Você está na página 1de 8

125

PORTUGAL
BREVE RESENHA (E APRECIAÇÃO CRÍTICA) DA PROPOSTA DA COMISSÃO
EUROPEIA PARA UMA DIRETIVA DA MOBILIDADE TRANSFRONTEIRIÇA DAS
SOCIEDADES

Breve Resenha (e Apreciação Crítica) da Proposta A Brief Summary (and Critical Analysis) of the
da Comissão Europeia para uma Diretiva da European Commission Proposal for a Directive on
Mobilidade Transfronteiriça das Sociedades Company Cross-Border Mobility
Está em preparação uma Diretiva que irá introduzir alterações A new Directive which will bring important changes to the European
relevantes no panorama europeu do direito das sociedades. Anos company law framework is under preparation. Years after the
depois da harmonização das normas nacionais em matéria de fusões harmonisation of the national rules on cross-border mergers, a
transfronteiriças, prevê-se agora uma revisão das regras aplicáveis a reform of such rules, along with the introduction of a new, harmonised,
essas operações, bem como a introdução de um regime harmonizado regime on cross-border conversions and divisions is now set to be
para as transformações e cisões transfronteiriças. Do equilíbrio das approved. The actual exercise of these important forms of freedom of
soluções que venham a ser aprovadas dependerá a concretização establishment depends on the ability to strike the right balance in the
destas importantes manifestações da liberdade de estabelecimento. solutions that are finally approved.

Palavras-chave Key words


Mobilidade transfronteiriça; liberdade de estabelecimento; Cross-border mobility; freedom of establishment; cross-border
fusões, cisões e transformações transfronteiriças; Direito das mergers, divisions and conversions; EU company law.
sociedades da UE.

Fecha de recepción: 01-01-2019 Fecha de aceptación: 01-02-2019

IINTRODUÇÃO só para a forma como se entende o exercício das


liberdades económicas no mercado único Europeu,
Depois de sucessivos avanços e recuos, a Comissão
como para a concretização dos direitos fundamen-
Europeia avançou, em 2018, com uma proposta de
tais consagrados nos documentos e tratados funda-
Diretiva (COM(2018) 241 final) com o fito de har-
cionais da União.
monizar as disposições legais dos Estados Membros
em matéria de cisões transfronteiriças e transforma-
ções transfronteiriças (i.e., operações através das
ANTECEDENTES, MOTIVAÇÕES E
quais uma sociedade converte a forma jurídica sob
OPORTUNIDADE DA PROPOSTA
a qual se encontra registada num determinado
Estado-Membro de origem numa forma jurídica de A exposição de motivos da proposta de Diretiva
um Estado-Membro de destino e transfere, pelo invoca como principal fundamento para a interven-
menos, a sua sede social para o último, mantendo a ção nesta área a necessidade de facilitar o exercício
sua personalidade jurídica). Propôs também, no da liberdade de estabelecimento. Com efeito, a
mesmo instrumento, uma reforma do regime das interpretação e a aplicação do princípio da liberda-
fusões transfronteiriças já introduzido no direito da de de estabelecimento, previsto nos artigos 49.º e
União Europeia pela Diretiva 2005/56/CE, do Par- seguintes do Tratado sobre o Funcionamento da
lamento Europeu e do Conselho (a chamada 10.ª União Europeia (“TFUE”) tem guiado toda a dis-
Diretiva de Direito das Sociedades) e atualmente cussão respeitante à mobilidade intracomunitária
codificado na Diretiva (UE) 2017/1132, do Parla- de sociedades e influencia decisivamente esta pro-
mento Europeu e do Conselho (a “Diretiva posta.
2017/1132”).
Este princípio fundamental tem aplicação no reco-
E, como tantas vezes sucede neste tipo de questões nhecimento da liberdade de qualquer sociedade
ao nível europeu, sob a aparência de uma regulação europeia (ou, mais rigorosamente, de qualquer
meramente mecânica esconde-se, afinal, uma maté- sociedade constituída em conformidade com a
ria da maior importância prática e simbólica, não legislação de um Estado-Membro e que tenha a
126 Actualidad Jurídica Uría Menéndez / ISSN: 1578-956X / 51-2019 / 125-132

sede social, administração central ou estabelecimen- também a sede efetiva) da sociedade seja transferi-
to principal na União) se estabelecer e exercer ativi- da para esse Estado-Membro.
dade económica em qualquer Estado-Membro da
Se a jurisprudência do TJEU assumiu um papel
União Europeia, em condições de não discriminação
fundamental na clarificação da posição das opera-
relativamente às sociedades desse Estado-Membro. É
ções societárias transfronteiriças no quadro do
com base nesse princípio que é reconhecido aos
exercício da liberdade de estabelecimento das
agentes económicos no espaço da União um amplo
sociedades, certo é que, no quotidiano da vida
espaço de liberdade de ação, permitindo-lhes bene-
ficiar tanto da possibilidade de transferência intraco- societária, a falta de um regime uniformizado apli-
munitária de empresas como do livre exercício trans- cável a este tipo de operações sempre se traduziu
fronteiriço da atividade económica. numa dificuldade à concretização prática desta
liberdade.
Ao longo dos anos, a doutrina e, principalmente, a
jurisprudência do Tribunal de Justiça da União De facto, não obstante a aplicação direta dos artigos
Europeia (“TJEU”) aprofundaram as concretizações 49.º e seguintes do TFUE proteger, na teoria, o
práticas deste princípio basilar, aplicando-o às exercício da liberdade de estabelecimento sob a for-
várias formas de mobilidade transfronteiriça de ma de operações societárias transfronteiriças, a ver-
sociedades. Cabe, a este respeito, ainda que de for- dade é que, na falta de harmonização, a incerteza
ma necessariamente telegráfica, evocar a linha juris- quanto às regras procedimentais e materiais aplicá-
prudencial iniciada, sobretudo, nos famosos acór- veis a essas operações, a falta de regulação das mes-
dãos Centros (Processo C-212/97), Überseering mas pelas leis nacionais e mesmo a existência de
(Processo C-208/00) e Inspire Art (Processo regras nacionais incompatíveis entre si constitui um
C-167/01) e continuada por várias outras decisões obstáculo ao pleno exercício desta manifestação da
incluindo - com especial relevo para a matéria em liberdade de estabelecimento (cfr., por exemplo, o
análise - o acórdão Sevic (Processo C-411/03). Nes- referido a este respeito na exposição de motivos da
te último aresto, o TJEU reconheceu que as fusões proposta de Diretiva e em Schmidt, Jessica, Cross-
transfronteiriças (situação em análise no caso), tal -border mergers and divisions, transfers of seat: Is there
como outras operações societárias transfronteiriças, a need to legislate?, Estudo realizado para a Comis-
constituíam meios de exercício da liberdade de são JURI, junho de 2016 e R eynolds , S tephane ,
estabelecimento. Assim, quaisquer medidas nacio- Scherrer, Amandine e Truli, Emmanuela, Ex-post
nais restritivas daquelas operações deveriam ser analysis of the EU framework in the area of cross-bor-
consideradas como restrições à liberdade de estabe- der mergers and divisions, Estudo para o Parlamento
lecimento e apenas poderiam ser aceites desde que Europeu, dezembro de 2016).
estivessem preenchidas as condições estabelecidas Embora esta circunstância tenha sido ultrapassada
na tradição jurisprudencial do TJEU (cfr. o acórdão com sucesso, no que respeita às fusões transfrontei-
Reinhard Gebhard (Processo C-55/94)): (i) não riças, pela introdução da 10.ª Diretiva de Direito das
serem discriminatórias; (ii) responderem a razões Sociedades, que harmonizou as regras aplicáveis a
imperativas de interesse geral; (iii) serem adequa- essas operações (cfr., por exemplo, Bech-Bruun/Lexi-
das ao objetivo prosseguido; e (iv) não ultrapassa- dale, Study on the application of the cross-border mer-
rem o necessário para o atingir. gers directive, setembro de 2013), as cisões e transfor-
Esta corrente jurisprudencial foi corroborada e mações transfronteiriças continuaram a sofrer os
desenvolvida pelos acórdãos VALE (Processo efeitos dessa ausência de harmonização.
C-378/10) e Polbud (Processo C-106/16) nos quais Como é assinalado pelos diversos estudos feitos a
o TJEU declarou plenamente aplicável a liberdade este respeito e pelas respostas às consultas públicas
de estabelecimento a transformações transfronteiri- realizadas, os relativamente parcos exemplos de
ças de sociedades, não sendo conforme a essa liber-
operações de cisão e transformação transfronteiriça
dade a imposição, por um determinado Estado-
operadas (ou, até, frustradas) com recurso direto
-Membro, de condições mais restritivas do que as
aos princípios do TFUE constituem uma prova
aplicáveis à transformação de sociedades de lei
cabal das dificuldades com que estas operações se
nacional. E, numa clarificação importante, o TJEU
deparam na ausência de um quadro legal claro
confirmou que a liberdade de estabelecimento, nes-
sobre a matéria.
tes casos, é aplicável ainda que a sociedade em cau-
sa não tenha atividade no Estado-Membro de desti- Esta constatação constituiu uma das motivações
no e que, portanto, apenas a sede estatutária (e não para a preparação e apresentação da proposta por
FORO DE ACTUALIDAD 127

parte da Comissão Europeia: remover os obstáculos ções. No entanto, contando o mesmo com o acordo
à concretização da liberdade de estabelecimento do Conselho e do Parlamento Europeu e com o
neste tipo de operações e permitir que as socieda- apoio da Comissão, o mais provável é que a versão
des realizem transformações e cisões transfronteiri- final da Diretiva não se afaste em demasia desta
ças de forma ordenada, eficaz e eficiente, num qua- versão. É este texto revisto, e não a versão original
dro de elevada segurança jurídica. da proposta emanada pela Comissão, que tomamos
como ponto de partida para a análise da proposta.
Porém, da exposição de motivos e do próprio texto
do clausulado proposto fica igualmente clara outra —— Transformações transfronteiriças
motivação essencial da proposta: prever um regime
Âmbito de aplicação e circunstâncias impeditivas
uniforme e adequado de proteção dos principais
participantes na vida societária (trabalhadores, cre- O regime proposto para as transformações trans-
dores e sócios). fronteiriças (artigos 86.º-A e seguintes da Diretiva
2017/1132) seria aplicável às sociedades de respon-
De facto, já em 2012 a Comissão Europeia se pro-
sabilidade limitada de quaisquer dos tipos enuncia-
nunciava no sentido da necessidade de reforma das
dos no anexo II da Diretiva 2017/1132 (que inclui,
regras materiais aplicáveis às fusões transfronteiri-
no caso português, as sociedades anónimas, as
ças (Plano de Ação relativo ao direito das socieda-
sociedades em comandita por ações e as sociedades
des europeu e ao governo das sociedades
por quotas).
(COM/2012/0740 final)). E, na exposição de moti-
vos da proposta, enuncia os principais inconve- O novo capítulo que regulará estas operações
nientes da atual regulamentação das fusões trans- começa por definir algumas circunstâncias impedi-
fronteiriças no espaço da União Europeia: (i) falta tivas à transformação: não podem sujeitar-se a este
de harmonização das normas materiais (em parti- tipo de operações sociedades em liquidação que já
cular sobre proteção de credores e sócios minoritá- tenham iniciado o processo de distribuição de ati-
rios); (ii) ausência de um processo simplificado de vos aos seus sócios, ou sociedades sujeitas a instru-
fusão; (iii) insuficiente integração de ferramentas e mentos, poderes e mecanismos de resolução de
processos digitais; e (iv) insuficiências na informa- instituições de crédito e de empresas de investi-
ção dada aos trabalhadores sobre estes processos. mento. Para além destes casos, os Estados-Mem-
bros poderão decidir não aplicar as regras sobre
As preocupações com os pontos acima referidos
transformações transfronteiriças a sociedades em
transparecem em todo o texto da proposta, sendo
situação de insolvência ou medidas de reestrutura-
patentes igualmente nas regras propostas para as
ção preventivas respeitantes a insolvência ou reso-
cisões e transformações transfronteiriças.
lução, ou sociedades em outras situações de liqui-
dação.
A PROPOSTA Projeto de transformação e relatórios
O primeiro passo para a transformação será a pre-
Ponto prévio. Processo legislativo
paração, pelo órgão de administração da sociedade,
A proposta foi apresentada pela Comissão no dia 25 de um projeto de transformação transfronteiriça
de abril de 2018, tendo sido analisada pelo Grupo contendo os elementos fundamentais da transfor-
do Direito das Sociedades (no seio do Conselho da mação projetada (incluindo, entre outros aspetos,
União Europeia) e pelo Parlamento Europeu. Após detalhes sobre a compensação pecuniária oferecida
um período de análise e negociação entre as Institui- aos sócios que se oponham à transformação trans-
ções, foi anunciado pela Presidência do Conselho, fronteiriça e as salvaguardas oferecidas aos credores
em 22 de março de 2019, um acordo entre o Conse- da sociedade (por exemplo, garantias pessoais ou
lho e o Parlamento Europeu para um texto revisto da reais)).
proposta, com ajustes refletindo as discussões sobre
Para além do projeto, o órgão de administração
o tema entre as Instituições (versão inglesa disponí-
terá, igualmente, de preparar um relatório dirigido
vel em https://eur-lex.europa.eu/legal-
aos sócios e aos trabalhadores da sociedade, com a
content/EN/TXT/PDF/?uri=CONSIL:ST_7426_2019_
justificação jurídica e económica da transformação
INIT&from=EN).
e uma explicação das implicações da mesma para
Não estando concluído, ainda, o processo legislati- os trabalhadores e para os negócios futuros da
vo, é possível que este texto venha a sofrer altera- sociedade (podendo o órgão de administração
128 Actualidad Jurídica Uría Menéndez / ISSN: 1578-956X / 51-2019 / 125-132

apresentar um único relatório com duas secções - dente não será exigida se todos os sócios tiverem
uma dirigida aos sócios e outra dirigida aos traba- acordado em dispensar este requisito e os Estados-
lhadores - ou dois relatórios, cada um deles dirigi- -Membros podem declarar este requisito inaplicável
do a cada um destes grupos de stakeholders). às sociedades com sócio único.
Não será exigida a secção do relatório dirigida aos Aos Estados-Membros caberá fixar regras que asse-
sócios se todos os sócios tiverem acordado em dis- gurem que o perito reúne condições de indepen-
pensar este requisito, podendo os Estados-Mem- dência e que está livre de conflitos de interesse, e
bros, também, declarar este requisito inaplicável às que o seu relatório é imparcial e objetivo, cumprin-
sociedades com sócio único. Da mesma forma, a do os critérios legais e profissionais aplicáveis. As
secção do relatório dirigida aos trabalhadores não regras relativas à responsabilidade dos peritos pela
será exigida se tanto a sociedade em questão como sua intervenção neste processo serão, igualmente,
as suas filiais não tiverem trabalhadores, para além definidas pela lei nacional.
dos que façam parte do órgão de administração.
Publicação e aprovação por assembleia geral
A secção do relatório dirigido aos trabalhadores
Pelo menos um mês antes da realização da assem-
conterá, em particular, uma explicitação do impac-
bleia geral que se pronuncie sobre o projeto de trans-
to da transformação nos trabalhadores da sociedade
formação, deverão ser publicados no registo do Esta-
e das suas filiais, bem como de quaisquer medidas
do-Membro de origem o projeto de transformação e
de salvaguarda propostas (quando aplicável), e a
um aviso aos sócios, credores e representantes dos
descrição de quaisquer alterações importantes nas
trabalhadores (ou aos trabalhadores, se não existirem
condições de trabalho e nos locais em que a socie-
representantes) informando-os de que poderão fazer
dade ou as suas filiais exercem a sua atividade.
chegar à sociedade comentários ao projeto de trans-
O relatório acima referido deverá ser disponibiliza- formação. Os Estados-Membros podem, igualmente,
do eletronicamente (juntamente com o projeto de exigir que seja dada publicidade ao relatório do peri-
transformação, se estiver disponível) aos sócios e to. Para além disso, é dada alguma margem aos Esta-
aos representantes dos trabalhadores (ou aos traba- dos-Membros para possibilitarem ou exigirem a utili-
lhadores, se não existirem representantes), pelo zação de formas de publicitação da transformação
menos, seis semanas antes da data da assembleia projetada distintas do registo.
geral que aprecie o projeto de transformação. Se o
Tomando em consideração os relatórios e pareceres
órgão de administração da sociedade receber, em
recebidos sobre a transformação projetada, a
tempo útil, pareceres dos representantes dos traba-
assembleia geral deliberará sobre o projeto de
lhadores (ou dos trabalhadores, se não existirem
transformação.
representantes), deverão dar nota desse facto aos
sócios e anexar os pareceres ao relatório em causa. Não poderá ser impugnada a deliberação de apro-
vação do projeto de fusão com fundamento na
O projeto de transformação deverá ser examinado
desadequação da compensação pecuniária ofereci-
por um perito independente, que redigirá um rela-
da aos sócios que se oponham à transformação
tório sobre o mesmo e apresentá-lo-á aos sócios
transfronteiriça, bem como na irregularidade ou
com, pelo menos, um mês de antecedência relativa-
insuficiência das informações prestadas relativa-
mente à data da realização da assembleia geral que
mente a essa compensação (sem prejuízo, obvia-
aprecie o projeto de transformação. Entre outras
mente, da possibilidade de os sócios recorrerem ao
matérias, o relatório conterá um parecer sobre a
tribunal para que lhes seja reconhecido o direito a
adequação da compensação pecuniária oferecida
receber um montante superior ao fixado pelo órgão
aos sócios que se oponham à transformação trans-
de administração).
fronteiriça, tendo em conta o valor de mercado das
participações na sociedade em questão antes do Meios de tutela
anúncio da transformação proposta ou a avaliação
Após a aprovação em assembleia geral, a proposta
da sociedade (descontando o efeito da
de Diretiva impõe que os Estados-Membros confi-
transformação proposta), calculado de acordo com
ram, pelo menos, aos sócios que tenham votado
métodos de avaliação geralmente aceites.
contra essa aprovação o direito a vender as suas
Como acontece para a secção do relatório do órgão participações, em contrapartida de uma adequada
de administração dirigida aos sócios, a fiscalização compensação pecuniária. A fixação desta compen-
do projeto de transformação por perito indepen- sação deve constar do projeto de transformação e a
FORO DE ACTUALIDAD 129

explicação da mesma e a indicação da base para o da receção, pela autoridade competente, dos docu-
seu cálculo é um dos elementos que deve constar mentos e informação respeitantes à aprovação da
do relatório dirigido aos sócios, bem como do rela- transformação em assembleia geral. Caso conclua
tório do perito independente. que os requisitos e formalidades necessários à
transformação não se encontram reunidos ou cum-
A proposta prevê que os Estados-Membros colo-
quem em vigor um sistema adequado de proteção pridos, a autoridade não emitirá o certificado pré-
dos credores cujos créditos sejam anteriores à publi- vio e notificará a sociedade dos fundamentos da
cação do projeto de transformação, prevendo a pos- recusa, podendo dar à sociedade um prazo para a
sibilidade de os mesmos requererem à autoridade verificação ou cumprimento desses requisitos e for-
judicial ou administrativa competente a prestação, malidades.
pela sociedade, de garantias adequadas que prote- Para além de uma fiscalização do cumprimento dos
jam a sua posição. Tal requerimento deverá ser requisitos formais e dos procedimentos exigidos para
apresentado no prazo de três meses a contar da a transformação, a proposta prevê que a autoridade
publicação do projeto de transformação, devendo a seja impedida de emitir o certificado prévio caso se
pretensão dos credores ser aceite quando estes con- determine, de acordo com a lei nacional, que a trans-
sigam demonstrar, de forma credível, que (i) a formação transfronteiriça está a ser intentada com
transformação faz perigar a satisfação dos seus cré- propósitos abusivos ou fraudulentos com vista a evi-
ditos e que (ii) a sociedade não ofereceu salvaguar- tar a aplicação do direito nacional ou da União Euro-
das suficientes. Para além desta medida, os Esta- peia, ou com fins criminosos. Caso tenha sérias sus-
dos-Membros poderão exigir que o órgão de peitas desse facto, e caso seja necessário analisar
administração da sociedade emita uma declaração informação adicional ou promover atividades inves-
de solvência, a divulgar em conjunto com o projeto tigativas, a autoridade competente beneficiará de um
de transformação. Finalmente, é proposto que os prazo adicional para concluir a sua apreciação (um
Estados-Membros assegurem que os credores com acréscimo máximo de três meses ou um prazo mais
créditos anteriores à publicação do projeto de alargado em casos de especial complexidade). Na
transformação possam iniciar processos contra a sua apreciação, a autoridade tomará em considera-
sociedade para satisfação desses créditos nos tribu- ção todos os factos e circunstâncias relevantes, sendo
nais do Estado-Membro de origem, no prazo de a análise conduzida de forma casuística, de acordo
dois anos a contar da produção de efeitos da trans- com um procedimento regulado pela lei nacional do
formação (independentemente do disposto na lei Estado-Membro.
ou de convenção em contrário).
Caso seja emitido, o certificado prévio será enviado
No que diz respeito aos trabalhadores, para além do às autoridades competentes do Estado-Membro de
que atrás se referiu, deverão ser cumpridas os direi- destino através do sistema de interconexão de regis-
tos de informação e consulta previstos nas Diretivas tos estabelecido nos termos do artigo 22.º da Dire-
(CE) 2002/14 e (CE) 2009/38. Adicionalmente, em tiva 2017/1132.
matéria de participação dos trabalhadores, a pro-
posta contém um artigo com uma regulamentação O certificado prévio atestará, de forma conclusiva, o
com base na do atual artigo 133.º da Diretiva cumprimento das formalidades e procedimentos
2017/1132, que inclui, no entanto, alterações no para a transformação no Estado-Membro de origem,
sentido de assegurar que, após a conversão, é man- cabendo ao Estado-Membro de destino a fiscalização
tido um regime de participação resultante da trans- do cumprimento das formalidades e procedimentos
formação não menos favorável que o existente no para a transformação no Estado-Membro de destino
Estado-Membro de origem. (em especial, os relativos à constituição e registo de
sociedades nesse estado e, quando aplicável, os
Fiscalização da legalidade mecanismos de participação dos trabalhadores exigi-
Para que a transformação possa ser implementada, dos de acordo com o regime previsto na proposta de
será necessária a obtenção de um certificado prévio Diretiva).
à transformação, emitido por uma autoridade do
Registo e efeitos
Estado-Membro de origem. Prevê-se que essa auto-
ridade fiscalize a legalidade da transformação à luz A produção de efeitos da transformação (cuja data
do direito do Estado-Membro de origem. A decisão será regulada pelo Estado-Membro de destino, não
sobre a emissão do certificado prévio deverá ser podendo ser, no entanto, anterior à conclusão do
tomada num prazo máximo de três meses a contar processo de fiscalização da legalidade referida na
130 Actualidad Jurídica Uría Menéndez / ISSN: 1578-956X / 51-2019 / 125-132

secção precedente) será notificada pelo registo do do perito independente, à publicação e aprovação
Estado-Membro de destino ao registo do Estado- por assembleia geral e ao registo da operação, bem
-Membro de origem - após o que o último cancela- como os meios de tutela ao dispor dos sócios mino-
rá a matrícula da sociedade no Estado-Membro de ritários, credores e trabalhadores.
origem.
Algumas especificidades da regulação proposta para
A transformação transfronteiriça operará uma as cisões transfronteiriças justificam, ainda assim,
sucessão universal de todos os ativos e passivos da um apontamento:
sociedade, incluindo posições contratuais, créditos, (i) o conteúdo do projeto de cisão deverá conter
direitos e obrigações (incluindo os resultantes de informação adicional, nomeadamente no que
contratos de trabalho ou das relações laborais exis- respeita à data a partir da qual as pessoas a
tentes à data de produção de efeitos da transforma- quem sejam atribuídas participações nas socie-
ção). dades resultantes da cisão terão direito a
Por último, num apontamento importante e con- lucros, à descrição precisa dos ativos e passivos
sentâneo com a preocupação, inerente à redação da que serão destacados e à avaliação desses ativos
proposta, de impedir que este tipo de operação e passivos, à alocação de participações e ao
transfronteiriça seja utilizado como um expediente rácio de troca utilizado;
para abusos e ilegalidades, a proposta inclui uma (ii) a clarificação de que o direito de exoneração de
disposição que deixa claro que o regime consagra- sócios minoritários apenas se aplica aos sócios
do para as transformações transfronteiriças não pre- a quem, em resultado da implementação da
judica a imposição de sanções e a tomada de medi- cisão projetada, seriam atribuídas participações
das, pelos Estados-Membros, de acordo com as leis em sociedades de um Estado-Membro distinto
nacionais, após a data de produção de efeitos da do Estado-Membro da sociedade cindida
transformação transfronteiriça, no campo do direito (podendo, no entanto, os Estados-Membros
penal, da prevenção do financiamento do terroris- optar por estender o seu âmbito de aplicação a
mo, dos direitos sociais, da fiscalidade e da ação outros sócios);
policial.
(iii) a consagração da responsabilidade solidária da
—— Cisões transfronteiriças sociedade cindida, caso não seja dissolvida,
Para além das transformação transfronteiriça, a pelas dívidas que sejam transmitidas para as
outra operação societária que, caso a proposta da sociedades resultantes da cisão e que não sejam
Comissão venha a ser aprovada, passa a ser con- satisfeitas pelas últimas, até ao limite do valor
templada na Diretiva 2017/1132, é a cisão trans- do ativo líquido transmitido para cada uma
fronteiriça (artigos 160.º-A e seguintes). Abrangen- dessas sociedades.
do tanto as operações tradicionalmente designadas, —— Fusões transfronteiriças
entre nós, por operações de “cisão parcial”, como as
operações em que há lugar à dissolução da socieda- Tratando-se da única operação societária transfron-
de cindida, a proposta visa abranger os casos de teiriça já regulada na Diretiva 2017/1132 (artigos
destaque do património de uma sociedade de um 118.º e seguintes), as alterações ao regime das
Estado-Membro para constituir uma ou mais socie- fusões transfronteiriça propostas trarão menor
dades sujeitas à lei de outro Estado-Membro. Não novidade.
parecem estar abrangidas, pelo menos diretamente, A proposta começa por acrescentar uma nova
as situações de cisão-fusão, como as contempladas modalidade à definição de «fusão»: a operação pela
no artigo 118.º, n.º 1, alínea c), do Código das qual uma ou mais sociedades transferem os seus
Sociedades Comerciais. ativos e passivos para outra sociedade já existente,
As novas regras repetem, para as cisões transfron- sem a emissão de novas ações por esta última, des-
teiriças, quase a íntegra das regras dispostas na pro- de que uma pessoa detenha, direta ou indiretamen-
posta para as transformações transfronteiriças te, a totalidade das ações das sociedades objeto de
fusão ou os sócios das sociedades objeto de fusão
(mutatis mutandis). São, de facto, substancialmente
detenham as suas ações na mesma proporção em
as mesmas as soluções respeitantes às circunstân-
todas as sociedades objeto de fusão.
cias impeditivas da operação, às regras de procedi-
mento respeitantes ao projeto, à prestação de De seguida, relativamente ao procedimento pro-
informação aos sócios e trabalhadores, ao relatório priamente dito, a proposta visa ajustar o atual regi-
FORO DE ACTUALIDAD 131

me, consagrando algumas soluções implementadas para aplicar sanções e medidas ex post relativamen-
nos novos regimes das transformações e cisões te a abusos ou ilegalidades praticadas com recurso
transfronteiriças (atrás resumidas) que não têm às fusões transfronteiriças.
acolhimento na versão atual da Diretiva 2017/1132.
Tal acontece, entre outras matérias, na definição
das circunstâncias impeditivas da transformação, BREVE ANÁLISE CRÍTICA E CONCLUSÃO
no regime da publicação dos projetos de fusão
transfronteiriça, nas exigências de preparação do(s) O contexto atual de incerteza jurídica (comprovado
relatório(s) dirigido(s) aos sócios e aos trabalhado- pelo reduzido número de operações desta natureza
res e no seu conteúdo, nas medidas de proteção de e pela litigiosidade e pelos obstáculos colocados
sócios minoritários, credores e trabalhadores, nos por parte das autoridades nacionais a este tipo de
procedimentos de fiscalização do projeto de fusão e operações) faz com que, na maioria dos casos, o
nas regras sobre registo comercial. exercício da liberdade de estabelecimento por via
Merecem especial destaque, pela sua importância, de cisões ou transformações transfronteiriças seja
as seguintes novidades: excessivamente difícil e oneroso. A introdução de
um regime harmonizado em matéria de cisões e
(i) a consagração da necessidade de os órgãos de transformações transfronteiriças é, consequente-
administração das sociedades intervenientes na mente, uma boa notícia.
fusão transfronteiriça prepararem um relatório
dirigido aos sócios e aos trabalhadores das Com efeito, se tomarmos a experiência das fusões
sociedades intervenientes, nos mesmos termos transfronteiriças como modelo, é razoável assumir
em que esta formalidade é prevista para as que a introdução de um regime harmonizado
transformações e cisões transfronteiriças; (quaisquer que sejam as soluções de regime concre-
tamente adotadas, dentro de uma margem de
(ii) o estabelecimento do direito de exoneração dos razoabilidade) aumentará significativamente o
sócios minoritários que tenham votado contra número destas transações.
a fusão transfronteiriça, através da venda das
suas participações em contrapartida do recebi- Quanto à análise às soluções propostas em matéria
mento de uma compensação pecuniária (que, de procedimento, deve ter-se sempre em mente o
ao contrário do que acontece no caso das trans- facto de a liberdade de estabelecimento reconheci-
formações transfronteiriças - mas não no caso da às sociedades ser uma decorrência da aplicação
das cisões transfronteiriças -, os Estados-Mem- direta do TFEU, não carecendo de qualquer tipo de
bros podem permitir que seja substituída por harmonização legislativa para merecer a devida
uma compensação em espécie); tutela por parte dos Estados-Membros. Esta cir-
cunstância tem, desde logo, uma consequência
(iii) o reforço das garantias dos credores, com importante: quaisquer regras materiais de direito
regras semelhantes às constantes dos capítulos derivado que limitem ou condicionem a liberdade
aplicáveis às transformações e cisões transfron- de estabelecimento devem cumprir requisitos exi-
teiriças; e gentes de proporcionalidade e adequação, na pros-
(iv) a introdução de regras que impedem a impug- secução de objetivos relevantes de interesse geral,
nação da deliberação social que aprove o pro- de forma a não prejudicarem em excesso a efetiva-
jeto de fusão com fundamento na desade- ção dessa liberdade.
quação da compensação pecuniária oferecida É a esta luz que devem ser vistas as regras propos-
aos sócios para exercício do direito de exone- tas. Observando a versão da proposta de março de
ração ou da relação de troca aplicável às parti- 2019, verificamos que, felizmente, muitas das
cipações sociais dos sócios nas sociedades opções mais criticáveis da proposta original da
intervenientes na fusão, sem prejuízo da exi- Comissão não tiveram acolhimento. É o caso da
gência de viabilização de meios de reação con- regra que previa que o perito com a responsabilida-
tra cálculos errados ou irregulares das compen- de de emitir um relatório sobre os projetos de
sações ou relações de troca aplicadas na fusão.
transformação e cisão transfronteiriça fosse nomea-
Por último, devemos também assinalar a existência do pela autoridade competente para fiscalizar a
de uma disposição que, em linha com o que acon- legalidade do processo (em Portugal, os serviços de
tece com as transformações e cisões transfronteiri- registo comercial). É, igualmente, o caso das ante-
ças, salvaguarda os poderes dos Estados-Membros riores regras respeitantes ao controlo ex ante da
132 Actualidad Jurídica Uría Menéndez / ISSN: 1578-956X / 51-2019 / 125-132

legalidade destas operações transfronteiriças, que (iii) os prazos previstos para a realização dos vários
na versão original da proposta faziam recurso ao atos prévios à conclusão das três operações
nebuloso conceito dos “expedientes artificiais” como transfronteiriças parecem demasiado largos, o
circunstância impeditiva à emissão do necessário que implica que um processo deste tipo se
certificado prévio pelas autoridades do Estado- tenha de arrastar, pelo menos, durante vários
-Membro de origem. Foi também alargado o âmbi- meses até que esteja concluído, colocando
to de aplicação do regime para abarcar operações assim em causa a proporcionalidade das medi-
de cisão com mais do que uma sociedade beneficiá- das de salvaguarda propostas;
ria (em Estados-Membros distintos), as quais esta-
(iv) é difícil prever como seria exercida a
vam excluídas do texto original da proposta.
competência de fiscalização da legalidade que
Alguns pontos continuam, no entanto, a merecer a proposta atribui às autoridades do Estado-
reflexão, entre os quais os seguintes: Membro de origem, no que respeita à
prevenção de operações realizadas com
(i) é de duvidoso mérito a opção de restringir a
p ro p ó s i t o s f r a u d u l e n t o s o u a b u s i v o s
regulação da mobilidade transfronteiriça às
(parecendo esta competência materialmente
sociedades de responsabilidade limitada, ficando a
mais próxima de uma função jurisdicional ou
dúvida sobre se o âmbito da mesma deveria ser
de supervisão e algo desadequada às funções
estendido a todas as sociedades, na aceção do
tradicionalmente asseguradas, por exemplo,
artigo 54.º do TFUE (é certo que esta restrição
pelos serviços de registo - que são, atualmen-
não preclude juridicamente o recurso, por
te, as entidades designadas por parte dos
outras sociedades, a fusões, cisões e
Estados-Membros (incluindo Portugal) para a
transformações transfronteiriças no exercício da
fiscalização dos processos de fusão transfron-
sua liberdade de estabelecimento - mas mantém
teiriça).
os entraves práticos atualmente existentes);
Pode ser que estas e outras questões que a proposta
(ii) as regras relativas à proteção de credores não
levanta sejam resolvidas até à sua aprovação. Em
são claras relativamente aos efeitos do requeri-
todo o caso, independentemente do desfecho final,
mento para prestação de garantias adequadas
parece difícil que não se estabeleça em breve, final-
(designadamente, se o certificado prévio pode
mente, um regime harmonizado para a mobilidade
ser emitido pelo Estado-Membro de origem na
transfronteiriça das sociedades, o que não pode
pendência do prazo conferido aos credores
deixar de se saudar.
para solicitarem essa prestação - ou enquanto
está pendente uma decisão quanto a esse pedi-
do por parte da autoridade competente); Miguel Rodrigues Leal (*)

(*) Abogado del Área de Mercantil de Uría Menéndez (Lisboa)

Você também pode gostar