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Pode confiar: a economia compartilhada ganha força


no Brasil
Como o Uber e serviços similares incentivam transações entre desconhecidos sem intermediários (e
deixam os intermediários bem chateados)

26.1.2015 | JACQUELINE LAFLOUFA

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(FOTO: GUILHERME HENRIQUE)

Duas vezes por ano, um movimento migratório de grandes proporções acontece no Brasil. É que,
todo início de semestre, milhares de jovens calouros trocam o conforto da casa da família no
interior por um beliche mofado nas repúblicas universitárias das grandes cidades. Só que esses
jovens calouros precisam voltar para casa em algum momento — e se agora a classe C já
consegue viajar de avião, a maioria dos universitários brasileiros ainda não pode se dar ao luxo de
fazer uma viagem intermunicipal em ônibus executivo (aquele com wi-fi meia-boca e bolacha
salgada à vontade). A solução geralmente é pegar carona com o conhecido de um amigo que
quer rachar a gasolina. Mas como saber se o conhecido do seu amigo vai para casa no fim de
semana? E se ele não for confiável? E se você não tiver amigos?

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Para resolver todos esses problemas, um grupo de estudantes da Universidade Estadual de


Campinas criou ainda em 2007 o CaronasUnicamp, um site que permitia que os alunos se
conhecessem, combinassem pontos de encontro e avaliassem o desempenho dos colegas
motoristas. “Começamos com uma universidade e, com o tempo, adicionamos outras”, conta
Guilherme Souza, um dos fundadores. O site, hoje chamado de Unicaronas, foi um dos pioneiros
no Brasil de um movimento que depois ficou conhecido como economia compartilhada — e que
parece ser fruto de uma mudança comportamental da geração Y. “É uma outra cultura, em que as
pessoas são incentivadas a ganhar e economizar dinheiro utilizando coisas que elas já possuem”,
diz Rachel Botsman, autora do livro O que É Meu É Seu – Como o Consumo Colaborativo Vai Mudar
o Nosso Mundo.

O grande expoente desse novo modelo econômico é o aplicativo norte-americano Uber, que
estreou no Brasil em junho e abriu um escritório em São Paulo há três meses. O Uber apresenta
motoristas a usuários que desejam fazer um determinado trajeto de carro e fica com 20% do
dinheiro cobrado pelo dono do veículo. Mas outros setores também começam a apostar nos
serviços de compartilhamento. No já famoso site Airbnb, é possível alugar um quarto, uma casa
ou mesmo um castelo; no Bliive, você usa seu tempo livre para dar aula sobre um assunto que
domina e, em troca, recebe aulas sobre um tema que é do seu interesse; no ParkingAki, você pode
alugar sua vaga de estacionamento caso não tenha carro em casa.
Nessa economia colaborativa, ganha mais quem é mais confiável. Rachel acredita que a
confiança virtual está acontecendo em ondas: a primeira foi quando passamos a compartilhar
informações online, a segunda no momento em que começamos a oferecer nossos cartões de
crédito na rede, e agora estamos presenciando o surgimento de uma terceira onda: estamos
dispostos a fazer conexões com estranhos para compartilhar nossas coisas, produtos e serviços.
“Em 2008, deixar desconhecidos ficarem na sua casa parecia uma ideia maluca. Só agora as
pessoas estão compreendendo que a tecnologia tem o poder de ‘destravar’ o potencial ocioso de
várias coisas, desde habilidades e espaços até bens materiais, de um jeito que não era possível
antes”, explica Rachel.

(FOTO: GUILHERME HENRIQUE)

CONFIE EM SI MESMO
Cada resenha favorável dá ao usuário uma maior “carta de crédito de confiança” nos sites de
compartilhamento. Quanto melhor você se portar, mais chances terá de ser aceito ou escolhido
para uma determinada transação na cultura do compartilhamento. “Enquanto viajei pela Europa,
precisava ter uma abordagem que convencesse as pessoas a me receber nas suas casas”, conta
Karen Mileris, 26 anos, sobre a experiência com o Couchsurfing em um mochilão pela Europa. No
site, as pessoas emprestam um sofá para alguém passar a noite, de graça. O “pagamento” fica em
troca da companhia. “Valeu a pena, o meu turismo foi completamente diferente, muito mais local,
indo onde as pessoas da cidade realmente vão”, ela diz.

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Essas trocas, usos compartilhados ou “locações” dos mais diversos itens acabaram recebendo
um empurrãozinho extra para deslanchar: a crise do sistema financeiro. “A posse de algumas
coisas ficou mais distante das pessoas”, diz Marcelo Coutinho, doutor em sociologia e professor
da FGV. “Mas também há a conscientização de que a posse de um bem de consumo, que muitas
vezes fica ocioso, tem um impacto ambiental. E uma das maneiras de reduzir esse impacto é
aumentar a utilização, ou reduzir o ócio, desses bens.”

A economia compartilhada resulta em uma série de mudanças no modo como a sociedade opera.
Surgem novos modelos de renda e emprego através da prestação de serviços sob demanda,
diminui o consumo e aumenta a variedade de produtos disponíveis. Há quem diga até que
aplicativos como o Uber e o Unicaronas colaboram para melhorar o trânsito, já que teoricamente
diminuem o número de veículos em circulação. Mesmo assim, algumas pessoas não estão
satisfeitas. Coincidência ou não (provavelmente não), muitas delas são justamente as mesmas
que estão perdendo dinheiro.
(FOTO: GUILHERME HENRIQUE)

FORA DA LEI
O Uber enfrenta dificuldades legais desde que chegou ao Brasil. Em algumas cidades, as
prefeituras determinaram que os serviços de caronas eram ilegais porque os motoristas não
possuíam as credenciais exigidas pelos municípios para transportar terceiros, como a checagem
de antecedentes criminais ou seguro do veículo. Associações como o Cofeci-Creci, que regula o
setor imobiliário, também questionam as práticas do Airbnb. “A intermediação de locação, mesmo
que para temporada, interfere nas prerrogativas legais dos corretores de imóveis, e pode ser
autuada como exercício ilegal da profissão”, diz João Teodoro, presidente do Cofeci-Creci.

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“Há uma disputa entre diferentes organizações e associações nacionais contra as startups. E as
agências reguladoras, responsáveis pela criação de normas para determinadas atividades
econômicas, estão no meio deste cabo de guerra”, afirma Rafael Zanatta, pesquisador do Núcleo
de Direito, Internet e Sociedade da Universidade de São Paulo. Assim como a locação via Airbnb,
caronas que incluem a divisão das despesas de viagem também são consideradas ilegais.
“Quando a carona é paga, torna-se um transporte remunerado sem o devido licenciamento”, de
acordo com a secretaria municipal de transportes do Rio de Janeiro.

No Brasil, o Uber contornou o problema ao conectar os passageiros apenas com motoristas


profissionais, que possuem o próprio carro regulamentado ou que trabalham para empresas de
transporte. “Todos precisam ter um seguro que inclua os passageiros, além de uma autorização
para usar o veículo para fins comerciais”, esclareceu a empresa à GALILEU. “Além disso, todos
passam por um rigoroso processo de checagem de antecedentes criminais, bem como das
condições do veículo.”

Como tudo funciona na base de combinações entre as partes, desencontros podem acontecer e,
caso um acordo não seja alcançado, fica complicado acionar instâncias regulatórias, como o
Procon, por exemplo. “Quando fiquei em uma casa em Bolonha, na Itália, fui fazer meu jantar e
acabei apoiando uma frigideira quente em um balcão, estragando o móvel. A dona da casa me
cobrou 200 euros pelo conserto. Achei caro, mas paguei”, conta Cláudia Alves, 26 anos, sobre
uma estadia feita via Airbnb que deu um tremendo prejuízo.

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Apesar das frigideiras no caminho, as pessoas de fato se mostram cada vez mais dispostas a
fazer negócios com desconhecidos. Agora, cabe ao governo e às entidades reguladoras descobrir
qual é o papel deles nessa economia pautada pelo compartilhamento, diz Rafael Zanatta: “É
preciso evitar o maniqueísmo. Não se trata de identificar os ‘bonzinhos’ e os ‘malvados’ da
história, mas de compreender como essas tecnologias podem ser utilizadas para avançar o bem
comum e desencadear uma economia colaborativa”.

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