Você está na página 1de 8

ARTIGOS / ARTICLES

BIOÉTICA E COMUNICAÇÃO EM O NCOLOGIA *


Bioethics and Communication in Oncology

Fermin Roland Schramm

INTRODUÇÃO o mesmo sentido por todos os participantes


de uma conversação, razão pela qual seu
O que podem trazer a bioética e a comuni- esclarecimento prévio é condição necessária,
cação aos profissionais e usuários envolvidos embora não suficiente, para o entendimento
com a oncologia? Provavelmente os céticos do discurso em que elas aparecem.
responderão: nada, a não ser meros discursos
e vagas teorias. Esta desconfiança tem certa-
mente suas “razões” de ser, se pensarmos nas ESCLARECENDO OS
situações mais difíceis da relação oncológica, TERMOS DO PROBLEMA
quando o desamparo que acomete tanto o
paciente como o profissional mostra a preca- Devido ao fato das palavras serem arbi-
riedade da condição humana e os limites dos trárias, isto é, de não existir uma relação
meios para enfrentá-la, apesar dos progressos necessária entre sua forma e seu conteúdo,
constantes na medicina. Já os mais otimistas elas não são sempre utilizadas da mesma
provavelmente responderão que bioética e maneira por todos os envolvidos numa
comunicação podem propiciar algo: desde um conversa. Este é certamente o caso do neolo-
melhor entendimento recíproco das pessoas gismo “bioética”, mas pode ser também o
envolvidas na relação, passando por um maior caso da palavra mais comum “comunicação”,
esclarecimento acerca dos conflitos de interes- apesar de muitos terem sobre ambos os
ses e valores que a caracterizam, assim como termos uma concepção intuitiva, aparente-
mais instrumentos para a tomada de decisão mente consensual.
sobre o que se pode e que se deve fazer, até No entanto, a concepção intuitiva se
uma mais profunda compreensão da fragi- mostra insuficiente desde que a conversação
lidade e mortalidade da humana condição. vira discussão ou disputa, como muitas vezes
É provável que esta diferente avaliação do acontece com os tópicos polêmicos da biome-
possível papel de bioética e comunicação não dicina, abordados atualmente pela bioética.
seja resultado de avaliações substantivas acerca Nesses casos, deve-se preferir o sentido téc-
de seu valor instrumental e pragmático mas, nico (ou especializado) das palavras, sobre o
antes, de maneiras diferentes de entender a qual é via de regra mais fácil de se chegar a
ambas, isto é, de problemas formais. Se esta um acordo, embora as divergências entre
hipótese está correta, antes de falar sobre as especialistas não serem incomuns, seja porque
possíveis relações entre bioética, comunicação as palavras são arbitrárias, seja porque, justa-
e oncologia deve-se especificar em que sentido mente por serem arbitrárias, os especialistas
são utilizados os termos “bioética” e “comuni- sempre serão tentados e, talvez, solicitados
cação”. Esta precaução é legítima quando em instituir algum sentido canônico, supos-
existe uma suspeita razoável de que as palavras tamente capaz de evitar a arbitrariedade mas
não são utilizadas da mesma maneira e com que, de fato, implica quase sempre em novos

* Palestra proferida no 1o Fórum de Enfermagem em Cuidados Paliativos em 13 de dezembro de 2000.


Mestre em Semiótica, Doutor em Ciências e Pós-Doutor em Bioética. Pesquisador Associado da Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/FIOCRUZ, e
Consultor em Bioética do INCA.
Endereço para correspondência: CEDC - Rua do Resende, 128 - Térreo - Centro, 20231-092 - Rio de Janeiro, RJ

Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32 25


Schramm, F. R.

conflitos interpretativos. Seja como for, sem da saúde”, entre outras ocorrências.
um acordo inicial dos participantes sobre os O principal problema com essas definições
possíveis sentidos das palavras utilizadas e a diz respeito à extensão de seu campo semân-
extensão dos conceitos referidos, as inevitáveis tico referido, visto que:
disputas que surgem dos conflitos de inter- a) algumas são demasiado abrangentes, como
pretação acabam por tornar impossível a “ética da vida”, que deixa entender que toda
comunicação, e com isso a procura de even- ética é necessariamente uma bioética, o que
tuais soluções dos conflitos envolvidos. é falso se entendermos bioética num sentido
Por estas razões defenderemos aqui a idéia estrito e não lato;
de que a comunicação é um projeto mais do b) outras demasiado restritas, como “ética
que um dado, apesar de vivermos numa época biomédica”, que na prática acaba se confun-
de proliferação de meios e suportes da infor- dindo com a ética médica tradicionalmente
mação. A comunicação é um projeto devido entendida e esquece a reconfiguração da
em parte a esta mesma proliferação de meios ética acontecida com o surgimento das
e suportes informacionais, a qual faz com que éticas aplicadas e a bioética graças às novas
se confunda a mera informação (que pode interrogações sobre os processos do viver,
ser medida) com o processo mais delicado e adoecer e morrer, que emergem com os
sempre in fieri da comunicação, isto é, com avanços da biomedicina e a emergente
algo que de fato está sempre “em ato de tornar- sociedade de “consumidores”.
se” (é este o sentido de in fieri), e nunca algo Frente a esta polaridade semântica prefe-
dado a priori. Em outros termos, a comuni- rimos utilizar a definição dada por Miguel
cação é um projeto que se realiza num pro- Kottow, para quem a bioética se refere à
cesso durante o qual pelo menos dois atores moralidade dos atos humanos que alteran, de
sociais concordam sobre determinadas regras forma irreversível, os processos, também
e sobre determinados objetivos. Sem esta irreversíveis, dos sistemas vivos2. Esta definição
aceitação consensual tanto das regras como tem uma vantagem comparativa sobre as
dos objetivos, não há comunicação, e isso demais visto que é simultaneamente bastante
pode verificar-se a todo momento em muitas ampla e suficientemente precisa. Não se
situações: nas relações entre médico e restringe ao mero âmbito biomédico pois
paciente, entre pais e filhos, entre marido e permite, por um lado, incluir as práticas
mulher, entre professores e alunos, entre biotecnológicas, os tratos com os animais e
membros de uma equipe profissional e multi- as intervenções sobre o meio ambiente, e,
profissional e, evidentemente, entre estes e por outro, delimita qual é o aspecto da vida
os usuários. que deve ser considerado pertinente para a
Se as dificuldades que estamos apontando análise moral do agir humano: o fato da vida
de fato existem, temos então duas saídas: ou ser um processo irreversível e das ações
renunciamos a qualquer tentativa de comu- humanas poderem interferir, de maneira
nicar, fechando-nos estoicamente num silên- também irreversível, nele, tendo portanto
cio impassível e digno, ou, sem abrir mão de conseqüências que podem ser julgadas boas
uma saudável dose de cepticismo, tentamos ou más de acordo com a intensidade e a
construir conjuntamente as condições para qualidade da transformação. Tampouco
que o projeto comunicativo surja e se realize esquece a especificidade do saber-fazer
da melhor maneira possível. biomédico atual, marcado pela vigência
daquilo que chamamos de paradigma
NÃO EXISTE CONSENSO SOBRE “BIOÉTICA” biotecnocientífico e outros de paradigma
Devido à diversidade de práticas e discur- biotecnológico. Por fim, tem uma vantagem
sos chamados “bioéticos” pode-se afirmar que específica para o tema que nos ocupa aqui e
não existe um conceito simples e absoluta- que se refere justamente ao processo irre-
mente unívoco1. Com efeito, bioética pode versível do fim da vida.
ser entendida como “ética da vida” o como
“ética da qualidade de vida” (conforme o NÃO EXISTE CONSENSO SOBRE O TERMO
sentido dado à palavra grega bíos), como “COMUNICAÇÃO”
sinônimo de “ética biomédica” ou como A situação do termo “comunicação” é mais
“ética aplicada ao campo da biomedicina e complexa ainda, considerada a sua freqüente

26 Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32


Bioética e Comunicação em Oncologia

ocorrência nos contextos mais diversos. Com situações de vida e consistiria em atitudes de
efeito, “comunicação” pode referir-se a um eu frente a outros eus e ao mundo, razão
qualquer meio ou suporte, fatual ou virtual, pela qual existiria uma polarização entre um
de transmissão de informação (como em aspecto meramente instrumental (ou
“meios de comunicação” e “tecnologias de semiótico) e um aspecto prevalentemente
comunicação”), a qualquer conteúdo produ- hermenêutico (ou existencial) do processo
zido por tales meios (confundindo-se portanto comunicativo, que incluiria não só infor-
com a mensagem) ou, ainda, a procedimentos mações, mas outrossim emoções e, sobre-
ligados a estes, tais como a arte do conven- tudo, valores. Para José Ferrater Mora4, esta
cimento (que a associam portanto à retórica) polarização prejudicaria o próprio processo
ou a outros meios pragmáticos. comunicativo entendido em sua integralidade,
Em particular, pode ainda referir-se a isto é, simultaneamente lingüístico (ou
qualquer situação de inter-relação entre atores semiótico) e existencial (ou hermenêutico).
sociais, como nas situações existenciais nas Uma maneira de sair dessa polaridade
quais dois ou mais agentes, i.e. um “eu” e poderia ser a de juntar ambas as formas de
um “outro”, dialogam entre si, inclusive nas comunicação mas sem confundi-las, quer
situações reflexivas quando um agente (eu) dizer, considerar a comunicação como uma
“dialoga” com si mesmo (que pode então ser situação de encontro entre seres considerados
considerado como um “outro” ou um “si- em si-mesmos mas também em inter-relação,
mesmo como um outro”3 ). Neste sentido, a logo como diálogo entre subjetividades que
comunicação pode ser entendida também fazem a experiência do mútuo reconhecimento
como um processo da transcendência, ou seja, no auto-conhecimento, de ser simultaneamente
como uma situação em que um eu tenta sair si mesmas e seres para outros seres.
de si e entrar em contato com o outro de si Desta maneira, a comunicação pode ser
ou entrar novamente em contato com ele. Por entendida como uma forma do agir e, por
isso, o ser comunicativo que é o ser humano ser uma forma de agir, deve ser pensada
é sempre também um ser transcendente. necessariamente em sua dimensão ética, o que
É devido a esses múltiplos aspectos pode ser feito no sentido desenvolvido por
inerentes à comunicação que surge toda uma exemplo por Jürgen Habermas5 e Karl Otto
série de questões abordadas pela psicologia, Apel6, i.e., preocupando-se com os valores
a antropologia filosófica, a filosofia da lingua- morais generalizáveis ou universalizáveis, e
gem, a semiótica e a própria reflexão de norteadores das práticas de alguém sobre o(s)
médicos e outros profissionais em saúde, por outro(s).
um lado, e usuários e associações de usuários, Tendo definido os conceitos de bioética e
por outro. Todos a princípio preocupados com comunicação pode-se então articulá-los ao
a performance de suas práticas respectivas e/ campo da oncologia e ver como e em que
ou com o controle e a fiscalização de tal medida poderiam ser de subsídio às decisões
performance. e práticas oncológicas.
A principal questão nesse âmbito comple-
xo da comunicação seja talvez a oposição
entre o aspecto propriamente lingüístico (ou COMUNICAÇÃO E
semiótico) e o aspecto existencial da comu- BIOÉTICA EM ONCOLOGIA
nicação, aparentemente irredutíveis entre si
e portanto considerados estruturalmente Voltemos à primeira pergunta: o que têm
inconciliáveis tanto no plano comunicativo a ver comunicação e bioética com a onco-
como no plano axiológico. Resumidamente, logia? A meu ver existem dois sentidos prin-
o problema é o seguinte: a comunicação cipais da relação: um intuitivo, outro crítico.
semiótica seria essencialmente transmissão de
informação ou de mensagens entre um a) No sentido intuitivo comunicação e bioética
emissor e um receptor ou intérprete, isto é, podem ser vistas como “coadjuvantes” de
comunicação essencialmente reduzida à sua qualquer prática médica e de qualquer
dimensão simbólica, ao passo que a comu- cuidado em saúde7, porque ambas são (ou
nicação existencial se daria num contexto de pretendem ser) meios inerentes à relação

Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32 27


Schramm, F. R.

clínica, inseparáveis da habilidade do pois deveríamos ainda considerar que esta


médico (e de qualquer prestador de relação comunicativa dialógica se insere
cuidados sanitários) em relacionar-se com num contexto sociocultural mais amplo, no
o paciente (ou usuário) para obter os qual interferem os interesses e valores
resultados esperados de seus cuidados. comunitários, de classe social, do Estado e
Se aceitamos o sentido de comunicação da Sociedade como um todo. Contudo, o
como práxis de mútuo reconhecimento entre discurso de fundo não muda muito quando
prestador de serviços e usuário, e portanto passamos de uma inter-relação entre dois
como indissociável de algum conteúdo ético atores a uma entre três, quatro, cinco ou
em princípio universalizável, isso implica seis, pois os problemas são do mesmo tipo
que o primeiro deve respeitar prima facie ainda que progressivamente mais com-
as preferências e as decisões do segundo, plexos.
evitando por exemplo atitudes paternalistas Assim sendo, quando falamos em teleologia
e substituindo-as por práticas dialógicas, de entendimento entre atores sociais,
isto é, pelo convencimento baseado na podemos conceber esta finalidade sob a
argumentação e na força argumentativa forma ideal do consenso ou sob a forma
(cogency) e, eventualmente, por outros meios mais comum da negociação e do compro-
não necessariamente racionais, baseados na misso. Ademais - e este é o núcleo principal
empatia e no afeto. da crítica movida pelos autores pósmo-
A prática comunicativa capaz de combinar dernos ao ideal comunicativo fundado na
sabiamente razão e emoção é importante racionalidade - o próprio termo “teleologia”
numa época em que, na cultura ocidental é criticável pois deixa supor que existe uma
impregnada dos valores do Iluminismo, se possibilidade, dada a priori, dos fins
atribui grande importância ao respeito da orientarem o decurso das ações humanas
autonomia pessoal, no que se refere às rumo ao Bem. Sim citar casos específicos,
decisões do indivíduo sobre seus estilos de existem evidentemente inúmeros exemplos
vida não prejudiciais para terceiros, e ao que mostram o contrário. Em outros ter-
mútuo reconhecimento como condição mos, a teleologia de entendimento deve ser
necessária da dignidade individual e do pensada não como algo implicado necessa-
exercício da cidadania numa sociedade riamente por uma suposta natureza humana
democrática e multicultural8. Em outros (como pretendiam Platão, Aristóteles ou
termos, autonomia e reconhecimento do Kant) nem como o resultado de um fina-
outro, embora intuitiva e mutuamente lismo intrínseco dos processos históricos
excludentes, são no entanto condição (como pretendiam tanto Hegel como Marx),
necessária do agir comunicativo e da mas mais modestamente (e diria mais
eticidade da relação entre prestador de realisticamente) como um desideratum que
serviços e usuários numa época em que a pode acontecer ou não. Em suma, se quiser-
defesa dos direitos individuais deve correlar- mos dar conta dos dilemas e das tragédias
se com o reconhecimento recíproco de dois que de fato existem nas relações humanas e
tipos de sujeitos envolvidos numa relação: se pensarmos a teleologia do entendimento
o que presta um cuidado e o que recebe como algo inscrito numa suposta natureza
este cuidado. humana já dada ou num processo histórico
Mas a relação comunicativa, entendida em determinado a priori, deveríamos, previ-
sua dupla dimensão semiótica e herme- amente, “abandonar a teleologia em peque-
nêutica, por um lado, e como projeto in na e em grande escala”9. Mas se entender-
fieri por outro, faz com que tais sujeitos mos a teleologia do entendimento como um
devam necessariamente pôr em discussão projeto, ainda que precário e incerto, dese-
suas pretensões de verdade e normatividade, jável para resolver nossos conflitos da
visto que se encontram processualmente melhor maneira possível (ou talvez da menos
numa situação existencial na qual o agir está ruim possível), penso que seria pelo menos
a principio orientado teleologicamente ao contra-intuitivo rejeitar este conceito visto
entendimento. que eliminando a dimensão projetual do ser
Aqui estou evidentemente simplificando humano acaba-se negando, explicita ou

28 Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32


Bioética e Comunicação em Oncologia

implicitamente, uma das suas características é o de paradigma entendido como padrão


existenciais fundamentais. definido e aceito por alguma comunidade
Em suma, o ideal comunicativo subjacente (científica, moral ou outra), conforme a defi-
ao sentido intuitivo é criticável por sua nição dada por Thomas Kuhn. O problema
referência ao conceito de consenso que, desta posição é que parece tornar inviável
muitas vezes, é tomado não em seu sentido a comunicação entre comunidades que não
de ideal teleológico (no sentido de projeto compartilhem determinadas premissas para
desejável) da práxis, mas como inerente e chegar a um acordo, reduzindo toda a
constitutivo do próprio processo complexa situação moral a uma questão de
comunicativo, isto é, não como um dos seus interesses e gostos pessoais ou grupais, ou,
resultados mas como sua condição. Por isso, ainda, à mera tolerância entre “estranhos
além de um nível intuitivo existe um nível morais”11.
crítico em que comunicação e bioética Por essas razões existe ainda uma terceira
podem relacionar-se com a oncologia. possibilidade, defendida por exemplo por
Nicholas Rescher - e que pode justamente
b) O nível crítico pretende justamente ser e legitimamente ser chamada de crítica -
aquele em que se tem em devida conside- consistente numa espécie de posição
ração todas as críticas anteriores. O proble- intermediária que recusa tanto o dogma-
ma fundamental neste nível, ao mesmo tismo racionalista moderno quanto o
tempo epistemológico e metodológico, é a relativismo pósmoderno. Esta terceira pos-
passagem, não explicitada nem justificada, sibilidade é propriamente crítica porque se
de uma concepção de consenso como baseia no papel central da interpretabilidade
desideratum (em si legítimo) para uma na comunicação (em substituição ao acordo
concepção (a ser demonstrada teoricamente cognitivo) e no papel da aquiescência na
e nos fatos) que o considera uma pré- interação social e política (em substituição
condição indispensável e inscrita na própria ao acordo prático). Isso implica que “a
natureza do procedimento comunicativo, coordenação e a cooperação são possíveis
quando de fato é, na melhor das hipóteses, (e racionais) mesmo frente ao desacordo
um ponto de chegada10. sobre fatos e valores”12.
Com efeito, o consenso é algo muito difícil O conceito de consenso é criticável não
de ser alcançado concretamente em somente porque inverte o papel entre
situações não banais de conflito. Por isso é resultado e condição (tradição que vai de
de fundamental importância para o agente Tomás de Aquino, passando por Kant e
moral que participe do procedimento Hegel, até num certo sentido a Habermas),
comunicativo sabendo que está num mundo mas também porque pressupõe uma
onde valem princípios morais legítimos e uniformidade de crenças e avaliações,
plurais, e onde convivem comunidades contrária ao pluralismo cognitivo e moral
morais diferentes, que não são congruentes vigente, e que pode, por isso mesmo, ter
a priori. Este é, muitas vezes, o caso da implicações dogmáticas e/ou autoritárias se
relação entre médico e paciente e, de forma não for demonstrada.
geral, entre prestador de serviços e usuário Entretanto, este tipo de crítica tampouco
de serviços de saúde, como mostra o caso pode esquecer, pena a perda do projeto
paradigmático dos Testemunhas de Jeová comunicativo e o caráter a princípio
que pode, em alguns casos, representar um universalizável dos valores morais (sem o
verdadeiro dilema para o médico, visto que qual perderíamos o aspecto normativo da
se respeita o direito do paciente de não ética aplicada), que o pluralismo moral e o
receber uma transfusão, e se o paciente será multiculturalismo não são a mesma coisa
seriamente prejudicado, pode ser atuado por que o relativismo cognitivo e moral. Com
omissão de socorro e por danos. efeito, como já vimos, condição necessária
Por isso, muitos críticos preferem substituir da ética discursiva é o reconhecimento
o conceito de consenso por aquele, de perfil recíproco entre os agentes envolvidos numa
mais modesto, de acordo ou pacto interpes- prática comunicativa e numa disputa
soal (interpersonal agreement), cujo modelo moral, sem a qual só poderiam existir

Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32 29


Schramm, F. R.

mônadas cognitivas e morais fechadas e resultados melhores ou, quando isso não
incomensuráveis, ou uma galáxia de for possível, os menos ruins em termos de
comunidades de “estranhos morais”, o que conseqüências.
provavelmente resultaria numa incom- Entretanto, por ser um ato de auto-
preensão universal e numa “guerra” entre observação, este distanciamento, e a con-
prestadores de serviços e usuários. Assim seguinte “isenção”, sempre estarão sob
sendo, o reconhecimento recíproco implica suspeita por parte de terceiros, que poderão
tanto o respeito do outro quanto a tomada legitimamente duvidar do observador ser
de posição pessoal, mesmo que seja em um mero observador. De fato, é razoável
conflito com a posição do outro e desde afirmar que um observador sempre observa
que isso não implique na impossibilidade com alguma finalidade pragmática, isto é,
do outro fazer o mesmo. A solução dos tendo em vista algum conhecimento que
conflitos se dará portanto no respeito da pretende ser aplicado para construir algo
autonomia pessoal e da especificidade da (poiesis) ou para compartilhá-lo com alguém,
situação. inclusive para discordar com este alguém
(práxis). Isso faz com que toda observação
implique sempre também um compromisso
O DUPLO ASPECTO com alguma forma de teleologia e, no caso
COMUNICATIVO DA do ato ético, uma pretensão de dizer como
BIOÉTICA “as coisas deveriam ser”, que é uma atitude
normativa ou prescritiva.
A bioética, enquanto ética aplicada, tem
necessariamente duas dimensões inseparáveis: b)O aspecto prescritivo é a conseqüência
um aspecto descritivo, outro prescritivo. prática do primeiro aspecto, e consiste em
indicar e propor qual é a solução melhor
a)O aspecto descritivo consiste em analisar, do conflito em pauta (ou a menos ruim),
de forma racional e imparcial, os argu- dados os parâmetros de valores assumidos
mentos em jogo numa disputa de interesses e as circunstâncias específicas. Assim sendo,
e valores à luz de alguma teoria moral a bioética é simultaneamente analítica e
subjacente. Este aspecto pretende dar conta pragmática, razão pela qual costuma-se
da situação em que o homem “se auto- classificá-la no âmbito da ética aplicada, no
observa”13 naquilo que ele faz conforme suas qual a razão teórica está profundamente
concepções de certo e errado, e ajudando- vinculada à razão prática. Isso faz com que
se pelo exercício da argumentação para exista uma profunda analogia com a prática
justificar seus atos perante alguma instância médica, que o bioeticista inglês, John
julgadora que o transcende. Esta auto- Harris, sintetiza pela afirmação: “Assim
observação se acompanha de uma pretensão como a tarefa específica da medicina não é
de distanciamento do objeto observado [o só a de compreender a natureza e as causas
si-mesmo em interação com o(s) outro(s)] da doença, mas também a de tentar preveni-
em vista de atingir algum patamar de las ou curá-las, é também tarefa própria da
imparcialidade, a partir do qual poder julgar ética médica não só compreender a natureza
“objetivamente”, isto é, com isenção. O dos problemas morais levantados pela prá-
objetivo é testar e ponderar os argumentos tica médica, mas a de tentar resolvê-los”14.
em seus contextos específicos, quer dizer,
explicitá-los, avaliá-los e, quando for Se aceitarmos esta dupla tarefa da bioética,
possível, destacar qual deles deva ser podemos entender porque ela está duplamente
considerado o melhor ou o menos ruim. vinculada aos procedimentos comunicativos.
Em outros termos, este papel crítico- Com efeito, ao ocupar-se e preocupar-se com
descritivo da bioética consiste em detectar a interpretação do mundo e das relações de
o argumento mais pertinente e convincente, reconhecimento recíproco na práxis, a bioé-
e que permita escolher, dentre as atitudes tica (que como vimos diz respeito aos atos
possíveis, aquela que mais se adapta a uma irreversíveis sobre os processos irreversíveis
situação específica em vista de obter os dos sistemas vivos, conforme a definição de

30 Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32


Bioética e Comunicação em Oncologia

Kottow) só poderá ter a ver com o duplo pode oferecer num mundo pluralista e multi-
aspecto da observação: informar-se e infor- cultural em que – como escreve Engelhardt:
mar, de forma fidedigna, sobre tais estados “Deus não fala a todos da mesma maneira”16
do mundo e, a partir dessa operação de e – acrescentaríamos: não tem o mesmo nome
comunicação semiótica, agir em confor- para quem acredita em alguma entidade
midade com o ponto de vista existencial, representada pela palavra Outro. O resto é
fazendo o possível para que os melhores da ordem da fé, ou do silêncio, que talvez
argumentos prevaleçam. Em suma, a bioética fazem parte da comunicação, só que não
está duplamente vinculada à comunicação verificável e dificilmente compartilhável. Resta
porque pretende basear-se nos melhores a preocupação com o outro de si, que certa-
standards de observação e interpretação e mente faz parte dos deveres da boa prática
porque, a partir desses fatos, considerados oncológica, que para ser tal deve ser simulta-
“fidedignos”, sugere standards de ação que neamente competente e bioeticamente legí-
sejam universalizáveis para serem aceitos por tima, para que seus profissionais possam
uma comunidade de comunicação e exercer sua profissão decentemente e os usuá-
moralmente orientada. rios se sentirem menos sozinhos nos momen-
tos de desamparo frente ao inelutável.

CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
Feitas estas considerações, pode-se voltar BIBLIOGRÁFICAS
à pergunta inicial: o que têm a ver a bioética
e a comunicação com a oncologia? Vimos que 1. Hottois G. Bioéthique. In: Hottois G, Parizeau
só se pode legitimamente falar em ética, e a MH, eds. Les mots de la bioéthique. Bruxelles:
fortiori em bioética, quando existe alguma De Boeck-Wesmael, 1993: 49-56.
forma de comunicação entre agentes (ou
2. Kottow M. Introducción a la bioética. Santiago:
agentes e pacientes) morais, sob a forma de Universitária, 1995.
uma preocupação compartilhada com o
3. Ricoeur P. Soi-même comme un autre. Paris:
reconhecimento do outro (enquanto agente o
Du Seuil, 1990.
paciente). Vimos também que é pertinente
afirmar que a comunicação se ocupa tanto 4. Ferrater Mora J. Comunicación. In: Ferrater
dos aspectos semióticos como dos aspectos Mora J, Terricabras JM, eds. Diccionario de Filo-
existenciais da práxis humana, entendida sob sofia. 1a ed. rev. Barcelona: Ariel, 1999: 611-4.
a forma da relação eu-outro em contextos 5. Habermas J. Theorie des kommunikatives
específicos de conflitos de interesses e valores. Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1981.
Se aceitarmos essas duas premissas, bioé- 6. Apel K.O. Das Apriori der kommunikations-
tica e comunicação constituem meios para gemeinschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1973.
que o processo irreversível que leva do nasci- 7. Albuquerque MC. Pediatria: praxis e reflexão
mento à morte, passando pelos estágios do ética. Medicina 2000; 15(121): 8-9.
adoecimento, do tratamento e do desamparo 8. Taylor C. The politics os recognition. New York:
frente à precariedade intrínseca da condição Princeton University Press, 1992.
humana, seja encarado como evento que
9. Rorty R. Freud e Platão na arena. Folha de São
compartilhamos todos, o que pode nos
Paulo 2000 dez 10 ;Mais:22.
fornecer argumentos suficientes, embora
precários (quando enxergados do ponto de 10. Rescher N. Pluralism. against the demand for
consensus. Oxford: Clarendon Press/Oxford
vista do desamparo vivenciado individual-
University Press, 1995.
mente), para viver, gozar, sofrer e morrer
dignamente como membros da espécie homo 11. Engelhardt Jr HT. The foundations of bioethics.
sapiens sapiens et mortalis. 2nd ed. New York: Oxford University Press,
Talvez seja pouca coisa ou, melhor dito, 1996.
um “não-sei-bem-o-que” e um “quase-nada” 12. Rescher N. Op. Cit. p. 2.
(como dizia Vladimir Jankélevitch)15, mas é a 13. Maliandi R. Ética: conceptos y problemas.
única consolação que a filosofia moral laica Buenos Aires: Biblos, 1991: 11.

Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32 31


Schramm, F. R.

14. Harris J. The value of life: an introduction to 15. Jankelevitch V. Le je-ne-sais-quoi et le presque-
medical ethics. London: Routledge & Kegan, rien. Paris: Du Seuil, 1980.
1985: 4. 16. Engelhardt Jr HT. Op. Cit. 1996.

3 2 Revista Brasileira de Cancerologia, 2001, 47(1): 25-32

Você também pode gostar