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Cap 1 – Violência desde o início

No Brasil, a tortura foi largamente utilizada contra os setores marginalizados da


população desde a época da Colônia – é o que ocorreu, por exemplo, com os
índios, cuja população girava em torno de cinco milhões e hoje conta com apenas
aproximadamente 415 mil indígenas, ou com milhares de negros, que foram
escravizados.

A escravidão, que vigorou oficialmente no Brasil até 1888, deixou uma marca
indelével na nossa história e os incontáveis estudos sobre sua vigência não
esgotam nem exorcizam a barbárie praticada pelos portugueses, pelos brasileiros e
compartilhada pela sociedade.

Foram cerca de 1.700.000 africanos trazidos na condição de escravos para o Brasil


em 300 anos (1550-1888). Durante esse longo período escravista, a violência foi
uma das características marcantes desse sistema socioeconômico. As práticas de
tortura (ver capítulo 4) foram utilizadas com o intuito de controlar e punir as ações
dos cativos frente aos seus senhores além de servir de exemplo para se obter a
obediência e o bom comportamento dos outros cativos.

Um estudo do historiador Luiz Felipe Alencastro [ALENCASTRO, 2000] descreve a


escravidão dos negros africanos trazidos para o Brasil como uma política de
desenraizamento, de dessocialização de povos africanos em decorrência da
despersonalização dos escravos. “Desembarcado nos postos da América
portuguesa, mais uma vez submetido à venda, o africano costumava ser surrado ao
chegar à fazenda. (...) A primeira hospedagem que [os senhores] lhes fazem [aos
escravos], logo que comprados e aparecem na sua presença, é mandá-los açoitar
rigorosamente (...)”.

A tortura de escravos como forma de punição marcou a realidade da escravidão no


Brasil. De troncos, chibatas, torturas psicológicas e formas de isolamento perigosas,
os escravos no Brasil sofreram os mais diversos danos durante sua luta de séculos
pela libertação.
Como afirma a historiadora Silvia Hunold Lara: “na sociedade escravista brasileira,
em engenhos de cana-de-açúcar do nordeste e em fazendas cafeeiras do sul, as
crueldades de senhores e feitores alcançam níveis extremos e incríveis:
anavalhamento do corpo, seguido do uso de salmoura; mutilações; estupros de
negras escravas; castração de homens; amputação de seios; fraturas de dentes e
ossos feitas a marteladas. Criou-se no interior da sociedade escravista uma longa
tradição de formas requintadas de crueldade contra os escravos, algumas que
chegaram às raias de práticas comuns ao sadismo’’ [LARA, 1988].

O Brasil manteve a tortura na Colônia e no Império e até 1888 como um


recurso do poder político para garantir o poder econômico e a riqueza, pois
os escravizados, mesmo sendo considerados mercadorias, foram inequivocamente
os principais produtores da riqueza do país: na extração do ouro, na produção
do tabaco e do açúcar e da maioria das principais atividades produtivas, além de
serem intensamente empregados em serviços de transporte, de tração de cargas e
nos serviços domésticos.

Durante séculos a tortura era tida como aceitável para manutenção da ordem. A
preocupação com a dignidade humana tornou-se objeto de convenções
internacionais somente a partir Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
quando os meios de tortura transformaram-se em práticas cruéis.

No Período Imperial, a violência e a tortura contra setores populares começaram


mal havia terminado os acontecimentos ligados à nossa Independência. Um dos
episódios mais conhecidos ocorreu na província do Grão-Pará, onde uma pequena
multidão invadiu a sala do governo provincial, apoiando D. Pedro I e exigindo à força
reformas políticas e sociais de conteúdo democrático. Temendo o avanço liberal e
popular, as tropas de Grenfell, um mercenário inglês contratado pelo governo
imperial, reprimiu violentamente o movimento. Segundo um historiador, “Grenfell (...)
fuzilou muitos nativos e meteu 300 prisioneiros no brigue “Palhaço”, no porão,
escotilhas fechadas, atirando cal sobre eles. Dois dias depois, aberto o porão, foram
tirados os cadáveres dos bravos paraenses sacrificados por um mercenário em sua
luta pela liberdade e pela independência. (SODRÉ, 1969, P. 233)
Esses episódios de intensa violência, crueldade e tortura foram sempre recorrentes,
sempre se repetiram, em nossa história. No mesmo Grão-Pará, durante o Período
Regencial, os cabanos, sertanejos que se revoltaram, violentamente, é verdade,
contra o poder local e contra o governo regencial, na revolta conhecida como
Cabanagem (1833-1839), não escaparam da brutalidade do governo imperial.
Segundo Domingos Antônio Raiol, um contemporâneo, “rebeldes, verdadeiros ou
supostos, eram procurados por toda parte e perseguidos como animais ferozes!
Metidos em troncos e amarrados, sofriam suplícios bárbaros que muitas vezes lhes
ocasionaram a morte. Houve até quem considerasse como padrão de glória trazer
rosários de orelhas secas de cabanos” (MATTOS, S.d., p. 18)

Depois da Independência no Brasil, com a Constituição de 1824, em seu artigo 179,


a tortura foi proibida. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro
quente e todas as mais penas cruéis”. No entanto, continuou sendo aplicada a
negros e indígenas, considerados meros objetos na sociedade.

Em 1830, com a promulgação do Código Criminal brasileiro, definiu-se, no artigo 60,


que “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés,
será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor,
que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar, o
número de açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia
mais de 50". Ou seja, punições específicas para escravizados - baseadas na tortura
- foram consolidadas pela lei e tornaram-se assuntos do Estado, não mais do
senhor.

Mesmo com a Proclamação da República (1889), apesar dos inegáveis avanços das
liberdades públicas, os movimentos de oposição à elite governante na época foram
combatidos com violência e seus simpatizantes submetidos às práticas de tortura e
a tratamentos degradantes. Foi o que ocorreu em Canudos (1896-1897), confronto
entre um movimento popular de fundo sócio-religioso da Bahia e o Exército da
República, ou na Revolta da Chibata (1910-1914), em que soldados da Marinha,
afro-brasileiros e mulatos, realizaram um motim para reivindicar melhores condições
de trabalho.
“Num certo dia de 1910, a tripulação do encouraçado Minas Gerais assistiu à uma
cena horrível: o marujo Marcelino foi castigado com 250 chibatadas, ficando com as
costas em carne viva. A corda de linho molhada, com agulhas de aço, arrancou
sangue e gritos da vítima.” [RIBEIRO, 1989]. Revoltados com os maus-tratos, dois
mil marujos deram início à Revolta da Chibata, na noite de 22 de novembro.
Amotinados, os marinheiros mataram quatro oficiais e levaram sete navios para fora
da baía de Guanabara, liderados por João Cândido (o Almirante Negro), que fez a
seguinte exigência: “— O governo tem que acabar com os castigos corporais,
melhorar nossa comida e dar anistia para todos os revoltosos. Se não a gente
bombardeia a cidade dentro de 12 horas”. [RIBEIRO, 1989].

O governo aceitou as exigências, mas logo depois voltou atrás, expulsou os


marinheiros, prendeu e torturou os líderes do movimento. Isso provocou um novo
levante, violentamente reprimido: “Na noite de Natal de 1910, quase cem
marinheiros foram embarcados à força num navio, para serem levados à Amazônia.
Lá, eles teriam que trabalhar nos seringais, de três da manhã às sete da noite”.
[RIBEIRO, 1989]. A repressão foi violenta, como contou a revista “A Careta” anos
depois:
“Foi lá na ía das Cobras
Que se deu o sucedido:
Pegaro uns preso e meteram
Num buraco bem cumprido
E os sujeitos lá ficaram
Sufocado e espremido
Se sarvaram quatro ou cinco
Os de forgo mais cumprido
Mas pra esses assim mesmo
(Veja só que malvadez)
Puseram cal no buraco
Pra matá eles de vez
Mas os bichos resistiram
A tortura de xadrez
Vieram contá cá pra fora
O que o governo lhes fez”.

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