Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ii
me esforço por construir é uma
história”
J a c q u e s L e G o ff
iii
A G R A D E C I M E N TO S
iv
sobre o Partido Comunista, havia entrevistado o mineiro Anélio Marques
e, por isso, também já havia percorrido os labirintos de ouro.
Com esses mestres e meu “avô”, descobri que a escrita da
História, antes de tudo, tem que ser livre. Meu muito obrigado também à
Beatriz Ricardina Magalhães, in memorian, por ter me ensinado as
“maneiras de fazer” e as “astúcias” do cotidiano, lá e cá; à Betânia
Gonçalves Figueiredo, leitora atenta, pelas sugestões.
Às amigas Júnia Salles e Rita Lages, por terem estado sempre ao
meu lado nesta caminhada por uma história militante! À Rosaly Senra, que
editou o depoimento do Sr Waldir de maneira super jornalística e que
também ama essa família de artistas! Aos meus alunos bolsistas de
Iniciação Científica, que cifraram algumas letras de sambas do Sr. Waldir,
sobretudo Lucas Machado, a revelação do chorinho carioca desta década!
Um especial agradecimento à minha mãe Vera Casa Nova, meu
pai, João Domingues Maia e ao Túlio Jorge dos Santos, professores e
pesquisadores que me levaram para a Universidade. Depois de 20 anos, eu
agradeço ao Antônio Cas Nova, ao Pedro Casa Nova e ao Beto Bianchi,
que me animaram a tirar da gaveta e trazer ao público, notícias de Minas.
A Autora.
v
SUMÁRIO
9
Apresentação
10
10
INTRODUÇÃO
1
Existem outras versões sobre a descoberta de ouro na região, que relatam as
descobertas de Borba Gato, à mesma época. Rica documentação pode ser
11
11
O povoado logo cresceu impulsionado pela atividade mineradora
na região e, em 8 de abril de 1836, através da lei provincial nº 50, foi
elevado a distrito de Sabará, com o nome de Freguesia de Nossa Senhora
do Pilar de Congonhas do Sabará. A freguesia foi elevada à vila em
fevereiro de 1891, pelo decreto estadual nº 361, recebendo o nome de Vila
Nova de Lima. Mais tarde, em 1913, uma lei estadual simplificou o nome
para Nova Lima. (PIRES et al., 1995:92-93) Além da Mina Grande,
localizada em Nova Lima, a Saint John D´El Rey Mining Company
possuía outras minas espalhadas pela região. Havia também a Mina de
Raposos, município vizinho, situado à leste de Nova Lima, que também
possui sua origem vinculada à exploração do ouro. Raposos é, dessa
forma, outra localidade referencial, circunscrevendo o referencial
geográfico deste livro. (figura 1- editora consegue uma imagem
atual do mapa de Nova Lima e Raposos sem direitos
autorais? ).
Isto posto, pode-se apresentar o tema desse livro, que teve como
principal objetivo analisar as relações de poder e dominação na Mina de
Morro Velho, bem como outros aspectos da cultura operária, em parte do
período controlado pelos ingleses - décadas de 20, 30 e 40 - antes e
durante a primeira fase do governo Vargas (Revolução de 30 e Estado
Novo).
O corte cronológico foi intencional, uma vez que o interesse
também foi estudar as relações de trabalho a partir de uma reflexão sobre a
recepção das leis trabalhistas pelos mineiros. E, assim, entendendo a
História como processo, envolvendo elementos de continuidades, rupturas,
na impossibilidade de se prever o rumo dos acontecimentos históricos,
partiu-se do período imediatamente anterior ao governo Vargas, levando a
análise até o período imediatamente posterior ao fim do Estado Novo.
Como subsídio a este objetivo central, a questão das relações de
dominação e de poder na mina foram analisadas sob pelo menos três
aspectos. O primeiro, onde se colocou em evidência a violência pela qual
os patrões de mina tratavam os mineiros, como se dava o controle do
tempo, da atividade, da maneira de ser, dos discursos, do corpo, dos
gestos. O segundo, onde se analisou as possibilidades de anti-disciplinas,
transgressões, (re)apropriações dos discursos dominantes por parte dos
operários e ainda um terceiro, que diz aspecto à relação de poder macro-
física entre os operários e o Estado getulista.
Para tanto, tornou-se importante levar em conta, por um lado, os
processos produtores da disciplina, ou seja, a “microfísica do poder”
12
analisada por FOUCAULT 2. E, por outro lado, procurou-se demonstrar
como funcionavam as anti-disciplinas no cotidiano dos operários através
do suporte teórico apresentado por Michel de Certeau, que diz que: “se é
verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”,
mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se
reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e
cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam
com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam
a contrapartida, do lado dos consumidores ( ou dominados?) dos
processos mudos que organizam a ordenação sócio-política.”
(CERTEAU, 1994:41)
Eram gestos dissimulados, conversas em código, apelidos dentro do
discurso dos operários que demonstraram, em certo aspecto, esta anti-
disciplina discutida por Certeau. Além disso, fora da mina, na vila
operária e aos arredores da empresa, notaram-se outras “maneiras de
fazer” não tão minúsculas, mas também com um conteúdo de transgressão
à ordem estabelecida. A questão das “maneiras de fazer”, das
“estratégias”, das “astúcias” cotidianas teorizadas por CERTEAU, na obra
“A Invenção do Cotidiano”, forneceram não só o arcabouço conceitual
para se pensar a questão da cultura popular em sua relação com os
discursos dominantes ao nível microfísico (operários e ingleses), como
também foram de fundamental importância quando se trabalhou com a
relação entre estes homens comuns e o Estado getulista.
Pretendeu-se demonstrar como os sujeitos históricos analisados se
apropriavam das mensagens dominantes (seja ao nível micro, em relação a
seus patrões ingleses, seja no nível macro, em relação ao Estado), jogando
com estas, resistindo à sua maneira a estas mensagens. Portanto, no que
diz respeito ao arcabouço teórico-conceitual, trabalhou-se principalmente
com autores da história cultural e social, e filósofos que transitam por
estes temas, tais como Michel de CERTEAU, Michel FOUCAULT, E.P.
THOMPSON, Natalie Zemon DAVIS, Roger CHARTIER, Peter BURKE,
entre outros.
Além desses autores, vale a pena ressaltar a importância da leitura
do trabalho de Jorge FERREIRA(1997:16) na discussão do último aspecto
ressaltado acima, - que diz respeito à memória e ao imaginário desses
sujeitos em relação ao Estado e à figura de Vargas. Compartilha-se aqui
da hipótese apresentada por esse autor de que: “...as ideologias
dominantes naqueles anos, por mais dominantes que tenham sido, não
poderiam ter eliminado completamente as idéias, crenças, valores e
2
Refere-se aqui à obra de Michel Foucault, em especial o livro Vigiar e Punir -
História da violência nas Prisões. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
13
13
tradições anteriormente presentes na cultura popular. Antes de atribuir ao
projeto estatal, nas décadas de 30 e 40, um poder “total” que ele não
alcançou, porque teoricamente tal poder está sendo postulado como
inalcançável, talvez fosse mais enriquecedor analisar como os
trabalhadores e as pessoas comuns o receberam, apropriaram-se dele,
reagiram e mesmo resistiram a ele.”
Procurei mostrar as manifestações de autonomia, as resistências 3
ao nível cotidiano dessas pessoas comuns, o que pensavam sobre o
mundo do qual faziam parte. Redescobrir esse mundo cotidiano, estas
riquíssimas experiências de vida, reconstituir e analisar onde estão as
micro-resistências, as reapropriações, as “astúcias”, as inúmeras
“estratégias” destes sujeitos.
O argumento central desse trabalho consiste na afirmação de que,
por mais que se deva considerar a propaganda político-ideológica quando
se trabalha com a construção da memória operária supostamente cooptada
pelo Estado getulista, deve-se levar em conta os ganhos materiais e
simbólicos obtidos com a legislação trabalhista que aparecem no cotidiano
desses operários de Morro Velho. Até que ponto elas funcionaram na
medida em que foram eficazes ao terem sido positivas 4. Tanto ao nível do
controle do Estado, como ao nível do controle dos ingleses, procurou-se
demonstrar como, nas práticas cotidianas, esses operários não foram
totalmente controlados pelos ingleses e pelo Estado.
Optei por privilegiar a metodologia de história oral, apesar de
terem sido utilizados outros procedimentos de análise. Realizaram-se,
para tanto, entrevistas de história de vida com dois operários da Mina de
Morro Velho. Essas fontes foram também complementadas por uma
bibliografia teórica e por documentos escritos, tais como jornais, atas de
sindicato, livros de época, legislação oficial e algumas peças
iconográficas. Dada a dificuldade de se encontrar antigos operários da
Morro Velho dispostos a conceder entrevista ou mesmo estando em
condições para tal, devido à idade avançada ou mesmo à doenças
provocadas pelo próprio trabalho na mina, optei por se realizar entrevistas
com dois operários, em profundidade, e complementar essas fontes com
outras narrativas e documentos escritos coletados ao longo da pesquisa.
3
Resistência vem do latim, resistentia. Significa ato ou efeito de resistir. Resistir
significa oferecer resistência, não ceder, recusar-se, negar-se, opor-se, não
sucumbir. A princípio o conceito parece supor simplesmente uma reação e não
uma criação, mas no caso do estudo proposto, o conceito de resistência
ultrapassa esse conteúdo de simples reação e passa a significar anti-disciplina
cotidiana, apropriação singular. Cf. CERTEAU, 1994: 41.
4
No sentido da positividade foucaultiana.
14
14
Para este livro, no entanto, resolvi privilegiar um desses operários, o Sr.
Waldir dos Santos, falecido em 1999.
Torna-se importante, nesse sentido, apresentar o Sr. Waldir dos
Santos, o principal personagem da história.
O Sr. Waldir dos Santos nasceu em Nova Lima em 1916 e cresceu
acompanhando a trajetória de vida de seu irmão, que desde muito novo já
trabalhava na Mina de Morro Velho. Com a morte de seu irmão, Waldir se
viu obrigado a pedir emprego na mina e lá trabalhou até 1952, quando foi
trabalhar na Magnezita, grande indústria extrativa de minério localizada
em Minas.
A história de vida do Sr. Waldir coloca-nos face a um mundo
repartido em dois: sua vida se divide entre o mundo do trabalho e o mundo
da festa, da cultura popular, do lazer. Em ambos os mundos aqui narrados,
há ainda o mundo da política, do imaginário político que é criado ao longo
da vida desses operários que trabalharam na mina antes, durante e depois
de Getúlio Vargas. Há então, uma série de comentários que vão surgindo
ao longo da fala do Sr. Waldir sobre esse personagem da história
brasileira que temos obrigação de humanizar. O mito Getúlio deve ser
analisado a partir da fala desse sujeito, ex-operário, levando em conta sua
relação com a classe trabalhadora e os reflexos de seus atos de
incorporação das reivindicações desta classe na vida de nosso sujeito.
Também não se pode deixar de lado toda a história de amor, de
festa, de divertimento, de boemia, orquestrada brilhantemente no contar de
sua história. O Sr. Waldir desvela a vida cotidiana dos operários, não só
dentro da mina, mas fundamentalmente fora da mina. Narra a vida
boemia, a vida no Cabaré, nas festas religiosas...Vai mostrando toda a
riqueza cultural de um povo que mesmo convivendo com um sistema de
ultra-exploração, teima em transgredir esta triste realidade. Teima em ser
feliz.
Entre o mundo do trabalho, da arte e da cultura, um homem
comum, o Sr. Waldir dos Santos, vai tecendo, com suas lembranças, fios
da memória de um mapa. Mapa dos labirintos de ouro de uma das tantas
minas de Minas Gerais: mapa de Morro Velho no tempo de Vargas...
Lembrança de um velho operário mineiro: memória, cotidiano. Vida
multifacetada, onde os diferentes espaços do trabalho, da política e da
cultura/lazer apresentam-se imbricados...
O que mais instigou foi ver como o Sr. Waldir, tendo passado
tantos anos trabalhando na mina, ainda podia gostar de cantar, de dançar...
É esta vida multiforme, complexa e rica, o principal objeto deste livro,
com o qual passaremos a dialogar nas próximas páginas.
15
15
Figura 1: Mapa de Nova Lima, Minas Gerais. (editora ou revisor
encontra isso sem direitos autorais? )
16
16
Algumas palavras sobre a História de Vida
do Boêmio Operário Waldir dos Santos
Rosaly Senra5
---------------------------------
5
Rosaly Senra é escritora, cientista da informação, comunicóloga e,
principalmente, amiga da família Santos. Me ajudou aqui editando o
depoimento de mais de 10 horas do Sr Waldir, de maneira a exercer
uma escrita de História Pública, para qualquer leitor interessado em
conhecer a vida de um homem que viveu o século XX em Minas
Gerais.
17
17
No livro A História da Embalagem no Brasil, (Grifo Projetos
Históricos e Editoriais, 2006) o pesquisador Pedro Cavalcanti afirmou:
"Não há nada mais delicado do que uma caixa de fósforos".
----------------------------------
18
18
Waldir dos Santos contra sua história
O pai
De meu pai pouco posso dizer, porque morreu muito jovem.
Quando faleceu, eu tinha apenas 11 meses. Tudo que sei sobre ele foi
transmitido por minha mãe, que era uma mulher muito apaixonada por seu
homem. A ele só tenho palavras elogiosas. Não sei ao certo a origem de
meus pais, a não ser a partir das conversas que tive com a minha mãe.
Meu pai era natural de Sabará e chegou em Nova Lima à procura de
trabalho. Enamorou-se da minha mãe, casaram-se, mas ela não soube me
dizer a qual família ele pertencia.
Sendo assim, eu não conheço a origem da família de meu pai e
ele não pôde me fazer nenhuma declaração. Ele morreu aos 33 anos de
cirrose, bebia muito. Meu pai era um beberrão inveterado. Eu tenho que
confessar que esse meu gosto pela cerveja é justamente herdado de meu
pai que adorava tomar uma pinguinha e uma cerveja.
A mãe
19
19
ligação com Ormesinda. Assim, a minha mãe nasceu dessa união com esse
homem.
A Joana Pereira teve Ormesinda e Ausídis. Ormesinda casou-se
com meu pai, que se chamava José Maria dos Santos. Ele não era negro,
era moreno. Era da minha cor. Eles se casaram e desse casamento
constituiu-se a família de cinco filhos, dois dos quais, morreram
nasciturnos.
Minha mãe era atriz como meu pai, e até meu pai morrer,
trabalhava com teatro amador e trabalhavam no Grêmio. O Grêmio era
uma sociedade civil sem fins lucrativos. Só cobrava os ingressos para os
espetáculos, para renovar os cenários e para a montagem das peças. Eles
encenavam peças extraordinárias, de bom gosto. Tinha até cenarista. O
Grêmio Dramático Novalimense era muito bem organizado. Foi o que
minha mãe me contou, eu não cheguei a ver. Quando eu me entendi por
gente, ela já tinha se afastado do palco, e estava fazendo o "ponto". Ela
ficava na cúpula lendo para os atores. Antigamente havia o ponto. Os
atores não decoravam os textos. Ela ia lendo durante a encenação com
uma tonalidade de voz que só eles ouviam. A platéia não ouvia. Ela dava
as deixas e eles iam repetindo o que ela falava. Quando eu comecei a
frequentar o teatro com minha mãe, ela já estava nessa função de ponto.
Eu devia ter sete anos, isto foi por volta de 1923. Eu estava começando o
grupo escolar.
Irmãos
Meu irmão José era o mais velho. Ele nasceu e muito fraco,
morreu quase imediatamente, por causa da pobreza. A causa da morte,
nem minha mãe, soube detalhar. Foi de repente. Depois ela teve Maria.
José e Maria. Maria teve uma morte mais significativa.
Havia as festas do Divino Espírito Santo em Nova Lima. Como
em muitas das cidades do interior, era uma festa muito pomposa. Minha
mãe morava ao lado da matriz Nossa Senhora do Pilar. Morava numa
casinha, no centro de Nova Lima, local onde eles armavam os rojões para
a festa do Divino. Eles soltavam os rojões perto do adro da Matriz. Foi
numa madrugada de São João... tinha alvorada. Bandas de música saiam
tocando pela cidade soltando fogos, rojões. Soltaram uma série de rojões.
A minha irmã Maria se assustou e rompeu o fel, morreu quase
imediatamente. Depois de Maria veio Adolfo, que morreu aos 24 anos. E
Etelvina, que tinha o apelido de Saé, morreu aos 17 anos.
Infância
20
morreu: 11 meses depois. Ele morreu segundo minha mãe, de diabete com
cirrose. Bebia muito. Morreu aos 33 anos deixando essa família pequena.
Adolfo, quando ele morreu, devia ter sete anos, seis ou sete anos. Saé, uns
quatro, três... Eu, 11 meses. Então a minha mãe ficou sem poder trabalhar
e com três crianças pequenas. Eu também nasci muito doente, estive à
beira da morte. Depois que meu pai faleceu, eu tive um princípio de
meningite, fiquei entre a vida e a morte.
Antigamente os sinos dobravam para a morte das pessoas da
cidade. Quando dobrava o sino pela “morte de anjinho”, os amigos de
minha mãe achavam: "foi Waldir que morreu". Eu felizmente, por um
milagre, continuei vivo.
Quem tratava de mim por caridade era Zezinho Passos, o
farmacêutico da cidade. Ele começou a tratar de mim porque Ormesinda
não tinha como pagar. Ele me visitava e dava também os remédios. Então,
quando eu estava muito mau mesmo, não tinha jeito, ele falou com
Ormesinda: "Ó, o caso do Waldir é o seguinte, ele está tão fraco que não
está reagindo nem para morrer... eu vou fazer o seguinte: vou dar um
estimulante diferente". Ele pegou uma colher de conhaque, pôs água e me
fez ingerir aquela mistura. Acho que aquilo me esquentou por dentro. Ao
invés de morrer, eu fiquei vivo... Hoje em dia eu penso que foi a bebida
que me salvou.
Escola
21
esquerda, ela me batia. Sou canhoto, sinistro por natureza, faço tudo com a
esquerda. Só escrevo com a mão direita porque ela me obrigou.
Antigamente eu pegava a caneta de modo diferente de todo mundo. Só
usava o dedo indicador e o médio. Tudo isso devido a Gersina Roscolli,
minha professora, que me obrigou a aprender desse jeito. Apesar de tudo
isso, eu adorava essa professora. Ela era muito dedicada, ensinava muito
bem. Ela era muito preconceituosa, meus colegas eram todos bajulados
por ela, tratava-os bem...
Eu fui sempre muito humilde, eu me dava bem. Minha mãe me
ensinou a ser muito humilde. Ela sempre falava comigo, me aconselhava:
"olha meu filho, olha... Não leve a sério o que disserem, se te humilharem,
receba com humildade". Ela sempre dizia: "olha, o que vem de baixo não
te atinge, tudo que te disserem para te humilhar, não se sinta exaltado
porque quem está te humilhando é muito mais inferior do que você. A
pessoa que humilha o outro é muito mais inferior do que aquela que está
sendo humilhada".
Com isso, eu evitava confronto com meus colegas. Só teve uma
ocasião que eu perdi a paciência com um menino, um tal de Ubirajara. Ele
era um mulatinho forte, muito metido a valente, brigão, e provocava todo
mundo. Ele não era riquinho não, mas muito violento e gostava muito de
aparecer e abusar dos outros. Jogaram um papel na cabeça desse Ubirajara.
Ele viu quem foi, mas me acusou: "foi você!" E eu disse: “não fui eu, você
viu que não foi”. “Foi você sim e eu vou te pegar lá fora".
Tinha esse negócio de “pegar lá fora”. Quando a gente saía do
grupo, a turma esperava lá fora para atiçar a briga. Eu pensei: “dessa vez,
dessa vez vão me desculpar” - eu tinha um medo danado dele, tinha pavor
do Ubirajara - “mas dessa vez não vai dar para segurar”. Sabe o que eu
fiz? Eu usava o uniforme da escola, usava um dolma, era um palitozinho
fechado, de manga comprida. E na hora de entregar o material escolar eu
escondi a caneta. Na época se usava daquelas canetas de pena de aço. Eu
botei a caneta dentro da manga. Entreguei o material e sai. A turma estava
lá fora esperando e o galinho de briga também: "Ah, porque eu vou bater
no Waldir, ele hoje não me escapa..." Eu fui passando, ele foi e disse: "Ah,
porque você jogou..."- “Eu não joguei. Você viu que não foi eu. Você sabe
que não foi eu, você vai brigar à toa”. “Ah, mas eu vou te bater..." E a
turma ficava atiçando: “pisa aqui, quem pisar primeiro...” Na hora em que
ele partiu para cima de mim, eu dei-lhe uma canetada na coxa. Meti a
pena na coxa dele, a caneta ficou pendurada e eu me mandei para casa.
Ele abriu a boca a chorar e eu me mandei para casa com um medo
desgraçado. Foi aquele drama, eu pensando o quê que a mãe dele ia
fazer...
Cheguei em casa e Ormesinda disse: "você fez muito mal, não
devia ter feito isso, violência não leva a nada." Mas já estava feito.
Quando a mãe do menino foi lá tirar satisfação: "O caso é o seguinte,
22
22
todas as testemunhas disseram que ele foi provocado, e ele só fez isso para
se defender. Eu não vou bater nele por causa disso de jeito nenhum, não
vou surrar meu filho por causa disso. Se fosse por outra coisa ele
apanharia, mas por isso não".
Depois disso, quem passou a ter medo de mim foi o menino. Dali
para frente ninguém mais mexia comigo. Eu sou muito calmo mas não me
encosta na parede, porque eu viro bicho. Touro não pode ser acuado.
Quando tirei o diploma, nós nos mudamos para Belo Horizonte. Eu tinha
12 anos, foi em 1928. Viemos para BH no fim do ano e fomos morar em
Santa Ifigênia.
Adolfo
23
23
tomou aquilo. Ao invés de por para fora, recolheu. Ele pareceu ter ficado
curado. Pensou que sarou, e veio de São Paulo.
Lembro-me do dia em que ele chegou em Nova Lima no
bondinho. Ele vinha de trem até Raposos e de Raposos para Nova Lima
tinha bondinho. Minha irmã Saé estava com 17 anos e fomos à estação
esperá-lo chegar. Ela sentiu tanta emoção na chegada do irmão que,
quando ela abraçou Adolfo, desmaiou. Ela tinha uma lesão no coração e
ninguém sabia. E parece que a emoção agravou seu estado de saúde. Ela
ficou passando mal, durou mais ou menos uma semana e morreu. Saé
morreu. Minha mãe ficou em tempo de ficar louca. Diante de tudo isso,
Adolfo resolveu ir para Belo Horizonte, não quis ficar mais na mina.
Enquanto ele trabalhou lá na mina eu conheci a Morro Velho por
dentro. Foi nesta época que eu comecei a sentir a discriminação, o
tratamento que os ingleses davam aos operários. Quando eu era menino
levava o almoço para meu irmão Adolfo, para que levassem lá dentro da
mina, pois eles não me deixavam entrar.
24
24
Muitos operários não aguentavam. Como se dizia, saíam nos
panos, saíam na maca, porque caíam de inanição, de cansaço. Trabalhando
naquela profundidade, quase sem oxigênio e enchendo vagoneta com pá,
enchendo a vagoneta de minério. Era o agrião miúdo. Agrião miúdo era o
minério menor com que eles enchiam as vagonetas. Porque eles levavam
tudo, saiam as pedras grandes e as pedras pequenas. As pedras grandes
eles colocavam com as mãos nas vagonetas. E as pedras pequenas eram na
base da pá. E quando saía algum, caía de inanição, era motivo de chacota:
"Ah, você não é homem, saiu nos panos". Até brigavam por causa disso.
Eles escolhiam os piores elementos para serem os patrões de
mina. Aquele camarada que chegava lá, que era assassino, e passava por
lá... Pagavam bem, quase que em libras. Tinham o ordenado bom, os
feitores. Eles mantinham o Cabaré de Nova Lima em alta, o meretrício.
Por que os broncos, ganhando uma nota violenta, eram os “donos do
pedaço”. Chegavam lá, deitavam e rolavam com o dinheiro deles. Isso era
a Morro Velho antes da consolidação das leis trabalhistas de Getúlio
Vargas. Até 34 era assim. Depois então, que organizados os sindicatos, as
coisas mudaram, o trabalhador passou a terem direitos. Mas, antes disso,
era uma verdadeira escravidão.
Capitão Chapéu
Dia-a-dia na mina
25
25
Na mina, os operários trabalhavam em três turnos sem parar, das
6h da manhã às 2h da tarde, de 2h da tarde às 10h da noite, e de 10h da
noite às 6h da manhã.
Haviam somente duas paradas na Morro Velho: dia 24 de junho,
dia de São João, festa dos ingleses e na Sexta-feira da Paixão. Foi quando
menino, quando eu presenciava essas coisas, que eu comecei a me revoltar
contra os ingleses. Tanto que eu não dava a eles a menor confiança.
Minha infância foi assim. Antes de irmos para Belo Horizonte nós
morávamos nos cômodos de São Vicente de Paula. Ainda me lembro que
havia duas mulheres também assistidas: Paula e Zinha. Paula era aleijada,
andava de muleta, com uma perna só. E Zinha, era a mais nova. Eu
acompanhava Paula, que saía pedindo esmola. Eu levava o saquinho de
mantimento. Ela ia ganhando mantimento das casas onde parava pedindo
esmola e eu carregava. Arroz, feijão, açúcar. Alguns davam dinheiro
miúdo. Quando acabávamos de nossa volta pela cidade e voltávamos para
a casa, ela dava à minha mãe Ormesinda uma parte do que ganhava.
Os cômodos de São Vicente de Paula eram três cômodos de terra
batida, chão mesmo. Tinha sala, quarto, cozinha e lá no fundo a lavanderia
comunitária. O sanitário também era comunitário. Lavava-se roupa, e se
estendia lá, tudo junto. Nessa ocasião ocorreu um fato marcante na minha
vida. Passou em Nova Lima um circo.
O Circo
26
Primeiro amor
Não foi por muito tempo que eu morei nos cômodos de São
Vicente de Paula. Adolfo começou a trabalhar e logo Ormesinda
conseguiu um emprego no grupo escolar. Ela costurava os uniformes. No
próprio grupo eles costuravam uniformes para as crianças pobres. E
Ormesinda passou a trabalhar e ganhar um dinheirinho. Assim nós
mudamos de lá.
Primeiro fomos morar numa casinha atrás do Palácio das Águias,
de Bibina Sales. Depois fomos para o lado do Cemitério do Bonfim.
Adolfo já estava trabalhando, podia pagar aluguel. Nossa situação
começou a melhorar. A moradia mais marcante para mim foi no centro, ali
perto da Praça Bernardino de Lima, foi quando eu comecei a freqüentar a
casa de Bibina Sales, mulher de Chico Sales, que era a família mais rica
que havia lá. Eles tinham filhas. Não saía ali da praça, afinal, eu morava
ali atrás. Eu brincava sempre. O Chico Sales tinha, ao lado do palacete
deles, uma casa de comércio. Ele montou lá um botequim, onde vendia
doces, biscoitos. Sua filha Nezica era uma menina muito bonita. Eu era
"taradão" por ela, que não me dava confiança porque era menininha rica.
Eu estava com uns dez anos. Foi antes de ir para Belo Horizonte. E ela já
estava começando a arranjar os namoradinhos. Ela gostava do filho de um
delegado de polícia, militar, capitão. E eu era o pombo correio. Eu até
dizia que gostava dela, mas paciência levava recado para ele. Um dia ela
escreveu com tinta na perna o nome dele. Eu disse: “se você não me der
um beijo eu vou chamar a sua mãe e vou mostrar isso para ela”. Ela tentou
limpar, mas a pena era de aço e a tinta penetrou, deixando a marca na
coxa dela. E eu: “-Você tem que me dar um beijo se não eu vou contar
para sua mãe”. Fiz essa chantagem, coisa de menino. Ela teve que me dar
o beijo e acabou gostando. Foi um tempo muito divertido, de
ingenuidade...
Mas de perto da praça nós mudamos para a casa ao lado do
cemitério. De lá do fundo a gente olhava o cemitério. Nas noites muito
escuras, víamos aquele fogo saindo das sepulturas, os gases, um fogo meio
azulado. Era uma coisa interessante. Nesse tempo eu tinha ciúmes do
Adolfo. Ele já estava rapazinho, começando a namorar, e a Ormezinda me
obrigava a engraxar o sapato dele todo o dia. Eu achava aquilo uma
injustiça. E ela dizia: "tem que engraxar sim. Ele que põe comida dentro
de casa". Eu gostava muito dele, mas ficava danado da vida.
Pastorinha
27
27
Nessa época nós fizemos parte de uma Pastorinha. Tinha uma
beata em Nova Lima, Almerinda Duarte. Ela conseguiu aprender a música
das pastorinhas, todos dos lances da música, do folclore. Ela escreveu as
músicas e ensaiou. Minha irmã Saé era o anjo. Eu era o pastorzinho,
cantava uma musiquinha muito engraçada. O pastorzinho entrava com
uma trouxa, como se fosse alimento, e um chapeuzinho. No Natal,
visitávamos as casas que com presépio e cantávamos, fazíamos a
encenação. Tinha o anjo, o demônio, Herodes. Tudo conforme a beata nos
ensinava. Íamos de casa em casa contando a vida de Cristo. Era uma
espécie de ópera, tudo era cantando, um espetáculo lindo. Tinha até
orquestra, afinal a Almerinda tocava violino. Ela arranjou uma orquestra
para ensaiar. Íamos passando nas casas de Nova Lima. Uma coisa linda.
Cada um fazia a sua roupa. Minha mãe fez o vestido do anjo de asa. Era
bonito, Saé era uma morena clara bonita demais, sobrancelha fechada,
muito inteligente, uma coisa extraordinária. Apesar de que, para começar
a estudar, Ormesinda teve que bater muito nela, porque no princípio ela só
ia para o grupo de baixo da vara de marmelo. Um ano ela ficou indo a
força. Depois, mamãe disse: “já que você não quer, deixa”. Saé passou
um ano sem estudar. No ano seguinte ela disse para a Ormesinda que
queria voltar a estudar no grupo, e Ormesinda a matriculou. Depois daí,
foi dez de cabo a rabo. Passou do primeiro ao quarto ano: só ganhava dez!
28
presença delas. E achei Papai Noel muito injusto, muito discriminativo,
pois os meninos ricos tinham tudo e os pobres nada. Me revoltei com
aquilo e isso fez com que eu criasse meus filhos sem a ilusão do Papai
Noel, sem a mentira do Papai Noel. Porque eu acho que iludir a criança
com o Papai Noel é falar a primeira mentira com o filho, porque quando
ele chega a idade adulta ele fala assim: “meu pai mentiu para mim, Papai
Noel não existe”...Mas, enfim, ainda continuam a acreditar e eu continuo a
achar que Papai Noel é um bom engodo, puramente consumista e só
favorece aos ricos, pois eles é que vendem essa ilusão.
No Natal havia muitas celebrações. Eu mesmo participei das
celebrações do Natal, porque minha mãe era muito católica e me obrigava
a ir à missa todos os domingos. E eu era muito obediente. Além de tudo,
eu não podia nem deixar de ir, porque ela conhecia todos os paramentos.
Todo o domingo ela ia a missa e por isso, conhecia a cor do paramento.
Ela estudava, lia muito, sabia todos aqueles paramentos do padre. O culto
em si, ela acompanhava tudo direitinho: homilia, novenas, tudo, ela sabia
tudo. Quando eu chegava em casa, falava: “mãe, eu fui à missa”... Ela
sempre ia à missa mais cedo do que eu. Ia na missa das cinco horas, e eu,
às vezes ia na missa das oito. Eu ficava olhando as meninas... minha
intenção era paquerar as meninas... E eu tinha que ir lá olhar a cor do
paramento, porque se eu não falasse certo, ela me dava uma surra. Era
uma pancada, eu não podia falhar que eu apanhava.
Igreja / Religião
29
casa da fabricante de hóstia lá no bairro Zig-zag e antes de chegar na
igreja eu comia metade das hóstias. Era uma delícia, e bebia vinho do
padre. De vez em quando eu dava uma bicada no vinho, lá na sacristia. Se
Ormesinda soubesse ela me matava de vara de marmelo. Eu era muito
católico, era quase obrigado, porém no fundo eu gostava. Não era fanático,
mas a minha mãe sempre me instruiu para isso, me pôs na religião. Nunca
exigiu de mim que eu me tornasse padre, só que eu devia seguir e praticar,
ser católico praticante. Eu fui a meu modo, nunca fui fanático.
Todas as festas a igreja promovia. Havia um padre muito
dinâmico nesse sentido, Padre Joaquim de Coelho Cansado, era o nome do
português. Ele era de uma severidade terrível. O povo de Nova Lima tinha
verdadeiro pavor dele, porque quando falava na hora da missa, ele citava o
nome de todo mundo da cidade, falava mal das pessoas, xingava. Ele era
terrível!
Carnaval em Nova Lima, no tempo do Padre Joaquim, era sábado,
domingo, segunda e terça até meia-noite. Até o cabaré fechava à meia-
noite de terça-feira. Se tivesse qualquer coisa, o padre Joaquim virava
bicho. Quando era terça-feira de carnaval, depois da meia noite,
fretávamos automóveis e íamos para Sabará, acabar o carnaval em Sabará.
Íamos dançar no Cravo Vermelho. Já éramos rapazes. O carnaval da
infância eu não lembro muito porque eu não passei a minha infância toda
em Nova Lima. Passei a minha infância praticamente em Belo Horizonte.
Belo Horizonte
30
30
operários, por causa da amizade que ele tinha com um sulafricano
contratado da Morro Velho.
Foi quando viemos para Belo Horizonte eu, minha mãe e Adolfo.
Ficamos aqui de 28 a 32. Quando a revolução de 1930 ocorreu, Adolfo
trabalhava no centro da cidade, no Departamento de Eletricidade do
Estado. Ele era eletricista do Departamento de Estado. Ele corria perigo de
vida, pois o centro estava muito perto da operação revolucionária. Porque
a revolução aconteceu mesmo. Aqui em Belo Horizonte foi um caso sério.
Graças a Deus saímos incólumes.
A revolução de 1930
(...) Ah, a revolução aqui foi uma coisa terrível! Realmente foi
uma disputa armada. Houve muitas mortes, muita destruição. O Barro
Preto ficou completamente destruído. As casas do bairro, os postes de
eletricidade foram cortados à metralhadora. Tudo porque o quartel do
12RI era lá, como é até hoje, e a polícia militar sitiou o quartel do
exército. Foi polícia contra exército. Todo mundo teve que sair de lá
porque morreu muita gente. Como morreu muita gente até no cemitério do
Bonfim: as pessoas que iam para o cemitério porque lá era mais alto para
ficar assistindo à luta. As balas perdidas vinham e matava o sujeito no
cemitério. Muitas pessoas morreram. Iam balas perdidas até lá em Santa
Ifigênia!
Durante a Revolução de 30, como eu disse, morávamos em Santa
Ifigênia naquela casinha e meu irmão estava trabalhando no centro da
cidade. Eu e minha mãe ficávamos muito preocupados, porque ele corria
sério perigo no centro da cidade. Mas como o Departamento de
Eletricidade precisava muito do serviço dele - ele até fazia hora extra,
porque era muito solicitado por causa dos cortes de energia que estavam
acontecendo. Realmente foi uma guerra armada. A polícia era um pipocar
de tiros de fuzil, metralhadora, até canhões. E assim começou o êxodo das
famílias.
Passavam lá por Santa Ifigênia, procurando a estrada de Nova
Lima. Todo mundo fugindo de Belo Horizonte por causa dos estragos que
estavam ocorrendo em todos os lugares, principalmente no centro e no
Barro Preto, Calafate, Prado, aquilo tudo estava completamente arrasado.
Quando acabou a revolução foi preciso reconstruir tudo de novo.
Houve uma destruição quase total desses bairros. Mas nós
ficamos em Belo Horizonte porque meu irmão trabalhava e não podíamos
sair. Felizmente conosco não aconteceu nada. Mas eu vi o que aconteceu.
Quando houve o rendimento do 12RI, eu fui ao quartel, e vi que a
destruição foi praticamente total e o 12RI só se rendeu porque eles ficaram
sem alimento e sem água. A polícia cortou o fornecimento de água e
31
31
aqueles animais, os cavalos atingidos, mortos e feridos, começaram a
apodrecer.
Assim, eles não tiveram alternativa se não se render. Depois da
rendição foi que a polícia começou a sair, a marchar em direção a São
Paulo, para continuar a revolução. O governo de Washington Luís foi
deposto.
A revolução foi em 1930 e ficamos aqui depois disso mais dois
anos. Voltamos para Nova Lima em 1932.
A política na juventude
Populista / revolucionário ?
32
Ormesinda, muito bem informada, também era uma populista. Foi
sempre contra a dominação do capitalismo em cima do povo. Nós todos
sentimos na carne. Adolfo era apenas um trabalhador. Politicamente, ele
era completamente afastado. Adolfo era uma pessoa que, nesse sentido,
não atuava absolutamente em nada. Mas Ormesinda possuía as mesmas
idéias que eu. Aliás, eu sempre comunguei as idéias de minha mãe. Ela foi
minha mentora em todos os sentidos. Eu tenho orgulho de dizer que nessa
vida, sempre fui dominado por mulher. Primeiro por minha mãe, e agora,
pelas outras.
Mas na época eu quase nem me interessava por política... Eu era
muito jovem e a adolescência no meu tempo não era muito politizada. Eu
era mais avançado, porque minha mãe era politizada e avançada. Ela
conversava comigo. Mas a maioria dos meus contemporâneos, da minha
faixa de idade, não eram muito ligados à política. Foi da revolução para cá
que houve realmente movimentos políticos, mais ou menos consideráveis.
Foi a partir da revolução. Porque antes, na Velha República, só houve uns
dois momentos. No governo de Arthur Bernardes, ele governou em estado
de sítio. Mas os presidentes da Velha República só ficavam lá quatro anos
para se elocupretarem de tudo quanto era vantagens, favores.
Epitácio Pessoa chegou a construir um palácio em Veneza com o
dinheiro do Brasil. Era o que eles faziam. Cada um entrava lá só para
quatro anos de roubalheira. Só depois da Revolução de 30 é que
começaram movimentos realmente políticos, de monta e tudo. E o povo
começou a tomar parte mesmo na política.
Não me lembro das questões políticas da Revolução de 30.
Só lembro que daqui, ela partiu para o interior, para São Paulo. Minas
Gerais continuou a vida. Quem governava nessa época? Acho que era
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada... O chefe lá da Aliança Liberal. A
questão da História... Isso foge da memória... Eu era muito novo. Mas eu
fui e aliás eu sou, por formação moral, um revolucionário.
Eu sou a favor de todas as revoluções desde que sejam a favor do
povo, que seja feita pelo povo, para o povo. E a Revolução de 30 foi feita
pelo povo e para o povo. Porque a Velha República era um antro de
políticos que só procuravam tirar proveito durante o período que eles
estavam no poder e além de tudo eram eleições cheias de cambalachos.
Faziam tudo quanto há. Quem estava no poder, sempre ajudavam os que
eles estavam apoiando. Tanto que nessa ocasião a política do café-com-
leite. Um ano dava mineiro, outro ano dava paulista. O ano que falhou, era
para dar mineiro e deu paulista, a revolução foi deflagrada. Porque o
candidato de Minas Gerais não era Júlio Prestes. Não era mineiro, mas era
um que Minas Gerais tinha interesse e Washington Luís apoiou Júlio
Prestes e ele ganhou. E por esse motivo a Aliança Liberal encabeçou a
Revolução.
33
33
Apuração do Ouro
34
retínico, um barulho só. Tipo um tic-tac. Um barulho constante que se
você se acostumasse com ele não sentia. Era o que acontecia com o povo
de Nova Lima.
Eu sofri muito. Eu chegava a chorar de tanto trabalho. Às vezes,
vinha aquele minério, pois eles aproveitavam depois que a areia ia até no
galo onde tiravam o minério para fazer arsênico.
Havia fábrica de arsênico. Dali voltava aquela areia outra vez.
Jogavam tudo dentro do silo, para aproveitar mais vezes. Apurava tudo. E
essa areia já vinha úmida e formava uma massa dura, parecendo cimento,
como concreto. Você batia e não saía. E havia umas pás com cabo longo,
resistente. Você ficava ali batendo com aquelas pás. Às vezes saía até
fogo. E nessa máquina, de vez em quando, batia ferro contra ferro e o
feitor chegava. Ele batia nos meninos. Eram meninos, adolescentes
como eu, 14, 16 anos...
Turnos de trabalho
35
saco. Era terrível. Isso era terrível. Toda semana eram dezenas. Só depois
de Getúlio é que as coisas começaram a melhorar.
Existem muitas histórias sobre isso. Teve um caso que não foi do
meu tempo, mas a minha mãe me contava, porque ela conheceu a pessoa.
Chegou à Morro Velho, pediu emprego, porque lá os forasteiros, as
pessoas de fora, constantemente procuravam emprego. Ele foi aceito e
preencheu os papéis e foi designado que ia de 14h as 22h. Ele entrou,
ficou conhecendo a mina. Mas, acontece que ele trabalhou o primeiro e o
segundo dia, só que no terceiro, ele estava cansado, afinal não estava
acostumado com o ritmo e falhou ao serviço. Falhou e se livrou de morrer
porque a turma dele explodiu.
No dia seguinte, ele estava sozinho. Compuseram outra equipe
para ele trabalhar. Quando ele chegou lá no local do acidente... Porque
quando acontecia acidente, imediatamente limpava-se tudo. Escorava a
rocha que estava para cair com madeira e ponto final. Quando ele chegou
ao local, olhou para cima e ele disse que tinha uma pedra com uma
abertura... Olhou para cima, voltou e disse: "Eu, hein!". Pediu as contas,
recebeu os dois dias que ele tinha trabalhado e se mandou, foi embora.
Passaram-se alguns anos. Ou ele esqueceu, ou a necessidade o fez voltar a
pedir emprego na Morro Velho e, naquele local que ele teve medo, aquela
pedra caiu sobre ele. Aquela mesma pedra pela qual ele fugiu por temor,
caiu sobre ele.
Tinham casos assim de fatalidade. Ele tinha que morrer naquele
local e entrou para morrer. Mas lá, quando morriam esses sujeitos que não
tinham nem parente, a companhia fazia o enterro. Eram como animais,
recolhiam os pedaços, compunha mais ou menos o corpo, e enterravam lá.
Eu, por exemplo, era convocado no meu serviço para acompanhar e
carregar o caixão daqueles infelizes que iam ser enterrados. A gente é que
ia enterrar o pobre coitado. Era assim, até que as leis vieram para nos
ajudar.
36
36
ali naquelas câmaras de couro. Aquele ouro, ainda cheio de impurezas, ia
pingando.
Dali, ele ia para o processo de separação do ouro e dos outros
metais. Separavam todos os outros metais da rocha. Passava por aquele
processo com reagentes químicos. Após a passagem pelo processo
químico, já era o ouro puro. O ouro puro chegava à fundição. Era onde se
fundia o ouro. Faziam aquelas barras de tijolo. Tijolinhos de ouro puro.
Era isso o ano inteiro.
Eles enchiam os vagões do bondinho. Tinha um bonde de tração
elétrica que puxava esses vagões de ouro até Raposos, onde embarcava
nos vagões da Central, e ia para a Praça Mauá, lá para o Porto do Rio de
Janeiro. E lá embarcava nos navios. Os porões dos navios cheios de ouro
para levar para a Inglaterra. Esse era o processo: extração, separação,
apuração, fundição.
Tinha a britagem, onde se colocava nos silos e britava... Passava
para os rolos, uma espécie de liquidificador. Daqueles rolos passava para
as câmaras de couro, para as tremedeiras por onde passava água. Ia
caindo e havia umas varetas de metal. O ouro que era pesado ficava no
filete e o resto descia com a água para outro destino qualquer. Por
exemplo, para queimar, enchia as vagonetazinhas e o bondinho levava
para o Galo, para produzirem o arsênico. O Galo tinha um forno para
queimar o minério e apurar o arsênico. O negócio era tão violento que o
Morro não tinha mato. Em volta desse forno de queimar minério para
arsênico não nascia nada. Muito veneno. Envenenavam muita gente. O
povo que trabalhava lá. Não tinha índice de periculosidade, nem nada. Os
que trabalhavam lá, se morriam, acabou. Colocavam outro no lugar. E eles
não tinham nem noção do perigo. Mesmo que tivessem, precisavam
trabalhar. Era uma coisa muito terrível, mesmo.
37
37
quartos e Ormesinda perguntou ao encarregado se poderia ficar lá até
arranjar um quarto em meu nome, porque eu já era empregado.
Ela ficou morando lá com Adolfo. Eu estava trabalhando, não
podia cuidar de meu irmão, e ela ficava cuidando do Adolfo, já muito
doente.
Eu fui morar na casa do meu tio, Euclídes, pai de Maria Ifigênia,
minha prima. Ele era casado e tinha dois ou três filhos. Ele ganhou uma
casa lá na Vila Operária. Como a casa dele tinha um porão muito alto e eu
já estava trabalhando, ele falou comigo: "Porque que você não faz aqui
dois quartos com esteira, cerca com esteira, esteira brochada a cal... não
faz uns cômodos para você e Ormesinda morarem aqui? " Ele era sobrinho
dela. Nós fomos para casa de Euclídes. Eu comprei o material e eu mesmo
fiz dois quartos. Um para mim e um para minha mãe. Nós ainda ficamos
lá uns tempos.
E, como eu comecei a melhorar de situação, arrumei uma
moradia. Eu não consegui mais morar em casa da Companhia, porque eu
era menor de idade, mas Ormesinda começou a trabalhar. Ela arranjou um
emprego como varredeira de rua da Morro Velho. Varria as ruas do bairro
dos ingleses e, além disso, costurava. Ela trabalhando de um lado, eu
trabalhando de outro, nós fomos levando... Eu arranjei uma casa na Vila
Esportiva. Atrás do Liceu de Imaculada Conceição, tinha uma rua ali. Eu
arranjei uma casa. Um porãozinho melhor.
Laurindo
38
38
Cicerone
39
39
Havia o Sam Bunda Molhada, o chefe da fundição de ouro. Todo
mundo lá tinha apelido e ele sempre tinha a bunda molhada. Um bundão
enorme e sempre molhado. Ele dessorava suor pelo ânus. Eles deram o
apelido dele de Sam Bunda Molhada. Ah, o Sam Bunda Molhada ficou
louco: "Ah, não...Olha, o Senhor não vai poder sair daqui. O Senhor vai
ter que ir lá no hospital da Morro Velho, da Companhia e esperar o senhor
expelir essa pedra, porque o senhor não pode levar essa pedra..." "Ah, mas
eu não vou fazer isso de jeito nenhum. Ninguém vai me obrigar a tomar
purgante". Ah, vai... Não vai. Vai, não vai. Vai, não vai. E ele: "Não tem
lei que me faça fazer isso. Amanhã, na hora que sair naturalmente eu
devolvo. Lavo direitinho e devolvo. Mas eu não vou fazer isso"... "Ah,
vai"... E então o Sam chamou os chefes maiores e o rapaz disse: "Eu não
vou fazer isso. Eu sou um cidadão brasileiro e...". Mostrou quem ele era...
E eu só ouvindo. E ele falando: "Eu não vou mesmo. De jeito nenhum,
nem arrastado vocês me levam para o hospital". Ele foi caminhando para a
saída da mina... E quando chegou no portão da saída, falou para o Sam:
"Sam, querem ver onde está a pepita? Tá aqui..." Passou a mão na orelha
do Sam e disse: "está aqui"... Ele era desses mágicos e fez de conta que
tinha engolido, mas estava com a pepita entre os dedos. Ah, mas o Sam
ficou louco. Era assim. Coisas muito engraçadas. Foi uma gozação geral.
Ah, eu pus a boca no trombone, espalhei mesmo. Eu já não gostava dos
ingleses, nunca gostei deles...
40
40
menino". Chamava e ela acompanhava ele. E eu pegava outra e saía com
ela.
Quando era na madrugada, eu ia buscar o meu dinheiro, ela me
dava parte do que arrecadava. Eu servia de atração porque dançava muito
bem.
Eu vivi nessa vida dos 16 aos 25 anos. Porém, certa ocasião, eu
tive medo de adoecer. Eu tive uma probabilidade de pegar uma carga de
doença venérea muito grande. Eu tinha uma sorte incrível, nunca pegava
nada, e olha que eu fazia amor com todas...
E eu fui confidente, elas me contavam tudo que acontecia com
elas. Em compensação, quando elas caíam em desgraça... Por exemplo,
quando alguma adoecia, não podia faturar e precisava de remédio, quem
comprava remédio era eu. O coronel nunca se responsabilizava. Por isso
que esse negócio de gigolô não é vantagem não. Eu não via vantagem.
Quando elas se viam na pior, elas se valiam de mim. Era eu quem
segurava a barra. Muitas vezes eu chegava ao cabaré às 10 horas da noite,
vinha uma delas e dizia: "Waldir, não consegui fazer um tostão a noite
passada. O que eu fiz, eu entreguei para a dona da pensão... Estou sem
almoço até agora..." O dinheiro que eu tinha pagava um sanduíche para ela
ou, senão, pagava um prato de comida. Era assim. Era aquela
solidariedade. Eu passei muito aperto. Muito mesmo. Passei apertos
terríveis.
Izolina
41
poder entrar o ar. Havia um biombo na entrada do salão e, de repente, um
chapéu branco passou, atravessando pelo alto do biombo. Ela falou:
"Waldir, ó Tião aí..." Ele tinha faltado ao serviço. Chegou lá. Era mais ou
menos 11 horas quando ele resolveu aparecer por lá. Quando ele chegou
na casa e não encontrou a Izolina, resolveu ir ao cabaré.
Estávamos lá sentados, tomando cerveja quando ele chegou. Eu
falei para Izolina: “Você se vira, vai lá, vai lá ter com ele”. Ela falou: "Ele
vai me matar, desta vez ele me mata..." Eu falei: “paciência”. Mas eu
estava com um medo desgraçado. Porque era um crioulo forte, brigador. E
eu fraquinho, pensando: “Ah, meu Deus do céu... agora eu estou morto...
hoje Ormesinda vai me perder, não tem jeito”.
Ele chegou, olhou para ela e mostrou aquela dentadura de ouro,
fez um gesto para que ela fosse até ele. Ela falou: "eu não vou, não". E eu
falei: “vai, vai embora agora. Senão ele resolve entrar e é pior ainda. Vai
agora”. E ela foi, levantou e o acompanhou. Saiu com ele. Eu, nessa
altura, perdi todo interesse no resto da noite. Como eles já tinham pago
tudo, também fui embora.
No dia seguinte, quando cheguei lá, ela estava toda quebrada. Ele
havia batido muito nela, estava cheia de hematomas. Arrebentou a mulher
toda. E sabe o que ele fez? Tirou ela da zona. Arranjou uma casa para ela
na cidade. Ela não me entregou, não entregou ninguém. Ela falou que foi
lá por conta própria. Eu passei por este pedacinho difícil. Mas eu passei
por outras...
Violência no cabaré
42
porque ela sempre me proibiu. E, outra coisa: “Não deflore moça
nenhuma. Se você deflorar, case-se com ela! Por que isso aí eu não
admito, não deflore moça nenhuma”! Então, a minha brincadeira era toda
só brincadeira mesmo.
Mas como eu ia dizendo, teve uma briga lá no cabaré e como
tinha só a entrada, ali dentro era um alçapão. A polícia chegava, fechava e
quem tivesse lá dentro... Tinha um cabo da polícia, o Tesoura, que era
cambota como o Garrincha. Mau, mau demais. Mas ele adorava o canhoto,
era um ídolo para ele. A polícia ia dar ‘um fecha’ no cabaré. O Sávio
correu na frente e falou com a gente: “Canhoto, tira seus amigos daqui
porque nós vamos dar ‘um fecha’ e quem tiver aqui vai preso, a polícia vai
pegar todo mundo.” Foi só a gente sair e logo a polícia chegou e
fechou. Era um festival de pancadas. Todo mundo apanhava. Era assim
quando dava ‘um fecha’ no cabaré e prendia todo mundo.
Celso Policarpo
43
43
O Bar do Aziz era o bar onde a rapaziada jovem daquela época
se reunia e a minha turma se encontrava toda noite para contar as estórias,
os namoros. Quando tinha baile na Sede do Retiro, era no bar do Aziz que
a gente se reunia para ir para o baile.
Além de tudo, tinha no domingo a hora dançante na sede do
Retiro, que ia até meia-noite. Tinha um termo muito engraçado que nós
usávamos que era “dar uma folhada”. Aquelas menininhas nossas amigas,
nossas namoradinhas, que dançavam com a gente, nós perguntávamos:
“Vamos dar uma folhada?” E se ela concordasse, a gente saía geralmente
em duplas de casais, e ia procurar um cantinho no escurinho. Tirávamos
aquele sarro danado.
Teve uma vez que o Tonho, amigo meu, saiu com uma menina e
eu saí com outra e fomos para o bicame, aquele condutor de água,
aqueduto. Era a gente que dava o nome de bicame. Passava muito pouca
gente, era escurinho. Eu fiquei mais exposto. O Tonho queria avançar
mais o sinal. Só sei que o Tonho saiu de lá com a menina aos gritos, caiu
na corredeira de formiga, numa coleção de lava-pés. As formigas picaram
eles em todos os lugares... Foi engraçadíssimo!
Depois que acabava o baile, a gente ia para o cabaré acabar a
noite. O Cabaré do Girolla. Ali se passava o resto da noite. Dançava,
bebia, pegava uma mulher, esperávamos elas ganhar dinheiro com os
coronéis.
O Vila Nova
A Música do cabaré
44
44
Antes de entrarmos no cabaré, do lado de fora, na porta, tinha a
radiola com disco, onde tocava bolero, tango. No cabaré geralmente a
música era de disco.
Uma vez ou outra tocava um conjunto ao vivo, era o clube que
tinha a orquestra de Manasés. Ele era ótimo saxofonista e maestro.
Contratavam essa orquestra para todos os bailes. O maestro era o Manasés,
e a orquestra era composta de saxofone, píston, trombone de vara, bateria.
Tocava música dançante, bolero, tango, o fox americano. Nessa época
estava na moda aqueles musicais da Metro, por isso tocavam fox. Mas o
bolero e o tango eram as músicas mais tocadas.
45
45
achei muito bom. Foi quando eu voltei para Nova Lima, década de 30,
voltei em 32 para Nova Lima. Eu devo ter composto esse hino em 35.
46
46
em Nova Lima, muito ligados à música. Eles tinham um conjunto vocal e
eu comecei a compor para ela tocar no rádio.
Ela ia a Nova Lima e eu cantava a música até ela decorar. Ela
chegava a Belo Horizonte e cantava. Eu fiz muitas composições para ela.
Mas acontece que meu nome não aparecia.
Acho que isso já foi na época do Estado Novo de Getúlio. As
rádios que se ouviam aqui eram principalmente as rádios cariocas, mas
havia rádios mineiras como a Atalaia, a Inconfidência. Eu ouvia
principalmente a Rádio Nacional, do Rio. A Rádio Nacional tinha
programas ao vivo, de auditório... tinha o do Alencar, que era animador.
Tinha o programa do César Ladeira, que era locutor, mas não animava
programas de auditório.
Eu me lembro que havia disputas entre cantoras, como a Marlene
e a Emilinha, e na ocasião, houve também um musical entre o Noel Rosa
e um outro compositor que agora não lembro o nome. Ele cantava para o
Noel: “quem é você que não sabe o que diz. Meu Deus do céu, que palpite
infeliz. Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira, Oswaldo Cruz e Matheus,
que sempre se deram muito bem...” não me lembro o resto da música.
Só sei que o Noel era de Vila Isabel e era divulgador das belezas
de lá. Esse outro compositor respondia às músicas que o Noel fazia. Foi
uma época muito boa na música brasileira. O Getúlio na ocasião
incentivou os candidatos a se agruparem, e ele deu força para os
compositores, os candidatos queriam fazer a eleição...
Nesta ocasião, os compositores fizeram muitas músicas de
carnaval, muita música popular brincando com os candidatos, e mesmo
com o próprio Getúlio. Ele ia nos programas de auditório e dava força. Ele
ia na Rádio Nacional e os cantores brincavam com ele. O Getúlio era um
camarada popular, popularíssimo. Populista mesmo. Foi uma época em
que o país viveu uma alegria total... O povo achava aquilo uma alegria. Só
quem não gostava daquilo eram as elites, porque quanto mais ele se
misturava com o povo, mais ele se tornava adorado por todos. Os
operários gostavam dele e isso era contra os poderosos que queriam
massacrar a classe operária e ele não deixava isso acontecer.
Mas eram muitas rádios, não tinha só a Rádio Nacional. Nesta
época, a gente também escutava a Mayrik Veiga, a Rádio Roquete
Pinto. Esta Rádio Roquete Pinto era mais ligada à cultura. Mas além dos
programas culturais, voltados para a educação, tinha programas
humorísticos muito bons. Foi quando apareceram humoristas como o
Chico Anísio. O rádio era muito divertido. Não tinha essa quantidade de
música estrangeira que tem hoje, tocava mais música popular brasileira
mesmo. Só tinha na época, competindo com as músicas brasileiras,
aqueles musicais da Metro, aqueles fox etc. Neste caso o que realmente
prevalecia era a música popular brasileira.
47
47
Eu gostava mesmo era da Rádio Nacional. Ele era como é hoje a
Globo para as demais concorrentes da televisão. Era a mais poderosa e
tinha melhor patrocínio. Fazia programas muito interessantes e tinha os
melhores cantores, promoveu muitos artistas. Lá na Praça Mauá, no Rio, a
rádio promoveu Orlando Silva, Emilinha Borba, Marlene... Esses
artistas surgiam através desses programas de rádio. Principalmente da
Rádio Nacional. As outras emissoras tinham pouca divulgação. E como eu
era do povão, eu ouvia mesmo a Rádio Nacional. Era a minha predileta.
Havia também os programas de caráter mais político. Por
exemplo, quando ocorreu a Segunda Guerra Mundial, o Brasil entrou e
todos nós ouvíamos diariamente notícias através do César Ladeira, que era
o locutor que lia todas as notícias sobre o movimento de guerra. A
participação do Brasil no momento em que declarou guerra à Alemanha,
ao Eixo, quando tiveram movimentos de protesto contra os alemães e
italianos no Brasil inteiro. César Ladeira noticiava as quebradeiras. Porque
foi uma quebradeira geral.
Em Nova Lima teve um quebra-quebra terrível. A rádio foi muito
importante. Um outro evento que a rádio teve muita participação foi na
inauguração da estátua do Cristo Redentor, no Rio. Parece que foi um
italiano que trabalhava com rádio que conseguiu iluminar a estátua do
Cristo. Acho que o sujeito se chamava Marconi, não estou bem lembrado.
Só sei que através do rádio ele iluminou...
48
propriedade do Assis Chateaubriand. Mas não estou certo. O que tenho
certeza é que a Rádio Inconfidência era a rádio oficial do governo.
49
49
que canta. Eu mesmo fiz uma música de exaltação ao trabalho,
influenciado pelo Getúlio. Chama-se Rosário de Felicidade:
50
mentira, ele dava toda liberdade. Com relação às rádios eu realmente não
me recordo.
Eu até compunha para uma menina, a Aldinha, lá de Nova Lima,
trazia para Belo Horizonte. Ela cantava na rádio Guarani. A Guarani tinha
um auditório ali onde hoje é a Lojas Americanas, na esquina de rua São
Paulo com avenida Afonso Pena. Ali era o auditório da Rádio Guarani, e
geralmente sábado e domingo, eles traziam aqueles cantores. Eu era
macaco de auditório, fanzoca e só isso. Meu locutor preferido era o César
Ladeira, não tinha posição, só noticiava, não defendia o governo. Eu
gostava de sua impostação de voz. Ele falava bem.
Eu me lembro que um dia eu fiquei ali parado para entregar uma
música que eu fiz para o Sílvio Caldas. Mas eu não consegui chegar perto
dele. Eu era fã do Sílvio Caldas. Ele era cantor famoso, cercado por um
punhado de gente e não teve jeito. Ficou só na vontade. A música que eu
fiz para ele chamava-se a “Vingança da flor”:
“No jardim da minha vida um dia
uma linda flor plantei
E das flores que eu queria
foi a flor que eu mais amei.
Samba e Carnaval
51
Eu dançava bem e puxava bem o cordão, eu era baliza. Por que o passista
de hoje é o baliza de ontem. Já tinha o porta-estandarte. Nessa época a
bandeira do bloco vinha atrás, mas o baliza era da comissão de frente.
Baliza era aquele que ia em frente, o nome diz. Eu só saía na frente,
botava o samba no pé mesmo.
Mas eu tenho um caso muito interessante de carnaval. Por que a
orquestra do Manacés era a melhor orquestra de Nova Lima e os músicos
eram do Caroço Encravado, uma potência em matéria de sopros, mas não
tinha bateria e então o Retiro contratou um time, o time do Andaraí, e
trouxe todos os jogadores do Andaraí e junto um crioulo, um carioca...
Esqueci o nome dele. Esse crioulo era um marcador do surdo de bateria
num bloco desses do Rio de Janeiro, cobra mesmo. E ele armou uma
bateria... Os blocos se encontravam no centro e aquele que superasse o
canto do outro era o vencedor.
E eu no Caroço Encravado... tinha as meninas mais bonitinhas
nesse bloco. Ai, a bateria do Sorriso arrasou. Os metais do Manacés e a
bateria mixuruca teve que encarar... O Sorriso acabou com a brincadeira e
os cariocas do clube... Todo mundo malandro carioca, acabaram com a
brincadeira. Foi um arraso... Isso deve ter sido 41, 42, durante a Guerra.
52
Mas uma vez os americanos se aproveitaram da ingenuidade de nosso
presidente, que era Getúlio Vargas. Ele era um ingênuo e acreditava em
todo mundo, em qualquer coisa. E os EUA forçaram o Brasil a entrar na
guerra. E o Brasil, por sinal, depois de terminada a guerra, apesar das
mortes dos brasileiros que morreram em campanha, teve um saldo positivo
em matéria de economia.
Porque o Brasil na época, depois da Guerra, o Brasil teve um salto
na economia mundial, nossas reservas financeiras ficaram numa boa
situação. O Brasil ganhou muito dinheiro nessa época. Mas infelizmente,
mais uma vez os americanos souberam burlar os brasileiros. O presidente
Eurico Gaspar Dutra e os seus comparsas pegaram toda nossa reserva
financeira e, nos EUA e na Europa, trocaram tudo por ioiô e essas coisas
de plástico. Inundaram o Brasil de plástico como eles sempre fazem
quando querem se desfazer de qualquer coisa.
Quanto à Guerra, a Saint John Del Rey não influenciou em nada o
movimento. Mas os empregados, os contratados da Morro Velho que eram
de descendência italiana ou alemã, esses sofreram as conseqüências, em
motivo da Guerra ter sido contra eles. Mas não foram despedidos porque a
Morro Velho não interviu. Eles sofreram as consequências com as
depredações, uns até tiveram que fugir de lá até passar a rebelião. Porque
também foi uma coisa espontânea, como é em toda cidade do interior.
Qualquer movimento desses que explode no Rio de Janeiro e São Paulo,
aqui também ocorre, todo mundo imita. É uma coisa interessante, a pessoa
se julga no direito de acompanhar o que vem dos grandes centros.
A São João Del Rey Mining Company não interferiu e não houve
nenhum movimento de rebeldia por parte do povo contra a Morro Velho.
Os trabalhos continuaram normalmente e não houve paralisação, não
houve nada. Só houve uma explosão, duas noites, não me lembro o que
fizeram nessa manifestação.
Nessa época, em 1945, eu ainda estava trabalhando como
pedreiro. Me parece que eu fui para o escritório em 46, 47. Eu trabalhei
oito anos como correspondente em inglês, saí da Moro Velho em 1952.
Antes disso eu era trabalhador braçal.
53
dinheiro, então eu não quis nada com ela. Ela disse: “Segunda feira você
vem cá”. Quando foi segunda-feira de manhã... Eu tinha um colega muito
amigo meu e ele chegou lá... Ele estava num estado miserável. Andando
de perna aberta... Eu perguntei: “O que aconteceu?” Ele virou e disse:
“Ah, Waldir, eu peguei uma carregação de doenças venéreas que você
nem imagina... Eu estou com mula, cancro, gonorréia...” Eu pensei: “Meu
Deus, mas quem te fez uma coisa dessas?” E ele: “Foi fulana.”
Exatamente a dita que eu ia ficar com ela no mesmo dia, à tarde. Meu
Deus do céu. Tinha cinco dias que tinha aparecido isso nele... E eu resolvi.
Não vou mais na zona boêmia... Agora é tempo de arranjar uma namorada
e arranjar uma outra vida... não dá mais para ficar correndo esse risco. Eu
parei mesmo.
E foi quando eu fui apresentado para a Leonícia e só não parei de
dançar. Mas no cabaré eu deixei de ir mesmo. Numa cidade que tinha
muito mais homens do que mulheres eu resolvi casar logo. Mas uma das
coisas que a Leonícia sabe e não nega é que eu sempre fui muito sincero...
Nunca escondi dela minha vida passada. Cada qual faz aquilo que acha
que deve fazer e é importante a confiança mútua, porque se não houver
confiança, não dá.
Eu já estava casado com a Leonícia quando fui transferido para o
escritório. Mas foi através do sindicato que eu passei a ser correspondente
em inglês da Morro Velho. O engraçado é que eu não era participante,
nem filiado. Eu não tinha essa intenção de ser, na época eu era muito novo
e meu assunto não era militância sindical. Eu não atuava politicamente em
coisa nenhuma. Acompanhava. A única coisa que me lembro de que valeu
o sindicato foi quando eu denunciei uma injustiça da qual eu estava sendo
vítima.
Eu trabalhava nessa sessão quando eu deixei de ser pedreiro, na
mesma sessão eu consegui ser transferido para o escritório do presidente
na olaria e então fui trabalhar de auxiliar nesse escritório. Trabalhava das
7h da manhã às 3h da tarde, constando de carteira assinada. Meu horário
era esse.
O chefe da sessão, Djalma Lobo, era um brasileiro, mas muito
puxa-saco dos ingleses, se dizia engenheiro e ele é quem era o chefe. E
ele protegia um colega meu de escritório, mais antigo, chamava-se Ary.
Nós quase não tínhamos o que fazer no escritório, brincávamos muito.
Gozávamos a cara um do outro. E nós estávamos de tarde lá, conversando
porque não tínhamos o que fazer, e o Ary teve uma hora lá que eu disse
uma coisa qualquer na gozação e ele não gostou e disse que ia me bater.
Ele era assim truculento, gostava muito de aparecer para os outros. Eu era
franzino, em matéria de peso ele era Mike Tyson e eu era um qualquer.
Ele falou que ia me bater. Eu pedi desculpas, falei que eu retirava o que
falei, mas ele disse: “Ah, não. Agora eu não desculpo, eu vou te bater
54
54
mesmo. Tá resolvido”. “Eu vou dar na sua cara para você não me gozar
mais.”
Acontece que eu tinha aprendido em Belo Horizonte defesa
pessoal, jiu jitsu e boxe. Na minha passagem por Belo Horizonte em 1932
eu tinha aprendido defesa pessoal. Quando ele veio para me agredir, eu me
encostei na parede e quando ele veio me bater eu defendi, ele veio trocar
murros, eu dei-lhe um soco da testa e ele perdeu o equilíbrio e voltou para
trás... Chegou a turma do “deixa disso” e segurou. Ele mesmo se
surpreendeu, não esperava a minha reação. Ele achou que ia chegar e eu ia
afinar para ele ali.
Depois nós fomos para um lugar maior. Eu ainda fiquei um tempo
ali na quina do bureaux do chefe, me encostei ali e fiquei esperando ele
brigar com a turma do “deixa disso”, que segurou ele.
Mas eu podia ter aproveitado e ter ido lá bater nele porque ele
estava seguro, mas eu não queria brigar, eu não estava a fim de briga. Eu
fui para a outra sala. Ele se livrou deles e veio, partiu para cima de mim.
Eu estava encostado na quina do bureaux, inclinei o corpo para trás...
Deixei o joelho. Ele chegou, bateu no joelho e na minha cara... eu fui e
peguei ele. Quando ele bateu, eu me defendi, fui e bati no olho dele. Partiu
a pupila do olho dele. O olho dele inchou na mesma hora. Um filete de
sangue escorrendo... Eu fui mandado lá para o pátio. Um pátio de depósito
de material.
Depois ele conseguiu se livrar deles e correu para me agredir lá
em campo aberto. E eu, vi que ele estava com o olho inchado pus a perna
na frente ele tropeçou e caiu no cascalho, ralou-se todo. A essa altura,
quando ele viu que não podia comigo, ele disse: “Ah, eu vou lá em casa
buscar uma faca, eu te mato!” E saiu para buscar a faca e eles me
mandaram embora para a casa.
Mas com essa, Djalma Lobo achou por bem nos separar e
negociou minha transferência para um outro escritório, porque ele não
podia ter me mandado embora porque as testemunhas foram todas
unânimes em dizer que eu não tinha começado a briga, porque se não ele
me mandava embora. Mas como tinha sido o Ary, que era seu protegido,
ele achou por bem negociar a minha transferência.
Me mandou para o almoxarifado da Morro Velho lá dentro do
complexo. Esse escritório era fora do complexo da mina, da apuração de
ouro. Ele só mexia com negócios de construção. Era no Retiro, ali perto da
Igreja de Santo Antônio. Tinha um lugar lá que se chamava olaria e era lá
que tinha esse escritório, e os depósitos de material de toda a companhia.
Djalma falou comigo que eu estava transferido. Me mandou para esse
escritório.
Os estudos, o sindicato
55
55
Eu já estava estudando no Liceu, fazendo contabilidade e mudou
meu horário. Eu pegava às 6h30 e saía as 16h, este era o horário do
complexo todo da Morro Velho. Era das 6h30 às 16 horas. Mas aquilo
estava me prejudicando porque eu perdia uma hora, justamente a hora d’eu
estudar, das três às quatro. Eu entrava no Liceu às 6h da tarde e saía às
10h. Então eu tinha só aquela horazinha para estudar. Comecei lá...
Cheguei perto do chefe da sessão de lá... Seu Manoel Taveira... português.
Cheguei para o Seu Manoel e disse o seguinte: “Acontece que eu tinha
esse horário para eu estudar...” Ele disse que tinha um outro lá,
Magalhães. Segunda, quarta e sexta eles saíam alternadamente às três
horas e como eu substituía sempre um deles quando eles saíam, ele foi e
falou assim: “Quando o Magalhães sair e o outro ficar, você pode sair
também”.
Eu fui e comecei a sair mais cedo três vezes por semana. De
qualquer forma podia continuar assim que eu até aceitava... Mas um
funcionário mais antigo da sessão achou que isso estava errado e
reclamou... O chefe virou e falou: “Waldir, me desculpe, mas não vai dar
para você continuar nesse esquema, porque um rapaz reclamou...” “Então,
o senhor me dá licença para eu falar com o chefe...” Era o Mr. Lamelay...
fumava charuto o dia inteiro. Mas Mr. Lamelay não quis me receber...
Então eu pensei: agora não tem jeito, vou partir para o sindicato... e
registrei a queixa. Queria que me restabelecessem o horário antigo, das 7h
às 3h; era o que constava do meu contrato de trabalho, firmado em
carteira.
Quando eles sentiram que iam perder... fizeram um punhado de
ameaça e coisa e tal... e eu me mantive firme. Nessa ocasião o membro
mais importante do sindicato era o... espera aí...foge o nome... isso foi em
1946, pouco depois da guerra... eu tenho uma carteira de trabalho com
essas datas todas registradas... Mas como é que chamava o sujeito?? Ele
tem um nome gozado... Diocélio! Diocélio Ribeiro, eu acho.
Esse Diocélio entrou no sindicato como boyzinho, servente. Logo
que o sindicato se formou. Ele era menor e começou a trabalhar varrendo,
limpando mesa. Se interessou pelas leis de consolidação do trabalho do
Getúlio e decorou tudo... decorou as leis todas. Ele sabia tudo de lei. E os
operários depois disso não perderam nenhuma causa com a Morro Velho,
entravam e ganhavam mesmo. Foi no Diocélio que eu fui. Eu precisava de
ganhar a causa e fui... Nessa época ele já era membro do sindicato. Ele era
uma espécie de consultor. Tanto que a Morro Velho, o sindicato, tinha um
advogado, mas ele só consultava com Diocélio. Diocélio é quem
comandava o advogado. O advogado era só para ir lá nas sessões na hora
do dissídio... O advogado ia, mas com a orientação de Diocélio. Quando
eles sentiram que iam perder, me mandaram para o escritório comercial da
Morro Velho. Era na Casa
Grande.
56
56
Do escritório da Morro Velho à Magnesita
57
não tinha provas contra. Foi por esse motivo. Em 1952, eu saí da Morro
Velho e fui trabalhar na Magnezita.
58
58
MEMÓRIA, HISTÓRIA, HISTÓRIA
ORAL: Discutindo a vida dos mineiros de
Morro Velho
59
59
A H i st ó r i a n a e n c r u zi l h a d a d a m e m ó r i a
60
60
efeito de análise, pois não se pode pensar o indivíduo separado da
sociedade.
A memória é social, mas também individual, pois somente pode
vir à tona quanto materializada pelo homem. Assim, como afirma
Alessandro PORTELLI, apesar deste preferir evitar o termo “memória
coletiva”: “...a memória é um processo individual, que ocorre em um meio
social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e
compartilhados” (apud FERREIRA e AMADO,1997:16). A história oral
é uma ciência e arte do indivíduo como diz Portelli, mas a memória está
enraizada em redes de solidariedades múltiplas, coletivas.
O historiador oralista escreve a História a partir do trabalho com a
memória, presença do passado. A memória é uma reconstrução psíquica e
intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um
passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo
inserido num contexto familiar, social, nacional.
Henry ROUSSO diz que: “se o caráter coletivo de toda memória
individual nos parece evidente, o mesmo não se pode dizer da idéia de que
existe uma “memória coletiva”, isto é, uma presença e portanto uma
representação do passado que sejam compartilhadas nos mesmos termos
por toda uma coletividade.” (apud FERREIRA e AMADO,1997:95)
Memória e História
“Memóire, d’où Histoire”
A epígrafe acima demonstra como os enciclopedistas franceses
entendiam, no século XVIII, a relação entre a memória e a História. Aliás,
para eles, um termo era sinônimo do outro. Como pode ser observado na
Explicação Detalhada do Sistema de Conhecimentos Humanos, na
Enciclopédia iluminista, o verbete História vem apresentado da seguinte
maneira: “Memóire, d’où Histoire”. (memória, por conseguinte,
História ).
Passando ao século XIX continua-se a se ter a impressão de que
se ia da história para a memória, uma segregando a outra. Hoje, dá-se o
inverso. As rupturas ocorridas nas sociedades contemporâneas e as novas
aberturas dentro da historiografia transformaram a memória num problema
61
61
histórico recente. A adoção de uma problemática contemporânea, unida a
outros eixos de inovação na historiografia, fez com que a memória
deixasse de ser sinônimo da História e que a memória coletiva/individual
passasse a ser objeto da História. A memória se expandiu, passou a ser
considerada globalizante e sem fronteiras e a História, neste caso, a
história oral, uma elaboração dos historiadores a partir da memória. O
próprio historiador francês Jacques LE GOFF(1990), em Memória e
História, diz que da mesma forma que o passado não é história , mas
objeto da história , assim a memória não é história , mas um de seus
objetos e um nível elementar, fundamental, de seu desenvolvimento.
A memória é dinâmica e seus silêncios-esquecimentos são tão
importantes quanto suas lembranças - já salientava Pollak em seus estudos
sobre memória, esquecimento, silêncio - e é certo que ela é dialeticamente
relacionada ao pensamento histórico, ao invés de ser apenas seu oposto
e/ou negação. Essa dinamicidade da “arte da memória” faz com que ela
seja, como a história, constante criação.
Isto quer dizer que o trabalho aqui apresentado é uma elaboração
histórica. Trata-se de uma pesquisa de História cujo principal objeto é a
memória dos operários, registrada através de entrevistas organizadas e
realizadas sob a orientação de uma metodologia específica, já teorizada e
reconhecida nos meios acadêmicos internacionais, a história oral. Neste
trabalho, memória e história se cruzam, num processo híbrido sem
diluírem-se entre si totalmente. O documento oral, conforme afirma
NEVES (1993:99), é produto de uma releitura do passado individual,
inserido na dinâmica da história. Nesse sentido, os acontecimentos
históricos são sinais exteriores, são referências para o afloramento da
memória individual. Fala-se do tempo individual relacionado ao tempo
coletivo.
Nesse entrecruzamento entre memória e história constata-se que
a própria reconstituição da memória é um processo histórico social ativo:
“Para a história não interessam somente os fatos passados, mas a forma
como a história popular é construída e reconstruída, pois a consciência
individual é relacionada com a consciência social no processo constitutivo
de identidades coletivas”(NEVES, 1993:99).
62
coletiva” se interliguem de forma dialógica, complementando um ao
outro. Afinal, deve-se entender os fenômenos da história e da memória
como interligados em sociedade, em nossa cultura.
De acordo com FRISCH: “há uma última dimensão em que os
campos da história e da memória se entrelaçam, uma dimensão em que a
história oral tem tido especial importância, não tanto por seus produtos,
mas mais por seus processos: pelo envolvimento maior na recuperação e
na reapropriação do passado que a história oral possibilita.”(apud
FERREIRA e AMADO, 1997:78)
63
63
Nesse sentido, é possível considerar a fala de um homem comum
como sendo a fala de um ser histórico. E, por isso mesmo, como um
sujeito político por ser "ator e autor" da história. A história oral recupera
o criador de história que habita cada um de nós. Nesse caminho do
individual ao coletivo, do psíquico ao social-histórico e vice-versa
encontra-se esse personagem: o contador de história . Ele não só é
portador de uma história como também, enquanto narra sua história de
vida, cria e recria a história de seu povo, de sua classe, de sua cidade
natal, dos espaços em que viveu, de sua nação. Daí a importância de se
pensar a questão da identidade do grupo. A identidade em sua relação com
o espaço de convívio coletivo, refere-se, no caso estudado, aos operários e
seus processos de identificação no cotidiano da luta pela sobrevivência no
árduo trabalho na Mina, bem como nas maneiras de fazer do dia a dia, nos
modos de vida, nos hábitos alimentares, no vestuário, na moradia, no lazer
e em outras atividades e hábitos que os identificam e os unem em torno de
uma experiência comum, porém plural.
A história passa assim a ser objeto de experiência. Através das
experiências dos operários, de suas lembranças, pode-se constatar que
estes sujeitos não só são ser(es) da história , mas também são ser(es) na
história e na sociedade e da sociedade.
Através dos narradores pode-se entrever uma história criada,
construída a partir do entrecruzamento de uma memória (política, social,
econômica, cultural) individual com uma memória coletiva.
Do individual ao coletivo, do psíquico ao social-histórico e vice-
versa. Nesses movimentos dialógicos/dialéticos algumas questões teóricas
acerca da constituição do sujeito político vêm à tona. Discussão pertinente
ao trabalho com história oral, principalmente, para quem se propõe a
trabalhar com história oral de vida com recorte temático.
Afinal, a história oral é um dos elementos que permite "trazer à
superfície da água" os criadores de história , sejam eles "grandes homens",
ou não. A história oral se interessa pelo estudo de homens em situações
cotidianas, em seu grupo, organização e comunidade, empregando para
tanto uma pesquisa-ação. Nesse processo, teoria e prática se confundem,
pois a teorização é fruto da reflexão que, a partir de eventos da vida
cotidiana, torna visível a presença do sujeito social. Sujeitos que, movidos
pelos desejos e pelas paixões, movidos por um ato de decisão, que é
também um ato de palavra, são capazes de realizar "esse obscuro objeto do
desejo", a mudança social, mesmo que parcialmente, em gestos quase
imperceptíveis.
64
como legítimas, mas, como um ser falante, é (re) criador de seus atos e da
história de sua vida e de seu povo.
Os próprios entrevistados, ao se referirem a suas origens, já se
colocam inseridos dentro de um social dado, dentro de um espaço e, é
claro, dentro de um grupo, de uma instituição: a família. É nesse primeiro
momento que o sujeito apresenta-se como sujeito social. Ele tem um nome
que o identifica para o grupo. Fala de uma época distante, fala do passado:
sua fala diz respeito ao tempo, tempo de nascimento, tempo de integração
ao grupo. E esse grupo não é uma massa amorfa. É conjunto de outros
sujeitos sociais. Daí ser a utilização do conceito de identidade muitas
vezes questionado. Porém, ao se adotar nesta pesquisa esse conceito, estar-
se-á considerando a identidade como sendo constituída não somente por
iguais, mais também como sendo constituída por processos de
desvelamento das diferenças, tendo em vista a pluralidade inerente aos
sujeitos sociais.
Por outro lado, sabe-se que existe, em toda sociedade, um
discurso dominante. Só que este discurso é modulado diferentemente pelos
diversos grupos e classes que compõem esta sociedade e, às vezes, até
mesmo se choca à condutas que se referem a outros valores e hábitos,
ignorando a própria ideologia dominante. A história , diferente daquilo
que pregava Althusser, não é um processo sem sujeito. Muito pelo
contrário. O caso dos “contadores de história” é elucidador desta questão
pelo fato de que está se tratando de sujeitos inseridos na classe proletária.
Estes mineiros falam de um lugar social, que é o lugar do operário que
sofreu a exploração dos ingleses, proprietários da Mina onde trabalharam.
E, desse modo, pertencem ao lugar dos chamados "excluídos", "vencidos",
da história . Este é um dos traços identitários do grupo. Até porque, a
ideologia dominante, pelo menos no discurso da história oficial, é a
própria ideologia dos ingleses, dos detentores dos meios de produção.
Os sujeitos não falam só de si mesmos. Eles também se remetem
ao grupo ao qual estão vinculados. Por exemplo, o Sr. Waldir dos Santos,
conta a história de seu trabalho e do trabalho dentro da Mina de Morro
Velho:"Porque muitos não agüentavam. Como se dizia, saíam nos panos,
saíam na maca, porque caíam de inanição, de cansaço, sem oxigênio e
enchendo vagonetas de minério. (...) Isso era a Morro Velho antes da
Consolidação das Leis do Trabalho. Mas, antes disso, era uma verdadeira
escravidão"6.
Nesse trecho já aparece um apontamento para um marco nacional.
Sr. Waldir remete-nos ao grupo, à classe social ao qual vincula-se, mas
também, ao falar sobre as leis trabalhistas de Getúlio e à formação dos
sindicatos, remete-nos a uma questão da política da nação brasileira como
um todo.
6
Depoimento do Sr Waldir dos Santos.
65
65
Ele também conta que “o camarada era atacado pela doença da
silicose, espécie de tuberculose provocada pelo pó de minério no
pulmão... Ele adoecia, mandavam ele embora e ele morria; só que nada
acontecia. muita gente morria. Além dos acidentes de trabalho, onde
morriam dezenas de pessoas toda semana. (...) quando, em outra ocasião,
sem querer, um dos operários batia com a pá numa dinamite que não
havia sido detonada, esta explodia e pegava a turma toda lá trabalhando.
Aí arrebentava tudo. Os homens saíam aos pedaços, saíam no saco. Era
terrível. Toda semana eram dezenas."
No trabalho com a história oral, deve-se estar sempre atento à
tentativa de entrecruzamento da memória individual rica, repleta de juízos
próprios, de questões sentimentais complexas e emocionantes, com a
memória coletiva, da qual esta faz parte.
Esta metodologia, na tentativa de valorização da fala do sujeito,
permite que o narrador apareça e que assim emerja "uma vida que não
inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia"(BENJAMIN,1987:221). Afinal, a história oral possibilita a
expressão de diversificação das representações da realidade. O trabalho do
historiador oralista traz à tona mais uma vez essa relação entre individual
e coletivo, possibilitando, através da memória, a produção de evidências
sobre processos históricos coletivos, constituindo, assim, um vasto campo
para o reconhecimento de processos identitários; verdadeiras
identificações, como se pode verificar ao analisar a própria construção das
plurais identidades operárias. E isso ocorre devido ao fato de que: “a
identidade traduz um sentimento e uma convicção de pertencimento e
vinculação a uma experiência de vida comum. (...) A dinâmica constitutiva
da identidade é a da representação, que pode vincular-se simultaneamente
à alteridade e à igualdade. Ou seja, a identidade é constituída por um
mecanismo contrastivo de afirmação das diferenças e de reconhecimento
das similitudes.
A memória é suporte vital da identidade reveladora da
pluralidade inata à vida humana. Portanto, História e Memória,
interrelacionando-se através da produção de fontes orais, são processos
cognitivos através dos quais as identidades dos grupos sociais podem ser
melhor reconhecidas e, por consequência, analisadas . ” (NEVES ,
1998:1529)7
7
Vale a pena conferir também, além do artigo de NEVES, intitulado “A Voz dos
Militantes. o ideal de Solidariedade como Fundamento da Identidade Comunista”,
outros artigos publicados no: X International Oral History Conference:
proccedings. Rio de Janeiro: CPDOC, FGV: FIOCRUZ, Casa de Oswaldo Cruz,
1998. 1º volume.
66
66
TRABALHO NAS MINAS
67
67
TRABALHO NAS MINAS
8
Com relação a esta categoria conceitual discutida por Michel Foucault, há uma
vasta bibliografia a respeito. Como por exemplo, do próprio autor, o livro “
Microfísica do Poder” , publicado no Brasil pela editora Graal, do Rio de janeiro,
em 1979. / Pela Bibliothéque des Histoires, da editora Gallimard francesa, está
publicado o livro “Surveiller et punir - Naissance de la prison”, que também está
traduzido no Brasil pela Editora vozes de Petrópolis. Sobre essa bibliografia
existem alguns livros que abordam o assunto, seja se utilizando do material para
análise de outros objetos, seja enquanto crítica. Podemos citar como exemplo os
livros: “Esquecer Foucault”, de Jean Baudrillard, publicado pela editora Rocco, do
Rio de Janeiro, onde faz-se uma crítica à obra de Foucault. Ou, de José Guilherme
Merquior, o livro “Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra”, publicado pela Nova
Fronteira em 1985, que também é uma crítica. Ou, “Foucault” de Giles Deleuze,
traduzido para a lingua portuguesa pela editora Vega, de Lisboa. Este livro traça
com nitidez as várias configurações móveis do pensamento de Foucault e nos é
de extrema importância no sentido de analisar a obra relacionando-a com o
conceito de História do autor trabalhado. Vale apena citar também o livro
organizado por Renato Janine Ribeiro, entitulado “Recordar Foucault”, publicado
pela Brasiliense em 1985. O livro possui ensaios diversos sobre a questão da
“microfísica do poder”, inclusive de intelectuais historiadores que se utilizaram do
arcabouço conceitual foucaultiano para entender, por exemplo, o castigo dado
aos escravos no Brasil Colonial. Só para citar alguns exemplos.
68
68
evidência o sistema de uma “repressão” e mostre como, por trás dos
bastidores, tecnologias mudas determinam ou curto-circuitam as
encenações institucionais.” (CERTEAU, 1994:41).
9
Trecho da entrevista de Dazinho, outro operário, entrevistado por Michel Le Ven.
Cf. LE VEN,1998:60.
69
69
A empresa, através de seus patrões de mina e
feitores, utilizava um dos recursos de elevar sua taxa de
exploração do ouro, que é o aumento do ritmo da produção,
utilizando-se não de novos procedimentos técnicos, mas
valendo-se de estímulos culturais e, quando preciso, de
coerção física. Para tanto, “a figura central era o feitor”.
(GROSSI, 1980: 60) O uso da violência corporal contribuía
para adestramento do corpo mas, principalmente, para servir
de exemplo aos outros mineiros, para reforçar a estrutura de
produção capitalista. Não se podia parar para descansar dentro
da mina, pois isso diminuiria a extração do ouro e, por
conseguinte, o lucro da empresa. Os micropoderes se
entendiam por todos os lados, e o feitor estava imbricado
nesse processo. “Em Morro Velho, um feitor era como um
capataz. Recebia tarefa de fazer encher tantos carros e não
havia como negociá-la; era questão de produção e a
Companhia não abria mão. Sobre o feitor pendia a ameaça de
ser rebaixado a “pá”, caso não executasse bem o seu
trabalho. Para defender o cargo, os feitores exigiam o
máximo dos colegas, pois também viviam sob a “chibata do
capitão”. (GROSSI, 1980: 61).
70
dessa indumentária no subsolo. De acordo com GROSSI,“A autoridade
que emanava de sua pessoa era uma ameaça constante aos mineiros, que
viviam aterrorizados com a perspectiva de desemprego quando a
produção não seguia o ritmo das exigências patronais, e a oferta de
trabalho era abundante. Quando qualquer dos mineiros notava a chegada
do capitão, gritava para os colegas: “Cuidado! Aí vem o Chapéu”.”
(GROSSI, 1980:53).
71
colocar de encarregado (risos). Tanto que para ser
encarregado lá, quer dizer anteriormente, porque depois eles
forma abrindo para pessoas mais esclarecidas, mas, no início,
o sujeito tinha que Ter um bom porte físico, uma boa dose de
ignorância (risos) para poder se transformar em arrancador
de choco, em um patrão, em um fiscal.”(Ibidem,1998)
72
72
embora. Sem direito a nada e pronto. Eles faziam o que eles
queriam.”
10
“Recebem o nome de choco as pedras que, no estilhaçamento da rocha,
desintegram-se do filão, mas não caem. Pesam toneladas. Por se encontrarem
um tanto soltas, seu desabamento constitui uma ameaça à vida do mineiro. Não
são pedras que se desprendem dos lados do realce, e sim da parte do teto, após
a explosão do dinamite. Para soltá-las, emprega-se uma alavanca de aço, de 3 a 4
metros de altura, forçando o choco a cair. O nome provém do barulho surdo e
seco que sua queda provoca, ao invés de tinir como as demais pedras, após o
“fogo” (explosão)”. Cf. GROSSI, 1980:54)
73
73
detonada, esta explodia e pegava a turma toda lá
trabalhando. Arrebentava tudo. Os homens saíam aos
pedaços, saíam no saco. Tinham que recolher pedaços de
operários no saco. Era terrível. Isso era terrível. Toda
semana eram dezenas. Só depois de Getúlio é que as coisas
começaram a melhorar.
(...)O Galo tinha um forno para queimar o minério e apurar
o arsênico. O negócio era tão violento que o morro não tinha
mato. Em volta desse forno de queimar minério para arsênico
não nascia nada. Muito veneno. Envenenavam muita gente. O
povo que trabalhava lá. Não tinha índice de periculosidade,
nem nada. Os que trabalhavam lá, se morriam, acabou.
Colocavam outro no lugar. E eles não tinham nem noção do
perigo. Mesmo que tivessem, precisavam trabalhar. Era uma
coisa muito terrível, mesmo”11. - conta o Sr. Waldir.
74
74
financeiras, obrigava-os a aceitar as cadernetas como garantia do “fiado”.
Essa imposição da empresa, prática comum entre as companhias de
mineração, submetia coercivamente a classe, sob a forma tradicional de
troca indireta de mercadorias, mediada pela caderneta. O endividamento
na Casa Aristides passou a ser um mecanismo de controle coativo. De
acordo com GROSSI, “para a família do mineiro, a caderneta
representava a segurança de alimentação durante o mês, dentro do
quadro de sua penúria. Mas, por outro lado, era um dilema: utilizar a
caderneta barrava a oportunidade de aquisição de mercadorias a preços
mais acessíveis”.
75
Importante retomar, nesse sentido, a questão do controle do
tempo, controle da atividade. A questão do controle do horário é, de
acordo com Foucault, uma velha herança das comunidades monásticas.
Segundo o autor, o rigor do tempo industrial guardou durante muito
tempo uma postura religiosa:“ no século XVII, o regulamento das grandes
manufaturas precisava os exercícios que deviam escandir o trabalho (...)
mas ainda no século XIX, quando se quiser utilizar populações rurais na
indústria, será necessário apelar a congregações, para acostumá-las ao
trabalho em oficinas; os operários são enquadrados em “fábricas-
conventos”. (...)Durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de
disciplina: eram os especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e
das atividades regulares.” (FOUCAULT, 1995: 137).12
12
Sobre essa discussão da fábrica enquanto convento no caso do Brasil, importante
a análise feita por GIROLETTI, Domingos. Fábrica convento disciplina. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1991. Neste livro, Giroletti trabalha com a segunda
metade do século XIX em Minas, em seus múltiplos aspectos econômicos políticos
e culturais, para intepretar o sistema de fábrica existente neste período
utilizando-se, em determinados momentos, da perspectiva foucaultiana da “
microfísica do poder”.
76
76
consumidores ( ou dominados?) dos processos mudos que organizam a
ordenação sócio-política.” (CERTEAU, 1994:41)
77
77
O Trabalho nas Minas na época do Sr. Waldir e de Getúlio Vargas
78
78
Talvez seja mais adequado analisar qualitativamente o período,
considerando também a riqueza das experiências das pessoas comuns, dos
sujeitos sociais em suas singularidades. Sem dúvida, não se pode deixar de
lado toda a história de repressão, de intervenção policial, afinal é fato que
o regime varguista foi autoritário. É fato que Getúlio foi um ditador. É
necessário, por conseguinte, levar em consideração a atuação de relevantes
instâncias do aparato propagandístico e repressivo do Estado varguista.
Daí a necessidade de falar-se, no próximo capítulo, da importância do
rádio na divulgação ideológica do Estado. Porém, talvez seja mais
enriquecedor análises que vão além, trazendo à tona esses sujeitos
históricos, tais como as obras de Angela de Castro GOMES(1988), Maria
Célia PAOLI(1991), Jorge FERREIRA (1997), dentre outros.
Uma análise que evidencie o paradoxo da relação entre Vargas e
os trabalhadores é a que melhor se adequa à discussão que aqui é proposta.
Em conformidade com os objetivos, interessa investigar a história
cotidiana dos trabalhadores da Morro Velho, atribuindo a eles um papel de
sujeitos que realizam escolhas segundo o horizonte de um campo de
possibilidades. Tal abordagem, como se verá a seguir, no desenvolvimento
dos argumentos do capítulo, consiste na afirmação que é compartilhada
pelos autores acima citados de que não é possível atribuir aos
trabalhadores uma posição política passiva, não importando se mais ou
menos complexa. Opta-se por não estabelecer uma relação dicotômica
entre a autonomia e a heteronomia do sujeito, no caso, do operário da
Mina de Morro Velho no tempo de Vargas. Prefere-se relativizar as
escolhas. Como se verá nas próximas páginas, quer-se assinalar que os
benefícios materiais produzidos e implementados, (seja considerando ou
não as anteriores reivindicações do operariado antes de Vargas), foram
“recebidos” e interpretados pela classe trabalhadora, que os apreendeu e os
manejou segundo os termos de suas possibilidades e vivências.
O desenvolvimento dos argumentos desse ítem de análise está em
conformidade com aquilo que afirma GOMES (1996:54): “O pacto
trabalhista, pensado ao longo do tempo, tem nele, de modo integrado mas
não redutível, tanto a palavra e a ação do Estado (que, sem dúvida, teve o
privilégio de desencadeá-lo), quanto a palavra e a ação da classe
trabalhadora, ressaltando-se que nenhum dos dois atores é uma totalidade
harmônica, mantendo-se num processo de permanente re-construção.”
Analisar como os operários da Mina de Morro Velho, no seu dia-
a-dia, receberam este projeto estatal e jogaram com ele, na tentativa de
melhorar as condições de trabalho e de vida, no labor dentro da Mina, foi
o objetivo da análise a seguir apresentada.
Ou seja, o objetivo dessa discussão é sobretudo analisar como os
trabalhadores da mina se utilizaram do projeto governamental e dele se
apropriaram na tentativa de resolver os próprios problemas que apareciam
79
79
em seu cotidiano. A “lei de Getúlio”, como se verá, foi fundamental na
luta por melhores condições de trabalho em Morro Velho.
Os operários, dentro ou fora do sindicato, aceitando e/ou
resistindo, reelaboraram e reinterpretaram o discurso dominante do Estado
e se utilizaram desse discurso em proveito próprio. As lutas dos operários
se pautaram na fala de Getúlio, nas leis trabalhistas “outorgadas” por ele.
A luta dos trabalhadores passou principalmente pelo desejo de que as leis
fossem cumpridas...
80
80
Trabalho e cotidiano em Morro Velho: os trabalhadores e o mito
Getúlio Vargas
81
81
movimento operário, reprimindo o sindicalismo livre, e, por outro lado,
promovia a institucionalização de uma nova forma de organização
sindical, apoiando o resurgimento de lideranças vinculadas ao trabalhismo
oficial. Incentivava também reivindicações proletárias baseadas nos
direitos conquistados pelos trabalhadores na Constituição. Assim, neste
jogo, Vargas acabava por neutralizar, ao menos em parte, as correntes
ideológicas do movimento operário. Em parte, como afirma Maria de
Lourdes Mônaco JANOTTI (1998; 93), “a luta inicial dos anarquistas
desapareceu na memória, apagada pela política trabalhista e pela
repressão governamental que desagregaram os grupos militantes”.
Além do que, a legislação que se cria será voltada para o sentido
de fortalecer a imagem de Getúlio. Essa imagem de “pai dos pobres”,
durante tanto tempo cultivada através de ações que atingiam o cotidiano
do trabalhador, era acompanhada por um trabalho sistemático de produção
da história oficial . 13
De acordo com o depoimento do Sr. Waldir dos Santos, Getúlio
era um estadista verdadeiramente preocupado com as questões relativas ao
povo brasileiro. Essa representação gravada na memória dos ex-operários
da mina de Morro Velho, expressa, em certo sentido, a força do
imaginário que foi criado durante o Estado Novo, em torno da figura de
Getúlio. As marcas então impressas na “memória coletiva”, ao que tudo
indica, resultam de uma intervenção direta no cotidiano do trabalhador
associada a um discurso que une o governante à nação. A história das lutas
operárias, tão marcante no cotidiano de Nova Lima – inclusive porque os
mineiros estavam vinculados a um sindicato liderado pelos comunistas
(Nova lima era considerada por muitos a “Moscou mineira”) parece ter
sido, em parte, apagada da memória dos dois narradores e o que restou foi
a imagem mítica do governante. Apesar, por exemplo, de ambos
depoentes relacionarem os ganhos trabalhaistas não só a figura de Vargas,
mas também a luta do sindicato.
No que diz respeito à construção dessa memória, a constância e a
expressiva presença na “memória coletiva” de representações que colocam
a figura de Getúlio como estadista de bom coração, grande homem do
povo, essa parece evidenciar um período da história onde a intervenção
no cotidiano da vida do trabalhador através de diversas leis trabalhistas,
13
cf. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.pp.78-
79. Este autor analisa o poder que possuem alguns acontecimentos, que são
capazes de marcar todos os indivíduos. O trabalho deste autor é importante no
sentido de que não se pode desconhecer a força da propaganda ideológica do
Estado, que transformou Getúlio Vargas num mito para muitos trabalhadores do
Brasil. De acordo com HALBWACHS: “Há momentos em que todos os homens de
um país esquecem seus interesses, sua família, os grupos restritos nos limites
dos quais se detém geralmente o seu horizonte. Há acontecimentos nacionais que
modificam ao mesmo tempo todas as existências”.
82
82
associada a todo um aparato propagandístico, estabeleceu uma visão da
história , do político e do passado com contornos bastante determinados.
Toda uma geração de trabalhadores resgata um tempo histórico, onde “um
político”, no seu entender, realizou medidas em defesa do seu interesse e
dos demais trabalhadores. (LENHARO, 1986:40-41).
Como afirma MARIANI (1993:41-42), “o tema da construção da
memória histórica representa com certeza uma questão que vem sendo
cada vez mais desenvolvida sistematicamente pela Análise do Discurso,
sobretudo quando analisando do ponto de vista de como a História se faz
materialmente presente, enquanto memória, no discurso.”
Afinal, no caso específico do tema desse livro, pode-se dizer que
à medida que essa população, os operários da Morro Velho, conviviam,
toleravam, assimilavam, eles acabavam por reproduzir a cultura oficial.
Mas também, como já foi observado anteriormente, pode-se observar
como a mesma população jogava com essa cultura oficial, se apropriava
dela, transformando-a em seu próprio discurso.
Para MARIANI (1993), o papel da memória histórica seria, então,
o de fixar um sentido sobre os demais (também possíveis) em uma dada
conjuntura. Ou ainda, vista deste ângulo, à memória estaria reservado o
espaço da organização, da linearidade entre passado, presente e futuro, isto
é, a manutenção de uma coerência interna da diacronia de uma formação
social.
Embora seja lícito atribuir à memória o espaço da reprodução
homogênea de determinados sentidos produzidos por formações
discursivas hegemônicas em dado período, parece ser lícito, também,
considerar que ocorre um “silenciamento” temporário dos sentidos
excluídos. Se a memória histórica fosse assim tão radicalmente plena e
homogênea, seríamos sujeitos condenados (como a mitológica ninfa Eco)
a repetir de modo infindável sentidos imutáveis.
A memória é constituída por faltas, lacunas que são repletas de
historicidade. Ao se analisar tanto o discurso de Vargas, quanto o dos
operários, se deve interpretá-los enquanto práticas discursivas que atuam
de modo determinante na construção dos sentidos constitutivos da história
brasileira. E, assim, acaba-se por perceber até que ponto o discurso
getulista não é uma totalidade absolutamente encerrada em si mesma. Ele
apresenta fissuras, espaços de resistência onde outros sentidos podem
emergir.
Por outro lado, não se pode atribuir o amor dos operários a Vargas
simplesmente devido à sua ignorância ou à força do aparato
propagandístico de construção do mito. É importante se levar em conta o
fato de que, mesmo se considerando a luta do movimento operário, os
benefícios sociais não foram poucos, mesmo que estes tenham demorado
“um pouco mais” para chegarem à Mina de Morro Velho.
83
83
Inclusive, aqueles sujeitos políticos que, em 1945, pediam a
permanência de Vargas14, não o fizeram simplesmente porque ouviam
rádio todos os dias. É mais provável que o tenham feito principalmente
porque conheceram o mundo do trabalho antes das leis trabalhistas e
depois que elas se efetivaram. Entre 1930 e 1934, em apenas quatro anos
portanto, “toda a legislação trabalhista, à exceção do salário-mínimo, foi
promulgada: limitação da jornada de trabalho, regulamentação do
trabalho feminino e infantil, horas extras, férias, repouso semanal
remunerado, pensões e aposentadorias, criação da Justiça do Trabalho
etc. O impacto das leis sociais entre os assalariados não pode ser
minimizado. Sem alguma repercussão em suas vivências, o governo
Vargas não teria alcançado o prestígio que obteve entre os trabalhadores,
mesmo com a avassaladora divulgação de sua imagem patrocinada pelo
DIP.”(FERREIRA, J. 1998:173).
14
Refere-se aqui ao movimento queremista. O queremismo, movimento social que,
ao longo de 1945, clamou pela permanência de Getúlio Vargas no poder.
84
84
Até que ponto foram os ganhos materiais e simbólicos os
responsáveis por esta veneração e até que ponto sua razão está na
propaganda getulista que atingia, e se introjetava, pouco a pouco, através
do rádio, das músicas e de outros mecanismos, no imaginário dos
operários?
Ao buscar-se compreender a relação entre Vargas e os operários
da Mina de Morro Velho, alguns exemplos de intervenção direta das leis
trabalhistas na vida do operário de Nova Lima e Raposos e da relação
entre Estado getulista, empresa inglesa e trabalhador podem clarear tais
questionamentos.
A tentativa de incorporação da classe operária ao Estado
culminou, ao nível jurídico-legal, com a Consolidação das Leis
Trabalhistas. Em seu artigo 487 explicitou-se ainda melhor a necessidade
de se ter um sindicato colaborando com o Estado: “colaborando com o
Governo para o desenvolvimento da solidariedade social” 15.
O sindicato da Morro Velho, mesmo integrado ao sistema oficial,
mantinha a presença de comunistas. Algumas vezes, a luta dos
trabalhadores acabava por corresponder à política governamental de
sindicalização em massa. Nesse sentido, logo nos momentos antecedentes
à fundação do sindicato dos mineiros da Mina de Morro Velho 16, o
Estado já se colocava ao lado dos trabalhadores, em oposição aos
proprietários, a empresa inglesa. Afinal, a iniciativa de criação do
sindicato agradava ao governo, mais nem um pouco aos ingleses que, de
acordo com a imprensa da época, não aceitavam a união dos operários em
torno de um sindicato. O jornal Correio Mineiro, documentava em 14 de
abril de 1933, que a Companhia de Morro Velho era contra a
sindicalização. De acordo com o jornal, a empresa inglesa:
“anda devassando o solo mineiro à custa do suor mal pago do
trabalhador nacional(...) querendo assim demonstrar o maior
desprezo pelo serviço pesadíssimo que recebe de milhares de
operários, ainda não lhes permite, de forma alguma, a
sindicalizarem(...).Ninguém que já serviu ou ainda serve em
Morro Velho desconhecerá a pressão exercida pelos
magnatas ingleses contra qualquer tentativa de agrupamento
oficial de seus míseros assalariados.”
15
Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943. Brasília. Ministério do Trabalho.
16
O sindicato foi fundado em 16 de maio de 1934.
85
85
contrapoder, outra associação operária, que foi instinto em 1940, pela
vigência da unidade sindical, já antecipando a CLT de 1943.
Ou seja, parecem terem sido fatores importantes na fundação e
consolidação do sindicato de Morro Velho, a participação do Governo e
suas medidas de sindicalização em massa.
Outra questão que vem à tona diz respeito às férias e aos contratos
de trabalho. Segundo a nova regulamentação do trabalho, promulgada
entre 1930 e 1934, o sindicalizado teria o privilégio de gozar férias,
realizar contratos de trabalho, etc. Em Morro Velho, “os mineiros não
contavam ainda com estes direitos”.(GROSSI:1981,93) O Jornal Correio
Mineiro, em 22 de abril de 1933, denunciaria esse problema afirmando
que para o inglês: “Férias? Mim não sabe! O operário não precisa de
férias”. Na manchete, vinha estampado: “Como a Companhia de Morro
Velho Burla Ostensivamente a Lei de Férias”. Somente em 1935,
conseguiu-se, através do delegado-eleitor do Sindicato de Baixo 17, a
nomeação de um identificador pelo Ministério do Trabalho, pois a carteira
profissional era providenciada pela empresa, com a presença de
identificadora oficial. Portanto, o sindicato de baixo, como ficou
conhecido, (União dos Mineiros da Morro Velho) conseguiu que o
superintendente do Serviço da Carteira Profissional do Ministério do
Trabalho fosse a Nova Lima com a finalidade não só de regularizar as
anotações nas carteiras profissionais, como também conseguiu que a luta
dos mineiros pelo direito a férias, sonegado pela companhia, se
transformasse em conquista.
O sindicato conseguiu, naquele momento, a primeira listagem de
operários em férias. Também, pela primeira vez em Nova Lima celebrou-
se a Festa do Trabalho, em 1935, “comemorando-se o 1º de maio através
de uma solenidade religiosa e uma manifestação pública de massa”,
conforme o jornal Folha de Minas. Mais uma vez, observa-se as lutas do
movimento operário indo ao encontro dos benefícios obtidos com as leis
trabalhistas de Vargas.
Jornada de Trabalho
17
A União dos Mineiros da Morro Velho ficou conhecida como o sindicato de baixo,
pois ate essa época havia o sindicato patronal, que era conhecido como o
sindicato de cima.
86
86
2(duas) horas de trânsito que se gastava para entrar e sair da mina. Esta
distorção foi corrigida posteriormente, quando a CLT(Consolidação das
Leis Trabalhistas de 1943) preconizou 6 horas para o trabalho em mina de
subsolo. “Através de luta, os mineiros conseguiram da Companhia o
pagamento por 8 horas de trabalho, incluindo as duas horas de trânsito
que não eram remuneradas em épocas anteriores à CLT”.
(GROSSI:1981,108)
De acordo com o depoimento de Dazinho, “quando eu entrei lá,
trabalhava 8 horas por dia e a lei já mandava trabalhar 6 horas” (apud
LE VEN,1998:57) Note-se que Dazinho nasceu em 1922 e começou a
trabalhar na mina aos 18 anos de idade. Ou seja, em 1941:
“Dazinho, contemporâneo do Estado Novo, do
“corporativismo” de Getúlio e da democracia subseqüente,
tampouco entrou no mundo da cidadania outorgada, da
doação dos direitos trabalhistas já conquistados pelos
trabalhadores da década de 20: “Nunca fui getulista, graças
a Deus”, afirma ele com ênfase, mesmo se for “diferente da
maioria dos trabalhadores” que “se não eram
necessariamente trabalhistas e petebistas, eram, sim,
getulistas. Também não me lembro de mada, de Getúlio,
ninguém tocava no assunto, talvez ‘eles’ quisessem que a
gente ficasse fora dessas questões.””(Idem, 1998:53)
87
lado todo o aparato coercitivo e excludente, os personagens apropriavam-
se das mensagens dominantes e criavam estratégias de vida que as usavam
para avançar.” (FERREIRA,J., 1997:34)
88
Sem dúvida, com a fundação do sindicato dos mineiros, começou
uma nova fase para as relações trabalhistas na Morro Velho, com
reivindicações aguerridas que, como já foi dito, na década de 1940
sofreram influência marcante do Partido Comunista. Nesse sentido, pode-
se concluir que as décadas de 30,40 e indo além, a de 50 foram marcadas
por grandes mudanças no ambiente político-social, com a implementação
das Leis Trabalhistas de Getúlio Vargas, o que refletiu diretamente nas
relações de trabalho. O movimento sindical ganhou corpo, a CLT foi
promulgada e, esse entrecruzamento das lutas operárias com as políticas
governamentais de concessão de benefícios ao trabalhador, a realidade do
trabalho na Mina de Morro Velho mudou consideravelmente, melhorando
em diversos aspectos. Contudo, por outro lado, a empresa resistiu às
mudanças e manteve alguns padrões de exploração já consolidados.
A “política” da Empresa
89
89
levava para o Rio e lá eles faziam o que queriam...falavam
que não estava dando nada...”
Energicamente, afirma o autor do livro de época, Roberto C. Costa:
“Na ocasião oportuna mostraremos ainda que essa política de
baixa produção de suas minas, tem sido a arma - chantagem -
utilizada pela poderosa empresa para conseguir favores do
governo, manter salários baixos dos seus operários e eximir-
se de responsabilidades, como é o presente caso em que se
nega a pagar a “taxa de insalubridade” e ameaça fechar suas
minas, lançando ao desemprego milhares de trabalhadores”.
(COSTA,1955:32).
90
90
É no quarto capítulo de seu livro que Roberto C. Costa se dedica
à narrativa das condições de vida dos operários da Morro Velho. O
capítulo, intitulado “Vida - Paixão e Morte dos Operários” apresenta as
condições de trabalho dos operários nos idos de 30 e 40, até meados da
década de 50, ou seja, antes, durante e depois da Consolidação das Leis
Trabalhistas.
Conforme apresentado pelos depoentes, em particular no
depoimento do Sr. Waldir dos Santos, em algumas minas, como no
“Galo”, o minério continha arsênico, inclusive havia fábrica de produção
desta substância em Nova Lima. Acontece que o arsênico é responsável
por uma doença grave, o arsenicismo. Segundo um relatório do Serviço
Médico da Divisão do Fomento da Produção Mineral, órgão do governo,
relatório este que pode ser encontrado no “Observador Econômico” n.9,
pagina 68, de Outubro de 1943, em “135 operários examinados 117
apresentavam lesões produzidas pela doença”, manifestações estas que
surgiam na maioria dos casos com apenas 4 (quatro) meses de trabalho,
inutilizando praticamente as vítimas. O arsenicismo provocava nos
operários dores muito fortes nas juntas, além de deformações, úlceras, etc.
Outra doença muito freqüente nos operários da Morro Velho,
principalmente nos mineiros, era a silicose 18, que até hoje atinge os
trabalhadores da minas de Morro Velho, como por exemplo, o Sr.
Dazinho19. De acordo com o relatório, no ano de 1943, - ano da
promulgação do decreto-lei que formalizou a CLT - “nos exames
procedidos em 908 mineiros, 304 (33,4%) apresentam casos positivos de
silicose”.
Nova Lima era sacudida pela tosse. Essa expressão que ressalva
as condições de saúde dos mineiros de Nova Lima aparece na explicação
detalhada de LE VEN (1998:62) sobre a tosse de Dazinho: “A entrevista
foi pontuada de tosse, que além de encurtar a vida e a capacidade de
respiração, é crônica, oca, ressoante, provocando sofrimento e angústia”.
Esta também era a convicção de Hélio PELLEGRINO que assim
se referiu a cidade de Nova Lima:
“Nas noites de Nova Lima quando buscava repouso, a cidade
era sacudida e inquietada por uma trovoada surda e cava
18
A silicose é uma doença que, como a tuberculose, vai ulcerando os pulmões com
microscópicas partículas de sílica, substância encontrada no minério que vai
sendo aspirada por todos aquele que trabalham na extração e redução do
minério.
19
Cf. LE VEN, Michel Marie. Dazinho - Um Cristão nas Minas. Belo Horizonte: CDI,
1998. A entrevista analisada por LE VEN é entrecortada pela tosse do operário
Dazinho, que hoje tem dificuldades de respirar devido à doença. Também o Sr.
Gentil, nosso entrevistado, possui a doença, conforme pode-se conferir em seu
depoimento.
91
91
que, nascendo dos casebres operários, rolava em ondas
recorrentes até as fraldas das montanhas em torno. Era a
grande tosse dos pobres, sintoma e denúncia da silicose que
os roía. Os ingleses perturbados em seu sono e em sua boa
consciência, ao invés de adotarem medidas hábeis para que a
silicose cessasse, resolveram enfrentar o problema pelo
exclusivo ataque ao sintoma. Montaram em Nova Lima, com
banda de música e foguetes, uma fábrica de xarope contra
tosse, que ao mesmo tempo produzia para consumo dos
colonizadores, matéria-prima de refrigerantes não
encontrados no país...”(PELLEGRINO apud LE VEN:
1998:62-63)
20
Idem,1955:8.
92
92
O autor diz ainda, fazendo referência à morte de Getúlio Vargas, que
“Honesta e conscientemente, devo repartir tamanha glória
com o povo brasileiro, que naquele gesto manifestou sua
compreensão quanto à Carta de Getúlio, confirmando o que o
mesmo profetizara anteriormente ao dizer: “o povo um dia
fará Justiça com as próprias mãos”21
21
Ibidem,1955:8.
93
93
convulsiva. Estes acessos tão célebres e comuns, têm ali o
nome de caimbra ; mas essa palavra caimbra, não tem
propriedade para significar a natureza do estado mórbido que
querem designar com ela. Caimbra, contração espasmódica
dos nervos, não é bem o que ataca aos mineiros, em
conseqüência do excesso de calor. O lastimoso estado
mórbido que vítima os desgraçados escravos das Minas de
Morro Velho, que eu sofri, e vi sofrer a muitos dos meus
irmãos de classe, não pode ser classificado de
caimbra...porque essa classificação não traduz o horroroso
aspecto do ataque que eu sofri, e vi sofrerem - pelo excesso de
calor - a muitos companheiros de desgraça...””
(COSTA,1955: 42-43)
94
desenvolvimento da sociedade e, portanto, fadados ao
desaparecimento”. (COSTA;1955,51)
95
de trabalho na Mina de Morro Velho, como foi apresentado no item
anterior, persistiu a ironia do jornalista d’O Debate, em seu texto de 22 de
março de 1934 (portanto, ano da fundação do sindicato dos mineiros da
mina, que data de 13 de maio): “(...)É Morro Velho - a atração dos
viajantes, a citação do Estrangeiro - é lá que morre o Ministério do
Trabalho!”
De acordo, porém, com recente livro lançado pela Companhia 22,
hoje não mais sob o domínio inglês, a Mina Grande atingiu, já na década
de 40, 2.453 metros de profundidade, e foi instalada a planta de
refrigeração no subsolo para melhoria das condições de trabalho. Os
equipamentos de proteção individual também foram implantados, bem
como as lanternas à bateria, estas em substituição aos lampiões de
carbureto. Todas essas medidas permitiram melhorar a prevenção de
acidentes no trabalho. (PIRES et al.,1995:113) Resta saber até que ponto
estas melhorias foram resultado da política getulista combinada à grande
luta dos trabalhadores através do movimento operário organizado.
O processo identitário entre estes operários se deu de diversos
modos, principalmente quando a maioria parecia estar de acordo e bem
consciente das terríveis condições de trabalho na Mina nesse período e da
necessidade de mudá-las. É incontestável a força do movimento operário
em Nova Lima desde o início do século, como bem mostra o trabalho de
GROSSI(1981). A anti-disciplina, a transgressão, ou seja, a resistência
“ativa” já foi estudada por esta autora.
Entretanto, interessa explorar também um outro tipo de anti-
disciplina, de transgressão, de resistência. Trata-se daquela que é quase
imperceptível, senão inconsciente, dos operários que não associavam
diretamente patrão inglês Estado conquista e/ou ganho dos direitos
sociais luta do movimento operário. A transgressão dos operários se deu
através das diversas “maneiras de fazer” que foram aparecendo no
cotidiano, nas micro anti-disciplinas, focalizando o patrão inglês
diretamente e não tanto o Estado, mais distante e visto por muitos como o
bem feitor, “nosso pai”.
Por isso, não acredita-se ser o conceito de ‘alienação’ o melhor
para compreender os operários, muito menos ‘apatia’ ou ‘despolitização’.
Ao se analisar a fala dos operários que aqui estão sendo denominados
transgressores, pois que resistiam quase que imperceptivelmente, observa-
se que o conceito de ‘mobilização’ nem sempre é adequado para captar
atitudes políticas do proletariado. Conforme explica Marilena Chauí, em
um ensaio sobre cultura popular e alienação: “Não se pode dizer que esses
operários estão conformados ou inconformados com a situação, mas sim
que estão ao mesmo tempo conformados e inconformados: de um lado,
22
Cf. o livro produzido pela Morro Velho S.A. intitulado: Moro Velho – História,
fatos e feitos. (1995)
96
96
acreditam-se impotentes para mudá-la e, em vez de assumir essa falta de
força, confessar seu medo e tratar de superá-lo, muitos preferem tomar
uma atitude fatalista e manifestam receio dos militantes que pretendem
tirá-los dessa inatividade; de outro lado, apesar da calma aparente, há um
inconformismo profundo, que às vezes é difícil perceber sob a capa do
fatalismo. Até onde possam ir na ação, depende da repressão e da
persistência do medo. Portanto, é errôneo tomar a ‘despolitização’ como
um dado, pois pode desaparecer de um momento para outro”.
(CHAUÍ,1981: 71-74)
97
97
CULTURA E COTIDIANO NAS MINAS
O capítulo pretende analisar pelo menos duas questões
fundamentais na compreensão da vida cotidiana dos trabalhadores da Mina
de Morro Velho, nas décadas de 1930 e 1940 (primeira fase do governo de
Getúlio Vargas). Quer-se aqui dar destaque às resistências e anti-
disciplinas que estes trabalhadores foram construindo em sua vida
cotidiana. Resistências face ao ‘colonizador’ inglês, resistências face à
ideologia dos intelectuais orgânicos do Estado varguista. Quer-se mostrar,
em primeiro lugar, quais eram as estratégias dos trabalhadores frente à
ação da propaganda getulista, daí analisar-se o rádio e sua repercussão na
vida cotidiana desses mineiros, como também, em segundo lugar,
fechando o capítulo, estudar outras “artes de fazer” dos operários. Ou seja,
analisar como, face ao controle inglês, os sujeitos, “contadores de história
” foram artistas. Não quer-se transformá-los em filósofos, mas sim, como
afirma Robert DARNTON (1986:XIV), “ver como a vida comum exigia
um estratégia. Operando no nível corriqueiro, as pessoas comuns
aprendem a “se virar” - e podem ser tão inteligentes, à sua maneira,
quanto os filósofos”.
23
Esta epígrafe foi retirada do livro de SAROLDI,Luiz Carlos & MOREIRA, Sonia
Virginia. Rádio Nacional. O Brasil em sintonia. O trecho, por sua vez, é da Revista
Carioca,n.342,p.3. e está citado na bibliografia do referente livro.
98
98
Ao tentar-se entender até que ponto a memória desses sujeitos
entrevistados é uma memória em parte construída, controlada, e até que
ponto é uma edificação estratégica, que se apropria do discurso dominante,
sem contudo, permanecer passiva diante deste, deve-se pensar como esse
processo ocorreu, se é que ele ocorreu.
A problemática da simultaneidade entre controle e resistência é
talvez a grande dificuldade teórica e histórica de se pensar o cotidiano dos
trabalhadores da mina de Morro Velho em sua relação com seus patrões
ingleses e em relação ao Estado getulista. Afinal, por um lado, remete-se à
idéia de manipulação, ainda que, por outro lado, se reconheça todas as
ambigüidades dela recorrentes. Atribuir aos trabalhadores um papel ativo
significa reconhecer um diálogo entre sujeitos com poderes diferenciados,
mas igualmente capazes de se apropriar e reler as propostas político-
ideológicas um do outro. Tal postura, adotada neste trabalho, tem como
objetivo afastar a dicotomia entre autonomia e heteronomia.
Já discutiu-se, anteriormente, que a construção da imagem mítica
de Getúlio Vargas está associada, principalmente, ao grande tempo em que
este permaneceu no poder, além de realizações materiais e simbólicas que
efetivamente aconteceram na vida dos trabalhadores. No caso, dizendo
respeito ao operário mineiro de Morro Velho. Porém, por outro lado, é
interessante observar que ao longo desse período autoritário da história
brasileira, uma série de mecanismos de difusão da ideologia getulista
foram criados. Portanto, é importante indagar: até que ponto a ideologia é
difundida pelo rádio? Como era a difusão radiofônica em Nova Lima? Os
mineiros ouviam rádio? Relevante, portanto, discutir-se o papel do rádio
como difusor de uma cultura idealizada pelos intelectuais orgânicos de
Vargas e colocadas em prática através do DIP, da Rádio Nacional, da Hora
do Brasil, da Rádio Inconfidência e dos outros meios de comunicação. É
registro comum na bibliografia deste período ora estudado, que se tornou
necessário para o Estado varguista a construção de mecanismos de difusão
de uma doutrina própria, sendo o rádio um dos principais meios através do
qual o Estado buscou apoio dos trabalhadores, “povo brasileiro”...
Analisar tal meio de comunicação torna-se relevante na tentativa de
compreender até que ponto o “mito” Vargas não foi construído puramente
através da vasta propaganda doutrinária veiculada pelo DIP. Afinal,
concorda-se aqui com Jorge FERREIRA em sua brilhante afirmação de
que: “Não há propaganda, por mais elaborada, sofisticada e massificante,
que sustente uma personalidade pública por tantas décadas sem
realizações que beneficiem, em termos materiais e simbólicos, o cotidiano
da sociedade. O “mito” Vargas, assim, exprimia um conjunto de
experiências que, longe de se basear em promessas irrealizáveis,
fundamentadas tão-somente em imagens e discursos vazios, alterou a vida
dos trabalhadores” (FERREIRA, 1997:49)
99
99
Ao observar-se no Brasil os períodos autoritários que
correspondem ao Estado Novo e à ditadura militar pós-64, nota-se como o
conteúdo das mensagens radiofônicas se altera nos momentos de controle
estrito do Estado (período de governos autoritários). No caso brasileiro, a
lógica com que o Estado opera ao controlar o conteúdo dos meios de
comunicação é restritiva. O poder do Estado sobre a radiodifusão sempre
foi grande. Parece, de acordo com a bibliografia pesquisada, que o Estado
e grupos privados não expressam interesses fundamentalmente distintos.
Desse modo, não se deve esperar que as mensagens sob controle de um ou
de outro apresentem grandes diferenças ideológicas.
A radiodifusão teve início mais precisamente no dia 6 de abril de
1919, quando, com um transmissor importado da França, foi inaugurada a
Rádio Clube de Pernambuco, por Oscar Moreira Pinto, que depois se
associou a Augusto Pereira e João Cardoso Ayres. Mas, oficialmente,
pode-se considerar o início da rádiodifusão no Brasil com a instalação da
primeira emissora de rádio em 20/04/1923 (Rádio Roquette Pinto), onde se
observa que nem Estado, nem proprietários privados se interessam tanto
pelo serviço. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi fundada por
Henrique Morize e Edgard Roquette Pinto. Somente em 11/06/1927,
depois de um período de experiência, é que começou a funcionar, no Rio
de Janeiro, a Rádio Mayrink Veiga. Os donos das primeiras emissoras
eram intelectuais e cientistas imbuídos de intenções, pelo menos a
princípio, altruístas de tornar o rádio um instrumento a serviço da
educação e cultura, sem finalidades lucrativas. Mas, fora seus primeiros
anos de existência, a radiodifusão sempre esteve na esfera de influência do
Estado e de grupos econômicos privados.
De acordo com José Salomão Amorim, “a primeira emissora
brasileira foi a Rádio Roquette Pinto, criada em 1923, mas somente oito
anos depois, em 1931, já sob o governo de Getúlio Vargas, pós revolução,
é que teremos notícia do primeiro texto legal sobre radiodifusão”
(AMORIM,1983:67). Foi pelo decreto 20047 que a radiodifusão foi
considerada de interesse nacional e de finalidade educativa. Mas até que
ponto essa finalidade educativa recebeu influências do ideário criado pelos
intelectuais do Estado Novo? Até que ponto essa finalidade educadora
permaneceu presente na radiodifusão no Brasil? Que educação, que
ideologia deveriam ser difundidas através do rádio?
O interesse do Estado pela rádio foi aumentando e durante o
período autoritário, no Estado Novo, criou-se o DIP - Departamento de
Imprensa e Propaganda - uma unidade especializada em comunicação a
serviço do governo. Era a primeira vez que o Brasil possuía um
departamento desse nível, que seria encarregado da comunicação e,
logicamente, da difusão ideológica do Estado Novo. Ou seja, esse
departamento deveria cuidar da imagem governamental, censurar e
100
100
controlar a distribuição de verbas aos meios de comunicação. É nesse
período que se notará uma maior rigidez sobre o controle das
radiodifusões brasileiras dentro do governo getulista. Tal situação só se
modificará com o fim do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial.
Sucintamente pode-se dizer que, terminada a II Guerra Mundial, o
rádio se consolidou e os programas de auditório ganharam força. A Radio
Nacional, que havia sido fundada em 1936 e seria líder de audiência por
duas décadas, tornou-se no Estado Novo um dos maiores fenômenos de
comunicação no país. Data dessa época a “coqueluche nacional”, as
radionovelas, e a afirmação do radiojornalismo, com o Repórter Esso. No
final da década de 50, a TV é inaugurada.
Mas José S. Amorim também chama atenção para as
transformações que irão ocorrer na radiodifusão a partir do ponto de vista
econômico. Segundo este autor esta é uma fase de transição. O país passa
por um surto de industrialização, que superará em parte o modelo agrário.
E é nesse ponto que o autor coloca sua posição, bastante polêmica. Para
ele, “a radiodifusão perde o caráter cultural e educativo e se estrutura
como atividade mercantil”. E ele ainda irá dizer que, deste modo, ela
assumirá a “função de promoção comercial, de intermediária entre as
unidades produtoras capitalistas e os consumidores. .(AMORIN,1983:67)
Ao maior peso da publicidade vai corresponder, no plano da programação,
maior ênfase ao entretenimento e ao trivial, em lugar da programação
substantiva (cultural e educativa, ainda que elitista) dos primeiros
momentos. Esta tese é passível de entendimento, ao pensar-se que o
aumento da importância comercial do rádio implicou num aumento da
autonomia dos proprietários privados em relação ao Estado. Mas até que
ponto vai essa autonomia privada, se a rádio continuou a depender da
publicidade e dos favores financeiros do Estado e continuava o controle
pela censura e a intervenção do DIP, que só seria desativado após a
Constituição de 1946, que garantia total liberdade de expressão - pelo
menos no papel? E até que ponto efetivou-se essa difusão ideológica, esse
“controle da memória”, no caso dos operários da Mina de Morro Velho?
Eles ouviam rádio? Quais programas? O rádio realmente fazia parte do
cotidiano desses homens, sujeitos da presente reflexão teórica?
Antes, porém, de tentar responder a estas questões, deve-se
aprofundar o estudo do papel desse meio de comunicação, ao lado das
músicas também pelo rádio difundidas, como instrumentos de divulgação
ideológica do Governo Vargas, em especial, ao longo do Estado Novo.
O papel do rádio e da música popular brasileira na divulgação
ideológica do Estado Novo
101
pagamento de direitos autorais por todas as empresas que lidassem com
músicas. A chamada Lei Getúlio Vargas foi, assim, o primeiro vínculo
conhecido entre o político e a nossa música popular.
Se algum problema ocorreu para lançarem músicas pró-Getúlio
antes das eleições, esse problema deixou de ocorrer após a Revolução de
30. Nas recepções que dava no Palácio da Guanabara, Getúlio convidava
cantores populares, como Mário Reis e o Bando da Lua. Enquanto isso, a
censura manifestava-se vigilante. Além da censura oficial, havia uma
outra, da Comissão de Censura da Confederação Brasileira de
Radiodifusão, criada pelos proprietários de estações de rádio para proibir a
transmissão de determinadas músicas que escapavam da censura oficial.
Antes mesmo do golpe de novembro de 37, Getúlio montou um
esquema de propaganda nos moldes do que fora adotado por Goebbels (da
Alemanha nazista), sendo “o primeiro governante latino-americano a
utilizar o rádio como Hitler estava usando”, de acordo com Sérgio Cabral.
O próprio Getúlio disse isso aos parlamentares brasileiros, em mensagem
enviada ao Congresso Nacional no dia 1º de maio de 1937, quando se
vangloriou de ter elevado o número de estações radiofônicas brasileiras
para quarenta e dois. Certamente, no meio dessas novas estações
radiofônicas, estava a Rádio Inconfidência de Minas Gerais que, conforme
podemos observar em série de documentos, foi criada ainda no pré-37,
precisamente em 3 de setembro de 1936. É Maria Efigênia Lage de
Resende que irá explicitar melhor essa questão, ao discutir o papel da
Rádio Inconfidência no acordo político entre Getúlio Vargas e Benedito
Valadares, que acabou por ser o interventor de Getúlio em Minas Gerais.
“A rádio Inconfidência, inaugurada um mês antes (3 de
setembro de 1936) como rádio difusora oficial, parte
integrante do evento, irradia o comício cívico, no qual
discursaram, da sacada do Palácio da Liberdade, nada menos
que quatorze oradores. O papel da rádio como instrumento de
política de massas estava efetivamente posto no governo
Benedito Valadares.” (RESENDE, 1991:36)(Grifo nosso)
.
É interessante discutir-se a inauguração da rádio Inconfidência que
acabará por ser um dos canais responsáveis pela difusão da ideologia
estadonovista. Traçar-se-á a seguir, algumas análises a respeito do
momento histórico de sua inauguração e breves considerações acerca da
programação da rádio, o que ilustra bem o caráter ideológico por detrás
dos programas.
102
de Minas e de todos os brasileiros em torno da figura de Getúlio Vargas,
do presidente, proferindo palavras de ordem, tais como patriotismo,
trabalho, lealdade. Também o Cardeal Dom Sebastião Leme discursou,
chamando a atenção para a necessidade de se estar forte e coeso “para
restabelecer o império da ordem, de se reaver o domínio da civilização e
de reconquistar o reinado da felicidade”(LEME, 1936:9) As falas
transcritas no Jornal Minas Gerais bem demonstram a postura ideológica
que a seguir seria imposta pelo Estado Novo.
Foi num jantar no restaurante da Feira de Amostras (atualmente
local da Rodoviária de Belo Horizonte) que o então governador Valadares
inaugurou a rádio e onde foram definidos os objetivos de implantação da
mesma, no sentido de divulgar o projeto de governo estadonovista e sua
ideologia, ou seja, “divulgar o saber e a civilização”, difundir a cultura e a
educação. Os jornais da época, e mesmo posteriormente, já durante o
Estado Novo, atentavam para as finalidades da rádio. Veículo de
divulgação e como órgão educativo, a rádio deveria informar o povo. Mas
quem é o povo nesse momento? O povo é “quem mais precisa de
conhecimentos, conselhos, esclarecimentos e de uma orientação honesta e
sincera”. Em 1942 a maioria da população mineira podia contar com o
rádio como parte integrante de sua vida. Até os lares mais humildes já
contavam com o rádio.
A Rádio Inconfidência cobria todo o território nacional e possuía
diversificada programação que bem atendia aos interesses governamentais
de difusão ideológica. Programas tais como “A hora da higiene”, “Aula de
Ginástica”, “Hora do Universitário”, “Hora Escolar”, “Hora do Operário”
e outros, além de audições cívicas em todas as grandes datas que se
referem à questão da nacionalidade. O ideário de construção de um
homem fisicamente belo, saudável, aliado à construção de uma nação, de
uma pátria em harmonia e equilíbrio estavam presentes na programação e
nas finalidades “educativas” da Rádio Inconfidência.
A construção de um homem novo, trabalhador brasileiro, também
vem à tona na documentação referente às datas comemorativas do dia do
trabalho em Belo Horizonte. A rádio Inconfidência era a principal difusora
dos discursos do presidente Getúlio e do governador Benedito Valadares.
Por exemplo, no dia 1 de maio de 1940, os operários, sindicalistas,
diretores e associações de classe, bem como os demais elementos
trabalhistas, se reuniram na Praça Rio Branco, em frente à Feira de
Amostras, para ouvir o discurso do presidente Vargas e, segundo os
jornais, comemorar os benefícios concedidos à classe trabalhadora.
A Rádio Inconfidência irradiava o discurso do presidente e os
trabalhadores ouviam atentamente à retransmissão. Também durante a
guerra, em 1942, Vargas falava ao povo:
“A política trabalhista do meu governo tem sido invariável no
sentido de estabelecer a harmonia entre os fatores da
103
103
produção, base do equilíbrio social e fundamento do
progresso humano. A nossa organização peculiar afasta-se
igualmente do erro dos regimes de liberalismo individualismo
que legalizam a greve, como elemento solucionador de
conflitos, e dos estatutos de natureza autoritária, que
instituíram o trabalho escravo. O Estado, entre nós, exerce a
função de juiz nas relações entre empregados e
empregadores, porque corrige excessos, evita choques e
distribui equitativamente vantagens. Assiste-lhe, por isso
mesmo, o direito de solicitar concurso de vossas energias, a
decisão completa dos vossos esforços. Nessa emergência,
deve cada homem conservar o seu porto, sem pensar em si
próprio, sem pensar na família, sem pensar nos bens. Em
momentos supremos, os riscos não contam, porque “é
preferível perder a vida, a perder as razões de viver” “.
(VARGAS, 1942:4)
25
Cf. depoimento do Sr. Waldir dos Santos.
104
104
Observem que o operário era tão valorizado quanto o fazendeiro. O
operário era o responsável pela construção do Brasil, da pátria ordenada e
em paz. A cultura era o principal para a construção dessa nação brasileira
idealizada. Era preciso que o rádio também se encarregasse de auxiliar na
educação, cultura e civilidade. Para tanto, a Rádio Inconfidência levava ao
ar a “Hora Infantil” e a “Hora Educativa”, quando não a “Hora
Universitária”.
Verifica-se assim que os questionamentos, elaborados durante a
leitura da bibliografia estudada, estão sendo, a princípio, esclarecidos. As
hipóteses de que a Rádio Inconfidência, em específico, era também um
veículo divulgador da ideologia estadonovista, foi explicitamente
verificada. Afinal, de acordo com os documentos de época, a rádio sempre
transmitiu os discursos do presidente, bem como de seu interventor em
Minas. Além de possuir uma programação voltada para a propaganda da
ideologia que estava sendo produzida na época pelos intelectuais do poder,
que assessoravam o presidente.
A questão do conteúdo das composições no Estado Novo: o samba
exaltação ao Brasil e ao trabalho X o elogio à malandragem
26
Cf. depoimento do Sr. Waldir dos Santos. Em sua fala, reporta-se à diversas
letras de samba que fazem elogio ao trabalho, elogio à nação brasileira, etc.Cf.
também, no fim do livro, as letras de música compostas pelo Sr. Waldir dos
Santos.
105
105
comercial, mas também política e ideológica. Como toda a imprensa, o
rádio e as músicas ficaram sujeitos à rigorosa censura durante o Estado
Novo. Com o advento do Estado Novo, em 1937, até sua queda, em 1945,
o tom predominante na radiodifusão foi dado pela presença
intervencionista do Estado. E foi essa característica intervencionista, tanto
no conteúdo programático das emissoras de rádio, quanto no próprio
conteúdo das músicas produzidas na época, simultaneamente às
possibilidades de anti-disciplinas cotidianas. Ou seja, até que ponto se deu
essa intervenção do Estado e onde aparecem as “astúcias” dos ouvintes,
operários de Morro Velho, que como o Sr. Waldir dos Santos, também são
compositores?
O Estado investiu em projetos grandiosos, situados no limite entre
a mobilização controlada das massas e a mera propaganda política do
regime. E foi este o caso da criação de serviços de radiodifusão,
comunicação e canto coral, todos eles instrumentalizadores de uma
imagem idealizada pelos intelectuais a serviço de Getúlio, que queriam
construir uma imagem de Brasil integrado - orgânico e harmônico - capaz
de homogeneizar as diferenças inerentes à sociedade de classes: “nesse
modelo de arte estatal importava o controle, até mesmo dos canais de
expressão do que fosse autenticamente popular, como o rádio ou o samba,
ao qual foi imposto a obrigatoriedade do uso de temáticas cívicas e
apologéticas da ordem e do trabalho (o novo fundamento da cidadania)”.
(MENDONÇA, 1982:167).
106
106
malandragem sambística, nesse contexto, um mal a ser erradicado, esta
vontade fracassou, ao menos em parte.
Através da análise da documentação a seguir apresentada –
considerou-se também as letras compostas no período como documentos –
pode-se observar que a tradição da malandragem resistiu à redução oficial,
e sobreviveu quase intacta ao Estado Novo. Afinal, logo após o fim do
Estado Novo, as músicas voltaram a possuir temas que negavam o
trabalho.
Por outro lado, não se pode deixar de discutir aqui, através da
busca de índices de comprobatibilidade, que o Estado Novo deixou marcas
profundas na música popular brasileira e foi durante os chamados
“carnavais de guerra” que as escolas de samba assumiram efetivamente,
nos seus enredos, o tom apologético e grandiloqüente que até hoje
aparece, e foram nesses anos que Ari Barroso “sinfonizou”, como diz
WISNIK(apud BOSI,1987:114-123), o samba, tornando-se uma espécie de
Villa-Lobos do gênero. Além do que, ao estudar-se a história da Rádio
Inconfidência, observa-se forte intervenção dos ditames advindos do
governo, via Benedito Valadares.
Assim, pode-se observar como, apesar de todo o controle sobre a
sociedade, a cultura da malandragem resistiu. Como vê-se nas próprias
canções do Sr. Waldir dos Santos, operário da Mina de Morro Velho,
apesar de grande influência do rádio, ele continuou dando um tom de
malandragem e boêmia a seus sambinhas (Anexo 4). Conforme diz
FERREIRA (1997: 88): “O controle total do Estado sobre a sociedade é
impossível, mesmo no caso de regimes políticos definidos como
“totalitários”, a exemplo da Alemanha nazista e da União Soviética na
época de Stalin. Os mecanismos de controle social em nenhuma situação
são completamente eficientes e muito menos capazes de controlar as
mentes dos indivíduos. Elegendo estratégias de vida a partir de seus
interesses materiais e simbólicos, as pessoas aceitam alguns deles,
ignoram outros e, na medida de suas possibilidades, repudiam aqueles que
os prejudicam.”
107
Noel Rosa, nascido em 1910 e falecido em 1937. Noel Rosa é personagem
fundamental no movimento de expansão do samba, que, tendo descido do
morro, firmara seu reduto nos cabarés da Lapa, bairro boêmio do Rio de
Janeiro.
Noel era boêmio como o Sr. Waldir dos Santos, e com ele o
samba, antes preto e pobre, ganhou respeitabilidade e penetrou os lares da
classe média da zona norte carioca, se expandindo para o resto do Brasil,
alcançando até mesmo Minas Gerais e suas emissoras de rádio, recém
criadas. Noel iria divertir os freqüentadores de clubes, os espectadores do
Cinema Eldorado (RJ) e os ouvintes da maravilha do século XX: o rádio.
Nos cinemas, como sabe-se, era hábito uma sessão de música ao vivo,
antes do filme, e esse show provocava grande interesse por parte do
público. Quanto ao rádio, as primeiras emissoras, como já foi dito,
surgiram entre 1923 e 1924. Sem publicidade, de baixa potência,
funcionando poucas horas por dia, sobreviviam pela abnegação dos
dirigentes e pela colaboração dos artistas. No início da década de 30 o
panorama já mudara. Cinco emissoras (a Rádio Sociedade, a Rádio Clube
do Brasil e mais a Mayrink Veiga, a Educadora e a Philips) transmitiam
regularmente, mantidas por alguns reclames. Foi aí que Noel Rosa
percebeu, junto com outros sambistas, que era importante estar no rádio.
Logo ele estreava na Educadora com o Bando de Tangarás. Depois esteve
na Mayrink Veiga. E finalmente participou, durante longo tempo, do
Programa Casé, na Rádio Philips.
Através da figura de Noel, pode-se conhecer melhor o rádio e
entender como os compositores da época se relacionavam com as
emissoras.
Na radiodifusão, Noel trabalhava na função de contra-regra e
também cantava, apesar da voz fraca - num tempo em que reinavam os
graves de Francisco Alves e de Vicente Celestino. Em 1935, Noel passou a
trabalhar na Rádio Clube do Brasil, fazendo o programa humorístico
Conversa de Esquina. Também fez, com sucesso, O Barqueiro de Niterói,
uma paródia de O Barqueiro de Sevilha, utilizando músicas populares da
época. O êxito animou-o a criar outras revistas radiofônicas, sempre
parodiando composições populares conhecidas - algumas aliás de sua
própria autoria.
José Ramos Tinhorão, jornalista e pesquisador da MPB, ao
descrever a tragetória de Noel, em uma coleção famosa da Abril Cultural,
entitulada “História da Música Popular Brasileira - grandes
compositores”, diz que Noel passou por Casé, Conversa de Esquina e
certas revistas foram programas fixos do compositor. Segundo o
pesquisador, ele se apresentava em todas as rádios, recebendo cachês
verdadeiramente irrisórios. Isso bem mostra como era as condições de
trabalho da maioria dos compositores populares da época que trabalhavam
nas principais emissoras de rádio existentes. Fazendo caricaturas,
108
108
exaltando seu bairro, Vila Isabel, descrevendo tipos e situações urbanas,
falando de seus encontros e desencontros, Noel foi um poeta inovador. Foi
por esse motivo que escolheu-se algumas de suas composições para
analisar, tendo como referência a década de 30, os antecedentes musicais
do Estado Novo. Sabe-se, porém, que o que Noel produziu até sua morte
em 1937, influenciou sambistas do período seguinte e que, mesmo com a
censura estadonovista, seus intérpretes continuaram cantando suas músicas
nas rádios brasileiras.
De acordo com José Miguel Wisnik, a fisionomia musical do
Brasil se formou no Rio de Janeiro. Nas décadas de 20 e 30 observa-se que
o enorme substrato da música rural perde a vez para a música urbana. A
música popular emergiu para o mercado, isto é, para a nascente indústria
do som e do rádio, fornecendo material para o carnaval urbano em que,
conforme afirma este autor “um caleidoscópio de classes sociais e de
raças experimentava a sua mistura num país recentemente saído da
escravidão para o “modo de produção de mercadorias””.(WISNIK,
1987:115) A música irá se apresentar como resistência à nova
configuração de Brasil urbano, moderno, capitalista e, no mesmo
momento em que a industrialização, somada à imigração produziam em
São Paulo fenômenos modernos, como a greve operária, no Rio de Janeiro,
se produzia samba como expressão de grupos sociais marginalizados que
tomavam o espaço da cidade na festa carnavalesca, e que marcavam a sua
diferença e o seu desejo de pertinência através da música.
Ou seja, as décadas de 1920 e 1930, em termos de produção
musical, foram justamente o contrário do que se apresentou ao longo do
Estado Novo. No samba, na música popular tocada nos discos e
transmitida pelo rádio, parecia transparecer uma espécie de ética negativa.
Nos anos 20 e 30 foi a idéia da malandragem, da negação da moral do
trabalho, que prevaleceu.
O samba era produzido pelo negro, pobre, que talvez ainda não
assimilara a passagem da escravidão para o trabalho operário assalariado.
Como afirma Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr, tratava-se de
uma afirmação do ócio, que aparece subjetivamente nas músicas como
uma espécie de tentativa de intervalo entre a escravidão e a nova lógica de
trabalho, ainda totalmente precária, de mão-de-obra desqualificada e
flutuante. Mesmo antes do Estado Novo discutir a construção do homem
novo, de um novo trabalhador brasileiro, a imagem do trabalho, tão
valorizado no período seguinte, já aparecia no período anterior. Só existe
uma diferença: até à censura estadonovista, ainda nas décadas de 20 e 30,
o trabalho aparecia como imagem invertida nas letras musicais. No
período pré-37, na música popular, “a história do trabalho é narrada a
contrapelo. O operário é a principal personagem à sombra, ofuscado pela
ruidosa e alegre consagração da figura do malandro”(VASCONCELLOS
& SUZUKI, 1984:106).
109
109
Porém, quer-se analisar aqui não as letras de músicas compostas
por sambistas negros e sim, analisar como essa questão da malandragem
chega até mesmo a transcender a questão racial. Ao se analisar algumas
canções compostas por Noel Rosa pode-se observar que, apesar de ser um
compositor saído da classe média, ele pôde vivenciar a vida no morro, e
colocar em sua música, questões polêmicas que traziam à tona a
malandragem.
A primeira música analisada, de autoria de Noel Rosa, chama-se
João Ninguém. Foi registrada em julho de 1935, dois anos antes do
advento do Estado Novo. O histórico registro original de João Ninguém
não chegou a fazer sucesso na época. A composição só se tornaria
conhecida do grande público a partir de 1949, quatro anos depois do fim
do Estado Novo, na voz de uma das divulgadoras mais expressivas da obra
de Noel: Aracy de Almeida:
JOÃO NINGUÉM
“João Ninguém
Que não é velho nem moço
Come bastante no almoço
Pra se esquecer no jantar
Num vão de escada
Fez a sua moradia
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar
João Ninguém não trabalha um
Só minuto
110
110
João Ninguém não trabalha um só
minuto (...)”
CONVERSA DE BOTEQUIM
111
111
Não me levanto, nem pago
a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palito
E um cigarro pra espantar mosquito
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste uma revista,
um cinzeiro e um isqueiro
Estava na Central
Quando chegou o noturno do interior
Cheio de passageiros
Onde vinha um gajo de chapéu de aba larga
Cano de bota no estilo fazendeiro
112
112
Mais que depressa fui me aproveitando
Acendi um cigarro e comecei a palestrar
Ele perguntou se eu podia dar um jeito
De arranjar um bom hotel para ele descansar
E foi logo dizendo que tinha um milhão
E que queria ir à tal Caixa Econômica guardar
Meto-lhe a conversa e tomo-lhe a granalina
Entro no Campo de Santana e mando o Jeca me esperar
Saio no portão do fundo apanho um carro e vou em frente
Desguio com o milhão sabendo que ele era vivo
Pois ele deve de saber perfeitamente
Que o palhaço com dinheiro
pode incendiar um circo
(Eu sou malandro e vivo disso é sirico tico...)
Porém, talvez seja o samba “Lenço no Pescoço” de Wilson
Batista, composto em 1933, o que mais exalte a figura do malandro:
113
RAPAZ FOLGADO
TRÊS APITOS
Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
ou está interessada
Em fingir que não me vê
114
114
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Sou do sereno
Poeta sou noturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe porquê
Você não sabe
Que quando você faz bano
Faço junto do piano
Esses versos pra você.
115
Ari Barroso, mineiro, compunha músicas “ufanistas”, com a
mesma linha reforçada pelos outros compositores, que teria grandes
repercussões nacionais. Antes de analisar as músicas produzidas no
período que exaltam o trabalho, considera-se importante tentar discutir
também a questão do nacionalismo getulista que aparece nas músicas dos
compositores. Nota-se, por exemplo, em Ari Barroso, a possibilidade de
traçar-se um paralelo com a literatura produzida na época. Por exemplo,
sabe-se que na época o ufanismo era um dos pontos centrais de
composições da época. E esse painel de músicas que valorizavam o povo
brasileiro, sua cultura, etc; os valores ideológicos que apareciam nas
composições, eram muito estimulados pelo próprio DIP, que chegou a
fazer um concurso de música popular em que “Aquarela do Brasil” (ver
letra a seguir) foi classificada e vitoriosa. Ari Barroso não é somente um
representante do ufanismo, mas ideologicamente se colocava ao lado de
Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, Menotti Del Pichia, Plínio
Salgado e outros literatos. Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida
ocuparam postos importantes no governo paulista revolucionário de 32.
Cassiano foi o secretário do Governo Provisório e contra-revolução,
trabalhava diretamente com Getúlio Vargas, sendo o mentor de uma
política de expansão das artes baseada na ideologia dos bandeirantes.
Cassiano era apoiado, entre outros, por Benedito Valadares, que viria a ser
o interventor de Getúlio em Minas Gerais no Estado Novo.
Na música popular pode-se observar mais explicitamente a
proposta deste grupo de mentores da ideologia getulista para as artes. A
intencionalidade de apoio ao governo de Getúlio é mais forte e revelada
sem maiores escrúpulos. A música de Ari Barroso, escrita em pleno
Estado Novo, em 1939, explicita esta questão:
AQUARELA DO BRASIL
“Brasil
Meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos.
O Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingar
O Brasil do meu amor,
Terra de Nosso Senhor.
Brasil, Brasil.
Pra mim, pra mim.
Oi! Abre a cortina do passado,
Tira a mãe preta do cerrado,
Bota o rei-congo no congado.
Brasil, Brasil.
116
116
Deixa cantar de novo o trovador
A merencória luz da lua
Toda canção do meu amor.
Quero ver a sá dona caminhando
Pelos salões arrastando
O seu vestido rendado.
Brasil, Brasil.
Pra mim, pra mim.
Oh! Oi essas fontes murmurantes
Oi onde eu mato a minha sede
e onde a lua vem brincar.
Oh! Esse Brasil lindo e trigueiro,
És meu Brasil brasileiro.
Terra de samba e pandeiro.
Brasil, Brasil.
Pra mim, pra mim.”
“Veja só
A minha vida como está mudada.
117
117
Não sou mais aquele
Que entrava em casa de madrugada.
Faça o que eu fiz,
Porque a vida é do trabalhador.
Tenho um doce lar
E sou feliz com o meu amor.
O Estado Novo
Veio para nos orientar.
No Brasil não falta nada,
Mas precisa trabalhar.
Tem café, petróleo e ouro
Ninguém pode duvidar.”
118
118
“Certa menina do Encantado
cujo pai foi senador,
ao ver o povo de encarnado
sem se pintar, mudou de cor.
G-e-gê, ge...
T-u-tu, tu...
Ge-tú-lio”
(Lamartine Babo/marcha)
Esta música foi feita durante a IIª Guerra Mundial e critica Hitler,
elogiando ao mesmo tempo a figura de Getúlio, que foi muito bem visto
pelos compositores Ubirajara e Afonso Teixeira nesta simples marchinha
de carnaval.
Título: Diplomata
“O Brasil espera
Que cada um saiba cumprir seu dever.
Felizmente, nessas horas tristes
Dolorosas e bem amargas,
Temos um homem de fibra,
Que é o presidente Vargas.
Debaixo de suas ordens quero empunhar o fuzil,
119
119
Para lutar, vencer ou morrer,
Pela honra do meu Brasil.”
( Henrique Gonçalez./Samba)
E digo bem”.
120
Afinal, “a boemia não dá camisa a ninguém.” O discurso musical mudou?
Ou foi a circunstância de censura, de repressão que forçou os malandros a
mudar suas composições para agradar o Estado e garantir o pão de cada
dia? De acordo com algumas versões, a letra original dizia: “o bonde São
Januário leva mais um otário, sou eu que vou trabalhar.” Alguns
estudiosos do assunto costumam dizer que foi através de pressões do DIP
que se trocou otário por operário, dando ênfase ao trabalho. Wilson Batista
era um rádio convícto, como conta Ruben George Olivien, por isso, este
compositor escrevia letras fazendo apologia ao trabalho. O que para o
autor, parece mais um caso de cooptação do artista pelo DIP.
121
“Eu trabalho como um louco
Até fiz calo na mão
O meu patrão ficou rico
E eu pobre sem tostão
Foi por isso agora
Eu mudei de opinião
Trabalhar, eu não, eu não
Trabalhar, eu não, eu não.”
(Almeidinha./samba)
122
e marcaram o período. Seja por cooptação ou não, durante o Estado Novo,
entre 37 e 45 as músicas realmente exaltavam o trabalhado e defendiam a
nação, a construção da nação, além de exaltarem a pátria, ressaltando as
riquezas e belezas naturais. Pôde-se concluir ainda o quanto a figura de
Getúlio era realmente adorada pelos trabalhadores e pelos compositores da
época. Autoritário ou não, censurando ou não, Getúlio conseguiu
influenciar a história da música popular brasileira e conseguiu que muitas
músicas falassem a seu respeito, seja de forma caricata ou propagandística.
Enfim, mais algumas composições que enobrecem a figura de
Getúlio Vargas. São músicas do período queremista, onde os compositores
pediam a volta do presidente ao governo e outras que falam sobre ele.
Espera-se, com isso, concluir a discussão sobre a música no Estado Novo,
para, em seguida, mostrar-se como os operário entrevistado, da Mina de
Morro Velho, percebiam a chegada do rádio em Minas, em Nova Lima.
(Ataulfo Alves./samba)
( J.B. de Carvalho./samba)
123
123
Título: Retrato do Velho (carnaval de 1951)
“ No ano de 1883
No dia 19 de abril
Nascia Getúlio Dorneles Vargas
Que mais tarde
Seria governo no nosso Brasil
Ele foi eleito deputado
Para defender as causas do nosso país
E na Revolução de 30
Ele aqui chegava
Como substituto de Washington Luiz
124
No grande espaço
Na sua evolução industrial
Candeias, a cidade petroleira
Trabalha para o progresso fabril
Orgulho da indústria brasileira
Na história do petróleo do Brasil
Ôô ô
Salve o estadista
Idealista
Realizador
Getúlio Vargas
O grande presidente de valor.”
( Padeirinho./samba)
125
e ainda trazer o troco porque ele precisa do dinheiro para ir ao jogo no
Maracanã. O que demonstra ainda a possibilidade de que, - apesar da
tônica do período ser o trabalho, a tentativa de formação de uma idéia de
nação, com ordem para o progresso - os compositores mantinham acesa a
chama do carnaval, da boêmia, ou seja, da malandragem.
Nesse sentido, é possível compreender a análise de Foucault, ao
relacionar o poder à capacidade de produzir verdade. A verdade é o
próprio discurso produzido em sociedade pelo poder, onde cada sociedade
estabelece “sua política geral de verdade”. Desse modo pode-se entender a
figura de Getúlio enquanto um ser produtor de verdades históricas. O
discurso de Getúlio, discurso do poder/saber (afinal, estava pautado no
ideário construído pelos seus “intelectuais orgânicos”) recria a História.
Palavra e poder se unem com o objetivo de apagar a memória de luta
operária ou juntar-se a ela, no projeto corporativista e construir um
consenso entre dominados e dominantes. O discurso do saber implementa
a verdade. A verdade é fabricada através do ideário estadonovista. As
manifestações dos trabalhadores, que detêm outros saberes menores - diria
Deleuze - passam a ser controladas. O trabalhador é seduzido pela
linguagem do poder e torna-se cúmplice desse poder. Sem dúvida alguma,
como podem ser constatados nos relatos dos operários, as emissões
radiofônicas tiveram efeitos profundos no imaginário social.
“O rádio permitia uma encenação de caráter simbólico e
envolvente, estratagemas de ilusão participativa e de criação
de um imaginário homogênio de comunidade nacional. O
importante do rádio não era exatamente o que era passado e
sim como era passado, permitindo a exploração de sensações
e emoções propícias para o envolvimento político dos
ouvintes. Efeitos sonoros de massa podiam atingir e estimular
a imaginação dos radioreceptores, permitindo a integração,
em variados tons entre emissor e ouvinte, para se atingir
determinadas finalidades de participação política”.
(LENHARO, 1986:40-41)
126
126
novelas e músicas. O Sr. Waldir também foi um compositor e ouvinte
assíduo das rádios naquela época:
“Foi também na época dos bailes do Retiro e do Vila Nova
que eu comecei a compor meus sambinhas. Na ocasião, eu fiz
uma espécie de hino para Nova Lima. Eu acho que ninguém
sabe a letra desse hino. Eu não achei muito bom. Foi quando
eu voltei para Nova Lima, década de 30, voltei em 32 para
Nova Lima. Eu devo ter composto esse hino em 35. “Nova
Lima, linda cidade criança, berço de Augusto de Lima, terra
do amor e da esperança. Conjuga as cores da bandeira: o
azul do céu, o verde da esperança e o ouro, maravilha das
estrelas...”
Mas eu não gostei. Foi quando eu comecei a estudar no
Liceu Imaculada da Conceição. Nós resolvemos fazer um
conjunto vocal entre os alunos da minha sala. Eu, Tulio, Tião
éramos do violão, éramos cinco. Tínhamos um sujeito muito
bom no bandolim... E nos apresentávamos no teatro. Porque
no teatro antigamente tinha a encenação do drama ou da
comédia e tinha a apresentação de um número musical e nós
sempre éramos convocados para apresentar quando tinha
peça de teatro de Nova Lima. Era o Grêmio Dramático
Novalimense. E foi aí que eu comecei a compor. Porque eu
era o croner e me vinha inspiração. Primeiro foi aquele hino,
mas eu não gostei. Fiz um samba... mas esse eu não me
lembro mesmo...
Toda vida eu me influenciei muito pelos compositores da
música brasileira, principalmente os que se aproximavam
mais do samba. Eu gostava demais de samba. Eu preferia
sempre Assis Valente, o nosso Noel Rosa, e o mineiro Ary
Barroso. Esses compositores me influenciaram muito. As
músicas de Moreira da Silva, seu samba de Breque...
Inclusive foi baseado numa música de Moreira da Silva que
eu compus meu “Cartão de Visita”27. Não sei se Moreira da
Silva era compositor, mas ele interpretava com muita
propriedade esses sambas. Outra coisa que quando eu
comecei a compor foi de grande influência foi as músicas do
cinema. Principalmente as músicas americanas dos grandes
filmes da época, os famosos musicais da época de Fred
Asteire, Ginger Rogers... Eu gostava de imitar no salão o que
eles faziam na tela. Por isso que eu fiquei com esta
capacidade de dançar bem.
27
Cf. anexo 4 – primeira composição do Sr. Waldir dos Santos.
127
127
Tinha uma menina aqui em Belo Horizonte: Audinha do
Amor Divino. Ela se apresentava na PRC7, a rádio Guarani.
Cantava num programa de auditório. Era ali na R. São Paulo.
Audinha fazia a programação. Ela era menininha, de doze ou
treze anos. E tinha uns parentes lá em Nova Lima, muito
ligados à música. Eles tinham um conjunto vocal e eu
comecei a compor para ela tocar no rádio.
Ela ia em Nova Lima e eu cantava a música até ela
decorar. Ela chegava em Belo Horizonte e cantava. Eu fiz
muitas composições para ela. Mas acontece que meu nome
não aparecia.
Acho que isso já foi na época do Estado Novo de Getúlio.
As rádios que se ouviam aqui eram principalmente as rádios
cariocas, mas havia rádios mineiras como a Atalaia, a
Inconfidência. Eu ouvia principalmente a Rádio Nacional, do
Rio. A rádio Nacional tinha programas ao vivo, de
auditório...tinha o do Alencar, que era animador. Tinha o
programa do César Ladeira, que era locutor, mas não
animava programas de auditório. Eu me lembro que havia
disputas entre cantoras, como a Marlene e a Emilinha, e na
ocasião, houve também um musical entre o Noel Rosa e um
outro compositor que agora não lembro o nome. Ele cantava
para o Noel: “quem é você que não sabe o que diz. Meu Deus
do céu, que palpite infeliz. Salve Estácio, Salgueiro e
Mangueira, Oswaldo Cruz e Matheus, que sempre se deram
muito bem...” não me lembro o resto da música. Só sei que o
Noel era de Vila Isabel e era divulgador das belezas de lá.
Esse outro compositor respondia às músicas que o Noel fazia.
Foi uma época muito boa na música brasileira. O Getúlio na
ocasião incentivou os candidatos a se agruparem, e ele deu
força para os compositores, os candidatos queriam fazer a
eleição...
Nesta ocasião, os compositores fizeram muitas músicas de
carnaval, muita música popular brincando com os candidatos,
e mesmo com o próprio Getúlio. Ele ia nos programas de
auditório e dava força. Ele ia na Rádio Nacional e os
cantores brincavam com ele. O Getúlio era um camarada
popular, popularíssimo. Populista mesmo. Foi uma época em
que o país viveu uma alegria total...O povo achava aquilo
uma alegria. Só quem não gostava daquilo eram as elites,
porque quanto mais ele se misturava com o povo, mais ele se
tornava adorado por todos. Os operários gostavam dele e isso
era contra os poderosos que queriam massacrar a classe
operária e ele não deixava isso acontecer.
128
128
Mas eram muitas rádios, não tinha só a Rádio Nacional.
Nesta época, a gente também escutava a Mayrik Veiga, a
rádio Roquete Pinto. Esta rádio Roquete Pinto era mais
ligada à cultura. Mas além dos programas culturais, voltados
para a educação, tinha programas humorísticos muito bons.
Foi quando apareceram humoristas como o Chico Anísio. O
rádio era muito divertido. Não tinha essa quantidade de
música estrangeira que tem hoje, tocava mais música popular
brasileira mesmo. Só tinha na época, competindo com as
músicas brasileiras, aqueles musicais da Metro, aqueles fox,
etc. Neste caso o que realmente prevalecia era a música
popular brasileira.
Eu gostava mesmo era da rádio Nacional. Ele era como é
hoje a Globo para as demais concorrentes da televisão. Era a
mais poderosa e tinha melhor patrocínio. Fazia programas
muito interessantes e tinha os melhores cantores, promoveu
muitos artistas. Lá na Praça Mauá, no Rio, a rádio promoveu
Orlando Silva, Emilinha Borba, Marlene...Esses artistas
surgiam através desses programas de rádio. Principalmente
da Rádio Nacional. As outras emissoras tinham pouca
divulgação. E como eu era do povão, eu ouvia mesmo a Rádio
Nacional. Era a minha predileta.
Havia também os programas de caráter mais político. Por
exemplo, quando ocorreu a Segunda Guerra Mundial, o
Brasil entrou e todos nós ouvíamos diariamente notícias
através do César Ladeira, que era o locutor que lia todas as
notícias sobre o movimento de guerra. A participação do
Brasil no momento em que declarou guerra à Alemanha, ao
Eixo, quando tiveram movimentos de protesto contra os
alemães e italianos no Brasil inteiro. Cesar Ladeira noticiava
as quebradeiras. Porque foi uma quebradeira geral. Em Nova
Lima teve um quebra-quebra terrível. A rádio foi muito
importante. Um outro evento que a rádio teve muita
participação foi na inauguração da estátua do Cristo
Redentor, no Rio. Parece que foi um italiano que trabalhava
com rádio que conseguiu iluminar a estátua do Cristo. Acho
que o sujeito se chamava Marconi, não estou bem lembrado.
Só sei que através do rádio ele iluminou...
A Era de Ouro do rádio começou no Estado Novo, foi no
governo de Getúlio Vargas. Ninguém podia falar mal do
governo porque ia preso mesmo, era uma ditadura. Mas a
repressão era muito branda, não se compara com a dos
militares de 64. A repressão era branda, principalmente se
pensarmos nas classes menos favorecidas. Os que mais
129
129
sofreram mais foram os poderosos, porque Getúlio era contra
a política entreguista. Todo o trabalhador era adepto de
Getúlio. Ele promoveu uma coisa extraordinária que foi a
consolidação das leis do trabalho, porque deu ao trabalhador
o direito de se defender contra a escravidão, que era imposta
através dos donos do dinheiro. As rádios apoiavam Getúlio.
Eu me recordo mais da Rádio Nacional que era do governo,
era a mais ouvida, a mais difundida. Agora as outras eu não
me recordo muito bem...Tinha a Exelcior, mas aqui em Minas,
eu me lembro da Rádio Inconfidência, que também era do
governo de Minas. Eu me lembro da inauguração. Foi antes
do Estado Novo, acho que em 1936, e foi no prédio da Feira
de Amostras. Hoje não existe mais. Era onde funciona hoje a
rodoviária. Ela era encostada no Rio Arrudas, me parece que
foi lá mesmo a inauguração da Rádio Inconfidência. Tinha
também a Rádio dos Diários Associados. Acho que era a
Rádio Mineira, e a PRC7, ambas de propriedade do Assis
Chateaubriand. Mas não estou certo. O que tenho certeza é
que a Rádio Inconfidência era a rádio oficial do governo.
Agora, quanto a política...Não posso dizer muita coisa,
porque nesta época, eu não era muito interessado na questão
política. Eu apenas apoiava o Getúlio Vargas. Eu era muito
humilde, na minha condição de operário, trabalhador, não
conseguia acompanhar muito o movimento político. Depois,
quando eu me tornei adulto e constituí família, foi que eu
comecei a me interessar mais na situação política. No Estado
Novo eu era muito tranqüilo. Na condição de getulista, eu
achava o governo o máximo, para mim era tudo muito bom.
Só quando um camarada protesta é que ele procura saber o
outro lado que é contra o que eu justamente admirava. Era
isso que eu sentia pelo presidente: admiração. Eu até me
recordo que nas rádios havia censura. Era na época da
ditadura, mas era uma censura muito branda. E do ponto de
vista humorístico em minha opinião não havia censura. O
próprio Getúlio Vargas achava engraçado a audácia dos
chargistas, humoristas, dos músicos, compositores no seu
governo.
Além do que, Vargas apoiava a cultura, atuava muito nas
artes e nas músicas. Ele deu muito apoio. Assistia tudo.
Quando se lançava alguma revista musical no Rio ou em São
Paulo, ele ia lá, subia ao palco e congratulava diretamente o
cidadão. Falava diretamente com o povo. Todo mundo
aplaudia e ele suportava todas as brincadeiras que os artistas
faziam com ele. Ele tinha espírito esportivo, era alegre. Mas
130
130
isso é porque os críticos faziam as músicas com um tom
humorístico, irônico, não de agressão. Eles também
procuravam agradar ao público e o público gostava de
Getúlio. Eles também faziam músicas para agradar, que
falavam bem de Getúlio, brincavam com ele de modo
carinhoso. Por exemplo, quando teve a eleição, bem depois
do Estado Novo, em 51, ele ganhou. Então, os músicos
fizeram: “Bota o retrato do velho outra vez, ponham no
mesmo lugar...”.
Tinha música de todo o tipo. A maioria, na época do Estado
Novo, era de elogio ao Brasil, suas belezas, as coisas boas de
cada Estado. Aquarela do Brasil, de Ari Barroso é desta
época. Foi na ocasião de Getúlio que fizeram aquela música
chamada Barracão de Zinco. Eram sambas de exaltação ao
Brasil. Essa música era do Alcir Pires , um grande
compositor da música popular. Nessa ocasião apareceu muita
composição de exaltação ao Brasil. Ave Maria do Morro saiu
nesta época. Quem cantou foi Dalva de Oliveira. As músicas
geralmente abordavam esses temas de exaltação ao Brasil,
das suas belezas, patriotismo, falavam sobre o povo
brasileiro. Aliás, as próprias leis trabalhistas influenciavam
nas músicas. A própria Aquarela do Brasil exalta o
trabalhador brasileiro. Era uma ocasião em que o povo
estava alegre, feliz. Um povo feliz é um povo que canta. Eu
mesmo fiz uma música de exaltação ao trabalho, influenciado
pelo Getúlio. Chama-se Rosário de Felicidade:
“Para que a vida seja um rosário de felicidade É preciso ter
fé em Deus, Saúde e Mocidade Ter disposição de trabalhar
todo dia. E uma bela mulher que faça companhia Com saúde
e mocidade Fé em Deus que é o nosso guia Com toda
felicidade e um uma vida Em harmonia Com carinho e
trabalho Ter uma vida pessoal Um pouco com Deus é muito,
Um muito sem Deus é nada”.
Essa música eu nem difundi. Fala só de trabalho, de amor e
carinho, na qualidade de operário que eu era. Havia muitas
músicas falando de trabalho, de trabalhador, de operário: “O
bonde São Januário, Leva mais um operário Sou eu que vou
trabalhar”
Depois de Getúlio, o sujeito falava menos de malandragem e
mais de trabalho. Eu era do carnaval, e Getúlio apoiava as
músicas que se fazia. Esse negócio de falar que ele censurava
é mentira, ele dava toda liberdade. Com relação às rádios eu
realmente não me recordo. Eu até compunha para uma
menina, a Aldinha, lá de Nova Lima, trazia para Belo
131
131
Horizonte. Ela cantava na rádio Guarani. A Guarani tinha
um auditório ali onde hoje é a Lojas Americanas, na esquina
de R. São Paulo com Av. Afonso Pena. Ali era o auditório da
Rádio Guarani, e geralmente sábado e domingo eles traziam
aqueles cantores. Eu era macaco de auditório, fanzoca e só
isso. Meu locutor preferido era o César Ladeira, não tinha
posição, só noticiava, não defendia o governo. Eu gostava de
sua postação de voz. Ele falava bem.
Eu me lembro que um dia eu fiquei ali parado para entregar
uma música que eu fiz para o Sílvio Caldas. Mas eu não
consegui chegar perto dele. Eu era fã do Sílvio Caldas. Ele
era cantor famoso, cercado por um punhado de gente e não
teve jeito. Ficou só na vontade. A música que eu fiz para ele
chamava-se a “Vingança da flor”: “No jardim da minha vida
um dia uma linda flor plantei E das flores que eu queria foi a
flor que eu mais amei. Por maldade uma mão criminosa, a
linda flor apanhou E a flor que era uma rosa, pôr vingança se
desfolhou”.
Essa música era a cara do Silvio Caldas. Ele cantava
músicas românticas e essa marcha-rancho era do tipo dele.
Ele e o Barbosa compuseram o hino nacional da música
brasileira que é Chão de Estrelas. O Silvio Caldas para mim
é ídolo. Eu gostava de todos eles: Ary Barroso... Naquele
tempo eu adorava ouvir esse tipo de música e cantava as
minhas serenatas. Eu sabia, decorava todas as músicas.”
132
132
resistir, de transgredir, de subverter, mesmo que de forma extremamente
subliminar, esse sofrimento?
Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular), de acordo com
CERTEAU, são do tipo tática. E também, de modo mais geral, uma
grande parte das “maneiras de fazer”: vitórias do “fraco” sobre o mais
“forte” (os poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem
etc.): “pequenos sucessos, artes de ar golpes, astúcias de “caçadores”,
mobilidades da mão-de-obra, simulações polimorfas, achados que
provocam euforia, tanto poéticos quanto bélicos”. (CERTEAU, 1994:47).
Nesse sentido, o beber cerveja depois do trabalho árduo na mina, o
participar de representações folclóricas, como o Congado, por exemplo,
que será visto a seguir, se constituiam em “maneiras de fazer” dos
operários que acabavam transgredindo a ordem do patrão, inglês.
As festas folclóricas, e o Carnaval, através de suas múltiplas
representações, parecem ter tido esse papel. Desdobravam-se, num espaço
de conflito, de competições cotidianas. A divisão social, onde havia, por
exemplo, um clube de operários e outro dos ingleses, onde só entrava
branco, era questionada, quando, na representação do Congo, ou no
Carnaval de rua, podiam então expor-se, vestidos como deuses ou heróis,
os modelos dos gestos bons ou maus utilizáveis a cada dia. De acordo com
Certeau,
“...discursos estratégicos do povo. Daí o privilégio que esses
contos concedem à simulação/dissimulação. Uma formalidade
das práticas cotidianas vem à tona nessas história s, que
invertem freqüentemente as relações de força e, como as
história s de milagres, garantem ao oprimido a vitória num
espaço maravilhoso, utópico. Este espaço protege as armas
do fraco contra a realidade da ordem estabelecida. Oculta-se
também às categorias sociais que “fazem história ”, pois a
dominam. E onde a historiografia narra no passado as
estratégias de poderes instituídos, essas história s
“maravilhosas” oferecem a seu público (ao bom entendedor,
um cumprimento) um possível de táticas disponíveis no
futuro” (CERTEAU,1994:85)
133
“ler, olhar ou escutar são, efetivamente, uma série de atitudes intelectuais
que - longe de submeterem o consumidor à toda-poderosa mensagem
ideológica e/ou estética que supostamente o deve modelar - permitem a
reapropriação, o desvio, a desconfiança ou a resistência” 28
Portanto, é importante verificar até que ponto vai essa
desconfiança. Afinal, o controle dos “dominantes”, ingleses, no caso,
estava presente em todos os momentos e, como se verá, até em alguns
momentos de resistência/transgressão à ordem estabelecida, os operários
estavam postos em uma redoma. Até certo ponto, a transgressão era
restrita a espaços e tempos determinados pela classe dominante.
A festa e o divertimento como transgressão restrita
Do que falam as festas? O que representam? Sem dúvida, as
festas, sejam elas da ordem do religioso, do sagrado, ou do profano, como
o carnaval, geralmente acabam por sintetizar, simbólica e materialmente,
diferentes elementos que permeiam a vida cotidiana. A estrutura social
acaba por ser dramatizada na festa. Ou seja, a festa mostra o papel do
econômico, do político, do religioso e do estético no processo de
transformação e/ou continuidade da cultura de um povo, de um lugar, de
determinada cultura popular. Existe, deste modo, uma continuidade entre a
festa e a vida cotidiana, o tempo do trabalho.
Por que são feitas as festas? De acordo com CANCLINI
(1981:175): “fazem-nas também para consolidar as relações afetivas
comunitárias, o pertencimento à comunidade dos que partiram e
regressam para celebrar. Reinvenção interna obrigatória do excedente
econômico, catarse obrigatória daquilo que não pode vir à tona no
trabalho que é realizado em condições de opressão mas que é também
regulado na sua irrupção festiva para que não prejudique a coesão
permanente: a festa não é a liberação desregrada dos instintos que tantos
antropólogos e fenomenólogos imaginaram, mas um lugar e um tempo
delimitados no qual os ricos devem financiar o prazer de todos e o prazer
de todos é moderado pelo “interesse social”. As paródias ao poder, o
questionamento irreverente da ordem (mesmo nos carnavais) é consentido
em espaços e momentos que não ameaçam o retorno posterior à
“normalidade”.” (CANCLINI: 1981,129)
28
Algumas dessas práticas cotidianas como o próprio habitar, estudar, comer,
caminhar na cidade, serão apresentadas pelos próprios “contadores de história”.
Daí a importância de disponibilizar-se as história s de vida dos colaboradores na
íntegra ao final deste trabalho, em anexo (volume II). Dar voz ao sujeito. São eles
os detentores desses saberes que, através da pesquisa acadêmica, tenta-se
apreender. Daí ser o trabalho de escuta o que irá propiciar a verificação destas
questões/hipóteses formuladas e agora discutidas.
134
134
ordem e inversão desta, que deve ser considerado quando se pensa nas
“maneiras de fazer” dos operários, suas pequenas anti-disciplinas. Mesmo
que estas, pelo que indica a fala dos depoentes, respaldada teoricamente
por Canclini, fossem ainda bastante restritas, permeadas por limitações da
própria vida cotidiana, dos limites de espaço e tempo dessas manifestações
populares de caráter festivo. Afinal, era a empresa que financiava a festa.
Tanto no caso das festas religiosas, quanto no caso das festas
carnavalescas, deve-se destacar que ambas possuem funções políticas e
sociais de coesão e reforço coletivo. Ambas as festas, principalmente a
carnavalesca, acabavam por dramatizar a realidade social daqueles
operários, prostitutas, patrões-de-mina, enfim, dos moradores da cidade de
Nova Lima e Raposos.
Porém, deve-se deixar claro que a festa não é só espetáculo ou
lugar de catarse, é principalmente lugar de transgressão, de anti-disciplina.
Pode ser até mesmo o lugar da revolução, ou da reafirmação desta, como
nas festas da Revolução Francesa 29...
Concorda-se, assim, com a perspectiva de Natalie Zemon DAVIS.
Ao analisar “as razões do desgoverno” nas festividades de Lyon no início
da França Moderna, esta autora mostra claramente que a festa, apesar de
aparecer em certos momentos como transgressão restrita ( a autora mostra
como muitas dessas festas eram patrocinadas pelo clero, como a Festa dos
Bobos, por exemplo), apesar de todas as restrições, são importantes
veículos de contestação e crítica da ordem social imposta: “Às vezes pode
ser útil dar permissão ao povo para fazer palhaçadas e alegrar-se”, dizia
o advogado francês Claude de Rubys, no final do século XVI, “para
impedir que, ao controlá-lo muito rigorosamente, ele caía no desespero.
Abolidos os jogos alegres, em vez de tomar parte neles as pessoas vão
para as tavernas, põem-se a beber, a tagarelar, com os pés inquietos sob a
mesa, e a analisar o Rei e as princesas...o Estado e a Justiça, e ficam
imaginando panfletos difamatórios e escandalosos”. A visão de Rubys é
tradicional, mas ela nos diz mais sobre a mentalidade dos magistrados
urbanos do que sobre os usos efetivos da diversão popular. Espero
mostrar que, em ver de ser uma mera “válvula de escape”, desviando a
atenção da realidade social, a vida festiva pode, por um lado, perpetuar
certos valores da comunidade (até garantindo a sua sobrevivência) e, por
outro, fazer a crítica da ordem social. O desgoverno também pode ser
rigoroso em sua análise do rei e do Estado.” (DAVIS,1990:87).
29
cf. trabalho sobre a festa como objeto da História . OZOUF, Mona. A festa. Sob a
Revolução Francesa. In: LE GOFF, J. & NORA, Pierre. História : Novos Objetos.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.p216-232.
135
135
Festas religiosas e folclóricas
As festas religiosas também possuem funções políticas e
psicossociais: de coesão, resignação, expansão e reforço coletivo. A
ideologia e o ritual religiosos separam os indivíduos do real e do presente.
O ritual religioso é um instrumento para ordenar e deferir: remete as
necessidades insatisfeitas a lugares e tempos fictícios, regula a sua
colocação em cena, a sua irrupção controlada, a sua sublimação disfarçada
na dança, na procissão, nos jogos, mediante obrigações e regras.
Entretanto, oferece uma ocasião para que algumas restrições cotidianas
sejam levantadas, para que os corpos tomem consciência do seu poder
lúdico e o expressem: o ritual mais rigoroso, sobretudo se é coletivo, serve
à sociedade - como escreveu Roberto da Matta referindo-se ao carnaval
brasileiro - para que esta se abra a “uma visão alternativa de si mesma”,
para que possa “inventar um mundo novo através da dramatização da
nossa realidade social” (MATTA, 1980: 32-33). Ou seja, mesmo nos
rituais patrocinados pela Igreja, aparecem fissuras pelas quais outros
sentidos, outras formas de apropriação podem ocorrer, como será visto a
seguir.
Por exemplo, o Sr. Waldir fala das festividades religiosas que
ocorriam em Nova Lima, da repressão do padre e da resistência, da micro-
anti-disciplina na fuga para outra cidade próxima a Nova Lima:
“Todas as festas a igreja promovia. Havia um padre muito
dinâmico nesse sentido, Padre Joaquim de Coelho Cansado,
era o nome do português. Ele era de uma severidade terrível.
O povo de Nova Lima tinha verdadeiro pavor dele, porque
quando falava na hora da missa, ele citava o nome de todo
mundo da cidade, falava mal das pessoas, xingava. Ele era
terrível! Carnaval em Nova Lima, no tempo do Padre
Joaquim, era sábado, domingo, segunda e terça até meia-
noite. Até o cabaré fechava à meia-noite de terça-feira. Se
tivesse qualquer coisa, o padre Joaquim virava bicho.
Quando era terça-feira de Carnaval, depois da meia noite,
fretávamos automóveis e íamos para Sabará, acabar o
Carnaval em Sabará. Íamos dançar no Cravo Vermelho. Já
éramos rapazes. O carnaval da infância eu não lembro muito
porque eu não passei a minha infância toda em Nova Lima.”
136
temperada. E nós fomos num baile desses lá no Bairro do
Cascalho.” (Sr. Waldir)
137
tinha alvorada. Bandas de música saíam tocando pela cidade
soltando fogos, rojões. Soltaram uma série de rojões...” (Sr.
Waldir)
Tudo isso também era representado nas Pastorinhas das quais o Sr. Waldir
teve a oportunidade de participar em sua infância. Personagens como o
anjo, Herodes, as pastoras, os reis magos e outros também apareciam na
encenação orquestrada pela beata Almerinda Duarte, de Nova Lima,
Minas Gerais:
138
Se, por um lado, existiam as festas religiosas, como a Festa
de São João, a Festa do Divino, o Natal, entre outros, também
existiam, e ainda existem, festas folclóricas, sobretudo as de
influência afro-brasileiras como o Congado, a Marujada e o
Batuque.
139
139
reis dos Congados, como um dos substratos das culturas bantos que ali se
orquestram”, afirma MARTINS.
O conceito de (re) apropriação de CHARTIER, o de “estratégias”,
“astúcias”, “maneiras de fazer” de CERTEAU, novamente aparecem como
extremamente eficazes na compreensão dessa manifestação de nossa
cultura popular. Prestigiando a arte e o saber de seus antepassados, seus
dançarinos, seus músicos, seus contadores de história , os mineiros que
participavam da Guarda e Congo, mais uma vez jogam com a herança
colonial de dominação. Em sua Festa, resistem...Sabe-se que a coroação
dos reis negros, a Congada, acabou sendo incorporada pelo sistema
escravocrata como modo de controle dos africanos e de seus descendentes.
Porém, não deve-se parar por aí a análise. Há controle, mas o interessante
é observar como tal coroação, tal festa folclórica é apropriada pelo próprio
negro que, por meio dela, recria, redimensiona formas ancestrais de
organização social e ritual, invertendo os papéis sociais. Aqui, o Rei é
negro, não branco, muito menos inglês. Aqui, mais do que nunca observa-
se a transgressão à antiga ordem escravocrata e, pensando no novo tempo
e no novo espaço, à ordem imposta pelos patrões ingleses que, como foi
visto no capítulo anterior, teimavam em perpetuar tal sistema
escravocrata, mesmo depois de muito abolida a escravidão. “Os festejos
do Rosário, performados sob o estandarte de santos católicos da devoção
negra, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia, São
Baltazar, Nossa Senhora das Mercês, alastraram-se pelos territórios
brasileiros, já imprimidos de conotações e resoluções que rompem a
ordem escravocrata e os códigos ocidentais, transformando o aparato
institucional em um dos modus operadores e agenciadores de inscrição de
outros processos simbólicos na formação da cultura brasileira. (...) Os
rituais de coroação de reis negros no Brasil e seus desdobramentos
rompem as cadeias simbólicas instituídas pelo sistema escravista secular e
religioso, reterritorializando a cosmovisão e os sistemas simbólico-rituais
africanos, cruzando-os com os elementos das tradições européias, neles
posteriormente acoplados, tais como as reminiscências das cavalhadas e
das embaixadas medievais de Carlos Magno.” (MARTINS, 1997:38-39)
Tais rituais, aqui (re) descobertos trazem à tona valores, visões de
mundo que não são os mesmos daqueles apresentados e difundidos pela
elite inglesa de Nova Lima. Tais festejos são, sem sombra de dúvida,
traços de uma resistência negra, grande transgressão ao mundo do
trabalho, mundo quase escravo (pelo menos até Vargas). Expressam um
saber que traduz o negro, o operário como agente de transformação, de
resistência cultural.
Boemia
140
140
O Sr. Waldir dos Santos possuía uma intensa vida boêmia.
Participava dos bailes, do carnaval, ia aos bares da cidade de Nova Lima,
ao cabaré. Pequenas transgressões...Seria isso uma forma de sublimar o
sofrimento da mina, uma válvula de escape, ou uma resistência no sentido
de anti-disciplina cotidiana, nas suas “maneiras de fazer”?
Dentre os espaços de lazer da cidade de Nova Lima, encontrava-
se o Cabaré e o bar do Aziz. Espaços destinados à boêmia, ao
divertimento, freqüentados por operários e patrões, ponto de encontro
cotidiano, um verdadeiro mundo dentro do mundo. Nova Lima não era só
trabalho, não era só sofrimento dentro da mina, era também diversão,
prazer, festa.
141
141
Mas a problemática do beber que aparece quando se pensa na
vida cotidiana dos operários é fundamental para refletir sobre as
“maneiras de fazer” discutidas neste capítulo. Não tenta-se aqui justificar
a boêmia, mas entender o significado simbólico do beber, do tomar
cerveja, cachaça, que também eram práticas que merecem atenção. O
discurso sobre a cerveja, a cachaça, bem como outras bebidas alcoólicas se
acha, como já foi observado na fala do Sr. Gentil, dentro de uma
ambivalência indisfarçável: o prazer em beber tende sempre para o limite
do beber em demasia. A bebida contém intrinsecamente a possibilidade de
um desvio, de um excesso no consumo; pode ser a origem de uma viagem
sem retorno; o abuso da bebida pode desembocar na enfermidade, na
destruição, na morte.(MAYOL, 1996:135) Daí talvez o medo de alguns
dos operários de experimentar a embriaguez: de um lado, a constante
presença da morte dentro do mundo do trabalho, dentro da mina e, de
outro, a possibilidade da morte vir igualmente do outro lado, pelo excesso.
Todos têm em mente a imagem social do alcoólatra, anjo da infelicidade,
marido beberrão que espanca a mulher etc. Por isso, é preciso que haja
algum rodeio, pois este permite, precisamente, afastar-se do excesso da
bebida, para se autorizar a bem beber, sempre “sóbrio”. O Sr. Waldir, por
exemplo, até hoje se orgulha da boêmia feliz, do saber virar o copo na
hora certa e voltar para a casa ainda sóbrio.
Esta estratégia - que visa afastar qualquer suspeita que possa
pesar sobre o bebedor - repousa sobre a pretensão de um saber-beber. Ao
discurso repressivo, seja dos ingleses, seja daquilo que era ensinado desde
os tempos de escola ou na Igreja, se contrapunha um discurso que exaltava
a virtude da temperança, o savoir-faire da degustação qualitativa e
quantitativa, conforme explica Mayol. Na verdade, para o operário, o
problema não era beber, era saber parar. E, insistir para que todos bebam
era nada mais nada menos do que forçar para que todos celebrassem a
alegria dos que bebiam. Como o vinho dos operários franceses, por
exemplo, a cerveja e a cachaça dos bares das cidades operárias mineiras
passavam a simbolizar a antitristeza, a face festiva da vida cotidiana dos
operários. É uma economia da liberalidade. A cerveja e/ou a cachaça era,
portanto, o eixo principal de um intercâmbio, o mediador da palavra, do
reconhecimento, parte constituinte de uma cultura popular operária,
urbana, para o qual a bebida contribuia até mesmo na formação de valores
de identificação, essenciais, que giravam principalmente em torno de
práticas de solidariedade. Por isso, unir-se em torno da bebida, também
era um fator que propiciava o encontro, as trocas, a efetivação de práticas
de solidariedade entre os operários. O bar era local onde ocorria a
afirmação das diferenças e das similitudes. Quem bebia e quem não bebia,
quem conseguia se alegrar ou não, perante a tristeza social dos que
trabalhavam em terríveis condições dentro de uma mina onde era
constante a ameaça do fim. A cerveja e a cachaça é um convite à viagem
142
142
para a festa, mas como afirma Mayol:“não se pode ir até o extremo, até a
vertigem central, mortal, que tem no entanto como premonição a troca
inicial, simbolizada pelo ato de encher os copos, o tim-tim e a prova do
primeiro gole. É que o fantasma da desordem absoluta, a abolição de
todas as diferenças, pessoais, sexuais, culturais que a festa do vinho põe
em cena - a festa dos loucos - não é realizável em parte alguma na vida
social. A conveniência exige que se pare a tempo, a fim, precisamente, de
que permanecer no tempo” (MAYOL, 1996: 143)
30
Cf. verbete Cerveja e Bebedeira no Dicionário de Símbolos.CHEVALIER, J. &
GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
143
143
uma hora a menos. Eles davam vantagem para o trabalho de
risco e o laboratório já era considerado zona de risco, já por
influência das leis de Getúlio Vargas. Eu saía de lá do
laboratório e ia direto para a zona. Ficava das 3 horas até às
6 horas da tarde com as mulheres na zona. De tarde, é, de
tarde. Quando era 6 horas eu ia em casa, tomava banho,
jantava, vinha para a cidade, namorava, tomava minha
cervejinha. Quando dava 10 horas eu voltava para a zona. Eu
ia para o Cabaré. Era hora da gente tapear os coronéis. Eu
promovia no salão do Cabaré aquelas prostitutas que
dançavam bem. Elas pagavam meu ingresso e eu dançava
com elas. Os coronéis que estavam em volta, bebendo cerveja,
falavam: "eu vou roubar aquela mulher daquele menino".
Chamava e ela acompanhava ele. E eu pegava outra e saía
com ela. Quando era na madrugada, eu ia buscar o meu
dinheiro, ela me dava parte do que arrecadava. Eu servia de
atração porque dançava muito bem. Eu vivi nessa vida dos 16
aos 25 anos. Porém, certa ocasião, eu tive medo de adoecer.
Eu tive uma probabilidade de pegar uma carga de doença
venérea muito grande. Eu tinha uma sorte incrível, nunca
pegava nada, e olha que eu fazia amor com todas...
E eu fui confidente, elas me contavam tudo que acontecia
com elas. Em compensação, quando elas caíam em
desgraça... Por exemplo, quando alguma adoecia, não podia
faturar e precisava de remédio, quem comprava remédio era
eu. O coronel nunca se responsabilizava. Por isso que esse
negócio de gigolô não é vantagem não. Eu não via vantagem.
Quando elas se viam na pior, elas se valiam de mim. Era eu
quem segurava a barra. Muitas vezes eu chegava no Cabaré
às 10 horas da noite, vinha uma delas e dizia: "Waldir, não
consegui fazer um tostão a noite passada. O que eu fiz, eu
entreguei para a dona da pensão... Estou sem almoço até
agora..." O dinheiro que eu tinha pagava um sanduíche para
ela ou, senão, pagava um prato de comida. Era assim. Era
aquela solidariedade. (...)
No cabaré era comum a polícia fechar por qualquer
denúncia. E eles usavam de violência. Todo mundo que saía
de lá apanhava. Era terrível! Uma ocasião, eu estava em
frente ao Cabaré, que era uma estrada. Tinha a entrada do
cabaré e em frente tinha aqueles casebres que as mulheres
alugavam para fazer vida. E eu tinha entrado com uma
mulher em frente. Quando eu ouvi aquela balbúrdia em
frente, da rua, nós ficamos da greta da janela olhando. Tinha
um crioulo soldado que tinha o apelido de Coice de Mula. Ele
144
144
tinha um soco, que qualquer um caía no ato. Ele ficou na
porta do cabaré. Chegava o camarada ele dava a busca. Não
tinha arma, mas mesmo assim ele batia no sujeito. O
camarada caía. Quando levantava, os outros soldados metiam
o pé na bunda dele. Faziam corredor polonês. Todo homem
que saiu do cabaré essa noite apanhou. E eu de lá da janela
do outro lado só olhando. Eu podia estar nessa também, mas
eu tinha o Santo forte, graças a Deus.(...)
Eu fui um boêmio de lascar...”
Carnaval
145
maricas, entre outros. Levava também uma ala dos pica-paus
e outra dos trabalhadores do tráfego. Desfilavam em Nova
Lima, Belo Horizonte e cidades vizinhas”. (GROSSI,
1980:80).
De um lado, esse tipo de manifestação parece ser algum tipo de
estratégia, de prática, de anti-disciplina. Por outro lado, blocos como o dos
“Prontos”, “Cai-cai”, “Turunas”, eram de outras camadas sociais, como
comerciários e bancários. Havia também o bloco das prostitutas, sendo em
parte financiado pelos feitores. O carnaval em Nova Lima, de acordo com
GROSSI, era um entregar-se à afirmação do prazer, o que apagava por
momentos as diferenças sociais31.
Este olhar sobre a festa carnavalesca remete-nos para outro
tempo, tempo medieval, tempo do renascimento As festas populares
sempre desempenharam forte papel social no sentido de protesto e
controle. Um exemplo foi a grande revolta da Catalunha que teve seu
início no Corpus Christi, uma das maiores festas espanholas.
O Carnaval, como tudo indica, não se resumia à festa de
janeiro/fevereiro. Por exemplo, na Espanha, o dia do Primeiro de Maio
era, como o Carnaval, comemorado com batalhas e casamentos simulados.
O verão também tinha seus carnavais, principalmente Corpus Christi e a
festa de São João Batista. A festa de Corpus Christi, que se difundiu pela
Europa a partir do século XIII, era um dia de procissões e peças. Na
Inglaterra dos finais da Idade Média, era a época em que os mistérios eram
apresentados nas praças do mercado de Chester, Conventry, York e outros
lugares. Também na Espanha, Corpus Christi era o grande dia de
apresentação de peças religiosas, mas os procedimentos eram permeados
de elementos carnavalescos. Elaborados carros alegóricos passavam pelas
ruas, transportando santos, gigantes e, o mais importante, um enorme
dragão, explicado em termos cristãos como a festa do Apocalipse,
enquanto a mulher às suas costas supostamente representaria a prostituta
da Babilônia. Os ouvidos da multidão podiam ser tomados por sons de
fogos de artifício, gaitas de foles, pandeiros, castanholas, tambores e
cornetas. Os diabos tinham um papel importante a desempenhar, dando
cambalhotas, cantando e travando batalhas simuladas com os anjos. O
bobo tinha outra oportunidade de bater nos circunstantes com a sua bexiga
.(BURKE, 1989)
A partir daí, pode-se entrever uma outra leitura que servirá de
ponte para chegar ao "grotesco", ao mundo às avessas do Carnaval, onde
os operários passam a ser patrões de mina e vice-versa...
Segundo BAKHTIN(1981), um dos problemas mais interessantes
da história da cultura é o problema do carnaval, o problema da
31
Essa análise parece se aproximar aos estudos sobre a carnavalização realizados
por Bakhtin.
146
146
carnavalização. De acordo com esse autor, "o carnaval é um espetáculo
sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval, todos
são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se
contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas
vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou
seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua
ordem habitual, em certo sentido uma "vida às avessas", um "mundo
invertido"( "monde à l"envers") ".
147
Morro Velho. Porque lá não parava de jeito nenhum. Mas eu
dançava quatro noites sem dormir. Nos blocos havia muita
rivalidade. Tinha o Caroço Encravado que era o bloco da
classe média. E tinha o Sorriso, por parte do Retiro. A
rivalidade do Retiro e do Vila Nova era uma coisa incrível.
Seu Manoel era do Vila Nova e Niquelino do Retiro. Era uma
rivalidade sem igual e os Niquelinos fizeram o Sorriso e Seu
Manoel fez o Caroço Encravado. E, fora a rivalidade desses
dois, tinha o Minas, que era um bloquinho pequeno que eu ia
também, porque eu era eclético, ia em todos. Eu dançava bem
e puxava bem o cordão, eu era baliza. Porque o passista de
hoje é o baliza de ontem. Já tinha o porta estandarte. Nessa
época a bandeira do bloco vinha atrás, mas o baliza era da
comissão de frente. Baliza era aquele que ia em frente, o
nome diz. Eu só saía na frente, botava o samba no pé mesmo.
Mas eu tenho um caso muito interessante de Carnaval.
Porque a orquestra do Manacés era a melhor orquestra de
Nova Lima e os músicos eram do Caroço Encravado, uma
potência em matéria de sopros, mas não tinha bateria e então
o Retiro contratou um time, o time do Andaraí, e trouxe todos
os jogadores do Andaraí e junto um crioulo, um carioca...
esqueci o nome dele. Mas o crioulo era um marcador do
surdo de bateria num bloco desses do Rio de Janeiro, cobra
mesmo. E ele armou uma bateria... Os blocos se encontravam
no centro e aquele que superasse o canto do outro era o
vencedor. E eu no Caroço Encravado... tinha as meninas mais
bonitinhas nesse bloco. Aí, a bateria do Sorriso arrasou. Os
metais do Manacés e a bateria mixuruca teve que encarar... O
Sorriso acabou com a brincadeira e os cariocas do clube...
todo mundo malandro carioca, acabaram com a brincadeira.
Foi um arraso... Isso deve ter sido 41, 42, durante a
Guerra...”
148
possível: dançando, cantando, bebendo e conversando sobre a vida. Enfim,
divertindo-se. O Sr. Waldir relata as estratégias que se utilizavam para
penetrar nos clubes em que operário não era convidado:
149
149
Considerações Finais: caminhando entre a
autonomia e a heteronomia
Este livro, mais do que apresentar uma história de vida de um
operário artista, pretendeu examinar as relações de poder e dominação na
mina de Morro Velho no período compreendido entre os anos 1920 e
1940, abordando os espaços do trabalho e da cultura, através, entre outros,
de procedimentos técnicos utilizados na metodologia de história oral.
A microfísica do poder dentro da mina e as possibilidades de
transgressão dos operários face à dominação inglesa; a relação entre os
operários e a figura de Getúlio Vargas; a cultura, o lazer operário e suas
maneiras de fazer cotidianas: festas religiosas, folclóricas, boêmia, cabaré,
bailes, clubes, entre outras artes, “astúcias” dos operários, ofereceram
elementos de análise, que permitiram compreender questões relativas ao
trabalho e à cultura vivenciada pelos trabalhadores da mineração. A
análise evidenciou as anti-disciplinas cotidianas, demonstrando que os
operários não eram totalmente passivos aos ditames do Estado, muito
menos ao controle dos ingleses. Eles conseguiram, em parte, em seu
cotidiano, seja dentro ou fora da mina, se apropriar dos discursos
dominantes, utilizando-os a partir de suas necessidades.
Isto posto, é possível tecer algumas considerações que
ultrapassam o âmbito da análise empreendida. O que se desejou, em
primeiro plano, foi ressaltar a figura do trabalhador como sujeito às vezes
autônomo, capaz de imprimir a sua marca no mundo que o circunda.
Eugéne Enriquez salienta que “o sujeito é um ser criativo”, o que
faz-nos pensar no homem ordinário que, em seu dia-a-dia, em suas
relações sociais, vai tecendo uma rede de ações que introduzem, mesmo
que minimamente, uma mudança, uma transformação. Aquilo que Michel
de Certeau chamaria de anti-disciplina, que foi por nós analisado ao longo
dessas páginas. Existem inúmeras práticas cotidianas (falar, ler, caminhar
pela cidade, habitar, cozinhar, conversar...) que se constituem em
verdadeiras ações políticas. Talvez, a partir daí, se possa afirmar que esses
homens “criativos” enquanto seres que são-sendo, ou seja, que produzem,
que criam em um social-histórico em devir, são sujeitos políticos na e da
História .
Porém, esta afirmação suscita uma discussão. Até que ponto esses
indivíduos, agora considerados sujeitos “criadores da história ”, são
autônomos em relação a esse social-histórico que a todo tempo pressiona
para que cada um seja “indivíduo individualizado”? Ou seja, até que ponto
pode-se pensar um sujeito político que não tenda a se prender na
“massificação” obtida pelo apego às identidades coletivas? Ou nessas
150
150
tentativas de “massificação”, essas tentativas de “controle da memória”,
como viu-se no período Vargas?
Nesse sentido, diferente de autores como Certeau e como
Enriquez, tende-se a pensar um sujeito político, - principalmente tratando-
se do Brasil e mais particularmente dos operários da Nova Lima na década
de 30 e 40 - , que transita incessantemente entre duas dimensões a
princípio distintas: entre a autonomia e a heteronomia.
O sujeito deve ser pensado dentro do mundo e em relação com os
outros. O sujeito cria, mas também reproduz. E talvez, quando reproduz,
nunca reproduza sem acrescentar nada. Ele pode sempre acrescentar algo
singular. Ele pode jogar com os mecanismos de controle e disciplina, se
reapropriar e usá-los do seu jeito. Assim, podemos imaginar que é possível
a convivência dessas duas dimensões. Ele é autônomo e heterônomo.
A palavra autônomo vem do grego: autos (eu mesmo, si mesmo)
e nomos (lei, norma, regra). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a
regra, a norma, a lei é autônomo e goza de autonomia ou liberdade.
Autonomia significa autodeterminação. Até que ponto esse sujeito
político, esse operário é autônomo? Se ele cria estratégias, táticas,
“maneiras de fazer” que alteram o cotidiano, até certo ponto podemos
dizer que ele é alguém que tem o poder para criar suas próprias regras de
sobrevivência em relação ao outro. Porém, apesar de alguns sujeitos
políticos conseguirem ser “livres”, definindo o que desejam, independente
de uma estrutura coletiva totalizante, como queriam os estruturalistas (cf.
Althusser, seus aparelhos ideológicos do Estado), não se pode negar que,
muitas vezes, perde-se a capacidade racional para a autonomia. Os sujeitos
passam a ser heterônomos. Heterônomo vem do grego: hetero (outro) e
nomos; receber de um outro a norma, a regra ou a lei. (CHAUÍ, 1994:338).
Esta talvez seja a grande dificuldade de compreender o sujeito
político no Brasil e, no caso estudado, de compreender o imaginário
operário de Morro Velho durante o governo de Vargas. Já está claro,
todavia, que quando se pensa em sujeito político não se está
necessariamente referindo-se a um partido, a uma classe, a um sindicato
ou mesmo ao Estado. Está-se referindo a todos os homens que agem no
social-histórico. Àqueles que, no dia-a-dia, vivem e praticam ações.
Àqueles que, tendo objetivos a alcançar, fazem escolhas e tomam decisões
no espaço público da palavra e da ação. Ou seja, os brasileiros, os
operários da Mina de Morro Velho.
Até que ponto, no Brasil, fica-se entre a autonomia e a “servidão
voluntária”? Ao se observar o operário que trabalhou na mina de Morro
Velho, no período relativo ao getulismo, esta questão fica ainda mais
truncada. Por um lado, a heteronomia social. As normas impostas para o
trabalho dos mineiros apontam para um completo controle do trabalho, dos
sindicatos, do sistema previdenciário e da justiça trabalhista, o que se
resumirá num conjunto de leis que ficou conhecido como CLT. Essas leis
151
151
deverão ter um papel importante na construção dessa memória/trajetória
que coloca a figura de Getúlio Vargas como um mito, o estadista perfeito.
A representação, gravada na memória, acerca de Getúlio Vargas, expressa
a força do imaginário que foi criado durante o Estado Novo.
As marcas impressas na memória coletiva, como já foi visto ao
longo desse trabalho, resultaram de uma intervenção direta no cotidiano
operário, associada a um discurso que unia o governante à nação. O
discurso de determinados sujeitos políticos, operários da mina, tendia, em
parte, a reproduzir o discurso difundido e é nesse momento que a
heteronomia encontra suas condições para além do inconsciente individual
e da relação inter-subjetiva que aí aparece no mundo social.
“Existe, para além do “discurso do outro”, algo que o
sobrecarrega com um peso inamovível, que limita e torna
quase que inútil toda autonomia individual. É o que se
manifesta como massa de condições de privação e de
opressão, como estrutura solidificada global, material e
institucional, de economia, de poder e de ideologia, como
indução, mistificação, manipulação e violência. Nenhuma
autonomia individual pode superar as conseqüências deste
estado de coisas, anular os efeitos sobre nossa vida, da
estrutura opressiva da sociedade na qual vivemos”
(CASTORIADIS, 1982:131)
152
dominação corporativa. Mesmo com todos os mecanismos de controle da
palavra, ainda pode-se encontrar, nas práticas cotidianas, “maneiras de
fazer” (CERTEAU); práticas cotidianas que se constituem em autonomias,
em anti-disciplinas, ou mesmo em criação de formas libertárias. No caso
da experiência operária em Morro Velho, isto se coloca de maneira tão
subliminar, quando refere-se aos operários que não participaram das lutas
sindicais do período, que parece ficar mais ao nível do inconsciente do que
ao nível de uma consciência do sujeito. Essas micro-resistências, ou
mesmo criações dos sujeitos políticos, parecem sufocar perante a
microfísica do poder implementada pelos ingleses, por seus “patrões de
mina” e, pensando em termos mais gerais (macrofísica), perante o próprio
ideário getulista, com sua ideologia do “homem novo”, trabalhador
nacional que deveria ser dócil e útil para a construção de uma nova nação.
Qual a possibilidade de se pensar o sujeito político, na
contemporaneidade, no momento em que se constata a própria crise dos
direitos dos cidadãos? Aliás, como podemos pensar em sujeitos políticos,
no momento em que palavras como ética, cidadania e direito começam a
cair em desuso frente a avalanche da globalização e do
neoliberalismo(novo nome do imperialismo)?
A indústria massiva, através dos meios de comunicação mais
difundidos, tenta normatizar a sociedade - como o rádio, sob controle do
Estado varguista, tentou normatizar o pensamento do operariado
despolitizado - transformar os sujeitos políticos, até então diferentes, em
massa igualada na exclusão. A supervalorização do econômico em relação
ao político, social e cultural faz com que todos se curvem sem muito
questionar, à realidade da globalização. Talvez estejamos num momento
onde se faz necessária a releitura de clássicos das idéias políticas como
Etienne de La Boétie, que colocava a questão da obediência em relação ao
Estado já em 1548, em seu Discurso sobre a Servidão Voluntária. Poucos
trabalham demais e muitos estão excluídos do processo produtivo. Os que
estão trabalhando mais, aceitam essa condição. E os que estão excluídos
estão, em sua maioria, desorganizados e respondem com violência. Se
somos heterônomos é porque, de certa forma, reconhecemos o Outro e
aceitamos sua regra, sua norma. Talvez o homem só se torne sujeito
político quando recuperar sua liberdade. La Boétie dizia que:
“Como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas
nações suportem algumas vezes um único tirano, que apenas
tem o poder que eles lhe atribuem, que não tem possibilidade
de causar-lhes dano, ao qual (se quisessem) poderiam resistir,
do qual não poderiam sofrer nenhum mal, se não preferissem
tudo sofrer dele em vez de contradizê-lo? Coisa
verdadeiramente surpreendente (e, contudo, tão comum, que
antes temos de lamentá-la do que nos espantar com ela)! Ver
milhões e milhões de homens miseravelmente subjugados e
153
153
submetidos, de cabeça baixa, a um jugo deplorável; e não
porque sejam obrigados a isso graças a uma força irresistível,
mas porque são fascinados e, por assim dizer, enfeitiçados
pelo único e nome de um, que não deveriam temer, já que não
é único, nem adorar, já que é - diante deles todos - desumano
e cruel”(...) Disponham-se(...) a não servir e vocês serão
livres. Não quero que vocês o combatam, nem que o
derrubem, mas somente que não o sustentem; e verão que, tal
como um grande colosso do qual se retira a base, ele
tombará, por seu próprio peso e se quebrará.” (LA BOETIE,
1982)
Por que cada homem aceita ser comandado? Por que há uma
tendência à superação da autonomia pela heteronomia?
Termina-se essa breve reflexão, oriunda de toda a análise sobre o
cotidiano operário em Nova Lima na Era Vargas, citando outra filósofa
que possibilita-nos refletir em meio a esta quase impossibilidade de pensar
sujeitos políticos no Brasil:
“Não é preciso dizer que isto não significa que o homem
moderno tenha perdido suas capacidades ou esteja a ponto de
perdê-las. Digam o que disserem a sociologia, a psicologia e
a antropologia acerca do “animal social”, os homens
persistem em fabricar, fazer e construir, embora estas
faculdades se limitem cada vez mais aos talentos do artista,
de sorte que as respectivas experiências de mundialidade
escapam cada vez mais à experiência humana comum.” (...)
...as palavras de Catão: Numquam se plus agere quam nihil
cum ageret, numquam memis solum esse quam cum solus esset
- (Nunca ele está mais ativo do que quando nada faz, nunca
está menos só que quando a sós consigo mesmo)” (ARENDT,
1983:338).
154
154
Referências Bibliográficas e Documentais
Bibliografia pesquisada, consultada e teórica
155
155
ATAÍDE, Y.D.B. Decifra-me ou te devoro. História oral dos meninos de
rua de Salvador. São Paulo: Loyola, 1993.
BAUM, Willa. Oral History for the local Historical Society. Nashville,
Tenessee: AASLH, 1974.
156
156
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos. São Paulo:
T.A. Queiroz,1979. 402p.;
157
CHÂTELET, François. & Outros. História das Idéias Políticas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.
_______________. Cultura e Democracia. o discurso competente e outras
falas. São Paulo: Moderna, 1980.
COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1996.
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo - Sociedade e Cultura no início
da França Moderna. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990.
D'ARAUJO, Maria Celina & Outros. A volta aos quartéis: a memória
militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
_________. Os anos de chumbo: A memória militar sobre a repressão. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará,1994.
_________. Visões do Golpe: A memória militar sobre 1964. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da
história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.(2a. edição)
DEBERT, Guita G. Problemas relativos à utilização da história de vida e
história oral. In: RUTH CARDOSO (org). A Aventura
Antropológica - teoria e pesquisa. RiodeJaneiro: Paz e Terra, 1986.
158
FEBVRE,Lucien. Combates por la historia. Barcelona: Ariel, 1971.
159
159
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
189p.;
160
160
LÉVY, André. et al. Psicossociologia. Análise social e intervenção.
Petrópolis: Vozes, 1994.
_____________. The Vargas Regime. The Critical years. New York &
London: Columbia University Press, 1970.
161
161
___________________________. Canto de Morte Kaiowá - história oral
de vida. São Paulo: Loyola, 1991.
___________________________. (Re)introduzindo História oral no
Brasil. São Paulo: Xamã, 1996.
___________________________. Manual de História oral. São Paulo:
Loyola, 1996.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória. São Paulo:
Contexto,1992.
MORGANTI, Vera Regina. Confissões do amor e da arte. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1994.
MUNAKATA, K. A legislação trabalhista no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
NADER, A.B. Os autênticos do MDB. História oral de Vida Política. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
NEVES, Lucília de Almeida. Reflexões sobre memória e história - A
técnica de História oral. In: Revista do Departamento de História
(4). Belo Horizonte: UFMG, junho de 1987. 142-145p.;
162
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História . Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 1988.332p.;
____________. The death of Luigi Trastulli and other stories: form and
meaning in oral history. Albany, NY, SUNY Press, 1991.
163
163
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. História oral. São Paulo: Paz &
Terra,1992.;
164
164
Revista Tempo. Vol.1, nº 2. Rio de Janeiro: dezembro de 1996.
Dicionários:
Fontes Escritas:
Documentos
Saint John D’El Rey Mining Company Ltd. Regulamento Interno. Nova
Lima, 1949.
165
Ata da Assembléia da União dos Mineiros da Morro Velho. Nova Lima,
21 de março de 1937. Livro II, fl.5.
166
166
.Jornal Correio Mineiro. Belo Horizonte, 22 de abril de 1933,p.2.
Manchete: “Como a Companhia de Morro Velho Burla ostensivamente a
Lei de Férias”.
. Jornal O Debate. 22 de março de 1934, p.6. Manchete: “Só acreditamos
na eficiência do Ministério do Trabalho, quando ele conseguir libertar os
escravos da mina de Morro Velho!”
. Jornal Folha de Minas. Belo Horizonte, 1º de maio de 1935, p.7.
Manchete: “O Dia do Trabalho - As Comemorações de Hoje nesta Capital
e em Nova Lima.”
. Jornal Folha de Minas. Belo Horizonte, 12 de maio de 1936,p.12.
Manchete: “Acusados de Extremistas”.
.Jornal Estado de Minas. Belo Horizonte, 29 de março de 1938.p.10.
Manchete: “Solucionado o Caso dos Operários da Morro Velho.”
. Jornal Estado de Minas. Belo Horizonte, 5 de abril de 1938,p.10.
Manchete: “Retornaram a Nova Lima os Ex-Empregados da Mina de
Morro Velho.”
. Jornal Minas Geraes, quinta-feira, 3 de Setembro de 1936. Manchete:
“Inaugura-se hoje a Rádio Inconfidência”
. Jornal Minas Geraes, sexta-feira, 4 de Setembro de 1936. Manchete: “A
inauguração da Rádio Inconfidência”
. Jornal Minas Geraes, terça-feira, 8 de setembro de 1936. Manchete: “O
Dia da Pátria na Rádio Inconfidência”
.Jornal Minas Geraes, quinta-feira, 2 de maio de 1940. Manchete: “As
comemorações do Dia do Trabalho em Belo Horizonte”
. Jornal Minas Geraes, terça-feira, 3 de setembro de 1940. Manchete:
“Rádio. O aniversário da Rádio Inconfidência”
. Jornal Minas Geraes. Terça-feira, 21 de abril de 1942. Manchete: “
Presidente Getúlio Vargas. A saudação do desembargador Mário Matos,
pelo microfone da Rádio Inconfidência”
. Jornal Minas Gerais. Sábado, 2 de maio de 1942. Manchete: “Produzir,
produzir sem deslacimentos, produzir cada vez mais”
. Jornal Minas Gerais. Sexta-feira, 4 de setembro de 1942. Manchete:
“Chegou a hora dos sacrifícios, das renúncias, dos serviços sem horários,
dos esforços sem conta”.
. Jornal Minas Gerais. Domingo, 6 de setembro de 1942. Manchete:
“Revestiu-se de grande fulgor cívico a parada da Juventude Brasileira,
ontem, em Belo Horizonte” .
167
167
MÚSICAS DE Sr. WALDIR DOS SANTOS
(* Nova Lima 15/05/1916 + Belo Horizonte 2001)
Cifrado por Lucas Machado
168
168
2 - Corda Bamba (samba)
Ser casado
Ter amante e gostar de samba - bis
É mesmo que andar na
Corda bamba
O homem sendo assim
É um artista
Na qualidade de equilibrista
Porém quando a patroa
Descobre o jogo
Poe álcool sobre os dois - bis
E bota fogo
O mundo gira
E nós giramos com o mundo
Alguns tem muita alegria →
E outros [desgosto profundo
Não adianta chorar
Pois o choro[não vai resolver
Vamos sorrir, sorrir até morrer
(Dificuldade)
Felicidade é passageira
169
169
Do trem do mundo
O destino é condutor
Pra quê chorar
Chorar a vida inteira
Só porque se perdeu
Um grande amor
Não vale a pena
Não senhor.
Procurei inspiração
Em todo lugar
No silencio da noite
Na luz do luar
Mas[ apesar de tudo
Não pude encontrar
Só tenho inspiração
Na luz do teu olhar
5 – Josefina (samba)
170
170
Se você fosse sincera
Assim como prometeu
Eu lhe juro Josefina
Meu coração era seu
Mas um dia a encontrei
Com um outro na esquina
E o nosso amor morreu
Para sempre ó Josefina
171
A mão criminosa
Foi a do destino
Que te separou de mim.
Quando
Eu fiz esta canção
Senti bater tão forte
O meu coração
Por que
Eu nele já sentia
Muita nostalgia
E grande paixão
Foi
Teu olhar que um dia
Deu-me inspiração
Desta melodia
Então
Canto em teu louvor
A melodia
Do nosso amor.
172
Como Amélia
Não tem a menor vaidade
Como Amélia
Já passou fome ao meu lado
Mas quando erro
Quando erro de verdade
Ela me beija
E diz que estou perdoado
Veja se Amélia faz assim
No picadeiro da vida
Com a morte de perto
A seguir nossos passos - bis
Nós não passamos, querida
De miseráveis palhaços
173
Com esta classe
Que é sua
E ninguém pode imitar
Fico pensando
Pensamento de coroa
Que ela abusa do direito
Do direito de ser boa
Se sai de dia
O sol é seu namorado
Se sai de noite
Faz inveja a própria lua
Esta garota
É um pedaço de pecado
Quando ela pisa
Na passarela da rua.
174
174
11 - Marginal (samba)
Nasceu na favela
Em noite de temporal
Mas para sociedade
Nasceu mais um marginal
Cresceu no samba
Do samba foi maioral
Mas para a sociedade
Cresceu mais um marginal
Da minha filosofia
175
175
Pode falar quem quiser
Só acredito em três coisas
Dinheiro, cachaça e mulher.
13 - Rosário da felicidade
14 - Samba Curto
176
176
Na hora em que nasci
Eu olhei pra trás...
177
177
178
178
179
179