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Psicologia jurídica cresce no Brasil como forma de resolver impasses

extrajudiciais
por Cláudia Cardozo / Lucas Cunha

O tema parece ser relativamente novo no Brasil, mas no mundo já é uma tendência no
âmbito do judiciário brasileiro. A psicologia jurídica tem ganhado espaço no país a partir
dos estímulos dados nos processos de conciliação e mediação para resolver conflitos e
impasses, muitas vezes, de forma extrajudicial. Nesta entrevista, a doutora em
psicologia Elsa de Mattos, professora de psicologia jurídica e consultora da PsicoJuris –
Núcleo de Psicologia Jurídica, explica em que momento esses dois universos se cruzam
e qual a importância de se ter um apoio psicológico durante um litígio judicial. A
psicóloga conta que os estudos na área nasceram junto com a criminologia, e que o
tema era conhecido há um tempo como psicologia forense. “Era algo muito ligado à
área de psicologia, com perfis criminológicos, e de, enfim, de potenciais criminosos e
pessoas que tinham cometido delitos. Era muito restrita a área criminal, penal”,
comenta. A doutora em psicologia afirma que a Constituição Federal de 1988 o Estatuto
da Criança e do Adolescente trouxe uma nova função das áreas de psicologia e serviço
social, não somente na avaliação psicológica de crianças e adolescentes envolvidos com
temáticas de proteção à infância, mas também com a intervenção, acompanhamento.
Elsa de Mattos ainda fala sobre o mercado de trabalho para psicólogos que queiram se
enveredar no mundo jurídico e da formação necessária para atuação no meio, assim
como sobre o cuidado que se precisa ter em oitivas de criança que foram vítimas ou
testemunhas de um crime.

Primeiramente eu queria que você explicasse quando é que a psicologia cruza com
o direito. Isso parece ser uma temática nova, ainda no mundo jurídico, que começa
a ser estimulada e estudada agora. Em que momento as duas áreas se cruzam?

No Brasil, na verdade. No mundo, foi bem antes. Acho que já tem desde o início do
século XX uma série de coisas, principalmente com a criminologia. A criminologia foi
que trouxe inicialmente esta questão da psicologia forense, como era chamada lá atrás.
Era algo muito ligado à área de psicologia, com perfis criminológicos, e de potenciais

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criminosos e pessoas que tinham cometido delitos. Era muito restrita a área criminal,
penal. No Brasil também começou assim. Na verdade, o primeiro vínculo era entre a
psiquiatria e o direito, nessa área classificatória de perfis e psicopatias. Continua como
uma área forte, nunca foi abandonada. Mas ao longo do tempo, com o próprio
desenvolvimento do direito, a própria expansão das preocupações jurídicas, vamos
dizer assim, com a infância, com a adolescência, com a vitimização da mulher, outras
questões, com a família, a Constituição de 1988, já trouxe essa questão da família. No
Brasil, principalmente, a gente vislumbrou a partir do ECA. O próprio estatuto trouxe
uma nova função das áreas de psicologia e serviço social. Não somente na avaliação
psicológica de crianças e adolescentes envolvidos com temáticas de proteção à infância,
mas também com a intervenção, acompanhamento, o tipo de trabalho do psicólogo se
expandiu. Antigamente, era uma coisa de avaliação psicológica de perfis criminológicos,
tipificação de perfis criminológicos, uma avaliação psicológica. Com o Estatuto,
ampliou-se bastante. Essa visão de não somente de avaliação, mas de intervenção. O
psicólogo está atuando ao lado do direito, da prática jurídica, do juiz, do promotor,
não só na identificação desses problemas, mas também propondo encaminhamentos,
intervindo, criando formas de atender aquela população, com núcleo de atendimento.
Como por exemplo, nesse núcleo de psicologia e serviço social, a família, é um núcleo
que ali, supostamente, não é só para avaliação psicológica, é um núcleo de
acompanhamento. Você pode fazer uma avaliação e depois identificar que são
necessários encontros periódicos com aquela família para você verificar se a decisão
que foi tomada foi acatada, como está impactando aquela família. Isso também
acontece. Não é só essa visão do papel do psicólogo como avaliador. E, mais
recentemente ainda, depois de aproximadamente pelos idos de em 1998 e 2000,
começou a questão da mediação de conflitos. Já incipientemente no Brasil, mas a partir
de 2002, já começou dentro dos tribunais e das práticas do psicólogo ao lado do direito,
complementando a prática jurídica, a atuação de mediador. Por exemplo, hoje em dia
você vê em muitos lugares, inclusive, tribunais, defensorias públicas, em Defensorias
do Rio Grande do Sul, como a OAB do Rio Grande do Sul que tem uma parceria com o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem
duplas de psicólogos e advogados como mediadores. Os psicólogos também entraram
para a função de mediação de conflitos no âmbito do jurídico também são cada vez

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mais estimulados a isso. É uma coisa que vem cada vez mais se expandindo a forma de
trabalho do psicólogo. Não só no Brasil mudou essa nomenclatura, não é mais psicologia
forense. Antes quando eu estava na faculdade chamavam às vezes de psicologia
judiciária. Também não é psicologia judiciária, atualmente é psicologia jurídica, que é
entendido como uma coisa mais ampla. Porque forense fica muito relacionado com
crime e judiciária é uma psicologia que atua somente dentro do judiciário, às vezes o
psicólogo jurídico, assistente técnico, por exemplo, de uma parte que foi contratado
para acompanhar o processo é psicólogo jurídico, mas ele não está dentro do judiciário,
ele está atuando no judiciário mas é contratado pela parte para dar um apoio.

Existem resoluções ou regulamentos do Conselho Nacional de Psicologia ou Conselho


Nacional de Justiça que fomentem e estimulem essa prática para que cada vez mais
os psicólogos atuem no meio jurídico?

No CNJ, não. No Conselho Federal de Psicologia já tem algumas resoluções. Estou me


lembrando de duas ou três. O tribunal que tem o maior número de psicólogos e
assistentes sociais trabalhando com isso é o Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem
190 profissionais ou 200 profissionais atualmente. Este tribunal demanda muita coisa
do Conselho de Psicologia, porque acontecem muitas coisas. Por exemplo, como é
atuação do psicólogo ao lado do assistente técnico? Como é que deve se portar o
assistente técnico ou uma perícia psicológica. Então tem regulamentações que tratam
da forma como se deve apresentar um laudo, o que deve conter um laudo. São, vamos
dizer assim, estruturações que o Conselho Federal de Psicologia foi tomando ao longo
do tempo, principalmente, a partir de 2007 e 2008. Por fim, a própria legislação agora
que aparentemente é inovadora porque já coloca o psicólogo lá mesmo também como
requisito para tomada de decisão é a Lei da Alienação Parental. A Lei da Alienação
parental já traz como pressuposto que tem que existir um parecer psicológico para
decidir se está existindo alienação parental ou não. Por exemplo, numa situação de
alegação de alienação parental, é necessário ouvir o psicólogo ou assistente social para
dar um parecer psicossocial naquele caso. Todos os casos envolvendo isso, a rigor, para
o juiz tomar essa decisão, teria que ter no corpo do processo um parecer psicológico
pela própria lei. A lei demanda isso. Cada tribunal vai cumprindo essas coisas na medida

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da sua possibilidade. Existe realmente uma abertura cada vez maior e o que se vê em
termos de Brasil é que realmente estão tendo cada vez mais concursos para psicólogos
na área jurídica, nos ministérios públicos, nos tribunais, nas defensorias públicas. Todas
as instâncias jurídicas estão, cada vez mais, se abrindo para a atuação do psicólogo
nessa interface com o direito, com os profissionais do direito.

É necessário que o psicólogo tenha alguma formação específica para atuar nessa
área jurídica?

É bom que tenha. Inclusive aqui na Bahia se tem muito pouco, pouquíssimo, não existe
nenhum curso. Recentemente até me envolvi com a coordenação de um curso que até
hoje não vingou de especialização em psicologia jurídica. É um curso que, no mínimo,
essa pessoa deveria ter essa especialização para atuar no âmbito jurídico. Seria
necessário, seria bom. Porque as universidades ainda não estão aparelhadas para
oferecer essa especialidade. Então, por exemplo, dificilmente há estágios na área de
psicologia jurídica, dificilmente você vai ter isso na faculdade. Quando é que você vai
conseguir isso? No nível de uma pós graduação.

Mas nos outros estados já há cursos, já existem essas especializações fora da Bahia?

Uma das mais famosas é a da UERJ, no Rio de Janeiro. Lá tem até mestrado também
em psicologia jurídica. Em Brasília também tem, não é exatamente psicologia jurídica
que chama, mas dentro da psicologia clínica, dentro do mestrado em Psicologia Clínica,
em Brasília, tem uma área jurídica. Porque o conhecimento que o psicólogo jurídico
tem que ter geralmente envolve a área clínica, porque a avaliação psicológica é uma
coisa que está dentro da área clínica. É o diagnóstico psicológico. Você ter
conhecimento de avaliação psicológica não é suficiente porque o ideal é que a pessoa
que trabalha com psicologia jurídica tenha conhecimentos jurídicos também. Na área
de direito, por exemplo, entender como funcionam procedimentos jurídicos, leis,
conhecer a Lei da Alienação Parental, a Lei da Guarda Compartilhada, a Lei da Adoção.
Esses tipos de coisa são conhecimentos jurídicos que o psicólogo não estuda isso no seu

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curso de graduação. É um conhecimento a mais que está nessa interface da psicologia
com o direito que é preciso você ter. Quem não tem a especialização pode ter um
estudo naquela área. No meu caso, por exemplo, eu não tenho essa especialização em
psicologia jurídica, mas tenho mestrado e doutorado e já estudei muitas coisas nessa
área de direito. Fiz grande parte do curso de direito, até o sétimo semestre do curso
de direito, quase graduada. Assim, no meu caso, a especialização também pode tirar
de outra forma. O conselho de psicologia oferece anualmente, se não me engano, ou
semestralmente, uma prova que a pessoa faz em várias áreas de psicologia, que a
pessoa pode ter o título de especialista dado pelo Conselho Federal de Psicologia,
independentemente de ter alguma titulação da universidade. Quem tem os
conhecimentos e não fez uma especialização, pode fazer a prova e se tornar especialista
em psicologia jurídica. Pela prática experiência e por estudar um pouco você faz a
prova.

Depois desses estímulos que existem por parte do CNJ para conciliação, até para
que os conflitos sejam resolvidos de forma extrajudicial, isso aumentou o campo de
trabalho para os psicólogos? E qual a importância realmente de um psicólogo dentro
de um processo de conciliação para evitar o litígio, a judicialização de uma causa?

Essa é uma questão até bastante polêmica porque está rolando por aí, pela Câmara e
Senado, o projeto de Lei da Mediação. Existem dois projetos de lei. O projeto de lei
parece que ele é mais conservador. Ele atribui somente o papel de mediador a
advogados, uma coisa bem conservadora. Mas o outro, que acho que é o que tem mais
chance de ser aprovado, prevê como mediadores não só advogados, mas psicólogos e
até profissionais de saúde, assistentes sociais e sociólogos também. Porque para ter
uma boa mediação e uma boa conciliação, é importante você ter um conhecimento
profundo da pessoa humana. E principalmente de como as pessoas lidam com os afetos,
com as emoções, porque isso é que impacta no conflito. A maneira como as pessoas
lidam com as emoções é o que vai determinar, às vezes, a gravidade do conflito.

E muitos processos às vezes são desgastantes emocionalmente.

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Exatamente. Muitas coisas são emocionalmente desgastantes. E isso tem que ser
trabalhado durante a mediação. Porque se isso não for trabalhado durante a mediação
mais para frente vai reemergir. Vai voltar a aparecer. Aquele conflito vai eclodir
novamente de uma outra forma porque a pessoa não trabalhou a emoção. É claro que
uma mediação não é uma terapia. Ás vezes a gente pode sair de uma mediação e dizer
que aquela pessoa realmente precisa de um trabalho mais profundo e o
encaminhamento a ser dado seria indicar a procura de um profissional psicólogo para
fazer uma terapia. A gente percebe que a pessoa não elaborou muitas das emoções ali.
Mas se você tem que trazer a emoção para a reflexão do processo de mediação, isso é
necessário. E eu acho que os profissionais da área de psicologia, de assistência social,
enfim, até alguns médicos psiquiatras, têm mais percepção, sensibilidade, preparo e
conhecimento para trabalhar com isso do que advogados, do que operadores do direito
ou profissionais do direito.

Como é que atua um psicólogo em um caso de separação, que geralmente envolve


guarda de crianças, separação de bens. Como é que o profissional atua? Ele entra
em que momento em um processo desse?

Aqui na Bahia a gente está até propondo com a PsicoJuris, o núcleo de psicologia
jurídica que a gente criou. Eu que criei esse núcleo. Eu e Lorena Reis. Mas tem outras
pessoas que trabalham com a gente. Esse núcleo está começando agora. A nossa ideia
é fazer um trabalho mais próximo dos advogados de família, não só na área fim que
seria o juiz. Mas a gente entende que às vezes o próprio advogado, ao receber o cliente,
muita coisa poderia ser diluída se houvesse um atendimento conjunto. Não é
exatamente os dois atendendo ao mesmo tempo, mas intercalando atendimentos
jurídicos feitos pelo advogado, promovendo informações na área jurídica, e um
atendimento de profissionais de psicologia paralelamente. Aquele seria tratado como
um caso único pelos dois profissionais. Seria uma parceria com o advogado. Isso já
existe, tem um nome inclusive. Eu fiz até um curso no Rio no ano passado, muito
interessante, que se chama Práticas Colaborativas. É uma parceria que é feita entre
advogados e psicólogos para atender casos de famílias buscando acordos. Não é uma
mediação.

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Isso em casos que ainda não foram judiciados?

Poderia ter uma mediação extrajudicial. Nesses casos geralmente o que acontece é um
caso de acordo mesmo entre as partes, assistido por profissionais de psicologia. Às vezes
as pessoas estão desequilibradas emocionalmente, precisam de uma orientação
psicológica também. Precisam de uma orientação sobre a convivência familiar. Como
vai ficar essa convivência familiar após a separação? Isso é muito importante de ser
discutido. Antes de você judicializar a causa, na verdade, você vai para um advogado.
Você está mais preocupado com bens, com pensão alimentícia, mas a convivência às
vezes é o mais complicado, é o que mais dá nó, a convivência da família pós-separação.
Como o tempo da visita, quanto tempo a criança vai ficar com um e vai ficar com outro?
Como vai ser essa, digamos, a volta da criança. Muitas vezes os pais não querem se ver.
Mas é importante garantir para a criança tenha a convivência com ambos os genitores.
Mesmo que a guarda não seja compartilhada, que eu particularmente gosto dessa ideia
de guarda compartilhada. Não vamos nos iludir, a guarda compartilhada não elimina
alienação parental, não vai acabar com situações graves, porque a gente tem várias
gradações de conflito envolvendo uma separação. As situações de alienação parental
estão naquelas situações mais graves, de conflito mais acirrado entre os pais. Mas, nos
outros casos que o conflito não é tão grave assim, a guarda compartilhada pode
funcionar. E inclusive se tiver uma orientação psicológica, um atendimento psicológico
prévio que seja feito no momento em que essa situação está acontecendo e um
acompanhamento posterior para ver o que se precisa ajustar. A gente acredita que essa
guarda compartilhada realmente é o melhor para a criança. Porque ela vai trazer
realmente a possibilidade dessa criança conviver mais com ambos os genitores. Não
precisa morar um tempo na casa de um e na casa de outro, porque isso é guarda
alternada, uma outra coisa. Em guarda compartilhada, a criança fica morando com um
dos genitores, mas as decisões são tomadas em conjunto, o outro genitor com quem ela
não convive vai ter livre acesso à criança, pode buscar na escola qualquer dia, pode ir
no balé. Exige uma comunicação entre os pares. Mas não significa que eu acho que
realmente em situações muito conflitivas é difícil de implantar guarda compartilhada,
mas acho que se partir para a guarda compartilhada é a norma geral, é o procedimento

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básico e padrão e a unilateral é o extremo, é melhor do que você ter o contrário.
Inclusive, em outros países é assim há muitos anos. As exceções são as guardas
unilaterais.

Uma questão sempre polêmica é a questão das oitivas com crianças em tribunais e
em processos que elas são vítimas ou testemunhas. Sempre se discute muito como
o psicólogo deve atuar nesses casos, como é que deve ser feito essa oitiva, se é
separada, de forma lúdica, perante o juiz. Como é que o profissional de psicologia
atua nesse momento?

Eu, particularmente, não sou muito favorável à questão do depoimento sem dano. Essa
oitiva chamada de depoimento sem dano. Eu acho que uma coisa é o profissional de
psicologia ouvir uma criança e interpretar com o seu conhecimento profissional o que a
criança está falando e entender a partir de seu conhecimento o que pode ser uma
fantasia da criança, o que pode não ser. Então eu acho que a oitiva da criança deve ser
feita por profissionais de psicologia. Ponto. Eventualmente com o apoio de um
profissional de serviço social. Mas eu acho que deveria sempre ser a partir do psicólogo.
E não deveria ser pública. Porque o que acontece no depoimento sem dano, que é
aquela ideia de você ter uma sala de audiência especial, uma ideia que foi criada no
Rio Grande do Sul e está sendo implantada lá de alguma forma. É um projeto de
pesquisa que ainda não está regulamentado, mas está acontecendo lá. Seria uma sala
especial criada para a oitiva da criança, onde essa criança vai interagir diretamente
com o psicólogo. É uma sala toda lúdica, tem brinquedos, mas existe um espelho, aquele
espelho unilateral, onde do lado de lá está a sala de audiência real. quem está olhando
é o juiz, o promotor. O juiz e o promotor estariam de alguma forma participando disso
aí e interpretando também da sua forma e com os seus conhecimentos. Isso que me
preocupa. Porque um profissional que teve uma ação toda direcionada para aquilo e
tem um conhecimento específico do que é uma experiência de uma criança, do que é
uma vivência de uma criança, de desenvolvimento infantil, do que é considerado normal
ou não em uma determinada faixa etária. Outra coisa são os profissionais da área
jurídica ouvindo aquela mesma criança falar as mesmas coisas. Como um psicólogo vai

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interpretar aquilo vai ser extremamente diferente do que um juiz, do que um promotor
que não tem aquele conhecimento teórico.

Seria uma parte mais neutra nesse momento? Porque às vezes a promotoria muitas
vezes já vem com a ideia da acusação e o advogado com a ideia da defesa.

Exatamente. Se você tiver um juiz ouvindo diretamente uma criança eu acho que cria
um constrangimento enorme para a criança. Às vezes até algumas crianças revelam
coisas para o juiz porque temem. Mas, no meu caso, eu acho que esse não é o caminho.
O caminho realmente deveria ser através da avaliação psicológica. O profissional de
psicologia faria essa intermediação, interpretando o que a criança está falando a partir
de seus conhecimentos teóricos e da sua experiência prática para que aquela
informação não seja tomada ao pé da letra. Às vezes o que a criança fala não é ao pé
da letra, tem muita fantasia envolvida. Então como é que um juiz, um promotor, vai
lidar com fantasias de uma criança, com processos simbólicos de uma criança. Em uma
brincadeira, ela pode mostrar uma coisa que na verdade não está falando sobre aquilo.
A gente tem dois níveis de comunicação. Uma comunicação que está se passando no
verbal e outra que está se passando ali na brincadeira da criança. Que não é nem muito
consciente que a criança não está falando direto com aquilo, mas ela está mostrando
através da brincadeira e da atuação dela. Como é que o juiz vai olhar isso? Ela vai ter
condições de interpretar aquilo? O psicólogo estudou aquilo, está preparado para olhar
justamente isso. De repente uma criança está falando uma coisa aqui e brincando com
outra que mostra o contrário do que ela está falando.

Nessa questão de oitivas, a gente também tem um problema no próprio Código do


Processo Penal que determina como são feitas as oitivas em que, muitas vezes, a
infração começa dentro da delegacia. E temos um fenômeno que começou a ser
estudado agora de falsas memórias, pessoas que criam algumas memórias para
preencher aquele lapso. A psicologia jurídica também estuda esses fenômenos?

A psicologia jurídica também se interessa pela questão das falsas memórias. É uma área
nova. A gente sabe que a memória pode ser construída a partir de relatos que a pessoa

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viu durante muito tempo, ou, às vezes, em uma situação coletiva. Por exemplo, um
acidente ou um assalto vivenciado coletivamente, um diz uma coisa e outro diz outra.
A pessoa vai construindo uma memória. Às vezes, a memória não é individual, muitas
vezes as pessoas pensam que é individual, mas a memória é construída coletivamente.
Se você pensar assim, claro que você tem uma parte da sua memória que é sua, própria,
que só você vai ter. Mas, muitas coisas da memória são realmente construídas
coletivamente. Quando você tem situações em que a pessoa é exposta a muitos
comentários, muitas interpretações de outras pessoas, principalmente se tratando de
criança. Me recordo até de um caso, que vi uma vez, que existia uma suposição de um
abuso pessoal de uma criança. Os comportamentos que foram executados por aquela
criança não caracterizavam exatamente um abuso, talvez uma coisa um pouco
sexualizada, de uma maneira um pouco além, era uma espécie de carinho excessivo,
digamos, da parte da pessoa que cometeu. Acontece que a criança era pequena e não
tinha essa visão sexualizada da conduta nem do adulto nem dela. Só que um dia ela
narrou isso para outra pessoa. Essa pessoa interpretou aquilo como sendo uma conduta
sexualizada do adulto e transformou a situação em uma possibilidade real de abuso
sexual. Eu acredito que isso deva acontecer muitas vezes. Inclusive nessas falsas
alegações de abuso sexual, em situações de alienação parental, é muito comum que o
genitor alienador faça falsas acusações ao outro genitor. É como se tivesse uma
interpretação negativa do comportamento por parte de um adulto que tem um
julgamento moral que a criança ainda não tem. Em uma situação como essa, o que é
que pode acontecer. O adulto vai acabar de uma certa maneira sugestionando aquela
criança para uma interpretação daquele comportamento que ela não teria. Aquilo não
incomodou aquela criança em nenhum momento. Nem se sabe se a pessoa, o suposto
abusador, tinha intenção sexual na conduta dele. Mas acontece que a interpretação que
o adulto que ouviu aquela história da criança, que estava conversando sobre um assunto
e comentou alguma coisa em relação a isso, levou a criança a refletir sobre aquilo de
uma maneira negativa, que ela não tinha isso antes. Isso pode se tornar no futuro uma
falsa memória. Ela pode, a partir dali, criar uma situação mais sexualizada para poder
responder a toda essa sugestibilidade que os adultos tiveram. Uma falsa memória pode
ser isso. Ela não vê em um contexto aquilo como negativo, abusivo ou sexualizado, e
de repente ela vai para um outro contexto que as pessoas começam a avaliar aquilo

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como um comportamento negativo. E ela começa a despertar para aquilo que ela não
tinha antes e construir um discurso que vai gerar a falsa memória.

Se falou muito dessas oitivas. Aqui na Bahia tem essa prática?

Na Bahia não tem ainda essa questão do depoimento sem dano. Quando existem casos
assim de abuso, a criança é encaminhada para esses psicólogos do Ministério Público e
do programa sentinela, que tem toda uma abordagem psicossocial. O psicólogo faz uma
intermediação da criança para o juiz, leva esse discurso de uma maneira mais adequada
do que está agora. Óbvio que a gente sabe que na hora da loucura, da confusão, a mãe
leva a criança na delegacia e o delegado e a escrivã da delegacia têm situações assim.
Que a criança é revitimizada. Porque o que é que acontece: aquele profissional que não
tem nenhum preparo para fazer nada começa a fazer as perguntas como se fosse um
adulto. Isso existe. Aí quando a criança vai para uma outra instância, a instância
realmente jurídica, já não está na fase do inquérito. Pior é quando está na fase do
inquérito, a fase mais danosa. Ali não tem preparo nenhum, ninguém tem. É uma
sensibilidadezinha de alguém. Agora se tem, aqui na capital, essas instâncias que
geralmente as crianças são encaminhadas. Quando o pessoal tem mais sensibilidade,
tem a Delegacia Especializada de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente
(Derca) quando a situação ocorre com pessoas que são mais esclarecidas, leva para lá.
Porque aí dá um encaminhamento melhor. Porque se chega em uma delegacia que a
pessoa tem conhecimento disso e sabe que é mais especializado, que a outra delegacia
é melhor para recolher aquele depoimento, manda para lá. Mas nem sempre isso
acontece. Porque a criança passa por várias instâncias, onde ela é perguntada e
reperguntada sobre as mesmas coisas. Faz a criança reviver todo aquele processo. Ou
seja, ao invés de minimizar o trauma da situação, vai reincidir aquele trauma toda vez
que vai perguntar tudo de novo. Sem nenhuma sensibilidade. Então, tanto com criança
como com adolescente é importante isso. Outra área também importante que vem
crescendo na psicologia jurídica é a área de medidas socioeducativas. Aqui também na
Bahia ainda é muito incipiente, mas por aí a gente vê muitos trabalhos interessantes de
envolvimento de psicólogos em oficinas, centros de atendimento ao adolescente onde
são cumpridas medidas socioeducativas, que tem essa abordagem onde realmente os

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psicólogos tenham um papel interessante aí nessa promoção da escuta do adolescente,
do acompanhamento mesmo de realização de oficinas, grupos de crianças e
adolescentes vitimizados e abusados. Abuso físico, maus-tratos. Tem muitos lugares do
Brasil que já tem, aqui não tenho muita notícia. Sei que tem psicólogos envolvidos no
cumprimento de medidas sócio-educativas. Mas é aquela coisa: muito pouco,
proporcionalmente. A Bahia precisa avançar muito nessa área ainda.

Me parece que há um problema muito grande com esses centros de atendimento aos
menores, problemas mais conjunturais…

Exatamente. Existe um conflito de poder. Na verdade, uma coisa meio confusa de quem
se responsabiliza pelo o quê.

E aqui na Bahia, como é que tem sido a atuação dos psicólogos nas mediações? Ela
ainda é muito devagar?

É muito devagar. Essa questão do papel dos psicólogos na mediação ainda é uma área a
conquistar. Aqui na Bahia, principalmente. Enquanto em outros lugares que eu vejo por
aí, como o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, já existem mediadores cadastrados,
que já fazem as mediações judiciais. Por exemplo, tem um juiz de família que está com
um caso e ele acha que aquele caso poderia ter uma mediação, seria benéfico para as
partes, poderia tentar uma medicação ali, isso não existe na Bahia ainda. E
provavelmente vai demorar muito de existir por causa da mentalidade do Tribunal. Mas
em muitos tribunais já está acontecendo isso. Ou seja: o juiz tem aquela sensibilidade.
Aí, o juiz convoca o mediador, que tem plantões de mediação nos tribunais, e os
mediadores são cadastrados. O que está se discutindo agora é como é que vai
remunerar, tem muita gente que trabalha voluntariamente, muitos psicólogos e
assistentes sociais. Ele convoca esse profissional, geralmente em parceria, trabalha em
co-mediação, faz a mediação e depois comunica ao juiz, leva o acordo para o juiz
homologar ou não, se for o caso, se o juiz concordar com aquela proposta de acordo
que foi feita durante a mediação. E isso é uma área que vem crescendo muito no Brasil
porque realmente existe esse cadastramento de profissionais nos tribunais na mediação

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judicial como extra-judicial. Mas aqui, o Balcão de Justiça e Cidadania, que é o principal
projeto do tribunal, que envolve conciliação e mediação extrajudicial, ele foi pensado
não para ação de voluntários e de outros profissionais de outras áreas, ele foi pensado
para a atuação de estagiários de direito. Quem operacionaliza os balcões são estagiários
de direito. Então isso, de uma certa maneira, é bom para a formação das pessoas, mas,
no meu entender, deveria ser para estagiários de psicologia e serviço social também.
Não só da área jurídica. E deveria ter um sólido acompanhamento de supervisores.
Porque isso é o que é mais relevante, aquelas pessoas ali estão em formação. Existe
supervisor, mas o número é muito pequeno. Então, o supervisor não dá conta de
supervisionar todos os casos. Supervisor atua em alguns. Mas isso tudo é extrajudicial e
só para estagiários de direito. Então eu acho que essa ideia que eu estou te falando da
mediação como uma área multidisciplinar, que tenha esses olhares das profissões
diferenciadas, cada um trazendo sua contribuição para fazer uma mediação mais
qualificada, não é praticado. Porque o próprio projeto que é porta de entrada da
mediação não contempla outros profissionais. Só contempla profissionais, estagiários,
de direito. Isso deixa a desejar. Porque são estagiários ainda e tem um olhar muito
jurídico, o que é complicado para você ter uma boa mediação, uma boa conciliação,
você tem somente esse olhar jurídico.

Quais são as maiores dificuldades que o profissional de psicologia encontra para


atuar nesse segmento?

O desconhecimento do que vem a ser uma atuação nessa área. Acho que a comunidade
em geral não tem a percepção que existe a possibilidade de trabalhar dessa forma. Por
exemplo, não existe uma atuação do psicólogo preventiva na área jurídica. O serviço
da comunidade, primeiro, existe uma desinformação da comunidade jurídica. Os
próprios advogados não conhecem o trabalho do psicólogo na área jurídica. Te digo isso
por que além de conviver muito com advogados, eu dou aula de psicologia em uma
faculdade de direito. Então o que é que acontece: é um desconhecimento total. Esses
alunos de direito, ou seja, os profissionais de direito de amanhã, não tem dentro da
faculdade oportunidades de conhecer o que é o trabalho de um psicólogo na área
jurídica. Eu acho que precisaria ter, realmente, uma disciplina de psicologia jurídica.

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Nem sempre a psicologia que é dada nos cursos de direito é a psicologia jurídica. É uma
psicologia muito geral. Então dentro da própria área jurídica há o desconhecimento.
Aqueles profissionais que poderiam demandar mais e compreender a importância dessa
interface, não conhecem o trabalho que é feito pelo psicólogo na área jurídica. Outra
coisa é a população em geral. A comunidade também não conhece isso, não demanda,
não cobra, não sabe. E as pessoas também não contratam o serviço. A gente tem uma
dificuldade muito grande de mostrar a importância dessas coisas que eu estou te
falando. Por exemplo, da gente trabalhar junto com o advogado em um processo de
separação de divórcio, para gente fazer um acordo mais amplo, buscando que aquela
família compreenda os desdobramentos daquele acordo. Isso é que é relevante. Que
aquele acordo não é apenas patrimonial, a pessoa tem que ter uma ideia, uma noção
de como aquilo vai impactar em sua vida cotidiana, na vida cotidiana do seu filho.
Porque aquilo é importante para o seu filho. Que tipo de convivência vai ter com a mãe
e o pai, isso é que é importante. Os profissionais de direito não sabem que isso pode
ser feito em conjunto com psicólogos. É uma prática que ainda está se desenvolvendo,
nessa nova prática colaborativa, como chamam no Rio e em São Paulo, uma abertura
para o trabalho conjunto entre o psicólogo e o advogado, principalmente na área de
família, e também na área de mediação, que não só familiar. Em algumas situações,
em empresas familiares, já tem muita coisa de mediação no mundo empresarial. Por
exemplo, em muitas empresas familiares, as questões dos conflitos e das brigas estão
em outro lugar, não é exatamente na empresa. Existem outras vivências ali. Então esse
olhar da psicologia é muito importante para que esses outros desdobramentos dos
conflitos sejam trazidos, essas outras experiências que estão relacionadas com o
conflito. Mas que não estão diretamente vinculadas a, por exemplo, rompimento na
gestão de uma empresa. Às vezes aparentemente é aquilo, mas quando você vai ver
existem outras questões ali familiares que estão por trás. Então essa é uma área
importante de ter essa interface do psicólogo com o advogado. Porque eu acho que tem
que ter esses dois olhares.

Já existem escritórios de advocacia que já tenham em seus quadros psicólogos para


atuarem nos processos?

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Não é exatamente assim que funciona. É como se fosse uma parceria de autônomos,
uma consultoria na verdade. Por exemplo, um escritório de advocacia contrata a
consultoria de um psicólogo para atuar naquele caso. No Rio mesmo, isso acontece
muito. Lá vemos muito que o profissional de direito do escritório tem um cliente. Ou
vice-versa também, o psicólogo tem um escritório e está atendendo um caso que sabe
que a pessoa vai se separar e percebe que aquilo pode ser interessante ter uma
interface com um advogado. Geralmente, se cria uma equipe para trabalhar nesse
momento. Se forma uma equipe, às vezes, com um contador para ver, por exemplo, a
renda familiar, dar algumas orientações sobre qual seria o melhor formato, quem paga
o que, quem se responsabiliza pelo o que, a partir de uma análise financeira da família.
Também é feito isso. Essa prática colaborativa que eu estou falando também envolve
isso. E é contratado assim, como uma consultoria tanto jurídica como uma de psicólogo,
de um contador, para poder atuar naquele caso ali. Geralmente acontece assim.

Mas, em Salvador, isso ainda não é uma tendência, então…

Sim, é um mercado ainda a ser muito explorado. No Rio está começando, já tem mais
ou menos uns dois anos. Já tem escritórios no Rio que fazem só isso praticamente,
trabalham somente com prática colaborativa. Têm outros que trabalham com litígio
familiar também e com prática colaborativa. Com parcerias com psicólogos, fazendo
esse tipo de trabalho, mas é uma coisa que está começando ainda. Acho que tem uma
tendência para isso aumentar. Ainda mais quando o novo código civil vier com essa ideia
do processo de família, que é um procedimento todo diferente, onde a mediação é
obrigatória. Então quando vier o novo código civil, acho que vai ter uma ampliação
muito grande do mercado. E uma coisa que eu acho também importante. Os advogados
vão se dar conta também da importância da mediação. Porque hoje é como se fosse
uma prática, um apêndice. Os advogados acham que não diz respeito a área de direito.
Mas não é exatamente assim. É um campo de trabalho novo tanto para os psicólogos
quanto para os próprios advogados, que não estão habituados a pensar com essa cabeça
de mediação, de acordo, de negociação. Essa mentalidade do litígio, que está muito
presente nos últimos anos no judiciário, contamina tudo. Então é preciso se desfazer
um pouco desse olhar, dessa mentalidade muito focada no litígio, no conflito,

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negativamente pensado. Eu acho que tem uma abertura grande de área de atuação,
não só para os psicólogos, mas também para os advogados.

Referência bibliográfica
CARDOZO, Cláudia; CUNHA, Lucas. Psicologia jurídica cresce no Brasil como forma de resolver
impasses extrajudiciais, 2015. Disponível em: <
http://www.bahianoticias.com.br/justica/entrevista/137-psicologia-juridica-cresce-no-brasil-
como-forma-de-resolver-impasses-extrajudiciais.html>. Acesso em: 28 mar. 2017.

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