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Racismo na saúde: nas maternidades do Brasil, a dor também tem cor

A cor da dor
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/racismo-na-saude-nas-maternidades-do-brasil-a-
dor-tambem-tem-cor/
“Mulheres pretas têm quadris mais largos e, por isso, são parideiras por
excelência”, “negras são fortes e mais resistentes à dor”. Percepções falsas
como essas, sem base científica, foram ouvidas em salas de maternidades
brasileiras e chamaram atenção da pesquisadora Maria do Carmo Leal, da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Doutora em saúde pública, ela decidiu pesquisar se esse senso comum
resultava em um pior atendimento às mulheres negras. Em 2017, Maria do
Carmo e uma equipe de pesquisadores da Fiocruz — Silvana Granado
Nogueira da Gama, Ana Paula Esteves Pereira, Vanessa Eufrauzino Pacheco,
Cleber Nascimento do Carmo e Ricardo Ventura Santos — analisaram o
recorte de raça e cor dos dados de uma ampla pesquisa nacional sobre partos
e nascimentos, a “Nascer no Brasil”, realizada com prontuários médicos de
23.894 mulheres coletados entre 2011 e 2012.
Fruto dessa análise, o artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-
natal e ao parto no Brasil” examinou, também, a aplicação da anestesia local
para a realização da episiotomia — corte feito na região do períneo para
ampliar a passagem do bebê em partos vaginais. Os resultados mostraram
que, apesar de sofrerem menos episiotomias em comparação às brancas,
mulheres negras tinham chances menores de receber anestesia durante o
procedimento. “O que a gente encontrou foi que, durante a episiotomia, que por
sinal não é mais uma prática que se recomende que seja feita, a chance de a
mulher negra não receber anestesia é 50% maior. Isso [o corte] é algo que
realmente dói bastante”, pontua a pesquisadora.
(....)
O estudo da Fiocruz escancarou também outras disparidades raciais no
atendimento de mulheres grávidas. Segundo a pesquisa, mulheres negras
possuem maior risco de ter um pré-natal inadequado, realizando menos
consultas do que o indicado pelo Ministério da Saúde; têm maior peregrinação
entre maternidades, buscando mais de um hospital no momento de internação
para o parto; e frequentemente estão sozinhas, com ausência de
acompanhante durante o parto.
Para a pesquisadora, essas disparidades durante o pré-natal e o parto
expressam o racismo estrutural. “Isso é uma questão de racismo, achar que
[mulheres negras] são um ser humano diferente, que não sentem dor”, reflete
Maria do Carmo. “Não é um problema só do setor de saúde. O racismo é uma
questão muito forte na sociedade brasileira, há um maltrato generalizado a
essas populações, principalmente de cor negra e indígenas. Mas os
profissionais da saúde poderiam fazer coisas para melhorar a abordagem
[durante o atendimento]”, conclui.

Racismo na saúde
Em dezembro de 2017, o programa Roda Viva, da TV Cultura, dedicou uma
edição especial para discutir questões raciais no Brasil. O episódio trouxe
quatro especialistas à bancada do programa de entrevistas, entre eles a atriz e
escritora Elisa Lucinda. Durante o debate, ela argumentou que negras e negros
pobres recebiam menos anestesia em hospitais públicos: “Quando eu soube
disso, parecia que era ficção. Isso é muito grave”, disse Lucinda. “Chegamos a
um nível altíssimo de metástase do racismo porque houve quem trouxesse a
obra da escravidão até aqui, há quem a reproduza”, completou.
Quatro dias após o programa ir ao ar, a Sociedade Brasileira de Anestesiologia
(SBA) publicou em seu site uma nota de esclarecimento para se posicionar
sobre a declaração veiculada em rede nacional. A entidade, que representa
médicos anestesiologistas de todo o Brasil, relacionou o problema da menor
taxa de aplicação de anestesia em episiotomias feitas em mulheres pretas,
encontrada no estudo dos especialistas da Fiocruz, ao quadro de
vulnerabilidade e iniquidade econômica em relação à população negra no país.
“Quando se analisa a diversidade racial no Brasil, levando em consideração a
pobreza e outras formas de desigualdade social, a população negra vai receber
proporcionalmente uma assistência médica mais limitada em todos os seus
níveis, desde a dificuldade em conseguir uma consulta com especialista até a
realização de uma cirurgia e anestesia. Isso não significa, de maneira alguma,
que a medicina e os seus médicos são racistas e preconceituosos, e sim que
vivemos em uma sociedade em que a desigualdade social compromete o
atendimento médico adequado a toda a população”, afirmou a instituição no
texto.
Maria do Carmo concorda que o problema tem, em sua raiz, uma sociedade
desigual com homens e mulheres negras. De fato, dados de 2018 do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a pobreza no Brasil
também tem cor: entre os 10% mais pobres do país, 75,2% são negros. Mas a
professora não exime a contribuição direta dos profissionais de saúde para o
cenário de mau atendimento — já que mesmo mulheres negras com acesso ao
sistema privado de saúde sofrem com discriminação e racismo.
Esse é o caso da jornalista B. S., que contou sua história em condição de
anonimato. “É uma experiência muito difícil de falar, sabe? Eu não consigo falar
ainda abertamente sobre isso”, disse por áudio em uma troca de mensagem no
WhatsApp, uma semana antes de encontrar a reportagem da Pública para dar
o seu relato.
Mãe de primeira viagem, na época com 27 anos, ela procurou se munir com
toda a informação possível sobre humanização e o processo fisiológico do
parto. Para passar pelo período de gestação com mais conforto, por exemplo,
passou a frequentar aulas de ioga para gestantes duas vezes por semana —
do grupo de dez mulheres, ela era a única negra da turma. Entre suas
pesquisas, B. S. escolheu o Hospital São Lucas, em Santos, cidade do litoral
norte de São Paulo, para dar à luz a sua primeira filha. A instituição faz parte
do projeto Parto Adequado, realizado pela Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS) em parceria com Hospital Israelita Albert Einstein e
o Institute for Healthcare Improvement (IHI).
Mas toda a informação prévia e o preparo de B. S. não evitaram as violências
que a jornalista sofreu durante o parto. “Minha obstetra coordenava esse
processo de transformação desse hospital particular, que era onde eu tinha
nascido, e atendia meu plano. Quando eu falei com ela, eu disse que queria
sem anestesia porque o que era importante era minha filha. Mas, na hora do
parto, eu não dei conta e implorava por anestesia”, conta.
A resposta da equipe médica ao pedido foi negativa. As enfermeiras, relata ela,
faziam piadas e soltavam comentários como “ser mãe é assim mesmo, ser mãe
dói”. “Algumas cenas hoje doem como uma pancada no peito. Lembro que
alguém, hoje não sei quem, me fechou no box [do banheiro] e disse: ‘Fica aí
até você dilatar’. A sensação é que eu estava presa”, conta a jornalista. “Eu
pedia anestesia e não me explicavam o porquê não me davam. Eu fui para o
hospital às 23 horas e, às 2 horas da manhã, eu estava com dilatação total e
gritava de dor.”
O parto de B. S. foi feito com episiotomia, com aplicação de anestesia local. Ela
só teve a percepção de que sofreu uma violência após algumas semanas, ao
encontrar as colegas do grupo de ioga pré-natal e que tiveram filhos com a
mesma obstetra. “Elas me falaram que, quando elas estavam muito cansadas,
a mesma equipe médica perguntou se elas queriam anestesia. Até então, eu
pensava que era um processo horrível mesmo. Só que aí veio essa informação
e eu senti uma coisa quebrar em mim. Ficou uma dor latente”, diz.
Na visão da jornalista, além de questões técnicas, há um despreparo das
médicas com relação a temas como racismo e saúde mental. “Parece sutil,
mas tem tudo a ver. Você não consegue ter um parto humanizado se você não
tiver uma relação interpessoal adequada com as pessoas. Se o discurso
continua violento e você fizer procedimentos que pareçam humanizados, não
adianta nada.”
Como forma de reconhecer desigualdades raciais no âmbito da saúde, como
altas taxas de mortalidade materna e infantil e prevalência de doenças crônicas
entre a população negra, o governo federal criou, em 2006, a Política Nacional
de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). A estratégia, resultado direto
da pressão de ativistas do movimento negro, previa ações como a produção de
dados racializados e inclusão do tema “racismo e saúde da população negra”
na formação técnica dos trabalhadores do SUS, com o objetivo de orientar e
capacitar profissionais da saúde. A portaria que instituiu o programa foi
publicada em 2009. Mas, após uma década, o projeto andou pouco. Segundo
levantamento do jornal O Globo, realizado em 2019, apenas 57 dos mais de 5
mil municípios tinham projetos para implementar a resolução.
Em nota à Pública, o Ministério da Saúde pontuou que o programa não possui
verba específica, cabendo aos estados e municípios a implementação da
política. “Atualmente, existem quatro projetos vigentes com o tema PNSIPN,
celebrados com universidades para a oferta de capacitações para profissionais
de saúde da Atenção Primária em Promoção da Equidade Étnico-racial no
SUS”, informou a pasta. O valor total aprovado para esses projetos é de
aproximadamente 2,5 milhões de reais.
Despreparo
A médica Mariana Prado, residente em ginecologia e obstetrícia no Hospital
Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha, no Campo Limpo, bairro da
zona sul da capital paulista, compartilha a visão de que falta preparo aos
profissionais, a maioria brancos, com relação ao tema. A profissional diz
testemunhar cotidianamente os impactos do preconceito racial no atendimento
de mulheres da região.
“Aqui a gente recebe a população pobre da zona sul. [Na obstetrícia], a gente
atende muita mulher preta, com certeza a maior incidência”, diz a médica.
“Existe um diagnóstico que se chama ‘negligência materna’. Se uma mulher fez
menos consultas de pré-natal do que o recomendado, que são seis, ela recebe
esse diagnóstico. E a incidência desse diagnóstico em mães negras é muito
maior”, relata. “Então, ela é julgada, não importa, por exemplo, se foi porque
ela descobriu tardiamente a gravidez.”
A jovem médica também integra o coletivo NegreX, formado por estudantes de
medicina e profissionais negros com o objetivo de aprofundar o debate sobre o
racismo na área de saúde. Para ela, que se dedica a entender como as
relações raciais se manifestam na medicina, a diferença de tratamento de
mulheres negras é resultado de um processo histórico e estrutural. “No início
da cesárea no Brasil, os testes eram feitos em mulheres pretas escravizadas. É
irônico pensar que testamos uma técnica em corpos negros lá atrás e, agora,
negamos anestesia a uma mulher dizendo ‘você é resistente e vai dar certo’
porque ela é preta. Isso vem de muito longe na história da obstetrícia”, comenta
em referência ao fato de que o cirurgião José Maria Picanço (barão de Goiânia)
teria sido o primeiro a fazer uma operação cesariana no Brasil, aplicando a
técnica em uma mulher negra escravizada em 1817, no Recife (PE).

Direito a um parto sem dor


No segundo semestre de 2018, a defensora Nálida Coelho, coordenadora do
Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública (Nudem), ajuizou uma ação
para garantir o direito de uma gestante em receber anestesia. Semanas antes
do parto, a mulher havia sido encaminhada a uma maternidade que só oferecia
métodos não farmacológicos de alívio da dor, como analgésicos. Como já havia
passado por outras gestações com partos extremamente dolorosos, ela
protocolou em seu plano de parto a reivindicação de anestesia. Mas o pedido
foi negado pela maternidade.
No SUS, o acesso à anestesia e medicamentos para aliviar a dor e sofrimento
em qualquer procedimento é garantido pela Portaria nº 1.820, de 2009, emitida
pelo Ministério da Saúde. Em alguns municípios, como São Paulo e Belo
Horizonte, existem legislações específicas que regulamentam a analgesia em
mulheres em trabalho de parto. Na capital paulista, por exemplo, a anestesia
ao parto está prevista na Lei Municipal 15.894 desde 2013.
A Defensoria Pública levou à Justiça o caso de J., que ocorreu no município de
Marília, interior de São Paulo. Quando ela já estava com quase 39 semanas de
gestação, a maternidade atendeu aos ofícios da Defensoria Pública e transferiu
a gestante para outra instituição, para que seu direito fosse assegurado.
Nálida recomenda às mulheres procurarem o Nudem e as ouvidorias dos
hospitais antes do parto para evitar uma violação de direitos ou, se essa
violação ocorrer, para uma ação de indenização.
Depois da experiência que tiveram no Hospital do M’Boi Mirim, Michele Moreira
e Leonardo Brito chegaram a pensar, por um momento, na possibilidade de
judicializar o caso. “Eu entraria em um processo se eu soubesse que poderia
tirar essa médica de rede”, diz Michele. Seu marido procurou a ouvidoria do
hospital no dia 6 de fevereiro para protocolar uma reclamação. “Eu fui na
ouvidoria, mas de ouvidoria não tem nada, né? É uma ‘questionadoria’. Eles
queriam questionar tudo, se ela realmente estava dentro da lei [para fazer
cesárea], por estar com 39 semanas. Eles tentaram defender a médica, nem
ouviram minha sugestão”, criticou o marido.
A Pública entrou em contato com o Hospital do M’Boi Mirim, que informou que
a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) é a responsável por posicionamentos à
imprensa. A SMS, por sua vez, afirmou que Michele “foi internada para início
de tratamento conforme condição clínica, de acordo com as diretrizes vigentes
baseadas na melhor evidência científica disponível. Após o parto, a mãe e o
recém-nascido do sexo masculino seguiram internados sob cuidados
multidisciplinares em leito de alojamento conjunto na Maternidade. No dia 27
de janeiro, a paciente e o bebê receberam alta hospitalar em boas condições
clínicas”.
A SMS informou que a unidade hospitalar em que Michele foi internada faz
parte da Rede Cegonha e do Programa Parto Adequado, “utilizando protocolos
específicos para uso de medicamentos como a ocitocina”. “Qualquer remédio
administrado no hospital é comunicado ao paciente e o mesmo pode recusar
sua administração”, disse em nota a assessoria de imprensa do órgão. Quanto
ao parto cesáreo, a meta do município, segundo a SMS, é atingir o preconizado
pela OMS, uma taxa de 15%. “A OMS aponta que a cesárea é um
procedimento cirúrgico que, quando realizado por razões médicas, pode salvar
a vida de uma mulher e de seu bebê e, quando realizado sem indicação clínica,
pode colocar em risco a vida e o bem-estar das mães e de seus filhos. A
escolha da via de parto na rede municipal de São Paulo é baseada em critérios
clínicos, maternos e fetais, com o objetivo de proteger a gestante e o bebê.”
Com relação ao combate ao racismo no sistema público de saúde, o órgão
municipal afirmou que existe no âmbito da SMS a Área Técnica da Saúde da
População Negra, “criada em 2003, com objetivo de promover a saúde integral
da população negra, priorizando a redução das iniquidades étnico-raciais e o
combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS no
âmbito municipal”.

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