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II

As Duas Faces Da Moeda

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_ Pai, sabes explicar-me o que é a globalização, porque eu tenho um trabalho para fazer na
escola sobre este tema?

- Vou tentar responder-te de forma a que tu possas perceber e que eu, ao responder-te, fique
com ideias mais claras sobre o assunto, que está muito longe de estar encerrado. Por isso, não
esperes uma definição exata e simples. Vou falar-te de situações concretas e dar-te exemplos
que possam servir para tu fazeres a tua própria reflexão. Concordas?

-Concordo. Por onde queres começar?

-Talvez pelo princípio. Em boa verdade, pode dizer-se que os impérios antigos, sobretudo o
romano, conseguiram, pondo povos, línguas, e culturas em contato, mesmo recorrendo à
violência da guerra, globalizar o mundo do seu tempo, criando leis e regras que regularam o
comercio, a vida política e a própria religião.

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- Mas globalizaram como?

- SE os exércitos romanos ocuparam imensos territórios na Europa, no norte de África e na Ásia


Menor, os povos ocupados eram forçados a reger-se, de forma mais ou menos pacífica, pelas
leis romanas e pelas formas que os Romanos tinham de negociar, de premiar ou de castigar.
Não te esqueças, por exemplo, que Jesus Cristo foi executado pelos Romanos em Jerusalém,
num tempo em que a língua dominante de comunicação era o latim.

Essa era uma forma de globalização que resultava de um domínio militar, político, económico e
até religioso.

- Mas agora não há nenhum país que tenha esse tipo de poder, pois não?

- Claro que há, embora de uma forma muito diferente da que caracterizou o Império Romano.

-Então que país é esse?

-São os Estados Unidos da América que, depois de 1989, ano em que foi derrubado o Muro de
Berlim e em que começaram a cair os regimes do bloco soviético, passaram a ser a única
superpotência.

-E o que é que isso quer dizer?

-Quer dizer que, tendo um poder militar e económico que nenhum outro país se atreve a
disputar, mesmo tratando-se de uma democracia que elege os seus órgãos representativos de
quatro em quatro anos, acaba por

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impor, ou por tentar impor, as suas regras a nível internacional. Felizmente que, em áreas
como a ambiental, mais de 170 países de vários continentes tomaram, em Julho de 2001, a
decisão de não aceitar que os Estados Unidos façam lei em matéria ambiental. Se assim não
acontecer, o processo de aquecimento global do planeta poderá conduzir a catástrofes
naturais de proporções incalculáveis. Esta foi, de novo, a questão central na Cimeira da Terra,
realizada em Joanesburgo, no Verão de 2002. Os Estados Unidos cederam em alguns aspetos,
mas mantiveram uma posição de princípio inflexível e arrogante. Por isso, o secretario de
Estado Colin Powell foi vaiado na sessão plenária.

-Portanto, a culpa é dos Estados Unidos.

- É, mas só em parte. Os Estados Unidos são uma grande democracia que representa os valores
supremos do capitalismo, ou seja, da economia e da sociedade de mercado, fazendo do lucro
uma espécie de deus e uma meta que quase todos pretendem atingir. Tendo o poder militar
que têm e estando presentes um pouco por todo o mundo, é natural que tentem utilizar
outros povos e países com economias mais fracas como instrumentos da sua política e do seu
crescimento económico.

-Estou a perceber. Mas o que é que isso tem a ver com a globalização?

- Acho que tem tudo a ver. Quem manda e quem tem poder, tenta definir as regras que
orientam a vida dos outros, pelo menos ao nível dos países e dos povos.

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- Mas enão isso quer dizer que a globalização é apenas uma questão económica?

- Não, a vertente económica é apenas um dos rostos da globalização, que pode ser analisada
nos seus aspetos tecnológicos, científicos e culturais.

- E só tem aspetos negativos?

- Claro que não. Também tem muitos aspetos positivos.

- Quais são os negativos?

- O pior de todos é estar a contribuir para que ao países ricos sejam cada vez mais ricos e os
pobres cada vez mais pobres. Para veres até que extremos pode ser levado esse estado de
pobreza, basta dizer-te que todos os países de África juntos representam somente quatro por
cento do comércio mundial, o que é assustador.

É por isso que se fala cada vez mais em solidariedade.

-Desculpa, mas o que é que uma coisa tem a ver com a outra?

- Vou tentar explicar-te. Se os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres,
mesmo no interior dos países ricos, é urgente que se criem maneiras de evitar que a exclusão
social e económica ponha à margem da sociedade um número crescente de pessoas,
independentemente das idades que têm, E, como sabes, a exclusão é muito violenta e
dolorosa para

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as crianças e para os velhos, que têm menos defesas quando são marginalizados. Por isso, em
Maio do ano 2000, o papa João Paulo II, falando no dia 1º de Maio, Dia do Trabalhador, para as
centrais sindicais italianas, disse que, se vivemos nem mundo globalizado, então devemos
começar por globalizar a solidariedade.
- E tu concordas com essa afirmação?

- Claro que concordo, apesar de não ser católico e de não ter qualquer atividade ou crença
religiosa. Há ideias à volta das quais é preciso criar o mais largo consenso possível. Esta é uma
delas.

-Então é por isso que há manifestações tão grandes como a daquela cidade italiana onde um
polícia matou um jovem a tiro?

- Referes-te a Génova, durante a Cimeira do G-8?

- Isso mesmo.

- Sim, tens razão. Há um número cada vez maior de organizações em vários continentes que
estão contra a injustiça social agravada pelo fenómeno da globalização. Antes de Génova ou
de Sevilha, já se tinham manifestado em Seattle, nos Estados Unidos em Praga, na República
Checa, em Barcelona e em Davos, na Suíça, mostrando que não estão dispostos a aceitar que a
globalização, comandada pelos países mais ricos do mundo, agrave o fosso que separa os
ricos dos pobres.

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- Mas eu lembro-me de que houve muitos confrontos nas ruas dessas cidades. Porquê?

- Porque, entre as organizações que se manifestaram, há as que são pacificas e há as que o não
são e que fazem da desordem publica e da destruição a sua forma de protesto.

- E isso está errado?

- Está de tal maneira errado que aqueles que têm razão acabam por perdê-la, porque os seus
argumentos, que são justos e merecem ser levados em conta, se confundem com os atos
violentos dos grupos que partem montras, destroem carros e apedrejam as forças policias.

- Porque é que tu achas que isso acontece?

- Porque há organizações políticas que ficaram sem espaço nem expressão publica nos últimos
anos e que aproveitam estas ocasiões para radicalizarem as suas formas de protesto.

- E o que é que tu achas que pode ser feito para evitar que isso aconteça?

- Não tenho uma resposta para essa pergunta, até porque estamos nem período de transição
da política tradicional para novas formas de fazer e organizar a vida politica e ninguém sabe
como irão ser essas formas nas próximas décadas. No fundo, estamos a viver uma quase

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Revolução e, nas revoluções, há sempre excessos que só o tempo e o bom senso dos seres
humanos permite moderar e corrigir. Por isso, terão que ser as organizações mais sérias e
maduras a pôr à margem aquelas que mostram não ter condições para ser respeitadas, sob
pena de elas próprias não serem levadas a sério. Acho mesmo que as organizações
antiglobalização, que integram pessoas das mais diversas origens e com os mais distintos
percursos políticos, devem recorrer aos canais da globalização para tornarem o seu protesto
mais eficaz.

- Desculpa, mas não estou a perceber.


- Eu explico-te. Por exemplo, no Fórum Social de Porto Alegre, no Brasil, a Internet foi utilizada
com grande inteligência e eficácia para pôr em rede todos os que, em vários continentes, não
aceitam os efeitos da globalização. É esse caminho que eu entendo que deve ser seguido.
Entretanto, todo este debate ganhou uma nova dimensão depois dos atentados terroristas de
11 de Setembro.

- Porquê?

- Porque o próprio terrorismo se tornou global e transnacional, usando os meios da


globalização para financiar as suas ações. Eles, os terroristas, usaram a especulação em varias
Bolsas para conseguirem dinheiro para ações cada vez mais destrutivas, imprevisíveis e
assustadoras. O próprio terror percebeu que pode tirar partido da globalização, recorrendo
aos mais sofisticados maios tecnológicos e financeiros.

III

MAS, AFINAL, O QUE É A GLOBALIZAÇÃO?

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- Mas agora reparo que ainda não disseste o que é a globalização.

- Tens razão. Vamos a isso, mesmo sem nos ficarmos pelas definições que reduzem tudo a
meia dúzia de palavras que, por vezes, nada explicam. Antes de qualquer outra coisa, a
globalização é uma palavra a que corresponde um conceito. Para os franceses, a
«globalização» tem o nome de «mundialização», o que, no fundo, quer dizer exatamente o
mesmo. Normalmente, o conceito e a palavra são usados no seu sentido económico,
valorizando a ideia de que há um mercado global cujas regras são impostas pelos mais
poderosos e em relação ao qual os consumidores e os trabalhadores são meros elementos
passivos, sendo que os trabalhadores dos países mais pobres nem consumidores podem ser,
pois vivem, em muitos casos, com cerca de um euro por dia, o que equivale a dois cafés ou a
uma sanduiche ou a pouco mais de um litro e meio de leite. Este mercado global ignora as
fronteiras e as economias nacionais.

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E expande-se por onde quer e como quer, despedindo trabalhadores, desmantelando e


deslocalizando fábricas e empresas e semeando a insegurança social.

- Mas sempre houve tendência para que isso acontecesse, ou não houve?

- Porquê?

- Porque havia os regimes comunistas do Leste, e nesses mercados não entravam ou entravam
muito poucos os produtos dos outros países. Só com a quede do Muro de Berlim a situação
começou a alterar-se, e também com a entrada da República Popular da China para a grande
rede do comercio mundial, com o apoio dos Estados Unidos, que viram ali não só o maior
mercado mundial, mas também o maior criador de produtos baratos para abastecer certos
mercados.

- Realmente, quando vamos ao mercado cada vez encontramos mais rótulos a dizerem « Made
in China».
- Assim, o volume do comercio externo tornou-se, nos últimos anos, o maior de sempre,
envolvendo um conjunto de serviços e de produtos como nunca houve antes. E na base de
tudo isto está a componente eletrónica da globalização; estão os computadores, está a
Internet, está, no fundo, o dinheiro eletrónico que nunca ninguém chega a ver sob a forma de
notas ou de moedas

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E que só existe como informação ao nível das bases de dados dos computadores. Isso faz com
que a sede das grandes decisões económicas e financeiras já não esteja em gabinetes luxuosos
de grandes edifícios, mas no carregar de uma ou mais teclas de um computador que permite
transferir verbas imensas, fazer compras e vendas sem que ninguém mostre a cara e destruir,
em alguns casos, economias nacionais. Vista deste ângulo, a globalização é o triunfo do
número e do cifrão sobre as pessoas, os seus sentimentos e os seus interesses. Deixamos
assim de usar o dinheiro como um instrumento e passamos a ser escravos dele, já que ficamos
dependentes do endividamento que contraímos e da forma como entramos nas contas e nas
previsões das grandes maquinas de gerar lucro. Hoje, os mercados financeiros, em termos
globais, movimentam mais de um trilião de dólares por dia e a parcela desse movimento que
cabe aos países pobres é absolutamente irrisória.

- Mas não foi só a quede do Muro de Berlim que provocou essa mudança. Tudo deve ter
começado antes.

: Tens toda a razão. Falei-te dos impérios antigos, com destaque especial para o romano, mas
esqueci-me de te falar do papel que tiveram, por exemplo, os Descobrimentos Portugueses.

- Não estou a perceber.

- O que achas que fez Vasco da Gama ao chegar à Índia com as suas naus, senão contribuir
para alargar os mercados que suportavam o comércio mundial?

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- Nunca tinha pensado nisso.

- Então é bom pensares. Com a sua viagem pioneira, Vasco da Gama, mas também Pedro
Álvares Cabral com a chegada ao Brasil ou Fernão de Magalhães ao circum-navegar a Terra,
abriram novas e importantes vias para a comunicação entre povos, culturas e civilizações e
para novos contatos comerciais entre continentes. Até, grande pate do comércio mundial era
feito por terra, com lentidão e pouca eficácia, sobretudo graças à movimentação das
caravanas árabes. Com a chegada a África, ao Brasil e á Índia passaram a aparecer na Europa as
tão procuradas especiarias para temperar os alimentos, as madeiras exóticas, o ouro e a prata
e principalmente a mão de obra escrava que permitiu fazer crescer países e grandes obras.
Nesse sentido, pode e deve dizer-se que, mesmo sem computadores, os Portugueses deram
um contributo decisivo para o processo de globalização na sua forma primitiva. Claro que com
a revolução tecnológica e cientifica foi possível ir muito mais longe. Falei-te de Vasco da Gama,
de Fernão de Magalhães, ou de Pedro Álvares Cabral, mas podia rer-te falado também, do
Infante D. Henrique, primeiro.

- Queres com isso dizer que os Portugueses também têm culpas neste processo?

- Têm sobretudo mérito, pois fizeram evoluir a humanidade e puseram em contato povos e
civilizações muito diferentes. Quanto às vias abriram nesse
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Sentido, elas só foram más ou boas consoante o uso que se fez delas e têm que ser observadas
à luz da mentalidade e dos calores da época e não dos atuais. Quando Samuel Morse enviou a
primeira mensagem através do telégrafo, em meados do século XIX ( 19), deu também um
contributo para o processo de globalização. O mesmo fez Alexander Bell ao inventar o
telefone. Tudo foram passos no sentido de aproximar povos, culturas e, inevitavelmente, os
mercados com toda a suas diversidades. Por exemplo, se hoje encontras nos mercados, em
Portugal frutos exóticos e peças de artesanato que nunca pensaste que poderias encontrar no
teu país, isso também é resultado da globalização.

- Queres, portanto, dizer-me que a globalização tem aspetos positivos e que tudo depende do
uso que se fax dela?

- É isso precisamente o que estou a tentar dizer-te nesta conversa informal da qual ficam
excluídas as grandes definições e as teorias muito rebuscadas. A verdade é que a humanidade
sempre evoluiu no sentido de formas de globalização, mas só com a revolução tecnológica e
científica conseguiu criar os meios necessários para que, para o bem e para o mal, a
aproximação entre povos e culturas se verificasse. Vista pelo ângulo só económico, como já
tive ocasião de te dizer, a globalização tem-se revestido sobretudo de aspetos negativos, já
que, concentrando cada vez mais poderes nas mãos dos poderosos, torna os ricos mais ricos e
os pobres muito mais pobres.

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