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SECA EM

ANGOLA
PONTO DA
SITUAÇÃO
2020-2021
CAUSAS,
RESPOSTAS E
SOLUÇÕES

UNIVERSITY OF GOTHENBURG SCHOOL OF GLOBAL STUDIES


ISCED-HUÍLA
RESEARCH PROJECT ENVIRONMENTAL DISASTER AND CIVIC MOBILISATIONS IN
ANGOLA
© 2022 UNIVERSIDADE DE GOTEMBURGO & ISCED-HUÍLA
RELATÓRIO PRODUZIDO NO ÂMBITO DO PROJETO DE INVESTIGAÇÃO ENVIRONMENTAL DISASTERS AND CIVIC
MOBILISATIONS IN ANGOLA, FINANCIADO PELA AGÊNCIA FORMAS (2020-2021) E ACOLHIDO PELA SCHOOL OF
GLOBAL STUDIES DA UNIVERSIDADE DE GOTEMBURGO. INSTITUIÇÃO PARCEIRA EM ANGOLA: ISCED-HUÍLA.

Em 2019, as províncias do Sudoeste de Angola encontravam-se à beira de uma crise


humanitária sem precedentes, devido a um prolongado ciclo de seca que se estendeu por
quase uma década. O projeto de pesquisa “Environmental disaster and civic responses in
Angola” realizou um levantamento local da situação no Sul de Angola ao longo de 2020-2021,
recolhendo depoimentos de habitantes locais e stakeholders relacionados com esta
catástrofe ambiental. Concomitantemente, mapeou respostas passadas e actuais à seca e
analisou o caso do Sudoeste de Angola no quadro de desastres ambientais globais.

Membros da equipa:
• Ruy Llera Blanes (School of Global Studies, University of Gothenburg)
• Carolina Valente Cardoso (School of Global Studies, University of Gothenburg)
• Helder Alicerces Bahu (ISCED-Huíla)
• Cláudio Fortuna (CEA-UCAN Luanda; ISCTE-IUL Lisboa)

Estagiários de investigação (School of Global Studies):


• Neng Avila
• Alexander Jonsson
• Eric Manook Sarkisian
• Jennifer Nnopuechi
• Paula Nunes Tartari
• Miranda Gabrielsson

HTTPS://SECAANGOLA.HYPOTHESES.ORG
HTTPS://WWW.GU.SE/EN/RESEARCH/ENVIRONMENTAL-DISASTER-AND-CIVIC-RESPONSES-IN-ANGOLA

Citar como: Blanes, Ruy l., Carolina v. Cardoso, Helder a. Bahu e Cláudio Fortuna (2022). Seca em
Angola. Ponto da Situação 2020-2021. Causas, Respostas e Soluções. Relatório de Pesquisa.
Gotemburgo e Lubango: School of Global Studies & ISCED-Huíla.

IMAGEM DA CAPA: KIMBO NA ONCOCUA, CUNENE


© RUY LLERA BLANES, GJUNHO DE 2021
FOTOGRAFIAS: RUY LLERA BLANES E HELDER ALICERCES BAHU, 2020-2021.
MAPAS: VALTER ANTÓNIO CHISSINGUI
SECA EM ANGOLA PONTO DA SITUAÇÃO 2020-2021

ÍNDICE

AGRADECIMENTOS

ACRÓNIMOS

RESUMO EXECUTIVO

INTRODUÇÃO E CONTEXTO
•Abordagem e metodologia do projeto
•Uma “Terra-Celeiro. Notas históricas-culturais-ambientais sobre o Sudoeste de
Angola
•O problema: causas e consequências da seca, cronologia, atores no terreno,
reações da sociedade civil

RESPOSTAS E PROGRAMAS
•Introdução: A arquitetura da resposta à seca
•Programas e linhas de ação
•Soluções técnicas
•Saberes locais

ESTUDOS DE CASO
•Introdução
•Huíla
•Cunene
•Namibe

BOAS PRÁTICAS
•Reforestação
•Micro-gestão hídrica
•Agro-ecologia
•Participação
•Democratização das infra-estruturas
•Ciência e tecnologia

AVALIAÇÃO E RECOMENDAÇÕES
•Problemas identi icados
•Recomendações

BIBLIOGRAFIA

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SECA EM ANGOLA PONTO DA SITUAÇÃO 2020-2021

AGRADECIMENTOS

A realização deste projeto foi possível graças à colaboração de várias pessoas e


instituições. Gostaríamos de começar por agradecer à fundação FORMAS pelo
inanciamento às instituições participantes no projeto, a School of Global Studies da
Universidade de Gotemburgo, e o Instituto Superior de Ciências de Educação (ISCED) do
Lubango. O seu acolhimento permitiu-nos bene iciar das necessárias infra-estruturas
materiais e humanas para o melhor desenvolvimento das pesquisas. Em Angola, pudemos
bene iciar do acolhimento e partilha de informação por parte várias administrações locais
e comunais, assim como de ONGS e outras instituições e agências de pesquisa.

Em Luanda, bene iciámos dos esclarecimentos oferecidos por Sérgio Kalundungu (NCA),
Vladimiro Russo (Fundação Kissama), Francisco Osvaldo (INAMET), Carolino Mendes
(MINEA) e Manuel Quintino (INHR). Também agradecemos à ADPP pela informação
partilhada sobre os seus projetos e intervenções, e às seguintes organizações pelo debate
organizado em torno das questões ambientais, poluição e cidadania em Angola: Terceira
Divisão, Projeto Ambuíla, Instituto Mosaiko.

Na Huíla, agradecemos os esclarecimentos oferecidos pela organizações ADRA (na pessoa


de Simione Justino), ACC (Domingos Fingo, Padre Pio Wakussanga, Cecília Cassapi) no
Lubango, e da Okulinga (Jesus Wassandjuka e colegas) na Matala. Nos Gambos, fomos
recebidos pela administração do Chiange (na pessoa de Elias Sova e os técnicos Ludgiero
e Alfredo) e pelas comunidades de Tyitongotongo (kimbo do João Mukuvale), Tyipeyo
(kimbo do Pedro Uchito), Taka e Tunda Um. Agradecemos também a informação recolhida
junto da Missão de Santo António dos Gambos em Tyihepepe. Na Humpata agradecemos
ao Pajó e restantes membros da comunidade que trabalhavam na reparação do canal. Já
em Quilengues, agradecemos o acolhimento da administração municipal (na pessoa do
administrador adjunto Fernando Francisco Lambele) e da administração comunal do
Impulo (na pessoa do administrador adjunto Manuel Pereira Carneiro), assim como a
hospitalidade dos agricultores da baixa no vale de Camucuiumbu.

No Cunene, pudemos bene iciar do apoio do Nelson e Cristiano, e do acolhimento da


Administração da Oncocua (António Luepo e Miguel Ngunga Tyitangua), e dos sobas
Baptista, Joaquim Mutila Kalila. Também agradecemos à comunidade de Erola e o soba
Kaukumbwa.

No Namibe, agradecemos às entidades do Virei (na pessoa do administrador Lenine dos


Santos, o adjunto Narciso Pires e o Cahama) e a comunidade de Tyitundo-Hulo.
Igualmente, aos residentes no Arco, Lagoa do Carvalhão e Curoca do Namibe (e seu soba
António Manuel Kapolícia). Em Tômbwa, fomos acolhidos pelo administrador Alexandre
Niyúka e pelos técnicos Tianda e Egner Paiva.

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ACRÓNIMOS

ACC: Associação Construindo Comunidades


AECID: Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo
ADPP: Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo
ADRA: Associação para o Desenvolvimento Rural e Ambiente
ANGOP: Angola Press
CEAST: Conferência Episcopal de Angola e São Tomé
FAO: Amnistia Internacional 2019
FAS: Fundo de Apoio Social
FRESAN: Fortalecimento da Resiliência e Segurança Alimentar e Nutricional em Angola
INAMET: Instituto Angolano de Meteorologia
INHR: Instituto Nacional de Recursos Hídricos
IPCC: Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas
MINAMB: Ministério do Ambiente
MINEA: Ministério da Energia e Águas
PIDLCP: Programa Integrado de Desenvolvimento Local e Combate à Pobreza
PDNA: Post Disaster Needs Assessment
PIIM: Plano Integrado de Intervenção nos Municípios
PNUD (UNDP): Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PRODESI: Programa de Apoio à Produção, Diversi icação das Exportações e Substituição das
Importações
UN-CERF: United Nations Central Emergency Relief Fund
UNICEF: United Nations Children's Fund
UN-OCHA: United Nations O ice for the Coordination of Humanitarian A airs
USAID: United States Agency for International Development

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RESUMO
EXECUTIVO

PROJETO AGRO-INDUSTRIAL NA HUMPATA (HUÍLA)


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desa iando as atuais restrições de mobilidade


CONTEXTO E PESQUISA no país.

• O Sudoeste de Angola atravessa na última


• A pandemia do COVID-19 e respetivas
década um período de seca grave a extrema, restrições contribuíram para aumentar a
que provocou um desastre humanitário e g r a v i d a d e d o d e s a s t r e h u m a n i t á r i o,
ambiental, com aumento de insegurança impedindo o recurso à mobilidade sazonal ou
alimentar, doença, migração forçada e morte ao comércio como estratégias alternativas à
massiva de gado. Neste contexto, a seca é um agro-pastorícia.
fenómeno transversal, que produz problemas
de ordem ambiental, humanitário, económico
e político.
PROBLEMAS IDENTIFICADOS

• A pesquisa efetuada procurou fazer um • Para além da situação geral de seca


meteorológica, há uma dimensão infra-
diagnóstico da situação em 2020-2021, após
estrutural que está a causar situações de seca
o alerta geral lançado em 2019, de forma a
localizadas, seja pela inexistência de infra-
avaliar o grau de mobilização e resposta dos
estruturas ou pela insu iciência, a degradação
diferentes atores à seca. Foram visitadas
das infra-estruturas atualmente existentes:
comunidades nas províncias da Huíla, Cunene
estradas, energia, redes de comunicação,
e Namibe, e foram entrevistados membros
canais, etc.
das comunidades locais, sociedade civil, e
governo local, tanto nessas províncias como
em Luanda.
• Igualmente, a crescente aposta em projetos
agro-industriais veri icada nos últimos anos
está a intensi icar a pressão sobre o solo e
SITUAÇÃO EM 2020-2021 respetivos recursos hídricos, e a impedir ou
di icultar as tradicionais rotas de circulação
• Depois do pico de crise em 2019, em 2020 e pastorícia (transumância).
2021, apesar da agenda mediática em torno à
questão ter arrefecido, a situação não mudou • A resposta governamental, através dos seus
substancialmente. vários programas e iniciativas, tem focado na
assistência imediata e em projetos infra-
• As campanhas agrícolas nas lavras das estruturais de longa duração. No entanto, a
comunidades rurais continuam a falhar, por mesma é fragmentada, parcial e em alguns
falta de chuva e ausência de mecanismos casos redundante, causando insu iciências na
alternativos de rega. O mesmo não acontece abordagem.
com os projetos agro-industriais, que
dispõem de mecanismos próprios. • Igualmente, a excessiva centralização da
operacionalização inanceira e material da
• A transumância é praticada cada vez mais a resposta di iculta a sua execução, tornando-a
distâncias maiores à procura de água e pasto. demorada e sujeita a agendas políticas em
As baixas e tundas são cada vez mais Luanda, em vez de ser desenhada e proposta
disputadas, dando origem a con litos intra- a partir das necessidades locais. As
comunitários. administrações locais não dispõem de

• Nas zonas fronteiriças, veri ica-se o aumento autonomia inanceira e jurídica su iciente
para poder dar respostas em tempo útil.
movimentos de migração forçada para a
Namíbia à procura de comida e trabalho,

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• A nível infra-estrutural, a resposta


RECOMENDAÇÕES
governamental tem incidido sobre novos
macro-projetos, nomeadamente em torno do
Rio Cunene. Esta resposta promete resolver
• Descentralização na tomada de decisões, e
atribuição de maior autonomia de execução
vários problemas de abastecimento. No nas autoridades locais.
entanto, são projetos de longo prazo e de
conclusão imprevisível. Ao mesmo tempo, • Maior diálogo e sinergia entre os agentes
incidem na nova construção em vez de envolvidos, através de um enquadramento
aproveitar as infra-estruturas existentes comum das acções.
(barragens, canalizações), muitas oriundas do
tempo colonial, e em torno às quais as • Uma abordagem integrada à questão das
terras e uso dos recursos ambientais, tanto
populações se organizaram ao longo de
em termos de conformidade com a legislação
décadas.
existente, como de respeito pelas práticas e
• A resposta por parte das ONGs e estratégias das comunidades locais - em
organizações de ajuda e desenvolvimento particular no que se refere à transumância.
tem resolvido vários problemas locais, mas
observa-se a falta de diálogo e partilha de • Maior ênfase no conhecimento local, não só
em termos de práticas tradicionais e
conhecimento entre as diferentes
conhecimento sócio-ambiental, como
organizações e entidades no terreno, em
também de co-autoria de soluções, de forma
particular no que diz respeito ao
participada, a partir do reconhecimento das
reaproveitamento de respostas bem
particularidades sócio-históricas, culturais e
sucedidas. Falta um enquadramento geral
ambientais de cada área afetada.
que permita aproveitar boas práticas e evitar
redundância. • Mais circulação de conhecimento entre os

• Veri ica-se em muitos casos a insu iciente


diferentes atores no terreno, em particular no
que diz respeito a boas práticas que
auscultação e envolvimento das
efetivamente resolveram problemas a nível
comunidades locais, em particular em relação
local. Maior aproveitamento de boas práticas
ao desenho de soluções práticas, em
na resposta à seca, tanto a nível nacional
particular tendo em consideração a
como internacional.
diversidade sócio-cultural e étnica existente
nesta região. • Ênfase no investimento nas infra-estruturas

• A comunidade cientí ica (desde a


viárias, energéticas e de comunicação, tanto
em termos de aproveitamento das infra-
meteorologia à geogra ia, antropologia social)
estruturas existentes como de construção de
mostra-se pronta para contribuir, no entanto
novas infra-estruturas nas áreas mais remotas.
não há sistematização e cruzamento de
dados cientí icos com os projetos • Incorporação de uma lógica de justiça
desenvolvidos no terreno. Existe portanto um ambiental, desenhando e desenvolvendo
sub-aproveitamento desses recursos. projetos primariamente a partir do respeito
pela dignidade da vida humana e da
preocupação pela diversidade ambiental.

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INTRODUÇÃO
E CONTEXTO

9 GADO A PERCORRER RIO DE AREIA NO IMPULO, QUILENGUES (HUÍLA)


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O Sudoeste de Angola, que compreende (MINAMB 2017). Em qualquer caso, esta


genericamente as províncias do Namibe, região de Angola é conhecida por ser
Huíla e Cunene, tem assistido a um tradicionalmente árida e em alguns
período de seca prolongada desde pontos desértica e semi-desértica.
sensivelmente 2010, altura em que se Estudos meteorológicos apontam para
começaram a registar cargas pluviais ciclos de seca em 1992/1993, 1998/1999,
irregulares e abaixo da média. Se a 2012/2013, 2015/2016 e 2018/2019
meados da década já se conheciam (Mateus e António 2020). Neste sentido,
efeitos adversos importantes (UN-CERF as comunidades autóctones,
2016; PDNA 2016; MINAMB 2017), em tradicionalmente dedicadas à atividade
2018/9, de acordo com o Instituto agro-pastoril, desenvolveram ao longo
Angolano de Meteorologia (INAMET), a do tempo várias estratégias de
re g i ã o e n t ro u n u m a s i t u a ç ã o d e sobrevivência e resiliência para fazer
anomalia em termos de precipitação que face à escassez de precipitação.
a colocou numa situação de “seca Portanto, a pergunta que se impôs no
extrema” (Mateus e António 2020). Esta âmbito deste projeto de investigação foi:
situação provocou uma crise ambiental e porque é que desde 2018/9 estas
humanitária de escala inédita, que comunidades estão a cair numa situação
atingiu o seu ponto mais alto no ano de de crescente vulnerabilidade? Pode a
2019, altura em que várias agências situação ser atribuída exclusivamente ao
alertaram para uma situação de El Niño? Para além dos fatores
emergência que as comunidades locais climatéricos, quais são os fatores
estavam a sofrer. De acordo com dados humanos que estão a criar a situação de
publicados pela UNICEF em Junho de calamidade do ponto de vista
2019, cerca de 2.3 milhões de pessoas se humanitário? Para mais, numa região
encontravam em situação de atravessada por um rio de caudal
insegurança alimentar como resultado abundante como seja o Rio Cunene,
da seca. Isto motivou o desenvolvimento porque é que subsiste a di iculdade de
de vários programas urgentes de ajuda e acesso à água?
desenvolvimento, tanto da parte do
Neste relatório propomos uma descrição
governo angolano como da comunidade
e análise do “problema da seca” no
civil nacional e internacional.
Sudoeste de Angola, assim como uma
Neste contexto, o fenómeno climático El descrição da mobilização institucional e
Niño tem sido frequentemente apontado cívica que se gerou em resposta ao
como a principal causa para a situação, mesmo. Apontaremos que será
provocando uma perturbação necessário ter em conta vários aspetos -
climatérica re letida tanto em termos de ambientais, culturais, políticos e
seca extrema como de inundações económicos - para se poder ter uma

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SECA EM ANGOLA PONTO DA SITUAÇÃO 2020-2021

visão mais abrangente do fenómeno. servirá de contexto necessário para a


Seguindo a distinção elaborada por melhor compreensão do fenómeno da
Wilhite e Glantz (1987), trabalhamos com seca e as consequências do mesmo na
a distinção entre seca meteorológica paisagem humana e ambiental local. Na
(derivada da falta de precipitação), seca secção seguinte ofereceremos uma
agrícola (resultando da incapacidade de descrição de estudos de caso que
suprir as necessidades hídricas das abordamos ao longo da nossa pesquisa.
culturas), seca hidrológica (escassez de Na terceira secção deste relatório,
recursos hídricos no solo e subsolo) e ofereceremos uma descrição e análise
inalmente seca socioeconómica das diferentes soluções técnicas,
(insu iciência hídrica para atividades económicas e outras que se
humanas), de forma a distinguir a desenvolveram no terreno. Finalmente,
dimensão ambiental dos seus efeitos apresentaremos uma lista de “boas
sociais, económicos e políticos. práticas” em resposta à seca, e faremos
o nosso diagnóstico da situação e
Após uma apresentação do projeto de
recomendações.
pesquisa e respetiva metodologia,
começaremos com uma caracterização
histórica, cultural e paisagística da
região do Sudoeste de Angola, que

Mapa das regiões afetadas pela seca no Sudoeste de Angola

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ABORDAGEM E METODOLOGIA DO PROJETO

Este projeto de investigação, inanciado Acresce também que cada vez mais o
pela agência sueca FORMAS no âmbito fe n ó m e n o d a s e c a t e m v i n d o a
do programa “Urgent Grants” (2019), transcender os limites territoriais das
surge em resposta à situação de seca três províncias normalmente associadas
extrema tal como emergiu em ao fenómeno (Cunene, Huíla, Namibe).
2018-2019. O objetivo era fazer um Tal como reportado no último ano, vão
ponto da situação da mobilização estatal se acumulando notícias dos efeitos da
e cívica, tanto a nível nacional como estiagem, por exemplo nas províncias de
internacional, que surgiu em resposta a Benguela, Cuando-Cubango e Malanje.
esse reconhecimento de crise. Enquanto Neste sentido, para além do chavão
antropólogos sociais e culturais, a nossa “seca no Sul de Angola”, é necessário
preocupação era fazer uma apreciação continuar a acompanhar o alcance e a
in situ, em contacto com as complexidade da estiagem ao longo de
comunidades locais, para entender o todo o território de Angola.
que correu bem e o que falhou na
O trabalho de campo foi efetuado em
resposta à seca, e sobretudo qual o
diferentes momentos entre Outubro de
ponto de vista das comunidades locais
2020 e Junho de 2021. Foram visitadas
sobre a mesma. Procurou-se combinar
ao todo 11 localidades nas províncias do
uma perspetiva antropológica
Cunene, Huíla e Namibe.
preocupada com os contextos sócio-
Nomeadamente:
históricos, culturais e políticos, e uma
análise mais aplicada da mobilização - Cunene: Curoca (sede, Oncocua,
técnica para desenvolver soluções de Erola).
curto, médio e longo prazo.
- Huíla: G a m b o s ( Ty i p eyo,
Esta abordagem de terreno teve a Tyitongotongo, Tyihepepe, Taka,
vantagem de poder recolher Tunda), Humpata (sede, Neves, Bata-
experiências e perspectivas muito Bata), Matala, Quilengues (Impulo).
diferenciadas em relação à seca, as suas
causas e consequências. Por outro lado,
- Namibe: V i r e i ( Ty i t u n d o - H u l o ) ,
Tô m b w a ( C u r o c a , L a g o a d o
tendo em conta o seu caráter urgente,
Carvalhão, Arco) Bibala (Quilemba
não foi uma recolha exaustiva em termos
Velha).
geográ icos - muitas outras localidades e
regiões poderiam igualmente ter sido Nessas visitas, conversamos com sobas
abordadas -, nem de longa duração. e respetivas famílias, pastores e
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SOLUÇÕES PARA A SECA EM ANGOLA

agricultores. Também levamos a cabo No que diz respeito a constrangimentos,


e n t re v i s t a s c o m a d m i n i s t r a d o re s o principal fator encontrado foram as
municipais e comunais e respetivas limitações de mobilidade e circulação
equipas técnicas e administrativas, que re l a c i o n a d a s c o m o c o m b a t e a o
frequentemente nos acompanharam. C OV I D -1 9, q u e o b r i g o u a v á r i o s
Fora deste terreno, realizámos procedimentos extra, tais como
entrevistas com membros de quarentenas e multiplicação de medidas
organizações da sociedade civil (ADRA, de segurança. Isto, por sua vez, limitou o
NCA, ACC, ADPP, FRESAN e outros) e tempo disponível para a estadia em cada
instituições governamentais, tanto no uma das localidades visitadas.
Lubango como em Luanda (INAMET,
INRH). Ao todo, foram realizadas 28
entrevistas e focus groups.

Foi igualmente feito um levantamento


bibliográ ico e documental, assim como
de notícias e relatórios sobre a seca, e
um estudo comparativo com outras
regiões do continente africano que
sofreram experiências semelhantes.

Mapa das localidades visitadas no âmbito do projeto

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UMA “TERRA - CELEIRO”
NOTAS HISTÓRICAS-CULTURAIS-AMBIENTAIS
SOBRE O SUDOESTE DE ANGOLA

C o b r i n d o u m a á r e a d e 2 1 3 ,0 8 6 Est as potencialidade s ecológicas


quilómetros quadrados, o Sudoeste de explicam o desenvolvimento sócio-
Angola é, tal como descreveram histórico da região, marcado pelo
recentemente John e Sophie cruzamento de grupos e comunidades
Mendelsohn (2018), uma região muito de várias origens. Historicamente, o sul
diversi icada do ponto de vista sócio- de Angola foi povoado por movimentos
ambient al, compreendendo áre as de pessoas oriundas tanto de norte, sul e
desérticas e de aridez extrema a Oeste leste, que se foram organizando em
(Namibe), áreas de serra e montanha torno dos vários tipos de recursos
(atingindo os 2100 quilómetros de naturais existentes em torno dos rios
altura) com abundantes recursos Cunene e Caculuvar, por exemplo.
hídricos (Chela), áreas de bosque e
Neste contexto, pesquisas arqueológicas
loresta densa (miombo), e o
na região referem a existência milenar
ecossistema do Rio Cunene, um dos
de várias civiliz açõe s de origem
poucos rios permanentes nesta região e
bosquímano e banto, por vezes em
com um caudal anual médio é de 174 m³/
con lito entre si (Ervedosa 1980;
s na foz. Neste sentido, neste espaço
Serdoura 2018), ou de civilizações tais
podem-se encontrar ecologias e
como a do reino de Féti - um dos reinos
ambientes extremamente diversi icadas.
mais antigos na região Subsaariana,
Ao mesmo tempo, trata-se de uma precursor do reino Ovimbundu e que se
região com vastas potencialidades em instalara à beira do Cunene (ver por
termos de exploração mineral, agrária e exemplo Moura 1958; Childs 1970;
sobretudo pecuária, disputando Vansina 2004).
frequentemente o título de “celeiro de
Estas diferentes trajetórias compõem
Angola” com o planalto mais a norte. Por
uma paisagem étnica muito diversi icada
esta razão, integrou historicamente
no Sudoeste de Angola, sobretudo de
várias rotas de comércio de norte a sul, e
origem Bantu (estruturada em torno dos
é povoada hoje com inúmeros projetos
grupos etno-linguísticos Nyanheca-
de exploração nessas áreas. Tendo em
Humbi, Ovimbundo, Nganguela, Quioco
conta as condições únicas para a
e Herero ou Kuvale) e também uma
pecuária, esta região é igualmente
minoria não-Bantu (descendentes de
referida como incorporando o
“complexo do leite” ou “complexo da
ordenha”.
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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

Bosquímanos e Khoisan).1 A convivência comunidades, em resposta à escassez


entre estes grupos nem sempre foi de pasto e água, constituindo-se como
pací ica, sendo recorrente a memória de um sistema racional e cíclico de
confrontos entre os distintos sobados aproveitamento de recursos no território,
que os compunham. das planícies e vales às serras, que ao
mesmo tempo incorporava rotas de
A partir dessa diversidade, as principais
circulação e troca comercial (Gonçalves
atividades sócio-económicas
2016; Castelo 2018). Aqui, é importante
tradicionais também variavam entre os
ressaltar que esta economia pecuária
vários grupos, alternando entre
autóctone, apesar da abundância de
atividades de comércio, uma pastorícia
cabeças de gado que consegue
transumante (tal como a praticada hoje
acumular, nunca foi de corte industrial, e
entre os Mucubal/Kuvale, Ovanyaneka,
revela uma relação complexa entre as
Mwacahonas, Muchimbas, Nkhumbi e
comunidades locais e o seu gado ovino
outros), uma agricultura ou agro-
e caprino, usado mais para consumo de
pecuária de corte familiar, ou a caça e
leite e para a irmação de estatuto
coleção (tal como acontece entre os
político e alianças matrimoniais. Neste
Vátua). Neste contexto, a transumância
contexto, recordamos a distinção de Ruy
era uma prática comum entre várias
D u a r t e d e C a r va l h o ( 20 0 0 ) , q u e
descrevia como para os Mucubal o
animal era um “boi ecológico” e não
tanto um “boi económico”.

Do ponto de vista sócio-político, estes


diferentes grupos estruturavam-se em
torno de reinos e sobados divididos por
clãs e hoje territorialmente estruturados
em torno de kimbos e eumbos, a partir
de uma organização normalmente
poligâmico e patriarcal do ponto de vista
político mas matrilinear no que diz
respeito a transmissão e herança.

Neste contexto, o sul de Angola também


foi palco de várias rotas de comércio,
tanto de gado como de borracha, cana
Cuvales com gado a pastar no Deserto do
Namibe, década de 1930. Foto de Elmano de açúcar, algodão e mar im, apoiadas
Cunha (Fonte: Arquivo ACTD) durante décadas por trabalho escravo ou
“serviçal” (Clarence-Smith 1976). Neste

1Neste ponto é importante referir que estes conceitos classi icatórios incorporam uma trajetória histórica sujeita a
processos de dominação e controlo, em particular no contexto do colonialismo português, que frequentemente
ocultam realidades mais complexas (Carvalho 1995). É o caso, por exemplo, da categoria Nyanheca-Humbi (Melo
2007). Neste contexto, torna-se necessário um olhar crítico relativamente ao uso destes termos.

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contexto, por exemplo, ainda se cana de açúcar e posteriormente


encontram no Namibe vestígios algodão. Em 1884-5, um segundo grupo
materiais de comunidades Mbari - de madeirenses, desta vez oriundos da
descendentes de escravos oriundos do metrópole, dirige-se para o interior para
planalto e entretanto “urbanizados” fundar o que viria a ser o Lubango
(Blanes 2019). (Bastos 2011; Azevedo 2014).

No entanto, a partir da segunda metade Na mesma altura (1881), graças a um


do século XIX, observa-se um processo acordo com o ent ão governador
progressivo de colonização/ocupação da Sebastião da Matta, uma colónia de
parte do reino português, aproximadamente 400 trekkers
progressivamente organizada em torno (viajantes) boers, oriundos do Transvaal,
da exploração dos seus recursos instalou-se na zona da Humpata, onde
naturais. Gerald Bender (1978) descreve instalaram quintas, estradas, represas e
como o processo de povoamento canais de irrigação (Guerreiro 1958;
planeado nesta região começou com o Stassen 2012). A presença dos boers na
envio de degredados para Moçâmedes, região durou sensivelmente até 1928,
todavia em números pouco altura em que a maioria destes colonos
signi icativos. E por exemplo através dos decide empreender o caminho de volta
livros de Ruy Duarte Carvalho, tais como para o sul. Mas o seu legado permanece
Os Papéis do Inglês (2000), aprendemos marcado na paisagem local, sobretudo
sobre a presença histórica de vários através dos caminhos e estradas por eles
tipos de “empreendedores” comerciais desbravados, e pelo então inovador uso
no terreno, os chamados “comerciantes de tecnologias de transporte tais como
do mato”, sucessores do “funante”, que, as famosas “carroças bóer” (Guerreiro
para além do comércio com os 1958).
africanos, se dedicavam igualmente à
Tratou-se, portanto, de um processo
agricultura, à criação de gado e/ou à
paulatino de colonização através da
caça (Silva 2003). Algumas residências e
armazéns de antigos comerciantes
continuam visíveis ao longo deste
território nos dias de hoje.

Em qualquer caso, a primeira


colonização sistemática europeia da
região ocorreu a partir de meados do
século XIX (Clarence-Smith 1976; Bender
1978; Castelo 2007; Azevedo 2008), com
a instalação em Moçâmedes de um
primeiro grupo de comerciantes,
seguido de uma colónia de 300 Boers a atravessar rio Cunene a caminho de
madeirenses oriundos de Pernambuco, Pereira d’Eça, circa (Fonte: Wikimedia
Commons)
Brasil, e que desenvolveram a cultura da

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usurpação, ocupação e ordenação de um dos principais focos de resistência à


terras. Tal como descrevem o historiador ocupação colonial do território do
francês René Pélissier (1997, 1997b) e Sudoeste Angolano (Pélissier 1997b;
outros (Cerviño-Padrão 1998), no âmbito Campos 2017). Este episódio ilustra
do estabelecimento das cidades de como para além dessa historiogra ia
Moçâmedes e Sá da Bandeira, a triunfal euro-centrada existe uma outra
“conquista” portuguesa desta região foi de revolta e resistência autóctone à
marcada por uma série de campanhas “engenharia” e exploração do projeto
militares contra as comunidades locais. colonial português (Carvalho 2003). Por
A historiogra ia militar portuguesa e xe m p l o, a s r e v o l t a s d o H u m b e
assinala, por exemplo, as campanhas do (1885-1898), a resistência dos Ovambo e
H u m b e ( 1 8 9 8 ) , C u a m a t o ( 1 9 07 ) , a vitória dos Cuamato (1904). Em
Cuanhama (1915), etc. Aqui, destaca-se a qualquer caso, após a “paci icação”,
famosa Guerra dos Mucubais (1940-1), assistimos a um período de crescente
onde, a pretexto de um suposto roubo investimento infra-estrutural por parte
de gado na região do Pocolo, vários da colónia portuguesa, através do
membros desta etnia “rebelde” foram desenvolvimento de uma rede de infra-
o b j e t o d e u m a “s o l u ç ã o i n a l ”, estruturas de transporte e exploração,
assassinados e presos ou deportados, e tais como os Caminhos de Ferro de
o seu gado “con iscado” para as Moçâmedes, cuja função principal era o
fazendas coloniais - eliminando-se assim transporte de minério do hinterland para

Mapa das três províncias, incluindo infra-estruturas de transporte, hidroelétricas e extractivas

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o porto de Moçâmedes. Até 1970, a complementados por vários outros


região mineira explorada pela colónia projetos de exploração de fazenda
(por exemplo pela Companhia Mineira particulares por parte de colonos
do Lobito) atingia a cidade de Serpa brancos, facilitados pelo governo
Pinto (hoje Menongue) a leste e Nova colonial, e que frequentemente eram
Lisboa (Huambo) a norte, tendo como palco de con litos com as comunidades
principais pontos de extração de ferro, locais (Castelo 2018). Um exemplo
inertes e outros minerais locais como a notório foi o chamado Rancho
Jamba Mineira, Cassinga, ou granito na M o n t e m o r, p r o p r i e d a d e d e R u i
C h i b i a ( A l i c e rc e s B a h u 20 19 ) o u Mendonça Torres, que entre outros
Xangongo, por exemplo. projetos envolveu-se no famoso projeto
da ovelha Karakul (Saraiva 2016). Aqui,
Igualmente, desenvolvem-se vários
tal como descreveu a historiadora
projetos de gestão hidrológica e
Cláudia Castelo (2018), eram frequentes
energética, como por exemplo
os con litos com comunidades locais,
barragens e canais - alguns dos quais
em particular as transumantes, já que a
ainda ativos nos dias de hoje. É o caso,
implantação das fazendas implicava o
por exemplo, da Barragem das Neves na
fechamento, com arame farpado, do
Humpata, ou a Hidroelétrica da Matala,
território explorado. É de notar que
inserida (junto com as barragens de
também foi neste período que se
Biópio e Lomaúm mais a norte) no
constituíram as primeiras reservas
chamado Plano do Cunene, proposto e
naturais, que serviram igualmente de
desenvolvido ainda na década de 1950
zonas de caça durante décadas. Foi o
com o objetivo de fornecer energia
caso, por exemplo, do Parque Nacional
elétrica a Sá da Bandeira e ao mesmo
do Bicuar, constituído como reserva em
tempo criar cerca de 3000 ha de
1938 e classi icado como Parque
regadio. Estes grandes projetos foram
Nacional em 1964. Igualmente, o Parque
por sua vez complementados com
Nacional do Iona, estabelecido no
redes e estruturas de captação de águas
mesmo ano.
subterrâneas, para uso tanto por parte
das empresas coloniais como por parte Após a independência de 1975, vários
dos agro-pastores (Silva 2003). Ao desses projetos de exploração agrária,
m e s m o t e m p o, a t r avé s d a J u n t a pecuária e mineira são interrompidos ou
Provincial de Povoamento de Angola, abandonados, em particular pela
serão ensaiados alguns projetos de situação de guerra que se instala na
desenvolvimento agrário, tais como os região, com frentes de combate entre as
colonatos da Matala, Caconda e Chitado, forças armadas da UNITA e o MPLA, pelo
povoados tanto por colonos europeus menos até 1993 (Gonçalves 2016), e ao
como por “assimilados” indígenas mesmo tempo palcos de atividade
(Bender 1973; Castelo 2007). militar com forças sul-africanas , tanto
em apoio à UNITA como na sua luta
Estes projetos de colonização agrária
contra as bases da SWAPO. Outra razão
eram ao mesmo tempo

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para o abandono foi a chamada Lei do transfronteiriço com a Namíbia, assente


Con isco, promulgada em 1975 por em relações familiares e grupais
Agostinho Neto, com a qual o Estado previamente existentes, em particular
con iscou a maioria dos terrenos outrora entre os Kuanhama (Rodrigues 2017;
explorados pelos fazendeiros no regime Sampaio 2017; Silva 2020). Como refere
colonial e os redistribuiu à população, Cristina Udelsmann Rodrigues (2007), tal
sobretudo para habitação (sob forma de se deveu às di iculdades de acesso a
rendas ao Estado), mantendo no entanto produtos comerciais em Angola, durante
a sua propriedade através da Lei das e depois das diferentes guerras que
Terras. assolaram o país. Foi através deste
comércio transfronteiriço que
Aos poucos, sobretudo após as reformas
localidades como Santa Clara no
estruturais de 1992, que permitiram a
Cunene foram crescendo
iniciativa privada, algumas fazendas e
demogra icamente (Rodrigues 2010).
projetos de exploração mineira e de
inertes são paulatinamente retomadas. No mesmo âmbito, os movimentos
Um exemplo notório na Huíla foi o demográ icos foram criando novas
projeto da família Borges - a Fazenda situações, nomeadamente o movimento
Jamba - que mantém até aos dias de migratório para as cidades, núcleos
hoje vários projetos agro-pecuários na urbanos ou eixos viários, criando uma
Humpata. Finalmente, após o armistício situação de despovoamento e abandono
de 2002, e sobretudo após a chegada ao infra-estrutural, em particular nas áreas
poder em 2017 de João Lourenço - que de difícil acesso, apenas povoadas pelas
instigou uma política de produção comunidades transumantes (ver Aço
nacional e de redução de importações 2016). O desenvolvimento urbano
através do programa PRODESI (Programa desenvolvido neste período redundou
de Apoio à Produção, Diversi icação das num processo governativo centrado nas
Exportações e Substituição das áreas em processo de urbanização,
Importações) -, o investimento na investindo na integração das populações
produção nacional aumentou e as no processo produtivo. Esta situação
paisagens do Sudoeste angolano colocou as populações locais, em
icaram irremediavelmente marcadas particular as agro-pastoris e
pela multiplicação de projetos de transumantes, num contexto de
exploração agrária, pecuária e mineral crescente vulnerabilidade e sujeição no
de corte industrial. Ao mesmo tempo que diz respeito às suas atividades
que os grandes projetos agro-industriais económicas tradicionais, tanto por
se de senvolviam nas suas terras sofrerem expropriação das suas terras
tradicionais, as comunidades rurais tradicionais como por verem o acesso a
tiveram de se ir adaptando, pasto e pontos de água reduzido ou
desenvolvendo estratégias de limitado, e ao mesmo tempo verem-se
sobrevivência. Uma dessas estratégias limitadas pelas ausências infra-
foi a mobilidade, comércio e o trabalho estruturais.

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O PROBLEMA DA SECA
CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS, CRONOLOGIA,
ATORES NO TERRENO, REAÇÕES DA SOCIEDADE
CIVIL

Tal como referido acima, o Sudoeste de vez tornava cada vez mais difícil os
Angola é, do ponto de vista bio- ecossistemas recuperarem entre um
climatológico, uma região diversi icada, ciclo de estiagem e outro. E também
composta por áreas tradicionalmente sinais de que esses processos estavam a
áridas e semi-áridas, assim como de afetar o calendário agrícola e
áreas montanhosas e húmidas e zonas subsequentemente a sobrevivência das
de bosque e loresta. Neste contexto, as comunidades. De acordo com o
comunidades locais não desconhecem o levantamento mediático e bibliográ ico,
fenómeno da seca. Ao longo das três após algumas referências breves em
províncias referidas os mais velhos 2008, os primeiros alertas recorrentes
recordam outros episódios históricos de começam a aparecer em 2012, alertando
seca, tais como a seca sentida na zona para a acumulação de anos de chuva
de Quilengues em 1972, a chamada irregular ou insu iciente. Mas será em
“seca do Xangongo” de 1979 ou a “seca 2019 que se começa a falar de uma
da Chitambula” (1989-1992). Neste situação de emergência generalizada.
sentido, as populações locais sempre Vários relatórios internacionais já
tiveram estratégias de acesso e recolha descrevem a situação como “a pior seca
de água, seja através do conhecimento em 40 anos” (IPCC 2019; Amnistia
da geogra ia e paisagem local Internacional 2021; Reliefweb 2021). O
(localizando pontos de água que é que está, então, em causa?
subterrânea), seja através de técnicas de
recolha de água pluvial ou retenção de APONTAMENTOS
água luviária. Referimo-nos, por METEOROLÓGICOS
exemplo, a cacimbas e chimpacas,
De acordo com estudos apoiados pelo
represas e outras técnicas de
I N A M E T, d o p o n t o d e v i s t a
aproveitamento de água, assentes num
agrometeorológico, o Sudoeste de
conhecimento milenar do território e
Angola encontra-se numa situação de
respetiva fauna e lora.
“episódio extremo de seca”, derivado de
No entanto, a partir da década de 2000 anomalias na precipitação provocadas
começam a surgir sinais que indicavam por um sistema anómalo de alta pressão
um aumento de intensidade no que diz que inibiu a formação de nuvens no
respeito a ciclos de seca, que por sua período de 2018-209, com tendência a

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se prolongar (Mateus e António 2020). para um aumento provável da


Tra t a - s e, p o r t a n t o, d e u m a s e c a temperatura média anual entre 1,2 e
meteorológica, que por sua vez provoca 3,2°C até 2060, com um aquecimento
seca agrícola e hidrológica. Neste mais rápido nas áreas do interior e do
contexto, há um quadro histórico nos leste de Angola (ibid.).
últimos 40 anos de incremento de
De acordo com dados divulgados pelo
ciclos de seca que indicia um processo
portal Reliefweb (UN-OCHA), isto
crescente, re letido num índice de
redundará numa situação de
precipitação padronizada em constante
insegurança alimentar aguda nas
declínio (ibid.). Ao mesmo tempo, é
províncias do Cunene, Huila e Namibe
necessário enquadrar esta seca com
do sudoeste de Angola. Uma análise de
processos climáticos mais abrangentes e
Insegurança Alimentar Aguda do IPC de
que afetam a África Subsaariana na
17 municípios do Sul de Angola revelou
última década. Neste âmbito, são
que, entre julho e setembro de 2021,
conhecidos os episódios de seca que se
cerca de 1,32 milhões de pessoas (49%
estão a veri icar no corredor sul do
da população analisada)
continente africano, afetando por
exemplo a África do Sul, Moçambique e
Madagáscar. De acordo com um anúncio
do World Food Programme de 2020, um
número recorde de 45 milhões de
pessoas nos 16 países da Comunidade
de Desenvolvimento da África Austral
estão em situação grave de insegurança
alimentar após as repetidas secas e
inundações generalizadas.

P revê - s e, e m q u a l q u e r c a s o, u m
incremento de episódios de seca
extrema na região, à medida que,
chegados a inais de 2021, a situação Mapa da situação de seca em Fevereiro de
climática não se alterou 2021, produzido pelo Laboratório Angolano de
signi icativamente. De acordo com Observação da Seca.

números veiculados pelo Painel


Intergovernamental para as Alterações experimentaram níveis elevados de
Climáticas (IPCC), e de acordo com as insegurança alimentar aguda (IPC Fase 3
suas projeções, “a frequência e a ou superior). Entre Outubro de 2021 e
intensidade das secas deverão Março de 2022, espera-se que o número
aumentar, em particular na região de pessoas nesta situação aumente para
mediterrânica e na África Austral” cerca de 1,58 milhões de pessoas.
( A m n i s t i a I n t e r n a c i o n a l 20 2 1 ) . A s
mesmas projeções apontam igualmente Neste contexto, é frequente ouvir
referências ao El Niño como principal

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causador da estiagem (PDNA 2016). No conhecer as diferentes formas e reacção


entanto, a relação de causalidade não é das mesmas por relação à evolução da
demonstrada a partir das análises pluviometria.
meteorológicas, que referem no entanto
Em 2019, com o eclodir da crise da seca,
ciclos de chuva irregular (INAMET 2021).
o Governo de Angola promoveu o
Noutras palavras, tal como explicaremos
envolvimento de alguma comunidade
mais adiante neste relatório, apesar do
cientí ica, através do Projecto de
evidente ciclo árido, nem todos os
Quanti icação da Problemática da Seca
processos de seca são devidos
no Sul de Angola, lançado pelo Gabinete
exclusivamente ao El Niño.
de Gestão do Programa Espacial
ALERTAS DA COMUNIDADE Nacional (GGPEN) do Ministério das
Telecomunicações e Tecnologias da
CIENTÍFICA Informação. O projecto tinha como
Desde cedo que a comunidade cientí ica objetivo monitorar a seca com a
tem debatido as causas e consequências utilização de dados de satélite, e apoiar
da seca, sem que no entanto se possa a implementação de um sistema de
a irmar que tal tenha tido impacto exploração de dados de satélite para a
signi icativo nas políticas e estratégias gestão hídrica e monitorização da seca,
assumidas pelo governo angolano. (ver Tartari 2021).

Um dos projetos pioneiros a alertar para Igualmente, em Setembro de 2020


a situação de vulnerabilidade das realizou-se o encontro “Cunene: das
comunidades do sul de Angola foi o secas às cheias. Um Programa Cientí ico
centro interdisciplinar Centro de Estudos Nacional”, com a participação de
do Deserto, liderado pelo antropólogo cientistas da área da meteorologia e
Samuel Aço. O centro, localizado no ciência climática, geologia, ciência
Curoca (Namibe), desenvolveu o Projeto espacial e hidrologia. Neste encontro, foi
Transumância, através do qual se possível veri icar que, apesar da
detetou a situação de par ticular saudável mobilização da comunidade
vulnerabilidade que as comunidades cientí ica para o efeito, icou evidente a
pastoris do Sudoeste de Angola se falta de colaboração ativa entre as
encontravam a viver, num contexto de entidades decisoras e os investigadores,
aumento de episódios de seca (Aço nomeadamente na circulação e
2016). aplicação de dados quantitativos, e no
desenvolvimento e manutenção de uma
Já em 2012 se realizara em Ondjiva um
rede de medição climática sistemática e
colóquio intitulado “A contribuição da
de longa duração.
ciência na prevenção e mitigação das
cheias do Cunene”, onde se defendeu a Ao mesmo tempo, as forças académicas
importância do estudo e locais também se mobilizaram para
acompanhamento permanente das oferecer o seu know-how para as
bacias hidrográ icas, de forma a respostas à seca. Foi o caso, por

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exemplo, do ISCED-Huíla, que realizou Estes números contribuíram para uma


pesquisa de terreno para a recolha de mobilização generalizada relativamente
d a d o s n o â m b i t o d o E m e rg e n c y ao “problema da seca” - frequentemente
Response Fund da UNICEF (CIDE/ISCED- referida como “seca no Cunene”, mas na
Huíla 2020). realidade afetando desde logo as três
províncias.
VÍTIMAS, AFETADOS E
Em qualquer caso, para além destes
OUTRAS CONSEQUÊNCIAS. elementos quantitativos, existem outras
ALGUNS NÚMEROS consequências da seca cuja
Não existe uma estatística sistemática quanti icação é mais complexa.
dos números da seca, em particular no Referimo-nos por exemplo a:
que diz respeito a vítimas e afetados
pela seca. No entanto, várias fontes
- Abandono escolar, sobretudo entre as
comunidades transumantes. Estas
jornalísticas e de organizações nacionais comunidades são forçadas a viajar
e internacionais apontam para números cada vez mais longe à procura de
extremos. Por exemplo, em 2016 o PNUD pasto e água, o que retira as crianças
realizou uma avaliação técnica, e jovens das escolas durante largos
solicitada pelo Governo de Angola, da períodos de tempo.
situação nas três províncias, após um
ciclo de quatro anos de seca, e detetou - Migração: êxodo rural para os centros
1.139.064 pessoas afectadas pela seca urbanos (Ondjiva, Lubango,
nas três províncias: 755.930 no Cunene, Moçâmedes) ou migração sazonal
205.507 na Huíla e 177.627 no Namibe. para a Namíbia (Amnistia
Internacional 2021). Muitos membros
Já em 2019, vários relatórios de agências das comunidades rurais, sobretudo os
nacionais e internacionais apontavam mais jovens, foram forçados a emigrar
para as seguintes consequências da para as cidades à procura de fontes
seca: de rendimento alternativas. Muitos
- Em 2020, estimadas 810 mil cabeças acabaram por se dedicar ao trá ico
ilegal ou prostituição como
de gado bovino e um milhão de
caprinos e suínos afetados. mecanismo de sobrevivência.

- 1.3 milhões de pessoas a sofrer - Con lito: devido à redução de


insegurança alimentar aguda (FRESAN recursos aquíferos e terra disponível
2021). para pasto, e subsequente morte do
gado, aumentaram as disputas sobre
- 2.3 milhões de pessoas diretamente os mesmos e os casos de roubo de
afetadas pela seca (UNICEF 2019). gado entre as comunidades pastoris,

- 1.2 milhões de crianças a necessitar ou entre estas e as fazendas agro-


industriais (Amnistia Internacional
ajuda humanitária urgente (UNICEF
2019, 2021).
2019b).

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- Insegurança alimentar e nutricional - de gafanhotos que se alastrou a nível


ou, noutras palavras: fome. Apesar continental e afetou vários municípios
das campanhas de doação de do Sudoeste de Angola, causando danos
alimentos e distribuição de sementes, nas culturas nos municípios de
as mesmas não cobrem o período Cuanhama, Namacunde, Ombandja e
seco, e não resolvem o problema de Oncocua (Cunene), Humpata (Huíla) e no
médio/longo prazo. Virei e Moçâmedes (Namibe).

- Destruição ambiental: recurso a A conjunção destas situações implicou


práticas de sobrevivência com um aumento de fatores limitadores no
impacto negativo nos ecossistemas, que diz respeito à vida e trabalho das
tais como a queima e venda de comunidades locais.
carvão, ou a degradação dos recursos
hídricos subterrâneos. A MOBILIZAÇÃO DA
Para além deste diagnóstico, a partir de
SOCIEDADE CIVIL
2020 outro fator começou a afetar ainda A sociedade civil angolana e
mais as comunidades locais: as internacional tem vindo a alertar para as
restrições causadas pela crise consequências da estiagem no Sudoeste
pandémica do COVID-19, que, tal como de Angola muito antes da referida crise
pudemos observar in situ, implicou: de 2019. Por exemplo, membros ligados

- Fecho de fronteiras, nomeadamente


às dioceses católicas locais há muito
que denunciaram o progressivo piorar
c o m a N a m í b i a , o q u e a fe t o u
da situação. Por exemplo, ainda em 2010
s i g n i i c a t i v a m e n t e o c o m é rc i o
o Bispo do Namibe, D. Mateus Tomás,
transfronteiriço e reduziu fontes de
alertou para a situação de seca (VOA, 18
receita para muitas famílias. Muitos
de Outubro de 2010). Em 2012, o Bispo
foram forçados a passar a fronteira de
do Lubango Jonas Pacheco, e o Padre
forma ilegal, em zonas de perigo
Pio Wacussanga, também membro da
evidente.
Associação Construindo Comunidades
- Restrições à circulação e ao comércio, (ACC), alertaram para a situação de crise
o q u e d i i c u l t o u o re c u rs o a o alimentar que se vivia nos Gambos (DW,
comércio e troca como mecanismo 5 de Outubro de 2012). No ano seguinte,
de sobrevivência. várias autoridades religiosas iniciam uma

- Fecho, limitação ou relocalização dos


campanha de solidariedade “Mão na
Mão”, para ajudar as famílias em situação
mercados locais, o que di icultou o de vulnerabilidade nos Gambos.
escoamento de produtos vendidos
pelos cidadãos e ao mesmo tempo Fora do âmbito religioso, o portal de
aumentou o preço dos produtos denúncias Maka Angola publicou, ainda
alimentares disponíveis. em Março de 2013, o relatório “Fome e
Doença nos Gambos”, onde alertou para
Para além do COVID-19 e do ciclo de casos de morte diretamente
seca, acrescente-se os efeitos da praga

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relacionados com a seca e fome, em inanciamento para que várias entidades


particular por doença (cólera, disenteria, no terreno pudessem propor e
diarreia e vómitos) através da ingestão desenvolver vários projetos de curto,
de água contaminada ou raízes. médio e longo prazo para o combate à
seca (ver capítulo seguinte).

Ao longo deste período, foram se


de senvolvendo igualmente várias
campanhas de solidariedade nacional e
internacional, oriundas tanto da
sociedade civil como de estruturas
governamentais. Umas das primeiras
iniciativas foram as campanhas SOS
Cunene e “Cunene precisa de ti” (da
Associação Angolana de Ciência
Política), que recolheram donativos em
Póster da campanha Cunene Precisa de Ti,
dinheiro e bens alimentares. Ao mesmo
retirado da sua página Facebook
tempo, várias igrejas - tais como a Igreja
“Tocoista”, a Igreja Evangélica de Angola,
Há, portanto, um histórico de denúncias a Igreja Betel, a CEAST e outras -
que situa o “problema da seca” num organizaram campanhas de recolha e
contínuo temporal mais alargado. envio de alimentos de primeira
Em qualquer caso, ao longo de 2019, necessidade. O mesmo aconteceu com
várias organizações nacionais e partidos políticos da oposição, tais como
internacionais pediram que o governo a UNITA.
angolano declarasse um estado de Outro exemplo foi a campanha Abraço
calamidade na região. Foi o caso, por Solidário, promovida em 2021 pelo
exemplo, do Bispo de Ondjiva, Dom Pio Ministério das Telecomunicações,
Hipunhati (DW, 16 de Abril de 2019). O Te c n o l o g i a s d e I n f o r m a ç ã o e
governo angolano não acedeu, mas Comunicação Social, e que organiza
lançou vários mecanismos de combate, campanhas de recolha de alimentos,
inicialmente enquadrados no chamado roupas, brinquedos e dinheiro para
“Programa Emergencial de Combate à enviar para o sul do país.
Seca no Sul de Angola”. Destes, o mais
impactante foi o chamado Programa de A doação de alimentos também foi
Fo r t a l e c i m e n t o d a R e s i l i ê n c i a e promovida pelo próprio governo em
Segurança Nutricional e Alimentar em várias ocasiões, por exemplo através da
Angola (FRESAN), constituído a partir de Casa Civil da Presidência da República,
um empréstimo avançado pelo Banco ou dos governos provinciais. Estas
Mundial e gerido pela representação do iniciativas, embora fulcrais para a
Instituto Camões em Luanda. Este resposta imediata a situações de fome
p ro g ra m a fa c u l t o u u m a l i n h a d e extrema, e poderosas do ponto de vista

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de performance política, são encaradas de ocupação da fonte de água da Missão


localmente como iniciativas para “tratar Católica de Santo António de Tyihepepe
os sintomas” sem no entanto se focarem nos Gambos por parte de projetos agro-
nas causas do problema. industriais na Tunda dos Gambos

Por outro lado, da parte da sociedade Estas denúncias permitiram expor alguns
civil, algumas organizações foram processos “invisíveis” no contexto da
denunciando alguns processos que seca no Sudoeste de Angola,
izeram aumentar a vulnerabilidade nomeadamente a ação (ou inação) do
alimentar e sanitária dos habitantes da Estado angolano no território,
região. Em particular, as consequências n o m e a d a m e n t e e m t e r m o s i n f ra -
da instalação de várias fazendas e estruturais e no papel cúmplice no que
projetos agro-industriais nas três diz respeito ao uso dos recursos locais
províncias, que provocaram um aumento sem qualquer respeito pelas
de pressão sobre os recursos aquáticos, necessidades e direitos das
assim como disputas sobre a comunidades locais.
propriedade e uso da terra. Foi o caso da
Amnistia Internacional, que em Junho de O PONTO DE VISTA DAS
2019 lançou o relatório “O Fim do Paraíso COMUNIDADES
do Gados” (Amnistia Internacional 2019),
Do ponto de vista das comunidades a
onde denuncia que grande parte das
viver nas regiões em causa, a situação
situações de fome e miséria que se estão
pode ser medida na forma como afeta o
a veri icar na região dos Gambos estão
seu quotidiano. Desde este ponto de
ligadas não só à falta de chuva, mas
vista, re lete-se muito simplesmente no
também à ocupação de terras e
facto da chuva insu iciente ou irregular
usurpação dos recursos aquíferos por
lhes provocar três problemas graves:
parte de fazendas e projetos agro-
industriais - ao ponto de retirar 67% de
área de pasto às comunidades agro-
- Não lhes permite chegar até aoim da
época de cacimbo com reservas de
pastoris (Amnistia Internacional 2019). água para consumo su icientes. Isto
Mas antes da Amnistia Internacional, já obriga as famílias a percorrerem
as ONGs locais Omunga e Associação diariamente quilómetros a pé à
C o n s t r u i n d o C o m u n i d a d e s ( AC C ) procura de pontos de água para se
denunciaram em 2016 um processo de abastecerem.
ocupação abusiva de 30 mil hectares de
terras na zona da Ombadja, Curoca - Não lhes permite fazer agricultura de
(Cunene), por parte da empresa Esopak, subsistência, estragando culturas que
ao ponto de tomar conta de terras dependem de chuva, tais como o
comunais e expulsar as comunidades ali milho, massango, massambala e
residentes sem qualquer compensação. feijão. Igualmente, não lhes permite
No ano seguinte, a ACC e a SOS Habitat fazer uso de água subterrânea para
denunciaram publicamente a tentativa outras culturas.

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- Seca as zonas de pasto, comunicação, em particular nas


nomeadamente nas zonas ribeirinhas estradas terciárias.
e de chimpaca.
-A falta de projetos estruturais de
-A falta de alimentação do gado distribuição de água e irrigação, ou de
provoca ora a sua morte ou o seu manutenção/reparação das infra-
emagrecimento, tornando-a incapaz estruturas existentes
de fornecer leite ou servir de moeda
de troca para outros alimentos. -A falta de redes de energia e
comunicação, em particular redes
- Coloca-as numa situação de móveis.
dependência em relação ao
abastecimento de água por cisterna, -A implantação de projetos agro-
industriais e extrativos na região, que
ou doação de alimentos
colocam problemas sobretudo aos
A isto, acresce que as tradicionais grupos transumantes, ao fechar
estratégias alternativas ou “planos B” - o caminhos e pontos de água com o
comércio ou a troca, por exemplo - arame farpado.
vêem-se di icultados não só pela referida
Finalmente, tal como referido no ponto
fome do gado, como pela incapacidade
anterior, as restrições impostas pela
de produção agrária, como por questões
resposta ao COVID-19 estão a limitar
mais infra-estruturais. Nomeadamente:
ainda mais as opções disponíveis.
-A falta de manutenção ou
investimento nas infra-estruturas de

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RESPOSTAS

MOTO-CISTERNAS NA CAHAMA (CUNENE)

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INTRODUÇÃO: A ARQUITETURA DA RESPOSTA À


SECA

Neste relatório, fazemos uma distinção arquitetura dos atores e programas


prática entre soluções programáticas envolvidos no processo. Como veremos,
(programas estratégicos, linhas de esta intersecção atravessa várias escalas
inanciamento, etc.) e soluções técnicas de ação, desde as grandes entidades
implementadas no terreno, em muitos inanciadoras internacionais até às
casos inanciadas a partir dessas organizações cívicas de caráter local.
mesmas soluções programáticas. Isto
permitirá uma melhor compreensão da

Organigrama das organizações, programas e projetos no terreno da resposta à seca

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PROGRAMAS, LINHAS DE AÇÃO E ATORES

A resposta do governo angolano à locais. Como veremos em baixo, a


situação da seca pode ser dividida em resposta ao problema da seca apenas
dois momentos: uma primeira etapa de pontualmente é que incorporou uma
tentativa desenvolvimento de lógica de reparação ou reabilitação,
instrumentos e programas estruturais, e privilegiando a nova construção e
uma segunda etapa de “reação urgente” desenvolvimento infra-estrutural.
à “crise da seca”, a partir de 2019,
Seguidamente elencamos alguns dos
dominada por campanhas de
projetos, programas e atores que se
distribuição imediata de água e produtos
instalaram desde o início do século XXI,
alimentares. Neste contexto, várias
focados particularmente nesta região.
organizações que já se encontravam no
Estes são de acordo com a seguinte
terreno mobilizaram-se de vários
lógica:
programas para, em conjunto com os
programas de inanciamento nacionais e
internacionais já existentes ou criados
• Entidades internacionais.
para o efeito, responderem ao desastre • Programas nacionais de resposta à
ambiental. Neste sentido, observa-se seca.
que já antes da crise de 2019 existiam
v á r i o s d i s p o s i t i vo s i n a n c e i ro s e
• Campanhas da sociedade civil.
organizativos no terreno a responder a • Atores no terreno.
necessidades das populações locais,
m u i t o s d o s q u a i s d e s e nvo l ve ra m ENTIDADES INTERNACIONAIS
respostas de curto, médio e longo prazo Na arquitetura da resposta aos
para a situação no sul de Angola. problemas das comunidades no sul de
Por outro lado, a “crise da seca” de 2019 Angola, as grandes instituições
veio pôr a nu problemas de carácter transnacionais têm sido os grandes
infra-estrutural vigentes nas regiões do parceiros e inanciadores de projetos,
Cunene, Huíla e Namibe, e que se programas e iniciativas. Aqui, surgem
revelaram como ponto de partida para a três grandes interlocutores:
vulnerabilidade que as populações locais
se encontravam a sentir. Referimo-nos
• As Nações Unidas - através de
agências como a UNICEF, PNUD, CERF
concretamente a estruturas de acesso a ou a FAO.
água corrente, redes de distribuição
energética, eixos de circulação viária ou • O Banco Mundial, como parceiro de
mesmo infra-estruturas ferroviárias que, Angola para o inanciamento dos
por abandono, instalação incompleta ou programas de desenvolvimento rural.
falta de manutenção, foram pondo em
causa o bem estar das comunidades

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• A União Europeia, igualmente como Angola a partir de 2019, para onde foram
fonte de inanciamento para canalizados instrumentos de tratamento
programas de reforço da segurança e prevenção da malnutrição.
alimentar e nutricional.
Em qualquer caso, para além dos
• Agências de Cooperação estudos e relatórios efetuados, estes
Internacional tais como a portuguesa interlocutores têm sido um suporte
(Instituto Camões), a espanhola chave para os programas desenvolvidos
(AECID) ou a norte-americana (USAID). pelo Governo de Angola, sobretudo na
área inanceira.
Neste contexto, um dos atores mais
ativos tem sido a FAO, que desde o PROGRAMAS NACIONAIS
início da década de 2000 apoiou várias
iniciativas de reforço de resiliência das Desde meados da década de 2000, e
comunidades locais. Um exemplo junto com os parceiros internacionais, o
paradigmático foi o chamado Projecto Governo de Angola tem vindo a
Transumância, um projecto piloto para desenvolver vários tipos de programas e
dar apoio às comunidades de pastores linhas de ação com respostas variáveis,
nos corredores de transumância no sul tanto ao problema especí ico da seca
de Angola e para a melhoria de acesso a como de forma mais geral à situação de
água e aos pastos, a formação de vulnerabilidade das comunidades rurais
pastores e técnicos e o fomento do uso no sul de Angola e restantes províncias.
de tecnologias para mapeamento e Estes programas são, na maior parte dos
controlo da lora e fauna. Em 2011, em casos, desenvolvidos de forma
colaboração com a GFA Consulting hierárquica entre a administração
alemã, publicaram um Manual de central, os governos provinciais, os
Tr a t a d o r e s d e G a d o , f o c a d o n a municípios e as administrações
prevenção de doenças (GFA 2011). comunais.

Por seu lado, o PNUD realizou, ainda em O Programa Água para Todos foi criado
2016, um levantamento da situação, em Julho de 2007, através da Resolução
publicado no relatório Avaliação das do Conselho de Ministros no 58/07, com
Necessidades Pós-Desastre 2012-2016 o objectivo de assegurar o
(PNUD 2016), onde referia que os danos abastecimento de água a 80% da
e prejuízos causados pela seca em população rural de Angola. Neste
Angola totalizavam 750 milhões de contexto, não surgiu como resposta
dólares e que em cada ano 1,2 milhões especí ica à seca, mas sim a
de pessoas foram afetadas. necessidades mais abrangentes por
parte da população rural no que diz
Por outro lado, a UNICEF investiu na respeito ao acesso a água de consumo
intervenção humanitária em contextos de qualidade. O Programa teve uma fase
de emergência nas áreas da nutrição, inicial (fase piloto) que correspondeu
saúde e educação, em particular da essencialmente ao 2º Semestre de 2007
população infantil. Foi o caso do sul de e em que foram alocadas verbas aos

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Governos Provinciais das Províncias do União Europeia, Noruega, Suécia, Japão,


Bengo, Benguela, Cabinda e Uíge, para a I t á l i a , H o l a n d a , C h e v ro n , B r i t i s h
construção de infra-estruturas de Petroleum, Shell, PNUD e USAID.
abastecimento em zonas rurais. A partir
No contexto da seca, inanciou várias
de 2008 o Programa foi alargado à
iniciativas de melhoramento
totalidade das Províncias, exceptuando a
infraestrutural, tais como a construção
Província de Luanda, que só viria a ser
de furos, a reabilitação de represas, o
bene iciada pelo Programa em 2012.
desassoreamento e o melhoramento de
No âmbito deste programa, em 2019 represas e chimpacas em regiões tais
implementou-se um projeto piloto no como a Oncocua, Quilengues, etc.
Cunene, patrocinado pela Presidência da
O Programa Integrado de
República, com o objetivo de reforçar o
Desenvolvimento Local e Combate à
programa público de distribuição de
Pobreza (PIDLCP) foi inaugurado em
água à população afectada pela seca na
2018 com o objetivo de combate à
região – até então suportada por
pobreza extrema, através da
camiões-cisterna, com maior
transferência de dotações mensais aos
capacidade de armazenamento mas
municípios. O PIDLCP contempla onze
maior di iculdade de circulação pelas
eixos: o fomento da agricultura,
estradas das zonas rurais das províncias
pecuária, pescas, hidráulica e
afetadas. O projeto piloto incluía a
engenharia, promoção do género e
distribuição de 16 moto-cisternas para
empoderamento da mulher no meio
cada município. Posteriormente, a
rural, cuidados primários de saúde,
distribuição alargou-se para outras
apoio às acções de cidadania, água e
províncias, ao ponto de hoje cobrir
s a n e a m e n t o, c u l t u ra e d e s p o r t o,
vários pontos do território.
educação, formação e capacitação e
O Fundo de Apoio Social é uma agência merenda escolar. Neste sentido, é um
inter-governamental criada em 1994 para programa transversal e não
a promoção do De senvolvimento especi icamente dirigido ao combate à
sustentável e a redução da pobreza. O emergência da seca. No entanto, em
FAS focaliza a sua actuação na resposta alguns casos tem sido utilizado para a
às necessidades das comunidades, em realização de furos de água, como no
particular nas áreas de educação, água e caso do município do Virei.
saneamento, saúde, infra-estruturas
Num âmbito semelhante, o Programa
económicas e ambientais. Com uma
Kwenda é um programa do governo
área de intervenção de abrangência
angolano, tutelado pelo Ministério da
nacional, nas dezoito províncias de
Ação Social, Família e Promoção da
Angola, inanciou vários projetos nestas
Mulher, e executado inanceiramente
áreas com o suporte inanceiro de
pelo FAS, que visa assistir
diferentes fontes, entre os quais,
inanceiramente as famílias mais
dotações do Governo de Angola,
vulneráveis no país com um apoio
créditos do Banco Mundial e doações da

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mensal de 8.500 kwanzas por agregado. Europeia (entidade inanciadora), o


Criado em 2020, o programa de FRESAN surgiu em primeira instância
transferências, no valor total de 420 como um programa de “reforço da
milhões de USD, pretende bene iciar até a g r i c u l t u r a f a m i l i a r s u s t e n t áve l ”,
1 milhão e 600 mil famílias por todo o incorporando várias entidades públicas
país. Neste contexto, não surgiu como e p a rc e i ro s d e d e s e n vo l v i m e n t o
resposta especí ica ao problema da nacionais e internacionais,
seca, mas estabeleceu-se como um nomeadamente, ministérios, governos
instrumento de combate à fome em provinciais, administrações municipais e
várias regiões, na medida em que organizações não-governamentais.
permite um rendimento às famílias que Coordenado pelo Camões, Instituto de
perderam a sua fonte de sustentação por Cooperação e da Língua (Portugal),
causa da seca. Em Junho de 2021, vários também conta com acordos de
municípios das províncias da Huíla, cooperação com agências das Nações
Cunene e Namibe encontravam-se a Unidas. O inanciamento inicial foi na
desenvolver o processo de mapeamento ordem dos 65 milhões de euros.
e cadastramento das famílias mais
As principais áreas de ação do programa
necessitadas.
incidiam na agricultura sustentável como
O PIIM (Plano Integrado de Intervenção método para responder aos desa ios
nos Municípios) é um plano criado por colocados pelas mudanças climáticas.
iniciativa presidencial em 2018 e com Um dos programas-estandarte é o das
uma gestão multi-ministerial. Foi Escolas de Campo de Agricultores (ECA),
desenhado como linha de inanciamento cuja implementação está a ser realizada
para projetos infra-estruturais a nível conjuntamente com a FAO e várias
municipal, a partir de candidaturas organizações no terreno. O projeto,
realizadas a nível local depois da importado a partir de projetos piloto na
identi icação das principais Ásia e outros contextos africanos,
necessidades infra-estruturais de cada implica a capacitação de agricultores
município, em particular no que diz locais para para aumentar a resiliência, a
respeito a equipamentos escolares, produção sustentável e a segurança
sanitários, etc. Neste contexto, surge alimentar e nutricional no Sul do país. O
como um instrumento de inanciamento alvo são 7875 pequenos agricultores
de intervenções (reparações, familiares vulneráveis, através da
reabilitações) infra-estruturais. promoção de actividades geradoras de
rendimento para mulheres, da
O Programa FRESAN - Fortalecimento
introdução de tecnologias e a promoção
da Resiliência e da Segurança Alimentar
de práticas agrícolas e pastoris
e Nutricional em Angola - é sem dúvida o
climaticamente inteligentes.
principal programa de resposta
orientada à seca no sul de Angola. No entanto, apesar do foco de
Criado em 2017 a partir de um acordo desenvolvimento de resiliência e
entre o Governo de Angola e a União segurança alimentar a médio e longo

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prazo, o programa viu-se confrontado a ou da sociedade civil mobilizaram-se


partir de 2019 com o problema da seca, com o mesmo objetivo. Neste contexto,
o que obrigou ao desenvolvimento de várias organizações já se encontravam
vários programas e linhas de no terreno com vários projetos e
inanciamento especialmente dirigidos iniciativas de desenvolvimento, tendo
para a falta de água. Neste contexto, o acabado por se envolver mais
FRESAN emergiu como a principal fonte diretamente na arquitetura da resposta à
d e i n a n c i a m e n t o p a ra a s vá r i a s seca. Elencamos as mais signi icativas,
organizações nacionais e internacionais por ordem alfabética.
no terreno, subvencionando vários
A AC C ( A s s o c i a ç ã o C o n s t r u i n d o
projetos de ação imediata para o acesso
Comunidades) está localizada no
e retenção de água, apoio a práticas
Lubango. Foi criada em 2003, como
agrícolas, etc.
continuação de outra associação, ALSA,
Posteriormente, o Governo de Angola organização de juventude eclesiástica
lançou o Programa Emergencial de inspirada no trabalho do falecido Padre
Combate à Seca no sul de Angola, com Leonardo Siku inde, um padre originário
o objetivo de congregar ações de do Cunene que se dedicava aos direitos
re spost a à seca de cur to prazo, humanos e que acabou assassinado em
nomeadamente para a distribuição de 1985. A ACC é uma associação que
alimentos. trabalha em defesa dos interesses das
comunidades locais, fazendo lobbying e
Finalmente, já em Setembro de 2021, por
advocacia social e jurídica junto das
iniciativa presidencial, anunciou-se a
instituições governamentais de da
criação de uma Task Force para o
sociedade civil. Neste sentido, está
Combate à Seca, coordenada pela
inserida numa rede de advocacy, sendo
ministra de Estado para a Área Social,
membro observador da Comissão da
para o combate à seca em formato “in
União Africana dos Direitos Humanos
situ”, a partir de uma delegação instalada
dos Povos e membro do Grupo de
na Cahama. A "task force" tem como
Trabalho de Monitoria dos Direitos
objetivo prestar assistência e a
Humanos em Angola.
distribuição de alimentos às populações
afectadas pela seca, sobretudo nos Neste contexto, a sua intervenção no
domínios da alimentação, serviços de apoio às comunidades locais tem
saúde, vacinação, acompanhamento dos incidido em diferentes áreas:
cuidados primários de saúde, aspetos
nutricionais e a educação. - Campanhas de assistência imediata às
populações, através da distribuição
ATORES de alimentos e sementes.

- Monitoria e denúncia de situações de


Para além do governo e das entidades ocupação de terras e usurpação de
públicas envolvidas na resposta à seca, recursos aquáticos.
várias organizações não governamentais

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- Apoio a projetos de acesso ou aquáticos, em particular a chamada


retenção de água. “cisterna-calçadão” (ver secção

- Educação jurídica para defesa dos


seguinte).

direitos das comunidades locais. A ADPP (Ajuda de Desenvolvimento de

- Combate ao êxodo rural. Povo para Povo) é igualmente um


interlocutor de longa data nas áreas
A ADRA (Associação para o rurais de Angola. A sua área de
Desenvolvimento Rural e Ambiente). abrangência inclui a educação, a saúde,
C r i a d a e m 1 9 9 0, a A D R A é u m a agricultura e o ambiente, e o
interlocutor de longa data no sul de desenvolvimento comunitário integrado.
Angola, graças à sua especialização na Promove vários projetos de educação e
salvaguarda e promoção das atividades capacitação nas áreas rurais, por
agrícolas no território e à proteção do exemplo na formação de professores e
direito fundiário. A ADRA encontra-se agentes comunitários. Igualmente,
presente em Luanda e nas províncias de desenvolve vários projetos na área da
Malanje, Huambo, Be guela, Namibe, sustentabilidade ambiental, por exemplo
Huíla e Cunene. Neste contexto, trata-se no uso das lorestas e na produção de
de um interlocutor de longa data, com carvão.
uma longa trajetória de trabalho no
Nas províncias do sul de Angola, a ADPP
terreno junto das comunidades rurais
tem vários projetos desta natureza,
A resposta da ADRA ao problema da embora não desenhados como resposta
seca nas províncias da Huíla, Namibe e de emergência. Um deles é a
Cunene, inserida no projeto PARMES participação nos projetos de Escolas de
(Projecto de Apoio a Resiliência para Campo de Agricultores inanciados pelo
Mitigação dos Efeitos da Seca), tem FRESAN.
incidido em as seguintes vertentes:
A ONG italiana COSPE é uma associação
- Luta pela acessibilidade na sem ins lucrativos criada em 1983 e
transumância, procurando preservar reconhecida em 1984 como Organização
as práticas tradicionais das Não Governamental (ONG) pelo
comunidades pastoris contra Ministério das Relações Exteriores da
processos de ocupação e vedação de Itália e pela União Europeia. A Cospe
territórios comunais intervém no campo da cooperação

- Promoção
internacional em cerca de 30 países,
de projetos de promovendo o desenvolvimento
desenvolvimento agrário e pecuário, sustentável, o diálogo intercultural e os
através da pesquisa de culturas direitos humanos. No sul de Angola,
resistentes à seca e o fomento da estão a desenvolver o projeto TransAgua:
cadeia de produção do gado. from good practice of transhumance
- Implementação de sistemas de shepherds in water resource
management and adaptation to climate
recolha e retenção de recursos

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change, com o objetivo de partilhar boas da população. Neste âmbito, um dos


práticas e conhecimentos agrícolas para principais outputs é a promoção da
ajudar as comunidades rurais do Virei e construção das “cisternas calçadão” nos
Bibala (Namibe) para melhorar o seu uso municípios dos Gambos (Huíla) e
da água pluvial.O projeto utiliz a Namacunde (Cunene), em colaboração
diferentes metodologias participativas com a ADRA e outras instituições.
para promover a auto-organização e
A World Vision International é uma
aplicar as técnicas das Escolas de
ONG cristã que se encontra a operar em
Campo Agroecológico.
Angola desde 1989, a trabalhar nas áreas
A IECA (Igreja Evangélica da saúde, educação, nutrição e bem-
Congregacional de Angola), através da estar infantil. Desde 2015, responde à
sua área social, ajudou a implementar situação de emergência da seca no sul
furos e tanques subterrâneos com o do país. A sua área de abrangência
sistema de calçadão, por exemplo no cobre as províncias do Namibe, Cunene,
município de Quilengues. H u i l a e C u a n d o - C u b a n g o . Te m
trabalhado com parceiros
Por seu turno, a Norwegian Church Aid,
governamentais e não governamentais
faz parte da Actalliance, uma rede de
para combater a desnutrição infantil,
igrejas protestantes com vários projetos
que afeta mais de 15% das crianças
de ajuda humanitária e desenvolvimento
menores de cinco anos na região. Desde
em África. Em Angola, entre outros
o início de 2018, levou a cabo a
projetos a NCA está a implementar o
monitoria do estado nutricional da
projeto “Convivendo com o Semi-Árido
população infantil e distribuiu toneladas
do Sul e Sudoeste de Angola”, um
de alimentação terapêutica. Também
programa de resiliência climática com o
colaborou em projetos de acesso a água
objetivo de fornecer instrumentos às
e desenvolvimento de resiliência agrária.
comunidades locais para poderem
cultivar estratégias de resiliência no seio

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

SOLUÇÕES TÉCNICAS

Área de intervenção do Sistema de Transferência de Águas do rio Cunene

MACRO-RESPOSTAS: Neves na Humpata e a Barragem do


PROJETOS INFRA- Calueque no Cunene. Apesar da sua
ESTRUTURAIS antiguidade, estas infra-estruturas
cumprem um papel fundamental na
Como referido acima, pesar da irrigação de centenas de quilómetros de
existência de uma infra-estrutura hídrica lavras.
oriunda do tempo colonial que, em
muitas situações, ainda serve de apoio a No entanto, em resposta à seca, o
muitos pequenos agricultores e Governo Angolano tem optado
pastores, esta encontra-se na maior inversamente por um plano de
parte dos casos em situação de construção de novas barragens através
abandono ou a exigir manutenção/ de um novo Sistema de Transferência
reparação. É o caso, por exemplo, da de Águas do Rio Cunene, em particular
Barragem da Matala, a Barragem das na província do Cunene. A saber:

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

Furo de água na
Tchibemba (Gambos)

Represa reabilitada
na Oncocua, com o
apoio do programa
FRESAN

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Furo de água movido


a energia solar, no
Virei (Namibe)

Cacimba tradicional
nos Gambos

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

- Barragem do Cafu imediata à falta de água. Aqui,


- Barragem do Calucuve distinguem-se dois tipos de solução.

- Barragem do Ndué Numa primeira fase de resposta, foram


postos em circulação vários camiões-
Estes projetos incluem a construção de
cisterna, com capacidade de transporte
b a r r a g e n s , á re a s d e c a p t a ç ã o e
de grandes quantidades de água para
bombagem, canais a céu aberto e
diferentes pontos de distribuição. Por
condutas pressurizadas, e chimpacas.
outro lado, tendo em conta a ausência
Antecipam um impacto muito relevante
ou mau estado de infra-estruturas viárias
para as comunidades locais. A
e o isolamento de muitas comunidades
construção é coordenada pelo INRH, sob
rurais, o acesso às mesmas torna-se
a alçada do Ministério da Energia e
difícil ou mesmo impossível para a
Águas, e realizada pela Sinohydro Ltd.,
maioria dos veículos.
empresa estatal chinesa de hidroelétrica.
A c o n s t r u ç ã o i n i c i o u e m 2 0 1 9, Em 2019, implementou-se um projeto
correspondendo a Barragem do Cafu à piloto no Cunene, patrocinado pela
primeira fase. A conclusão está prevista Presidência da República, com o
para 2022. Neste sentido, apesar da objetivo de reforçar o programa público
prometida solução de longo prazo, o de distribuição de água à população
projeto ainda não conseguiu afectada pela seca na região através das
providenciar uma resposta visível às chamadas moto-cisternas. O projeto
n e c e s s i d a d e s d a p o p u l a ç ã o, e m piloto incluía a distribuição de 16 moto-
particular no que se refere à prática cisternas para cada município.
agrícola. Posteriormente, a distribuição alargou-se
para outras províncias, ao ponto de hoje
Por outro lado, existem áreas não
cobrir vários pontos do território. Hoje,
cobertas por estes projetos e que
igualmente exigem canalizações e
sistemas de transferência de água do Rio
Cunene, nomeadamente na região na
margem ocidental do Rio Cunene, para
não falar das províncias da Huíla e
Namibe (ver secção seguinte).

PROJETOS DE DISTRIBUIÇÃO

Para além dos projetos infra-estruturais


descritos acima, a transferência e
distribuição de água em resposta à seca
também tem passado por outras Moto-cisterna a circular na Humpata
iniciativas que procuram dar resposta

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

Furo de bombagem manual na


Taka (Gambos)

ao longo das estradas no sul de Angola é problemáticas, nomeadamente o caráter


comum ver várias “moto-cisternas”, as provisório e não estrutural da solução, e
famosas motas de 3 rodas tipo a d e p e n d ê n c i a d e o u t r a s fo n t e s
“Keweseki” ou “kupapata”, acopladas a energéticas (gasolina) e infra-estruturais
uma cisterna para o transporte de água. (estradas em boa condição) para o seu
Para muitos habitantes das zonas rurais funcionamento. Igualmente, o processo
desta região, as moto-cisternas acabam acaba por monetarizar o acesso à água,
por substituir o uso tradicional do burro, obrigando as famílias a pagar a água por
ou mesmo as cabeças de mulheres e litro, sendo que muitas delas, sobretudo
crianças, para transporte de água. Cada as que vivem nas zonas mais remotas,
moto-cisterna tem capacidade para mil vivem maioritariamente da economia de
litros, e o programa apresenta algumas troca e não possuem kwanzas
características interessantes: por um su icientes.
lado, introduz um processo
participatório nas comunidades locais, PROJETOS DE ALCANCE
responsabilizando-as pela recolha e LOCAL
distribuição da própria água. Ao mesmo
Para além dos projetos estruturantes
tempo, a iniciativa adapta-se a práticas
acima mencionados, várias soluções
sócio-económicas já estabelecidas,
técnicas de alcance local têm sido
tendo em conta o tradicional uso das
desenvolvidas pelos diferentes atores no
kupapatas para transporte de pessoas e
terreno. Passamos a elencar as soluções
bens nesta estrada. Neste contexto,
mais recorrentes. Os furos de água têm
inserem-se perfeitamente na economia
sido a tecnologia mais recorrente
local. Por outro lado, as moto-cisternas
observada no terreno. Muitos dos
também incorporam dimensões

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

programas desenvolvidos a nível local, agrárias como para o consumo humano


tanto pela administração pública como e abeberamento do gado. Ne ste
pelas ONGs, têm promovido a reparação contexto, vários dos projetos
ou realização de novos pontos de acesso desenvolvidos pelos atores no terreno
a água, em substituição das tradicionais incidiram no desassoreamento,
cacimbas ou poços. Por exemplo, e de reparação ou construção de novas
acordo com dados recolhidos no represas ou chimpacas.
terreno, só na municipalidade do Virei
Neste âmbito, importa destacar a
foram realizados 39 furos de água,
promoção de projetos de recolha de
através do programa PIIM. Na Taka
á g u a p l u v i a l , a s a c i m a re fe r i d a s
(Gambos), realizaram-se 24. Aqui,
cisternas-calçadão, em construção
observam-se diversas tecnologias de
sobretudo na província da Huíla. Trata-se
captação e bombagem, que variam
de um projeto importado de uma ONG
desde o uso de energia solar (renovável,
brasileira (Diaconia), previamente
autónoma mas sem acumulação de
experimentado no Nordeste daquele
energia, o que torna o seu
país, tendo em vista o aproveitamento
funcionamento irregular) ao uso de
máximo e sustentável da água pluvial na
bombas a gasóleo (o que aumenta a
época das chuvas, criando reservatórios
dependência de combustível) e
para consumo e também para pequenas
tecnologias manuais. Tendo em conta a
lavras durante a época do cacimbo. A
quantidade de água disponível no lençol
implementação passa não só pela sua
freático nas diferentes regiões do Sul e
construção como pelo envolvimento das
Sudoeste de Angola, os furos de água
populações locais na mesma e respetiva
assumem um papel fundamental para as
manutenção da infraestrutura. Tal como
sobrevivência das comunidades locais.
pudemos apreciar in situ, a cisterna-
No entanto, apesar da profusão de
calçadão, apesar de dependente da
projetos de furos, na nossa pesquisa de
(irregular) pluviosidade, constitui uma
terreno foi possível observar vários
ajuda fundamental para a segurança
casos de furos realizados sem estudos
alimentar e resiliência das famílias. Não
prévios ou consulta às populações
só permite acesso localizado a água
locais, o que redundou ora em furos
como reduz a dependência da
negativos ora em furos sazonalmente ou
distribuição externa, e desobriga as
permanentemente secos. Isto acontece
famílias de percorrer diariamente
principalmente pela falta de regulação
quilómetros durante horas para poder
da atividade como pela falta de diálogo
aceder à mesma. Por outro lado, sendo
com quem conhece o terreno a nível
ainda poucas as cisternas-calçadão em
local.
funcionamento, observou-se a
Por outro lado, as chimpacas ou outras concentração e uso intensivo das
tecnologias de retenção de água tais mesmas, o que não permite completar o
como represas também assumem um ciclo do cacimbo com água disponível
papel vital tanto para as atividades nos reservatórios.

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

SABERES LOCAIS

Uma dimensão fulcral mas silvícolas, partindo do reconhecimento


frequentemente ignorada no contexto da escassez e sazonalidade dos
da seca é o conhecimento que as mesmos. Neste contexto, assenta num
comunidades locais têm da paisagem e uso estabelecido e racionalizado dos
consequentemente dos recursos
recursos aquáticos em contextos de
hídricos disponíveis, no âmbito das suas
escassez hídrica, impondo-se em muitas
atividades de subsistência. Por exemplo,
comunidades sobre a agricultura como
através da prática da transumância, as
comunidades acumulam sabedoria principal fonte de sustento. Neste
relativamente a pontos de acesso a água contexto, o conhecimento topográ ico e
e a estratégias de retenção da mesma, ecológico dos pastores é extremamente
assim como da fauna e lora existente. útil para o mapeamento dos recursos
Neste contexto, destacam-se por disponíveis.
exemplo:

Canalização e Gestão de caudais Fruticultura. Embora não seja uma


aquáticos. O conhecimento ancestral prática agrária sistematizada, a recolha e
do território (solo, clima, espécies) consumo de frutos silvestres assume um
permite identi icar e pôr em prática papel complementar importante na
várias técnicas de travagem e retenção alimentação das comunidades, na
de água, como sejam as cacimbas, e medida em que permite compensar
chimpacas. Igualmente, aproveitam o algumas carências na alimentação.
caudal sazonal e intermitente dos rios de
areia para reter caudal subterrâneo para Estes eixos assentam num denominador
lavra ou obter pasto fresco para os comum: a micro-resposta, assente
numa abordagem localizada às
animais.
potencialidades e limitações dos
ecossistemas locais. Tal como referido
Transumância. Para além das suas no início deste relatório, as diferentes
componentes históricas, sociais e comunidades que populam o Sudoeste
culturais, a transumância é uma técnica de Angola habitam ecossistemas muito
ancestral de gestão e circulação de diversos, pelo que soluções e iniciativas
r e c u r s o s p e c u á r i o s , a q u í fe r o s e de ordem geral correm o risco de
apenas ter sucesso parcial e localizado.

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ESTUDOS DE
CASO

FAMÍLIA DE QUILEMBA VELHA, BIBALA (NAMIBE)

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INTRODUÇÃO
Tal como referimos acima, para além da populacional e com muita pressão sobre
narrativa de uma seca generalizada que a água, comparada com regiões de
está a ocorrer no Sudoeste de Angola, densidade populacional baixa.
existem causas e processos muito E m re s p o s t a , d e fe n d e m o s q u e é
d i ve r s i i c a d o s , q u e re s u l t a m e m necessário olhar para a seca a partir do
experiências muito diferentes da seca. estudo de caso particular, em forma de
Neste contexto, o problema da seca retrato da situação entre Outubro de
reveste-se de características muito 2020 e Junho de 2021, para assim
diferentes quando comparamos uma compreender as consequências
comuna como o Curoca do Namibe, de especí icas da seca em cada região e as
pluviosidade tradicionalmente escassa, e diferentes soluções que podem
uma comuna como a Humpata na Huíla, funcionar caso a caso. Seguidamente
tradicionalmente habituada a um grande apresentamos as localidades visitadas
in luxo aquífero. O mesmo acontece em cada uma das 3 províncias objeto de
numa região com maior densidade estudo.

HUILA

Mapa da província da Huíla e locais visitados


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TYITONGOTONGO O vale de procuram fazer a lavra, mas a falta de


Tyitongotongo (“vale da montanha”) ica chuva não lhes permite cultivar milho,
a 28 quilómetros a oeste da sede do apenas massango e massambala. O
município de Chiange nos Gambos. A kimbo tem 33 pessoas, e só tem umas
estrada que sai da sede encontra-se em dezenas de cabeças, perderam muito
construção, mas a intervenção apenas gado. Aqui, a agricultura boa é só com
se estende até à aldeia do Pocolo. No charrua, para conseguir enterrar melhor
vale vivem sobretudo comunidades a semente. Fazendo manualmente, a
ovamwila ou ovangambue, embora humidade desaparece. A morte dos seus
também seja possível encontrar algumas bois não lhes permite desenvolver uma
comunidades mucubais a circular. Os agricultura mais sustentada. Com a
kimbos estão maioritariamente vazios, ausência de chuva em 2019, já não
porque os mais velhos e os seus ilhos houve colheita. Quando chove, o milho
estão nas montanhas à procura de pasto que produzem até dá para consumir e
para as suas vacas, e também de novos ainda trocar por gado. Este ano, para já
locais para fazer lavra. No kimbo do está na mesma. Isto trás fome e doença,
seculo João Mucuvale, as mulheres em partilhar diarreia com sangue. Conta

Kimbo no vale de
Tyitongotongo.

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Tyikuyele, a mais velha do kimbo, que os comunicação que liga o vale ao Pocolo e
ilhos que andam aí, desde que se encontra intransitável - em particular
nasceram que é só seca, ao ponto de no troço do Morro do Issako. Isto
eles perguntarem aos adultos porque é impede-os de fazer negócio e encontrar
que vivem neste sítio e não noutro… alternativas à seca através do comércio.
Os comerciantes fogem da zona, pelo
Em 2015, a administração construiu uma
que eles têm muitas di iculdades para
sonda de água nas proximidades, que
trocar na vila. O preço da mota para
lhes permite apenas obter água para
fazer o caminho é proibitivo. Por
consumo e distribuição com a moto-
exemplo, os porcos que eles possuem
cisterna disponibilizada para o efeito.
seriam uma fonte valiosa de rendimento,
Entretanto, receberam ajudas do estado,
mas não conseguem vender pela mesma
sob a forma de doações alimentares:
razão.
arroz, massa, feijão, sal, água mineral.
No vale não há centro de saúde (apenas
Para os membros deste kimbo, a solução
uma casa provisória de pau a pique), e a
mais adequada para lhes ajudar a
escola está inutilizada. Na zona há uma
sobreviver à seca passa, mais do que por
sonda construída pela administração,
doações, por obter animais. Há uns
mas a água é salgada, não favorece o
anos, houve um programa de uma ONG
cultivo nas hortas. A água que
de criação de gado caprino, em que
consomem é de algumas cacimbas que
ofereceram às pessoas mais vulneráveis
ainda têm água. O problema do furo é
(órfãos, viúvas) dois cabritos macho e
que onde está é apertado, tem muitas
fêmea, e o que reproduziam iam
pedras, devia estar noutra localização.
partilhando pela comunidade. Com a
Os técnicos escolheram o lugar sem lhes
falta de chuva, as cabras morreram. Mas
consultar. Ainda por cima o tanque da
permitiu-lhes ter mais recursos e
sonda caiu em Julho e está estragado.
instrumentos em termos de alimentação,
troca e venda. De acordo com a mais Entretanto, o gado está a morrer, não só
velha Tykuyele, vale a pena repetir a por sede e fome, mas também porque a
campanha. vacina não chegou, nem para os bois
nem para os cabritos. Uma vez mais, a
TYIPEYO A poucos quilómetros de
estrada atrapalha. Ainda por cima, a
distância de Tyitongotongo ica o vale de
situação acentuou a questão do roubo
Tyipeyo, onde se encontra o ehumbo do
de gado entre os mungambwe, os
seculo Pedro Uchito, habitado por 15
munguelas e os mucubal.
pessoas. A fome existe neste ehumbo. O
ano passado não conseguiram cultivar. Em termos de agricultura, outra vez o
Houve algum apoio, mas só para os maior problema é a chuva. Eles cultivam
idosos. A sua principal queixa é a via de massango e de vez em quando

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massambala e milho. Se houvesse mais há mungambwe, mucubal, mundimba,


furos de água, talvez a situação seria mumwila e mwacavona. Muitos destes
melhor. Mas no im tem sempre de grupos combinam a atividade pastoril
comprar comida. O dinheiro consegue- com lavras para consumo próprio ou
se vendendo gado ou sacos de milho na pequeno comércio. Um grupo mucubal
praça. Mas o gado está a morrer, e os montou uma padaria com um forno a
sacos de milho só se conseguem vender lenha, e um grupo de mulheres vende
a 150 mil kwanzas (antes conseguiam olaria artesanal. Para além destas
vender sacos de milho a 200 ou 300 atividades económicas, a Taka conta
mil). com uma escola recentemente
construída com o apoio da ADPP, um
Entretanto, as mulheres icam à espera,
ponto de água e um posto médico. No
porque não conseguem nem cultivar
entanto, não há ambulância para
nem fazer negócio. Estão à espera da
transportar os doentes no caso de
chuva. E os jovens estão a lutar com a
doença grave. Em conversa com o soba
barreira da pandemia, porque noutras
Matias Kalangolungo e outros membros
ocasiões de crise eles saíam para Luanda
das várias comunidades, icamos a saber
ou Benguela para trabalhar na
que a fome é real. Os animais que lhes
construção civil ou nas fazendas de
restam são “coitadinhos”, os cabritos
tomate. Mas com a limitação de
estão magrinhos, sequinhos. Ainda por
circulação já não conseguem sair do
cima, a escassez de gado tem
vale.
aumentado o roubo de gado entre os
No que diz respeito a apoios recebidos, vários grupos.
em 2019 a administração trouxe fuba,
Para além da falta de chuva, há vários
arroz, feijão, óleo, sal. Mas entretanto
outros problemas que estão a provocar a
não voltaram a ter apoios. Também
fome. O soba local continua a aguardar
construíram um tanque no kimbo, e
por um trator que permitiria trabalhar a
trouxeram uma moto-cisterna para
terra mais fundo. A via de acesso
distribuição de água. Mas assim como
também é morosa, tudo demora a
chegou ali, nunca mais saiu, por causa
chegar à Taka. Por exemplo, a semente,
do Morro do Issako. Recentemente,
se chegasse mais rápido, poderiam
receberam apoio da Missão de Santo
cultivar mais rápido e fazer mais
António dos Gambos: arroz, fuba e
negócio, não esperar até im da chuva.
roupa.
Por outro lado, a falta de rede telefónica
TAKA A sul de Chiange encontramos a di iculta ainda mais a sua vida, já que
região da Taka. Esta é uma zona onde não conseguem comunicar com a
convergem vários grupos e etnias administração em tempo útil, nem entre
diferentes, que acodem à praça local. Cá si para controlar a circulação do gado.

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Faltam também machados e catanas O gado serve tanto de sustento como de


para trabalhar a terra, nomeadamente estatuto social e político. Muitos sobas,
massambala, massango, milho, feijão, seculos e patriarcas na zona têm 4-5
macunde, cavicu. Quanto aos furos, há mulheres, mas não conseguem mais
vários que secaram. Na época que sustentá-las nem aos seus ilhos, o que
chovia, tinham água, mas agora secou. os obriga a emigrar. Para além da ajuda
Em alguns só há de manhã. Foram feitos do governo, só da parte da Missão de
furos em sítios que não têm água, os Santo António dos Gambos, que no dia
técnicos que izeram o 28 de Outubro trouxe 20 sacos de sal, 3
empreendimento. Os furos que ainda de feijão, 4 caixas de óleo. Mas não
têm água estão cada vez mais distantes chega, ainda há muita fome.
dos kimbos. Agora, quem não tem burro
TUNDA UM Localizada à saída de
não consegue levar a água no seu
Chiange, a comunidade da Tunda Um foi
kimbo.
uma das primeiras a acolher o projeto
A fome e a miséria também estão a das cisternas-calçadão, neste caso
afetar as estruturas sociais e familiares. desenvolvido pela ADRA com o apoio da

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Actalliance (Noruega) e com uma Antes de existir a cisterna, os integrantes


metodologia participatória, envolvendo do kimbo caminhavam 5 kms para uma

Componentes da cisterna-calçadão, Tunda Um (Chiange).

as próprias comunidades no processo sonda lá no fundo, ou na vila. Às vezes


de construção e manutenção. demoravam 6 a 10 horas no processo.
Neste sentido, a cisterna ajudou um
Conversamos com a Belinha Uatengapo
bastante, não é como dantes. Só que
Pedro, vice-coordenadora da Associação
como a mesma se encontra ao longo da
da Tunda Um. Estamos no início de
via, durante o dia vem muita gente
Outubro de 2020. A Belinha estava ali a
buscar água aqui.
recolher a primeira água que caiu este
ano, que está barrenta, e também para Neste sentido, apesar de achar que um
limpar o tanque. A água da cisterna furo de água subterrânea é melhor do
secou em Julho, sendo que a chuva que depender da água da chuva, para a
parara em Fevereiro. Alguns tanques Belinha este projeto permite reter e
cisterna também vieram depositar água, armazenar água, e possivelmente com
mas a me sma foi imediat amente mais tanques por projeto seria possível
consumida. Uma das razões para isto é gerir o armazenamento e a manutenção
que há muitos kimbos das regiões melhor. Ao mesmo tempo, havendo mais
circundantes que vêm buscar água aqui cisternas-calçadão distribuídas pelo
- até 10 kimbos no total. Ao lado da território, a pressão sobre a da Tunda Um
cisterna encontra-se uma horta, onde a diminuiria e permitiria aceder a mais
Belinha chegou a cultivar mandioca, água no tempo seco.
inhame e couve. Só que entretanto a
horta secou por falta de água.

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

TYIHEPEPE Localizada perto da estrada objetivo de promover o ensino, a partir


q u e l i g a o Lu b a n g o a o C u n e n e , do conhecimento da realidade local, da
Tyihepepe é o lugar que acolhe, há a g ro - e c o l o g i a e c o n c e i t o s c o m o
várias décadas, a Missão de Santo reciclagem, permacultura, cultivo de
António dos Gambos. Esta missão foi sementes, etc. Neste contexto, vários
desde o inal do século XIX um ponto projetos desenvolvidos anteriormente
central nas campanhas de expansão (por exemplo no âmbito do Programa
colonial portuguesa no território, Kwenda, PRODEP, etc.) fracassaram
servindo de posto de abastecimento de precisamente porque não se basearam
água, no rio Caculuvar. Também serviu na localidade e eram
historicamente de ponto de passagem compartimentalizados.
no trânsito entre o Lubango e a
Entretanto, os con litos de terras com os
Damaralândia (hoje Namíbia). Desde
fazendeiros continuaram. Houve uma
1 9 97, é l i d e r a d a p e l o P a d r e P i o
disputa sobre a propriedade dos
Wakussanga. Encontra-se próxima da
terrenos, a partir de um projeto do
Tunda dos Gambos, onde se encontram
governo para tirar água da zona da
localizadas várias fazendas, tal como foi
missão para as 7 fazendas que estão do
referido no relatório da Amnistia
outro lado da estrada, em direção à
Internacional (2019). Por volta de
Tunda. Queriam ligar 3 furos na zona
2003-4, a missão começa a denunciar
para um tanque único de 60 mil metros
um problema de ocupação violenta e
cúbicos. As comunidades locais
usurpação de terras. Em 2012, começa a
revoltaram-se e convocaram uma
estiagem, e a missão visitou as
manifestação, que impediu o projeto de
comunidades para produzir um relatório
avançar. Em qualquer caso, o episódio
de forma a alertar as comunidades
re lete a pressão existente sobre os
nacional e internacional para o problema
recursos aquáticos, numa altura em que
que se estava a viver na região. Ao
a chuva é escassa.
mesmo tempo, promoveram várias
campanhas para receber donativos, H U M PATA S i t u a d o a p o u c o s
comprar moto-bombas e inanciar a quilómetros a sudoeste da cidade do
realização de furos. Desenvolveram Lubango e encostada à Serra da Chela, a
igualmente campanhas de distribuição Humpata, ao contrário de outras áreas
de sementes pelas comunidades da província severamente atingidas por
vizinhas baixa precipitação anual, permaneceu
um município relativamente húmido ao
Ao mesmo tempo, começaram a investir
longo do atual ciclo de seca. A
na questão da eco-sustentabilidade e
explicação encontra-se na sua
das energias limpas, assim como o
topogra ia e o luxo abundante de água
projeto Escola Comunidades, com o

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Canal de irrigação na Tchihanina (Humpata, Huíla) colapsado.

(tanto pluvial como subterrâneo) vindo variedade de produtos desde citrinos e


da Chela - um microclima que também morangos a laticínios e produtos de
explica porque é que as comunidades carne. Ao redor dessas fazendas,
indígenas ovanyaneka e os colonos afastando-se da estrada principal,
bôeres e portugueses exploraram a área encontramos comunidades de pequenos
para seu pastoreio e empreendimentos agricultores e pastores (ova-nyaneka,
agrícolas ao longo desde o século XIX e nganguela ou mesmo ovimbundo), que
início do século XX. Neste sentido, a vivem principalmente da venda de seus
Humpata encontra-se servida de infra- produtos e produtos no mercado local.
estruturas hidráulicas como a barragem No entanto, em 2018, o canal de
de Neves e os canais de água a céu i r r i g a ç ã o d a Tc h i h a n i n a , q u e
aberto que dela decorrem desde essa transportava a água da barragem de
época. Hoje, a estrada principal que Neves para essas comunidades rompeu
cruza o município (ligando o Lubango à devido a um episódio repentino de
província do Namibe) é povoada por inundação do leito que passava por
empreendimentos agroindustriais de baixo do canal, devido a obras realizadas
grande porte, especializados numa a montante e que desviaram sua

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

intensidade de luxo usual. A inundação menos recursos, que contavam com o


exerceu pressão excessiva sobre a canal para suas lavras onde cultivavam
infraestrutura antiga e levou ao seu milho, batata, cenoura ou couve para
colapso, causando a dispersão do luxo vender no mercado local, tiveram de
de água e a consequente interrupção da abandonar a agricultura, também devido
distribuição a jusante. Isso afetou vários à menor precipitação observada em
hectares, deixando várias comunidades 2019 e 2020. Muitos deles dirigiram os
de pastores e pequenos agricultores s e u s n e g ó c i o s p a r a o u t ro l u g a r,
repentinamente sem qualquer acesso à investindo o seu parco dinheiro de bolso
água. O luxo de água agora se espalha (até 1500 kwanzas, ou 2 euros) para
ao redor do canal quebrado e só é bom comprar outros bens e revender no
“ p a r a a s v a c a s b e b e r e m ”. S ã o mercado. Outros mudaram-se para a
aproximadamente 2.000 as pessoas cidade do Lubango à procura de de
diretamente afetadas por essa emprego, trabalhando como kupapatas
circunstância. Inversamente, o colapso ou zungando. Ao mesmo tempo, as
não afetou dramaticamente os projetos mulheres e crianças tinham de andar
agroindustriais localizados na zona, para a frente e para trás para recolher e
principalmente porque eles já transportar água “de cabeça”, uma vez
dispunham recursos infra-estruturais que não tinham condições inanceiras
necessários para a autonomia hídrica, para pagar a distribuição de água como
nomeadamente furos de água moto-cisternas.
subterrâneos construídos de forma
Entretanto, ao longo de 2020 e 2021, um
privada.
grupo de voluntários auto-organizou-se
Entretanto, enquanto a administração para reparar o canal, enquanto
local e provincial não avançavam com a aguardam a empreitada do governo.
empreitada de reparação, as populações
IMPULO O Impulo é uma comuna que
afetadas foram à procura de soluções
se encontra no município de
diferentes. Os agricultores com recursos
Quilengues, já perto da fronteira com a
inanceiros su icientes pagaram a
província de Benguela. Neste contexto,
empresas chinesas para construir seus
não costuma ser incluída no mapa da
próprios poços de água e chimpacas
“seca no Sul de Angola”. Trata-se de
para assim coletar a água da chuva ou
uma comuna cujas comunidades são na
reter a água subterrânea proveniente do
sua grande maioria agro-pastoris, de
cume da montanha a oeste. Outros
etnicidade nyaneka, mas também
recorreram a métodos mais artesanais,
existem grupos vachilengue-musso e
usando motores para bombear água de
mukuishi (ou mukwandu), sendo que
m o n t a n t e p a r a c o n t e n t o re s p a r a
estes últimos se dedicam mais à caça e
transporte. Mas os agricultores com

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recolha de frutos. Em qualquer caso, e o FRESAN, que trabalham nas áreas da


como o solo não facilita muito a água, agricultura, agro-pecuária, saúde,
agricultura, basicamente o que cultivam segurança alimentar. Concretamente,
é só para subsistência dentro do ano tem-se traduzido em campanhas de
agrícola. distribuição de cabritos, por exemplo.
Do ponto de vista governamental, o FAS
A comuna conta com aproximadamente
está presente, e encontra-se em
15 mil habitantes, mas em termos de
processo de implementação o Programa
infra-estruturas, só dispõe de 7 sistemas
Kw e n d a , p a r a a p o i o à s f a m í l i a s
de captação de água para alimentar 35
carenciadas.
aldeias dispersas pela comuna. O
sistema é reduzido, não dá resposta às Em qualquer caso, uma di iculdade
necessidades, sobretudo no que diz importante advém do problema das
respeito aos bairros que estão nas comunicações e das infra-estruturas
"altas", nas zonas mais distantes dos viárias. Quanto às comunicações, não há
leitos dos rios ("baixas"). Neste contexto, rede móvel no Impulo. A população não
a questão da água é um problema de para de gritar, mas até agora continuam
gravidade, tanto no que diz respeito ao isolados. Em 2015, a UNITEL esteve na
consumo como abeberamento e comuna a fazer estudos e determinaram
agricultura. Consequentemente, a uma localização para implantar uma
população encara a seca como uma antena. Mas até Junho de 2021, não
situação de sobrevivência, com muitas aconteceu nada. Em 2017-8, instalaram
consequências. Eles gritam por socorro. um repetidor na comuna vizinha das
Há muita fome. Outra consequência é o Cacimbas. Isso até deu algum sinal, mas
abandono escolar. Neste ano letivo de só de vez em quando ( inal da tarde ou
2021 só 35% dos alunos terminaram o cedo de manhã), e às vezes tem de se
mesmo, tanto por causa da pandemia andar quilómetros ou subir a uma árvore
como pela seca; as crianças são para apanhar sinal.
obrigadas a trabalhar em casa porque os
Quanto às estradas, normalmente estas
pais têm de sair à procura de dinheiro.
eram reabilitadas no troço Quilengues-
Encontram-se no terreno várias ONGs e Impulo, mas há 3 anos que deixaram de
entidades religiosas. Por exemplo, a IECA o fazer, e a estrada tem vindo a
ajudou a implementar furos e tanques deteriorar. Isto in luencia negativamente
subterrâneos com o sistema de o escoamento dos produtos. Há vários
calçadão. O sistema para já funciona, produtores agrícolas e criadores de
mas a população a acudir à cisterna é gado (bovino, caprino, suíno) que
muita, pelo que a água não dura. esperam resposta para as suas queixas,
Também estão presentes a World Vision, mas a mesma ainda não chegou. Isto é

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uma preocupação para a administração, Aurora Impulo, que se bene iciou de um


que também tem tentado mobilizar por programa de crédito a empresas
exemplo as autoridades tradicionais e as desenvolvido em 2014, houve muitas
igrejas para cuidar e abrir caminhos, empresas a se candidatarem para
para facilitar o transporte de pessoas e receberem esse apoio, receberam o
produtos. dinheiro e depois desmarcaram-se.
Neste sentido, muitas fazendas que se
Ao mesmo tempo, esta região tem uma
instalaram na comuna estão paradas, ao
presença empresarial e fazendeira que
ponto de muitas famílias que estavam a
não é recente. É conhecida a presença
viver nos terrenos e que tinham sido
da fazenda Babaiela (do grupo dos
deslocadas para a instalação das
Jembas), que ocupou uma porção
fazendas estão a voltar.
signi icativa das terras e forçou a
deslocação de várias comunidades.
Houve por exemplo o caso do Projeto

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CUNENE

Mapa da província do Cunene e locais visitados

O N C O C UA A s e d e d a O n c o c u a mucubais, que circulam pelo Virei até


encontra-se precisamente a 333 kms de Oncocua.
Ondjiva, tem uma extensão de 7998
A seca na região remonta a 2011. É uma
quilómetros quadrados e uma população
seca de grande extensão, que vai
aproximada de 41100 pessoas. Por causa
variando de comuna para comuna, dada
das últimas secas cíclicas houve uma
a inconstância das chuvas. Há anos que
redução da população, mas também
chove na parte Sul, e anos em que chove
algum êxodo para a Namíbia, deslocação
na parte Este. É uma situação cada vez
à procura de melhores condições de
mais difícil. Em 2021 as populações não
vida. Tem ao todo 7 etnias cá, muitas
conseguiram fazer a sementeira, e
delas transumantes. Sobretudo
circulam pela sede à procura de água e
muximbas (zona Oeste, Oncocua) e

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

Moto-cisterna estacionada num kimbo na Oncocua (Cunene)

cereal. A Administração tem recebido comunidades. O cabrito nesta zona é


algumas doações, mas não são muito competitivo, vendia-se até 55 mil
su icientes para chegar ao tempo da kwanzas a cabeça. Mas agora, com a
chuva, estamos muito longe. Estas seca e o con inamento do COVID, desce
doações tem vindo em grande parte de até aos 25 mil. É neste sentido que as
ONGs, e através da Direção Provincial de populações se tornam ainda mais
Assistência Social. A atividade principal vulneráveis.
das populações da Oncocua é
Em resposta à seca, entidades como o
sobretudo a pecuária. Aqui, o cabrito é a
FRESAN e o FAS têm intervido com a
principal "moeda comercial". Ele dá leite
construção de furos e reabilitação de
que é a principal fonte de alimentação,
represas, e com o desassoreamento e
mas também serve como moeda de
melhoramento de represas e chimpacas.
troca, para abastecer com outros
Estes projetos permitem acumular mais
produtos. Então a seca bateu logo no
reservas de água, só que ao mesmo
cabrito, obrigando à transumância, o
tempo dependem ainda das quedas
que fragilizou a alimentação das
pluviométricas. A administração da

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

Oncocua procura apelar à diversi icação Comunidades, SOS Habitat e a Open


das atividades socio-económicas, de Society relatou que 32 mil hectares de
forma a aumentar a resiliência. Em terras foram devastadas, afetando 2.130
particular, na promoção da agricultura. famílias com mais de dez mil crianças.
No entanto, dada a escassez de água
Em qualquer caso, esses
pluvial e a di iculdade de aceder à água
desenvolvimentos não redundaram
subterrânea (pelo carácter pedregoso do
numa melhoria de infra-estruturas para a
terreno), aumenta a competição pelos
população. Para além da captação de
recursos aquáticos produzem-se alguns
água para a Oncocua, outra “guerra" são
con litos entre agricultores e pastores.
as vias de transporte. Se entre a Cahama
Neste contexto, um dos pedidos mais e Otchinjau a estrada se encontra
recorrentes da parte das comunidades transitável, desde esse ponto até à
locais é a implementação urgente de Oncocua demoram-se em média 4
sistemas de captação de água, horas a percorrer 50 quilómetros. Esta
sobretudo do Rio Cunene, por canal situação di iculta a circulação de
aberto ou tubagem. Havia um projeto ou pessoas e bens - numa sede cuja
ideia de trazer água do Montenegro, a principal fonte de energia é o
50 quilómetros de distância, mas até combustível que tem de ser
agora não avançou. transportado

Como resultado tem-se observado um EROLA A zona da Erola encontra-se no


movimento migratório, tanto em direção limite geográ ico entre o Cunene e o
à Ombanja (para trabalhar nas lavras e Namibe. Embora administrativamente
na recolha do massango), como à pertença à província do Namibe, o apoio
Namíbia. Entretanto, a fronteira se social é providenciado pela
encontra encerrada devido às restrições administração da Oncocua. A maioria
impostas pelo COVID-19, o que reduz dos que cá vivem são muximba, mas
ainda mais as estratégias de também há grupos muakahonas e
sobrevivência das comunidades locais. vátuas. Para o soba Kaukumbwa, ”aqui
tem tudo mal, a nossa vida está
O município conta com algumas
comprometida". O principal é a chuva,
fazendas e projetos de mineração e
não chove aqui há 10-14 anos, menos
pedreiras. Por exemplo, foi nesta região
ainda do que na Oncocua. Para mais, o
que se instalou em 2016 o projeto de
terreno é rochoso, o que di iculta a o
a g r o - i n d ú s t r i a H o r i z o n t e 2 0 2 0,
desenvolvimento de lavras. A principal
p rovo c a n d o u m c o n l i t o c o m a s
fonte de alimentação é o leite azedo
comunidades locais pela ocupação
(omaver), sem sequer funge. Em termos
abusiva de terras. Um relatório conjunto
de plantas, tem o nombé, múcua,
publicado pela Associação Construindo

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Pastores em Erola (Namibe/Cunene)

nonhandi, nocela. Em tempos havia mel, Em altura de cerimónias costumavam


mas agora com a falta de chuva não há. sacri icar até 4-5 cabeças; mas nesta
Também recebem semente s para altura, são tão poucas as cabeças que já
agricultura, o governo dá milho, nem sacri icam nas tradições. A falta de
massango, massambala, feijão frade. chuva provoca fome no cabrito, que por
Mas como não chove, não plantam. Nos sua vez emagrece (às vezes 6-7 kilos) e
últimos anos, muitas famílias foram para perde assim valor.
o Calueque, para ver se conseguem
Em termos de problemas e soluções, as
matar a fome. O problema é que são
comunidades locais precisam sobretudo
visitas na terra dos outros.
de telecomunicações (a Erola não tem
Entretanto, com a seca perderam rede) e de uma estrada decente. Os
centenas de cabeças, e as que tem são camiões não chegam ao vale por causa
obrigados a vender a 15 mil kwanzas da mesma. Algumas vezes as
cada 25 kilos. Quando não tem seca, não comunidades juntam-se para vender os
vendem os cabritos, preferem tirar o cabritos em conjunto (por exemplo 100),
leite e come-los quando envelhecem.

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e depois comprar mantimentos para


trazer de volta para a Erola.

São estes problemas que fazem com


que os preços dos produtos aumentem.
Outra queixa importante tem a ver com
o fechamento da fronteira com a
Namíbia, por causa das restrições
a s s o c i a d a s a o C OV I D -1 9, q u e
interrompeu a tradicional travessia por
canoa. As populações precisam que a
travessia seja reaberta, para que possam
voltar a trabalhar. Muitas pessoas estão a
atravessar ilegalmente, e recentemente
um membro da comunidade faleceu na
travessia.

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NAMIBE
para fazer a estrada até
ao Virei, mas
entretanto foi
abandonada por
desentendimentos
entre o(s)
governador(es) e as
empresas de
construção. A
vegetação é mínima ou
inexistente, e não se
observam acidentes
geográ icos. Apenas se
v i s l u m b r a m
welwitschias, assim
como pequenos
arbustos espinhosos. O
município do Virei é
dos mais pobres de
Angola. Tem 39.866
habitantes para 15.092
kms quadrados. Faz
fronteira com o
To m b w a , C h i b i a ,
Gambos, Bibala,
Curoca do Cunene.
Neste quadro, a
população local,
Mapa da província do Namibe e locais visitados apesar de mista
(mucubal, mumwila,
VIREI A estrada de Moçâmedes para o kuisse), partilha
Virei (aproximadamente 130 características semelhantes,
quilómetros) começa razoavelmente nomeadamente a pastorícia e o
com algum asfalto mas à medida que nomadismo (exceto no caso dos kuisse,
vamos avançando, vai icando cada vez mais dedicados à caça e recolha).
pior até se transformar numa picada. Há
uns anos atrás, houve uma empreitada
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O município foi duramente afetado pela izeram-se 30 furos artesanais para


seca nos últimos nove anos, tendo um apoio à agricultura. E através do FAS e
impacto direto na transumância que do PIIM realizaram-se dezenas de furos
obrigou os pastores a migrar para outros novos no Virei, virados para o
lugares à procura de pasto. Isto porque abeberamento do gado, ao longo das
para a população, o gado desfruta de rotas de transumância, e também para
um estatuto social importante, equivale pequenas lavras. Muitos destes furos são
a riqueza tradicional (embora não de água salobra, o que reduz as
necessariamente económica). Neste possibilidades em termos de consumo
contexto, por exemplo, o roubo de gado humano.
é uma tradição, ligada a ritos de
De acordo com a administração local,
passagem (“quem não rouba gado não é
para 2021 está prevista a construção de
h o m e m” ) , m a s t a m b é m fo n t e d e
aldeamentos rurais para o assentamento
con litos violentos entre os diferentes
populacional, incluindo residências
grupos étnicos. A seca e consequente
típicas, feitas com material local (pau a
perda de cabeças de gado tem vindo a
pique, esterco), mas incorporando
aumentar os casos de violência inter-
sistemas de água, painéis solares e
grupal.
lavras. A proposta foi apresentada ao
No que diz respeito a respostas à seca, a Governo Provincial. A ideia é que todos
administração local apostou na os locais tenham escola, residência de
recuperação dos furos de água no professor, centro de saúde.
município, através de uma equipa local
Também receberam 50 moto-cisternas
de técnicos do Gabinete Provincial de
com capacidade para 1000 litros cada.
Infra-estruturas. Muitos já não
Estas motas são postas nas
funcionavam porque o lençol freático
comunidades, sob a tutelas dos sobas
baixou depois de nove anos de falta de
ou seculos.
chuva. Existem igualmente projetos em
colaboração com as ONGs World Vision, Por outro lado, com a tradição de
COSPE e FRESAN, que focava tanto na transumância, muitas das comunidades
questão de reabilitação de que residem numa localidade do Virei,
infraestruturas como na promoção da de um momento para outro abandonam
micro-agricultura (através da alocação tudo e vão para outro lugar. Neste
de parcelas e doação de sementes e contexto, o mucubal da Bibala pode ter
alfaias) entre as populações família do Virei, e circular entre ambas as
transumantes. Nesta zona, apesar da localidades, apesar de diferenças de
chuva escassa, o solo é de boa comportamento. Neste contexto, a
qualidade, fértil. Em 2020, no âmbito do migração di iculta o trabalho da
Programa de Apoio à Pobreza (?), administração no que diz respeito à

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criação de condições de saúde e BIBALA A A Quilemba Velha faz parte do


alimentares. Tendo em conta essa município da Bibala, província do
mobilidade, é preciso um trabalho Namibe. É uma zona afetada pela seca e
conjunto entre a as populações e as um nível elevado de desnutrição em
administrações dos municípios vizinhos crianças e adultos.
(Virei, Chibia, Bibala, Gambos).
Pela fome que assola a população desta
Há 9 anos que não chove comunidade, os habitantes locais
consistentemente no Virei. Em recorrem à raiz de uma árvore chamada
Dezembro/Janeiro 2020-1 ainda choveu mutunda (boscia polyantha). Colocam as
um pouco, mas apenas 20-30 minutos raízes num almofariz, pisam e depois vai
cada chuva, e acabou. No entanto, com para uma pedra que serve de moinho,
as águas de outras paragens, foram estendem. Fervem e tomam como se
registadas algumas enchentes nos rios fosse quissangua. Por outro lado,
intermitentes. No entanto, não há provoca algumas reações muito
esquema de retenção de águas no parecidas a um sinal de fraqueza,
município. Há 3 barragens, mas estão a tremeliques e ligeiro mal-estar. Segundo
precisar de reparação, o administrador local, na última semana
desassoreamento. Também precisam de de Abril de 2021 tiveram três crianças
inanciamento para criar sistemas de internadas por terem consumido
diques de proteção de água, e para a mutunda. O consumo desta raiz está
construção de barreiras nas margens do relacionado com situações anteriores de
rio para que a água in iltre o subsolo e fome como a de 1972 na qual os
enriqueça o lençol à volta dos rios. Neste habitantes recorreram a esta planta – é
contexto, antes da seca a população uma alternativa ancestral, todavia, o seu
costumava escavar o próprio rio para consumo faz-se com alguma
tirar água, onde também se podiam normalidade se não existir qualquer
encontrar furos artesanais. episódio de chuvas. Caso caiam algumas
chuvas como aconteceu este ano,
Outra di iculdade acrescida são as
provoca as reações acima descritas.
estradas e o seu estado lamentável. A
deslocação para a capital de província É uma árvore muito resistente que não
só pode ser feita com carros de tração, e “morre”… Além do mais, existe em
60 kms percorrem-se em duas horas. Os grandes quantidades na região, pelo que
pneus duram meses. Muitas vezes, os a fabricação de carvão não tem poupado
administradores têm de emprestar os o único recurso de que dispõem… Têm
seus carros para serviços da população. poucos bois e, por isso, di iculdades de
alimentar-se de omahini (leite azedo).
Têm algumas cabras mas não se

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alimentam do referido leite, não têm este Havendo chuvas, cultiva-se milho,
conhecimento. Têm galinhas e ovos que massambala, feijão macunde, mandioca.
os ajudam… recorrem a cogumelos, mas O que produzem dá para o sustento da
só quando há chuvas; recorrem a população por um ano, havendo boa
goiabas mas só no tempo da abundância chuva. Conseguem ter algum excedente
da mesma. Cultivam massambala, mas para vender. A alimentação varia entre o
só quando há chuvas. Também comem milho, massango, massambala. Utiliza-se
mucuio, “ igo selvagem”. Não têm ovos a massambala para fazer omacau e
porque as galinhas só põem ovos convidar gente para ajudar na lavoura (a
quando têm comida. chamada ndjuluka). Os solos permitem
uma produção sem adubos, recorre-se a
Portanto, as populações precisam de
adubos orgânicos (estrume).
apoio alimentar permanente e está-se a
tentar identi icar algumas zonas de Por outro lado, não há pomares, apenas
plantio, criando chimpacas para o uma fazenda que tem tangerineiras e
regadio. A população está muito l i m o e i ro s . N o e n t a n t o, a m e s m a
dispersa e contabilizam-se cerca de 789 encontra-se semi-abandonada e em
famílias. processo de venda.

A Bibala tem escolas, e as crianças têm CUROCA A norte do Tômbwa encontra-


participado intermitentemente nas aulas. se a Lagoa do Carvalhão - que, junto
Mas apenas uma escola tem merenda com a Lagoa dos Arcos e a Onguaia,
escolar, sumos com bolachas ou pão alimenta o Rio Curoca. Esta lagoa, de
com bolachas… Há crianças com 14 anos tamanho considerável, aparece como
que estão a aprender a ler, o nível de um vale verdejante no cenário árido do
pobreza leva a um elevado nível de Namibe. No entanto, há 7-8 anos icou
absentismo escolar, levando as crianças sem água. Não por falta de chuva -
a vender carvão na estrada. porque aqui a chuva é quase inexistente
- mas porque a água subterrânea que
Há algumas organizações a atuar na
vem do Lubango (Chibia) foi sendo cada
zona, tais como a ADPP, que está a
vez menos. Neste sentido, a vegetação
apoiar uma comunidade ao nível da sua
espinhosa que podemos observar em
estratégia de implementação de Escolas
seu redor re lete essa escassez aquática.
de Campo. Estão a pensar na
Antigamente, quando havia água, a
implantação de furos porque a
pesca (em particular, bagre) era uma
agricultura de sequeiro não está a surtir
atividade importante para o sustento das
efeitos. Mas os terrenos estão muito
famílais. Em qualquer caso, tal como a
distantes da margem dos rios.
Lagoa dos Arcos, a Lagoa do Carvalhão
continua a servir de cenário para uma

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agricultura de corte comercial, sem terra ica enlameada e o chinelo ica


chegar a níveis industriais. Existem colado no chão. A lagoa secou, por isso
vários agricultores que são oriundos de é q u e é t ã o b o a p a r a c u l t i v a r.
fora, mais concretamente de Benguela e Conseguem fazer boa produção e
da Huila. Trazem os seus próprios exportar para o Lubango, Namibe,
trabalhadores de fora para trabalhar com mesmo Luanda. O problema mesmo é a
eles. Arranjaram maneira de se instalar doença do tomate (“lagarta industrial”),
aqui arrendando os terrenos aos sobas. que di iculta. Em qualquer caso, a
Mas acabaram por “dominar”, e praticam vantagem aqui é que conseguem fazer
uma agricultura bastante intensiva. vários ciclos de produção anual, ao
Neste sentido, inicialmente isto não era contrário de outras regiões do país que
problema porque os locais (muitos deles produzem tomate sazonalmente. A rega
mucubal) praticavam pouca agricultura. é feita gota a gota, através de um furo
No entanto, assim que os fazendeiros artesanal, de 25-30 metros, com os seus
começam a ter sucesso, aparecem próprios meios.
alguns con litos, sendo que os locais
O problema desta agricultura intensiva
precisavam de mostrar que ainda eram
são as consequências a longo prazo do
donos da terra. Houve também um
terreno, através da monocultura e o uso
con lito relacionado com o gado, já que
de fertilizante, inseticida e adubo
o s l o c a i s t i n h a m a s u a zo n a d e
industrial. A terra precisa de descansar,
abeberamento, mas a mesma acabou
precisa de rotação e não monocultura
por ser invadida por fazendeiros. Assim,
intensiva. Mas os agricultores não
os animais, que tinham já o seu caminho
podem esperar.
estabelecido, atravessavam as lavras e
estragavam algumas das produções. Isto Do outro lado da lagoa, encontra-se a
levou a um novo con lito, mas entretanto povoação do Curoca. Os seus habitantes
parece que acalmou. são sobretudo de origem mucubal,
embora hoje haja mistura, por exemplo
José António , um dos fazendeiros,
nyaneka. Conversamos no jango local
oriundo do Lubango, é rendeiro na
com o soba António Manuel Kapolícia
Lagoa há sensivelmente 5 anos. Os seus
(“pequeno polícia”), que nos conta
ilhos deles continuam no Lubango a
como, nos tempos em que chovia, a
e s t u d a r e t r a b a l h a r. N a f a z e n d a
seca era normal aqui. Antes conseguiam
produzem essencialmente tomate e
compaginar o gado com o trabalho com
cebola. O tomate dá-se bem neste clima
a água do rio, cultivavam onde a água
seco e sem chuva. Aliás, diz o José
passava. Só que há anos que não chove,
António que “nunca vi chover aqui”, só
a chuva parou em 2010 e então o rio não
nevoeiro de vez em quando. Aliás, "se
traz água. Eles aproveitavam com a
chover aqui é o im do mundo”, já que a

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gente que veio fazer fazenda, para tentar muito caro. O Programa de
cultivar batata doce e milho. Só que não Repovoamento Nacional, que distribui
há motor, e então não podem fazer nada. um casal de bois à comunidade, e
A seca está mesmo grave. Estão depois eles “devolvem” reproduzindo e
parados, precisam muito de motor e distribuindo pela comunidade ainda não
material agrícola, para eles é a única chegou ao Namibe.
solução.
Tanto no Curoca como na povoação do
Entretanto, a comunidade do Curoca Umbú, os poucos criadores de gado que
pediu ajuda ao governo. O programa do sobraram foram transumar, procurar
PAM trouxe comida, mas não resolveu o capim nos Gambos, outros na Bibala, ou
problema, eles icam à espera, mas não no Camucuio (onde ainda choveu um
conseguem trabalhar, e não querem pouco). Aqui, falou-se de um Esta não é
icar dependentes de oferta de comida. a primeira seca no Curoca. Os mais
Só falta o dinheiro mesmo. velhos recordam que quando eram
miúdos, houve uma grande seca. Mas
Quanto ao ngombe (boi), tinham muitos
não tem nada a ver com o que
nas a seca tirou os bois, morreram quase
aconteceu em 2019, que foi a pior seca
todos em 2019. Algumas famílias têm 5
que eles alguma vez viveram. Em
bois, outras 2, 10 ou 20… Não receberam
qualquer caso, aqui, sem água, só cultiva
ajuda do governo, e comprar boi novo tá
quem tem dinheiro.

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BOAS PRÁTICAS

REGA DE PEQUENA LAVRA NO VIREI (NAMIBE)

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A seca não é um fenómeno de fácil resolução. Pelo contrário, tendo em conta a sua
natureza sócio-ambiental e económica, requer um conjunto de abordagens
interseccionais que sejam capazes tanto de mitigar os efeitos da seca climatológica
como de oferecer instrumentos para preservar a dignidade, autonomia e
sobrevivência das comunidades locais. Aqui, a partilha de conhecimento, em
particular no que se refere a boas práticas e soluções sustentáveis, é fundamental. O
que é que Angola pode aprender de outras regiões do globo com historiais
semelhantes de convivência com o árido, tais como o Nordeste Brasileiro ou a África
do Leste, por exemplo? Nesta secção elencamos algumas soluções que foram sendo
referidas e recolhidas ao longo da nossa pesquisa, tanto no contexto do Sudoeste de
Angola como noutros contextos africanos e globais. Tratam-se de soluções de ordem
técnico ou sócio-político, de diferentes escalas e com características de
complementaridade, podendo ser exploradas em simultâneo em diferentes contextos.

REFORESTAÇÃO
Perante cenários de crescente
deserti icação a nível global, várias
iniciativas a nível local e trans-regional têm
insistido em projetos de reforestação
como medida de combate, mitigação ou
mesmo restauração. Neste contexto,
existem duas grandes iniciativas de
referência no continente africano: o Great
Green Wall of the Sahara and the Sahel
Mapa da área de intervenção do projeto GGWSSI.
Initiative, (GGWSSI) e o Green Belt Fonte: Wikimedia Commons.
Movement, (GBM). O Great Green Wall of
the Sahara and the Sahel Initiative foi
promovido e inanciado pela União Africana em 2007, a partir da inspiração de
projetos anteriores tais como a Green Dam Initiative na Argélia ou a Great Green Wall
na China, o GGWSSI evoluiu de uma iniciativa de plantação de árvores para uma
abordagem multi-setorial integrada através da cooperação inter-regional a escala
continental (Leonardsson et al. 2021). Com resultados variáveis de país a país, a
iniciativa conseguiu em qualquer caso plantar milhões de árvores e recuperar
ecossistemas degradados em países como Nigéria e Etiópia.

Já o Green Belt Movement, (GBM) foi inaugurado na década de 1970 no Quénia pela
Prémio Nobel da Paz Wangari Maathai (1940-2011), com o objetivo de mobilizar as

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comunidades para a sua autodeterminação,


justiça, equidade, redução da pobreza e
conservação ambiental, usando as árvores
como porta de entrada para a organização
Wangari
das mulheres nas zonas rurais do Quénia Maathai
para plantar árvores, combater o em 2001.
Fonte:
desmatamento e restaurar suas principais Wilkimedia
fontes de combustível para cozinhar, gerar Commons

renda e impedir a erosão do solo. Neste


contexto, a iniciativa de Maathai incorporou
de forma interseccional a defesa e o
empoderamento das mulheres, o ecoturismo
e o desenvolvimento económico geral. A
escala da sua intervenção nas décadas que
se seguiram é tal que, em 2018, contabilizava
51 milhões de árvores plantadas em 6500 locais diferentes, envolvendo milhares de
mulheres quenianas (Zawadee, 30 de Outubro de 2018).

Em ambos os casos, a chave para o sucesso foi, em primeiro lugar, a abordagem


“micro-“ e bottom-up, desenvolvida a partir do reconhecimento dos contextos sócio-
ecológicos locais e respetivas particularidades. Um segundo fator determinante foi a
mobilização cívica e cooperação a nível local, regional e transnacional. No caso da
GGWSSI, por exemplo, até 20 países colaboram no seu desenvolvimento.

Outro exemplo relevante neste contexto é o desenvolvimento de projetos de


restauração ecológica tais como os da Fazenda Olhos D’Água na Baía, Brasil.
Originalmente proposta pelo agricultor e pesquisador suíço Ernst Grosch a partir de
uma técnica chamada agrossilvicultura biodinâmica ou agricultura sintrópica,
através da qual se restauram índices de humidade e biomassa no solo como ponto de
partida para a restauração lorestal, a abordagem conseguiu reverter o processo de
deserti icação na região. Neste caso, destaca-se a importância do cruzamento do
conhecimento técnico e cientí ico com uma mobilização social pelo combate à
deserti icação. Este é um exemplo de um movimento conhecido em inglês como
greening the desert (tornando o deserto verde), assente numa gestão holística e
integrada de conhecimentos e técnicas de reversão da deserti icação (ver Savory
1991).

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Modelo de gestão de recursos holístico proposto por Allan Savory (1991)

MICRO-GESTÃO HÍDRICA
Para além de iniciativas de reforestação, outra metodologia de combate à seca advém
da gestão inteligente de recursos hídricos, tanto ao nível de retenção e
armazenamento de água disponível (ver em baixo) como de aproveitamento de água
pluvial e humidade atmosférica em regiões com essa característica climática. Neste
contexto, existem soluções tanto ao nível macro (barragens, sistemas de
transferência, etc.) como ao nível micro.

Ao nível micro, existem vários projetos que permitem uma gestão hídrica mais efetiva,
sobretudo no que diz respeito à prática de agricultura e ao consumo individual. Por
exemplo, tecnologias de irrigação gota-a-gota, dessalinização por osmose reversa e
tratamento de águas residuais. No caso da irrigação gota-a-gota, trata-se de uma
prática generalizada, tanto ao nível de agricultura industrial como de lavras de escala
mais familiar.

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SECA EM ANGOLA (2020-2021)

Quanto à dessalinização, é
necessariamente uma técnica
adaptada a regiões costeiras (no
caso do Sudoeste angolano, seria o
Namibe). Por exemplo, em países
como C abo Verde, cujo
arquipélago lida ciclicamente com
períodos de insu iciência ou crise
hídrica, a dessalinização é usada há
décadas, e permite que várias das Estação de dessalinização em Cabo Verde. Fonte: DW / V.
Teixeira.
suas ilhas tenham acesso a água
para consumo, por exemplo. Apesar
do ainda relativamente alto custo da tecnologia (com tendência a descer nas próximas
décadas), trata-se de uma solução de alto impacto no que diz respeito ao combate ao
stress hídrico em regiões de aridez tradicional tais como a Austrália ou Califórnia
(Robbins 2019), em particular tendo em vista o consumo humano/animal e o
desenvolvimento agrário. Acresce que se trata de uma indústria que pode ser
desenvolvida com recursos a energias renováveis. Finalmente, trata-se de uma
tecnologia assente numa lógica de utilização racional da água, o que por sua vez
poderá aumentar o nível de consciencialização e envolvimento/participação das
comunidades locais. Finalmente, o tratamento de águas residuais incorpora a
perspetiva de utilização racional de água através da sua reciclagem e reutilização. Em
áreas de irregularidade ou escassez pluvial, terá o potencial de suprir necessidades
imediatas em termos de irrigação ou abeberamento animal, por exemplo.

Por outro lado, tendo em conta a sua complexidade material e infra-estrutural, estas
últimas duas propostas incorporam limitações temporais e geográ icas terão maior
possibilidade de sucesso se desenvolvidas em contexto urbano ou peri-urbano (e no
caso da dessalinização, costeiro). Neste contexto, não resolve problemas imediatos de
acesso à água em zonas interiores e rurais.

AGROECOLOGIA
Num contexto em que a pastorícia tradicional está cada vez mais posta em causa
como modo de vida, existe uma pressão constante da parte de entidades públicas e
do desenvolvimento para a “conversão” das comunidades locais a modos de vida mais
sedentários, nomeadamente a agricultura. Embora muitas comunidades locais já
adotem sistemas mistos agro-pastoris, outras comunidades mantém o seu estilo de

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vida nomádico ou transumante. Neste contexto, a agro-ecologia surge como um


princípio ou ideologia que, partindo do reconhecimento dos agro-ecossistemas como
biomas, ou unidades complexas e simbióticas, procura oferecer soluções integradas e
participadas para tirar o maior proveito possível dos recursos ambientais mantendo o
equilíbrio dos mesmos. Neste contexto, a agroecologia baseia-se na aplicação de
princípios que combinam valores ecológicos e sociais, cuja aplicação é adaptada a
diferentes contextos socioecológicos e também a diferentes escalas, desde o micro
para autoconsumo até à grande escala, incluindo a gestão da paisagem. A
agroecologia tem como princípio fundamental a diversi icação biológica, a partir da
qual restabelece e fortalece as funções ecológicas que mantêm a resiliência ecológica
e social dos sistemas produtivos.

O princípio da agroecologia tem sido


experimentado em vários contextos a
nível global. Por exemplo, em 2020 a
União Europeia inanciou projetos de
investigação neste domínio no âmbito
do programa Horizon 2020 (Societal
Cahllenge 2), no valor de €236 milhões.
Mas um exemplo concreto de sucesso
vem da Índia, onde estado de Sikkim
(nos Himalaias) transitou para uma Projeto agroecológico em Sikkim (Índia). Fonte:
aseed.net
produção 100% orgânica após adotar
um modelo agroecológico, livre de
pesticidas e assente na agrobiodiversidade (ver Meek e Anderson 2020). Também
existem exemplos no continente africano. Por exemplo, o projeto de desenvolvimento
rural Keita, no Níger, começou na década de 1980 e demorou cerca de 20 anos para
restaurar o equilíbrio ecológico e melhorar drasticamente a economia agrária da
região, fortemente afetada por processos de deserti icação. Nesse período, foram
plantadas 18 milhões de árvores, a superfície sob os bosques aumentou 300 por
cento, enquanto as estepes arbustivas e as dunas de areia diminuíram 30 por cento.
Ao mesmo tempo, as terras agrícolas foram expandidas em cerca de 80%. Em toda a
região, vários projetos usaram soluções agroecológicas para restaurar as terras
degradadas e fazer um uso racional dos escassos recursos hídricos, ao mesmo tempo
em que aumentam a produção de alimentos e melhoram os meios de subsistência e a
resiliência dos agricultores (Mousseau 2015).

Na Missão de Santo António dos Gambos, existe um projeto em desenvolvimento que


incorpora uma vertente agroecológica, assente na educação pela biodiversidade. Uma

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vez mais, o ponto chave é a integração dos saberes tradicionais e o conhecimento


técnico-cientí ico de forma a reconhecer as características ambientais especí icas e a
relação simbiótica entre os diferentes elementos que compõem o ecossistema vivo.

PARTICIPAÇÃO

Exemplo de Escola de Campo no Sul de Angola. Fonte: FRESAN

Vários projetos de intervenção têm insistido numa vertente participatória com


resultados positivos, em particular no que diz respeito ao envolvimento das
comunidades no desenho e desenvolvimento de soluções locais. O caso descrito
acima das cisternas-calçadão promovidas pela ADRA e a NCA assenta, como vimos,
num modelo de pedagogia e participação que permite aos próprios kimbos gerir e
levar a cabo a manutenção da infra-estrutura. Isto foi possível graças a uma pedagogia
e um diálogo com as comunidades locais, de forma a instruir a população na sua
gestão e manutenção, e tornar os kimbos responsáveis e primeiros bene iciários dos
projetos. As próprias comunidades participaram na construção das cisternas.

Outro exemplo desta lógica participatória tem sido desenvolvida pela própria FAO nas
últimas décadas, com a implementação das Farmer Field Schools (em português,
Escolas de Campo). Esta abordagem começou por ser desenvolvida no Sudeste
Asiático como alternativa à abordagem top-down da Revolução Verde, que falhou na
consideração da complexidade local dos problemas agrários, tais como surtos de
pragas induzidos por pesticidas. Em resposta, o projeto Farmer Field Schools propõe a
organização de equipas locais (grupos de 20-25 agricultores), que se reúnem
regularmente no local sob a orientação de um facilitador treinado para analisar e
iscalizar as lavras e comparar resultados, de forma a iden iticar as “melhores práticas”
a nível local. Essa análise inclui a observação de elementos-chave do agro-

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ecossistema, medindo o desenvolvimento das plantas, recolhendo amostras de


insetos, ervas daninhas e plantas doentes, comparando características de diferentes
solos, etc.

As Escolas da Campo estão igualmente a ser implementadas no sul de Angola através


do programa FRESAN para o fortalecimento da resiliência e segurança alimentar. Estão
a ser edi icadas em áreas onde a actividade agrícola está subdesenvolvida devido à
estiagem, de modo a fomentar a produção hortícola e ajudar as comunidades a
desenvolverem técnicas cientí icas de produção, através da formação de técnicos
locais em boas práticas agrícolas. Por exemplo, até Outubro de 2021, foram
implementadas na província do Cunene 74 escolas de campo , bene iciando cerca de
duas mil e 500 famílias camponesas da província do Cunene foram inseridas, nos
últimos 10 meses, em 74 escolas de campo.

A grande vantagem destas iniciativas é a comunicação, diálogo e envolvimento das


comunidades locais no desenho e implementação de projetos de resposta à seca,
garantindo um processo mais equitativo.

DEMOCRATIZAÇÃO DAS INFRA-ESTUTURAS


Tal como referido acima, a dimensão infra-estrutural assume um papel central no que
diz respeito à produção de situações de seca entre as comunidades locais. Neste
contexto, referimo-nos tanto à infra-
estrutura hídrica (sistemas de recolha e
distribuição de água, seja para consumo
ou lavoura) como viária e comunicacional.
Neste contexto, o acesso democratizado a
essas infra-estruturas é decisivo não só
para o combate à deserti icação como
para o desenvolvimento da autonomia e
resiliência local. Aqui, levanta-se a questão
da manutenção, reciclagem ou
reparação de infra-estruturas existentes,
e do envolvimento das comunidades
Amuna no Perú. Fonte: wetlands.org
locais no processo. Em Angola, devido ao
excessivo centralismo da governação, esta
realidade é inexistente. Ao mesmo tempo, a demora ou inexistência da manutenção
infra-estrutural cria ou incrementa situações de desigualdade e discriminação.

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Neste contexto, uma política infra-estrutural que assente no conhecimento e nas


práticas locais poderá reduzir situações de desigualdade. Aqui, referimo-nos tanto ao
desenho de estruturas de circulação e comunicação que re litam e sirvam as práticas
locais, como ao aproveitamento de tecnologias - como sejam por exemplo técnicas de
recolha e transferência de água - que “façam sentido” às mesmas.

Um exemplo relevante neste contexto é o das chamadas amunas no Perú. As amunas


são sistemas de “colheita” e retenção de água de origem pré-incaica, através da
recolha de água pluvial e respetiva canalização, assentes no conhecimento das
propriedades aquíferas e geológicas da paisagem local. Com estes sistemas, as
comunidades locais conseguiam armazenar a água da temporada das chuvas para o
seu uso na estação seca. Apesar da sua antiguidade, a recuperação e uso comunal
destes sistemas tem sido citado por vários autores como exemplo tanto de “solução
nature-based” (Ribeiro 2021) como de “sistema hidrogeoético” (ver por exemplo
Martos-Rosillo et al. 2021), isto é, de estudo e uso ético do conhecimento
hidrogeológico.

CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Tal como referido no último relatório sobre a seca em 2021 da Global Assessment
Report on Disaster Risk Reduction (GAR 2021), a pesquisa e monitorização climática, e
respetivos sistemas de early warning, é fundamental para evitar ou mitigar as
consequências ambientais e humanas dos ciclos de aridez (Tartari 2021). Neste
contexto, por exemplo, a tecnologia de satélites é um grande aliado no que se refere à
monitoria de mudanças climáticas, permitindo disponibilizar informação em tempo
real para a tomada de decisão em cenários de desastres naturais e crises climáticas.
Igualmente, a recolha sistematizada de dados quantitativos a nível ambiental,
geográ ico e meteorológico permite a tomada de decisões de forma sustentada. Do
mesmo modo, a compreensão dos desenvolvimentos históricos e aspetos sócio-
culturais permite compreender melhor a reação das populações à seca e o seu
acolhimento aos programas de resposta. A questão fulcral é a interlocução e sinergia
entre investigadores e decisores

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AVALIAÇÃO E
RECOMENDAÇÕES

PAISAGEM PERTO DE MOÇÂMEDES (NAMIBE)


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Nesta secção apresentamos de forma sintética as principais conclusões do relatório,


sob a forma de principais problemas identi icados, e principais recomendações
elaboradas a partir do feedback recebido no terreno e as pesquisas bibliográ icas
decorrentes do mesmo.

PROBLEMAS IDENTIFICADOS

• Para além da situação de seca pela ACC no Curoca do Cunene e em


meteorológica, há uma dimensão Typeyo nos Gambos. Também não são
infra-estrutural que está a causar conhecidas compensações efectivas
situações de seca localizadas a partir às comunidades locais pelo uso das
da ação ou omissão humana, seja pela suas terras tradicionais.
insu iciência, a degradação ou a
inexistência das infra-estruturas
•A resposta governamental, através
dos seus vários programas e
atualmente existentes: estradas,
iniciativas, tem focado na assistência
energia, redes de comunicação,
imediata e em projetos infra-
canais, etc. Isto foi evidente em
estruturais de longa duração. No
comunidades como Tytongotongo
entanto, a mesma é demorada,
nos Gambos, cujo único eixo e
fragmentada, parcial e em alguns
circulação se encontra praticamente
casos redundante, causando
intransitável. Uma situação
insu iciências na abordagem. Muitos
semelhante veri ica-se na sede da
dos programas emergenciais e
Oncocua, sem cobertura de rede
estruturais surgem por iniciativa
móvel e com eixos viários em
presidencial e propõem respostas
péssimas condições que complicam o
generalizadas em vez de localizadas,
acesso a bens e recursos ou o
sendo implementadas a partir de
escoamento de produção.
tomadas de decisão sem conhecer a
• Igualmente, a crescente aposta em realidade do terreno. Os programas
projetos agro-industriais veri icada de combate à pobreza (do FAS ao
nos últimos anos está a intensi icar a PIDLCP) multiplicam-se e sobrepõem-
pressão sobre o solo e respetivos se. Instrumentos como o PIIM,
recursos hídricos, e a impedir ou vocacionado para intervenções infra-
di icultar as tradicionais rotas de estruturais, encontra-se infra-utilizado
circulação pastorícia. Estas situações no que diz respeito ao combate à
foram identi icadas pela Amnistia seca.
Internacional na Tunda dos Gambos, e

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• Igualmente, a excessiva •A resposta por parte das ONGs e


centralização da operacionalização organizações de ajuda e
inanceira e material da resposta desenvolvimento tem resolvido
di iculta a sua execução, tornando-a vários problemas locais, mas observa-
demorada e sujeit a a agendas se a falta de diálogo e partilha de
políticas na capital, em vez de ser conhecimento entre as diferentes
desenhada e trabalhada a partir das organizações e entidades no terreno,
necessidades locais. As em particular no que diz respeito ao
administrações locais não dispõem de reaproveitamento de respostas bem
autonomia inanceira e jurídica sucedidas em campanhas anteriores.
su iciente para poder dar respostas Muitas comunidades não
em tempo útil. compreendem porque é que alguns

• Ainda a nível infra-estrutural, a


apoios úteis (tais como a distribuição
de animais ou alfaia agrícola) foram
resposta governamental tem incidido
interrompidos ou cancelados. Falta
sobre novos macro-projetos,
um enquadramento geral que permita
nomeadamente em torno do Rio
aproveitar boas práticas e evitar
Cunene. Esta resposta promete
redundância.
resolver vários problemas de
abastecimento. No entanto, são • Ve r i i c a - s e
em muitos casos a
projetos de longo prazo e de insu iciente auscultação e
conclusão imprevisível, protelando envolvimento das comunidades
soluções mais imediatas e localizadas. locais, em particular em relação ao
Ao mesmo tempo, incidem na nova desenho de soluções práticas tais
construção em vez de aproveitar as como a instalação e manutenção de
infra-estruturas hídricas existentes furos de água e o desenvolvimento de
(barragens, canalizações), muitas lavras, em particular tendo em
oriundas do tempo colonial, e em consideração a diversidade sócio-
torno às quais as populações se cultural e étnica existente nesta
organizaram ao longo de décadas. É o região. Por exemplo, a sedentarização
caso, por exemplo, da Barragem das das comunidades em torno de
Neves e respetivos canais de irrigação projetos agrários, embora útil do
na Humpata, ou da Hidroelétrica da ponto de vista do aumento da
Matala - que, após uma intervenção resiliência, não se coaduna com o
incompleta entre 2011 e 2013, perdeu estilo de vida de muitas das
a capacidade de retenção de água e comunidades.
distribuição pela comuna.
•A comunidade cientí ica (desde a
meteorologia à geogra ia,

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a n t ro p o l o g i a s o c i a l ) m o s t r a - s e programa cientí ico Cunene: Das


disponível para contribuir, no entanto Secas às Cheias, que congregou em
não há sistematização e cruzamento 2020 especialistas nacionais e
de dados cientí icos com os projetos i n t e r n a c i o n a i s d e v á r i a s á re a s
desenvolvidos no terreno. Existe cientí icas, mas que até agora não
portanto um sub-aproveitamento produziu as necessárias sinergias com
desses recursos. Um exemplo é o os atores no terreno.

RECOMENDAÇÕES

• Descentralização na tomada de sócio-históricas, culturais e


decisões, e atribuição de maior ambientais de cada área afetada.
autonomia de execução nas
autoridades locais.
• Mais circulação de conhecimento
entre os diferentes atores no terreno,
• Maior diálogo e sinergia entre os em particular no que diz respeito a
agentes envolvidos, através de um boas práticas que efetivamente
enquadramento comum das acções, resolveram problemas a nível local.
por exemplo sob a forma de “portal”
ou “observatório”.
• Maior a p rove i t a m e n t o d e b o a s
práticas na resposta à seca, tanto a
• Uma abordagem integrada à questão nível nacional como internacional.
das terras e uso dos recursos
ambientais, tanto em termos de
• Ênfase no investimento nas infra-
estruturas viárias, energéticas e de
conformidade com a legislação
comunicação, tanto em termos de
existente, como de respeito pelas
aproveitamento das infra-estruturas
práticas e estratégias das
existentes como de construção de
comunidades locais - em particular no
novas infra-estruturas nas áreas mais
que se refere à transumância.
remotas.
• Maior ênfase no conhecimento local, • Incorporação de uma lógica de
não só em termos de práticas
democraticidade e justiça ambiental,
tradicionais e conhecimento sócio-
desenhando e desenvolvendo
ambiental, como também de co-
projetos primariamente a partir do
autoria de soluçõe s, de forma
respeito pela dignidade da vida
participada, a partir do
humana e da preocupação pela
reconhecimento das particularidades
diversidade ambiental.

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