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Uma pequena crônica que escrevi um dia desses dias...

LIÇÕES DE UM SEMÁFORO

Final de tarde. Horário do “rush”. A tempestade se


avizinhando da cidade, como é típico nas tardes de final de
ano nessas paragens. Todos seguindo rapidamente para
algum lugar, como se estivessem fugindo de um mal que os
acossa. A pressa é evidente e a impaciência está no ar. Sigo
também freneticamente pela avenida, em uma luta
implacável contra o relógio. E de repente, me defronto com
o destino incontornável que espera a todas as pessoas que
vivem e circulam pelas cidades do mundo moderno: o
semáforo. Implacável e indiferente à agitação que o cerca.
Lá está ele, imponente e taciturno.

Paro resignado e submisso ao sinal vermelho. Não há nada a


fazer a não ser parar e se render à sua autoridade. E ao
perceber isso, de repente, como num lampejo, começo a
pensar nas lições que se pode aprender com um semáforo de
avenida em um movimentado final de tarde. Isso mesmo. O
velho, frio e imparcial semáforo. Não há quem seja
motorista e já não tenha perdido a paciência com as fatalidades e o pragmatismo de um semáforo. E
comecei a pensar...

O semáforo é uma das poucas regras que se impõe a uma sociedade avessa ao controle. Poucos têm a
ousadia de questionar a sua irritante mania de dizer quem avança e quem para. É uma das poucas leis
amplamente absorvidas pela sociedade. Verde, amarelo e vermelho. Uma coisa rudimentar, primitiva e
quase ridícula. Mas tão necessária e poderosamente presente em nossas vidas. E temos a estranha
mania de nos render à tácita autoridade que nos é imposta pela luz vermelha do semáforo. Pode nos
custar caro a petulância de questioná-la. Não raro, pode custar a nossa própria vida, sacrificada no altar
da rebeldia ou do exibicionismo. Por isso o semáforo é tão eloquente. Ele não diz nada, não tem rosto
nem expressão. Não grita nem faz cara feia. Mas a luz vermelha nos impõe peremptoriamente a sua
vontade, e como que num gesto de apego à vida nos deixamos levar por uma súbita rendição ao bom
senso.

Diante dele não há diferenças de classe ou privilégios. Diante de um semáforo podemos ver um
caríssimo carro importado parando ao lado de um surrado veículo velho, devendo uma visita ao
mecânico e funileiro: ambos resignados e submissos diante da prepotente autoridade da luz vermelha.
Não há como corrompê-la. Não tem como pagar-lhe um cafezinho e ter a vida facilitada. É uma das
poucas situações em nossa sociedade em que todos são tratados igualmente perante a lei.

Há outras coisas que um semáforo nos ensina, se o observarmos por tempo suficiente. Ensina-nos que
nem sempre a vida nos favorece. Enquanto as portas se abrem para uns, elas se fecham para outros.
Nos mostra que nem todos podem vencer ao mesmo tempo. Que uma mesma situação representa a
oportunidade para uns e o tempo de espera para outros. Nunca todos vencerão ao mesmo tempo. A
vida não é assim. Sempre há os vencedores e os perdedores. E o semáforo teima em nos ensinar isso,
ainda que não estejamos atentos para entender.

Mas há o outro lado dessa história, que ele, poucos segundos depois, nos ensina. A situação sempre
muda. Nenhum mal dura para sempre. Toda crise passa. A oportunidade da luz verde sempre acaba
nos sorrindo. De repente, é hora de você prosseguir. A sua alternância implacável – verde, amarelo e
vermelho – é, no fim, a alternância da vida. Dia e noite. Verão e inverno. Primavera e outono – as
estações do ano não em ordem cronológica, mas em pares opostos. A vida sempre insiste em nos
ensinar que a alternância é parte integrante de sua melodia – e não há nada que possamos fazer a
respeito. O semáforo, se prestarmos atenção, nos ensina a mesma verdade. O sinal vermelho de hoje
vai se tornar o sinal verde de amanhã. O segredo é não desistir.

O que mais pode nos ensinar um frio, mecânico e intransigente semáforo? Insisto em pensar que deve
haver mais alguma coisa que essa geringonça da vida moderna tenha a nos ensinar. O sinal ainda está
vermelho para mim. Acho que a mágica dessa reflexão fez o tempo parar, pois consegui pensar em
tudo isso e a teimosa luz vermelha ainda tripudia sobre mim. Mas olho para o fluxo de carros que
atravessa à minha frente e, sem explicação alguma, vejo que eles vão diminuindo a velocidade.
Parecem não aproveitar a vantagem que obtiveram e começam a reduzir a marcha e parar. Até que
param. Então percebi que o semáforo não é apenas a dialética do verde e do vermelho. Tem a luz
amarela também. Tímida que é, aparece rapidamente e logo dá lugar à vermelha. Sua participação é
rápida, mas não menos importante. Ela é um aviso. Um alerta. A luz vermelha nunca se apresenta
subitamente sem o gentil aviso da luz amarela, que tem a nobre missão de nos preparar para a sorte
que nos aguarda. O segredo de não sucumbir às luzes vermelhas da vida é prestarmos atenção às luzes
amarelas, que sempre nos avisam dos perigos. Resistir ao seu sábio conselho pode nos levar a ser
pegos de surpresa. Pode até mesmo ser fatal.

De repente o sinal verde aparece, os motores aceleram, pedindo impiedosamente para que eu comece a
andar e abra caminho. O tempo volta a correr novamente e minha reflexão é interrompida pela vida
real. Acelero e volto à minha luta sem fim com essa outra máquina implacável que é o relógio.

Paro em frente à escola de minha filha, ela entra no carro e saímos em direção à nossa casa. Olho para
ela enquanto dirijo e digo:

- Filha, não é incrível o que um semáforo pode nos ensinar?

Ela olha para mim com a fisionomia de alguém que procura o sentindo de uma piada que não entendeu
e, finalmente, responde:

- O quê?

Penso por um instante e respondo já resignado:

- Nada não filha. São só umas coisas que eu andei pensando aqui...

Continuo nosso caminho e me deparo novamente com outro semáforo vermelho e penso comigo
mesmo: “Que o Senhor a ajude a entender essas lições, respeitando todos os sinais amarelos e
vermelhos da vida. E nunca deixe de aproveitar os verdes”. E começa a chover...

Pr. Beto Coutinho

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