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JUNTOS
RESISTIR À UBERIZAÇÃO DO MUNDO
É preciso ressaltar que esses dois fenômenos estão entrelaçados e que o pano de fundo
do evangelho da inovação não é mais reluzente. Ilustração em Barcelona: como muitas
das instituições culturais espanholas, um clube de stand-up, o Teatreneu, sofria com
uma diminuição da frequência desde que o governo, procurando desesperadamente
cobrir suas necessidades de financiamento, tinha decidido aumentar a taxa sobre a
venda dos ingressos de 8% para 21%. Os administradores do Teatreneu encontraram
então uma solução engenhosa: fazendo uma parceria com a agência de publicidade
Cyranos McCann, eles equiparam a parte de trás de cada poltrona com um tablet de
última geração capaz de analisar as expressões faciais. Com esse novo modelo, os
espectadores podem entrar “gratuitamente”, mas devem pagar 30 centavos a cada risada
reconhecida pelo tablet – a tarifa mínima é fixada em 24 euros (ou seja, 80 risadas) por
espetáculo. De súbito, a média do ingresso subiu 6 euros. Um aplicativo de celular
facilita o pagamento. Em outras palavras, você pode compartilhar com seus amigos suas
próprias selfies gargalhando.
Sem dúvida há muito dinheiro para ganhar ao “transformar” as moedas. Seria isso
realmente desejável? O dinheiro líquido, que não deixa rastros, representa uma barreira
significativa entre o cliente e o mercado. A maioria das transações efetuadas com a
moeda em papel é singular, no sentido de que elas não se ligam entre si. Quando
pagamos com o telefone celular, produzimos um rastro que os publicitários e outras
empresas podem explorar.
Não é por acaso que uma companhia publicitária está na origem da experiência de
Barcelona: a gravação de cada transação é um bom meio de recuperar os dados que
servirão para personalizar as publicidades. Isso significa que nenhuma de nossas
transações eletrônicas realmente termina: os dados que elas geram permitem não apenas
seguir nossos rastros, mas também estabelecer uma ligação entre atividades que talvez
preferíssemos que permanecessem separadas. De repente, seu momento de gargalhadas
em um clube de stand-up se aproxima dos livros que você comprou, dos sites que você
frequentou, das viagens que você fez, das calorias que você consumiu. Em suma, com
as novas tecnologias, todos os seus atos e gestos se integram em um perfil único,
monetizável e otimizável.
Ainda que essa transformação passe pela tecnologia, suas origens se encontram em
outro lugar. Favorecida pelas crises políticas e econômicas, ela terá uma profunda
incidência sobre nosso modo de vida e nossas relações sociais. Parece difícil preservar
valores como a solidariedade em um ambiente tecnológico fundado nas experiências
personalizadas, individuais e únicas. O Vale do Silício não mente: nossa vida cotidiana
se encontra muito bem transformada; mas por forças bem mais desonestas do que a
digitalização e a conectividade. O fetiche da inovação não deve servir de pretexto para
nos fazer pagar os custos das recentes turbulências econômicas e políticas.
Este se inscreve na continuidade das start-ups mais modestas que tornam seus dados
acessíveis aos urbanistas e às municipalidades, e ficam felizes em afirmar que com essas
informações o planejamento urbano se tornará mais empírico, participativo e inovador.
Em 2014, a Secretaria de Transportes Públicos do Oregon fechou um acordo com a
Strava (aplicativo para smartphone muito popular que acompanha os movimentos de
corredores e ciclistas) e pagou uma grande soma para ter acesso aos dados que diziam
respeito aos itinerários empregados pelos ciclistas usuários do aplicativo, com o
objetivo de melhorar as ciclovias e conceber trajetos alternativos.
O fato de que o Uber apareça como uma reserva de dados indispensáveis aos urbanistas
está completamente de acordo com a ideologia solucionista do Vale do Silício, que
consiste em resolver na urgência pelo caminho digital problemas que não são colocados,
não nesses termos. Como as empresas de tecnologia monopolizaram um dos mais
preciosos recursos atuais, os dados, elas passaram à frente das municipalidades, tão
desprovidas de dinheiro quanto de imaginação, e podem posar de salvadoras
benevolentes dos gentis burocratas que povoam as administrações.
O problema é que as cidades que se aliam ao Uber correm o risco de desenvolver uma
dependência excessiva de seus fluxos de dados. Por que aceitar que a empresa se torne o
único intermediário nessa matéria? Em vez de deixá-la aspirar à totalidade das
informações relativas aos deslocamentos, as cidades deveriam procurar obter esses
dados por si próprias. Em seguida, elas poderiam autorizar as empresas a utilizá-los para
introduzir seu serviço. Se o Uber se mostra eficiente, é porque controla a fonte de
produção dos dados: nossos telefones lhe dizem tudo o que precisa saber para planejar
um itinerário. Mas, se as cidades tomassem o controle desses dados, a empresa, que não
possui quase nenhum ativo, não atingiria os US$ 40 bilhões de seu valor atual. Podemos
duvidar que seja tão custoso conceber um algoritmo capaz de relacionar oferta e
demanda… Sem dúvida, sob a pressão das companhias de táxi, cidades como Nova
York e Chicago parecem enfim ter compreendido que era preciso reagir: tanto uma
como a outra tentam lançar um aplicativo centralizado, capaz de enviar táxis
tradicionais com a eficiência do Uber. Além de impedir a dominação deste, o programa
impedirá que os dados relativos aos itinerários se tornem uma mercadoria cara – a qual
as cidades devem comprar.
O verdadeiro desafio, porém, consiste em saber como fazer funcionar esses aplicativos
com outros meios de transporte. A visão do Uber agora aparece claramente: você lança
o aplicativo no seu telefone e um carro vem te buscar. Dizer que isso não traduz uma
imaginação transbordante seria muito abaixo da realidade. Essa abordagem funciona
nos Estados Unidos, onde ninguém mais anda a pé e os transportes públicos são, na
maior parte do tempo, inexistentes. Mas por que esse modelo deveria ser utilizado no
resto do mundo? Não é porque caminhar não traz dinheiro para o Uber que deve ser
excluído como meio de transporte. A crítica do solucionismo se aplica aqui
perfeitamente: não apenas este dá uma definição muito estreita dos problemas sociais,
mas geralmente o faz em termos que beneficiam antes de tudo os que conceberam a
“solução”.
Imagine que o aplicativo desenvolvido por seu município pudesse informar todas as
possibilidades de transporte das quais você dispõe (excluindo o Uber): você poderia
usar a bicicleta que te espera na esquina, subir em um micro-ônibus cujo itinerário seria
adaptado ao seu destino e ao dos outros passageiros, depois andar o resto do trajeto para
saborear os charmes da feira de rua do bairro. Algumas cidades já lançaram projetos
desse tipo. Helsinki, em colaboração com a start-up Ajelo, criou o Kutsuplus, intrigante
cruzamento do Uber com um sistema de transporte público tradicional. Os passageiros
pedem uma van em seu telefone, e o aplicativo calcula o melhor meio de conduzir todo
mundo ao destino, com base em dados em tempo real. Ele também dá uma estimativa
do tempo de trajeto, tanto com o Kutsuplus quanto com outros modos de transporte.
A parceria entre o Uber e a cidade de Boston levanta, entre outras, uma questão política:
podemos autorizar o Uber a “possuir” os dados de seus clientes, para que utilize como
um trunfo em suas negociações com os municípios ou para que queira simplesmente
vendê-los a quem oferecer mais? O Uber, sem realmente ter levantado a questão a quem
quer que fosse, respondeu afirmativamente. Como Google e Facebook tinham feito
antes.
Não é porque ele vem da Califórnia, região conhecida pela péssima qualidade de seus
transportes públicos, que devemos acreditar que os veículos individuais motorizados são
o futuro dos transportes. É infelizmente o que poderia acontecer por causa da
diminuição dos investimentos em infraestruturas públicas. Mas, desse modo, a solução
seria restabelecê-los e, para isso, combater as políticas de cortes orçamentários.