ba-
ronesa é uma região próxi-
ma à boêmia Cidade Baixa
e correspondia à antiga
chácara da Baronesa de
Gravataí. No século XIX,
serviu como local de abrigo
e moradia para escravos
fujões, atividade que con-
tribuiu para a “má fama”
do lugar e para seu apeli-
do, “Emboscada”. Ao lon-
go da primeira metade do
século XX, passou por um
lento desenvolvimento ur-
bano, sendo zona de even-
tuais alagamentos e local
de moradia de famílias
pobres, sobretudo negras.
Vários quartéis da Brigada
Militar foram construídos
em seu entorno, que se
tornou ponto de moradia
para integrantes da milícia
estadual. O saneamento
básico e a pavimentação
das ruas ocorreram ape-
nas na segunda metade do
século XX. O nome popular
da região, “Areal”, surgiu
por consequência da falta
de saneamento básico.

Aquele espaço, em opo-


sição aos outros arraiais
de Porto Alegre, em geral
qualificados como tran-
quilos e pacatos, era visto
pelas autoridades como
“lugar de malandragem”,
de “imperiosa desordem”,
reduto de vadios e pros-

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viviam para além de suas apenas uma visão entre
“fronteiras” –, motivo pelo outras visões possíveis.
qual muitos historiadores
o classificaram como um No carnaval de 1935,
“território negro”. As prin- os integrantes do Bloco
cipais ruas associadas ao Filhos do Mar ensaiaram
carnaval daquele espaço suas apresentações sob a
urbano eram a Baronesa direção do maestro Claudi-
do Gravataí e a Miguel Tei- no Oliveira, que se “impu-
xeira. nha” nos ensaios para que
as canções do grupo fos-
As valorações negativas sem entoadas com técnica
associadas ao Areal da Ba- e qualidade. A preocupa-
Marcus Vinicius de Freitas Rosa | Acervo: DEDS

ronesa e aos seus morado- ção com a imagem pública


res ficaram conhecidas por estava presente naquele
meio da pena de diversos grupo, composto por mora-
letrados porto-alegrenses. dores de um território para
A “má fama” do lugar era o qual os poderes consti-
bastante antiga, remonta- tuídos faziam questão de
va à época da escravidão, não olhar ou de enxergar
e permaneceu conhecida com olhos bastante pre-
titutas. Abrigou em seus na cidade durante muito conceituosos. Sua “caver-
cortiços sujeitos que vi- tempo. Não é difícil per- na” – ou seja, a sede do
viam da prestação de ser- ceber que o lugar recebia bloco – ficava em uma das
viços, policiais, pequenos péssimos significados por- principais vias do Areal, a
comerciantes e operários. que seus moradores – em Rua Baronesa do Gravataí,
As frequentes inundações, grande parte, negros, en- nº 480.
derivadas de sua proximi- tre os quais muitos ex-es-
dade com o Arroio Dilúvio, cravos – eram persisten- Durante o carnaval, era
perduraram até a década temente mal vistos pelas sempre possível encontrar
de 1960, momento em classes dominantes. É im- indícios do alto nível de or-
que seus habitantes co- portante ressaltar, entre- ganização dos foliões do
meçaram a ser “retirados” tanto, que as opiniões dos Areal quando estes trata-
para outras zonas perifé- escritores, jornalistas e ou- vam de formar as comis-
ricas da cidade, como o tros letrados acerca dos in- sões para administrar os
Bairro Restinga. O Areal se divíduos que habitavam o festejos. O grupo respon-
constituiu através do sen- Areal expressavam precon- sável pela festa em outra
timento de pertencimento ceitos e estigmas cristali- importante rua da região,
por parte de seus habitan- zados na visão de mundo a Miguel Teixeira, contava,
tes e também pelo con- das elites locais. Tais for- em 1948, com os morado-
traste estabelecido entre mas depreciativas de olhar res Saturno Dutra, como
eles e os “outros” – os que para os mais pobres eram presidente; Carlos Salo-

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mão, como vice-presiden- públicos e visitas dos blo-
te; Nelson Soares e Dorival cos aos simpatizantes, fre-
Leivas, como secretários; quentemente para arreca-
Vitor Severo e Carlos Perei- dar quantias financeiras).
ra, como tesoureiros. A hie- O conjunto, composto por
rarquia e a organização in- moradores do Areal da Ba-
terna de grupos como este ronesa, foi descrito por um Parece mentira
contrastavam com a anti- jornalista como sendo um Parece
ga e persistente imagem “rancho batucado”. Sua Que eu deixei de
acerca dos habitantes do estudantina era ensaiada amar
Areal como “desordeiros”. pelo pandeirista Darcy Oli-
veira. Mais uma vez, estava Você
Na Rua Miguel Teixeira, presente a intensa preocu- Mas a culpa toda
no carnaval de 1950, a pação com o desempenho É sua
comissão organizadora so- musical, revelando a preo-
licitou, por intermédio do cupação dos festeiros com De me deixar
jornal Correio do Povo, o dormindo
sua imagem pública. Além
comparecimento de todos disso, os integrantes do Na Rua
os grupos de foliões da- Não Sei enviaram uma de Foste iludida
quela via a uma reunião. A suas composições à im-
própria existência de gru- Pelo luxo e a riqueza
prensa (A Federação, 10
pos de pessoas desempe- jan. 1933, p. 02), obtendo Hoje andas de
nhando diferentes funções a tão almejada publicação. chinelo
(presidência, diretoria, se- Era um samba-canção, in- No Arraial da
cretaria e tesouraria) dá titulado “Parece mentira”: Baronesa
uma ideia da importância
que atuar no carnaval ti- Você comigo
nha para muitos morado- Não andava
Moradores da comunidade do Areal da Baronesa | Acervo: Foto disponibilizada pela

res do Areal. Eram foliões enchapelada


que não tratavam como Não tinha luxo nem
brincadeira os dias consa- nada
grados a Momo, vistos por
Mas sempre andava
eles como algo que ultra-
calçada
passava a concepção do
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carnaval como mera folia.

Foi bem antes do car-


naval de 1933 que os foli-
ões do grupo burlesco Não
Sei começaram a sair às
ruas da cidade para reali-
zar as famosas muambas
(nome dado aos passeios

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censão social ou retorno

Moradores da comunidade do Areal da Baronesa | Acervo: Foto disponibilizada pela página Areal
financeiro. Ainda assim,
Dorvalino não abandonava
o carnaval.

O X do Problema costu-
mava ensaiar nos fundos
de uma churrascaria da
Rua Baronesa do Gravataí,
cujo quintal foi transforma-
do em um terreiro de sam-
ba. Em certo momento, o

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repórter fez um comentá-
rio bastante significativo
em relação ao encontro
do grupo: “Nada disso, se-
nhores! O tempo não vai
fechar. Isto é apenas o en-
saio”. A pecha de “brigões”
Desfiles e publicidade chamava-se Dorvalino Fo-
gaça. No início da década e “desordeiros” orientava
das canções, para aqueles
de 1930, ele havia inte- o modo como muitos jor-
foliões, tinham o mesmo
grado o bloco Os Tesouras; nalistas (e, provavelmente,
objetivo: visibilidade so-
em 1949, completou doze muitos leitores da Revista
cial, tão importante para
anos como compositor. do Globo) olhavam para os
sujeitos “invisíveis” (ou
Embora Dorvalino buscas- moradores do Areal. Dorva-
malvistos) durante a maior
se divulgar suas melodias lino, contudo, percebia que
parte do ano, e que, tal-
pelas rádios da cidade, o reconhecimento não era
vez nos dias dedicados a
essa dedicação não lhe algo facilmente obtido, pois
Momo, pudessem dar al-
propiciava renda alguma. assim dizia uma de suas
guma publicidade às suas
Suas próprias palavras canções: “Sei que existe no
precárias condições de
são significativas: “Sou Sul diversos autores/Mas
vida.
contínuo do Banco do Rio estes autores não ganham
Durante os folguedos Grande do Sul e é com or- valor”. Longe de celebrar
de 1949, o jornalista Nel- denado desse emprego uma identidade nacional
son de Assis se dirigiu ao que sustento casa, mulher durante o tríduo momesco,
Areal para fazer uma re- e quatro filhos. A música muitos foliões como Dorva-
portagem sobre o bloco X não me tem dado muito”. lino buscavam ser vistos e
do Problema (Revista do A busca por visibilidade, reconhecidos por uma so-
Globo, 19 fev. 1949, p. 31- aceitação e reconhecimen- ciedade que os excluía du-
34). Seu líder e ensaiador to não era garantia de as- rante o ano inteiro.

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Local que contava com ele não ganhavam valor.
má fama desde o século Fogaça era apenas mais
XIX, o Areal da Baronesa um folião em busca de vi-
era, conforme a opinião sibilidade durante o carna-
das autoridades públicas val.
e letrados locais, um antro
de marginais, desordeiros, Ao contrário da Ilhota,
criminosos e mulheres de região pobre que acabou
vida fácil. Todavia, dificil- removida violentamente
mente esses pontos de pela urbanização, as duas
vista seriam compartilha- principais ruas do Areal –
dos com os festeiros que Miguel Teixeira e Baronesa
lá moravam ou que por lá do Gravataí – continuam
circulavam. Muitos foliões existindo com os mesmos
daquela região formavam nomes. O Areal, hoje reco-
grupos com hierarquias in- nhecido como quilombo,
ternas e faziam reuniões está situado entre os atu-
para tratar de assuntos ais bairros Cidade Baixa,
que – do ponto de vista Menino Deus e Praia de
dos próprios moradores – Belas. Não muito distante
eram importantíssimos: os do centro de Porto Alegre,
ensaios das canções e as o Areal da Baronesa con-
confecções das fantasias tinua sendo, em pleno sé-
que seriam apresentadas, culo XXI, um dos espaços
a organização dos blocos referenciais para os carna-
ou a própria administração vais de Porto Alegre.
dos folguedos. Isso certa-
mente destoava da pecha
de desordeiros e indicava ROSA, Marcus V. de F.
REFERÊNCIAS

uma preocupação com a Quando Vargas caiu no


imagem pública. A busca samba: um estudo sobre os
por publicidade e reconhe- significados do carnaval e
cimento, aliás, ficou bas- as relações sociais entre os
tante explícita nas palavras poderes públicos, a imprensa
e os grupos de foliões em
de Dorvalino Fogaça, que
Porto Alegre de 1930 a 1940.
estava plenamente ciente
Mestrado em história. Porto
das dificuldades que a ele Alegre: UFRGS, 2008.
se apresentavam quando
_______. Além da
buscava espaço para seus
invisibilidade: história social
sambas, motivo pelo qual
do racismo em Porto Alegre
concluiu em uma de suas durante a pós-abolição (1884-
canções que, no Sul do 1918). Doutorado em história.
Brasil, compositores como Campinas: UNICAMP, 2014.

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