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Congresso Gife 2023

Participação no painel “Alcances e desafios da Filantropia Familiar na


redução de desigualdades”.

Mediadora
Inês Mindlin Lafer – Idealizadora do Confluentes e diretora no Instituto Betty e
Jacob Lafer
Palestrantes
Beatriz Bracher – Fundadora do Instituto Galo da Manhã
Bianca Santana – Diretora-executiva na Casa Sueli Carneiro
Juliano Salgado – Vice-presidente no Instituto Terra
Luciano Cerqueira – Coordenador de Projetos da Samambaia.org
Local: Sala Verde

Por Bianca Santana

“Alocação voluntária de recursos privados para fins públicos.” Se essa é a


definição de filantropia e investimento social privado com a qual temos acordo,
minha avó Polu foi a primeira filantropa que conheci. Voluntariamente, ela
transformou uma área abandonada na frente do prédio da Cohab onde
morávamos em horta medicinal e jardim sempre florido. A vizinhança toda se
beneficiava das folhas de cidreira, mentruz, guaco. E semanalmente minha avó,
já idosa, capinava, adubava e reorganizava as plantas. Ninguém na vizinhança
ficava sem gás porque ela sempre tinha mais de um botijão cheio, que podia se
deslocar por aquelas escadas e blocos com pacotes de arroz, feijão, macarrão,
latas de sardinha.
São muitas as Polus percebidas como objeto de atenção da filantropia a
produzir – com seus recursos financeiros escassos e seus recursos intelectuais,
espirituais e emocionais abundantes – investimento social privado para acalmar
a fome, a dor, garantir acesso à escola, reduzir desigualdades, dar sustento e
fundamento a este país. Antes de conhecer essa definição de filantropia, guardo
sobre minha avó e as mulheres negras brasileiras a certeza de que somos
produtoras de bem viver, como está escrito no manifesto da Marcha das
Mulheres Negras de 2015:
“Inspiradas em nossa ancestralidade, somos portadoras de um legado que
afirma um novo pacto civilizatório. (...) A sabedoria milenar que herdamos de
nossas ancestrais se traduz na concepção do Bem Viver, que funda e constitui as
novas concepções de gestão do coletivo e do individual; da natureza, política e
da cultura, que estabelecem sentido e valor à nossa existência, calcados na
utopia de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os). Na condição
de protagonistas oferecemos ao Estado e à sociedade brasileiros nossas
experiências como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica de
vida e ação política, que só é possível por meio da superação do racismo, do
sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela negação da
humanidade de mulheres e homens negros.”
Inspirado na precariedade e ausência de direitos conformadas pelo
machismo e o sexismo, uma “asfixia social”, nas palavras de Sueli Carneiro,
combinada com a liderança comunitária e a resistência de mulheres negras, o
poeta Arnaldo Xavier escreveu o poema “Matriarcado da Miséria”. Termo que
se propagou como título de artigos acadêmicos e de jornal de Sueli Carneiro,
como a coluna do jornal Correio Braziliense publicada no ano 2000. A íntegra
do texto, toda a página deste jornal e de outras mais de 160 edições que
contaram com a colaboração de Sueli Carneiro podem ser encontradas no acervo
digital de Sueli, que organizamos na Casa Sueli Carneiro.
Este acervo foi sonhado por Priscilla Carneiro, sobrinha de Sueli e sua
secretária por uma década, que mantinha cada registro em pastas, gaveteiros e
armários. Priscilla sabia que a produção intelectual e ativista de Sueli eram de
interesse público e que era uma necessidade coletiva ter acesso a esta produção,
que certamente inspiraria mais produções e mudanças relevantes. Sueli Carneiro,
mesmo antes e depois de Priscilla, também fez o possível para preservar atas de
reuniões de movimento negro e de movimento de mulheres negras, versões de
manuscritos, fotografias, panfletos. Prática pouco comum, neste volume, a
pessoas e famílias negras. Sempre na intenção de que estes recursos privados
fossem utilizados para fins públicos.
Tive acesso a parte importante destes documentos pela primeira vez em
2018, quanto estava dedicada à pesquisa para a escrita da biografia de Sueli
Carneiro, publicada três anos depois. Havia muitos papéis com grampos de
metal oxidado, outros muito dobrados com deterioração importante nas dobras
pela ação do tempo. Parecia bastante urgente tratar aquela papelada e organizá-la
em um arquivo físico. Assim como parecia urgente que a casa onde Sueli viveu
por 40 anos, um sobrado geminado no Butantã, estivesse aberto como espaço de
memória, e também de formação, ativismo, acolhimento. “Você já pensou nisso,
Sueli?” Ela e a filha Luanda já haviam pensado e diziam que não sabiam como
fazer. E esta foi a semente para a criação da Casa Sueli Carneiro, onde recursos
preciosos produzidos e guardados por Sueli ao longo da vida estejam disponíveis
ao público e possam ser legado coletivo para enfrentar as desigualdades de uma
perspectiva afrocentrada e feminista.
O dinheiro do investimento social privado – principalmente da filantropia
familiar, diga-se de passagem – tem sido fundamental para que a Casa Sueli
Carneiro se concretize. A Associação Casa Sueli Carneiro comprou o imóvel da
pessoa física Sueli Carneiro. Quando o único patrimônio material de uma
família é uma casa, ela não pode, evidentemente, ser doada. Mas com recursos
da filantropia o imóvel foi comprado e está sendo reformado para que possamos,
o quanto antes, abrir as portas.
E por pouco mais de um ano tivemos uma equipe dedicada a higienizar,
organizar, classificar, digitalizar cada documento para que ele esteja disponível
na Casa Sueli Carneiro assim que for possível finalizar o mobiliário e os
equipamentos necessários. Mas que já está online com 2.579 documentos
disponíveis, além dos registros de quase 2.000 livros da biblioteca pessoal de
Sueli Carneiro.
Desde o início temos pensado a Casa Sueli Carneiro como tecnologia
social replicável e já temos ouvido intenções de casas de mulheres negras, em
um espírito parecido, no Pará, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro.
Nosso legado, como mencionado no manifesto da Marcha de 2015, para
um novo pacto civilizatório, “que só é possível por meio da superação do
racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela
negação da humanidade de mulheres e homens negros.”
Para que dê certo, para que possamos nos beneficiar coletivamente dos
recursos que mulheres negras voluntariamente dedicam a fins públicos, sem
continuar aprofundando as desigualdades que mantém essas mesmas mulheres
negras na base da pirâmide social brasileira, precisamos – evidentemente – de
recursos financeiros em maior volume, de forma constante, permanente,
sustentável. Memória e legado de grupos historicamente subjugados precisam
ser apoiados pela filantropia tradicional sem as voltas que muitas vezes são
necessárias como justificativa. A redução de desigualdades passa,
necessariamente, por construção de equidade racial, fortalecimento da sociedade
civil, justiça, reparação, fortalecimento da democracia.
Nunca é demais lembrar que “Enquanto houver racismo, não haverá
democracia”.

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