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conflitos interpretativos. Seja como for, sem da saúde”, entre outras ocorrências.
um acordo inicial dos participantes sobre os O principal problema com essas definições
possíveis sentidos das palavras utilizadas e a diz respeito à extensão de seu campo semân-
extensão dos conceitos referidos, as inevitáveis tico referido, visto que:
disputas que surgem dos conflitos de inter- a) algumas são demasiado abrangentes, como
pretação acabam por tornar impossível a “ética da vida”, que deixa entender que toda
comunicação, e com isso a procura de even- ética é necessariamente uma bioética, o que
tuais soluções dos conflitos envolvidos. é falso se entendermos bioética num sentido
Por estas razões defenderemos aqui a idéia estrito e não lato;
de que a comunicação é um projeto mais do b) outras demasiado restritas, como “ética
que um dado, apesar de vivermos numa época biomédica”, que na prática acaba se confun-
de proliferação de meios e suportes da infor- dindo com a ética médica tradicionalmente
mação. A comunicação é um projeto devido entendida e esquece a reconfiguração da
em parte a esta mesma proliferação de meios ética acontecida com o surgimento das
e suportes informacionais, a qual faz com que éticas aplicadas e a bioética graças às novas
se confunda a mera informação (que pode interrogações sobre os processos do viver,
ser medida) com o processo mais delicado e adoecer e morrer, que emergem com os
sempre in fieri da comunicação, isto é, com avanços da biomedicina e a emergente
algo que de fato está sempre “em ato de tornar- sociedade de “consumidores”.
se” (é este o sentido de in fieri), e nunca algo Frente a esta polaridade semântica prefe-
dado a priori. Em outros termos, a comuni- rimos utilizar a definição dada por Miguel
cação é um projeto que se realiza num pro- Kottow, para quem a bioética se refere à
cesso durante o qual pelo menos dois atores moralidade dos atos humanos que alteran, de
sociais concordam sobre determinadas regras forma irreversível, os processos, também
e sobre determinados objetivos. Sem esta irreversíveis, dos sistemas vivos2. Esta definição
aceitação consensual tanto das regras como tem uma vantagem comparativa sobre as
dos objetivos, não há comunicação, e isso demais visto que é simultaneamente bastante
pode verificar-se a todo momento em muitas ampla e suficientemente precisa. Não se
situações: nas relações entre médico e restringe ao mero âmbito biomédico pois
paciente, entre pais e filhos, entre marido e permite, por um lado, incluir as práticas
mulher, entre professores e alunos, entre biotecnológicas, os tratos com os animais e
membros de uma equipe profissional e multi- as intervenções sobre o meio ambiente, e,
profissional e, evidentemente, entre estes e por outro, delimita qual é o aspecto da vida
os usuários. que deve ser considerado pertinente para a
Se as dificuldades que estamos apontando análise moral do agir humano: o fato da vida
de fato existem, temos então duas saídas: ou ser um processo irreversível e das ações
renunciamos a qualquer tentativa de comu- humanas poderem interferir, de maneira
nicar, fechando-nos estoicamente num silên- também irreversível, nele, tendo portanto
cio impassível e digno, ou, sem abrir mão de conseqüências que podem ser julgadas boas
uma saudável dose de cepticismo, tentamos ou más de acordo com a intensidade e a
construir conjuntamente as condições para qualidade da transformação. Tampouco
que o projeto comunicativo surja e se realize esquece a especificidade do saber-fazer
da melhor maneira possível. biomédico atual, marcado pela vigência
daquilo que chamamos de paradigma
NÃO EXISTE CONSENSO SOBRE BIOÉTICA biotecnocientífico e outros de paradigma
Devido à diversidade de práticas e discur- biotecnológico. Por fim, tem uma vantagem
sos chamados “bioéticos” pode-se afirmar que específica para o tema que nos ocupa aqui e
não existe um conceito simples e absoluta- que se refere justamente ao processo irre-
mente unívoco1. Com efeito, bioética pode versível do fim da vida.
ser entendida como “ética da vida” o como
“ética da qualidade de vida” (conforme o NÃO EXISTE CONSENSO SOBRE O TERMO
sentido dado à palavra grega bíos), como COMUNICAÇÃO
sinônimo de “ética biomédica” ou como A situação do termo “comunicação” é mais
“ética aplicada ao campo da biomedicina e complexa ainda, considerada a sua freqüente
ocorrência nos contextos mais diversos. Com situações de vida e consistiria em atitudes de
efeito, “comunicação” pode referir-se a um eu frente a outros eus e ao mundo, razão
qualquer meio ou suporte, fatual ou virtual, pela qual existiria uma polarização entre um
de transmissão de informação (como em aspecto meramente instrumental (ou
“meios de comunicação” e “tecnologias de semiótico) e um aspecto prevalentemente
comunicação”), a qualquer conteúdo produ- hermenêutico (ou existencial) do processo
zido por tales meios (confundindo-se portanto comunicativo, que incluiria não só infor-
com a mensagem) ou, ainda, a procedimentos mações, mas outrossim emoções e, sobre-
ligados a estes, tais como a arte do conven- tudo, valores. Para José Ferrater Mora4, esta
cimento (que a associam portanto à retórica) polarização prejudicaria o próprio processo
ou a outros meios pragmáticos. comunicativo entendido em sua integralidade,
Em particular, pode ainda referir-se a isto é, simultaneamente lingüístico (ou
qualquer situação de inter-relação entre atores semiótico) e existencial (ou hermenêutico).
sociais, como nas situações existenciais nas Uma maneira de sair dessa polaridade
quais dois ou mais agentes, i.e. um “eu” e poderia ser a de juntar ambas as formas de
um “outro”, dialogam entre si, inclusive nas comunicação mas sem confundi-las, quer
situações reflexivas quando um agente (eu) dizer, considerar a comunicação como uma
“dialoga” com si mesmo (que pode então ser situação de encontro entre seres considerados
considerado como um “outro” ou um “si- em si-mesmos mas também em inter-relação,
mesmo como um outro”3 ). Neste sentido, a logo como diálogo entre subjetividades que
comunicação pode ser entendida também fazem a experiência do mútuo reconhecimento
como um processo da transcendência, ou seja, no auto-conhecimento, de ser simultaneamente
como uma situação em que um eu tenta sair si mesmas e seres para outros seres.
de si e entrar em contato com o outro de si Desta maneira, a comunicação pode ser
ou entrar novamente em contato com ele. Por entendida como uma forma do agir e, por
isso, o ser comunicativo que é o ser humano ser uma forma de agir, deve ser pensada
é sempre também um ser transcendente. necessariamente em sua dimensão ética, o que
É devido a esses múltiplos aspectos pode ser feito no sentido desenvolvido por
inerentes à comunicação que surge toda uma exemplo por Jürgen Habermas5 e Karl Otto
série de questões abordadas pela psicologia, Apel6, i.e., preocupando-se com os valores
a antropologia filosófica, a filosofia da lingua- morais generalizáveis ou universalizáveis, e
gem, a semiótica e a própria reflexão de norteadores das práticas de alguém sobre o(s)
médicos e outros profissionais em saúde, por outro(s).
um lado, e usuários e associações de usuários, Tendo definido os conceitos de bioética e
por outro. Todos a princípio preocupados com comunicação pode-se então articulá-los ao
a performance de suas práticas respectivas e/ campo da oncologia e ver como e em que
ou com o controle e a fiscalização de tal medida poderiam ser de subsídio às decisões
performance. e práticas oncológicas.
A principal questão nesse âmbito comple-
xo da comunicação seja talvez a oposição
entre o aspecto propriamente lingüístico (ou COMUNICAÇÃO E
semiótico) e o aspecto existencial da comu- BIOÉTICA EM ONCOLOGIA
nicação, aparentemente irredutíveis entre si
e portanto considerados estruturalmente Voltemos à primeira pergunta: o que têm
inconciliáveis tanto no plano comunicativo a ver comunicação e bioética com a onco-
como no plano axiológico. Resumidamente, logia? A meu ver existem dois sentidos prin-
o problema é o seguinte: a comunicação cipais da relação: um intuitivo, outro crítico.
semiótica seria essencialmente transmissão de
informação ou de mensagens entre um a) No sentido intuitivo comunicação e bioética
emissor e um receptor ou intérprete, isto é, podem ser vistas como “coadjuvantes” de
comunicação essencialmente reduzida à sua qualquer prática médica e de qualquer
dimensão simbólica, ao passo que a comu- cuidado em saúde7, porque ambas são (ou
nicação existencial se daria num contexto de pretendem ser) meios inerentes à relação
mônadas cognitivas e morais fechadas e resultados melhores ou, quando isso não
incomensuráveis, ou uma galáxia de for possível, os menos ruins em termos de
comunidades de “estranhos morais”, o que conseqüências.
provavelmente resultaria numa incom- Entretanto, por ser um ato de auto-
preensão universal e numa “guerra” entre observação, este distanciamento, e a con-
prestadores de serviços e usuários. Assim seguinte “isenção”, sempre estarão sob
sendo, o reconhecimento recíproco implica suspeita por parte de terceiros, que poderão
tanto o respeito do outro quanto a tomada legitimamente duvidar do observador ser
de posição pessoal, mesmo que seja em um mero observador. De fato, é razoável
conflito com a posição do outro e desde afirmar que um observador sempre observa
que isso não implique na impossibilidade com alguma finalidade pragmática, isto é,
do outro fazer o mesmo. A solução dos tendo em vista algum conhecimento que
conflitos se dará portanto no respeito da pretende ser aplicado para construir algo
autonomia pessoal e da especificidade da (poiesis) ou para compartilhá-lo com alguém,
situação. inclusive para discordar com este alguém
(práxis). Isso faz com que toda observação
implique sempre também um compromisso
O DUPLO ASPECTO com alguma forma de teleologia e, no caso
COMUNICATIVO DA do ato ético, uma pretensão de dizer como
BIOÉTICA “as coisas deveriam ser”, que é uma atitude
normativa ou prescritiva.
A bioética, enquanto ética aplicada, tem
necessariamente duas dimensões inseparáveis: b)O aspecto prescritivo é a conseqüência
um aspecto descritivo, outro prescritivo. prática do primeiro aspecto, e consiste em
indicar e propor qual é a solução melhor
a)O aspecto descritivo consiste em analisar, do conflito em pauta (ou a menos ruim),
de forma racional e imparcial, os argu- dados os parâmetros de valores assumidos
mentos em jogo numa disputa de interesses e as circunstâncias específicas. Assim sendo,
e valores à luz de alguma teoria moral a bioética é simultaneamente analítica e
subjacente. Este aspecto pretende dar conta pragmática, razão pela qual costuma-se
da situação em que o homem “se auto- classificá-la no âmbito da ética aplicada, no
observa”13 naquilo que ele faz conforme suas qual a razão teórica está profundamente
concepções de certo e errado, e ajudando- vinculada à razão prática. Isso faz com que
se pelo exercício da argumentação para exista uma profunda analogia com a prática
justificar seus atos perante alguma instância médica, que o bioeticista inglês, John
julgadora que o transcende. Esta auto- Harris, sintetiza pela afirmação: “Assim
observação se acompanha de uma pretensão como a tarefa específica da medicina não é
de distanciamento do objeto observado [o só a de compreender a natureza e as causas
si-mesmo em interação com o(s) outro(s)] da doença, mas também a de tentar preveni-
em vista de atingir algum patamar de las ou curá-las, é também tarefa própria da
imparcialidade, a partir do qual poder julgar ética médica não só compreender a natureza
“objetivamente”, isto é, com isenção. O dos problemas morais levantados pela prá-
objetivo é testar e ponderar os argumentos tica médica, mas a de tentar resolvê-los”14.
em seus contextos específicos, quer dizer,
explicitá-los, avaliá-los e, quando for Se aceitarmos esta dupla tarefa da bioética,
possível, destacar qual deles deva ser podemos entender porque ela está duplamente
considerado o melhor ou o menos ruim. vinculada aos procedimentos comunicativos.
Em outros termos, este papel crítico- Com efeito, ao ocupar-se e preocupar-se com
descritivo da bioética consiste em detectar a interpretação do mundo e das relações de
o argumento mais pertinente e convincente, reconhecimento recíproco na práxis, a bioé-
e que permita escolher, dentre as atitudes tica (que como vimos diz respeito aos atos
possíveis, aquela que mais se adapta a uma irreversíveis sobre os processos irreversíveis
situação específica em vista de obter os dos sistemas vivos, conforme a definição de
Kottow) só poderá ter a ver com o duplo pode oferecer num mundo pluralista e multi-
aspecto da observação: informar-se e infor- cultural em que – como escreve Engelhardt:
mar, de forma fidedigna, sobre tais estados “Deus não fala a todos da mesma maneira”16
do mundo e, a partir dessa operação de e – acrescentaríamos: não tem o mesmo nome
comunicação semiótica, agir em confor- para quem acredita em alguma entidade
midade com o ponto de vista existencial, representada pela palavra Outro. O resto é
fazendo o possível para que os melhores da ordem da fé, ou do silêncio, que talvez
argumentos prevaleçam. Em suma, a bioética fazem parte da comunicação, só que não
está duplamente vinculada à comunicação verificável e dificilmente compartilhável. Resta
porque pretende basear-se nos melhores a preocupação com o outro de si, que certa-
standards de observação e interpretação e mente faz parte dos deveres da boa prática
porque, a partir desses fatos, considerados oncológica, que para ser tal deve ser simulta-
“fidedignos”, sugere standards de ação que neamente competente e bioeticamente legí-
sejam universalizáveis para serem aceitos por tima, para que seus profissionais possam
uma comunidade de comunicação e exercer sua profissão decentemente e os usuá-
moralmente orientada. rios se sentirem menos sozinhos nos momen-
tos de desamparo frente ao inelutável.
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
Feitas estas considerações, pode-se voltar BIBLIOGRÁFICAS
à pergunta inicial: o que têm a ver a bioética
e a comunicação com a oncologia? Vimos que 1. Hottois G. Bioéthique. In: Hottois G, Parizeau
só se pode legitimamente falar em ética, e a MH, eds. Les mots de la bioéthique. Bruxelles:
fortiori em bioética, quando existe alguma De Boeck-Wesmael, 1993: 49-56.
forma de comunicação entre agentes (ou
2. Kottow M. Introducción a la bioética. Santiago:
agentes e pacientes) morais, sob a forma de Universitária, 1995.
uma preocupação compartilhada com o
3. Ricoeur P. Soi-même comme un autre. Paris:
reconhecimento do outro (enquanto agente o
Du Seuil, 1990.
paciente). Vimos também que é pertinente
afirmar que a comunicação se ocupa tanto 4. Ferrater Mora J. Comunicación. In: Ferrater
dos aspectos semióticos como dos aspectos Mora J, Terricabras JM, eds. Diccionario de Filo-
existenciais da práxis humana, entendida sob sofia. 1a ed. rev. Barcelona: Ariel, 1999: 611-4.
a forma da relação eu-outro em contextos 5. Habermas J. Theorie des kommunikatives
específicos de conflitos de interesses e valores. Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1981.
Se aceitarmos essas duas premissas, bioé- 6. Apel K.O. Das Apriori der kommunikations-
tica e comunicação constituem meios para gemeinschaft. Frankfurt: Suhrkamp, 1973.
que o processo irreversível que leva do nasci- 7. Albuquerque MC. Pediatria: praxis e reflexão
mento à morte, passando pelos estágios do ética. Medicina 2000; 15(121): 8-9.
adoecimento, do tratamento e do desamparo 8. Taylor C. The politics os recognition. New York:
frente à precariedade intrínseca da condição Princeton University Press, 1992.
humana, seja encarado como evento que
9. Rorty R. Freud e Platão na arena. Folha de São
compartilhamos todos, o que pode nos
Paulo 2000 dez 10 ;Mais:22.
fornecer argumentos suficientes, embora
precários (quando enxergados do ponto de 10. Rescher N. Pluralism. against the demand for
consensus. Oxford: Clarendon Press/Oxford
vista do desamparo vivenciado individual-
University Press, 1995.
mente), para viver, gozar, sofrer e morrer
dignamente como membros da espécie homo 11. Engelhardt Jr HT. The foundations of bioethics.
sapiens sapiens et mortalis. 2nd ed. New York: Oxford University Press,
Talvez seja pouca coisa ou, melhor dito, 1996.
um “não-sei-bem-o-que” e um “quase-nada” 12. Rescher N. Op. Cit. p. 2.
(como dizia Vladimir Jankélevitch)15, mas é a 13. Maliandi R. Ética: conceptos y problemas.
única consolação que a filosofia moral laica Buenos Aires: Biblos, 1991: 11.
14. Harris J. The value of life: an introduction to 15. Jankelevitch V. Le je-ne-sais-quoi et le presque-
medical ethics. London: Routledge & Kegan, rien. Paris: Du Seuil, 1980.
1985: 4. 16. Engelhardt Jr HT. Op. Cit. 1996.