Você está na página 1de 14

ADAMA E

NASCIMENTO GRANDE:
VALENTES DO RECIFE
DA PRIMEIRA
REPÚBLICA.

Ivaldo Marciano de França Lima

Introdução

Este artigo é tão somente uma breve dis- circundava esses famosos valentes, que
cussão sobre os valentes (também conhe- foram retratados por vários folcloristas e
cidos como brabos)' e de como eles foram memorialistas recifenses de modos bastan-
representados por aqueles que sobre eles te diversos. Adama foi representado como
escreveram (memorialistas, folcloristas e in- um arruaceiro e marginal da pior espécie,
telectuais em geral). Estas linhas também ao passo que Nascimento Grande ocupou
devem ser vistas como um dos frutos de uma o lugar do herói, e daquele que encarnava o
pesquisa maior sobre a capoeira em Per- homem honesto, que só lutava em legítima
nambuco e os discursos que foram constru- defesa. Essas representações me fizeram
ídos sobre essa prática em outras regiões pensar sobre as muitas possibilidades em
do país, sobretudo Rio de Janeiro e Bahia. torno da memória, e de como ela é constru-
Dados os limites de espaço, irei ater-me à ída. Tal questão levou-me a buscar os indí-
discussão em torno dos valentes que cons- cios e fragmentos sobre a vida de ambos
tituirá o foco central deste trabalho. Ao dis- valentes, no intuito de mostrar que estamos
correr sobre as histórias de Adama e diante de dois homens, inseridos em uma
Nascimento Grande, uma de minhas metas complexa teia de sociabilidades, e que fre-
foi mostrar um pouco do universo social que qüentavam as inúmeras diversões popula-

Doutorando em História pela 11FF. Este artigo Foi


apresentado sob a forma de comunicação no xn Encontro
Regional de História da ANPuH do Rio de Janeiro.
res que existiam no Recife dos primeiros populares. Assim como entre os capoeiras do
anos do século passado (mamulengos, bois, Rio de Janeiro, também em Pernambuco
pastoris além do carnaval). Por viverem em existiram 'bem nascidos" que 'se desviavam
um constante trânsito entre as camadas so- do bom caminho" para seguir as veredas da
ciais populares, e o contato com alguns po- jogatina e da capoeiragem, acompanhando
derosos" da época, Adama e Nascimento alguns célebres valentes como Nascimento
Grande podem ser considerados como ho- Grande ou João Sabe-Tudo, para pôr fim a
mens de experiências complexas, e possi- um pastoril ou um bumba-meu-boi.
velmente viveram situações que os seus Adama circulava por vários ambientes e
contemporâneos não chegaram a experi- mundos ao mesmo tempo, pois além de ser
mentar, mas isso não impede que tenhamos um "conhecedor de todos os truques da ca-
estes dois valentes" como homens popula- poeiragem" (Mello, 1953:139), era também
res, e suas histórias podem contribuir na elu- "um grande admirador do carnaval, diretor
cidação de questões relacionadas à cultura e fundador do Maracatu Oriente Pequeno"
popular e à sociedade recifense, de manei- (Mello, 1953:141). Valente, capoeirista, ma-
ra geral.2 racatuzeiro e profundo admirador dos pas-
Os temas que ainda hoje prevalecem tons, eis uma excelente combinação que me
nos livros e artigos de boa parte dos histori- motivou a perseguir o maior número possí-
adores pernambucanos não tomam as prá- vel de pistas deixadas por Adama (ou Pauli-
ticas e os costumes construídos pelas no José dos Santos), durante sua trajetória
camadas populares como objeto, e quando nesta vida terrena. Há, quanto ao seu nome,
o fazem, "esquecem" de pensar os sentidos duas versões: segundo Guilherme de Araú-
que possuíam para os seus praticantes. A jo (1946), Adama se chamava Paulino de
história de Adama, assim como a de outros Santana, ao passo que Oscar Mello (1953)
valentes, precisa ser reescrita como forma afirmou que o "verdadeiro" nome do diretor
de mostrar um complexo quadro de socia- do Maracatu Oriente Pequeno era Paulino
bilidades e sentidos em que estavam imer- José dos Santos. Ao que parece, este últi-
sos. Estes valentes foram muito mais do que mo nome é, possivelmente, aquele pelo qual
simples arruaceiros ou desordeiros, e de- foi batizado Adama, uma vez que o mesmo
vem ser vistos como homens profundamente se encontra nas licenças dadas pela polícia
vinculados com os valores de sua época para o Maracatu Oriente Pequeno desfilar
pois, do contrário, não teriam sobrevivido - nos carnavais de 1909 e 1910, conforme as Adama e
Nascimento Grande:
pelo menos um deles (Nascimento Grande) publicações do Jornal do Recife de 21102/ valentes do Recife
da Primeira
- até os dias de hoje no imaginário popular, 1909, p. 01 e 06102/1910, p. 02. Adama tam- República
nos cocos e ladainhas de capoeira que ain- bém visitou a redação desse mesmo jornal
da são cantadas pelas ruas do Recife. junto com outros diretores do seu maraca-
As histórias de Adama e de Nascimento tu, em 18102/1909, tendo essa visita sido Ivaldo Marciano
de França lima
Grande, bem como de outros valentes, ga- objeto de notícia na edição de mesma data,
nham sentido, sobretudo pelo fato de os per- na página 01. O nome divulgado na matéria
sonagens terem sido afro-descendentes do coincide com o que foi informado nas listas
início do século XX que se utilizaram seus de licença e por Oscar Mello.
conhecimentos da capoeira, como forma de Infelizmente os vestígios encontrados
buscar inserção social e legitimidade em uma sobre Adama e Nascimento Grande não fo-
sociedade hostil a tudo o que não seguisse o ram suficientes para esclarecer uma série
padrão ocidental. Há que se levar em conta, de indagações. Não há certezas, por exem-
porém, que nem todos os homens denomi- plo, sobre a forma como se deu a morte de
nados por valentes ou "brabos" eram afro- Adama, uma vez que existem dúvidas em
descendentes ou oriundos das camadas torno do ano, e da maneira como ele mor-

50
reu. Segundo Guilherme de Araújo, o faleci- aos mestres, mestras, caboclos, caboclas,
mento de Adama se deu em conseqüência pretos velhos, pretas velhas, exus e pom-
de uma surra que tomou em um pastoril lo- bagiras 3 Aelas recorrem indivíduos em bus-
calizado na Rua da Concórdia, ao passo que ca de proteção dos encantados para que nas
Oscar Mello confirma o motivo da morte, escaramuças do dia-a-dia não sejam acer-
mas em um pastoril existente na Campina tados pelas balas ou facas dos seus adver-
do Bodé. Raimundo Arrais (1998) afirma que sários. Infelizmente não encontrei ainda
a morte de Adama se deu após ele ter leva- nenhum mestre ou exu da jurema que te-
do uns tiros, disparados na Rua Nova, e cita nha como narrativa mítica o fato de ter sido
Oscar Mello como fonte. Essa informação, no passado um valente ou capoeira, o que
contudo, não se encontra na obra escrita por não significa dizer que se deva exclui esta
este último autor, restando-me a dúvida so- possibilidade.
bre a fonte da informação utilizada por Ar- Apesàr das muitas dúvidas, também
raia Em todas as versões não existe uma existem as certezas as quais foram cons-
data precisa em que teria ocorrido a morte truídas a partir do pouco que consegui reu-
de Adama, apesar de que Oscar Mello afir- nir sobre as vidas de Adama e Nascimento
ma ter sido em 1908, pois este foi p último Grande, Para que muitas dúvidas em torno
ano de desfile do Maraôatu Oriente Peque- de ambos fossem postas a limpo, utilizei-
no, o que efetivamente sabemos ser uma me da estratégia de estabelecer paralelos
informação incorreta, uma vez que o referi- com a história de outros valentes. Também
do maracatu obteve licença para desfilar nos recorri às informações existentes sobre o
anos de 1909 e 1910. Oriente Pequeno para obter êxito nas dis-
Também existem dúvidas quanto à rela- cussões sobre diversos enigmas existentes
ção dos valentes com religiões afro-des- em torno da vida de Adama. Revelo que,
cendentes; e desconfio que os mesmos para utilizar-me desta estratégia, inspirei-me
possuíam, ao menos, algum vinculo com o na obra de Eduardo Silva (1997), que utiliza
catimbó, uma vez que há referências alusi- recurso semelhante, ao narrar a história dos
vas ao "corpo fechado" desses indivíduos migrantes baianos para o Rio de Janeiro
na tradição oral, sendo esse o segredo da- como forma de estabelecer paralelos entre
queles homens para enfrentar a polícia e os eles e Dom Obá II, um homem afro-descen-
seus muitos rivais. Este é o único indício em dente que recebia tributos de seus súditos
Adania e torno da relação dos valentes com as religi- no Rio de Janeiro, durante a segunda meta-
Nascimento Grande:
valentes do Recife ões afro-descendentes, uma vez que ainda de do século XIX. Muitas são as lacunas na
da Primeira
República não fui premiado com outras informações documentação sobre os valentes, e o que
ou pistas mais substanciais. As cerimônias existe é quase que praticamente o olhar da
para "fechamento de corpo" eram prepara- repressão ou da visão eivada do preconcei-
Ivaldo Marciano das por mestres catimbozeiros em sessões to social e do juízo de valor. Infelizmente não
de França Urna
específicas e consistiam em rezas "fortes" temos documentos ou livros escritos pelos
para impedir que esses homens fossem próprios valentes, ou por um Plácido de
baleados ou cortados por armas brancas Abreu, que descreveu a capoeira carioca a
diversas, tais como punhais. Uma dessas partir de um olhar "de dentro", uma vez que
cerimônias que se tornou célebre, foi justa- a praticava (Abreu: 1886). Porém, mesmo
mente a que "fechou o corpo" de ninguém sendo a documentação e boa parte da bibli-
menos do que Mário de Andrade, quando ografia sobre o tema marcada pelo olhar da
em uma de suas andanças pelo Rio Grande repressão e do preconceito, nos são úteis
do Norte (Andrade, 2002). Na atualidade para mostrar uma série de pistas e indícios
ainda existem cerimônias de fechamento de sobre a forma e o modo como os valentes
corpo na Jurema, religião apoiada no culto agiam e significavam o mundo.'

51
Os Valentes: sucedâneos dos capoeiras creio, porém, que parte significativa desses
Os valentes foram definidos de diferen- personagens dispusesse de outros serviços
tes maneiras por aqueles que sobre eles es- paralelamente ao cumprimento desse papei.
creveram. Guilherme de Araújo afirmou que Oscar Mello forneceu importante pista sobre
os valentes "eram indivíduos que se davam esse aspecto ao afirmar que havia brabos pro-
ao crime, sob a proteção de certos figurões' prietários de casas de maxixe e jogos (Mello,
e gostavam de acompanhar as bandas de 1953: 47). Nesse sentido, faz-se necessário
música ( ... )" (Araújo, 1946:120). Ascenso dizer que aqueles homens não eram ape-
Ferreira, famoso poeta e folciorista pernam- nas protegidos dos políticos ou dos podero-
bucano, afirmou que os brabos eram "( ... ) fi- sos da época, mas "empreendedores" com
guras de espadachins, cujas disputas, a tiros ações variadas, além do que o próprio Má-
de pistola Combiain, punhais e facas-de-pon- rio Sette, que não escreveu frases agradá-
ta, enchiam de pavor os pacatos burgueses veis sobre esses senhores, também afirmou
de nossa terra ( ... )" (Ferreira, 1942). Oscar existirem "brabos de várias categorias, uns
Meio os definiu como faquistas e guarda-cos- da alta, outros de esferas inferiores" (Sette:
tas dos políticos, ao passo que Mário Seu e 1981, 87).
os denominava como capangas dos chefes Os valentes possuíam os seus territóri-
políticos (Seife, 1938: 85). Raimundo Arrais, os, semelhante às maltas de capoeira cari-
historiador da contemporaneidade, concei- ocas, descritas por Soares (1994), mas não
tuou-os como "continuadores das habilidades viviam em grupos organizados como aque-
de luta e da tradição da ilegalidade que os les, mesmo contando com amigos para irem
capoeiras haviam exprimido em mais alto em seu socorro nos momentos difíceis, a
grau e disseminado nos meios pobres e sus- exemplo do caso da prisão de Adama, que
peitos da cidade" (Arrais: 1998, 95). teve os préstimos de seus amigos ao ser
Diferentes olhares e representações aprisionado. Seus companheiros, entretan-
para homens que gozavam da proteção de to, não lograram êxito na empreitada; e Ada-
políticos e figurões do Recife da época e ma passou alguns dias na cadeia, após ter
para eles vendiam seus serviços baseados sido surrado duramente (Mello, 1953: 141).
na violência. Alguns desempenhavam tam- Os valentes circulavam por toda a cida-
bém as funções de guarda-costas e outros de e viviam, segundo Mário Sette, "de favo-
cometiam crimes a mando de seus chefes, res, empregos e regalias" (Sette, 1981:87).
Entretanto, a maior fonte de renda desses Adama e
assim como existiram os que possuíam Nascimento Grande:
empregos fixos, a exemplo de Nascimento homens parece mesmo que foi a prestação valentes do Recife
da Primeira
Grande, que era estivador nas docas do de serviços como guarda-costas para os República
porto. Os mais famosos foram, além deste "maiorais" da época. Essa questão, no en-
a quem já me referi, Adama, Jovino dos tanto, não deve ser vista de forma simplista
Coelhos, João Sabe Tudo e Apoiônio da como foi tratada até hoje, pois o emprego Ivaldo Marciano
de França Lima
Capunga. Segundo Ascenso Ferrira, os bra- de guarda-costas era uma das poucas pos-
bos possuíam posições definidas nos seus sibilidades dadas a indivíduos afro-descen-
bairros e ocupavam diversos postas de tra- dentes que buscavam se inserir em uma
balho, tais como estivadores, peixeiros, fei- sociedade conservadora e hostil às práticas
rantes. Alguns desses homens também e costumes afro-descendentes. Nesse sen-
cumpriam papéis de pequenos comerciantes, tido, nada melhor do que a venda de seus
o que de imediato me faz perceber a existên- serviços baseados no conhecimento da ca-
cia de grande dinamismo nesses indivíduos. poeiragem e da violência para arrecadarem
Não há como afirmar, contudo, que não exis- alguns recursos e gozarem de uma vida bem
tissem valentes que se empenhassem ape- melhor e mais respeitada do que a de seus
nas em cumprir o papel de guarda-costas, iguais. Outro aspecto importante diz respei-

52
to ao fato de que, se existiam figurões que os maracatu, conforme atesta a existência
os financiavam e protegiam, significa dizer de uma coluna nos anos 1920, nas páginas
que os valentes não eram elementos apar- do Jornal do Recife, denominada por "no
tados da sociedade (conforme os memoria- quadro de Adama". 1 Gilberto Freyre, ao dis-
listas que insistentemente os retrataram correr sobre o Recife, aludiu ao Oriente Pe-
como vagabundos, marginais e arruaceiros), queno como um dos últimos maracatus
mas frutos dela mesma. Tanto Adama como "ricos" que existiram no passado:
Nascimento Grande são bons exemplos Aliás, o turista, podendo, não deixe
para mostrar como o lugar de valente aufe- de ver um maracatu do Recite. Ainda há
riu legitimidade e reconhecimento social alguns: Leão do Norte, Cambinda Nova,
para alguns indivíduos afro-descendentes. Pavão Dourado, Estrela Brilhante, Leão
Nascimento Grande, aliás, é ainda hoje Coroado. Vão mantendo como podem a
reconhecido como herói popular, e mesmo tradição dos ricos maracatus do tempo
os memorialistas que escreveram sobre ele, de negros da Costa ricos. O último pare-
ce que foi o Oriente Pequeno" (Freyre:
descreveram-no com o devido respeito que
1942:106).
não tiveram para com os seus pares. Mes-
mo ao narrar seus assassinatos, fizeram-no Freyre não mencionou o nome de Ada-
com a condição de que se tratava de legíti- ma, mas importa saber que o Oriente Pe-
ma defesa, que ele nunca atacou ninguém, queno foi considerado por algum tempo
e sempre recorria às suas habilidades cor- como uma das maiores referências entre os
porais, negando-se ao uso de armas de fogo maracatus. O próprio Oscar Mello, que não
contra seus inimigos (Mello, 1953: 45-48). deu boas credenciais sobre Adama, confir-
Outros memorialistas e folcloristas foram ma ter sido o Oriente Pequeno bastante res-
unânimes em afirmar que Nascimento Gran- peitado entre seus pares e assim também
de foi o único valente que morreu com ida- procedeu Antônio Freire, em matéria escri-
de avançada, de causas naturais, sob a ta no Jornal A Província de 10/0211929, p.
proteção de José Mariano Filho. Sua alcu- 03, ao afirmar que:
nha era a de o "brabo dos brabos". "O Recife do nosso século alcançou um
Os memorialistas foram, portanto, gran- maracatu cujo esplendor lembrava a
des incentivadores dessa aura de herói que pompa antiga: o Oriente Pequeno. Era
uma nação guerreira. Nos últimos anos,
recaiu sobre Nascimento Grande. Ainda hoje sob as fortes sugestões do progresso, o
Adarna e
Nascimento Grande: um célebre samba de coco é entoado em Oriente Pequeno arrastou pelas ruas
valentes do Recife sua homenagem, retratando-o como o va- enormes canhões de pau".'
da Primeira
República lente dos mais valentes, e algumas ladai- Nessa mesma matéria, Antônio Freire
nhas de capoeira narram suas proezas e mostra a ambigüidade que a memória de
feitos "heróicos". Nascimento Grande teve Adama trazia à tona, posto que, enquanto o
Ivaldo Marciano sua descrição feita por um folclorista reci-
de França Lima seu maracatu lembrava uma suposta idéia
fense, que escreveu: "Famoso no Recife foi de beleza, importante referência e esplen-
Nascimento Grande, o brabo dos brabos. dor dos maracatus do passado, ele, o seu
Alto, longos bigodes, chapéu de feltro, ben- "chefe", representava a figura da desordem
gala que pesava bem quinze quilos. Por sua e da violência, marca bem presente entre
valentia e agilidade, vivia sempre à volta com aqueles que sobre Adama escreveram:
outros capoeiras, travando combates que
ficaram na memória do povo" (Rabello, (..) Mas parece que perdeu a guerra;
decaiu. E morreu, com o falecimento de
1978:114). Adama. O desordeiro que era o seu che-
Adama não teve a mesma sorte que fe. Com o Oriente Pequeno os outros
Nascimento Grande, apesar de ter sido por quase todos. Os que restam são som-
muitos anos uma espécie de referência para bras dos belos maracatus antigos!

53
O 'chefe desordeiro" do Oriente Peque- Outra questão importante diz respeito à
no era também importante referência para naturalização da relação entre os valentes
os maracatuzeiros de sua época, apesar das e as bandas de música, assim como essas
constantes associações que dele fizeram com os capoeiras. As bandas de música,
com a violência. Mas era Adama violento? conforme Raimundo Arrais, possuíam inten-
Um dos aspectos que os memorialistas mais sa vida na cidade, além de muitos partidári-
enfatizaram diz respeito à extrema violên- os e não acharia estranho se Adama ou
cia praticada pelos valentes, que não deve, Nascimento Grande mostrassem predileção
entretanto, ser vista como algo exclusivo por uma ou outra, mas isso está longe de
daqueles homens, sobretudo, devido à gran- constituir algo natural (Arrais, 1998:81-83).
de quantidade de armas (punhais, facas A forma com que diversos autores interpre-
peixeiras e pistolas) apreendidas pela polí- taram a descrição feita por Pereira da Cos-
cia entre os anos de 1904 a 1905, o período ta sobre os capoeiras da segunda metade
de auge dos valentes. A "valentia" era algo do século XIX, apontou para a naturaliza-
disseminado na sociedade que se reconhe- ção da relação entre homens e bandas de
cia nos valentes, dado o longo tempo que música, como se não houvesse explicações
existiram, além de outros sinais que me per- que fugissem da tendência natural,1°
mitem afirmar ter sido a época das mais Valentes: festeiros e bem articulados
agitadas em termos de violência. Devo lem- socialmente
brar que existiam conflitos corporais no car- No tocante às diversões, os valentes le-
naval, envolvendo lutas entre as diversas vavam uma vida aparentemente normal para
agremiações populares. O carnaval sofreu a época. Os memorialistas foram unânimes
constantes intervenções no sentido de higi- em indicar suas sociabilidades, e preferên-
enizá-lo e as diversas portarias dos chefes cias pelas festas populares, fosse um pas-
de polícia, alusivas à lei municipal n 9 04 toril, coco, bumba-meu-boi, fandango ou
podem ser vistas como importante evidên- mamulengo. Creio que uma das formas que
cia nesse sentido. 8 Ao longo do ano, as cons- os valentes tinham para demonstrar o seu
tantes brigas entre os partidários das bandas poder perante os seus contemporâneos, era
de música, bem como as sucessivas arrua- através do recurso da violência que utiliza-
ças que existiram nos pastoris, bumba meu vam para acabar com esses eventos que
boi e outras diversões populares também freqüentavam. Seguramente a fama que Adama e
apontam no sentido de que a violência era obtinham nesses episódios de uma socie- Nascimento Grande:
algo bastante generalizado nessa socieda- valentes do Recife
dade que se via valente, contribuía para da Primeira
de. Não devo esquecer de mencionar que aumentar o prestigio social desses brabos, República
mesmo durante as eleições, era fundamen- sobretudo na hora de barganhar seus gan-
tal contar com braços fortes para a defesa hos junto aos "figurões" a quem prestavam Ivaldo Marciano
dos "interesses" políticos e bons "argumen- serviços. Não posso, entretanto, considerar de França Lima
tos" para vencer os inimigos: vários são os que todas as arruaças eram fruto de ações
casos de assassinatos de eleitores e de pensadas e, possivelmente, muitas das pe-
candidatos no final do século XIX e início do ripécias que estavam por trás dessas "ativi-
XX, sendo célebre o da morte de José Ma- dades acaba-festas" advieram de interesses
ria Belo, em plena secção eleitoral, no ano diversos, mas não se pode descartar o fato
de 1895. Se os "populares pendiam ao cri- de que esses valentes também pensavam
me", conforme as letras do chefe de polícia no quanto lucravam em termos de prestígio
da época, o Sr. Dr. Ulisses Gerson Alves da quando derrotavam um policial ou acaba-
Costa, então não eram os valentes algo exó- vam com uma festa.
tico ou estranho nessa sociedade recifense Quanto a' "predileção natural" pelos pas-
dos primeiros anos do século XX.9 toris, deixo essa afirmação para os memoria-

54
listas que me antecederam, mas não posso zer que o ato de pôr fim a uma festa é bas-
deixar de afirmar que Adama é um excelente tante significativo no sentido de auferir não
exemplo para mostrar a dinamicidade de um só fama e legitimidade, mas também po-
valente que gostava de pastoril, a ponto de der simbólico ao valente que conseguia re-
ter praticamente morrido em um. Aliás, ele alizar tal proeza. Os seus serviços, quando
também gostava de maracatu e, como já vi- negociados com um "figurão", eram valori-
mos, foi o principal articulador de um deles. zados conforme o prestígio e a fama que
Por mais que Adama tenha sido representa- por acaso possuíssem. Nesse sentido,
do como um arruaceiro e marginal, o fato de creio que a idéia de naturalizar a violência
a licença para o desfile do Oriente Pequeno como algo inerente aos valentes é muito
ter saído em seu nome, nos anos de 1909 e mais um desconhecimento dos significados
1910, além da notícia em que foi destaque e sentidos que existiam em torno desses
no Jornal do Recife por ocasião de sua visita homens de um Recife de outrora. Acabar
à redação daquele periódico (um dos maio- com um pastoril ou enfrentar a polícia não
res do Recife dos primeiros anos do século eram atividades desprovidas de significa-
XX) mostra um pouco da complexidade que dos, sobretudo quando sabemos da forte
envolve este nosso personagem. antipatia que grassava entre os populares
Bem articulados socialmente, eis urna das contra esta última.
melhores definições que encontrei para me Os mamulengos indicam um importante
referir aos valentes, pois acima de tudo, pos- indicio de como eram pensadas as questões
suíam ligações com homens da elite, e vín- relacionadas à bravura e à valentia da socie-
culos com populares, alguns dos quais dade da época. O próprio termo "valente" já
solidários nos momentos de se defrontarem denuncia que há algo de estranho, por se re-
com a polícia, como foi o caso de Adama. ferir a homens que utilizavam a capoeiragem,
Para os momentos de confronto, ou de ten- mas não foram representados pelos memori-
tativa de se livrar dos braços da lei, era fun- alistas e folcloristas simplesmente como ca-
damental ter amigos, o que é possível de se poeiras. Devo, porém, considerar que em torno
perceber não só no caso de Adama, mas em dessa questão existem muitos aspectos por
outros tantos episódios noticiados nos jornais. analisar, uma vez que alguns autores costu-
Se não conseguiam ser soltos pelos amigos mam homogeneizar os valentes e capoeiras
populares no ato da prisão, valia então o re- como se fossem os mesmos tipos sociais.
Adarna e
Nascimento Grande:
curso dos "amigos da elite". Aliás, tanto Os- Contudo, predomina entre os memorialistas e
valentes do Recife car Mello, como Mário Sette foram unânimes folcloristas a idéia de que os valentes são os
da Primeira
República em afirmar que, se os valentes fossem pre- naturais sucessores dos capoeiras. Tal con-
sos, logo ganhavam a liberdade, posto que ceito é mais bem definido por Raimundo Ar-
um dos quesitos de prestígio para o figurão rais, um historiador da contemporaneidade,
Ivaldo Marciano que os defendia dizia respeito à demonstra- que assume a idéia de terem sido os valentes
de França Lima
ção pública de que o seu protegido não fica- aqueles que sucederam os capoeiras após
va na cadeia por muito tempo. Adama, por violenta repressão a que foram submetidos
exemplo, ficou preso por apenas dois dias, o estes últimos. Tanto os valentes quanto os ca-
que não foi suficiente para livrá-lo do espan- poeiras eram exímios conhecedores da capo-
camento a que foi submetido. eiragem, o que nos leva a pensar terem
As amizades também eram importan- efetivamente sido os primeiros os sucedâne-
tes na hora de acabar com as festas, e Nas- os dos segundos, mas existem aspectos com-
cimento Grande, quando se decidia pôr fim plicadores que me fazem duvidar dessa
a um pastoril, fazia-o também (mas não so- suposta continuidade, a começar pelo fato de
mente) em companhia de 'figurões" ou dos que a campanha de repressão que se abateu
filhos desses. Mais uma vez insisto em di- sobre os capoeiras ocorreu entre os anos de

Mil
1904 a 1908, supostamente o mesmo período idade, o nome de Adama sequer é lembrado
de combate aos valentes. A exigüidade do es- como alguém importante de outrora. Poucos
paço, contudo, deixará essa questão para ser foram os nomes dos valentes que chegaram
discutida em outro momento. até os nossos dias e a grande parte não o foi
Quanto aos significados existentes em tor- pela memória dos populares, mas através dos
no do ideal de valentia que permeavam a so- relatos e crónicas que foram escritos por al-
ciedade recifense, devo insistirque estou mais guns folcloristas e memorialistas pernambu-
uma vez diante dos enigmas que o tempo e a canos, os quais atribuíram contornos
história deixam para a posteridade. Antes de consensuais aos valentes, impondo-lhes a
tudo, os valentes (também denominados por pecha de violentos, arruaceiros e criminosos.
brabos) eram reconhecidos socialmente como Como exceção, insisto em lembrar que a
tais, mesmo que isso implicasse antipatias ou construção da memória em torno de Nasci-
desprezos. E esse reconhecimento advinha mento Grande se deu a partir de outros as-
das peripécias e conquistas, a exemplo dos pectos, quais sejam, as suas façanhas e
fatos em tomo da figura de Nascimento Gran- proezas heróicas. Tanto Ascenso Ferreira
de, que matou o valente conhecido por Corre quanto Oscar Mello foram unânimes em nar-
Hoje após ter se livrado de um tiro por ele des- rar os grandes feitos e proezas do "valente
ferido; ou de quando o "brabo dos brabos" dos mais valentes" ou do "brabo dos brabos".
matou João Sabe Tudo em plena Pracinha do Adama não teve a mesma sorte, assim
Diário. As façanhas são muitas, e os significa- como os seus pares de valentia e brabeza.
dos também. Ser conhecido era fundamental Mesmo Guilherme de Araújo, bastante ran-
para o valente, e isso passava também por coroso em sua escrita sobre esses homens
"acabar" com o maior número possível de pas- do passado, teve bastante cuidado ao afir-
toris e bumbas-meu-boi. Esses leitos, longe mar que Nascimento Grande se destacava
de constituírem simples violência gratuita, au- dos mais valentes. No geral, a memória des-
feriam fama e legitimidade aos valentes. Não se valente foi construída a torná-lo um herói
se pode pensar nesses homens como despro- que morreu velho, devido ao respeito que
vidos de táticas para a busca da legitimidade, desfrutava de seus contemporâneos, sufici-
e a violência era um forte componente dessa ente para não ser preso pela polícia e ata-
sociedade, a exemplo do carnaval que, como cado ou morto pelos seus rivais. Eis uma
já vimos, foi palco de várias intervenções higi- construção complexa, repleta de significa-
enizadoras com vistas a controlar os muitos dos, ainda por serem desvendados, e longe
Adama e
Nascimento Grande:
conflitos que existiram no tríduo momesco por de ser inofensiva ou ingênua. O que está valentes do Recife
anos e anos. A fama do Oriente Pequeno, da Primeira
por trás do fato deter sido Nascimento Gran- República
como maracatu belicoso e que derrotava- os de alçado ao lugar de herói, ao passo que
seus congêneres: ou na porrada ou no brilho, Mama e os demais foram colocados na vala
por sinal, é significativa para pensar o grau de comum do crime e da desordem? Ivaldo Marciano
de França Lima
violência daquela sociedade.'1 Há também que considerar as constantes
A memória em torno dos valentes: definições infantilizadoras desses memorialis-
simples reminiscências? tas e boa parte dos folcloristas que represen-
Não se pode dizer que a memória sobre taram os capoeiras e valentes como homens
os valentes é poderosa, ou que constitui um tendentes ao crime, á arruaça e à desordem.
símbolo cultuado por amplos setores da so- A questão em tomo do capoeira e das bandas
ciedade recifense atual. Excetuando alguns de música é emblemática nesse sentido. Se
poucos capoeiristas e outros tantos "tirado- Jovino dos Coelhos ou Adama eram marginais,
res de cocos", não conheço quem cultue a Nascimento Grande, ao contrário, não ataca-
memória desses ilustres senhores do passa- va ninguém, a não ser em caso de legítima
do. Mesmo entre os maracatuzeiros da atua- defesa. As histórias dos feitos de Nascimento

56
Grande podem ser pensadas também pelo mento destes homens do que o da "tradu-
campo do amálgama que a História toma jun- ção" de uma suposta realidade. Estou falan-
to ao mito, misturando-se em uma narrativa do de uma memória eivada de interesses
de exaltação e que é usada como legitimado- sociais bem distintos daqueles sobre os quais
ra no presente - no caso, por alguns capoeiris- foram escritas as narrativas, de modo que há
tas do Recife. Mais uma vez lembro da letra brutais distâncias entre as representações
de um coco que ainda hoje é cantado por al- construídas por esses folcloristas e memori-
guns tiradores: Valente dos mais valentes era alistas e a prática efetiva das pessoas que
Nascimento Grande! e a verdade é sagrada e serviram de objeto para os seus escritos,
não se esconde, valente dos mais valentes era permeados de olhares infantilizadores que
Nascimento Grande". naturalizaram a relação desses homens com
Estamos diante de um herói construído as mulheres e as bandas de música 13, des-
para servir a que interesses? Quais as in- crevendo-os de modo preconceituoso (não
tenções que se escondem por trás dessa esqueçamos dos adjetivos: marginais e arru-
construção? Devo lembrar que na Bahia as aceiros) e infantilizador. Os valentes não fo-
figuras de Bimba e Pastinha atingiram di- ram percebidos como homens coerentes com
mensões que variam entre o lugar de heróis uma época fortemente baseada na violência.
à de mantenedores da tradição. Aliás, para E o enaltecimento dos feitos heróicos de Nas-
este último aspecto Pastinha tem força bem cimento Grande passa ao largo da forma atra-
maior, se comparado a Bimba, acusado pe- vés da qual deveriam ser entendidas as ações
los praticantes da capoeira de Angola como e buscas de legitimidade de um homem afro-
o "desvirtuador da capoeira"." descendente dos primeiros anos do século
A memória sobre os valentes que prevale- XX. Os textos desses memorialistas e folclo-
ce, ou seja, a de maior relevância, foi constru- ristas exaltam a bandidagem e a marginali-
ída pelos memorialistas e folcioristas. Estes dade de Nascimento Grande, positivando-o
foram os que escreveram sobre eles, impu- sem entender os significados existentes nas
tando-lhes seus valores, visões de mundo e suas práticas.
preconceitos, eis uma questão que me intriga. A memória construída em torno dos va-
O que está por trás desse desinteresse por lentes, retratando-os como bandidos, arrua-
parte da maioria dos historiadores pernambu- ceiros e marginais, impede que observemos
canos que ainda não se debruçaram sobre os o quanto (destituídos de humanidade pelo
Adama e
asclmento Grande: valentes do Recife? Faltam-nos, ainda hoje, que foi escrito) eram coerentes com o Recife
valentes do Recife bons trabalhos que abordem diversos aspec- de seu tempo, correspondendo aos valores
da Primeira
República tos sobre os quais discorri ao longo do texto, existentes na época. Os próprios memoria-
além de uma análise mais acurada em tomo listas, a exemplo de Mário Sette, indicam as
de questões diversas que foram abordadas tão pistas de como o ideal da valentia estava pre-
Ivaldo Marciano
de França Lima
somente por pesquisadores de classes soci- sente mesmo naqueles que representaram
ais diferentes daqueles indivíduos sobre os os valentes de modo negativo. Ao descrevê-
quais escreveram. Esses folcloristas, memori- los, como provocadores e agressivos, Mário
alistas e pesquisadores, ao discorrerem sobre Sette mostra o quanto ele também estava
os valentes, não perceberam uma vasta gama impregnado pelo ideal de valentia:
de aspectos pertinentes à sociedade recifen-
se e brasileira de modo geral. (..)procuravam sempre um pretexto para
o "bababi". Urna frase irônica para uma
A forma como foi construída a memória moça: "está de bico torcido? Quem bo/iu
sobre os valentes deixa claro que parte do com seu cachorrinho, hein?' Ou uma ou-
que se afirmou sobre os mesmos possui for- tra desafiadora: éta baeta! Quem não
te conotação ideológica; e que os interesses pode não se meta. Si havia um resmun-
existentes eram muito mais de desmereci- go, uma replica, um muxoxo, o brabo in-

57
quinai á em posição de romper hostilida- devem ser vistos como exclusivos detentores
des: - isso é comigo, seu safado? Sendo da condição do uso da força e "brabeza".
frouxo o interpelado, caiava-se e ou o Esses homens vendiam seus serviços a
tempo melhorava ou ele recebia o pago quem pagava e efetivamente os protegia.
da covardia numa tapona. Si mole não
Não eram simples capangas, embora mui-
era o "banzé" estava feito (Sett e, 1981,
87). Os negritos são meus. tos deles não estivessem sob controle dire-
to de seus chefes, a exemplo de Nascimento
Para Mário Sette, O homem que ficava Grande, A construção de suas famas base-
calado diante de uma provocação era frou- ada na violência e no poder de acabar com
xo e estava sujeito a levar 'uma tapona como festas inteiras reforça os indícios de que tais
pago da covardia", eis um sintoma da va-
indivíduos também sabiam fazer seu marke-
lentia presente neste célebre memorialista ting. Estamos falando de sujeitos dotados
pernambucano. Também é possível perce-
de estratégias para se incluírem na socie-
ber outras pistas da valentia, fortemente ar- dade. Suas vidas apresentavam extrema
raigada na sociedade pernambucana dos
diversidade de situações, uma vez que fre-
primeiros anos do século XX, a exemplo de
qüentavam ambientes diversos, além de
algumas peças dos mamulengos e seus per- muitas festas populares da época.
sonagens, que enfatizavam a vitória de Be-
As representações dos memorialistas e
nedito, "um mulato ardiloso", sobre o Cabo folcloristas que escreveram sobre os valen-
70, uma representação do policial que dava tes, excetuando Ascenso Ferreira, são mar-
ordens de prisão para o primeiro.
cadas pelo juízo de valor, revelando pistas
Outras pistas dessa valentia podem ser
sobre os interesses e sentidos dos que es-
encontradas entre os policiais e "homens de
creveram sobre os populares. Os projetos
bem" valentes, a exemplo de Antônio Florenti-
de vida dos memorialistas eram bem distin-
no, que foi, segundoAscenso Ferreira, um dos
tos dos interesses dos valentes; e tanto Ada-
brabos que chegou à condição de administra-
ma quanto Nascimento Grande eram muito
dor do Matadouro de Peixinhos e tabelião de mais do que arruaceiros e marginais, mas
notas no Recife (Ferreira, 1942). Ao refutar
homens de seu tempo e época. Quanto ao
Ascenso no fato de ter sido Antônio Florentino primeiro, tratava-se de um valente e mara-
um valente, Guilherme Araújo nos remete a
catuzeiro, que deixou poucas pistas para o
outras pistas dessa "valentia" disseminada na
entendimento de vários aspectos de sua vida
sociedade recifense. Antônio Florentino, para Adama e
e de seus contemporâneos e companhei- Nascimento Grande:
este último autor, "exerceu postos de respon- ros de situação social; e sobre o segundo, valentes do Rectre
sabilidade" e era "um homem de coragem, dis- trata-se de um popular transformado em "he- da Primeira
República
posto a enfrentar os inimigos", não devendo, rói", folclorizado e representado como al-
portanto, ser confundido com os brabos arrua-
guém distante dos seus iguais da época.
ceiros (Araújo, 1946: 119). Os valentes eram homens extremamen- Ivaldo Marciano
de França Lima
Conclusão - valentes, e com projetos te articulados em redes de sociabilidades di-
próprios: uma história a ser reescrita versas (Nascimento Grande foi recebido
Devo insistir que os homens que foram al- pelo filho do José Mariano e Adama quase
cunhados pelo termo de "valentes" eram mui- que foi salvo das garras da polícia pelos
tomais do que simples protegidos dos figurões seus), gozavam de respeito acima da mé-
da época ou eternos arruaceiros que gosta- dia dos seus contemporâneos e eram bem
vam de meretrizes e dados à desordem. Ao dinâmicos socialmente. Eram, sobretudo,
meu ver, conforme a argumentação desenvol- representantes do valor de bravura e valen-
vida ao longo do texto, tratava-se de agentes tia fortemente disseminado na sociedade da
sociais e participes de projetos políticos calca- época e foram marcados pelos que sobre
dos na violência, mas em nenhum momento eles escreveram posteriormente.
Notas

A norma culta considera o termo 'bravo", porém, ainda apud: (ARRAIS, 1998: 74). Ulisses Costa foi apontado por
hoje, entre os populares, é bastante comum a utilização da um memorialista como um dos mais tenazes combatentes
palavra 'brabo", que tem o mesmo sentido da que é aceita da violência e responsável pela eliminação física de muitos
nas gramáticas. valentes, tendo sucedido a um outro que iniciou a 'campa-
2 Devo considerar que os perfis de Nascimento Grande e, nha" de combate à Violência. Ver: (MELLO,1953: 48).
sobretudo o de Adama, permitem pensá-los como media- '°A descrição dos capoeiras está em: (Costa, 1908: 240
dores culturais, uma vez que este último articulava um na- -242). Vários foram os autores que tomaram como natural
racatu, freqüentava pastoris em companhia de 'bem a relação entre capoeiras e bandas de música, dentre os
nascidos" e possuis vínculos com politicos que lhe assegu- quais ver. (Sette, 1981; Oliveira, 1946: 178-179; Oliveira,
ravam proteção em troca de "seus serviços" de capoeira. 1985: 82-88), Nessa última obra o autor afirma, sobre os
Nascimento Grande também pode ser visto de maneira capoeiras no Recife, que "sua preferência pela música era
semelhante, dado seus contatos tanto entre os populares, manifesta, não por pendor inato ( ... ); contudo, ao comentar
como com alguns 'figurões" da época. Sobre os conceitos sobre as origens do passo do trevo, diz: "por anos e anos
de mediação e circularidade, ver. (Ginzburg: 1987; Guillen: seguidos até os começos do século XX], esses e outros
2003; Vianna: 2002). capoeiras pularam na frente das bandas de música, inclu-
Sobre a .Jurema e o catimbó ver: (Assunção: 2006; Cas- sive as particulares (.,j", Ao discorrer sobre os capoeiras,
cudo: 1978; Fernandes: 1938; Brandão e Rios: 2001; Lima: Valdemarde Oliveira também considerou os valentes como
2004; Motta: 1988, 1985 e 1997; Pinto: 1995; Vandezande: seus continuadores, o que se pode comprovar pelo modo
1975). implícito no trecho a seguir: "(..,)A ralé continuou, por mui-
4 Para uma discussão sobre astontes produzidas pelo olhar to tempo, a saracotear em frente das músicas em desfile,
da repressão, ver: (Ginzburg: 1987), sobre os indícios, ver: como tropa de choque. Evoluis para tipos menos brigões,
(Ginzburg, 1989). que, nem por isso deixavam de ser os 'brabos', os 'faquis-
tas os 'valentões', novos rótulos de uma mesma mercado-
Jornal do Recife, 1210211922, p. 05. Agradeço essa notí-
ria." A meu ver, o autor trata de modo indistinto os valentes
cia a Prot. Dra. Isabel Guillen.
e os capoeiras, e toma a relação desses com as bandas de
& Jornal Província, 10/02/1929, P. 03.
música de modo bastante natural, algo bastante recorrente
Idem, ibidem. entre aqueles que discorreram sobre os capoeiras e valen-
tes no Recife,
o No Jornal do Recife, de 05, 03, 1905, p. 02, foram publi-
cadas as portarias normativas do Chefe de Polícia referen- 11 0 Oriente Pequeno foi objeto de uma intrigante noticia no
tes á segurança para o carnaval daquele ano. Entre as Jornal Pequeno, de 1210211902. A matéria noticiava o confli-
proibições, constavam o uso de máscaras após as 18 ho- to entre dois maracatus: "Encontro de dois maracatus — on-
ras, a prática do entrudo, o uso da lima de cheiro e o porte tem ás 8 horas da noite, o Maracatu Oriente Pequeno, que
de quaisquer tipos de armas. Nos anos posteriores os jor- tem sede na Rua de Santa Cecilia, atacou na Rua Larga do
nais também noticiavam essas portarias, que diziam res- Rosãrio, o maracatu denominado Leão Coroado, que tem a
peito à lei municipal n 2 04, que versava sobre as medidas sua sede na Boa Vista. Os agressores estavam armados de
de controle policial para o carnaval. Ao longo dos anos es- facas e cacetes, travando-se uma luta teia que teria conse-
sas medidas recrudesceram nesse sentido. No Jornal do qüências funestas se o pessoal do Leão Coroado, não tives-
Adama e Recife, de 3010111932, p. 02, além dos itens já referidos, se a prudência de refugiar-se na escada do prédio n 2 26,
'lascimenro Grande: constam também a obrigatoriedade de serem os integran- daquela rua, fechando a porta. O Pequeno Oriente senhor
valentes do Recife tes dos cordões revistados na saida para os desfiles, e a do campo, levou consigo um bombo e outros objetos que os
da Primeira fugitivos deixaram puseram-se logo em fuga'.
cassação da licença de desfile da agremiação que acarre-
República
tar danos à ordem pública. Como se pode ver, a violência II
Sobre Bimba e Pastinha, ver Reis: 2004.
não era exclusiva de um grupo de individuos, estando bas-
Ao abordar os valentes, e como se relacionavam com as
tante presente na sociedade da época.
mulheres, afirmou Mário Solte que: "Essa queda dos bra-
Ivaldo Marciano
°A afirmação de que as classes populares pendiam ao crime bos pelas meretrizes parecia contagiosa doença"; 'goza'
de França Lima
foi feita por Utisses Costa, chefe de polida do estado, em vam de favores sem dispêndio de dinheiro ( ... )". (Sette.
seu relatório anual enviado ao secretário geral do estado: 1981: 88), Quanto ã naturalização dos capoeiras e valen-
Relatório apresentado ao Exmo, Sr, Or, Ulisses Gerson Ai- tes com as bandas de música, penso já ter abordado a ques-
vos da Costa, chefe de policia, em 20 de fevereiro de 1910 tão anteriormente,

59
Referências Bibliográficas

ABREU, Plácido de. Os capoeiras. Rio de Ja- GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Maracatus-
neiro, Tipografia Seraphim Alves de Brito. 1886. nação entre os modernistas e a tradição: discu-
tindo mediações culturais no Recife dos anos
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2002. 1930 e 1940. CLIO. Série História do Nordeste,
vol. 1, n. 21, 2003, p. 107-135.
ARAÚJO, Guilherme de. Capoeiras e valentões
do Recife. Revista do IAHGPE, vol. XL, n2'145, LIMA, lvaldo Marciano de França. Uma religião
1946. que cura, consola e diverte - as redes de socia-
bilidade da Jurema sagrada. Cadernos de Estu-
ARRAIS, Raimundo. Recifes, culturas econfron- dos Sociais, volume 20, n. 02, juJ.Idez., 2004.
tos. Natal: EDUFRN. 1998.
MELO, Oscar. Recife sangrento, Recife, s/e,
ASSUNÇÃO, Luiz. O reino dos mestres - a tra- 1953,
dição da jurema na umbanda nordestina. Rio de
Janeiro: Pailas, 2006. MOTTA, Roberto Mauro Cortez. Jurema, In:
MAIOR, Mário Souto e VALENTE, Waldemar.
BRANDÃO, Maria do Carmo; RIOS, Luis Felipe. (orgs.) Antologia Pernambucana de folclore.
O catimbó-jurema do Recife. In: PRANDI, Regi- Recife: Massangana, 1988, p. 267-268.
naldo (org.). Encantaria Brasileira, Rio de Janei-
ro: Palias, 2001, p. 160-181. Catimbós, xangõs e umbandas na re-
gião do Recife. In: MOnA, Roberto (coord,) Os
CASCUDO, Luis da Câmara. Meleagro - pes- afro-brasileiros. Anais do III congresso afro-bra-
quisa do catimbó e notas da magia branca no sileiro. Recite: Massangana, 1985, p. 109-123,
Brasil. Rio de Janeiro: LivrariaAgir Editora, 1978,
2! edição. Religiões afro-recifenses: ensaios de
classificação. In: Revista Antropológica, ano II,
Notas sobre o catimbó. In: Novos Estu- v. 2, série religiões populares, Recife: Ed. UFPE,
dosAfro-Brasileiros. Recife: Massangana, 1988. 1997, p. 11-34.
Edição Fac-similar de Novos Estudos Afro-Bra-
sileiros, Trabalhos apresentados ao 1 Congres- OLIVEIRA, Valdemar. Frevo, capoeira e passo.
soAfro-brasileiro do Recife, segundo tomo, Rio Recife: Companhia Editora de Pernambuco,
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937. 1985, 2' edição, p. 82-88.

COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Revista ______ O frevo e o passo, de Pernambuco. In:
do HGB, torno LXX, parte II, 1907, Rio de Ja- Boletim Latino-Americano de música. Rio de Adama e
Nascimento Grande:
neiro, 1908, p. 240-242. Janeiro, ano VI, Torno, VI, Abril de 1946, especi- valentes do Recife
almente p. 178-179. da Primeira
FERNANDES, Gonçalves. O folclore mágico do República
Nordeste - usos, costumes, crenças e ofícios
PINTO, Clélia Moreira. Sarava Jurema Sagrada:
mágicos das populações nordestinas. Rio de as várias faces de um culto mediúnico. Recife,
Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. 1995, dissertação de mestrado em antropologia, ivaldo Marciano
UFPE. de França Unia
FERREIRA, Ascenso. Os "brabos do Recife".
Recife, Boletim da cidade e do porto do Recite, RABELLO, Evandro. O Recife e o carnaval. In:
nt 5-6, 1942. Um tempo do Recife. Recife: Arquivo Público
Estadual, 1978.
FREYRE, Gilberto. Guia prático, histórico e sen-
timentalda cidade do Recife, 1942. [1934].
REIS, Letícia Vidor de Souza. Mestre Bimba e
mestre Pastinha: a capoeira em dois estilos. In:
GINZBURG, Cano. O queijo e os vermes. São SILVA, Vagner Gonçalves da (org.). Memória
Paulo: Cia das Letras, 1987. Afro-Brasileira artes do corpo. São Paulo, Selo
Sinais - Raízes de um paradig- Negro, 2004, p. 188-223.
ma indiciá rio. In: Mitos, Emblemas e Sinais - Mor- SETTE, Mário. Maxambombas e maracatus. Reci-
fologia e história. São Paulo: Ed. Schwarcz, 1989. fe: Livraria Universal, 1938, 2' edição aumentada.

60
SILVA, Eduardo. Dom Oba II D'África, opnncipe VANDEZANDE, Renê. Catimbó— Pesquisa ex-
do povo - vida, tempo e pensamento de um ho- ploratória sobre uma forma nordestina de reli-
mem livre de cor. São Paulo: Companhia das gião mediúnica. Recife, 1975. Dissertação de
Letras, 1997. mestrado em sociologia, UFPE.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio
instituição - os capoeiras no Rio de Janeiro. de Janeiro: Jorge Zahar Edilor/Ed. UFRJ, 4 1 ed.,
Coleção Biblioteca Carioca/Prefeitura da Cida- 2002.
de do Rio de Janeiro, 1994.

Adama e
Nascimento Grande:
valentes do Recife
da Primeira
República

Ivaldo Marciano
de França Lima

61

Você também pode gostar