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OBITUÁRIO

CRIADOR
DE
MEMÓRIAS
Nascido na Argentina,
Iván Izquierdo ajudou
a desvendar como o cérebro
aprende e recupera as
informações armazenadas
e moldou gerações de
Borges: inspiração
pesquisadores brasileiros para investigar
os fenômenos da
memória
Ricardo Zorzetto

N
o período em que foi professor Então com 37 anos, Izquierdo havia escolher os instrumentos necessários
na Escola Paulista de Medicina chegado ali em 1975 e era um dos mais para respondê-la.”
(EPM), em meados dos anos jovens professores titulares da universi- Filho de mãe croata e pai catalão, Iván
1970, o neurocientista Iván dade. Vindo de uma passagem rápida pela Antonio Izquierdo nasceu em 1937 em
Izquierdo mantinha afixado à porta de Universidade Federal do Rio Grande do Buenos Aires e cresceu em um período
sua sala um cartaz escrito à mão: “Na Sul (UFRGS), depois de chefiar laborató- de efervescência cultural da capital ar-
dúvida, não entre”. Era uma indicação rios em Buenos Aires e em Córdoba, na gentina, à época uma das cidades mais
da seriedade com que encarava o ofício Argentina, Izquierdo já havia construído cosmopolitas da América do Sul. Pe-
de pesquisador. “Os alunos podiam bater uma importante rede internacional de las mãos do pai, também cientista, e de
à porta e entrar para discutir questões colaboradores e ascendia na carreira, que um professor de espanhol, conheceu a
sobre seus experimentos. No horário de o tornaria conhecido como um dos mais obra do escritor argentino Jorge Luis
trabalho, não tinha essa história de jogar importantes estudiosos do funcionamen- Borges (1899-1986), que influenciaria
conversa fora”, lembra o neurocientista to da memória. “Izquierdo mostrou para seu interesse por estudar os mecanis-
Esper Cavalheiro, primeiro aluno de a neurociência brasileira que era possível mos da memória. “Ele [Borges] levan-
mestrado e de doutorado de Izquierdo estabelecer colaborações internacionais tou ou respondeu algumas das questões
na EPM, atual Universidade Federal de e conversar de igual para igual com os mais sérias sobre memória”, escreveu
São Paulo (Unifesp). A sisudez dos mo- principais pesquisadores da área no mun- Izquierdo em um ensaio autobiográfico
mentos de trabalho era quebrada nos do”, completa Cavalheiro, hoje professor publicado em 2011 na obra Neuroscience
intervalos para o cafezinho e em outros emérito da Unifesp. “Ele ensinava seus in autobiography, editada pela Oxford
momentos de descontração, quando dis- alunos a pensar. Forjou nossa maneira de University Press.
corria apaixonadamente sobre música, olhar a ciência, de identificar a pergunta Izquierdo entrou na escola médica
literatura e esportes. fundamental no contexto da pesquisa e da Universidade de Buenos Aires em

90 | MARÇO DE 2021
1955, meses antes de Bernardo Houssay cientista uruguaio José Pedro Segundo Teve uma carreira prolífica. Publicou
(1877-1971), prêmio Nobel de Fisiologia na Universidade da Califórnia em Los mais de 600 artigos científicos, citados
em 1947 pela descoberta da regulação Angeles, Estados Unidos, Izquierdo via- ao menos 25,7 mil vezes por outros gru-
do metabolismo da glicose pelo siste- jou à região de Porto Alegre e conheceu pos. Seus trabalhos ajudaram a desven-
ma nervoso central, ser reintegrado à Ivone de Moraes, com quem se casaria e dar os mecanismos bioquímicos que o
instituição. Na universidade, conviveu teria dois filhos: Juan e Carlos Eduardo. cérebro usa para registrar e reter infor-

T
com outros grandes nomes da ciência, mações novas e também para resgatá-las,
como Luis Leloir (1906-1987), Nobel de erminado o estágio de dois anos, modificá-las e até se desfazer delas. Ele
Química em 1970 por identificar as vias retornou como professor assis- também demonstrou que as memórias
metabólicas da lactose, Eduardo Braun tente à Universidade de Buenos de curta duração e de longa duração são
Menéndez (1903-1959), descobridor de Aires, que pagara seu período independentes, formadas por processos
um sistema de controle da pressão arte- no exterior. Dois anos mais tarde, acei- que ocorrem em paralelo. “Seus traba-
rial, e Eduardo De Robertis (1913-1988), tou o convite para ser professor titular lhos sobre extinção da memória têm uma
que identificou estruturas celulares im- de farmacologia na Universidade Nacio- aplicação potencial importante no trata-
portantes para o metabolismo de me- nal de Córdoba, a segunda mais antiga mento de estresse pós-traumático”, conta
dicamentos. Ao final do segundo ano das Américas, onde permaneceria até o bioquímico Sergio Ferreira, da Univer-
da graduação, Izquierdo apresentou a 1973, quando a situação política do país sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Houssay uma proposta de pesquisa, que se tornou complicada demais por causa que estuda doenças neurodegenerativas.
pôs em prática no ano seguinte. “Meu da ditadura militar. “Ele foi realmente um pioneiro e uma
projeto se mostrou errado, mas eu ha- Após uma ameaça anônima por te- voz de clareza em um campo de estudo
via mordido a maçã pela primeira vez e lefone, Izquierdo decidiu deixar a Ar- às vezes confuso e controverso”, afirma
apreciado o sabor”, escreveria anos mais gentina. Com a ajuda de um aluno de o neurocientista Mark Bear, pesquisador
tarde. Por conselho de De Robertis, foi doutorado brasileiro, Mario Tannhau- do Instituto Picower de Aprendizado
aprender neurofarmacologia com o pai, ser, obteve indicação para um posto na e Memória do Instituto de Tecnologia
Juan Antonio Izquierdo, com quem fez UFRGS, à época com pouca tradição em de Massachusetts (MIT). “Seu trabalho
a parte experimental de seu doutorado. pesquisa. O que deveria ser uma parada guiou alguns de nossos experimentos-
FOTOS GILSON OLIVEIRA / DIVULGAÇÃO PUC-RS

Durante o curso médico, Izquierdo antes do retorno aos Estados Unidos se -chave, e sempre replicamos o que ele
passou duas temporadas de férias no alongou. Em 1975, assumiu uma posição descobriu. Esse é um dos maiores elogios
Brasil, trabalhando no laboratório do mais interessante na EPM, onde o am- que posso oferecer.”
neurofisiologista argentino Miguel Co- biente de pesquisa era mais vigoroso e Izquierdo orientou 50 dissertações de
vian, na Universidade de São Paulo em atraente. “Izquierdo foi meu professor mestrado e 62 teses de doutorado, além de
Ribeirão Preto. O país só começaria a en- na graduação e, em grande medida, me ter escrito livros técnicos, de divulgação
trar de modo definitivo em sua vida em inspirou e formou muitas gerações de científica e de literatura. Recebeu mais
1962. Antes de partir para um estágio de neurocientistas”, afirma Luiz Eugênio de 140 prêmios e títulos e foi membro da
pós-doutorado no laboratório do neuro- Mello, diretor científico da FAPESP e Academia Brasileira de Ciências e da Aca-
também neurocientista. demia Nacional de Ciências dos Estados
Em 1977, Tuiskon Dick, então dire- Unidos. “Iván era uma figura muito queri-
tor do centro de Biociências da UFRGS, da. Fez muito pela ciência brasileira, pela
cumpriu uma promessa feita anos antes dimensão mundial que sua contribuição
e montou na universidade um laborató- científica atingiu”, afirma o neurocientis-
rio com condições adequadas para que ta Roberto Lent, da UFRJ, e coordenador
Izquierdo retornasse. Dick não aceitara do Instituto Nacional de Neurociência
a demissão de Izquierdo e lhe havia con- Translacional, do qual Izquierdo parti-
cedido uma licença por tempo indeter- cipou até recentemente.
minado. A volta a Porto Alegre foi defi- Iván Izquierdo morreu aos 83 anos em
nitiva. Izquierdo permaneceu na UFRGS sua casa, em Porto Alegre, no dia 9 de
até sua aposentadoria em 2003 e depois fevereiro, em decorrência de uma pneu-
migrou para a Pontifícia Universidade monia bacteriana. Tinha sinais leves de
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Parkinson e fazia algumas semanas que
onde ajudou a criar e dirigir o Instituto havia se recuperado de um quadro grave
do Cérebro. “Fui um neurocientista ar- de Covid-19. Deixa a mulher, dois filhos
gentino durante a primeira metade da e quatro netos. Frustrado por não ter
minha vida e um neurocientista brasi- conseguido se dedicar ao violão clássico,
leiro na segunda metade. Legalmente, deliciava-se quando era acordado em al-
tenho as duas nacionalidades, o que me gumas noites por seu neto Felipe tocan-
deixa feliz por ter conseguido instalar do músicas de Johann Sebastian Bach,
nos dois países centros de pesquisa em Ferdinando Sor ou Francisco Tárrega.
Izquierdo em seu laboratório no Instituto do memória e bons centros de neurociên- “É o mais perto do céu que se pode che-
Cérebro que ajudou a criar na PUC-RS cias”, escreveu em 2011. gar ainda em vida”, deixou registrado. n

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