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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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Anna Faedrich

Teorias da autoficção

Rio de Janeiro
2022
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

F147 Faedrich, Anna


Teorias da autoficção [recurso eletrônico] / Anna Faedrich. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : EdUERJ, 2022.
1 recurso online; 2200kb (296 p.): ePub

ISBN 978-65-87949-61-1
1. Literatura – História e crítica – Teoria, etc. 2. Ficção autobiográfica. 3. Análise
do discurso literário. I. Título.

CDU 82

Bibliotecária: Thais Ferreira Vieira CRB-7/5302


Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito
dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas
– de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido?
Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo
miúdo recruzado.
Riobaldo (Grande Sertão: Veredas)
Para Amneris Faedrich, minha avó, pelas
fabulações.
Sumário

Lista de figuras

Lista de quadros

Prefácio

Introdução

Por que falar de autoficção?


Autoficção no Brasil
O autoficcionista como um falso mentiroso: uma análise do romance de
Silviano Santiago

Autoficção: um centro, uns arredores, umas fronteiras


A questão da autoria
Philippe Lejeune e o pacto autobiográfico
As casas cegas
Guinada subjetiva
Serge Doubrovsky e a autoficção
Uma variante pós-moderna
O que não é autoficção?
O pacto oximórico da autoficção
Manuel Alberca: o pacto ambíguo

O impulso autoficcional
Mito de Narciso: o show do eu na sociedade do espetáculo
Autoficção e a presença obsessiva do eu em O filho eterno
O perigo da autoficção
O caso Divórcio
Quem tem medo da autoficção?

Teorias francesas da autoficção


O que dizem alguns teóricos da autoficção
Vincent Colonna e Gérard Genette
O desvio
Philippe Gasparini
Madeleine Ouellette-Michalska
Annie Richard
Jacques Lecarme
Jean-Louis Jeanelle
Sébastien Hubier
Isabelle Grell

Autoficção na crítica literária brasileira


Jovita Maria Gerheim Noronha
Luciana Hidalgo
Eurídice Figueiredo
Luciene Azevedo
Evando Nascimento
Ana Cláudia Viegas
Diana Klinger

Por um conceito de autoficção


Mistura de ficção e realidade
Autor-narrador-protagonista
Aspecto dramático ou escrita terapêutica
Escrita literária e metaficção
Fragmentação e tempo presente

Apêndice
Recepção do termo autoficção no Brasil: entrevistas com autores e críticos
literários
I. Adriana Lisboa
II. Altair Martins
III. Ana Cláudia Viegas
IV. Ana Letícia Leal
V. Cristovão Tezza
VI. Eurídice Figueiredo
VII. Evando Nascimento
VIII. Gustavo Bernardo
IX. Jacques Fux
X. Jovita Maria Gerheim Noronha
XI. Luciana Hidalgo
XII. Luciene Almeida de Azevedo
XIII. Marcelo Mirisola
XIV. Michel Laub
XV. Ricardo Lísias
XVI. Silviano Santiago

Referências

Sobre a autora
Lista de figuras

Figura 1: “Quadro dos estudos de Lejeune”

Figura 2: “Presença do termo ‘autofiction’ em língua francesa (1970-2008)”

Figura 3: “Evolução do uso dos termos ‘autofiction’, ‘récit de soi’, ‘écriture du


moi’ em língua francesa (1970-2008)”

Lista de quadros

Quadro 1: “Movimentos da autobiografia e da autoficção”

Quadro 2: “Memoir X ficção”

Quadro 3: “Autoficção doubrovskyana”

Quadro 4: “Posição e características da autoficção entre gêneros literários”

Quadro 5: “Comparação dos tipos de ‘eu’ na literatura”

Quadro 6: “O pacto ambíguo”

Quadro 7: “Diferentes concepções da autoficção, segundo Doubrovsky e


Colonna/Genette”
Quadro 8: “Formas da autoficção de acordo com a proposta de V. Colonna”
Prefácio

Desde a criação do neologismo por Serge Doubrovsky, em 1977, na França,


o termo autoficção tem sido objeto de muitos debates acadêmicos, no âmbito
da Teoria da Literatura. Segundo o próprio criador da denominação, em
entrevista, a autoficção já existia, e ele simplesmente deu um nome ao gênero.
Doubrovsky cita exemplos de obras anteriores à sua, entre as quais Retrato de
um artista quando jovem (1916), de James Joyce, Nadja (1928), de André
Breton, La naissance du jour (1928), de Gabrielle Colette.
O livro Teorias da Auto cção, de Anna Faedrich, reúne posicionamentos de
autores franceses e francófonos sobre o significado do gênero e a validade da
designação, contrapondo ou aproximando posições teóricas. Destaca também a
contribuição o espanhol Manuel Alberca, autor de El pacto ambiguo: de la
novela autobiográ ca a la auto cción (2007), que analisa a ambiguidade do
pacto com leitor e compara gêneros próximos. Faedrich traz também a posição
dos estudiosos brasileiros da autoficção e examina, mais detidamente, a
configuração do gênero em obras dos escritores Silviano Santiago, Cristóvão
Tezza e Ricardo Lísias.
Para Doubrovsky, uma das especificidades do gênero é a sua ligação com a
História, pois, segundo ele:

São obras pelas quais as histórias individuais se inscrevem na História.


Pessoalmente, eu não posso me analisar sem descobrir a que ponto eu
sou produto de uma época. Meu pai era de Tchernigoff, na Ucrânia, na
Rússia czarista de onde os Judeus fugiram, no fim do século XIX,
porque não queriam mais servir no exército do Czar – isso é um fato
histórico. Minha mãe nasceu em 1898. Ela alcançou a idade adulta
enquanto três quartos dos homens de sua idade tinham morrido durante
a Grande Guerra – isso é ainda um fato histórico”.1

De certa forma, essa ligação com acontecimentos históricos explica o


crescimento da autoficção na segunda metade do século XX.
Durante e após Segunda Guerra Mundial, que provocou a morte de mais
de sessenta milhões de pessoas, a literatura escrita por autores que participaram
ou foram testemunhas dos acontecimentos traz no seu bojo questões sobre a
sociedade, o sofrimento humano, a história vivida. A barbárie e a dor
incomensuráveis – sofridas por judeus, civis europeus executados (a exemplo
das mais de seiscentas aldeias da Bielorússia em que a população foi queimada
viva pela Wehrmacht), militares aliados que estavam no front ou exércitos da
resistência no combate aos nazifascistas – inauguram outro modo de escrita
que, pela força da criação artística, procura dar uma ideia, credível, da
inimaginável realidade dos fatos.
Anna Seghers, no seu romance Transit (1944),2 cria um narrador-
protagonista, anônimo, que recebe a missão de levar uma carta a um escritor
alemão, Weidel, que estaria refugiado em um hotel de Paris e, ao chegar lá,
descobre que ele se suicidara. A escritora alemã Christa Wolf, no prefácio ao
romance de Seghers, considera que esse escritor seria, na verdade, Ernst Weiss,
do Império Austríaco, que comete suicídio em um hotel de Paris em 15 de
junho de 1940, quando exército nazista invade a cidade. O narrador de Transit
assume a identidade do escritor morto, já que esse tinha visto de emigração, e
ultrapassa a divisa que separa a França ocupada da França livre, em direção a
Marseille, o mesmo itinerário que a própria escritora realizou. Marseille era o
local para esperar vistos de emigração para outros países e partir de navio. O
romance recupera as tensões que os candidatos à emigração sofriam para obter
o visto e para renovar o “transit”, que era autorização para circular
temporariamente na França. Enquanto aguardavam ansiosamente o momento
do embarque, circulavam pelos cafés, onde recebiam sussurradas notícias sobre
o iminente perigo de serem presos. De acordo com Christa Wolf, “ninguém
poderá separar em Transit, as partes que provêm da experiência mais pessoal da
autora daquelas que representam a experiência do narrador-personagem”.3 A
escritora Anna Seghers trabalhou no romance Transit enquanto ela circulava de
um Consulado a outro e nos escritórios das companhias marítimas, até
conseguir deixar Marseille, em março de 1941, com sua família, no navio
Capitaine Paul-Lemerle, em direção ao México, antes que a Wehrmacht
ocupasse o sul da França em 1942.
Por intermédio do verossímil, o romance pós-guerra, quando a Europa ia
sendo reconstruída, continua a denunciar fatos recentes, tal como as obras de
Erich Maria Remarque (pseudônimo de Erich Paul Remark), escritor alemão
perseguido pelos nazistas por ser contrário ao regime, que se exila na Suíça,
depois Estados Unidos e, finalmente, retorna à Suíça, onde morre em 1970.
Dentre suas obras, destacaria Uma noite em Lisboa (1963), cujo narrador relata
a outro refugiado, que esperava uma passagem para os EUA em Lisboa, a sua
fuga da Alemanha, pois estava sendo perseguido por seu posicionamento
político, contrário ao nazismo. É um romance que traz, portanto, elementos da
vida pessoal do escritor cujas obras foram queimadas por ordem do governo
alemão.
Tendo por contexto esses acontecimentos, muitos escritores narram, por
meio da ficção, estratégias de sobrevivência, tentativas e experiências de fuga,
descrição dos refúgios. Jorge Semprun, em A escrita ou a vida,4 considera que
essa realidade inacreditável da guerra precisa ser tratada como matéria de
ficção, que é um modo de fazer com que a realidade documentária possa ser
entendida. Muito se discutiu sobre a possibilidade de se escrever sobre a
experiência da Shoah, depois da guerra, mas parte dos sobreviventes dos
campos enfatiza a necessidade de não manter a experiência no silêncio,
conforme assinala Blanche Cerquiglini, em “Le roman d’aujourd’hui”:5
“Escrever sobre a Shoah é uma necessidade, um imperativo moral”. Após a
geração das testemunhas, veio a geração dos romancistas que assumem a missão
de retomar a matéria da Shoah pelo recurso da ficção. São narrativas ficcionais
que, ao mesmo tempo, narram a História, e muitas foram escritas por
testemunhas ou por descendentes dos que foram assassinados pelos nazistas. O
romance biográfico La mort est mon métier [A morte é o meu ofício, 1952],
citado por Cerquiglini, do escritor Robert Merle, coloca no centro da ação
Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz. Merle, que foi prisioneiro de 1940
a 1943, inspirou-se nas entrevistas de Höss com psicólogo americano Gustave
Gilbert, antes de sua condenação à morte no processo de Nuremberg. O
escritor apoia-se também em documentos do processo para recuperar a história
de Auschwitz. “É sobre a geração nascida após a guerra que recai essa tarefa: se
tornar historiador, continuando a ser romancista”, comenta Cerquiglini (2012,
p. 293).
Na primeira metade do século XX, abalada por duas grandes guerras
mundiais, o mito dominante no imaginário cultural é Sísifo, personagem da
mitologia cuja tarefa no Hades é repetitiva e sem sentido, sendo, portanto, um
mito que rege o sentimento do absurdo, que está nas obras de Kafka, Cocteau,
Pirandello, no teatro de Ionesco, Beckett, Adamov, Camus, entre muitas
outras. Além da criação literária, Camus publica O mito de Sísifo (1942), um
conjunto de ensaios que expõem o sentido do absurdo e a sua projeção na
literatura, com destaque para Kafka.
Na sequência das brutalidades sofridas pela humanidade com regimes
totalitários, surgem impulsos de busca de um sentido da vida, de compreensão
do humano e da autocompreensão. O mito cultural dominante na segunda
metade do século passado, sobretudo após 1960, conforme Gilbert Durand,
passa a ser Hermes, o deus que representa o movimento em busca de um
sentido para a vida, após a barbárie. Hermes move-se entre os mundos dos
vivos e dos mortos, dos humanos e do mundo divino, é mensageiro dos deuses
e, como tal, traz aos seres humanos o significado, a interpretação. Ligada a esse
momento, surge a corrente hermenêutica na Filosofia e uma série de obras
literárias que revelam o esforço de compreensão da História, das origens
familiares, de identidades múltiplas, sobretudo nas escritas diaspóricas, em que
escritores se valem da escrita para compreensão de si e do novo contexto em
que foram acolhidos. O filósofo Hans-Georg Gadamer (1990-2002), um dos
expoentes da Hermenêutica na Alemanha, publica a obra Verdade e método
(1960), que trata do fenômeno da compreensão. Esse livro de Gadamer causa
um grande impacto no pensamento do filósofo francês Paul Ricœur, que já se
havia inserido no campo da hermenêutica.
A tendência do romance de narrar a experiência por meio da ficção tem
continuidade até o presente século. Nesse itinerário até os dias atuais, estão as
formas que constituem o que chamamos de escritas do eu (Georges Gusdorf )
ou escrituras de si (Louis Marin). Jogando com o real e o ficcional, o romance
acolhe fatos da vida do autor, tais como memórias de guerra, regimes
ditatoriais, experiências de migrações e refúgios, sentimentos íntimos de
desolação, tristeza, melancolia, em tom confessional. Torna-se, portanto, um
gênero misto, com traços de autobiografia, narrativas de memórias, de
testemunho, imbricados à ficcionalidade.
Ao publicar o livro Fils (1977), Doubrovsky cria o neologismo autoficção,
gênero que contém elementos ficcionais e elementos reais, abstraídos da vida
do autor. Auschwitz tem contínua ressonância na sua produção literária,
conforme assinala Claude Burgelin, uma vez que ele, adolescente, e sua família
escaparam do genocídio, porque fugiram poucos instantes antes de serem
capturados em Paris, em 1943. Burgelin considera que a autoficção nasce
“oficialmente” após três décadas do final da Segunda Guerra. Para esse crítico,
“a autoficção nasce da História. Da necessidade que tiveram tantos escritores
(seguidamente eles mesmos crianças de outro lugar, de uma terra ou de uma
língua perdida) de deixar rastro, sentido, moldura, às vezes sepultura à história
dos seus e deles mesmos, despedaçados ou desequilibrados por essa história”.6
Hoje, no entanto, independentemente de sua gênese no contexto pós-
guerra e da definição inaugural de Doubrovsky, a autoficção amplia o seu
espectro temático, alarga fronteiras de criação e circulação, como demonstra
Anna Faedrich. O gênero entra no debate a respeito de critérios e balizas de sua
identificação e continua a ser um conceito que suscita discussões, aproximação
ou afastamento de outras modalidades vizinhas.
Todas essas questões – que envolvem conceito de autoficção e suas
variantes, segundo teóricos estrangeiros; uma proposta de conceito atual para a
autoficção; a recepção e revisão de teorias por pesquisadores brasileiros que se
dedicam ao estudo do gênero; a recepção do termo no Brasil, revelada nas
entrevistas com críticos literários e escritores brasileiros – estão reunidas neste
livro de Anna Faedrich.
Teorias da auto cção é, por isso, um livro essencial para aqueles que querem
se debruçar sobre os caminhos e perfis do romance contemporâneo e os
estudiosos da autoficção no Brasil, porque apresenta as questões teóricas mais
relevantes sobre o gênero, aponta bibliografias consagradas e perspectivas
conceituais atuais, examina obras literárias brasileiras à luz das teorias da
autoficção e, desse modo, estimula e suscita muitas possibilidades de pesquisa
sobre o tema.

Ana Maria Lisboa de Mello (CNPq)


PPGLEN/ PACC-Faculdade de Letras/ UFRJ
Introdução

A superexposição do termo autoficção, em vez de conduzir ao


esclarecimento de um novo campo literário, tem apenas o
obscurecido.
Patrick Saveau1

Como indica a epígrafe de Saveau (2011), o termo auto cção está, hoje,
disseminado no campo literário e artístico, mas é empregado com diversas
conotações que, quando cotejadas, indicam incoerência ou confusão
conceitual. A carência de debate teórico estruturado sobre o tema e sobre o
conceito alimenta a “recepção problemática”, na denominação de Mounir
Laouyen (1999).2
Se na França, lugar de origem do neologismo, o debate ocupa espaço
privilegiado há algumas décadas, no Brasil ainda restam alguns pontos teóricos
que merecem maior atenção e amadurecimento crítico.
Teorias da auto cção analisa o extenso e conflituoso percurso teórico da
autoficção. Conhecer esse percurso ajuda a compreender a natureza da
imprecisão conceitual e a polissemia a que o termo autoficção está sujeito.
Há mais de quarenta anos iniciou-se um debate estimulado pela provocação
de Serge Doubrovsky (Fils, 1977) aos estudos de Philippe Lejeune sobre a
autobiografia (Le pacte autobiographique, 1975). O que à primeira vista seria
um termo a designar uma mera combinação de autobiografia com ficção (auto
+ ficção), na verdade encerra uma complexidade digna de análise mais detida.
Neste livro, proponho precisar o conceito de autoficção, após discutir a
trajetória das apropriações, dos usos (e abusos) do termo doubrovskyano, desde
a sua criação. Adoto o seguinte percurso: analiso a origem do termo na França
e o “ciclo de provocações sem fim”3 entre os conterrâneos Doubrovsky e
Lejeune; o debate teórico subsequente sobre o conceito de autoficção, realizado
predominantemente em língua francesa; as divergências teóricas entre as
diferentes “escolas” da autoficção (Serge Doubrovsky, Vincent Colonna, Gérard
Genette, Jacques Lecarme, Philippe Gasparini, Philippe Vilain, Jean-Louis
Jeanelle, Régine Robin, entre outros); os estudos críticos sobre o tema
realizados no Brasil, por escritores e pesquisadores de literatura íntima.
Considero fundamental apresentar e valorizar a crítica brasileira de autoficção,
justamente por perceber que alguns de nossos pares nas Letras acabam, de
forma equivocada – e aparentemente deliberada –, ignorando os estudos já
realizados no Brasil, estudos relevantes e pioneiros no tema, em prol da crítica
francesa ou qualquer outra estrangeira. Por não concordar com essa prática de
menosprezo do material produzido no Brasil, faço questão de abrir espaço para
apresentar os principais argumentos publicados no País.
Este livro é uma versão bastante modificada de minha tese de doutorado.4 A
principal alteração é a inclusão de um novo capítulo – “Por um conceito de
autoficção” –, além de novas seções e reformulações ao longo do texto. Neste
novo capítulo, proponho um enquadramento conceitual do termo autoficção,
e espero que ele estimule interlocução mais fecunda entre interessados no tema.
Passados oito anos da defesa da tese, tive oportunidade de acompanhar a
continuidade do debate autoficcional e de sua recepção – agora, mais branda –,
reescrever meu texto e amadurecer as reflexões. Ressalto que este livro é uma
discussão predominantemente teórica e, portanto, os exemplos de autoficções
brasileiras são utilizados por seu valor para pensar o conceito. Não se trata de
um estudo arqueológico da autoficção no Brasil.
Ao final, apresento entrevistas realizadas com escritoras e escritores
brasileiros contemporâneos que estudam e/ou escrevem autoficção, com intuito
de analisar como o termo francês vem sendo apropriado pelos brasileiros.
Interessa-me aqui verificar a recepção do neologismo doubrovskyano em nosso
cenário literário, se há diferenças substanciais entre aqueles que escrevem
autoficção e aqueles que a estudam. As perguntas variaram um pouco para se
adaptar à diferença entre os perfis entrevistados e pela necessidade de aprimorar
o questionário à medida que conduzia a pesquisa.5 Dessa forma, o ineditismo
das entrevistas oferece ao leitor informação primária que lhe permite analisar a
recepção do termo e do conceito no Brasil, e explorar as diferenças, por
abranger escritoras/es que estão diretamente envolvidos no tema deste livro.
As traduções que realizei neste livro são livres. Os fragmentos originais
acompanham as traduções, em notas de rodapé. As traduções que não são
minhas estão explicitadas.
Agradeço ao CNPq pela bolsa integral para o doutorado; à CAPES, pela
bolsa de doutorado-sanduíche na Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris 3;
à PUCRS, por todas as oportunidades acadêmicas oferecidas; aos governos
Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), pela fase de bonança nas
Universidades brasileiras, pelo fortalecimento das instituições de fomento à
pesquisa (CAPES e CNPq), por meio de bolsas de estudos no País e no
exterior, das quais me beneficiei, do meu mestrado (iniciado em 2008) ao pós-
doutorado (em 2014-2015), e sem as quais eu não conseguiria me dedicar
integralmente aos estudos de literatura e teoria literária e seguir na carreira
acadêmica.
Gostaria de agradecer especialmente à minha orientadora de graduação,
especialização, mestrado e doutorado, de UFRGS e PUCRS, Ana Maria Lisboa
de Mello, pela generosidade intelectual, apoio e incentivo fundamentais para a
minha trajetória de pesquisadora; agradeço à Eurídice Figueiredo, supervisora
de pós-doutoramento na UFF, pelos diálogos produtivos, por todos esses anos
de parceria e de trabalho juntas e pela acolhida afetuosa no Rio de Janeiro; à
Jacqueline Penjon, co-orientadora de tese, pela recepção afável em Paris, pela
interação contínua e pela amizade; à Olinda Kleiman, pelo acolhimento no
Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (CREPAL) e na jornada
“Raconter la vie – la mort en vue: poétique de l’écriture de l’expérience limite”,
momento muito especial em que pude apresentar o meu trabalho sobre o
aspecto dramático da autoficção; aos escritores e às escritoras que cederam as
entrevistas e autorizaram sua publicação, em especial às queridas Luciana
Hidalgo, Luciene Azevedo e Jovita Noronha, vozes importantes neste livro,
pelo carinho e pela contribuição inestimável para o desenvolvimento dos meus
estudos; à interlocução proveitosa com o arguto Evando Nascimento; à Regina
Lúcia de Faria, pelo nosso Curso de Extensão “Escritas do Eu: desdobramentos
na teoria e na ficção” na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), espaço propício ao debate construtivo com alunos e colegas
interessados; a todos os professores que contribuíram com o Curso de
Extensão, ministrando aulas, especialmente aos companheiros de pesquisa Elisa
Abrantes, Marcos Pasche e Christian Dutilleux; às colegas Ana Chiara e Andréa
Sirihal Werkema, pela oportunidade de ministrar curso sobre autoficção na
Especialização em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ); ao João Cezar de Castro Rocha e à Cida Salgueiro, pela
discussão com interlocutores qualificados no curso de autoficção ofertado na
simpática Casa Dirce; ao Sergio Bellei, mestre - no sentido do "seu João" -,
pelo despertar crítico que, assim como os óculos de Miguilim, mudou meu
modo de ler o mundo; à Andréa Ilha, amiga e revisora da primeira versão da
tese, pelo olhar crítico e desafiador, fundamental para a reformulação e
melhoria do texto; aos membros da banca de defesa da tese, Márcia Ivana de
Lima e Silva – querida amiga – e Ricardo Barberena, pelas arguições instigantes
e incentivo, não apenas no momento da defesa, mas também desde a
graduação na UFRGS; à Sissa Jacoby (in memorian), igualmente membro da
banca de defesa, pela parceria nos estudos de autobiografia e autoficção, por
trazer à PUCRS o curso ministrado pela professora catalã Anna Caballé,
iniciativa que contribuiu muito com o meu percurso de pesquisa; à Ieda Magri,
por sua leitura crítica e estimulante do campo literário, partilhada comigo em
momentos inspiradores, capaz de mudar percepções e rumos de pesquisa; aos
amigos que acompanham meu trabalho, pela escuta e pela partilha inesgotável,
em especial Laura Barbosa Campos, Maria Inês Coimbra Guedes, Bruno Lima,
Luciano Moraes e Rodrigo Jorge, meu arrimo em terras cariocas; à Laura, mais
uma vez, por todos os textos e livros trazidos da França carinhosa e
especialmente para mim; ao Dejair Martins, pela interlocução e pelo ânimo
ofertado nos momentos em que a vontade de desistir do livro aparecia.
Agradeço, ainda, a Ana Cláudia Viegas, Carlinda Fragale Pate Nuñez, Fátima
Cristina Dias Rocha, Júlio França e Roberto Acízelo, pela acolhida na UERJ
(minha primeira “casa” no Rio) e pelos momentos de trocas enriquecedoras; ao
Nabil Araújo, pelas rápidas trocas, que vieram no momento final de revisão do
livro, mas que foram verdadeiras “injeções de ânimo” para seguir perseverante
no investimento desta pesquisa. E, por fim (last but not least), ao Felix,
companheiro incansável nessa jornada teórica e literária de mais de sete anos,
que acabou se tornando um sociólogo especialista em autoficção, a quem devo
a coragem para publicar este livro e muito mais.
Todas essas interlocuções qualificaram a elaboração do livro, embora os
argumentos sejam de minha exclusiva responsabilidade. Ainda que eu
proponha redefinições conceituais, este livro deve ser lido como ponto de
partida e um convite para novos debates sobre o conceito de autoficção.
Por que falar de autoficção?

[...] por que ler autores brasileiros sob a perspectiva da autoficção,


um termo importado, uma vez que sequer na França há um
consenso teórico a respeito?
Luciana Hidalgo

Desde a invenção pelo escritor francês Serge Doubrovsky para classificar sua
própria obra literária,1 o termo autoficção rompeu fronteiras geográficas e
funciona bem em diferentes campos da arte e em diferentes línguas: no francês,
auto ction; no inglês, auto ction;2 no espanhol, auto cción; no catalão,
auto cció; no alemão, auto ktion; em holandês, auto ctie etc. Doubrovsky, em
entrevista realizada por Isabelle Grell intitulada “C’est fini”, revela-se orgulhoso
de sua própria invenção ao constatar que o neologismo se espalhou pelo
mundo:

O termo ‘autoficção’ tem tido um sucesso surpreendente. Quaisquer que


sejam as críticas que possa ter recebido, e certamente houve abusos e
erros graves, esse termo, concebido para o meu uso pessoal, tornou-se
corrente não só na França, onde ele entrou para os dicionários Larousse
e Robert, mas, pelo que sei, ele também é empregado frequentemente
em inglês, alemão, espanhol, português, italiano e até mesmo polonês.
Eu soube até, com surpresa, que houve um colóquio sobre a autoficção
francesa na universidade de Teerã (Doubrovsky, 2011[a], p. 23).3

Não apenas o sucesso do neologismo justifica o esforço em compreendê-lo.


Para Doubrovsky, o termo supriu a necessidade de nomear narrativas literárias
inscritas na fronteira da autobiografia e do romance:

Devemos [...] admitir que o termo, mesmo desprezado pelos puristas,


correspondia a uma expectativa do público, vinha preencher uma lacuna
ao lado das memórias, da autobiografia e das escritas íntimas em geral.
Resta saber se ele constitui um novo ‘gênero’: a questão continua em
debate (Doubrovsky, 2014 [2010], p. 113).

Como apontou o estudioso francês de literatura íntima, Sébastien Hubier


(2003), o termo nomeou uma série de obras até então consideradas
inclassificáveis, situadas entre dois grupos diferentes de escritas do eu: aquele
grupo em que o eu da narrativa remete ao autor e cujo principal valor é a
autenticidade; e aquele em que as obras evocam um indivíduo fictício, criando,
como resultado, a aparência da verdade:

Por um lado, o eu da narrativa pode remeter diretamente ao autor, o


qual, se confundindo com a instância do narrador, procura fazer, com
toda sinceridade, a narrativa de sua vida. A este conjunto textual, cujo
valor principal é a autenticidade, se unem os hipogêneros, tais como a
autobiografia, as memórias, o diário íntimo etc. Por outro lado, o eu
pode evocar um indivíduo absolutamente fictício, que tem apenas a
aparência da verdade. Nós estamos, então, no universo do romance –
mesmo que este último retome as estruturas da autobiografia, das
memórias ou de outros escritos íntimos reais. Mas, entre esses dois
mundos, o abismo está longe de ser intransponível. E nós seremos
levados a mostrar que vários escritores, de André Breton a Serge
Doubrovsky, ou de Pierre Loti a Jean Genet, exploram, através de um
uso singular da primeira pessoa, os limites fugidios da realidade e da
imaginação (Hubier, 2003, p. 13-14).4
Embora alguns críticos defendam que a autoficção seja um novo termo para
substituir a autobiografia, baseados na perspectiva pós-estruturalista de
descrença acerca da concepção tradicional de autobiografia, ou ainda, outra
linhagem crítica que vê na autoficção uma semelhança com o já nomeado
romance autobiográfico, neste livro – Teorias da auto cção – defendo a
autoficção como um termo necessário para classificar, como bem apontou
Hubier, obras até então inclassificáveis. Obras, estas, que se situam entre a
ficção e a não-ficção, justamente por acreditarmos nesse limiar, ou seja, nessa
linha de demarcação que distingue fato e ficção. Não se trata, então, de mera
questão de nomenclaturas, mas de analisar a especificidade da autoficção
enquanto escrita literária e os protocolos de leitura biográfica e ficcional.

Autoficção no Brasil

Entre nós, o termo se difundiu a partir dos anos 2000. Evando


Nascimento5 relata o seu primeiro contato com o termo autoficção em 1997:

[...] foi numa palestra com a professora e escritora francesa radicada no


Canadá Régine Robin. O evento foi organizado pela também
especialista no assunto Eurídice Figueiredo, na Universidade Federal
Fluminense, em 1997. Fiquei absolutamente fascinado e acabei por ler o
livro teórico-crítico de Robin: Le Golem de l’écriture: de l’auto ction au
cybersoi. Entre 1998 e 2000, cheguei a escrever um livro [...] em que
narrava dia após dia a história de um romance que estava vivenciando na
época. Era uma espécie de diário [...], que acabou quando a relação
terminou na vida real (Nascimento, apêndice deste livro).

Além de arguto crítico literário, interessado pelo surgimento do termo e


pelo debate teórico acerca da autoficção, Nascimento é escritor e desenvolveu
projeto literário autoficcional. O livro a que ele se refere é Retrato Desnatural
(diários – 2004 a 2007), publicado em 2008, pela Record. A capa do livro
indica que se trata de cção, o que causa certo estranhamento, pois o subtítulo
mostra se tratar de diários, que, em seu sentido convencional, é uma promessa
de confissão. O leitor que seguir à risca os rótulos expressos na capa pode ter as
suas expectativas frustradas ao abrir o livro. Retrato Desnatural, título que
remete a um dos livros mais conhecidos da poeta Cecília Meireles – Retrato
Natural, é um livro de difícil classificação genérica, uma vez que os diários são
compostos por poemas, verbetes, autoentrevista, contos, crônicas, aforismos,
microensaios literários, e-mails, diálogos curtos e anotações de diário – que
estão longe de retratar aquele sentido convencional de diário – pondo os
gêneros em questão. Além da multiplicidade de gêneros, é interessante a
ausência de sequência temporal linear. Todos os textos são datados, alguns
inclusive indicam a hora, os minutos e os segundos, entretanto é possível ler
um texto do ano de 2005 antes de outro texto de 2004, por exemplo.
Nascimento acaba por jogar com os limites da ficção e da não-ficção, da poesia
e da prosa, da literatura e do ensaio etc., ademais acrescenta as iniciais de seu
nome E. N. ou a sua própria assinatura em alguns desses textos, provocando
ambiguidade na recepção da obra.
Silviano Santiago, um dos precursores da prática autoficcional e do uso do
termo no Brasil, mostra a importância da criação do termo e do conceito de
autoficção:

A etiqueta em questão [autoficção], criada por Doubrovsky e talvez


utilizada por mim pela primeira vez no Brasil, como, aliás, outras
etiquetas, servem para acentuar um traço dominante em determinada
produção que requer tanto o devido registro (daí a criação do vocábulo),
quanto a devida análise (daí a transformação do vocábulo em conceito).
Quero dizer que Doubrovsky criou vocábulo e conceito a fim de
normatizar importante filão da literatura modernista e contemporânea
(independente de nacionalidade). Parabéns a ele (Santiago, apêndice
deste livro).

Na palestra “Meditação sobre o ofício de criar”, Santiago detalha a surpresa


ao se deparar com o termo autoficção, do qual passou a se apropriar:

[...] fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informação de


que Serge Doubrovsky, crítico francês radicado nos Estados Unidos,
tinha cunhado, em 1977, o neologismo auto cção e que, em 2004,
Vincent Colonna, um jovem crítico e historiador da literatura, tenha
valido do neologismo para escrever o desde já indispensável Auto ction
& autres mythomanies littéraires (Paris, Tristram). Em suma, passei a usar
como minha a categoria posterior e alheia de auto cção (Santiago, 2008,
p. 175).

O exemplo de Santiago ajuda-nos a compreender o mérito de Doubrovsky


como autor do neologismo e da reflexão sobre essas obras inclassificáveis, e não
da prática literária em si. A descoberta do termo doubrovskyano – autoficção –
por Santiago é posterior à escrita de seu romance. Primeiro a prática, depois o
termo para nominá-la.6
Na palestra, Santiago expõe que chegou à autoficção por meio de “um
longo processo de diferenciação, preferência e contaminação”. Os processos de
diferenciação e de preferência referem-se à distinção necessária entre o discurso
autobiográfico e o confessional, e à preferência ao autobiográfico “como força
motora da criação”:

Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida,


alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os
dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor
meus escritos [...]. Já o discurso propriamente confessional está ausente
de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e
profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos,
julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole
romântica ou neo-romântica (Santiago, 2008, p. 173-74).

O terceiro movimento, o da contaminação, refere-se à contaminação pelo


“pelo conhecimento direto – atento, concentrado e imaginativo – do discurso
ficcional da tradição ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para
ficar com extremos”. Sendo assim, trata-se de “inserir alguma coisa (o discurso
autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional)” e, com isso, “relativizar
o poder e os limites de ambas”. Para Santiago, esses movimentos ampliam as
perspectivas de trabalho para o escritor e oferecem “outras facetas de percepção
do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido”. A literatura renuncia
às purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção, assumindo “os processos
de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa”; “são as margens
em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do
escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa” (Santiago, 2008, p.
173-74).
Desde o início dos anos 1980, Santiago reflete sobre questões de
experiência, memória, sinceridade e verdade poética em sua prática literária e
nos seus ensaios teórico-críticos. A lucidez do teórico permite-lhe notar a
mescla entre escrita autobiográfica e ficcional na literatura brasileira:

[...] minha obra crítica [...] desde o início dos anos 1980, acentuava o
fato de que grande parte da ficção modernista brasileira tinha sido
escrita numa mescla de escrita autobiográfica e escrita ficcional. [...]
Dava exemplos contundentes. Por exemplo, o fato de Lins do Rego ter
escritor Menino de engenho e também publicado, ao final da carreira, um
repeteco da trama, Meus verdes anos, agora considerando o volume como
de memória. O mesmo acontece – e paro por aqui os exemplos – com
Oswald de Andrade. Compare Memórias sentimentais de João Miramar
(ficção) e Sob as ordens de mamãe (autobiografia).
Com isso estou querendo dizer que qualquer etiqueta – e autoficção é
uma delas – merece por parte do crítico universitário um trabalho de
arqueologia, para retomar o trabalho de investigação posto à nossa
disposição por Michel Foucault. Encantar-se com uma etiqueta não é
sinal de maturidade crítica. O sinal de atualidade vem da acoplagem da
pesquisa tanto ao universo da produção contemporânea quanto ao
universo da produção que a precede de anos, décadas ou séculos
(Santiago, apêndice deste livro).

Se, por um lado, Santiago chama a atenção para o perigo do encantamento


pela etiqueta da autoficção, intercedendo por maturidade crítica; por outro
lado, não é raro a recepção oposta ao encantamento, a de rejeição completa ao
termo, a seu conceito e ao debate autoficcional. Sobre esse intercâmbio
dialético entre fascinação e rejeição, supervalorização e menosprezo, nos
aprofundaremos mais adiante neste livro.
Autor de Histórias mal contadas (contos, 2005) e O falso mentiroso
(romance, 2004), livros em que deu “corpo textual a quatro questões
constitutivas do que tem sido [para ele] o exercício da literatura do eu – as
questões da experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética”
(Santiago, 2008, p. 173), o professor, crítico e teórico literário Silviano
Santiago é altamente consciente do seu fazer literário. O falso mentiroso joga
linguisticamente com as noções pertinentes a todo debate em torno do
conceito de autoficção – falso/verdadeiro; mentira/verdade; real/imaginário;
ficção/realidade; incerteza; identidade(s); fragmentação do sujeito;
autorreferência; metaficção etc. Para Santiago,

[...] a discussão-teórica-sobre-o-romance dentro do romance-que-se-


escreve é uma prática comum da pós-modernidade. No meu caso
herdei-a diretamente de André Gide e do clássico Les faux-monnayeurs
que, como sabe, foi devidamente acompanhado do Journal des Faux-
Monnayeurs. Em suma, a escrita do romance não independe – a não ser
nos casos óbvios de produção moderna comercial – da reflexão interna
sobre o ato de criação (Santiago, apêndice deste livro).

O falso mentiroso funciona como uma “meta[auto]ficção”, pela presença, no


texto, de reflexão profunda sobre noções pertinentes à prática da autoficção.
Característica homóloga pode ser observada em A resistência, de Julián Fuks
(2015).7 No capítulo 46, o narrador revela para seus pais, personagens do livro,
que a história escrita está ancorada na experiência real da família e, com isso,
dialoga com a reflexão que é parte da teoria da autoficção. Como é próprio em
autoficções, Fuks consegue transmitir a sensação de estranhamento dos pais “se
lendo” enquanto personagens:

Na noite passada meus pais leram o livro que lhes enviei, enganaram a
insônia com estas páginas, por algum tempo estiveram depurando o que
poderiam comentar, como lidariam com esta situação um tanto
exótica. É claro que não podem fazer observações meramente literárias,
ambos ressalvam como se quisessem se desculpar, durante toda a leitura
sentiram uma insólita duplicidade, sentiram-se partidos entre leitores e
personagens, oscilaram ao infinito entre história e história. É estranho,
minha mãe diz, você diz mãe e eu vejo meu rosto, você diz que eu digo e
eu ouço a minha voz, mas logo o rosto se transforma e a voz se distorce,
logo não me identifico mais. Não sei se essa mulher sou eu, me sinto e
não me sinto representada, não sei se esses pais somos nós (Fuks, 2015,
p. 134-35, grifos meus).

As questões da mentira e da memória também são abordadas de forma


muito pertinente ao debate autoficcional:

Você não mente como costumam mentir os escritores, e no entanto a


mentira se constrói de qualquer forma; não sei, talvez eu queira apenas
me defender com este comentário, mas suspeito que não fomos assim,
acho que fomos pais melhores. Penamos um pouco com seu irmão, é
verdade, e você é fiel à sequência de fatos, fiel como se pode ser fiel às
instabilidades da memória, mas me pergunto se ele chegou a ficar tão
mal, se alguma vez foi tão esquivo, tão intratável, se por tanto tempo
esteve incacessível no quarto. Me lembro e não me lembro de muito do
que você narra, dos vários episódios ásperos, mas é evidente seu
compromisso com a sinceridade, um compromisso que eu não termino
de decifrar. Não entendi bem, por outro lado, por que você preferiu
inverter o conflito com a comida, subverter o sobrepeso do seu irmão e
tratá-lo como magro. Apreciei, em todo caso, que houvesse ao menos
um desvio patente, vestígio de outros tantos desvios, apreciei que nem
tudo respondesse ao real ou tentasse ser seu simulacro (Fuks, 2015, p.
135, grifos meus).

N’A Resitência, o pai questiona o autor-filho por que escrever sobre a


própria história, as cicatrizes e os conflitos familiares e, com isso, traz à baila
um questionamento fundamental para se pensar sobre os limites da autoficção
– “invasão do que temos de mais íntimo” – e sobre os motivos que levam um
escritor a elaborar a sua experiência:

É meu pai quem coloca as perguntas: O que se ganha com uma


descrição tão minuciosa de velhas cicatrizes, o que se ganha com esse
escrutínio público dos nossos conflitos? Se seu irmão em suas festas
devassava a casa para tanta gente, se aquilo que você descreve era uma
invasão dos nossos domínios, que devassa você promove agora, que
invasão do que temos de mais íntimo? [...] Entendo, é claro, ele
prossegue em tom ameno, que há muita elaboração de tudo o que
vivemos, que o livro é outra forma de terapia, que uma história
emocional ganha corpo ali. Mas nesse caso não deveria ficar entre nós,
um texto que lêssemos juntos, interpretássemos, discutíssemos? (Fuks,
2015, p. 136-37, grifos meus).
A prática autoficcional como um meio para a “invasão do que temos de
mais íntimo” ou o “escrutínio público” dos nossos conflitos pessoais e
familiares, como bem coloca a personagem de Fuks, acaba levando alguns
escritores aos tribunais. Em alguns casos, a repercussão nos tribunais é parte da
performance do autor na vida real.8
Por fim, Fuks levanta ainda a questão da autoficção como “outra forma de
terapia”, trazendo à tona a relação da escrita autoficcional com a “prática da
cura”, bastante assinalada por Doubrovsky no início de sua trajetória de
conceitualização da autoficção.
A técnica de trazer para dentro da obra literária questões pertinentes ao
debate teórico sobre a autoficção, remete ao jogo autoficcional em O falso
mentiroso, uma espécie de brincadeira com o leitor, uma provocação à moda
machadiana. Também remete ao livro A resistência, de Fuks, que aborda
questionamentos pertinentes à teoria da autoficção, tais como os protocolos de
leitura biográfica e ficcional, assim como tensão entre a ficção, os gêneros
autobiográficos e a autoficção.9

O autoficcionista como um falso mentiroso: uma análise do romance


de Silviano Santiago

A incerteza é uma característica que permeia a narrativa de O falso mentiroso


(2014) desde as primeiras páginas, nas quais o narrador coloca em xeque o
próprio relato que faz sobre sua experiência:

Não tive mãe. Não me lembro da cara dela. Não conheci meu pai.
Também não lembro da cara dele. Não me mostraram foto dos dois.
Não sei o nome de cada um. Ninguém quis me descrevê-lo com
palavras. Também não pedi a ninguém que me dissesse como eram.

Adivinho.
Posso estar mentindo. Posso estar dizendo a verdade (Santiago, 2004,
p. 9, grifo meu).

O narrador é também o protagonista [“Ainda não me apresentei. Me chamo


Samuel. Caí de paraquedas entre os Carneiro, no lado materno, e entre os
Souza Aguiar, no lado paterno. Samuel Carneiro de Souza Aguiar”]10 que
conta, por meio do discurso dubitável circunscrito à esfera da memória, a
história de sua própria vida. O narrador faz questão de ressaltar que seu
discurso é inconsistente [“Se desconfio de mim, como servir de exemplo para o
outro? Se me constituo de cópias, como me apresentar como modelo? Se não
sou original, serei modelo de araque?”],11 a memória o trai e insere novos
elementos de incerteza [“Fui batizado aos sete anos. Pouco antes da cerimônia
da primeira comunhão. Ou no mesmo dia. Não me lembro bem”],12 suscita
dúvida a respeito de suas confissões [“Nunca pus os pés lá. Ou será que pus?],13
e, principalmente, cria várias hipóteses sobre um mesmo fato.
Samuel é um artista falsário, que copia as xilogravuras de Oswaldo Goeldi,
vivendo à custa do anonimato e à sombra do outro:

‘Minhas’ telas – segundo eles – foram pintadas por Goeldi na Suíça,


antes de ele ter ganho a notoriedade no Brasil. De toda a minha
vastíssima obra são os únicos quadros que não trazem minha assinatura
– falsa, é claro (Santiago, 2004, p. 188).

Ao rememorar suas experiências da infância, acaba por construir uma


espécie de biografia do pai, Eucanaã, também um “falso advogado”. Tanto o
pai quanto a mãe são, segundo o narrador, “falsos”, pois ele teria sido
“comprado” ainda na maternidade. Ao longo da narrativa, há cinco versões
sobre a sua possível ascendência familiar. Entre tantas hipóteses, a personagem
Samuel acata as cinco, sem exclusão, definindo-se a partir da multiplicidade:
“Vários pais, vários embriões, vários partos, vários falsos mentirosos, várias
vidas”.14
As reflexões da teoria pós-moderna e, por sua vez, da escrita autoficcional,
estão subjacentes ao longo do texto de Santiago. Por ser um reconhecido
teórico e crítico literário, consciente dos debates na sociologia da cultura e nos
estudos culturais, sua produção textual é a de um romance extremamente
reflexivo do ponto de vista estrutural, estético e ideológico.
Alguns teóricos já marcaram a autoficção como autorreferencial,
metatextual e metaficcional. Em perspectiva literária, a inserção da experiência
analítica na narrativa corresponde a uma reflexão profunda sobre a produção
da literatura por ela mesma e sobre a escrita autoficcional. A escrita em O falso
mentiroso é autoanalítica, e Santiago teoriza a sua prática literária por meio do
discurso autoconsciente do narrador-protagonista que dialoga ironicamente
com o leitor sobre o seu próprio fazer literário. Nesse aspecto, podemos dizer
que o estilo de Santiago se aproxima do estilo de Machado de Assis:

Será esse, caro leitor, o motivo que o levou a procurar estas memórias na
livraria mais próxima? a comprá-las e a lê-las?
Agradeço-lhe o voto de confiança. O nome do autor é verdadeiro. A
proposta do livro que o nome vende – a narrativa autobiográfica duma
experiência de vida corriqueira e triunfal com o título de O falso
mentiroso – é enganosa. Não encontrei melhor solução nem título. Fui
tentado por outro. O patinho feio. Estaria mais próximo da realidade. E
seria pior.
Falta de imaginação? Falta de talento? Faltam-me as palavras? Dou-lhe o
direito à resposta.
Você chegou até aqui. Calculo. A duras penas. Parabéns (Santiago,
2004, p. 174).

Vale lembrar o que Santiago afirma sobre a genialidade do jogo criado por
Machado de Assis:
[...] Machado é gênio. Veja, por exemplo, o modo como desentranhei da
sinceridade do narrador Dom Casmurro uma retórica da
verossimilhança (e não do verdadeiro, aclaro). Não foi difícil que
surgisse uma geração que lesse Capitu como adúltera (seguindo a clave
estabelecida corretamente por Flaubert), ou então como inocente
(seguindo a clave antípoda, pró-feminina). O difícil é trabalhar o jogo.
O jogo entre o que, no texto, a diz ser adúltera e o que, ali também, a
diz ser inocente. Certa ficção é criada dessa forma e requer um tipo
intrometido e perspicaz de leitor (Santiago, apêndice deste livro).

A escrita de Santiago parece requerer “um tipo intrometido e perspicaz de


leitor”, tendo em vista certos desafios do jogo intencionalmente criado pelo
autoficcionista. O recurso da metaficção não chega a ser algo inovador na
literatura contemporânea, pois, como sabemos, desde a virada do século XIX, o
romance voltou-se para si mesmo, aumentando o grau de apresentação
autoanalítica, intensificando suas obsessões com a própria tática de
esquematização e estruturação e tornando-se mais “poético” (Fletcher e
Bradbury, 1989). Entretanto, a metaficção característica da autoficção pode ter
as suas especificidades.
John Fletcher e Malcolm Bradbury dedicam-se à análise do romance
modernista, pensando questões específicas do gênero romance, como a
representação da realidade e de estruturas sequenciais lógicas (1989, p. 321).
Em “O romance de introversão”, examinam “a preocupação do romance
modernista com seu caráter técnico e fictício próprio”; o romance, nesta virada,
dava ênfase à forma e revelava o sentimento da complexidade e do paradoxo da
construção ficcional:

É no modernismo que se encontra esse fenômeno, o qual adquire a


forma de uma crise interna da apresentação e resulta, entre outras coisas,
num gosto por formas que, voltando-se sobre si mesmas, mostram o
processo de construção do romance e reproduzem os meios com que se
realiza a própria narração (Fletcher & Bradbury, 1989, p. 323).

Um dos grandes temas do romance moderno, segundo os autores, é a arte


do próprio romance, dando à ficção um caráter simbólico, o que obriga o leitor
a entrar em sua forma e ir além do conteúdo:

Na criação literária, a experiência individual se transforma num


‘equivalente espiritual’; descobrindo-nos, desvelamos o mundo artístico
que se encontra dentro de nós. E, como é apenas pela arte que
emergimos de nós mesmos, o estilo de um escritor não é uma questão de
técnica, mas uma visão ou uma totalidade simbolista (Fletcher e
Bradbury, 1989, p. 330).

Os críticos observam que “o objeto de contemplação não é o ‘tema’, mas a


construção. Isso é fundamental no modernismo: ele coloca a forma acima da
vida, o modelo e o mito acima das contingências da história, e impera o poder
fictício” (Fletcher e Bradbury, 1989, p. 332).
A obra de Santiago trata da arte do próprio romance, apresentando assim,
conforme Fletcher e Bradbury, um gosto por formas que se voltam sobre si
mesmas, mostrando o processo de construção da escrita e reproduzindo os
meios com que se realiza a própria criação:

Sou contra a adversativa. Nada tenho a ver com mas, porém, contudo,
entretanto, no entanto, todavia. [...]
Leia (isto é, releia) este livro de fio a pavio. Por cada adversativa
encontrada, o autor se compromete a depositar na sua conta bancária a
quantia de cem dólares. [...]
Não há relativismos patrióticos ou geracionais embebidos na minha
estilística. [...]
Ia esquecendo de dizer.
Fui esquecendo de dizer.
Não é a mesma coisa. Ia esquecendo e fui esquecendo. Tenho de
escolher entre a primeira e a segunda forma verbal. Decidir (Santiago,
2004, p. 220-222).

Interessada em analisar a representação autoral na narrativa, no audiovisual


e no teatro, a pesquisadora espanhola Ana Casas (Universidade de Alcalá) lança
a hipótese de que a autoficção responde a uma tendência na arte
contemporânea, em que os autoficcionistas tentam capturar – com mais
intensidade do que em outras épocas – suas identidades, mesmo fragmentadas
e precárias, tendo consciência da impossibilidade de um referente estável
(Casas, 2017). Sendo assim, a escrita autoficcional abre espaço para a
ficcionalização do real e desafia, segundo Casas (2017), os modos tradicionais
de representação do eu e do mundo que o circunda, rejeitando as formas
canônicas da autobiografia, testemunho e ensaio.
O falso mentiroso parece confirmar a operatividade teórica da autoficção. O
autoficcionista como um falso mentiroso opera no texto o jogo ambíguo dessa
tendência literária (e artística) contemporânea. Seu caráter metaficcional não
apenas mostra o processo de construção do romance, mas também questiona as
projeções tradicionais do autor na narrativa e a dualidade fato-ficção, e
problematiza relações entre memória e esquecimento, em tom eminentemente
irônico.
O conceito de arte, em O falso mentiroso, passa pela relação do protagonista
com a mãe. Com ela, o narrador aprende a arte da maquiagem e passa a
preferir a maquiagem ao rosto limpo, já que a primeira, como a arte, disfarça,
esconde, renova, recria, é “mais da representação do que da realidade”: “Passei a
ser como ela. Totalmente contra a coisa real. A favor do algo extra que você
acrescenta à coisa real para que ela, sem se tornar irreal, seja mais bonita, frajola
e fofa do que já é”.15
Na já referida entrevista, “Meditação sobre o ofício de criar”, Santiago fala
sobre os seus dois últimos livros de ficção publicados. Sobre o seu processo
criativo, ele demonstra largo conhecimento a respeito das teorias aqui
abordadas, e profunda consciência sobre o seu fazer literário:

A fim de evitar mal-entendidos, afirmo que em nenhum momento do


passado remoto usei a categoria autoficção para classificar os textos
híbridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra
romance. [...] Já a professora Ana Maria Bulhões de Carvalho o
classificou de alterbiogra a, um neologismo que já aponta para o caráter
híbrido da proposta (Santiago, 2008, p. 175).

Assim, entendemos que as formas do romance que se voltam para si, em


um movimento de introversão, são, conforme nos antecipa Linda Hutcheon
(1991), “rizomáticas”. O conceito de rizoma, a que a teórica se refere, é
trabalhado por Deleuze e Guattari (2009), que, por meio de comparações com
a botânica, evidenciam uma nova perspectiva:

[...] diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um


ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não
remete necessariamente a traços de mesma natureza [...] Ele não é feito
de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não
tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e
transborda. [...] Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto
de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e
relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito somente de
linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões,
mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão
máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se
metamorfoseia, mudando de natureza (Deleuze e Guattari, 2009, p. 32,
grifo meu).
Na capa d’O falso mentiroso, inscreve-se o subtítulo “memórias”. O autor
joga com o leitor o tempo todo, criando ilusões que serão desconstruídas no
decorrer da narrativa. Em se tratando de “memórias”, temos de levar em conta
o tempo da lembrança, que, segundo H. Bergson (1999), é o tempo presente, e
o discurso circunscrito à esfera da memória, que é um discurso falível,
propenso a constantes atualizações, “linhas rizomáticas de segmentaridade” que
transitam em direções movediças.
No entanto, a proposta de Santiago abrange uma complexidade maior do
que o termo genérico “memórias”. Alguns dados biográficos do autor na obra
unem de maneira indefectível as instâncias do autor, do narrador e da
personagem. Como é o caso da foto preto e branco de Silviano quando bebê,
estampada na capa do livro, e de alguns dados pessoais do autor nas versões em
que o narrador-protagonista conta sobre seu nascimento, principalmente, na
sua quinta versão: “Teria nascido em Formiga, cidade do interior de Minas
Gerais. No dia 29 de setembro de 1936. Filho legítimo de Sebastião Santiago e
Noêmia Farnese Santiago”.16
O pacto que se estabelece com o leitor não é o autobiográfico, nem o
referencial; é o pacto oximórico, próprio da autoficção. Santiago mantém o
jogo com as fronteiras tênues que separam pretensiosamente a realidade
autobiográfica e a ficção romanesca. Essa é uma narrativa híbrida, duvidosa,
ambígua e indeterminada. O narrador manipula aporias, questiona o que é
mentira e o que é verdade, o que é falso e o que é verdadeiro, e, ainda, o que é
mentira e o que é falsidade, o que é representação e cópia em se tratando de
ficção, questionamento que está preestabelecido desde o seu título – O falso
mentiroso.

Dizem que sou mentiroso. Não sou.


Não vale só dizer que sou mentiroso. Provem que sou! Evidências.
[...] Há pessoas que me leem e não têm nariz afinado. Para elas sou
mentiroso, embusteiro, impostor. Não entendem. Às vezes fala um de
mim. Às vezes fala o outro. Às vezes o terceiro de mim e ainda o quarto
– aquele cuja biografia escamoteei, lembram-se? e até o quinto – o
inverossímil formiguense, antes referido. Às vezes os cinco falam ao
mesmo tempo (Santiago, 2004, p. 180-181).

Como a estrutura do texto, a identidade da personagem principal é


rizomática e exclui a possibilidade de uma não-identidade, pois há renovações
do discurso identitário do protagonista quando este apresenta as cinco versões
sobre seu nascimento. A primeira versão é a que ele é órfão e, mediante uma
conivência criminosa com a obstetra e a enfermeira da maternidade, teria sido
transportado de ambulância para a casa dos pais falsos. Na segunda versão, a
mãe falsa Ana seria “estéril e infeliz”, e o pai falso engravidara a amante,
também casada, mas não queria abortar: “adúltera sim, mas não assassina”.
Então, a amante desaparece depois de ter parido. A terceira versão diz que a
família zombava da esterilidade de Ana, que a motivou “inventar uma
gravidez”, bolando o estratagema de encher uma almofada de algodão até o dia
do parto, com apoio da obstetra à fraude. Na quarta versão, a mãe morrera
para salvar o filho, que, órfão, foi adotado por pais falsos. Na quinta versão, ele
teria nascido em Formiga, interior de Minas Gerais, filho legítimo de Sebastião
Santiago e Noêmia Farnese Santiago, “versão tão inverossímil, que nunca quis
explorá-la”.
O protagonista, por sua vez, situa-se no entre-alguma coisa, entre o falso e o
verdadeiro, entre o dia em que nasceu e o dia em que foi batizado, entre o
signo de Libra e o de Virgem, entre a vida e a morte, entre o eu e o outro, ou
ainda, entre a multiplicidade dos eus que o constituem:

Nas vascas da agonia, me chamou de filho da puta.

A mim? Ou aos vários eus que convivem dentro de mim?

Chegou a hora de pôr os pontos nos ii.


Não sei por que nestas memórias me expresso pela primeira pessoa do
singular. E não pela primeira do plural. Deve haver um eu dominante na
minha personalidade. Quando escrevo. Ele mastiga e massacra os
embriões mais fracos, que vivem em comum como nós dentro de mim
(Santiago, 2004, p. 136, grifo meu).

O autor constrói uma personagem rizomática, consciente dos vários “eus”


que a constituem. E essa é a grande contradição do romance, que se define na
capa como “memórias”, mas que, conforme a teoria do rizoma de Deleuze e
Guattari, seria exatamente o oposto, a antimemória, a linha de fuga:

O rizoma é uma antigenealogia. É a memória curta ou uma


antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista,
captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia, oposto
aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido,
construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável,
com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga (Deleuze e
Guattari, 2009, p. 33).

Quanto mais o narrador-protagonista investe na busca incansável pelas suas


raízes, por dados que comprovem a sua “verdadeira origem”, seus “verdadeiros
pais”, sua “verdadeira biografia”, maior a semelhança identitária com o rizoma,
ou como um platô, que “está sempre no meio, nem início nem fim”.

Não sei se conto. Conto. Na minha certidão a data de nascimento não é


a do meu nascimento. É a data da minha morte para os meus pais. Os
verdadeiros. O dia do meu nascimento na certidão é o do meu
renascimento na casa dos meus pais. Os falsos.
Nasci e morri aos dezenove dias de vida no berçário da maternidade.
Com o nome verdadeiro. Ressuscitei-me ao deixar a tenda de oxigênio.
Tive papai e mamãe. Perdi-os no tempo e no espaço. Falta o atestado de
óbito. Renasci na casa paterna. No berço do quarto de dormir do casal.
Em Copacabana. Com o nome que trago.
Somos dois. Somos um. Um é cópia do outro. Gêmeos, vá lá, já que
ninguém morre nesta história (Santiago, 2004, p. 48, grifo meu).

A autoficção instaura-se no entre-lugar, como a personagem de Samuel:


entre a autobiografia e o romance, entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o
falso, entre o que aconteceu e o que poderia ter acontecido. Para todos os
questionamentos abordados no romance de Santiago, não há respostas
determinantes, e essa indecidibilidade é fundamental para a especificidade da
autoficção.
A noção do “entre-” permeia o discurso de Samuel, que vê duas
possibilidades de interpretação para as palavras de seu pai e opta por não
escolher nem uma nem outra, assim como a anfibologia da autoficção, nem
verdade nem mentira, nem sinceridade nem delírio:

Meu pai, o falso, me acorda para o reencontro comigo.

‘Você é um filho da puta’, me esclarece numa noite de febre e dispneia.

Um bastardo encontrado na rua. À míngua de água, comida e carinho.

Que peso dei às palavras dele? Segui a lição que aprendi. Dei dois pesos
a elas. Duas medidas.

Um peso dizia verdade. Outro peso dizia mentira.

Uma medida dizia sinceridade. Outra medida dizia delírio.

Não elegi verdade nem mentira. Sinceridade nem delírio (Santiago,


2004, p. 131).
Hutcheon (1991, p. 94) observa que o “conceito de ‘não-identidade’ tem
associações de binariedade, hierarquia e complementaridade que a teoria e a
prática pós-modernas parecem dispostas a rejeitar em favor do ex-cêntrico”. De
acordo com Hutcheon, o pós-modernismo derruba as hierarquias, mas não as
distinções: “A diferença sugere a multiplicidade, a heterogeneidade e a
pluralidade, e não a oposição e a exclusão binárias”. Quando o memorialista de
O falso mentiroso diz “Gêmeos, vá lá, já que ninguém morre nesta história”,
percebe-se que a cada nova versão de sua origem, de si, ele soma as diferentes
personalidades que o constituem, sem excluí-las, sem “matar” uma em prol da
outra. Samuel desdobra-se em múltiplos “samuéis”.

Porém, se o centro é considerado como uma elaboração, uma ficção, e


não como uma realidade fixa e imutável, o ‘velho ou-ou começa a
desmoronar’, como diz Susan Griffin (1981; 1982, p. 291), e o novo ‘e-
também’ da multiplicidade e da diferença abre novas possiblidades
(Hutcheon, 1991, p. 90).

O romance de Santiago é analítico em sua tessitura e na construção de


identidades da personagem. O autor abandona a realidade fixa e excludente do
“ou-ou” e dá lugar à multiplicidade do “e-também” ou “e... e... e”. Quando se
trata da tessitura textual, isso fica evidente em relação ao gênero de sua obra,
“nem autobiografia nem romance”, alguma coisa entre os dois. Quando se trata
da personagem em busca de si mesma, percebemos um discurso consciente
dessa fluidez pós-moderna:

Sou muito secreto. Não guardo segredo.

Não sou dado a intimidades. Sou intimidado.

Vivo como devasso. Não sou indevassável.


Dizem-me singular. Evito o tom pessoal.

Sou mau. Pratico caridade. Dizem-me generoso (Santiago, 2004, p.


176).

Noutra passagem, Samuel revela ser ambidestro, fugindo à alternância “ou


destro, ou canhoto”, e aderindo à quebra de expectativa gerada pelo advérbio
de inclusão – “destro e também canhoto”, que é uma imagem perfeita para a
reflexão acerca dessa relativização pós-moderna e da multiplicidade do ser, do
discurso e do texto:

Que Descartes perdoe a heresia do meu duplo cogito!

Penso no papai, o verdadeiro, logo dói.

Dói, logo penso no papai, o verdadeiro.

Para que pedir perdão ao filósofo? Assumo. Sou cartesiano, à minha


maneira, e canhoto. Ambidestro (Santiago, 2004, p. 13-14).

O narrador-protagonista apresenta um discurso autoanalítico na medida em


que reconhece na fragilidade de sua identidade uma perturbação. Esse entre-
lugar em que ele se situa, e, até mesmo, o entre-ser, é, para a personagem, um
causador de sofrimento:

Dezenove dias a mais, sai vencedora a cópia. Dezenove dias a menos, sai
vencedor o original. Será que faz diferença? Por mais que me
tranquilizem, sei que faz. Faz diferença, e muita. Ninguém volta
impunemente do signo de Virgem, a sexta constelação. Menos
impunemente se arrebata alguém do signo de Virgem para jogá-lo no
signo de Libra. Para trás ou para frente, vira barata tonta (Santiago,
2004, p. 49, grifos meus).

Samuel compreende o seu ódio por leite ao analisar que nunca tomou o
leite materno ou recebeu o carinho da mãe, a referência segura com a qual ele
poderia se identificar. Sempre sentiu a falta, a carência, e por isso o repúdio e o
ódio àquilo que melhor simbolizaria a maternidade:

Desenvolvi uma teoria própria sobre o meu ódio ao leite.

O ódio é alimentado pela falta dela. Dela? Da minha mãe verdadeira. É


alimentado pela carência. Se nunca cheguei a sorver leite materno na
maternidade, como poderia aceitar como verdadeiro algo que, no fundo,
era um vulgar substituto de origem animal? Hoje, produzido e
empacotado pelos suíços. Os mesmos que inventaram o relógio de cuco.
Hora certa, leite certo – lógica de suíço. Exigia o leite materno e não o
em-lugar do leite materno. Na privação combatia o sucedâneo com os
meios de que dispunha. A boca fechada. A birra. O choro. Mais
eficientes do que qualquer campanha nacionalista (Santiago, 2004, p.
23-4).

A crise existencial de Samuel segue até sua maturidade. Como falso pintor,
o plágio das obras de Goeldi assemelha-se à sua relação com os pais falsos:
“Acabei entrando nas galerias de arte e nos museus pela porta dos fundos.
Carma. Entrava de novo no mundo pela cozinha” (Santiago, 2004, p. 189).
A figura do pai é tão importante para a construção da personalidade de
Samuel que ele praticamente faz uma biografia da vida paterna, cedendo,
assim, um espaço considerável de suas memórias para as lembranças do pai.
Essa é uma relação conflituosa, e Samuel deixa-se revelar uma personalidade
triste, analisando seus motivos:
‘Que filho porra nenhuma! Um bastardo que a gente encontrou na rua.
À míngua de água, comida e carinho. Um bastardo que cultua a figura
de Alexander Fleming não merece a mínima consideração do fabricante
de camisinhas-de-vênus. Ao inferno com ele! Com os dois!’

E ainda me perguntam por que eu sou triste! (Santiago, 2004, p. 129,


grifo meu).

A autoficção tem relação com a psicanálise, e Doubrovsky, sobretudo na


fase inicial, aponta a cura analítica como uma das características do texto
autoficcional, que traz à luz e permite elaborar os sofrimentos do indivíduo
contemporâneo. Diversos elementos da obra de Santiago apontam para a
escrita autoficcional como uma prática terapêutica. O narrador expõe os
conflitos com a própria identidade, os sofrimentos advindos de relações
familiares problemáticas, os desafetos, a falta de carinho da mãe e sua relação
com o ódio ao leite, o desamparo etc., construindo uma personagem irônica,
complexa e marcada pela “neurose do indivíduo contemporâneo”.17
Autoficção: um centro, uns arredores,
umas fronteiras

Esta franqueza era um pecado de juventude, mas talvez uma


necessidade para um livro que traçava pela primeira vez a paisagem
autobiográfica francesa: era preciso desenhar um centro, uns
arredores, umas fronteiras.
Philippe Lejeune

O termo auto ction, cunhado pelo escritor e professor de literatura Serge


Doubrovsky (Paris, 1928-2017), foi trazido a público em 1977, na quarta capa
de seu romance Fils. O que nem todo mundo sabe é que o termo auto ction já
aparecia na primeira versão de Le Monstre,1 que são textos anteriores a Fils,
escritos entre 1970 e 1977, com aproximadamente três mil páginas.2
Doubrovsky disponibilizou esse material para o trabalho de pesquisa genética
da equipe do ITEM3 – classificação, indexação e digitalização do material
disponibilizado – em 2002. Graças ao trabalho de Isabelle Grell, o texto
original de Le Monstre foi publicado em 2014 pela editora Grasset.
O fato de a autoficção ter aparecido anteriormente em Le Monstre (1970-
1977) mostra que Doubrovsky, antes mesmo de publicar o esboço, na capa de
Fils (1977),4 do que viria a ser o conceito mais complexo de autoficção, já
vinha pensando criticamente a respeito da autobiografia e dos estudos
realizados pelo teórico conterrâneo Philippe Lejeune (L’autobiographie en
France, 1971; Le pacte autobiographique, 1975), cujo mérito consiste no
primeiro passo dado no que se refere aos estudos sobre o sujeito, ainda
novidade no início dos anos 1970.5
“O herói de um romance declarado pode ter o mesmo nome que o autor?”,
indaga Lejeune em seus estudos sobre a autobiografia, ainda desconsiderando
essa possibilidade. Doubrovsky parte desse ponto para dar início ao prolífico –
por vezes, prolixo – debate autoficcional, cujo intento era apresentar a
autoficção como resposta afirmativa à exequibilidade de homonimato entre
autor e narrador em um romance declarado.
A discussão tem se mantido desde então, e parte das divergências que a
alimentaram decorre de diferentes critérios para demarcar a fronteira que dá ao
texto o status de literário. Em retrospecto, a querela sobre a relação entre
autobiografia e autoficção traduz, sobretudo, uma disputa política. Mais de
quatro décadas após o surgimento do neologismo doubrovskyano e o alvoroço
da recepção crítica do conceito de autoficção, está claro que o desacordo se
origina em conceitos divergentes sobre a noção de literatura e o status de uma
obra considerada literária. Daí Jovita Noronha ter argumentado que

a autoficção se tornou uma ‘etiqueta’ cômoda para muitos autores que


querem falar sobre suas vidas, mas não querem assumir que fazem
autobiografia, pois estimam que só a ficção é arte, literatura... Temos,
então, de nos lembrar que isso envolve uma ‘briga’ política entre duas
concepções de literatura, de arte... (Noronha, apêndice deste livro).

A pertinência do argumento de Noronha leva-nos a pensar sobre as


diferentes concepções de literatura – escrita imaginativa e ficção; linguagem
literária e polissemia; literariedade/estranhamento/desvio;6 estética; território
contestado7 etc. De forma igualmente lúcida, Roberto Acízelo de Souza
observa que “sem uma teoria, a literatura é o óbvio” (Souza, 1986, p. 5). A
pergunta “o que é literatura?” é embaraçosa tanto para os leigos quanto para os
especialistas em literatura. Os leigos, segundo Acízelo, achariam uma pergunta
“boba”, pois a resposta parece óbvia: literatura é uma obra escrita. Entretanto,
“não formulando uma definição, limitam-se a alinhar exemplos – obra escrita,
romance, livro de poesias, livro de contos –, o que equivale a aceitar uma
espécie de noção difusa e culturalizada de literatura” (Souza, 1986, p. 5-6). No
caso dos especialistas, a pergunta é embaraçosa porque “a perturbação do
interrogado derivará de sua familiaridade com o caráter complexo da questão
proposta, cujos desdobramentos extrapolam muitíssimo o espaço incontroverso
de uma definição conclusiva” (Souza, 1986, p. 6).
A discussão adorniana sobre o que é arte se aplica à indagação do que seja
literatura. O conceito de arte foi evidente até Hegel, de acordo com eodor
W. Adorno. Depois, tornou-se impossível achar uma essência da arte, e
passamos a não saber mais defini-la: “tudo o que diz respeito à arte deixou de
ser evidente, tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o
seu direito à existência” (Adorno, [1970] 2008, p. 11). O lugar da arte parece,
então, ter se tornado incerto, e seu conceito efêmero, pois ela “tem o seu
conceito na constelação de momentos que se transformam historicamente;
fecha-se assim à definição” (Adorno, [1970] 2008, p. 12). A arte existe na
relação com o seu Outro, e a sua definição “é sempre dada previamente pelo
que ela foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou,
aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá, talvez, tornar-se” (Adorno,
[1970] 2008, p. 13).
A literatura também deixou de ser evidente, sobretudo para especialistas, e
há uma série de fatores que rondam a complexidade da questão, tais como:
cânone literário, relações de poder, meios de legitimação do autor e da obra
como literária, editoras e interesse/valor mercadológico, parâmetros de
julgamento de valor estético, comunidades interpretativas etc.
O conceito de literatura, tal como o de arte, é efêmero e muda
historicamente.8 Em meio aos impasses dessa indeterminação, está a
possibilidade de se considerar ou não a autobiografia e os relatos
autobiográficos como literatura. Levando em consideração as diferentes
conotações que a literatura assumiu historicamente e a sua instabilidade
conceitual, considerar um relato autobiográfico como literatura dependerá
exclusivamente do que se entende por literatura.
Nesse sentido, a literatura, conforme as observações de Eagleton, depende
da maneira pela qual alguém resolver ler, e não da natureza daquilo que é lido
(Eagleton, [1983] 2006, p. 12). “O que importa pode não ser a origem do
texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se
trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura” (Eagleton,
[1983] 2006, p. 13).
Eagleton mostra que a literatura pode ser “qualquer tipo de escrita que, por
alguma razão, seja altamente valorizada” (Eagleton, [1983] 2006, p. 14). E de
onde vem esse valor? O que ou quem legitima a literatura? Quem diz o que é
literatura? O valor, para Eagleton, é um termo transitivo, que “significa tudo
aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações
específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados
objetivos” (Eagleton, [1983] 2006, p. 17). Aí entram questões de ideologia e
poder. O autor entende por ideologia “a maneira pela qual aquilo que dizemos
e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações
de poder na sociedade em que vivemos”, ou seja, “os modos de sentir, avaliar,
perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e
reprodução do poder social” (Eagleton, [1983] 2006, p. 23). Na literatura,
percebemos que a legitimação pode vir por parte de um cânone literário ou
pelo próprio tempo, isto é, a literatura é legitimada por aquilo que se tornou.
Conceito igualmente fundamental e complexo, inerente à questão da
literatura, é o de ficção. É possível considerar literatura todos os textos de
ficção, entretanto tal concepção é insuficiente para entendermos a literatura,
pois o termo ficção pode sugerir diferentes práticas de escrita. Ficção pode ser
entendida como “escrita imaginativa”, isto é, criação, invenção, fabulação.
Nesse caso, o que define a ficção é o grau de afastamento do real. Ou podemos
considerar a ficção no sentido de modelar, dar forma, e, neste caso, a
autobiografia poderia ser considerada uma ficção, pois dá forma ao relato
retrospectivo da vida de uma personalidade.
Em torno do dissenso sobre o lugar da autobiografia na literatura gravitam
diversas questões que alimentam a discussão sobre a autoficção. A questão da
autoria está entre as principais.

A questão da autoria

O anonimato literário não nos é suportável.


Michel Foucault

Para compreender o contexto em que surge a autoficção, deve se ter clara a


inovação e a contribuição de Ph. Lejeune para a “guinada subjetiva”9 na
literatura. O argumento em defesa da “morte do autor”, formulado por Roland
Barthes nos anos 1960, propugnou a retirada do poder do autor sobre o texto
publicado e maior autonomia do texto e do leitor. Leitura acurada, como a de
Sérgio Luiz Prado Bellei sobre Barthes e Foucault, evidencia a especificidade
dos argumentos face à tônica do momento – a autoria. Barthes “percebe no
texto, agora pensado enquanto tecido de citações, precisamente aquele local de
diluição de autores, origens e presenças no qual o sujeito autoral desaparece”
(Bellei, 2014, p. 161). Foucault, por sua vez, na visão crítica de Bellei,
“expande e qualifica a proposta de Barthes ao insistir na necessidade de
suplementar a mera afirmação do desaparecimento do autor com um estudo
sistemático da dinâmica de sua morte e ressurreição no espaço textual” (Bellei,
2014, p. 161).
A despeito das teorias pós-estruturalistas, a autoria é peça fundamental nos
estudos das escritas do eu, seja na narrativa factual, caso da autobiografia, seja
na narrativa ficcional, caso da autoficção. Como nota Eurídice Figueiredo, “a
questão da escrita autobiográfica, sob o enfoque da ‘morte do autor’, seria uma
aporia” (Figueiredo, 2013, p. 14).
Em “O filósofo mascarado”, Foucault sugeriu levar ao extremo o argumento
barthesiano, propondo o seguinte exercício: que por um ano publicar-se-iam
apenas livros sem o nome do autor. Para o filósofo, o texto de um autor famoso
já não é mais lido, o que se lê é a “estrela” do autor, devido à sacralização deste.
Por isso, Foucault sugere responder às perguntas de uma entrevista realizada
pelo Le Monde, em 1980, na condição de anonimato, alegando “saudades do
tempo em que eu era absolutamente desconhecido e, portanto, aquilo que dizia
tinha alguma possibilidade de ser entendido”. A intenção é clara e vigorosa:
Foucault quer que o livro seja lido por si mesmo, sem as mediações que o
nome de autoria produz no exercício de compreensão do argumento. A defesa
do anonimato rigoroso implicaria na proibição de utilizar duas vezes o nome
de autor.
O filósofo vai adiante. Em O que é um autor?, argumenta que a categoria de
autor é uma invenção histórica decorrente da necessidade de individualização,
no âmbito da aliança entre capitalismo industrial burguês e da emergência das
noções de propriedade privada, lucro e individualidade. Bellei observa como a
categoria romântica de gênio reforça o conceito de autor-proprietário:

Um reforço ao conceito de autor proprietário de obras originais


apareceria mais tarde, com a utilização da categoria romântica de ‘gênio’,
a ser atribuída a alguns proprietários de obras com a finalidade de
valorização máxima dos produtos, tanto em termos literários como
mercadológicos, muito embora estes últimos não pudessem ser
confessados abertamente (Bellei, 2014, p. 163).

No Romantismo, momento histórico marcado pelo individualismo,


predomina a crença na expressão, “no ser que expressa sua alma profunda”;
nesse contexto, o anonimato torna-se impossível:

A noção de autor constitui o momento forte de individualização na


história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da
filosofia também, e na das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a
história de um conceito, de um gênero literário ou de um tipo de
filosofia, creio que tais unidades continuam a ser consideradas como
recortes relativamente fracos, secundários e sobrepostos em relação à
unidade primeira, sólida e fundamental, que é a do autor e da obra
(Foucault, 1992, p. 33).

Foucault analisa a libertação do tema da expressão, isto é, da noção de que


existe um ser que se expressa e um eu, leitor, que o entende. A ideia romântica
de gênio também é questionada, e o gênio passa a ser visto como uma
constituição, um “sujeito de escrita que está sempre a desaparecer”:

Primeiro, pode dizer-se que a escrita de hoje se libertou do tema da


expressão: só se refere a si própria, mas não se deixa porém aprisionar na
forma da interioridade; identifica-se com a sua própria exterioridade
manifesta. [...] Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação
do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linhagem; é
uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está
sempre a desaparecer (Foucault, 1992, p. 35).

Barthes também analisa o prestígio do indivíduo de acordo com as


transformações histórico-sociais, e considera o autor como uma personagem
moderna a quem foi atribuída importância:

Uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade


na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o
racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio
do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’.
Então é lógico que, em matéria de literatura, seja o positivismo, resumo
e ponto de chegada da ideologia capitalista, que tenha concedido maior
importância à ‘pessoa’ do autor (Barthes, 2004, p. 58).
Em suma, o autor é o nome produzido em um momento histórico no qual
o anonimato não é mais possível. A noção de propriedade faz com que o autor
seja um “sujeito proprietário” e, dessa forma, possua um livro tal como um
objeto e, sendo dono desse livro, passa a ter direitos autorais sobre ele, assim
como passa a existir a possibilidade de plágio:

Antes de mais, trata-se de objetos de apropriação; a forma de


propriedade de que relevam é de tipo bastante particular; está codificada
desde há anos. Importa realçar que esta propriedade foi historicamente
segunda em relação ao que poderíamos chamar a apropriação penal. Os
textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores
(outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e
sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de ser
punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram
transgressores. Na nossa cultura (e, sem dúvida, em muitas outras), o
discurso não era, na sua origem, um produto, uma coisa, um bem; era
essencialmente um ato – um ato colocado no campo bipolar do sagrado
e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo.
Historicamente, foi um gesto carregado de riscos antes de ser um bem
preso num circuito de propriedades (Foucault, 1992, p. 47).

A morte foucauldiana do autor é a percepção de que o autor é uma função,


uma palavra inventada para produzir certos efeitos, isto é, uma invenção
histórica, e não um sujeito absoluto ou uma existência:

[...] a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que


encerra, determina, articula o universo dos discursos: não se exerce
uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas
as épocas e em todas as formas de civilização; não se define pela
atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de
uma série de operações específicas e complexas; não reenvia pura e
simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários ‘eus’
em, simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de
indivíduos podem ocupar (Foucault, 1992, p. 56-57).

Já a morte barthesiana do autor afasta a figura do autor para chamar a


atenção para a linguagem e para a impessoalidade da escrita:

Apesar do império do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crítica


muitas vezes não fez mais do que consolidá-lo), é sabido que há muito
certos escritores vêm tentando abalá-lo. Na França, Mallarmé, sem
dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade
de colocar a própria linguagem no lugar daquele que era até então
considerado seu proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem
que fala, não o autor (Barthes, 2004, p. 59).

De acordo com Figueiredo (2013, p.17), “[...] Foucault e Barthes


dessacralizavam tanto a figura do autor quanto o estatuto da obra literária, para
tentar compreendê-los como parte de um processo muito mais coletivo e
histórico”. Bellei mostra as dificuldades enfrentadas ao questionar “as tradições
consolidadas do sujeito e do autor [...]. No próprio texto de Barthes, essas
dificuldades não deixam de se manifestar e acabam por tornar problemático o
uso do termo ‘morte’ no título do ensaio” (Bellei, 2014, p. 164). Para Bellei,
teorias literárias anteriores “já tinham percebido a possibilidade do
desaparecimento do autor no texto sem, contudo, decretar a sua morte. É o
caso, por exemplo, do conceito de ‘autor implícito’ (implied author) proposto
por Wayne C. Booth” (Bellei, 2014, p. 164).
É nesse ambiente de questionamento de tradições consolidadas que se
compreende melhor o menosprezo à forma autobiográfica e o contexto em que
Lejeune se insere, no início dos anos 1970. Lejeune sustentou a necessidade de
iniciar um estudo sério sobre a autobiografia, tão desprestigiada no campo
literário, a fim de pensar a prática autobiográfica típica da cultura francesa.
Pode-se dizer que seus estudos “ressuscitam” o autor, indo na contramão da
hermenêutica estruturalista.

Philippe Lejeune e o pacto autobiográfico

Na França – não sei se acontece o mesmo no Brasil – há muitos


preconceitos contra a autobiografia.
Philippe Lejeune

Lejeune10 inova com o seu “pacto autobiográfico”, uma concepção de


contrato de leitura entre o autor e o leitor, inadmissível no ideário vigente de
autonomia do texto:

O pacto autobiográfico é a afirmação, no texto, dessa identidade,


remetendo, em última instância, ao nome do autor, escrito na capa do
livro. [...] As formas do pacto autobiográfico são muito diversas, mas
todas elas manifestam a intenção de honrar sua assinatura. [...] A
autobiografia não é um jogo de adivinhação” (Lejeune, 2014, p. 30).

Tal contrato de leitura consiste nos princípios de veracidade e de identidade


entre Autor, Narrador e Personagem-protagonista (A = N = P). Ao tomar o
texto como a “verdade do indivíduo”, o leitor tem clara a diferença entre
romance e autobiografia (ou texto autobiográfico, memórias etc.). No
romance, o compromisso com a realidade é impreciso (em francês, ou). Na
autobiografia, o pacto de veracidade existe. Bastaria ver que pode produzir
consequências legais para o autor, que é responsável pelo que afirma e pode
responder em juízo por isso. O comprometimento com a verdade é um
princípio inexistente no gênero romanesco, caracterizado pela invenção e não-
identidade. Para Lejeune,

O que define a autobiografia para quem a lê é, antes de tudo, um


contrato de identidade que é selado pelo nome próprio. E isso é
verdadeiro também para quem escreve o texto. Se eu escrever a história
de minha vida sem dizer meu nome, como meu leitor saberá que sou eu?
É impossível que a vocação autobiográfica e a paixão do anonimato
coexistam no mesmo ser (Lejeune, 2014, p. 39).

Os estudos lejeunianos foram polêmicos no campo da Teoria da Literatura,


e é um equívoco ler seus argumentos sem contextualizá-los no debate
apresentado na seção anterior. Lejeune afirma que, nessa época, ele descobria
“que a autobiografia podia também ser uma arte. E que esta arte, novíssima,
ainda tinha de ser inventada” (Lejeune, 2013, p. 538).
Seus argumentos, contudo, foram sendo adaptados e modificados (por ele
mesmo). Na revisão d’O pacto autobiográ co, Lejeune percebe, por exemplo, a
insuficiência no que tange o vocabulário:

Ao longo do ‘Pacto’, agi como se a etiqueta ‘romance’ (tanto nos


subtítulos genéricos quanto no discurso crítico) fosse um sinônimo de
‘ficção’, em contraposição a ‘não ficção’, ‘referência real’. Ora, ‘romance’
tem também outras funções: designa a literatura, a escrita literária, em
contraposição à insipidez do documento, ao grau zero do testemunho.
Os dois eixos de significação estão frequentemente ligados, mas nem
sempre. A palavra ‘romance’ não é mais unívoca que a palavra
‘autobiografia’. A isso se acrescentam, nos dois casos, julgamentos de
valor: pejorativo (romance = invenção pura e simples; autobiografia =
insipidez do vivido não transformado) ou melhorativo (romance =
prazer de uma narrativa bem escrita e bem conduzida; autobiografia =
autenticidade e profundidade do vivido). Daí resultam muitas
ambiguidades (Lejeune, 2014, p. 64, grifos meus).

Em “Da autobiografia ao diário, da Universidade à associação: itinerários de


uma pesquisa”, Lejeune apresenta claro discernimento das limitações de seus
argumentos iniciais:
O meu primeiro livro, L’autobiographie en France, fazia um uso
demasiado normativo da definição. Esta franqueza era um pecado de
juventude, mas talvez uma necessidade para um livro que traçava pela
primeira vez a paisagem autobiográfica francesa: era preciso desenhar
um centro, uns arredores, umas fronteiras (Lejeune, 2013, p. 539).

Embora ciente da imaturidade juvenil, Lejeune está cônscio de ser fundador


dos estudos teórico-críticos da autobiografia e de seus gêneros vizinhos. A
terceira reedição de L’autobiographie en France, publicada em 2010, incorporou
um prefácio do autor, no qual argumenta defensivamente relembrando que em
1971 o seu estudo partira do zero,11 pois ainda não havia tantos estudos sobre a
questão do sujeito como hoje: “Assistimos a uma verdadeira explosão da escrita
autobiográfica, e o discurso crítico alçou voo: não, hoje, não partimos mais do
zero”12 (Lejeune, 2010, p. 7). A reedição, sem alteração, de seu livro expressa a
consciência de seu pioneirismo, quando estudar a autobiografia era novidade
audaciosa.
Entendendo o contexto em que Lejeune estava inserido, percebemos que
algumas fronteiras precisam ser delineadas quando se trata de um estudo
precursor. O mesmo procedimento pretendo adotar em relação ao estudo da
autoficção, pois, tratando-se de um tema ainda controverso na teoria literária,
merece maior precisão conceitual. Mesmo que Lejeune assuma sua postura
ingênua nos anos 1970, ele não renuncia ao que postulou, como fica explícito
no prefácio recém mencionado. A revisão dos estudos de um pesquisador não
invalida os seus argumentos primeiros. É inegável a importância de Lejeune
para a teoria literária, pois foi a partir do conceito de pacto autobiográfico que
emergiu o espaço para discutir diferentes pactos de leitura entre autor e leitor, e
que ensejou o debate sobre a autoficção. Como Lejeune rememorou, “foi à
frente de um dos meus quadros [teóricos] que Serge Doubrovsky teve a ideia
[...], para preeencher uma casa que eu dizia (imprudentemente) vazia, de
inventar a mistura que ele nomeou ‘autoficção’” (Lejeune, 2013, p. 539), que
discuto na seção seguinte.

As casas cegas

Cego estava eu.


Philippe Lejeune

Em seu projeto de fazer o quadro geral da autobiografia francesa, Lejeune


esboça as possibilidades de pactos de leitura (romanesco, autobiográfico e
indeterminado/zero), conforme os casos de semelhança e diferença entre os
nomes do autor e da personagem. Eis o famoso quadro dos estudos de Lejeune,
construído com base em dois critérios: (1) relação entre o nome da personagem
e nome do autor; (2) natureza do pacto firmado pelo autor.

Figura 1: “Quadro dos estudos de Lejeune”

Fonte: Lejeune, 1996, p. 28.

Ao todo, são nove casas, sete possibilidades e duas casas vazias. Na primeira
coluna do quadro, o romance é a única possibilidade quando o nome da
personagem é diferente do nome do autor. Quando os nomes do autor e da
personagem divergem, a autobiografia não é possível. Os quadros 1a e 1b
indicam romances cujos pactos são “romanesco” e – o assim chamado – “pacto
zero”, respectivamente. No primeiro, há atestado de ficcionalidade, uma vez
que o nome do autor é diferente do nome da personagem. Já no segundo caso
não há atestado de ficcionalidade, que são os casos em que o nome da
personagem não aparece. Segundo Lejeune,

Pouco importa, então, que haja ou não atestado de ficcionalidade (1a ou


1b). Que a história seja apresentada como verdadeira (manuscrito
autobiográfico que o autor ou editor tenha encontrado em um sótão
etc), ou que seja apresentada como fictícia (mas que o leitor,
relacionando-a com o autor, acredite ser verdadeira), – de qualquer
forma, não há identidade entre o autor, o narrador e o herói (Lejeune,
2014, p. 33-34).

Pierre Marivaux (1688-1763), por exemplo, em La vie de Marianne ou les


aventures de Madame la comtesse de **, utiliza o prefácio como forma de
encenação de si, advertindo o leitor de que se tratará de um “manuscrito
encontrado”. Casos como este apresentam a história como verdadeira, porém,
de acordo com os critérios de Lejeune, o fato de não atestar ficcionalidade não
muda o resultado das combinações de seu quadro.
A segunda coluna apresenta um caso mais complexo. A combinação entre
ausência do nome da personagem e o pacto zero torna o caso indeterminado.
Em 2a romance, o pacto é romanesco e a natureza ficcional do livro é indicada
na capa ou na página de rosto. Em 2b indeterminado, a personagem não tem
nome e o autor não firma pactos, resultando em total indeterminação. E em 2c
autobiogra a, a personagem não tem nome na narrativa, mas o autor declarou-
se explicitamente idêntico ao narrador em um pacto inicial (Lejeune, 2014, p.
33-35).
A terceira e última coluna apresenta as situações em que o nome da
personagem é o mesmo nome do autor. Os casos 3a e 3b são de autobiografia.
No primeiro (3a), o pacto é ausente, ou seja, o leitor constata a identidade
autor-narrador-personagem, embora esta não seja objeto de nenhuma
declaração solene. O segundo (3b) é o caso mais comum, cujo exemplo
perfeito é As con ssões, de Rousseau: “O pacto está presente desde o título, é
desenvolvido no preâmbulo e confirmado ao longo do texto, pelo emprego
‘Rousseau’ e ‘Jean-Jacques’” (Lejeune, 2014, p. 37). O ponto mais importante
para o debate sobre a autoficção é o campo vazio nesta terceira coluna. Por
considerar impossível combinar a identidade do nome da personagem e do
autor com o pacto romanesco, Lejeune excluiu a possibilidade de ficção nos
casos de identidade onomástica. A pergunta “O herói de um romance
declarado pode ter o mesmo nome que o autor?”, respondida por Doubrovsky,
havia sido formulada nesse momento.
O termo autoficção foi cunhado por Doubrovsky para preencher a casa
vazia da terceira coluna do quadro. Posteriormente, Lejeune reconheceu a
imprecisão do quadro e o erro em recusar a possibilidade de ambiguidades em
pactos autor/leitor:

Em cada casa inscrevi o efeito produzido. Há duas casas ‘cegas’ que


correspondem a casos ‘excluídos por definição’. Cego estava eu. Primeiro
porque salta aos olhos que o quadro está malfeito. Para cada eixo,
propus uma alternativa (romanesco/autobiográfico para o pacto;
diferente/semelhante para o nome). Pensei na possibilidade de nem um
nem outro, mas esqueci a possibilidade de um e outro ao mesmo tempo!
Aceitei a indeterminação, mas recusei a ambiguidade... (Lejeune, 2014,
p. 68).

Em entrevista à Jovita Noronha, Lejeune analisa os dois polos – texto


autobiográfico e texto ficcional –, o compromisso com a verdade do primeiro e
descompromisso do segundo, bem como a possibilidade de posições
intermediárias e ambiguidades, como é o caso da autoficção:

[...] Em 1971, eu quis fazer o quadro geral da autobiografia francesa, o


que nunca havia sido feito. Para isso, precisava de uma definição. Fiquei
espantado ao constatar que o texto autobiográfico e o texto ficcional
podiam obedecer às mesmas leis. A diferença entre eles não estava no
texto, mas no que Gérard Genette chamou de paratexto, no
compromisso do autor com o leitor em dizer a verdade sobre si mesmo.
É completamente diferente do compromisso que se tem na ficção – que
é antes um descompromisso, a instauração de um jogo, de um
distanciamento. E a atitude do leitor, seu tipo de investimento é
também muito diferente. É claro que entre esses dois polos, pode-se ter
posições intermediárias, comprometimentos, ambiguidades – tudo
aquilo que se define hoje com o termo vago de ‘autoficção’. Mas as
posições intermediárias nascem desses polos, elas não existiriam sem eles
(Lejeune, 2002, p. 22).

A primeira definição de autobiografia – “relato retrospectivo em prosa que


uma pessoa real faz de sua própria existência” – feita por Lejeune recebeu
muitas críticas por parte dos estudiosos da autobiografia, inclusive no Brasil.
Para Jaime Ginzburg,13 essa definição é herdeira do racionalismo cartesiano e
do iluminismo. Na teoria da autobiografia, a “orientação cartesiana se associa à
expectativa de uma imagem ordenada e totalizante do narrador” (Ginzburg,
2012, p. 163). O sujeito cartesiano responde sem problemas à pergunta sobre
sua identidade, por esta ser estável e possibilitar a construção de uma imagem
ordenada e totalizante de si.
Grande Sertão: Veredas,14 de João Guimarães Rosa, é um perfeito exemplo
literário de ruptura com o pensamento cartesiano. O narrador Riobaldo revela
sua percepção moderna de sujeito como um ensinamento da vida, ao reconhecer
a instabilidade e incompletude das pessoas e apreciar com otimismo e
sensibilidade estética tais atributos:

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, no mundo, é isto:


que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas –
mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior.
É o que a vida me ensinou (Rosa, [1956] 2001, p. 39).

As teorias contemporâneas questionam a possibilidade da autobiografia por


considerarem o sujeito pós-moderno fragmentado, instável e desordenado.
Ginzburg observa que “a fragmentação pode ser indicação de ruptura com a
concepção cartesiana de sujeito” (Ginzburg, 2012, p. 169). É justamente essa
ruptura que a autoficção, como conceito teórico e prática literária, operaria.
Tais teorias, às quais Doubrovsky se filia, trabalham com a ideia de “uma
variação pós-moderna da autobiografia”, cujo argumento está pautado na
impossibilidade de reconstituição do eu tal qual concebido no sujeito
cartesiano. Entretanto, é preciso lembrar que levar em consideração a
fragmentação e mobilidade do sujeito não deveria ser o mesmo que ignorar a
diferença existente entre uma narrativa referencial e uma ficcional. Não é raro
estudiosos da autoficção equalizarem os protocolos de leitura biográfico e
ficcional. Todavia, autobiografia e autoficção não são práticas idênticas, e essa
diferença merece ser considerada. A aparição de uma [a autoficção] não exclui a
existência da outra [a autobiografia]. A autoficção vem para nomear obras antes
inclassificáveis, o que não é o caso das autobiografias. A autoficção não vem
para substituir a autobiografia porque a proposta dela é outra. A grande ironia
da autoficção reside justamente no fato de uma narrativa ficcional, um
romance declarado, ter como herói o próprio autor – ou, pelo menos, o mesmo
nome do autor –, de modo a estabelecer uma ambiguidade irresolúvel. Existe
um efeito irônico15 nesse tipo de narrativa que é próprio da autoficção.

Guinada subjetiva

Abriu-se um novo capítulo, que poderia se chamar ‘O sujeito


ressuscitado’.
Beatriz Sarlo
Nos anos 1970 e 1980, houve uma inflexão em direção ao subjetivismo e,
na sociologia da cultura e nos estudos culturais, “a identidade dos sujeitos
voltou a tomar o lugar ocupado, nos anos 1960, pelas estruturas”, nos termos
de Beatriz Sarlo (2007). A autora examina as razões da revalorização da
primeira pessoa como ponto de vista, da confiança no relato da experiência
individual como ícone da Verdade, em que o sujeito narra sua vida para
preservar lembranças ou entender o passado.
Em contratendência à “morte do sujeito” dos anos 1960, Sarlo aponta a
revalorização desse sujeito a partir da década seguinte, quando:

Produziu-se no campo dos estudos da memória e da memória coletiva


um movimento de restauração da primazia desses sujeitos expulsos
durante anos anteriores. Abriu-se um novo capítulo, que poderia se
chamar ‘O sujeito ressuscitado’ (Sarlo, 2007, p. 30).

As críticas da subjetividade e da representação feitas por Paul de Man e


Jacques Derrida negam a possibilidade de relatos autobiográficos cuja relação
entre um eu textual e um eu da experiência vivida seja verificável. Segundo De
Man, as autobiografias produzem “a ilusão de uma vida como referência”,
sendo assim, “a voz da autobiografia é um tropo que faz vezes de sujeito
daquilo que narra, mas sem poder garantir a identidade entre sujeito e tropo”
(De Man apud Sarlo, 2007, p. 31). A crítica de Paul de Man à autobiografia
provavelmente seja ápice do desconstrutivismo literário, ao equiparar a
autobiografia à ficção em primeira pessoa e inviabilizar o pacto referencial entre
autor, narrador e personagem:

Como na ficção em primeira pessoa, tudo o que uma ‘autobiografia’


consegue mostrar é a estrutura especular em que alguém, que se diz
chamar eu, toma-se como objeto. Isso quer dizer que esse eu textual põe
em cena um eu ausente, e cobre seu rosto com essa máscara (Sarlo,
2007, p. 31).
Nessa chave, a autoficção seria o neologismo necessário para mostrar que
não é mais possível considerar a natureza contratual do gesto biográfico ou a
possibilidade de o discurso ser a totalização do singular. O conceito de
autoficção seria um desdobramento lógico da crítica pós-moderna e
desconstrutivista e estaria alinhado à crítica de Derrida ao logocentrismo, à
geometrização e fechamento da obra e ao sistema cristalizado que prolonga a
tradição metafísica da oposição aparecimento-velamento.
Entretanto, seria mais prudente ponderar tais asseverações, pois corremos o
risco de banalizar o conceito de autoficção, considerando-o como um “conceito
guarda-chuva” para igualar todos os tipos de narrativas – referenciais, ficcionais
e híbridas. Talvez, borrar as fronteiras entre fato e ficção não seja o melhor
caminho. Os trabalhos de Marjorie Worthington (2018) e Françoise Lavocat
(2016) vão na contramão dos discursos que abolem qualquer demarcação entre
o fato e a ficção, e estabelecem uma fronteira sutil, porém necessária, entre
narrativas ficcionais e referenciais, considerando os diferentes efeitos/protocolos
de leitura.
Mesmo que o neologismo – autoficção – esteja ligado às noções pós-
modernas de sujeito, de linguagem e de verdade, receio que assumamos a
autoficção como substituta da autobiografia e de todas as escritas
autobiográficas, decretando mais uma morte na teoria da literatura. Como
afirmei antes, a crítica de Paul de Man parece ser o ápice do descontrutivismo
literário. Fomos conduzidos durante um bom tempo a borrar os limiares
genéricos, de forma um tanto radical. Agora, talvez, careça de levar em conta a
necessidade de se criar algumas fronteiras em um estudo que é precursor. A
diferenciação entre autobiografia, ficção em primeira pessoa – que pode ser um
romance não necessariamente autobiográfico – e autoficção se faz necessária,
sobretudo no contexto atual em que estudiosos assumem posições extremas,
como afirmações de que “tudo é ficção” ou que “toda ficção é autobiográfica”.
A sutileza nunca foi tão bem-vinda como no estágio atual da teoria literária.
Reconhecer que toda a ficção carrega traços de seu autor não deveria ser o
mesmo que afirmar que toda a ficção é autobiográfica (isto é, que ela não é
“100% ficção”). Se é inevitável que a imaginação do autor-criador passe por
sua própria experiência, isso não deveria ser condição suficiente para equalizar
as diferentes produções textuais.
A princípio, a autoficção não surge para questionar a (im)possibilidade de
uma escrita autobiográfica, verificável e totalizante, e, com isso, substituí-la, até
mesmo porque a autobiografia já tem seu espaço garantido, não apenas no
quadro de Lejeune, mas também na longa tradição da cultura francesa, por
exemplo. Enfim, a autobiografia é um gênero consolidado. A autoficção surge
para preencher a lacuna desse quadro, o elemento faltante, a “casa cega”, que
são os casos em que existe semelhança entre o nome do autor e da personagem,
e a natureza do contrato é romanesca. Com o tempo, Doubrovsky foi
aprimorando o conceito de autoficção e associando-o com as teorias
desconstrutivistas e com a psicanálise. Mesmo assim, só é possível equacionar
ficção em primeira pessoa e autobiografia sob pena de se perder o que há de
singular na autoficção. Afinal, a autoficção não é somente um novo termo para
a escrita autobiográfica, agora amparada pelas fundações filosóficas e roupagem
terminológica do pós-modernismo. Bem definidas, autobiografia e autoficção,
narrativas referenciais e narrativas ficcionais, são práticas literárias diferentes. Se
por um lado, a autoficção mostra uma escrita do eu em que o autor não
controla o texto, não controla a instabilidade da linguagem que é feita de jogos,
que é insegura, abundante e demasiada; por outro lado, o autor deve ser
considerado. Uma vez ressuscitado, o autor pode não ter controle absoluto do
texto, porém ele tem um projeto deliberado.
Françoise Lavocat, em Fait et ction: por une frontière (2016), resolve de
modo convincente este impasse ao demonstrar que tais fronteiras, entre fato e
ficção, realidade e imaginário, são necessárias cognitiva, conceitual e
politicamente. Eliminá-las reduziria o prazer de se passar de um mundo ao
outro. Seu argumento é o de que “a ficção é o lugar de uma negociação
constante”, do equilíbrio entre “a proteção da vida privada e a liberdade de
expressão” (Lavocat, 2016, p. 276).
O último capítulo deste livro, “Por um conceito de autoficção”, se dedica a
esclarecer tais fronteiras, com intuito de estabelecer as arestas necessárias para
que o debate autoficcional deixe de ser controverso.

Serge Doubrovsky e a autoficção

Eu escrevo para morrer menos.


Serge Doubrovsky

A escrita de Fils teve por objetivo exemplificar, na prática, o que vinha a ser
a autoficção. A primeira definição de autoficção disponível ao público-leitor é a
seguinte:

Autobiografia? Não, esse é um privilégio reservado aos importantes desse


mundo, ao fim de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de
acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter
confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da
sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro,
fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou
de depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda:
autofricção, pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu
prazer (Doubrovsky, 1977, capa).16

Desde que Doubrovsky17 nomeou este gênero (um novo gênero? Uma
forma de realçar a confusão e hibridização de todos os genêros? Uma
metamorfose do romance?), as discussões sobre a autoficção têm ganhado
espaço nos estudos críticos e literários, sendo a França e o Canadá francês os
precursores nesse debate.
Se a autobiografia é “um privilégio reservado aos importantes desse mundo,
ao fim de suas vidas, e em belo estilo”, saliento a primeira diferença essencial
entre a autobiografia e a autoficção: o movimento entre vida e obra. Podemos
dizer que o movimento da autobiografia parte da vida em direção ao texto,
uma vez que é a vida de uma celebridade que chama a atenção (em geral,
alguém famoso, “digno de uma autobiografia”, como os artistas, músicos,
jogadores de futebol, políticos etc.) e, por ser “importante desse mundo”,
resulta no texto autobiográfico. O nome do autobiografado virá em letras
garrafais na capa do livro acompanhado de uma fotografia. O
leitor/consumidor, no caso, compra o livro para saber mais sobre a vida
daquela pessoa importante, seja importância histórica, política, como atleta,
como alguém que superou alguma doença ou algum limite, pela fama, pela
carreira etc. Nesse sentido, pouco importaria o estilo de escrita, o trabalho com
a linguagem, o prazer estético, porque o leitor está atrás do registro da vida
daquela pessoa específica, desse alguém que desperta muito interesse por outro
talento que não o de escritor. Quando o talento (de escritor) não é o
despertador de interesse no leitor, entram no jogo da sedução a fofoca
midiática, o escândalo ou a vida incomum/extraordinária de alguém.
Autobiografias de prostitutas ou pessoas com apelos midiáticos têm sido
comum. O movimento da autoficção parece ser diferente: do texto, da obra
literária, para a vida. Em geral, um escritor que ficcionaliza de forma deliberada
fragmentos de sua vida em uma narrativa para ser lida como romance. Essa
ênfase no romance significa que o leitor está em busca da forma, do modo
como o texto faz sentido, seus símbolos e suas metáforas. Um bom escritor
pode realçar sua biografia por meio do texto ficcional, mas é sempre o texto
literário que está em primeiro plano. Os biografemas18 estão ali funcionando
como estratégia literária de ficcionalização de si.
De uma maneira sintética, teríamos o seguinte quadro para ilustrar os
movimentos recém mencionados:
Quadro 1: “Movimentos da autobiografia e da autoficção”
AUTOBIOGRAFIA: VIDA → TEXTO
AUTOFICÇÃO: TEXTO → VIDA
Elaboração da autora.

Ao analisar os efeitos irônicos da autoficção, M. Worthington afirma que a


qualidade da escrita é menos importante nas narrativas referenciais, as quais ela
chamará de “memoir”: “Memoirs seems [...] to be the term of art that is
referential or mostly so, but which may at times venture into narrative that
borders on – but does not quite become – fiction” (Worthington, 2017, p.
472). O argumento de Worthington corrobora com o nosso dos movimentos
entre vida e obra. Se o movimento da autobiografia é da vida para a obra, e o
que leva o leitor a comprar o livro é o interesse na personalidade/no
autobiografado, a qualidade da escrita fica em segundo plano. Mesmo não bem
escrita, a narrativa pode ser comovente, pode funcionar e virar um best-seller.
De acordo com Worthington, isso só acontece nas narrativas referenciais
(memoirs), por conta do “poder da verdade” (truth power): “much of a
memoir’s power derives from the accuracy of its correspondence to the world
outside itself ” (Worthington, 2017, p. 474). Já no caso da ficção, a qualidade
da escrita é primordial. O leitor está atrás de um bom livro, do prazer estético,
da “aventura da linguagem” (Doubrovsky). Se na autoficção o movimento é da
obra para a vida, é porque o talento como escritor é o mais importante: “If a
fictional narrative is well written, it can be moving; if a narrative can make
claims to Truth, it can be moving without being particularly well written”
(Worthington, 2017, p. 474). A estudiosa faz referência ao argumento de Ben
Yagoda (2009) de que “memoir” está para ficção, assim como fotografia está
para pintura. Ficção e pintura exigem, portanto, mais talento.

Quadro 2: “Memoir X ficção”


PODER DA VERDADE X PODER DO TALENTO
MEMOIR X FICÇÃO
FOTOGRAFIA X PINTURA
Elaboração da autora.

As primeiras indefinições da autoficção surgem com seu próprio inventor.


Doubrovsky se contradiz conceitualmente em diversos momentos. No
colóquio “O último eu” (Mon dernier moi), posteriormente publicado em
2010, Doubrovsky – consciente da confusão teórica em torno da autoficção –
retoma a sua definição original a fim de esclarecer aquilo que escapou ao seu
próprio criador:

As interpretações variam e, por vezes, se contradizem. Eu gostaria de


retornar, para concluir, a meu ponto de partida, pois não sou de modo
algum o inventor dessa prática da qual já citei ilustres exemplos: sou o
inventor da palavra e do conceito. Pessoalmente, limito-me sempre à
definição que dei – e que foi, aliás, reproduzida pelo dicionário Robert
Culturel: ‘Ficção, de fatos e acontecimentos estritamente reais’. Esse eixo
referencial me parece ser a essência do gênero, se é que existe gênero
(Doubrovsky, [2010] 2014, p. 120).

Para Doubrovsky [o da fase inicial], a autoficção é uma história em que “a


matéria é inteiramente autobiográfica, a maneira inteiramente ficcional”
(Doubrovsky, 2011, p. 24).19 Por isso, é sempre importante levarmos em
consideração que as primeiras definições de autoficção sofreram atualizações ao
longo dos últimos quarenta anos. Nesse sentido, Patrick Saveau (1999) mostra
que a autoficção doubrovskyana não é mais do que um exemplo entre tantos
outros, pois em sua obra a palavra “‘ficção’ não é tomada no sentido de se
inventar, mas no sentido de modelar, de dar uma forma”20 (Saveau, 1999, p.
148). Dessa maneira, nesse estágio da definição, a autoficção não é invenção, é
matéria inteiramente autobiográfica em forma de romance.
Quadro 3: “Autoficção doubrovskyana”
MATÉRIA → AUTOBIOGRÁFICA
AUTOFICÇÃO
DOUBROVSKYANA MANEIRA → FICCIONAL (≠
INVENÇÃO)
Elaboração da autora.

A obra literária de Doubrovsky retrata o que ele entende por autoficção, seu
projeto literário. No auge de sua vida, o autor fala sobre seus oito romances e
como eles realizam uma forma de luto:

Minha obra autoficcional, que conta oito romances, passou pelas fases
sucessivas de minha vida. É uma escrita a posteriori. Princípio que
formulei assim: ‘Quando uma página de minha vida é virada, é preciso
escrevê-la’. É o que tem regrado a aparição dos meus livros, são as
diferentes etapas de minha vida, logo após que cada uma seja resolvida.
Escrever é uma forma de ressuscitá-las e de conservá-las. Sem dúvida
para escapar do tempo, do desaparecimento. Eu disse em Fils: ‘Eu
escrevo para morrer menos’. Pode ser ilusão, mas incitação e excitação de
milhares de páginas [...]. Cada uma de minhas obras realizam um
trabalho de luto e é sempre o luto de uma mulher. A começar, é claro,
pela minha mãe cuja presença transformada em falta inspirou Fils e Le
monstre. [...] Depois de oito anos de relação intensa e tensa, Rachel me
deixa: é Un amour de soi. Nove anos de casamento feliz e infeliz: é Le
livre brisé. Depois de dez anos de um adultério oficial e fixo, ‘Ela’ se
suicida: é L’après-vivre, que é premonição. Em Laissé pour conte os fatos
todos reaparecem por fragmentos. [...] Un homme de passage vem para
fechar todos esses episódios, dessa vez a morte será a minha e de repente,
em flashes, em pedaços, todas as memórias de uma vida me assaltam
(Doubrovsky, 2011, p. 26-27).
Outra “fase” de Doubrovsky é marcada pela mudança de seu conceito
inicial de ficção. Ao passar do sentido de “modular, dar forma” da ficção ao
sentido de “criação”, Doubrovsky instaura divergências teóricas – até hoje não
resolvidas – sobre o que é autoficção. Ele afirma, agora, se tratar de “uma
‘história’ que, qualquer que seja o acúmulo de referências e sua precisão, nunca
aconteceu na ‘realidade’, e cujo único lugar real é o discurso em que ela se
desenrola” (Doubrovsky, 1988, p. 73, grifo meu).
No já mencionado “Mon dernier moi” (2010), ao fim de quarenta anos de
prática autoficcional, Doubrovsky subverte completamente suas noções de
autoficção anteriores, ao afirmar que:

No fundo, não há oposição entre autobiografia e romance. Desde o


início de suas longas e frutuosas pesquisa, Philippe Lejeune entregou, se
é que posso dizer assim, o ouro ao bandido. ‘Assim a história da
autobiografia só pode ser concebida em relação à história geral das
formas da narrativa, do romance, do qual ela é apenas no final das
contas um caso particular’. Toda autobiografia participa do romance
por duas razões. Uma formal: a autobiografia tal como se constituiu no
século XVIII, com e depois de Rousseau, toma de empréstimo a forma
da narrativa em primeira pessoa encontrada nos romances da época.
Mas há também outra razão que se relaciona à natureza do
empreendimento. Nenhuma memória é completa ou fiável. As
lembranças são histórias que contamos a nós mesmos, nas quais se
misturam, sabemos bem isso hoje, falsas lembranças, lembranças
encobridoras, lembranças truncadas ou remanejadas segundo as
necessidades da causa. Toda autobiografia, qualquer que seja sua
‘sinceridade’, seu desejo de ‘veracidade’, comporta sua parte de ficção
(Doubrovsky, [2010] 2014, p. 121, grifo meu).

Em suma, enquanto o conceito inicial marcava nitidamente a diferença


entre ambas as práticas – autobiográfica e autoficcional –, inclusive diferenças
estéticas, o teórico acaba equalizando autobiografia e autoficção, considerando
que toda a autobiografia é ficção, anulando o valor heurístico do debate
autoficcional. Em outro momento, ele afirma a impossibilidade da
autobiografia, acreditando que toda a narrativa de si é modelagem:

Mas então, me perguntarão com todo o direito: se o senhor considera as


autobiografias clássicas como narrativas-romances de si, o que as
diferencia da autoficção moderna e pós-moderna?

Responderei que, nesse meio-tempo, a relação do sujeito consigo


mesmo mudou. Houve um corte epistemológico, ou mesmo ontológico,
que veio intervir na relação consigo mesmo. Digamos, para resumir, que
nesse meio-tempo houve Freud e seus sucessores. A atitude clássica do
sujeito que tem acesso, através de uma introspecção sincera e rigorosa, às
profundezas de si passou a ser uma ilusão.

O mesmo acontece com relação à restituição de si através de uma


narrativa linear, cronológica, que desnude enfim a lógica interna de uma
vida. A consciência de si é, com muita frequência, uma ignorância que
se ignora. O belo modelo (auto)biográfico não é mais válido. [...]
reinventamos nossa vida quando a rememoramos. Os clássicos o faziam
à sua maneira, em seu estilo. Os tempos mudaram. Não se escreve mais
romances da mesma forma que nos séculos XVIII ou XIX. Há,
entretanto, uma continuidade nessa descontinuidade, pois,
autobiografia ou autoficção, a narrativa de si é sempre modelagem,
roteirização romanesca da própria vida (Doubrovsky, [2010] 2014, p.
122-124, grifos meus).

Uma variante pós-moderna


Doubrovsky apresentou uma definição alternativa para a autoficção, que é
utilizada com frequência pelos estudos literários. Em entrevista a Philippe
Vilain, o teórico referiu-se à autoficção como

Uma variante pós-moderna da autobiografia na medida em que ela não


acredita mais numa verdade literal, numa referência indubitável, num
discurso histórico coerente e se sabe reconstrução arbitrária e literária de
fragmentos esparsos de memória (Doubrovsky, in Vilain, 2005, p. 212).

A definição enfatiza o texto da autoficção, que deve ser lido como romance,
e não como recapitulação histórica, e a memória, falível e lacunar, capaz de
reconstruir apenas fragmentos. No Colóquio de Cerisy, Doubrovsky traz à
baila a fragmentação como atributo fundamental da autoficção:

Não percebo, de modo algum, minha vida como um todo, mas como
fragmentos esparsos, níveis de existência partidos, frases soltas, não
coincidências sucessivas, ou até simultâneas. É isso que preciso escrever.
O gosto íntimo da existência, e não sua impossível história
(Doubrovsky, [2010] 2014, p. 123, grifo meu).

Doubrovsky reforça o estatuto literário da autoficção – “reconstrução


arbitrária e literária” – e o malogro da crença em conceitos estanques, como
verdade e identidade.
Essa perspectiva reflete um movimento mais amplo na filosofia, que leva de
roldão também a literatura. O debate sobre a autoficção gravita em torno da
mudança no contexto sócio-histórico-cultural, a assim chamada sociedade
“pós-moderna” (Jean-François Lyotard), “neobarroca” (Omar Calabrese), a “alta
modernidade” (Anthony Giddens) ou, se preferem, a “modernidade líquida”
(Bauman), cada concepção com sua peculiaridade, mas que indaga crenças
anteriores que, nos dias de hoje, já não suprem mais as nossas necessidades, as
nossas lacunas e as nossas questões existenciais.
Quando falamos em “pós-moderno”, queremos nos referir a uma maneira
de ler e de se dizer no mundo. O sujeito pós-moderno não é mais o sujeito
racional, consciente e pleno. A identidade é construída historicamente e o
sujeito pós-moderno “assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas a redor de um ‘eu’ coerente”, nos termos de
Stuart Hall ([1992] 2006, p. 13). A “confortadora narrativa do eu”, diz o autor,
é uma “cômoda estória sobre nós mesmos” se acreditamos em uma identidade
unificada desde o nascimento até a morte (o que é uma fantasia).
Doubrovsky, no mesmo diapasão, se insere nesse movimento filosófico que
postula a alteração radical das concepções de sujeito e indica que, se a narrativa
é fragmentada, também o indivíduo o é:

A narração não é uma cópia, ela é recriação de uma existência através


das palavras, reinvenção da linguagem pelo Eu do discurso e seus Eus
sucessivos. Por isso, é o modo ou modelo de narração que molda a
‘nossa’ vida. A autobiografia clássica, segundo a fórmula de Jean
Starobinski, é a biografia de uma pessoa feita por ela mesma. Ela será,
portanto, cronológica e lógica, e se esforçará, apesar das inevitáveis
lacunas da memória, para seguir o curso de uma vida, empenhando-se
em esclarecê-la através da reflexão e da introspecção. Pessoalmente,
favoreci uma outra abordagem; meu modo ou modelo narrativo passou
da HISTÓRIA para o ROMANCE. A própria concepção do sujeito
mudou. De unidade através da narrativa, ele se tornou quebrado,
dividido, fragmentado, em caso extremo, incoerente (Doubrovsky,
2011[a], p. 22, grifos meus).21

Na arte, houve desdobramentos homólogos: a crise da representação, a


mescla de gêneros, a ruptura com o estruturalismo, o retorno à subjetividade, o
ecletismo, a intertextualidade, a paródia, o pastiche, o fim de hierarquias (alta e
baixa cultura), o relativismo estético, o anarquismo epistemológico, a crise da
ideia de verdade absoluta e o fim das narrativas legitimadoras. É a mudança no
cenário cultural de meados dos anos 1980 e os dilemas da subjetividade
contemporânea que leva Leonor Arfuch (2010) a rememorar que, àquela época

Apresentavam-se ali as (mais tarde) célebres argumentações sobre o


fracasso (total ou parcial) dos ideais da Ilustração, das utopias do
universalismo, da razão, do saber e da igualdade, dessa espiral
ininterrupta e ascendente do progresso humano. Uma nova inscrição
discursiva, e aparentemente superadora, a ‘pós-modernidade’, vinha
sintetizar o estado de coisas: a crise dos grandes relatos legitimadores, a
perda de certezas e fundamentos (da ciência, da filosofia, da arte, da
política), o decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a
valorização dos ‘microrrelatos’, o deslocamento de vozes, da
hibridização, da mistura irreverente de cânones, retóricas, paradigmas e
estilos (Arfuch, 2010, p. 17, grifos meus).

Embora rejeitando o corte radical com a modernidade – daí a recusa do


termo pós-moderno em favor de alta modernidade –, o sociólogo inglês
Anthony Giddens (2002) trouxe à luz inúmeras obras com propósito de
tipificar esse novo estágio de desenvolvimento das sociedades capitalistas, em
que

[...] A dúvida, característica generalizada da razão crítica moderna,


permeia a vida cotidiana assim como a consciência filosófica, e constitui
uma dimensão existencial geral do mundo social contemporâneo. A
modernidade institucionaliza o princípio da dúvida radical e insiste em
que todo conhecimento tome a forma de hipótese – afirmações que
bem podem ser verdadeiras, mas que por princípio estão abertas à
revisão e podem ter que ser, em algum momento, abandonadas
(Giddens, 2002, p. 10, grifo meu).
A metáfora da liquidez, ponto de partida da vasta obra do sociólogo
polonês Zigmunt Bauman, é o exemplo mais conhecido. A modernidade
líquida retrata a mobilidade e inconstância da vida contemporânea, fluidos que
“não fixam o espaço nem prendem o tempo”, “não se atêm muito a qualquer
forma e estão constantemente prontos a mudá-la”, eles “escorrem, esvaem-se,
respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam”; e, pensando em
sua relação com o tempo, suas descrições “são fotos instantâneas, que precisam
ser datadas” (Bauman, 2001, p. 8).
Daí Sarlo (2007) questionar a contradição entre a firmeza do discurso e a
mobilidade do vivido no relato da experiência. A narração inscreve a
experiência no tempo da lembrança:

A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença


real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência,
mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o
aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu
esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A
narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu
acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo
e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda
uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se
atualizar (Sarlo, 2007, p. 24-25).

O ambiente intelectual em que germinam essas reflexões filosóficas e


sociológicas que dá vezo a cunhar noções e pensar a autoficção como “variante
pós-moderna da autobiografia”. O depoimento de Doubrovsky sobre seu caso
particular indica claramente a filiação dos movimentos teóricos:

No meu caso particular, a escrita autoficcional abole a estrutura


narrativa linear, rompe com a sintaxe clássica, substituindo-a por um
encadeamento de palavras por consonância, assonância ou dissonância; a
frase é sempre guiada, construída, em uma sucessão de parônimos,
vírgulas, pontos, espaços vazios, eventual desaparecimento de toda
sintaxe, associações de palavras como as associações livres existentes na
Psicanálise. A escrita tenta traduzir a fragmentação, a quebra do eu, a
impossibilidade de encontrá-lo numa bela unidade harmoniosa. Nesse
surgimento inesperado de palavras e de pensamentos desconexos revela-
se uma alteridade fundamental do sujeito ao longo do tempo
(Doubrovsky, 2011[a], p. 26, grifos meus).22

Manuel Alberca (2007) vai ao cerne da questão ao considerar a autoficção


literária e plástica como fenômeno cultural que guarda evidente sintonia com
algumas das principais bases do ideário pós-modernista, o sujeito neo-narcisista
e a concepção do real como simulacro. A autoficção forma uma determinada
imagem de nós mesmos e de nosso tempo, consequência da nova configuração
de sujeito e de sua nova escala de valores. Representa, no plano literário, o
mundo atual, e por isso revela chaves interpretativas e ajuda a melhor
reconhecê-lo e compreendê-lo.
Claro está que, para Doubrovsky (2011[a], p. 25), “a autobiografia não é
nem mais verdadeira, nem menos fictícia que a autoficção. E por sua vez, a
autoficção é finalmente a forma contemporânea da autobiografia”.23
Sabemos, contudo, ser questionável a implicatura aparente de que ninguém
escreverá mais autobiografia, assumindo-se ser a noção de autoficção a forma
contemporânea daquela.
Postular a impossibilidade da autobiografia não me parece ser uma via
apropriada para demarcar o gênero autoficional. Por isso distingui o
movimento da autobiografia (vida/texto; prática entre pessoas notáveis, não
necessariamente escritor) e da autoficção (texto/vida; prática entre escritores). A
diferença relativiza as afirmações de Doubrovsky. A esse propósito cabe, ainda,
evocar as noções de “ficções literárias” e as “ficções reais”, formuladas por
Heidrun Olinto (2008). A primeira é uma opção deliberada, sendo o caso da
autoficção.

O que não é autoficção?

Si me pregunta qué es, no lo sé, pero si no me lo pregunta, lo sé.


Juan José Millàs

Nesta seção, discuto a autoficção pelo que ela não é, a partir de


características definidas principalmente por Lejeune e Doubrovsky em seus
textos críticos. A intenção é comparar os conceitos de autobiografia e de
autoficção, mostrar as atualizações teóricas desses conceitos, e articular a
discussão com os argumentos apresentados em entrevistas realizadas com
estudiosos do “espaço biográfico”24 e escritores contemporâneos brasileiros.
A autoficção não é um relato retrospectivo, como a autobiografia pretende
ser. É a escrita do tempo presente. Na já mencionada entrevista à Vilain,
Doubrovsky afirma que o presente marca, “sob a aparência de uma
continuidade do eu, as fragmentações absolutas” (Doubrovsky apud Vilain,
2005, p. 185).25 A dimensão ontológica é uma tentativa de mostrar “as
rupturas absolutas entre o que eu era no presente em diversas épocas da minha
vida” (p. 186).26 Doubrovsky menciona uma frase de Proust, em O Tempo
reencontrado, para expressar sua concepção sobre a presentificação do passado
na escrita autoficional: “Não se morre somente uma vez, em uma vida há várias
mortes cuja morte é somente a última”. E ele acrescenta: “Eu sou sempre no
presente, mas esse presente caiu no vazio”.27
A autoficção não é autobiografia. Exemplo da usual confusão entre os
conceitos de autobiografia e autoficção foi a menção do escritor Cristovão
Tezza28 à autoficção como “um novo termo para uma prática já antiga”. As
Con ssões, de Jean-Jacques Rousseau (Suíça, 1712 – França, 1778), foi o
exemplo citado, mas o considero inadequado, com base no enquadramento
conceitual que proponho. Trata-se de um texto autobiográfico, com grande
valor literário, e de autor clássico da literatura de língua francesa. Equívoco
similar foi Michel Laub classificar um livro de memórias de Mathieu Lindon
como autoficção (Laub, 2014). Embora O que amar quer dizer (Lindon, 2014)
possa ser lido como um romance, como afirma Laub, Lindon não estabelece
um pacto ambíguo e preserva o pacto autobiográfico com seu leitor. Espera-se
dele contar suas experiências factuais com Michel Foucault. É também essa
recepção que Lindon espera de seu leitor.
Criar equivalências ou justaposições entre autobiografia e autoficção acaba
por borrar as fronteiras deste conceito relevante para o entendimento de boa
parte da literatura contemporânea. Escrever sobre si é sim uma prática antiga,
como sugeriu Tezza. Confissões, literatura de testemunho, diários, cartas,
memórias e autobiografias são exemplos desse tipo de escrita. Quando
questionamos a possibilidade de representar o real pela linguagem ou
relativizamos a verdade, é fácil cairmos na tentação de considerar tudo
ficcional. Ora, dizer que toda escrita do eu é uma prática autoficcional,
justificando ser impossível não inventar e preencher as lacunas da memória
com ficção, é o mesmo que negar à autoficção sua especificidade e ao autor sua
intenção. Nesse sentido, é necessário considerar o pacto estabelecido pelo autor
com o leitor, já que o sujeito/autor “ressuscitou” como figura performática nas
últimas décadas e hoje está inserido no cerne do debate epistêmico.
Evando Nascimento é sensível à diferença entre a autobiografia e a
autoficção. Enquanto a autobiografia, na maior parte das vezes, lida com fatos
passados, a autoficção tende a se confundir com o presente:

Uma das coisas que ajuda a autobiografia a manter as esferas separadas é


que na maior parte das vezes se lida com fatos passados ou, como no
caso de Graciliano Ramos, um período de uma existência bem
delimitado no tempo e no espaço. Já a autoficção, mesmo quando se
refere ao passado, tende a se confundir com o presente, fazendo com
que o autor-narrador tenha pouco distanciamento e, portanto, pouco
controle sobre os eventos relatados. Por exemplo, quando, no excelente
romance Lord, João Gilberto Noll narra sua ida a Londres para um
estágio como escritor-visitante, não há quase nenhuma separação entre o
autor do presente e o protagonista do passado, mas, sobretudo, é
praticamente impossível saber com certeza se aqueles fatos são
verdadeiros ou não. Há ali o personagem de um professor que convida
Noll a ir à capital britânica e que nunca se materializa de todo ao longo
da narrativa, como uma fantasmagoria jamais encarnada (Nascimento,
apêndice deste livro).

A autoficção não é a recapitulação da história do autor. O texto deve ser


lido como romance, mesmo havendo identidade onomástica entre autor,
narrador e personagem principal. Em alguns casos, o autor [ou mesmo o
editor] reforça essa intenção imprimindo na capa do livro o termo “romance”.
Em outros casos, o autor joga com o leitor, confundindo-o, como é o caso de
O falso mentiroso, em que Silviano Santiago imprime, na capa, abaixo do título,
o termo “memórias”. No futuro talvez seja possível ver impresso nas capas dos
livros o termo “autoficção”, uma vez que já teremos uma distância plausível
entre o alvoroço da recepção do novo conceito e – quem sabe – o
estabelecimento de um novo gênero. O termo dará conta de explicitar esse jogo
entre realidade e ficção, entre o que realmente aconteceu e o que poderia ter
acontecido, convidando o leitor para uma leitura marcada pela ambiguidade,
pelo entre-lugar (entre autobiografia e romance), pela multiplicidade de
práticas literárias, de personalidades e de verdades.
Na autoficção, o autor não escreve sobre a sua vida seguindo,
necessariamente, uma linha cronológica. Em contraponto com a autobiografia
tradicional, a autoficção também não tenta dar conta de toda a história de vida
de uma personalidade. A escrita autoficcional parte do fragmento, não exige
início-meio-fim nem linearidade do discurso; o autor tem a liberdade para
escrever, criar e recriar sobre um episódio ou uma experiência de sua vida,
fazendo, assim, um pequeno recorte no tempo vivido.
Eurídice Figueiredo aponta essa diferença em nossa entrevista. Para a autora
de Mulheres ao espelho, “a autobiografia tem uma forma mais linear e se
pretende mais próxima do vivido (embora isso seja desde o início condenado
ao fracasso)” (Figueiredo, apêndice deste livro). Em linha com este argumento,
a escritora Luciana Hidalgo considera ter a autoficção “um tom mais
contemporâneo, por vezes mais fragmentado, onde a preocupação com uma
recapitulação fiel, cronológica e ‘histórica’ dos fatos não é importante”
(Hidalgo, apêndice deste livro).
Doubrovsky (2011[a]) afirma que a narração não é uma cópia, mas a
recriação de uma existência por meio das palavras. Portanto, enquanto o
pêndulo da autoficção se move desigualmente para o lado da invenção e
recriação, o pêndulo da autobiografia move-se para o polo da fidelidade aos
acontecimentos, embora se saiba que cada evento é multifacetado e pode ser
descrito de ângulos muito diversos, inesgotáveis. Ademais, a autobiografia é
cronológica e se esforça a seguir o curso linear de uma vida. Ainda com
Doubrovsky vale notar a mudança que se opera na concepção de sujeito da
autobiografia – a unidade e coerência (noção ligada à autobiografia clássica) em
relação à concepção de sujeito ligada à autoficção, que é de um indivíduo
fragmentário e incoerente.
Luciene Azevedo acredita ser possível demarcar a diferença entre
autobiografia e autoficção, renunciando às “opções que facilitam tudo”, ou seja,
crenças radicais de que “tudo é autobiográfico” ou de que “tudo é autoficção”.
Azevedo observa que o maior problema está na distinção entre autoficção e
romance:

A questão dos limites, das fronteiras [entre autobiografia, romance


autobiográfico e autoficção] também é um problema teórico para mim.
Porque embora não queira dogmaticamente voltar à defesa de uma
separação estrita entre a ficção e a realidade (se é que ainda é possível
aferrar-se a essa posição, em pleno século XXI), reluto em acreditar que
tudo é autobiográfico (como dizia De Man) ou que tudo é ficção (como
defendem os pós-estruturalistas). Essas são opções que facilitam tudo e a
facilidade não é boa companheira teórica... Eu diria que o problema
maior não está na diferença entre a autobiografia e a autoficção, mas
entre a autoficção e o romance (como gênero associado à ficção
literária). A questão do romance autobiográfico também precisa ser
melhor aprofundada, porque acho que a investigação sobre o gênero
pode ajudar a pensar a autoficção. Por exemplo, o romance do Karl Ove,
o norueguês que cito em outra resposta, mais acima. Acho que há aí um
bom exemplar de romance autobiográfico para ser investigado. Seria
preciso tentar definir melhor esse termo. Mas acho sugestivo que essa
nomenclatura (‘romance autobiográfico’) tenha voltado agora com a
voga da autoficção, já que a crítica e a teoria literária não investiram na
especulação sobre o termo (Azevedo, apêndice deste livro).

A autoficção não é necessariamente uma narração em prosa, como Lejeune


caracteriza a forma da autobiografia. Na autoficção, é possível misturar os
gêneros, modificar a forma, ousar, experimentar, se valer de estruturas híbridas.
Nas palavras do próprio Doubrovsky, a autoficção é a “aventura da linguagem
fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance tradicional ou novo. Encontro,
fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias”.
A autoficção não é autobiografia, nem romance propriamente dito. Nem
um, nem outro. Ela instaura-se no entre-lugar, entre a autobiografia e o
romance, e Doubrovsky lança mão da imagem de um torniquete para ilustrá-lo:

Um curioso torniquete se instaura então: falsa ficção, que é história de


uma vida verdadeira, o texto, pelo movimento de sua escrita, se desaloja
instantaneamente do registro evidenciado do real. Nem autobiografia
nem romance, então, no sentido estrito, funciona no entre-dois, num
afastamento constante, num lugar impossível e inatingível exceto na
operação do texto. Texto/vida: o texto, por sua vez, opera numa vida,
não no vazio (Doubrovsky, 1988, p. 69-70, grifo meu).29

Adriana Lisboa acredita que o termo autoficção “dá conta de uma zona que
se situa entre a autobiografia e a ficção” e aponta “para possíveis experiências de
escrita de si, onde o ficcional tem permissão para entrar a qualquer momento,
sem que isso equivalha a uma traição do pacto inicial” (Lisboa, apêndice deste
livro).

O pacto oximórico da autoficção

O pacto da autoficção com o leitor é oximórico30 (ambíguo ou


contraditório), pois agora não se cogita verificar que fragmentos cabem à
verdade ou à invenção. Por isso, a indecidibilidade é característica fundamental
do texto autoficcional. Rompe-se com o princípio de veracidade do pacto
autobiográfico, sem que se entre totalmente no princípio de invenção, do pacto
romanesco/ficcional. Mesclam-se os dois, resultando no contrato de leitura
marcado pela ambiguidade e na narrativa intersticial. Porque essa narrativa
existe é que Hubier vê problemas em uma concepção dualista que opõe
verdade e ficção, que “negligencia todos os textos literários que se inscrevem
nas fronteiras da autobiografia e do romance, que entrelaçam diferentes
gêneros, que transpõem a vida em romance e que derivam justamente da
dialética do verdadeiro e do falso” (Hubier, 2003, p. 109)31.
Ana Letícia Leal acredita que “a autobiografia é um gênero constituído,
enquanto a autoficção está presente em diferentes graus desde a autobiografia
até a ficção mais distante do que se considere a realidade” (Leal, apêndice deste
livro). Leal aponta para o risco que é igualar a autoficção à autobiografia, pois
se trata de textos de natureza diferente:
Dizer que autobiografia é o mesmo que autoficção seria dizer que a
biografia é igual ao romance. Não é. Sabemos do componente ficcional
presente em toda biografia, como ademais em todo discurso, mas são
textos de natureza diferente. Então, eu prefiro chamar de autoficção
toda escrita de si que invente sobre o eu biográfico (Leal, apêndice deste
livro).

O quadro ilustrativo a seguir mostra o lugar da autoficção enquanto gênero


literário – entre dois gêneros, autobiografia e romance. E, também, os graus da
autoficção, que vão da autoficção mais autobiográfica e menos ficcional à
autoficção mais fantasmática e ficcional.

Quadro 4: “Posição e características da autoficção entre gêneros literários”

Fonte: Elaborado pela autora.

Nesse sentido, Hubier (2003, p. 125-126) afirma que a autoficção é


“anfibológica” e pode ser lida como romance e como autobiografia, deixando
ao leitor “a iniciativa e a ocasião de decidir por ele mesmo o grau de veracidade
do texto que ele atravessa”.32
Esse também é um ponto fundamental para Evando Nascimento, pois

na autoficção esses limites entre ficção e realidade se embaralham


bastante, sobretudo porque frequentemente o nome do autor, do
narrador e do personagem coincidem. Por mais paradoxal que seja, esse
excesso de referencialidade é que gera o questionamento dos limites. [...]
Os dispositivos autoficcionais fazem fracassar o pacto de verdade e até
mesmo de verossimilhança entre autor e leitor. Creio que isso tem
ocorrido desde a antiguidade, mas, no século XX, a narrativa que
prenunciou o recurso foi sem dúvida Em busca do tempo perdido, cujo
narrador-personagem Marcel coincide em inúmeros aspectos com o
autor Marcel Proust. [...] Muitos dos episódios de Em busca, narrados
em primeira pessoa, parecem colados à vivência autoral, mas também há
tanta fantasia que é impossível estabelecer um pacto autobiográfico
totalmente confiável com os leitores dos mais diversos lugares
(Nascimento, apêndice deste livro).

Silviano Santiago, por sua vez, considera bem fácil o trabalho de diferenciar
autobiografia de autoficção:

Basta que você evite o jogo quando se vale das categorias que já levantou
anteriormente. Tomo a liberdade de copiá-las: falso/verdadeiro;
mentira/verdade; real/imaginário; ficção/realidade; incerteza;
identidade(s); fragmentação do sujeito. Se você coagular cada um dos
elementos que estão unidos pela barra, coibir a incerteza e a
fragmentação, você imediatamente criará um campo crítico lógico e
coerente que servirá ou para definir autobiografia ou para definir
autoficção (Santiago, apêndice deste livro).
Manuel Alberca: o pacto ambíguo

Em El pacto ambiguo: de la novela autobiográ ca a la auto cción (2007),


Alberca33 analisa romances em que o protagonista do que parece ser ficção
adota o nome do autor real, ou seja, a autoficção. O ponto de vista perspicaz
do teórico permite considerar tais narrativas a negação da diferença límpida
entre o verdadeiro e o falso, ou entre o verdadeiro e o verossímil. Nesse
contexto, não há mais necessidade de separar nitidamente o que tem sido, o real,
do que poderia ter sido, o possível. Tal jogo literário funde pessoa e
personagem, herói e escritor, imaginação e experiência. Alberca ocupa-se com
obras narrativas consideradas imagens ficcionalizadas desse imaginário da nossa
época que concebe o sujeito moderno fragmentado e instável como um
“enxame de eus”.
“A presença do autor como protagonista dentro de sua própria obra foi um
traço excepcional antes do século XVIII”, hoje, continua Alberca, “o auge do
subjetivo e pessoal significa a irrupção do privado no público” (2007, p. 20-
21), gerando efeitos perversos e paradoxais. O fim das fronteiras entre público
e privado acabou por reduzir a funcionalidade de pares adjacentes como
interior/exterior, normal/anormal, ficção/realidade, memória/desmemória. Em
consequência, o desenvolvimento histórico das últimas décadas do século XX
tem se caracterizado pela difusão de ideias socioculturais cujos traços são a
indefinição das normas e a confusão nas esferas de atuação social (Alberca,
2007, p. 21-22).
Para Alberca, é no século XX que o artista se consagra como figura de maior
prestígio social. “Construir uma personalidade única e extraordinária tornou-se
sinônimo de viver intensamente e dar sentido à existência pessoal” (Alberca,
2007, p. 22). A meta do artista contemporâneo é fazer de sua vida uma obra de
arte, convertendo-se em herói associado a exemplos de rebeldia e insatisfação.
O processo teve múltiplas faces, e ao mesmo tempo em que a espetacularização
do artista o elevava à categoria de figura célebre ou de referência social,
depoimentos vinculados a sua subjetividade e objetivos que levavam sua
assinatura adquiriram incontestável valor mercantil. Além do conteúdo crítico,
a condição de artista adquiriu valor econômico. Daí, a naturalidade do passo
seguinte: transformar a vida do artista em um produto, entre os quais livros,
associado-os à uma imagem pública do autor já convertida em mercadoria e,
em alguns casos, grife (Alberca, 2007, p. 23).
Para visualizarmos melhor o fenômeno da representação do autor na sua
obra, e como as percepções sociais podem variar ao longo da história, Alberca
recorre ao exemplo da pintura e traça um paralelo com a figura do pintor. A
representação de si era vista como uma manifestação narcísica ou do pecado da
soberba, razão porque os primeiros pintores adotaram ou “uma expressão
humilde e um olhar límpido” no retrato pessoal de Filippo Lippi, em 1485, ou
a “aparência e traços de uma figura exemplar em pose de devoção religiosa”, a
exemplo de Sandro Botticelli. O primeiro autorretratista a ousar pintando um
olhar fixo e concentrado é Albrecht Dürer, em 1500 (cf. Alberca, 2007, p. 21).
O romance, por sua vez, é o gênero-rei, aquele do qual nenhum escritor se
envergonharia em assumir a autoria, pois, além de gênero privilegiado, não há
compromisso com a verdade ou risco de superexposição. Na seção em que
discorre sobre o prestígio do romance, significativamente intitulada “O tapete
vermelho do romance” (Alberca, 2007, p. 292), o teórico relega à periferia da
literatura a autobiografia, destituída do glamour da ficção, ecoando a alcunha
de “gata borralheira”, dada por Lejeune à autobiografia. As diferenças seriam
acentuadas, ainda conforme Alberca, porque a autoficção é uma forma que
permite ordem narrativa atrativa para os conteúdos autobiográficos, maior
flexibilidade e possibilidade de gravitar em torno do real nem sempre presente
no romance “puro”.
A autoficção transita entre os dois pactos, “oximórico” (cf. Jaccomard,
1993) e “ambíguo” (cf. Alberca, 2007), entre a gata borralheira e o gênero-rei;
entre o glamour do “tapete vermelho do romance” e a periferia da esfera
literária; nem um, nem outro, entre um e outro.
O eu autofictício não é o eu comprometido formulado pelo autor de uma
autobiografia, nem mesmo ao desconectado eu romanesco. O eu das
autoficções sabe ou simula os seus limites, é consciente ou finge que a sua
identidade é deliberadamente incompleta, imaginária ou parcial.

Quadro 5: “Comparação dos tipos de ‘eu’ na literatura”


Gêneros
Autobiografia Autoficção Romance
literários
Tipos de “eu” Eu autobiográfico Eu autofictício Eu romanesco
Característica do Eu
Eu performático Eu desconectado
“eu” comprometido
Elaboração da autora.

“A ocultação do autor e seu calculado ou involuntário desvelamento


posterior [...] respondem a duas razões principais: a necessidade e o jogo”
(Alberca, 2007, p. 79). Sob o signo da simulação, o autor pode expressar os
seus sentimentos e segredos com mais liberdade, pois está disfarçado,
escondido, trazendo um eu impreciso e anônimo. Ao mesmo tempo, é também
um jogo, pois, ao esconder-se, quer ser encontrado, “de tal modo que a
ocultação não deixa de ser uma opção de caráter estético e de gosto pessoal pelo
fingimento lúdico”, diz Alberca em “sob o signo da simulação e da
ambiguidade” (2007, p. 80).
O teórico distingue três formas narrativas dentro do pacto ambíguo,
ilustrando por meio de um quadro: o romance autobiográfico (identidade
nominal fictícia ou anonimato; autobiografismo escondido) é o mais próximo
da autobiografia, e a autobiografia ficcional (identificação nominal fictícia;
autobiografismo simulado) é a classe mais próxima do romance. Entre essas
duas classes, está a autoficção (identidade nominal expressa; autobiografismo
transparente).
Quadro 6: “O pacto ambíguo”
PACTO AMBÍGUO
ROMANCES DO EU

Auto cção Autobiografía ctícia


Romance autobiográ co
(equidistância de (+ próxima do
(+ próximo da autobiografía)
ambos pactos) romance)

1. Princípio de
Princípio de identidade 1. Princípio de
identidade
A ≠ N // A ≠ P identidade
A≠N-A≠P
Identidade nominal fictícia A=N=P
Identificação
ou anonimato: Identidade nominal
nominal fictícia:
N = P // N ≠ P expressa
N = P // A = editor

2. Proposta de leitura 2. Proposta de leitura 2. Proposta de leitura


Ficção/Factualidade Ficção/Factualidade Ficção/Factualidade
Autobiografismo escondido Autobiografismo Autobiografismo
(falso/verdadeiro) transparente simulado

Fonte: Reprodução de Manuel Alberca (2007, p. 92, tradução minha).


Nota: A, Autor; N, Narrador; P, Personagem; -, menos; +, mais; =, idêntico; ≠, não idêntico; /e-ou.

Classificação similar, em que os tipos de enunciação autobiográfica se


distinguem pelo grau de ficcionalidade, já havia sido proposta pelo téorico
francês Philippe Gasparini, no livro Est-il je? (2004). Entretanto, Diana
Klinger a critica argumentando a classificação reduzir toda autoficção à ficção:
“[...] a categoria de autoficção implica não necessariamente uma corrosão da
verossimilhança interna do romance, e sim um questionamento das noções de
verdade e de sujeito” (Klinger, 2007, p. 47).
No campo autoficcional, Alberca estabelece ainda a distinção entre
auto cção biográ ca, que se aproxima da ambiguidade do pacto autobiográfico,
autobio cção, em que a ambiguidade é plena, e auto cção fantástica, cuja
ambiguidade está próxima ao pacto romanesco (cf. Alberca, 2007, p. 182).
Todavia, considero contraproducente avançar em tipologias pormenorizadas,
pois o resultado será aumentar o leque das classificações de práticas literárias
muito próximas e confundir ainda mais a sua recepção. Esse debate deverá
caber à discussão hiperespecializada, que não é o objetivo deste livro.
O impulso autoficcional

Neste capítulo, analiso o impulso autobiográfico e o impulso autoficcional,


com base nas noções de “sociedade do espetáculo”, formulada por Guy Debord
(1997) e da análise de Paula Sibilia (2016) sobre a crescente espetacularização
do “eu”. Reflito sobre alguns aspectos que têm ampliado a produção da
literatura de autoficção e retomo argumentos dos capítulos anteriores para
analisar os impulsos autobiográfico e autoficcional.
Em um primeiro momento, tentei fazer uma diferenciação entre os
impulsos, que resultou, inevitavelmente, em um julgamento de valor, sendo o
autoficcional superestimado em detrimento do autobiográfico. Surpreendi-me
animada com a linhagem teórica que defende a necessidade de maior talento
para a ficção em comparação com as narrativas referenciais, que já têm a seu
favor o “poder da verdade”. Depois, revisei o argumento e verifiquei
impertinentes as distinções que fiz entre o impulso autobiográfico e o impulso
autoficcional, pois o impulso propriamente dito é um só, é o impulso de falar de
si mesmo, comum às práticas autobiográficas e autoficcionais, às narrativas
referenciais e ficcionais. O resultado do impulso é que é diferente. O resultado
do impulso de falar de si pode ser tanto bom como ruim, superficial ou
intenso, com valor estético ou sem, e as narrativas autobiográficas não valem
menos por serem referenciais.
Tendo essa primeira etapa esclarecida, podemos dizer que o impulso de falar
sobre si pode ser marcado 1) pela espetacularização do “eu” nas redes sociais,
reality-shows e livros de reduzida qualidade literária com finalidades
mercadológicas das editoras e autopromocionais dos autores, e também pela
produção textual e imagética que revela superficial motivação narcisista; ou 2)
pela exibição do autor na literatura voltada para o eu que resulta em uma
produção literária animada pela inquietude da busca de si, que leva os autores a
escreverem sobre si.
Este livro constitui um esforço para deslindar as diferenças entre tipos de
produções escritas que, embora sofram e resultem de influência societária
comum e expressem à sua maneira o traço individualizado e autorreferenciado
do presente, resultam em textos com naturezas muito diversas. É preciso
distinguir a ficção deliberada, em que o escritor recorre aos artifícios narrativos
para elaborar o texto de sua autoria, da construção de si e sua aparência nas
relações interpessoais, em redes sociais e outros espaços midiáticos. A literatura,
a ficcionalização de si na literatura, a autoficção, o trabalho artístico realizado a
partir de biografemas são coisas diversas.
O impulso autoficcional resulta em obras notáveis como A resistência, de
Júlian Fuks, e Ribamar, de José Castello, em que o mergulho no eu é intenso, o
trabalho com a linguagem é primoroso, o domínio da arte de narrar é
inquestionável, e a complexidade do movimento de introspecção e dos
conflitos humanos trazidos à tona é avessa à superficialidade narcisista,
midiática e espetacular. Autoficções são produzidas por escritores e escritoras
conscientes do seu fazer literário. Talvez por isso acabem sendo também
metaficcionais.
Para tratar de autoficções e, em um sentido mais amplo, de escritas do eu,
deve-se aludir aos mitos de Narciso e de Sísifo. O primeiro se refere ao ato
narcisista de escrever sobre si, que pode ser tanto por meio da simples exibição
superficial quanto por meio de uma produção literária de introspecção, em que
o autor busca autocompreensão e/ou compartilha suas inquietações existenciais
e literárias. O segundo mito alude à ambição do autor em querer se encontrar,
se conhecer e salvar seu passado do esquecimento.
As motivações do autor para a escrita do eu é outro ponto importante para
se pensar o impulso autobiográfico. O exemplo da autoficção de Cristovão
Tezza, O lho eterno, será oportuno para refletir sobre a obsessão do eu na
literatura e os artifícios do autor para “amenizar” o que poderia ser considerado
como exibição exacerbada. Mesmo escrito em terceira pessoa, o livro aborda
exclusivamente a perspectiva do pai, que é o próprio autor. Como alguns
críticos já notaram, não se trata do filho, como sugere o título do livro, mas do
“pai eterno”.
Até que ponto a superexposição de si mesmo não afeta a do outro? Como
contar a própria história sem envolver o seu círculo de convivência? É possível
escrever sobre si sem escrever sobre o outro? Tais questões são analisadas na
seção “O perigo da autoficção”, quando abordo as obras que foram parar nos
tribunais de justiça por violarem direitos de privacidade e causarem danos
morais aos alegadamente reais personagens dos livros. Recorro ao exemplo de
Ricardo Lísias e a polêmica associada ao seu livro Divórcio (2013) para refletir
os limites e perigos da autoficção e até que ponto é possível revelar e expor a
vida do outro sem que isso acarrete prejuízos morais e/ou jurídicos.
Diante dos perigos da autoficção, abordo em “Quem tem medo da
autoficção?” a rejeição ao termo autoficção por parte dos escritores, e a criação
de novos e incansáveis termos por teóricos e estudiosos, para definir as obras
que estão entre o romance e a autobiografia.

Mito de Narciso: o show do eu na sociedade do espetáculo

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de


mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha
feio o que não é espelho.
Caetano Veloso

Nascido em Tépsias, antiga cidade da Beócia, Narciso1 era um jovem rapaz


de uma beleza fascinante, filho do deus-rio Céfiso e da ninfa Leríope. Por
ocasião de seu nascimento, a ninfa Leríope consultou o adivinho Tirésias para
saber qual seria o destino do menino. A resposta foi que ele viveria muito, se
ele jamais se conhecesse. Muitas moças e ninfas apaixonaram-se por Narciso,
quando ele chegou à idade adulta. Porém, o belo jovem não se interessava por
nenhuma delas: “naquela esbelta forma, era tão frio e orgulhoso, que não
houve jovem ou donzela que lhe tocasse o coração”. A ninfa Eco, que, por um
castigo de Juno (Hera), só repetia as palavras alheias, não se conformou com a
indiferença de Narciso e afastou-se, triste e amargurada, para a floresta,
passando a viver em cavernas vazias, onde definhou até que restassem somente
os seus gemidos. As moças desprezadas pediram aos deuses para vingá-las.
Nêmesis apiedou-se delas e induziu Narciso a debruçar-se numa fonte para
beber água. Descuidando-se de tudo o mais, ele permaneceu imóvel na
contemplação ininterrupta de sua face refletida. À margem do lago, Narciso
definhava, sem comer, sem dormir, sem descansar, enamorado pela imagem
refletida, na ilusão de poder tocá-la e beijá-la. Narciso morreu à beira de sua
imagem: “[...] ele contempla com olhar insaciável a imagem enganadora. Ele
morre, vítima de seus próprios olhos. Levemente elevado e estendendo os seus
braços em direção às árvores que o cercavam”.2 Ovídio acrescenta que mesmo
depois de sua morte, Narciso ainda se contemplava nas águas do rio Estige. O
seu corpo desapareceu e, no lugar de sua morte, as irmãs náiades encontram
uma flor, que, naturalmente, leva o nome de Narciso.
Há todo um campo simbólico, marcado pelo narcisismo, que gira em torno
do ser autocontemplativo, em busca de si e da aceitação do outro. O filósofo
francês Gaston Bachelard observa que a psicanálise “marca com o signo de
Narciso o amor do homem por sua própria imagem, por esse rosto que se
reflete numa água tranquila” (Bachelard, 1942, p. 23). A água, para Bachelard,
que estuda a vida das imagens da água, em A Água e os Sonhos, é o elemento
transitório, tal qual o mobilismo heraclitiano, ela é água que corre, cai e acaba
sempre em sua morte horizontal; o sofrimento da água é infinito (Cf.
Bachelard, 1942, p. 6-7). Segundo o filósofo, o indivíduo “não é a soma de
suas impressões gerais, é a soma de suas impressões singulares” (p. 8), e é nas
águas que ele encontra a profundidade, é nela que caímos em devaneio
profundo:
Narciso vai, pois, à fonte secreta, no fundo dos bosques. Só ali ele sente
que é naturalmente duplo; estende os braços, mergulha as mãos na
direção de sua própria imagem, fala à sua própria voz. Eco não é uma
ninfa distante. Ela vive na cavidade da fonte. Eco está incessantemente
com Narciso. Ela é ele. Tem a voz dele, tem seu rosto. Ele não a ouve
num grande grito. Ouve-a num murmúrio, como o murmúrio de sua
voz sedutora, de sua voz de sedutor. Diante das águas, Narciso tem a
revelação de sua identidade e de sua dualidade, a revelação de seus
duplos poderes viris e femininos, a revelação, sobretudo, de sua realidade
e de sua idealidade. [...] Efetivamente, o narcisismo nem sempre é
neurotizante. Desempenha também um papel positivo na obra estética
e, por transposições rápidas, na obra literária (Bachelard, 1942, p. 25).

Na literatura, a referência a esse mito vincula-se tanto à construção de


personagens autocentradas e solitárias, quanto no teor subjetivo da obra,
classificada de variadas formas: literatura de introspecção, literatura íntima,
escrita do eu, escrita de si, literatura confessional, literatura psicológica,
autoficção etc. Por um lado, o mito de Narciso pode indicar a superficialidade
da aparência e da imagem, em sintonia com o conceito de espetacularização;
por outro lado, pode indicar a profundidade do mergulho interior, cuja
elaboração resulta em qualificada literatura de introspecção. Superficial ou
profundo, certo é que estamos vivendo a era da abundância de narrativas
autobiográficas e de progressivo exibicionismo.
O impulso autobiográfico pode estar relacionado às tendências
exibicionistas, à busca de reconhecimento social, à autopromoção, à inflação do
ego, à obsessão com a imagem, à vaidade excessiva. Paula Sibilia (2016)
equipara o impulso autobiográfico ao crescente apreço por acompanhar a
intimidade cotidiana das pessoas, e que deu aos reality-shows grande audência:

Essas produções, que têm invadido a televisão mundial no último par de


décadas e, supostamente, não fazem mais do que mostrar a vida real de
um grupo de pessoas trancadas numa casa infestada de câmeras de
televisão, possuem vários aspectos em comum com os rituais
confessionais da internet. Aquilo que entre os protagonistas desses
espetáculos televisuais ocorre de maneira caricaturesca e deturpada pelo
exagero – essa construção de si como figuras estereotipadas e sem
maiores espessuras, que só se sustenta graças a toscos recursos
performáticos e de marketing pessoal – replica-se tanto nas modalidades
autobiográficas das redes sociais como no show da realidade cotidiana de
qualquer um. Essa tendência aponta para a autoconstrução como
personagens reais porém ao mesmo tempo ficcionalizados, frutos da
competência midiática que cada um adquiriu em contato com a
linguagem altamente codificada dos meios de comunicação, que leva a
administrar as diversas táticas audiovisuais e interativas para gerenciar a
própria exposição aos olhares alheios (Sibilia, 2016, p. 82-83).

O argumento de Sibilia está inspirado na hoje clássica análise do francês


Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo, realizada no final dos anos 1960,
“com intuito deliberado de perturbar a sociedade espetacular” (Debord, [1967]
1997, p. 12). Em sua obra teórica, Debord critica de forma lúcida,
prenunciadora e decisiva a sociedade moderna de consumo e de novas
condições de produção, mostrando como a vida se apresenta como “uma
imensa acumulação de espetáculos”. A noção de espetáculo está relacionada com
a de representação, como nos mostra uma das primeiras passagens do livro:
“Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (Debord,
[1967] 1997, p. 13). Para Debord, viver na sociedade do espetáculo implica
aceitar que a aparência constitui o cerne da existência individual (p. 16).
O show do eu, de Sibilia, lançado em 2008, dialoga com a teoria do
espetáculo debordiana, pois, ao analisar a intimidade como espetáculo, retoma
o prognóstico de Debord sobre a sociedade moderna de consumo, a soberania
das imagens e a reinante alienação causada pelas mídias, somados à
superexposição nas redes sociais virtuais com a popularização da internet a
partir dos anos 2000. Sibilia considera que Debord foi profético ao vislumbrar
a transformação do mundo em imagens, que tritura a potência das palavras
(Sibilia, 2016, p. 74). A ensaísta afirma que “o espetáculo se transformou em
nosso modo de vida e nossa visão do mundo, na forma como nos relacionamos
uns com os outros e na maneira com que o mundo se organiza. Tudo é
permeado por essa lógica, sem deixar praticamente nada de fora” (p. 74). A
preeminência das linguagens audiovisuais também estimulou certa
exteriorização em detrimento da leitura minuciosa, solitária, e que a nossa a
diversidade de tarefas simultâneas que executamos todos os dias na vida digital
implicou atrofia nossa capacidade de concentração e e introspecção (p. 78):

No compasso de uma cultura que se ancora crescentemente em imagens,


desmonta-se o velho império da palavra e proliferam fenômenos [...] nos
quais as lógicas da visibilidade e da conexão constante desempenham
papeis primordiais na construção de si e da própria vida como um
relato. Isso ocorre, porém, em meio a um grau de espetacularização
cotidiana que talvez nem o próprio Guy Debord teria ousado imaginar
(Sibilia, 2016, p. 79).

A espetacularização da vida tem afinidade eletiva com a produção


superficial de conteúdo, que é dinâmico e incessante. Direta ou indiretamente,
esse ambiente se reflete na “literatura umbilical”, autocentrada. O teórico
francês Philippe Vilain se refere a esse tipo de “literatura”, literatura entre
aspas, como “falsas autobiografias”, ou seja, autobiografias que abusam do
narcisismo com finalidade de autopromoção, mais motivadas pelo desejo de
venda que por motivação estética, como Debord aponta em sua crítica à
moderna sociedade capitalista.
O hiperexibicionismo em múltiplas expressões, nos reality-shows, na fama
instantânea, nas redes sociais, na voluntária perda da privacidade, nos books
fotográficos e programas de edição das imagens, que se tornam
supervalorizadas, difundem as ilusões coletivas do corpo perfeito, do interesse
alheio nas selfies, nas revistas de fofocas, nas “falsas autobiografias”, e revela a
primazia da imagem e sua contraparte, despreocupação com a elaboração, a
profundidade.
As “autobiografias de segunda classe”, ou seja, aquelas consideradas
superficiais, acabaram por contaminar a produção autobiográfica como um
todo, desprezada como uma realização intelectual menor. A autobiografia não
integraria a “santa disciplina literária”, por ser considerada “uma infraliteratura
narcisista, sem estética e moralmente suspeita” (Vilain, 2005, p. 8)3 e objeto de
um movimento de redução do gênero.
A relação entre a escrita autobiográfica e o mito de Narciso remonta ao
século XIX. No Dictionnaire de l’Académie, de 1878, a autobiografia é
denominada “o relato da vida de uma pessoa feito por ela mesma, a encenação
de um ego apaixonado por sua personalidade” (Vilain, 2005, p. 14).4
Os empregos do eu são realizados de diferentes maneiras, e há os casos em
que os escritores não resistem à tentação e aos desejos narcisistas:

vitimizar-se, construir uma defesa pro domo sua, atormentar-se em


nostalgia regressiva e em lembranças de uma situação paradisíaca
anterior, ou ainda, reivindicar a estima de si, contemplar-se, pintar-se
complacentemente não como cada um se vê, mas como quer se ver,
adaptando sua imagem à da pessoa ideal que desejaria se tornar (Vilain,
2005, p. 14).5

Característica igualmente comum entre a autoficção e demais escritas do eu


são as estratégias de autocelebração do autor. A escrita sobre si cede,
inconscientemente ou não, ao narcisismo. O enunciador do texto se atribui
valor sob a máscara da modéstia, assumindo a persona de transcritor do elogio:

[...] não falar de si, ocultar-se enquanto enunciador no texto,


encarregando sua eloquência não de dizer o que eu sou, mas de dizer,
através do próprio nível de linguagem que emprego, o que eu valho, e de
enaltecer, assim, o eu criador do discurso (o estilismo pode ser
interpretado como a dissolução do eu em um puro esteticismo
narcísico); a modéstia sendo, como se sabe, a arte de ser elogiado duas
vezes, uma outra forma consiste em fazer os outros dizerem a estima que
têm por mim e em fazer de si um simples transcritor do elogio; enfim,
pintar-se em uma postura honorífica, exagerar sua generosidade, sua
tolerância, sua benevolência ou sua empatia a respeito do próximo para
buscar a adulação e dar de si mesmo a imagem de um indivíduo
admirável, amável, cuja perfeição singular abrangeria o projeto de
construir sua lenda pré-póstuma (Vilain, 2005, p. 15).6

O exagero de sua própria generosidade, tolerância e benevolência são


práticas comuns nas escritas do eu. É certo que os Diários da Presidência: 1995-
1996, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (2015) transcreveu de
suas gravações quase-diárias sobre o exercício do cargo, suprimem revelações
que pudessem condená-lo em juízo. Terá, é claro, uma informação ou outra,
para manter a verossimilhança da obra e o pacto autobiográfico com o leitor.
Entretanto, de modo geral, os volumes não trazem polêmica retumbante.
Seleções, disfarces dos defeitos e realce das qualidades são comuns nesse tipo de
prática subjetiva.
Nas autoficções não é diferente. Escritores brasileiros acabam utilizando esse
espaço de fabulação de si para manifestar autoelogios, que podem se referir até
mesmo às virtudes na esfera sexual. Não são tão raras as “autoficções fálicas”,
mais voltadas à exaltação da virilidade do que do caráter.
Porque abusam do narcisismo, as “falsas autobiografias”, aquelas
autobiografias de políticos, cantores, esportistas, atores, modelos, prostitutas,
têm por finalidade a autopromoção, o sucesso de vendas e o imediatismo.
Vilain diferencia as autobiografias comerciais das literárias.7 Em se tratando das
literárias, Vilain rejeita a sua aproximação ao mito de Narciso, cuja trajetória é
diferente do caminho da autobiografia. Narciso detém-se no que ele aparenta, à
superfície da imagem, e o fato de ele se autocontemplar é uma força inerte,
passiva. A autobiografia, ao contrário, é uma representação de si mesmo através
de uma elaboração ativa, que tenta ultrapassar a superfície, buscando uma
verdade interna e por debaixo da pele (Vilain, 2005, p. 16-17). Daí, a
ambiguidade do título de seu livro Défense de Narcisse, pois entre os sentidos
possíveis do termo défense existem duas possibilidades: a de defesa, podendo ser
entendido como “a defesa do narciso”, e a de interdição, podendo ser
entendido como a proibição de Narciso, por sua conotação negativa. No caso
das autobiografias literárias, ou autoficções, a associação a Narciso seria
interdita, conforme o segundo sentido atribuído ao termo défense, pois Vilain
pretende disassociá-las do entendimento de superficialidade e efemeridade.
Há uma outra chave de conexão entre literatura e o mito de Narciso. Na
literatura de introspecção, a narrativa de si é um meio para se encontrar
autocompreensão, meditação e reflexão. Por essa via de entendimento, o
narcisismo é necessário por constituir uma via para o indivíduo tentar
suplantar pavores míticos como a morte, a solidão, a insegurança e o
sofrimento, por meio da arte. O impulso autobiográfico pode ser visto como
uma busca por identidade e por sentido na vida. É possível que a tendência à
exposição, em diferentes formas de expressão artística, decorra do sentimento
de vazio e da busca de sentido para si e para o mundo, onde os eventos nem
sempre se mostram compreensíveis e onde restam muitas inquietações
existenciais. Essa prática de autoexposição, disseminada nas escritas do eu –
blogs, diários, testemunhos, confissões, autoficções –, é própria ao sujeito que
precisa expor seus sentimentos e pensamentos, frequentemente associados à
necessidade de compartilhar a experiência da dor, na tentativa de organizá-los,
atribuir-lhes sentido e compreendê-los.
A introspecção é reflexão que se faz sobre o que ocorre em seu íntimo; trata-
se de um “olhar para dentro”, de voltar-se para si com a intenção de refletir
para encontrar explicações sobre o “eu”, de ir além da superfície, embora o
“eu”, sabemos, seja polimorfo, inconstante, variável e, quiçá, inalcançável. Em
psicologia, introspecção significa a análise de si com vistas à autocompreensão.
No campo literário, as “escritas do eu” abrangem a produção escrita que é a
expressão do mundo interior. Embora sejam distintas das “falsas autobiografias”
ou da “falsa literatura”, “as escritas do eu” ainda assim revelam um desejo
narcísico de expor uma inquietação, embora costumem ter elaboração mais
sofisticada que a exibição narcísica anteriormente mencionada, o ímpeto é o de
se expor, de escrever publicamente sobre si e de ter o leitor como interlocutor
imaginário. Por isso, não é trivial dissociar inteiramente a narrativa mítica
narcísica desta prática literária.
No século XIX, a literatura ocidental começou a revelar o funcionamento
da consciência, por meio de técnicas narrativas novas. Gustave Flaubert,
Édouard Dujardin, Joris-Karl Huysmans, depois André Gide, Virginia Woolf,
Marcel Proust são exemplos conhecidos. Flaubert, em Madame Bovary (1856),
renova o discurso ao inserir na narrativa o discurso indireto livre e “permite
narrar diretamente os processos mentais da personagem, descrever sua
intimidade e colocar o leitor no centro da sua subjetividade” (Mello, 2009, p.
241). Édouard Dujardin, em Les lauriers sont coupés (1887), inova ao ao
explorar o estado de alma de seu protagonista por meio do monólogo interior,
técnica que se tornou própria à literatura de introspecção. Dujardin “explora o
estado de alma do protagonista do relato – Daniel Prince – através do
monólogo interior, com uma linguagem que pretende mostrar o movimento
ininterrupto da consciência” (Mello, 2009, p. 241).
Para Ana Maria Lisboa de Mello, o romance moderno brasileiro é herdeiro
das metamorfoses do romance durante a transição do século XIX ao XX, pois
as obras da tradição ocidental são precursoras de procedimentos estéticos que
repercutiram mais tarde no país. Principalmente os simbolistas franceses
influenciaram nossos escritores,
[...] filhos da elite que tinham possibilidades de ir à Europa ou tomar
conhecimentos das manifestações estéticas do velho continente.
Mocidade Morta (1899), de Gonzaga Duque, Amigos (1900), de
Nestor Vítor e No hospício (1905), de Rocha Pombo são romances
considerados de teor simbolista, sendo que o último seria o mais
realizado, segundo a crítica especializada. Mas, no mesmo período
(1880-1930), surgem, com Raul Pompéia e Machado de Assis,
narrativas em primeira pessoa, que, independente das coordenadas
simbolistas, realizam incursões na subjetividade, através da rememoração
do passado, na tentativa de compreendê-lo (Mello, 2009, p. 243).

Esses são os precursores do romance de introspecção do Brasil e inspiraram


escritos de Clarice Lispector, Lúcio Cardoso, Graciliano Ramos, Lygia
Fagundes Telles e outros. O projeto de pesquisa coordenado pela professora
Ana Maria Lisboa de Mello8 verificou como essa nova tendência repercutiu no
Brasil, e o diálogo dos escritores brasileiros com as estéticas do final do século
XIX, sobretudo a estética simbolista e as técnicas utilizadas para a expressão da
subjetividade nas narrativas de 1888 a 1930, que incluem o monólogo interior,
o fluxo de consciência9 e a psiconarração.10 É dessa época a formação do
romance de introspecção no Brasil; e, a partir de 1930, sua consolidação.
Segundo José Guilherme Merquior (1996), o romance moderno, por ele
denominado “impressionista”, privilegia a análise psicológica em detrimento da
narrativa centralizada nas peripécias exteriores. A tendência introspectiva do
romance resvala para o lirismo. Pode-se aproximar romance e lírica no uso da
linguagem simbólica, na presença do teor religioso ou filosófico dos temas e na
adoção do tom intimista.
As narrativas de exploração da consciência apresentam diversas formas, a
exemplo do romance em primeira pessoa (Dom Casmurro e Memórias Póstumas
de Brás Cubas, Machado de Assis), do romance autobiográfico (O Ateneu, Raul
Pompéia); do diário ficcional (Memorial de Aires, Machado de Assis), da
narrativa epistolar (conto Ponto de vista, Machado de Assis; romance Correio da
roça, Júlia Lopes de Almeida), do diário íntimo (Diário de um louco, Nikolai
Gógol; Diário de Anne Frank), da autobiografia (Les confessions, Jean-Jacques
Rousseau; e Mémoires d’outre-tombe, François-René de Chateaubriand) e da
autoficção (Ribamar, de José Castello; Uma questão pessoal, Kenzaburo Oe; A
chave de casa, Tatiana Salem Levy; A resistência, Júlian Fuks).
Na maioria dos casos de introspecção, quem narra é quem age, isto é, o eu
que narra (sujeito) é o eu que age (objeto), independentemente da identidade
entre autor e narrador.11 Assim acontece na literatura confessional dos
testemunhos, diários, confissões etc. O mergulho introspectivo pode ser feito
por meio das experiências vividas e narradas pelo próprio autor, em que se
destacam as autobiografias e a autoficções, ou pode ser feito por meio da
subjetividade de uma personagem fictícia, como é o caso dos romances e, em
particular, dos romances autobiográficos.12
Para Georges Gusdorf, a literatura do eu é fenomenológica, não ontológica.
Trata do “homem curioso de si e curioso dos outros; um observador mais ou
menos imparcial de uma espécie da qual se considera representante” (Gusdorf,
1991, p. 225). Ao centrar no eu, o escritor reagrupa os momentos de dispersão
da própria vida, para buscar uma nova coerência, para descobrir um sentido ou
um motivo da existência, isto é, uma unidade. De acordo com Gusdorf,
“nunca é somente escrever sobre aquilo que eu sou, mas também sobre aquilo
que eu quero ser” (1991, p. 226). Quem escreve se aprova ou se desaprova, não
é uma testemunha indiferente, embora estas não sejam motivações evidentes
para quem escreve.
Razão adicional para o autor escrever sobre si é a descoberta de que a
realidade é opaca. A falta de transparência leva à investigação (Gusdorf, 1991).
Trata-se de pessoas com tendência à introversão e ao exame de consciência, que
deve ir além da conformidade com o mundo social ao redor; pessoas
portadoras de uma “inquietude de ser” e que buscam atribuir sentido à vida
“na contramão do movimento natural da existência”, que nos move para o
exterior, para a extroversão e para a sociabilidade. Reencontrar-se é um objeto,
embora seja um propósito ambicioso, quase sísifico:

Crer que a escrita autobiográfica possui a função mágica de salvar seu


passado do esquecimento, de se conhecer, de se reencontrar no universo
da linguagem, de se substituir e de se transformar em um objeto literário
transcendente, parecerá, com efeito, eminentemente irrisório, visto que
a literatura permite que se encontre de si apenas uma imagem
imperfeita, um fantasma, uma sombra, e visto que a sua ambição, quase
sísifica, condena instantaneamente seu autor a permanecer em uma
inconsolabilidade permanente (Vilain, 2005, p. 17-18).13

Tal como o mitológico condenado a empurrar incessantemente uma rocha


até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso, a
escrita do eu pode conduzir a repetidos fracassos; é justamente nesse gesto de
falha, nessa impossível busca, nessa irrealização e impossibilidade de se figurar
totalmente em outro, que se permite a representação de si. Sendo assim, essa
natureza “decepcionante” da escrita autobiográfica poderia ser, segundo Vilain,
o principal recurso criativo do gênero, como se somente essa tentativa
interessasse (Vilain, 2005, p. 18-20): “Não se trata mais de encontrar o eu, mas
de tentar encontrá-lo, à maneira de Montaigne, somente procurar esse eu
perdido no tempo, como se apenas essa tentativa interessasse” (Vilain, 2005, p.
20).14
O fracasso do autor em representar é o seu sucesso. Uma inversão na ordem
de valores, tal como Camus vê no mito de Sísifo. A relação entre a escrita do eu
e o mito de Sísifo é justamente por causa de sua “miserável condição”, a
filosofia do absurdo, a imagem de um homem em busca de sentido e de clareza
num mundo sem Deus, sem esperança, sem “luz no fim do túnel”: “Sísifo,
proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua
miserável condição: pensa nela durante a descida” (Camus, [1942] 2008, p.
137). Para Camus, “esse mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que
seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo?” (p. 137).
Por isso, é o regresso de Sísifo que interessa a Camus, pois é esse o momento da
consciência, seu tormento.
A sabedoria de Riobaldo, personagem de João Guimarães Rosa, evoca a
“miserável condição do escritor” consciente de seu fracasso em representar:

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram.


Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se
remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido?
Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em
tantos tempos, tudo miúdo recruzado (Guimarães Rosa, 2001, p. 200).

O fragmento sugere, tal qual os teóricos aqui abordados, que o narrar o


passado é fugidio, e as lembranças incertas. É pela errância que se dá curso ao
ato de contar, considerando a astúcia das coisas passadas que “se remexem dos
lugares” e fazem “balancê”.
Clarice Lispector, em Crônicas para jovens de escrita e de vida, descreve a
interdependência entre a escrita e a vida. A escrita é como uma prisão, da qual
ela “quase se libertou”: “Sinto que já cheguei quase à liberdade. A ponto de não
precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em
branco: cheio do maior silêncio. E cada um que olhasse o espaço em branco, o
encheria com seus próprios desejos” (Lispector, 2010, p. 57). O uso da
expressão “Se eu pudesse” e dos verbos “precisar escrever”, entre outros
recursos, mostram a escrita como necessidade, algo da qual não se escapa e que
não tem fim. É tormento e salvação, como o incessante trabalho no mito de
Sísifo.
A crônica “Escrever” revela Lispector, uma vez mais, concebendo o ato de
escrever na mesma chave que tenho aqui apresentado: um ato terapêutico que
possibilita ao escritor acessar com maior clareza aspectos que lhes são opacos,
mas cujo custo eventual é a dor:
[...] escrever é uma maldição. [...] é uma maldição, mas uma maldição
que salva. [...] É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício
penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é
uma salvação.

Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se
vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar
entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último
fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é
também abençoar uma vida que não foi abençoada.

Que pena que só sei escrever quando espontaneamente a ‘coisa’ vem.


Fico assim à mercê do tempo. E, entre um verdadeiro escrever e outro,
podem-se passar anos.

Lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros (Lispector,


2010, p. 91-92, grifos meus).

Lispector aponta para a questão da irrepresentabilidade – “escrever é [...]


procurar reproduzir o irreproduzível” – que angustia o escritor pós-moderno,
cônscio da precariedade da linguagem e da impossibilidade de controlar o
processo criativo de escrita. No texto da escritora e jornalista, as palavras que
nos remetem à imagem da prisão, do vício e do sofrimento (penoso) estão
marcadas pelo símbolo de Sísifo.
A relação do ato de escrever com a dor é comum na literatura brasileira
contemporânea. O impulso autoficcional tem relação tanto com o mito de
Narciso, representante do autocentramento, como com o de Sísifo, que mostra
a relação conflitante com o ato criativo e com o material de escrita advindo da
experiência pessoal. Em todo caso, a motivação primeva para os escritores seria,
na anotação de Philippe Vilain, o desejo inerente ao ser humano de se
conhecer:
O desejo de se conhecer, de se identificar com uma imagem de si,
motiva, na maioria dos casos, a escrita autobiográfica, mas não é certo
que tal motivação possa derivar de um puro exercício de contemplação
pois, mesmo que possamos contemplar de fora aquilo que não
conhecemos, nós sempre apreciamos mais a contemplação daquilo que
conhecemos intimamente e daquilo que nós podemos identificar
claramente (Vilain, 2005, p. 18).15

Os laços entre a narrativa mítica narcísica e as escritas do eu estão presentes


na emergência de um impulso autobiográfico, característico da sociedade
contemporânea, herança de uma sociedade confessional anterior. Conforme
Michel Foucault de História da sexualidade, nos tornamos uma “sociedade
singularmente confessanda”, praticamos a scientia sexualis para dizer “a verdade
do sexo” por meio da confissão. Para Foucault, a confissão é um procedimento
que se ordena em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à
arte das iniciações e ao segredo magistral (ars erótica); ela é uma prática
ritualística de produção de verdade desde a Idade Média, “confessa-se – ou se é
forçado a confessar” (Foucault, [1988] 2010, p. 65-68).
O filósofo francês alerta-nos que a confissão está incorporada em nós e, por
isso, “não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage”
(Foucault, [1988] 2010, p. 68-69). Tal procedimento provoca uma
“metamorfose na literatura”:

[...] de um prazer de contar e ouvir, dantes centrado na narrativa heroica


ou maravilhosa das ‘provas’ de bravura ou de santidade, passou-se a uma
literatura ordenada em função da tarefa infinita de buscar, no fundo de
si mesmo, entre as palavras, uma verdade que a própria forma de
confissão acena como sendo o inacessível (Foucault, [1988] 2010, p.
68).
Pensar a literatura contemporânea como prática confessional performática
ou como busca de si por meio do jogo ficcional exige diferenciar a produção
literária/artística voltada para o “eu” da produção textual/imagética reveladora
de uma superficialidade narcisista. Alguns críticos preferem não utilizar o
termo “escrita do eu” para evitar o risco de associação a Narciso e ao
egocentrismo; optam por “escrita de si”. Entretanto, Figueiredo observa que,
para Barthes, “a subjetividade não se confunde com o narcisismo, nem se opõe
à objetividade” (Figueiredo, 2013, p. 21). Particularmente, prefiro o termo
“escritas do eu”, por conceber o eu como uma possibilidade de maior abertura
ao inacabado que o si não teria. Figueiredo está atenta às diferenças entre o eu
(moi) e o si (soi) e traz reflexões pertinentes de Barthes e de Régine Robin sobre
biografema, punctum e studium: “Robin assimila assim o si (soi) ao studium e o
eu (moi) ao punctum, o si (soi) à biografia (na sua completude) e o eu (moi) ao
biografema (ao fragmentário, ao detalhe)” (Figueiredo, 2013, p. 21). Segundo
Robin, “se o si está ao lado da fixidez, da imagem, do concluído, do
estereótipo, o eu está aberto ao jogo, ao indecidível, ao inacabado, ao
biografema. Haveria como dois aspectos do eu (não me atrevo a falar aqui do
sujeito), o eu e o si” (Robin, [1997] 2005, p. 21).16
Studium e punctum são conceitos importantes de Barthes para a teoria
fotográfica, descritos em A câmara clara (1980) como elementos co-presentes
nas fotografias. Studium é “a aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, uma
espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade
particular” (Barthes, 2012, p. 31); “é o campo muito vasto do desejo indolente,
do interesse diversificado, do gosto inconsequente: gosto/não gosto, I like/I don’t.
[...] é da ordem do to like, e não do to love” (Barthes, 2012, p. 33). Studium,
que vem do verbo studare, é um estudo do mundo; enquanto o punctum vem
do verbo latino pungere e significa picar, fincar, aquilo que punge, incita,
estimula, aflige: “punctum é também picada, pequeno buraco, pequena
mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é
esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (Barthes,
2012, p. 32-33).
A partir dessas diferenciações, penso que a escrita de si, conforme as noções
de fixo, acabado e studim, estaria para a biografia/autobiografia em seu sentido
clássico; e a escrita do eu, em sintonia com as noções de abertura,
inacabamento, biografema, indecidibilidade e punctum, estaria para a
autoficção.
Independente da nomenclatura utilizada, o importante é reconhecer que
existe uma produção ampla marcada por Narciso, mas que se desdobra de
diferentes formas. Tal impulso autobiográfico/autoficcional leva muitos
escritores contemporâneos a escreverem a sua literatura a partir desse auto-
olhar, por meio de uma elaboração ativa, que leva à inquietude da busca de si
mesmo e ao além da superfície e da aparência. Essa tentativa é um exercício
sísifico, como visto acima. A literatura de linhagem introspectiva é a tentativa
de uma busca pela verdade interna, é um exercício de refletir, no sentido de
pensar sobre, ultrapassando o reflexo das águas e o dos espelhos, num
movimento de mergulho em si mesmo através da escrita literária.

Autoficção e a presença obsessiva do eu em O filho eterno

Je est un autre.
Rimbaud

Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio:


/ Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro

A célebre frase de Arthur Rimbaud em epígrafe foi escrita pelo poeta em


Lettre du Voyant (Carta do Vidente) e endereçada a Paul Demeny em 15 de
maio de 1871. A tradução para a língua portuguesa seria “Eu é um outro”. O
jogo de palavras está na ênfase em “um outro”, feita pela concordância verbal
agramatical (Je suis – Eu sou/ Je est* – Eu é*/ Il est – Ele é). A epígrafe é nossa
porta de entrada para refletir sobre a autoficção escrita a partir de biografemas
do autor, que cumpre o papel de biógrafo e de biografado, do eu e do outro,
porém não mais no sentido de uma representação fiel do passado vivido ou de
uma escrita sistemática da vida, mas de uma prática biografemática, aberta à
criação, à invenção ou ficcionalização de si como se fosse um outro. Em O lho
eterno (2007), o “eu” de Cristóvão Tezza se transforma em “outro”, marcado
pelo uso da terceira pessoa do discurso – ele –, que redescobre formas de (se)
escrever e reinventar a própria vida.
Doubrovsky relacionando a primeira frase em epígrafe à concepção de
sujeito múltiplo, polimorfo, em permanente mudança, sendo sempre “um
outro”:

Espalhei sobre a cômoda da sala, as fotos do que chamo ‘eu em


diferentes fases da minha vida’. O que eu vejo de mim é a cada vez um
outro, ‘eu é um outro’ segundo a fórmula célebre de Rimbaud, Eu, que
só existe em um presente puro e que para mim só pode ser escrito no
presente (real e fictício), já não pode se identificar com a diversidade de
seus eus passados (Doubrovsky, 2001, p. 26).17

A segunda epígrafe continua a primeira. Ser “qualquer coisa de intermédio”


é ser mediação entre um e outro, entre o eu que sente e o eu que escreve,
disfarçado num ele. Intermediar é servir de transição, ser meio, ser via. Tais
noções são importantes para analisar a obra de Tezza.
O romance O lho eterno pode ser lido sob diferentes perspectivas ligadas à
personagem do pai. Trata-se da história de um homem em processo de
amadurecimento, tal como um romance de formação, Bildungsroman; da
história de um “homem de letras”, um revisor e escritor, sem sucesso
profissional, repleto de conflitos existenciais, em que o leitor tem acesso à
mente narrada e ao mergulho no eu profundo; da história de rejeição e
aceitação do filho com síndrome de Down por parte do pai, ou seja, da
dificuldade de aceitação do outro, do diferente. De outra perspectiva, o
romance é a história de um pai, imaturo, que sofre com a notícia de
nascimento do primeiro filho e potencializa o sofrimento ao sabê-lo portador
da síndrome, tal como um romance autobiográ co ou, como prefiro, uma
autoficção, já que a base do romance parte da experiência pessoal do autor, sem
que isso seja descoberto de forma detetivesca, que é a forma própria do roman
à clé e do romance autobiográfico.
No romance de Tezza, não sabemos o nome do protagonista. Trata-se de
um homem de 28 anos que ainda não terminou o curso de Letras, ministra
aulas particulares e revisa textos:

Aos 28 anos não acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe
muito, dá risadas prolongadas e inconvenientes, lê caoticamente e
escreve textos que atafulham a gaveta. Um gancho atávico ainda o
prende à nostalgia de uma comunidade de teatro, que frequenta uma
vez por ano, numa prolongada dependência ao guru da infância, uma
ginástica interminável e insolúvel para ajustar o relógio de hoje à
fantasmagoria de um tempo acabado. Filhote retardatário dos anos 70,
impregnado da soberba da periferia, vai farejando pela intuição alguma
saída. É difícil renascer, ele dirá, alguns anos depois, mais frio. Enquanto
isso, dá aulas particulares de redação e revisa compenetrado teses e
dissertações de mestrado sobre qualquer tema. A gramática é uma
abstração que aceita tudo (Tezza, 2008, p. 13).

Exceto o filho – Felipe –, as outras personagens também não têm nome – “a


mãe”, “a filha”, “a irmã”. Todos mantêm papeis secundários na narrativa,
mesmo que a esposa tenha sido o sustentáculo da família durante o período de
fracasso profissional do marido. A história é narrada em terceira pessoa, mas o
leitor não tem acesso à voz das personagens secundárias. Por isso Evando
Nascimento avalia que o romance “desperdiça uma maravilhosa oportunidade
de expor, sob diversos ângulos, as aflições por que passam os atores envolvidos
nesse caso-limite de suposto desvio da normalidade” (Nascimento, 2010, p.
204). Em momento algum sabemos o que se passa com a personagem da
esposa-mãe, o que enseja considerar o narrador uma “falsa terceira pessoa”, pois
ele está tão vinculado à mente narrada do pai que a onisciência peculiar ao
emprego da terceira pessoa já não é possível. Nascimento considera que o
recurso de disfarce do eu não funcionou n’O lho eterno, pois não camufla o
egocentrismo do autor nem dissipa o viés de autoajuda e de autocomiseração
que o livro contém:

[...] o assinalado recurso da terceira pessoa, um ele repetido


estilisticamente à exaustão [...] mal disfarça a presença obsessiva do eu.
Egocentrismo escandalosamente evidente nos poucos comentários
relativos ao sofrimento da esposa-mãe e menos ainda aos sentimentos da
irmã, e mesmo da empregada (Nascimento, 2010, p. 203).

Ao longo da narrativa, o leitor tem acesso ao mundo interior do


protagonista (pai), que faz “diálogos mentais sem interlocutor”, transparecendo
seus conflitos interiores e a complexidade de seus pensamentos e sentimentos.
Ao abordar a dificuldade desse pai em aceitar o filho, o narrador revela a reação
de extrema recusa, a vontade de “voltar no tempo” e a profusão de sentimentos
como vergonha, raiva, arrependimento, insensibilidade e desespero:

Recusa. Recusar: ele não olha para a cama, não olha nem para os
médicos – sente uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem
do inferno em cada minuto subsequente de sua vida. Ninguém está
preparado para um primeiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda
mais um filho assim, algo que ele simplesmente não consegue
transformar em filho.

No momento em que enfim se volta para a cama, não há mais ninguém


no quarto – só ele, a mulher, a criança no colo dela. Ele não consegue
olhar para o filho. Sim – a alma ainda está cabeceando atrás de uma
solução, já que não pode voltar cinco minutos no tempo. Mas ninguém
está condenado a ser o que é, ele descobre, como quem vê a pedra
filosofal: eu não preciso deste filho, ele chegou a pensar, e o pensamento
como que foi deixando-o novamente em pé, ainda que ele avançasse
passo a passo trôpego para a sombra. Eu também não preciso desta
mulher, ele quase acrescenta, num diálogo mental sem interlocutor:
como sempre, está sozinho (Tezza, 2008, p. 32).

Esse romance, premiado, adaptado ao teatro e traduzido em diferentes


línguas,18 produziu grande repercussão e debate em estudos críticos e literários
do Brasil, desde seu lançamento, e motivou Cristovão Tezza a abandonar a
carreira docente na universidade para dedicar-se exclusivamente à literatura. É
possível que a repercussão de O lho eterno decorra da chocante crueldade da
narrativa, que impede a apatia do leitor durante a experiência de leitura. Tezza
considera a crueldade uma qualidade desta obra, e que se revela no modo como
o pai se refere ao filho: estorvo, coisa, ser insignificante, criança horrível,
pequeno monstro, pedra inútil, deficiente mental, absolutamente nada,
pequeno leproso, problema a ser resolvido, idiota, pequena vergonha,
mongoloide. O fragmento a seguir é emblemático do papel de anti-herói
repulsivo e insensível que transparece na forma como descreve os portadores da
Síndrome de Down:

[...] vá em qualquer maternidade e a cada mil nascimentos haverá,


lotérica, uma criança Down, que alimentará outras estatísticas e estudos
como aquele que ele revisou, curioso. Cada coisa que há no mundo!
Crianças cretinas – no sentido técnico do termo –, crianças que jamais
chegarão à metade do quociente de inteligência de alguém normal; que
não terão praticamente autonomia nenhuma; que serão incapazes de
abstração, esse milagre que nos define; e cuja noção do tempo não irá
muito além de um ontem imemorial, milenar, e um amanhã nebuloso.
Para eles, o tempo não existe. A fala será, para sempre, um balbuciar de
palavras avulsas, sentenças curtas truncadas; será incapaz de enunciar
uma estrutura na voz passiva (a janela foi quebrada por João estará além
de sua compreensão). O equilíbrio do andar será sempre incerto, e
lento; se os pais se distraem, eles engordarão como tonéis, debaixo de
uma fome não censurada pela sensação de saciedade, que
neurologicamente demora a chegar. Tudo neles demora a chegar. Não
veem à distância – o mundo é exasperadamente curto; só existe o que
está ao alcance da mão. São caturros e teimosos – e controlam com
dificuldade os impulsos, que se repetem, circulares. Só conseguirão
andar muito tempo depois do tempo normal. E são crianças feias,
baixinhas, próximas do nanismo – pequenos ogros de boca aberta,
língua muito grande, pescoços achatados, e largos como troncos. Em
poucos minutos – ele não pensou nisso, mas era o que estava
acontecendo – aquela criança horrível já ocupava todos os poros de sua
vida. Haveria, para todo o sempre, uma corda invisível de dez ou doze
metros prendendo os dois (Tezza, 2008, p. 34-35).

O modo como Tezza articula a narrativa impressiona, pois dá ao leitor


acesso direto ao preconceito potencializado e aos pensamentos dele oriundos,
em uma prática reflexiva incomum na literatura brasileira.19 Não é comum
nem confortável desvelar o que não se aceita ser revelado e desprezar a
descrição politicamente correta. Por esse motivo, consideramos que tal crueza
gera uma narrativa do desconforto. Desconforto, por exemplo, ao ler o pai sentir
alívio com a possível morte do filho, ao se informar, no trabalho de revisão de
um dos textos científicos, que “as crianças mongoloides morrem cedo”. Note-se
a ironia sutil do narrador ao falar da ciência, seu caráter indiscutível, pois
acreditar na ciência (coisa rara para um “homem das letras”) seria a saída para
todos os seus problemas, que precedem o filho, mas agora se projetam neste:

E então iluminou-se uma breve senda, também na memória do trabalho


que ele revisou, e, na manhã de uma noite mal dormida, mal acordado
ainda de um pesadelo, a ideia – ou o fato, aliás científico, portanto
indiscutível – bateu-lhe no cérebro como a salvação da sua vida. A
liberdade!
Era como se já tivesse acontecido – largou as mãos da mulher e saiu
abrupto do quarto, numa euforia estúpida e intensa, que lhe varreu a
alma. Era preciso sorver essa verdade, esse fato científico,
profundamente: sim, as crianças com síndrome de Down morrem
cedo. Por algum mistério daquele embaralhar de enzimas excessivas de
alguém que tem três cromossomos número 21, e não apenas dois, como
todo mundo, as crianças mongolóides – a palavra monstruosa ganhava
agora um toque asséptico do jargão científico, apenas a definição fria,
não a sua avaliação – são anormalmente indefesas diante de infecções.
Um simples resfriado se transforma rapidamente em pneumonia e daí à
morte – às vezes é uma questão de horas, ele calculava. E há mais,
entusiasmou-se: quase todas têm problemas graves de coração,
malformação de origem que lhes dão uma expectativa de vida muito
curta. Extremamente curta, ele reforçou, como quem dá uma aula, o
balançar compreensivo de cabeça – é triste, mas é real. Anotaram no
caderno? E há milhares de outros pequenos defeitos de fabricação
(Tezza, 2008, p. 35, grifo meu).

A narrativa do desconforto vai intensificando a crueldade e surpreende cada


vez mais o leitor. O pai começa a delirar com o desejo de morte do filho,
repensa o futuro considerando a hipótese da morte da criança em até dez anos,
calcula o que seria melhor para a sua vida e, enfim, retomar seus planos de
sucesso, liberdade e sociabilidade:

Poucos vão além dos... quantos anos? Ele pensou em 10 anos, e calculou
a própria idade, achando muito; talvez 5, fantasiou, vendo
imediatamente uma sequência rápida de anos, os amigos consternados
pela sua luta, a mão no seu ombro, mas foi inútil – morreu ontem. Sim,
não resistiu. Voltariam do cemitério com o peso da tragédia na alma,
mas, enfim, a vida recomeça, não é? Um sopro de renovação – como se
ele tivesse existido apenas para lhes dar forças, para uni-los, ao pai e à
mãe, sagrados (Tezza, 2008, p. 37).

A história gira em torno do amadurecimento e da aceitação do diferente por


parte do pai, que não supera seus preconceitos e não se resolve internamente de
maneira plena. Afastar uma visão romântica da parternidade é um ponto
positivo do livro. O lho eterno mostra o protagonista assumindo seus erros,
culpas e limitações sem resistência, em constante processo de aprendizagem e
superação de si. Um homem que assume suas limitações e descobre novas,
continuamente. Ao longo da história, o pai vai aceitando o filho, aprendendo a
lidar com a diferença e permitindo-se descobrir o novo:

Mas, ontem, pela primeira vez o menino reconheceu o boneco apenas


pelo pé – e avançou chão à frente para tirar o lenço que ocultava a
figura. O triunfo de Piaget! – e o pai sorriu. No bar, a filosofia e a risada,
o brinde da cerveja: somos todos reiteráveis! Estende o dedo para o filho
que mais uma vez chegou ao chão, passa a unha suavemente na palma
da sua mão, e o indicador do pai é imediatamente agarrado pelos
dedinhos macios, o braço trêmulo avançando entre as grades da bruxa
em busca de segurança (Tezza, 2008, p. 112).

Aos poucos, o pai começa a se identificar com o filho e reconhece, nele,


suas próprias características:

O filho começa a dar os primeiros passos, dois anos e dois meses depois
de nascer. Eu também nunca fui precoce, ele pensa, sorrindo, ao ver o
menino andando sozinho pela primeira vez, num equilíbrio delicado e
cuidadoso, mas firme (2008, p. 121, grifo meu).
Pensa na teimosia: o seu filho é teimoso. Faz parte da síndrome, ele sabe,
a circularidade dos gestos e das intenções, que se repetem
intensivamente como um disco riscado que não sai de sua curva – mas o
pai também é teimoso, e mais obtuso ainda, porque sem a desculpa da
síndrome (2008, p. 129, grifo meu).

Com a convivência e a espontaneidade do carinhoso Felipe, o pai vai se


permitindo assumir o amor que sente pelo filho. No final da história, o sumiço
repentino de Felipe revela ao pai a intensidade e a dependência desse amor e o
medo de perder o menino: “Só descobriu a dependência que sentia pelo filho
no dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez” (Tezza, 2008, p. 161);
“Aqui e agora: voltando para casa sem o filho, o mesmo filho que ele desejou
morto assim que nasceu, e que agora, pela ausência, parece matá-lo” (p. 169).
Tezza transforma sua experiência pessoal em matéria de ficção. Embora a
palavra “filho” conste no título, o livro trata da história e da expressão da
subjetividade do pai, que é também Cristovão Tezza, pai de Felipe. Roland
Barthes ([1971] 2005) lança mão do termo (de origem grega) anamnese para
falar do exercício de trazer de novo [ana] a memória [mnese], e de uma verdade
que nunca é objetiva – o biografema (neologismo de Barthes):

Se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse,


pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns
pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos:
‘biografemas’, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular
fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos,
algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida
com espaços vazios, como Proust soube escrever a sua, ou então um
filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o fluxo da imagens
(esse umen orationis, em que talvez consista a ‘porcaria’ da escrita) é
entrecortado, como salutares soluços, pelo rápido escrito negro do
intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro significante [...] (Barthes,
[1971] 2005, p. XVII).

Segundo Barthes, “o biografema nada mais é do que anamnese factícia:


aquela que eu atribuo ao autor que amo” (Barthes [1975] 2003, p. 126). O
conceito de biografema está ligado à ideia de uma biografia descontínua, “a
alguns pormenores, a alguns gostos”, uma biografia feita a partir de
fragmentos, repleta de vazios que convidam o leitor a criar ativamente, a
compor outro texto a partir daquele, um texto que é dele mesmo, leitor, e do
autor. Na teoria literária, o neologismo barthesiano biografema está
intimamente ligado ao neologismo doubrovskyano auto cção. O primeiro,
biografema, se refere a “traços biográficos” como uma crítica às grandes linhas
da historiografia e à crença de que a biografia dê conta da totalidade da história
de vida de uma personalidade; o segundo, autoficção, se refere, por assim dizer,
aos “traços autobiográficos”, uma espécie de “autobiografema”, também
associado à fragmentação do sujeito e do discurso, à mobilidade do vivido e do
narrado e à descontinuidade do real, ou seja, à potência de reinvenção da
própria vida.
O que temos em O lho eterno é um registro ficcional sobre os dados
biográficos do autor, por meio de um discurso confessional em que trata da
história de um pai e o nascimento do seu primeiro filho, homônimo ao filho
do autor e portador da mesma síndrome. Entretanto, para facilitar a escrita
ficcional, optou pelo uso da terceira pessoa, pois desejava uma recepção
literária da obra. Essa foi “a grande chave técnica do livro porque não me
envolvi. A terceira pessoa me deu liberdade para lidar com o narrador. Eu
trabalho escancaradamente com dados biográficos: eu tenho um filho com
síndrome de Down e esse é o tema central do livro”.20
Seria, então, O lho eterno um novo perfil da autoficção?
O uso deliberado da terceira pessoa como recurso para atestar a
ficcionalidade da narrativa talvez não seja o suficiente para configurar um novo
perfil da autoficção, mas sim para diagnosticar uma nova possibilidade entre
tantas outras.
Todavia, a pergunta é inevitável pois a definição primeira de autoficção
reclamava a identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista, e não é
o caso de O lho eterno. A construção do narrador em terceira pessoa por Tezza
é uma estratégia literária. Entretanto, é válido nos questionarmos: como
explicar uma “ficcionalização de si” em que a narrativa não é feita por um eu-
narrador que compartilha fragmentos esparsos de sua memória, mas por um
outro-narrador que parece agir como um duplo, um alter ego? Seria, pois, uma
invenção de si-mesmo como se fosse um outro? Podemos pensar a invenção de
si-mesmo sempre como se fosse um outro; algumas vezes de forma explícita
e/ou deliberada, outras vezes de forma camuflada e/ou inconsciente.
O si-mesmo como um outro é título do livro de Paul Ricœur, que dá
sequência aos três tomos de Tempo e Narrativa.21 Ricœur sublinha as
dificuldades ligadas à questão da identidade e a necessidade de diferenciar a
identidade pessoal, denominada mesmidade, da identidade narrativa,
denominada ipseidade. Para o filósofo, a identidade do narrador se modifica
durante o jogo dinâmico do narrar, e o exercício de memória autobiográfica é
sempre marcado por uma ficcionalidade, já que

a compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua


vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma
mediação privilegiada; esse último empréstimo à história tanto quanto à
ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia [...]
(Ricœur, 1991, 140).

No caso de Tezza, o uso da terceira pessoa do discurso é um recurso para a


“compreensão de si”, que também é “uma interpretação de si” por meio da
“mediação privilegiada” que é a narrativa, a narrativa como constituição de si.
Na autoficção, o “si-mesmo como um outro” é a possibilidade de o autor
enxergar a si mesmo como uma personagem, um duplo ficcional. Desse modo,
a experiência da narração transforma o vivido no contado, adotando uma
identidade narrativa (ipseidade) passível de interpretação e compreensão (cf.
Ricœur, 1991).
Dessa perspectiva é que Klinger considera a autoficção “uma forma de
performance”, pois o texto autoficcional requer e implica a “dramatização de si”,
tal qual vemos no proscênio: “um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e
fictício, pessoa (ator) e personagem” (Klinger, 2007, p. 53-54). Por isso Klinger
rejeita a coincidência entre pessoa real (autor) e personagem textual (narrador-
protagonista) postulada por Lejeune, e aceita a noção de construção do autor e
do narrador:

O conceito de performance deixaria ver o caráter teatralizado da


construção da imagem de autor. Desta perspectiva, não haveria um
sujeito pleno, originário, que o texto reflete ou mascara. Pelo contrário,
tanto os textos ficcionais quando a atuação (a vida pública) do autor são
faces complementares da mesma produção de uma subjetividade,
instâncias de atuação do eu que se tencionam ou se reforçam, mas que,
em todo caso, já não podem ser pensadas isoladamente. O autor é
considerado como sujeito de uma performance, de uma atuação, um
sujeito que ‘representa um papel’ na própria ‘vida real’, na sua exposição
pública, em suas múltiplas falas de si, nas entrevistas, nas crônicas e
autorretratos, nas palestras (Klinger, 2007, p. 55).

Em estudo sobre as “literaturas íntimas”, Hubier examina o uso singular da


primeira pessoa – eu – nos discursos ditos referenciais e nos discursos literários
e identifica os gêneros que o empregam: a autobiografia, as memórias, os
diários (journal intime), o romance epistolar e o romance autobiográfico, as
crônicas, os relatos de viagem e a autoficção. O propósito do estudioso francês
foi discernir os gêneros que se pretendem referenciais e valorizam a
autenticidade do discurso, dos gêneros ficcionais, que podem utilizar a forma
dos primeiros como estratégia literária intencional. Uma terceira via seriam os
discursos situados entre os dois gêneros, nos limiares da realidade e da
imaginação. Hubier demonstra que “o uso da primeira pessoa aparece aos
romancistas e aos novelistas como um meio de deixar sempre mais verossímeis
suas ficções”. Aqui, aproxima-se do apontamento de Barthes (2004 [1953]),
para quem o uso da terceira pessoa, o ele, e o passado simples como tempo
verbal são recursos que criam um pacto ficcional com o leitor e dão os
contornos à máscara da ficção. Para Barthes, o tempo verbal do Romance é o
“passé simple”, retirado do francês falado, forma verbal cujo uso ficou reduzido
ao texto escrito e literário. Empregar o “passé simple” nas narrativas é o
“instrumento ideal de todas as construções de universo” e “indica sempre uma
arte; faz parte de um ritual das Belas-Letras” (Barthes, 2004 [1953], p. 27). O
leitor sabe, então, que se trata de “um mundo construído, elaborado,
destacado, reduzido a linhas significativas” (p. 27). O passado simples “significa
uma criação: quer dizer que ele a assinala e a impõe” (2004, p. 29).
Se, para Aristóteles, a História é aquilo que aconteceu e a Literatura é
aquilo que poderia ter acontecido, Barthes afirma que é por meio do uso do
passado simples que “uma mentira manifesta traça o campo de uma
verossimilhança que desvendaria o possível no tempo mesmo em que ela o
designaria como falso” (Barthes, 2004 [1953], p. 29).
A escrita do romance no tempo passado simples exerce uma função ambígua,
dá ao imaginário “a caução formal do real”, mas reveste o signo da
“ambiguidade de um objeto duplo, ao mesmo tempo verossímil e falso”
(Barthes, 2004 [1953], p. 30). Portanto, a escrita do Romance combina o uso
de um tempo verbal próprio da ficção e o emprego da terceira pessoa. O “ele”
afirma a intenção do escritor em criar um universo fictício e estabelece com o
leitor um pacto ambíguo em que o narrado parece, mas não é real.
Nos termos do crítico e semiólogo,

Essa função ambígua do ‘passé simple’ é também encontrada em outro


fato de escrita: a terceira pessoa do Romance. [...] O ‘ele’ é uma
convenção típica do romance; à semelhança do tempo narrativo, ele
indica e cumpre o fato romanesco; sem a terceira pessoa, há impotência
em se atingir o romance, ou vontade de destruí-lo. O ‘ele’ manifesta
formalmente um mito [...]. A terceira pessoa, como o ‘passé simple’,
devolve pois esse ofício à arte romanesca e fornece aos seus
consumidores a segurança de uma fabulação credível e no entanto
continuamente manifestada como falsa (Barthes, 2004 [1953], p. 31).

Käte Hamburger exclui a narrativa em primeira pessoa de sua “lógica da


ficção”, pois o que legitima uma narração ficcional é o uso do pretérito
imperfeito (não mais para exprimir o passado, mas para legitimar a narrativa
como ficcional) e a expressão de uma subjetividade em terceira pessoa: “é
somente da diferença entre enunciação e narração ficcional que se pode
desenvolver a estrutura lógica da ficção” (Hamburger, 1986, p. 45). De acordo
com a autora, ficção “é derivado do latim ngere, que tem os sentidos mais
diversos de compor, imaginar, até a fábula mentirosa, o fingimento” (p. 39).
Pode-se pensar, então, que a ficção não é uma mentira propriamente dita, mas
uma representação do real, um simulacro do real, se quiserem. O leitor acredita
que a matéria narrada é o real, mesmo que ela só exista na imaginação do
autor, devido à verossimilhança.
Um romance conta uma história na qual acreditamos; ele tem de ser
verossímil em suas ações, personagens e diálogos, mas não necessariamente
verdadeiro. Aparentemente, o uso do passado simples e da terceira pessoa do
Romance se afasta da proposta doubrovskyana de autoficção, que insere no
universo do Romance a primeira pessoa do singular no tempo presente e cria nova
perspectiva de criação de uma diegese e de um eu igualmente romanesco.
Barthes considera o eu menos ambíguo22 e o ele impessoal (grau negativo da
pessoa). Contudo, em uma perspectiva pós-moderna, é possível aceitar a nova
categoria de autoficção como uma forma de legitimar a ficcionalidade de uma
narrativa na primeira pessoa, esmaecendo a fronteira que separa fato de ficção,
tomando parte da “autêntica lógica da criação literária”, produzindo a “ilusão
da vida” com um novo sentido teórico (linguístico e literário). Para
Doubrovsky, o discurso autoficcional está ancorado na ambiguidade do eu, que
funda o pacto oximórico com o leitor que se questiona sobre a identidade real
do protagonista. Ademais, o autor estabelece a dupla recepção da obra –
ficcional e autobiográfica – e explora os limites fugidios da realidade e da
imaginação.
A peculiaridade de O lho eterno reside no estatuto narrativo ambíguo: não é
autobiografia e tampouco pura ficção romanesca. É “falsa ficção, que é história
de uma vida verdadeira”,23 nas palavras de Doubrovsky. A autoficção se instaura
entre os dois, como um torniquete, em um lugar impossível. Como anotou
Manuel Alberca (2007), a ambiguidade calculada ou espontânea é um dos
traços mais característicos da autoficção e permite ao autor contar a vida vivida
ao lado de outras vidas imaginadas; narrar o que foi e o que poderia ter sido de
forma intrincada e indistinguível.
O fragmento em epígrafe no livro de Tezza, de omas Bernhard, sugere o
processo de autocompreensão do sujeito que escreve sobre si e reconhece, na
escrita do eu, uma reconstrução arbitrária. A reconstituição de eu ambivalente
pode buscar a fidelidade dos fatos, mas acaba criando e dizendo algo diverso da
verdade: “Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade.
Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é
outra coisa que não a verdade”. Ao comentar o livro, Tezza afirma que escreveu
a própria história, mas esta resultou da força de sua trajetória de vida e
ultrapassou a intenção inicial do autor:

Sempre digo que o texto sabe mais do que eu. [...] O filho eterno me
ensinou isso, eu estava com uma visão muito limitada dele, [...]
mesquinha. Eu percebi que escrevi um livro muito maior do que eu.
Tem coisa ali que foi a minha história que escreveu, não foi aquele
provavelmente sujeito que estava dizendo opiniões e colocando visões de
mundo. Isso para mim é maturidade literária.24

Tezza utiliza as possibilidades e estratégias da autoficção, entretanto, opta


pelo uso da terceira pessoa. Essa chave técnica auxiliou na ficcionalização de si
e na manutenção do anonimato da personagem principal. O autor explica que
não conseguiu manter o distanciamento necessário para legitimar a
ficcionalidade da obra utilizando a primeira pessoa do discurso. Como vimos,
autoficção possibilita a inserção da primeira pessoa e do tempo presente na
lógica da ficção.
O debate sobre o conceito de autoficção tem sugerido redefinir as fronteiras
que o demarcam e O lho eterno aponta uma dessas possibilidades: a
flexibilização da identidade onomástica perfeita e explícita entre autor-
narrador-herói e do uso da primeira pessoa do discurso. Tezza desfruta da
liberdade do pacto oximórico da autoficção e do uso singular da terceira
pessoa, que funciona como “falsa terceira pessoa”, já que se percebe a
consonância entre o narrador e a mente narrada. A relação entre narrador e
protagonista é tão intrínseca que a perspectiva feminina (esposa-mãe,
empregada, irmã) acabou sendo excluída do romance. Para Santiago (2007),
essa ausência empobrece a narrativa:

Talvez venha do narrador autocentrado o fato de que as vozes femininas


– a da mulher e a da filha nascida de uma segunda gravidez – sejam
representadas no romance pelo silêncio, como se pertencentes ao
universo patriarcal de José Lins do Rego [1901-57]. Dentro da poética
confessada do narrador, não poderiam ter sido elas responsáveis por
outras enriquecedoras “camadas sob camadas”? (Santiago, 2007, s. p.).

Em suma, o uso da terceira pessoa permitiu que Tezza alcançasse


distanciamento objetivo de si e escrevesse com olhar crítico sobre a sua
experiência. Trata-se, portanto, de uma estratégia alternativa para “gerar ilusão”
e estabelecer o pacto ambíguo. Também contribuiu para a recepção literária do
livro, conforme o próprio autor revela na entrevista on-line já mencionada.

O perigo da autoficção

Depois do diário, ela me enviou um documento registrado em


cartório com, no final das contas, uma ameaça: se você continuar
escrevendo sobre o nosso divórcio, vou te processar. Tenho provas
cabais de que você está violando a lei brasileira.
Ricardo Lísias

A escritora francesa Christine Angot e seu editor Flammarion foram


condenados por atentado à vida privada de Mme Bidoit, ex-mulher do marido
de Angot, que virou personagem na autoficção Les petits (2011). Angot e seu
editor pagaram uma indenização de quarenta mil euros.25 Camille Laurens,
autora da autoficção L’amour, roman (2003), também foi processada pelo ex-
marido, que alegou exposição de sua intimidade na obra. Laurens escreveu
sobre seu divórcio e manteve o nome verdadeiro do ex-marido, Yves Mézières.26
Marcela Iacub e les éditions Stock, processados por danos morais, tiveram de
pagar cinquenta mil euros ao ex-amante da autora, Dominique Strauss-Kahn,
por conta da autoficção Belle et Bête (2013).27 A ex-mulher de Doubrovsky
bebeu vodka até morrer após ouvir trechos, lidos pelo próprio marido ao
telefone, revelando os detalhes de seu alcoolismo na autoficção Livre brisé
(1989).
Seria, então, a autoficção uma escrita perigosa? Se sim, perigosa para quem?
Pretendo abordar os riscos extra-literários que rondam a escrita de autoficções,
tanto para o autor e seu editor, sujeitos a receber punições pela ousadia, quanto
para as “personagens reais” dos livros autoficcionais, que podem se ver em meio
a relatos que as constrangem, humilham, difamam ou desonram.
Vale, aqui, uma nota mais detida sobre impasses éticos e jurídicos
experimentados por Doubrovsky. Em “L’autofiction dans le collimateur”
(2013), o autor francês analisa a autoficção sob o ponto de vista jurídico,
dando-nos um depoimento dos prejuízos que suas obras lhe trouxeram. O
problema fulcral da autoficção é que “escrever sobre si é inevitavelmente
escrever também sobre os outros”,28 o que leva a dilemas éticos e problemas
jurídicos. Por esse motivo, ao transformar a sua vida em romance, opta por
trocar os nomes das pessoas envolvidas. Mas nem sempre a solução é
satisfatória. Quando Doubrovsky escreveu sobre sua relação com a estudante
Mary Ann, a personagem se chamou Marion, mantendo-se a proximidade da
pronúncia do nome; sua esposa Claire, depois de ler o romance do marido,
pediu para que ele não empregasse mais o nome dela, o que o fez substituir
Claire por Claudia. Mesmo com essas trocas, as pessoas continuavam
reconhecíveis. Em Un amour de soi (1982), ele descreve detalhadamente sua
relação extraconjungal com “Rachel” (pseudônimo criado pelo autor). Porque
Rachel seria facilmente identificada em seu meio profissional, Doubrovsky se
aconselhou com um advogado, que lhe sugeriu mudar os detalhes do relato,
para não correr o risco de ser processado ou ter a circulação de seu livro
proibida.
Livros cujos enredos tratam de aspectos íntimos e/ou polêmicos da vida do
autor ou de seu círculo de convivência costumam ser indevidamente associados
à autoficção. Trata-se de livros com intenção de causar impacto e celeuma e
com vendagem garantida pelo público leitor voyeur. Um exemplo é o livro
Merci pour ce moment, da ex-primeira-dama francesa Valérie Trierweiler,29 que
faz um “acerto de contas” com o presidente François Hollande, em resposta à
descoberta e divulgação pela imprensa do caso extraconjugal do marido. A
autora se vinga do então presidente francês revelando a intimidade deste.
Tomar obras desse teor por autoficções é um erro porque, por um lado, são
obras cuja qualidade literária é dúbia, obras que nascem de motivações
eticamente questionáveis e, principalmente, destituídas do necessário pacto
ambíguo com o leitor.
A este propósito, em “Autoficção e mamadeira”, Michel Laub menciona os
desdobramentos da ética nesse perfil de literatura, sem entrar no mérito
estético. Afirma que “estamos na era da narrativa confessional, do interesse
mórbido na intimidade alheia”; por isso livros como o de Valérie e Lindon, este
último autor de um relato de sua vida afetiva com Foucault, acabariam tendo
“vantagem mercadológica” (Laub, 2014).30 Entretanto, quem compra o livro de
Lindon não quer saber o que ele inventou sobre a sua relação com Foucault, e
sim o que ocorreu de fato. No contrato de leitura, há uma intenção de verdade.
A “vantagem mercadológica” desses livros é equivalente à vantagem da
autobiografia. Basta ver que não se compra autobiografia de desconhecidos,
embora elas existam. O movimento da escrita é do autor para a obra, não da
obra para o autor, como na autoficção. Entretanto, autoficções podem também
funcionar como arma de vingança.
No Brasil, a autoficção como meio de revanche não é recurso tão frequente
quanto na França. Os dilemas éticos, ainda que recorrentes, não são atributo
necessário da autoficção. Também não sabemos de nenhum caso brasileiro de
processo ou de indenização que tenha sido amplamente divulgado. Existem,
sim, alguns casos que causaram controvérsia e alvoroço na recepção, entre eles
os casos dos escritores Marcelo Mirisola e Ricardo Lísias. Neste capítulo,
dedico-me à análise de Divórcio, de Ricardo Lísias, que servirá para pensarmos
essas questões a partir de um exemplo da literatura brasileira. A escolha desse
livro como paradigma de um perfil da autoficção muito próximo aos exemplos
franceses justifica-se (1) pela repercussão de sua publicação, (2) pela
ambiguidade da narrativa, cujas estratégias discursivas e literárias levam o leitor
à confusão de realidade e ficção, (3) pelo histórico do autor, que publicara
também O céu dos suicidas, autoficção baseada no suicídio do amigo e colega da
Unicamp André, cujo nome permanece idêntico no livro e (4) porque a
pendenga judicial foi abordada em Divórcio como parte integrante da narrativa
ficcional.

O caso Divórcio
Divórcio apresenta identidade onomástica perfeita entre autor, narrador e
personagem principal: Ricardo Lísias.31 Nome e sobrenome idênticos, na vida e
no papel. O romance trata de um trauma recente na vida da personagem: a
descoberta inesperada do diário da sua mulher:

Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a


gaveta da minha ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li
uma frase e minhas pernas perderam a força. Sentei no lado dela da
cama e por um instante lutei contra mim mesmo para tomar a decisão
mais difícil da minha vida. Resolvi por fim ler o diário da primeira à
última linha de uma só vez (Lísias, 2013, p. 25).

Romance publicado no Brasil (Alfaguara, 2013), Divórcio chamou a


atenção. Nele, o narrador Ricardo Lísias fala sobre o fim traumático de seu
casamento de quatro meses com uma jornalista de cultura, famosa em São
Paulo. O divórcio deu-se pelo encontro acidental do diário que a ex-mulher
escrevia enquanto o marido dormia. Nesse diário, a [X] – maneira como o
narrador se refere à ex-mulher, preservando a identidade dela na narrativa32 –
escreve sobre suas aventuras extraconjungais:

A mulher que eu sou só poderia desabrochar em um lugar como o


Festival de Cannes. A noite que passei com o [X] no Festival de Cannes
me mostrou quem eu sou de verdade. Ser casada com um escritor é
bom, ter conhecido homens mais velhos me fez crescer e ser madura,
mas eu precisava de um lugar como Cannes para desabrochar. Só que
um cara fechado como o Ricardo nunca vai entender isso (Lísias, 2013,
p. 101-102, grifo do autor).

O conteúdo encontrado no diário é decepcionante para Lísias-narrador. A


escrita diarística nos permite o acesso à vida íntima, à escrita cotidiana, que não
é feita para ser lida pelos outros. No diário, a ex-mulher confessa não só as
traições e o fato de não estar apaixonada em plena lua-de-mel, mas também as
impressões negativas a respeito do marido (um menino bobo, um homem que
não viveu, um cara fechado, um retardado, muito esquisito). Todas essas
revelações levam Lísias à “perda da pele”, metáfora da dor, do sofrimento, da
decepção e da agressão moral sofrida pelo teor do conteúdo encontrado no
diário:

Sem saber, fui apresentado ainda para quatro ex-amantes dela e descobri
há um mês que vivi a constrangedora situação de ter tomado café em
Paris com um fotógrafo francês com quem ela tinha transado anos antes.
[...] Não sei se algum dia vou entender o que faz uma mulher de trinta e
sete anos escrever um diário como esse e, ainda mais, deixá-lo para o
marido com quem acabara de se casar. Divórcio é um romance sobre o
trauma (Lísias, 2013, p. 130, grifo meu).

Lísias recorre à literatura (“Recorri à literatura porque não tenho mais


nada”, “Só vou recobrar minha pele e me sentir de novo emocionalmente
estável se escrever sobre o que aconteceu”)33 e à corrida exaustiva (“Depois,
comecei a correr”)34 para “recuperar a pele”, ou seja, realizar o luto da morte da
relação matrimonial, aliviando e reinventado a sua raiva e decepção,
elaborando uma espécie de romance-vingança (“Divórcio pode ser visto como
uma manifestação de ressentimento”).35

Mandei uma mensagem pelo celular quando ela estava saindo para o
almoço de despedida com os colegas do jornal. Fiz uma cópia do seu
diário e não quero mais te ver. Aceito o divórcio amigável, mas exijo que
você devolva o dinheiro que gastei no casamento. Ela respondeu na
hora: Ricardo, você descobriu minha sombra (Lísias, 2013, p. 88).

O conteúdo do romance é forte e cruel. O narrador não oculta os detalhes


sórdidos, nem mascara seu ressentimento. O ritmo das situações reveladas é
acelerado; o narrador é nervoso e agressivo; a crítica aos jornalistas é ácida; a
estrutura desordenada e não-linear da narrativa é reflexo do caos interno do
protagonista agoniado.
Em Divórcio, o narrador afirma que não há uma palavra de ficção: “[...] o
diário que reproduzo aqui é sem nenhuma diferença o mesmo que xeroquei
antes de sair de casa. Aliás, não há uma palavra de ficção nesse romance”
(Lísias, 2013, p. 172). Os nomes não revelados, da ex-mulher e dos outros
envolvidos, corroboram para a interpretação de que não se trata de uma ficção
propriamente dita. O artifício de ocultar os nomes reais deixa pistas de que o
autor não quer se comprometer e estimula a recepção ambígua da obra.
A estrutura do romance é híbrida, o autor intercala partes do diário íntimo
da ex-mulher (personagem), que são datadas e recebem distinção em itálico;
capítulos cujos títulos seguem uma incrível progressão quilométrica –
Quilômetro um, dois, três etc. –, sempre acompanhados de um subtítulo que
antecipa o teor do que está por vir – “Quilômetro três, uma lista das qualidades
e dos defeitos do meu marido” –; a reflexão autoanalítica e metaliterária da
construção de Divórcio; a irônica troca de e-mails com o advogado da ex-
mulher; uma autodefesa do próprio romance, de suas generalizações e
injustiças; e, curiosamente, fotos antigas dele mesmo quando criança e da
família.
Lísias-narrador conta deliberadamente a experiência traumática do divórcio,
uma experiência de dor dilacerante, inscrita no corpo esfolado, cuja metáfora
da perda da pele não poderia ser mais propícia para expressar a fragilidade desse
narrador esfacelado, que se coloca como vítima de uma violência abrupta:

[...] Ardeu porque meu corpo estava sem pele. O caixão continuava ali.
De alguma forma, meu queixo acertou o joelho esquerdo. A carne viva
latejou e ardeu. Como o choque foi leve, não durou muito. A sensação
de queimadura também passou logo. Mesmo assim, meus olhos
reviraram. Alguns desses movimentos são claros para mim. Estão em
câmera lenta na minha cabeça.

Outra vez estendi o braço direito e ele tocou o caixão. O cadáver sem
pele ainda me obedecia. Tentei abrir os olhos para confirmar se
continuava morto na cama nova. Não consegui. Meu estômago
encolheu. Senti falta de ar. É difícil respirar com tanta escuridão. O
coração dispara. Veio-me à cabeça o dia em que minha ex-mulher
demorou para fazer alguma coisa enquanto eu me afogava. Tive
dificuldade para abrir os olhos. Minhas mãos latejavam. Um clarão
distante me deixou com tontura. Um corpo em carne viva é quente
(Lísias, 2013, p. 7-8, grifos meus).

Ricardo Lísias assina “corajosamente” embaixo de tudo o que escreve,


mostrando seu desprezo em relação ao modo como o jornalismo trabalha, com
fontes ocultas e, por isso, covardes (para usar o termo do próprio autor);
apresenta fotos de seu arquivo pessoal – ele quando bebê e fotos da família –, o
que, à primeira vista, reforçaria a veracidade dos fatos; também há referências
explícitas à sua profissão, à cidade onde mora e aos romances anteriormente
publicados. Entretanto, há uma série de elementos que confundem o leitor,
como a contradição nos argumentos do narrador, que uma hora afirma escrever
“sem uma palavra de ficção” e outra hora afirma o extremo oposto, “Divórcio é
um livro de ficção em todos os seus trechos”, e fala em “personagens”, deixando
o leitor numa zona de incertezas, sem possibilidade de definir com segurança o
que é, afinal, Divórcio:

Se minha ex-mulher não queria inspirar uma personagem, não deveria


ter brincado com a minha vida. No estágio atual da ficção, é preciso que
o esqueleto de um romance esteja inteiramente à vista. No meu caso,
fizeram o favor de registrar parte do eu aconteceu em um cartório.
Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos. Agradeço às três
pessoas que foram fundamentais no processo de recuperação que ele
recria, mas que não aparecem na trama (Lísias, 2013, p. 189-190, grifo
meu).

Tal jogo de contradições, que leva o leitor à dupla recepção – autobiográfica


e ficcional – da obra, é próprio da autoficção. Na fronteira entre o pacto
autobiográfico e os princípios de veracidade e identidade e o pacto romanesco e
os princípios de invenção e de não-identidade, a autoficção firma o pacto
ambíguo, por meio do qual torna possível a produção da equivalência A = N =
P (Autor = Narrador = Personagem) no espaço romanesco. Sendo assim, a
autoficção é uma terceira via ficcional, já que ela circula entre dois gêneros –
autobiografia e romance.
Na literatura contemporânea brasileira, a autoficção ganha espaço. Há
inúmeros autores contemporâneos que se transformam em personagem num
contexto romanesco e jogam com as noções de falso e verdadeiro, realidade e
invenção. Existem casos extremos dos efeitos práticos e reais desse jogo com a
realidade. Como já vimos, na França é muito recorrente. Os perigos do autor
em escrever o que pode ser considerado um romance-vingança talvez sejam os
riscos e prejuízos (morais e jurídicos) que a superexposição de outra pessoa
poderia causar. No caso do Divórcio, Lísias parece não estar preocupado com a
recepção da obra (que seria responsabilidade exclusiva do leitor) e nem com a
questão ética:

[...] cada leitor é livre para fazer a própria leitura. A literatura – e de


novo a arte de maneira mais ampla – não é capaz de reproduzir a
‘realidade’. Assim, nenhum romance ‘expõe’ a vida de seu autor ou de
qualquer outra pessoa, mas sim cria personagens e situações ficcionais
(Lísias, 2013).36
Em Divórcio, o narrador conta que foi ameaçado de processo judicial pela
ex-mulher e por isso teve de se justificar: “Não estou tratando de uma pessoa
em particular. Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance”
(Lísias, 2013, p. 128). O modo como o autor coloca dentro do romance, isto
é, do espaço ficcional, questões pertinentes à prática – muitas vezes polêmica –
da autoficção é instigante. Lísias – dentro e fora do romance – argumenta que
o livro é para ser lido como ficção, as personagens e o narrador foram criados,
tornando, assim, inapropriado o fato de ser levado a julgamento:

O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro lugar,
Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à trama
ficcional elementos da realidade. Depois há um narrador visivelmente
criado e diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência, para
justamente causar uma separação. Eu queria me ver livre de muita coisa.
Sim, Excelência, a palavra adequada é ‘separar-me’. [...] Enfim,
Excelência, o senhor sabe que a literatura recria outra realidade para que
a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era justamente reparar um
trauma: como achei que estava dentro de um romance ou de um conto
que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter certeza de que estou
aqui do lado de fora, Excelência (Lísias, 2013, p. 217-218).

Ao incorporar a questão na própria narrativa autoficcional, o autor constrói


um jogo ambíguo de simulação e/ou revelação dos diálogos irônicos com o
advogado da ex-mulher, argumentos de autodefesa e possíveis consequências
do atentado à vida privada. Fora do livro, pode-se dizer que as respostas do
autor às entrevistas sobre a polêmica do romance também são performáticas.
Talvez, sem ainda compreender bem a proposta da autoficção à época, já que
ela se apresenta até hoje bastante complexa e controvertida, o autor respondeu
o seguinte:
Não acho possível que a ficção traga ‘experiências pessoais do autor’.
Creio que a discussão que o termo ‘autoficção’ traz no mais das vezes
parece equivocada. A ‘experiência pessoal’ está perdida assim que ela
acontece. A literatura não reproduz a realidade, mas cria outra
realidade a partir da utilização da linguagem. Sabemos todos que a
linguagem é limitada e muito diferente da realidade, as palavras não são
as coisas. Portanto não pode haver realidade de nenhuma ordem na
ficção.

O que parece ocorrer é que com as novas mídias a figura do autor


passou a aparecer mais e então a leitura dos textos dos autores começa a
ser calcada nessa representação de sua vida pelas diferentes mídias. Ainda
que o resultado sociológico possa ser interessante, uma leitura do tipo
‘há experiência pessoal aqui’ é redutora do ponto de vista artístico. Estou
tentando escrever, na minha ficção, textos que induzam as pessoas a
verem como elas podem se enganar quando vão atrás da ‘realidade’
(Lísias, apêndice deste livro. Grifos meus).

Será mesmo que se o leitor de Divórcio for atrás de informações factuais, vai
se enganar? Antes da publicação deste romance, Lísias publicara três contos
sobre separação: “Meus três Marcelos”, “Divórcio” e “Sobre a arte e o amor”,
espécie de gérmens do romance Divórcio. De acordo com Luciene Azevedo
(2013), o conto “Meus três Marcelos” passa a circular depois do “anúncio do
divórcio, feito pelo próprio Lísias nas redes sociais de que ele participa na
internet”, e os três Marcelos identificados são os amigos de Lísias – Moreschi,
Ferroni e Mirisola (Azevedo, 2013, p. 103). Já “Divórcio” é um texto
publicado na revista Piauí, em novembro de 2011, em que “sem homonímia
ou a menção a qualquer diário [...] é muito mais sutil em relação à dicção
escancaradamente autobiográfica” (p. 104). E, por fim, “Sobre a arte e o amor”,
é uma espécie de carta assinada por Lísias, “como resposta à notificação
extrajudicial enviada pelo advogado de Ana Paula Souza, ex-mulher do autor”,
cuja circulação é considerada – por Azevedo – “a grande volta do parafuso” (p.
104).
Se o ponto de partida do autor de Divórcio é pessoal e traumático, seria
suficiente, depois de publicado, dizer que a literatura não reproduz a realidade
e que o autor criou situações ficcionais? Ao responder à notificação
extrajudicial, Lísias-personagem discorda que tenha invadido a privacidade da
ex-mulher ao divulgar parcialmente seu diário íntimo (como vemos as
justificativas no próprio romance). Afirmar que o livro é ficção seria, então,
uma forma de se absolver da censura e da cobrança de outrem pela
superexposição? Falar em criação de personagens não seria uma maneira de se
aliviar dos imperativos éticos e das ameaças jurídicas que circundam a escrita
escandalosa do trauma irrecuperável? Nessa questão, é difícil definir os limites
da autoficção.
Até que ponto a autoficção, em contraposição à autobiografia, dá liberdade
plena a seu autor para manipular verdades e eventos narrados sobre a vida de
outros? Sébastien Hubier considera como privilégio da autoficção “a
possibilidade de falar, por ela, de si mesmo e dos outros sem nenhuma forma
de censura” (Hubier, 2003, p. 125, grifo meu).37 Entretanto, vemos que não é
bem assim. Se o pacto oximórico permite que o autor fale dele mesmo e dos
outros sem censura nem autocensura, como explicar o constrangimento ou os
processos jurídicos que os autores enfrentam por escreverem e reinventarem a
própria vida e, por consequência, a vida dos outros? Ao afirmar que tudo o que
escreveu é cção, Lísias estaria livre do impasse da autobiografia e de seu “pacto
autobiográfico”? O rótulo cção pouparia, então, o autor de problemas
jurídicos? Não seria Ricardo Lísias um falso mentiroso?38
A trajetória de Lísias pós-Divórcio revela contínuo investimento nesse perfil
performático e na recepção confusa e midiática de suas obras. O livro Inquérito
policial família Tobias (2016), em seu formato inovador – anexando cópias de
documentos de diferentes tipos, conversas por celular, trocas de e-mails,
portarias e documentos oficiais –, também se deparou com recepção ambígua
de seus leitores. Não se sabia se o escritor havia sido processado ou se inventara
um processo para compor matéria para o livro. O autor afirmava, em público,
que o processo era verdadeiro. Novamente, Lísias provoca a recepção do livro
colocando em xeque as fronteiras entre a realidade e a ficção. O perfil midiático
do escritor continua sendo explorado em Diário da cadeia – com trechos da obra
inédita Impeachment (2017), assinado por Eduardo Cunha39 pseudônimo.
Lísias usufruiu do contexto de prisão de Eduardo Cunha e do desejo revelado
do ex-deputado em aproveitar o tempo na cadeia para escrever um livro, e
escreve sob o pseudônimo de Cunha. O livro teria sido proibido de circulação
por conta de uma ação judicial do próprio Cunha, porém o termo ficção
possibilitou a circulação do livro após o julgamento da ação para impedi-la.
Em 16 de março de 2020, O Globo publicou a notícia de que “Diário de
Cadeia, narrado pelo personagem ‘Eduardo Cunha (pseudônimo)’, foi barrado
em decisão favorável ao ex-deputado”.40 O que nos interessa é o modo
performático como o escritor se articula nas redes sociais e na mídia, e a
transformação do tribunal em personagem na sua carreira autoficcional. Os
temas de seus livros têm sido polêmicos e, independentemente dos méritos do
texto, o fato é que este tem recepção acalorada e imediata, por conta do
imbróglio. Após o Divórcio, Lísias tem investido no que denomina “literatura
performática”, cuja definição seria uma espécie de intervenção na realidade
contemporânea.
A indicação – bem cômoda – do livro como cção aliviou Camille Laurens,
no caso do já mencionado L’amour, roman. O pedido de Yves Mézières, ex-
marido cujo nome foi mantido na autoficção, foi indeferido por conta da
palavra cção, que poupou a escritora da condenação.
Os exemplos acima nos levam a indagar sobre os perigos da auto cção. Um
dos riscos para o autor é violar princípios éticos e morais, por isso, ser obrigado
às reparações impostas pela justiça. Risco adicional para o autor é se sentir
culpado pelas consequências negativas da publicação da obra, para as
personagens do livro viventes no mundo real. Como no exemplo drástico de
Doubrovsky, acusado de matar a mulher por amor à literatura. Doubrovsky
escreveu uma longa autodefesa para o caso e, ainda assim, permaneceu com a
culpa, em profunda depressão desde que sua mulher faleceu.
O “perigo da autoficção” não se circunscreve ao autor, mas também para os
envolvidos na história, cujas intimidades e segredos sofrem exposição invasiva.
Reinventar a si mesmo e aos outros, misturar realidade e ficção, por meio do
exercício autoficcional, pode resultar em textos bem indiscretos e
constrangedores. Jacques Lecarme considera a autoficção como um “gênero
essencialmente indelicado”, que “corre sempre o risco de perturbar as vidas
privadas de seus atores involuntários” (Lecarme, 2014, p. 100). Daí, o
questionamento sobre o direito do escritor de expor o outro. Ocultar o nome
de personagens reais, na narrativa, é suficiente para preservá-los? Quando Lísias
escreve sobre sua ex-mulher, leitores anônimos e desavisados não sabem de
quem se trata e a ambiguidade da narrativa os leva a desconfiar da veracidade
dos fatos. Essa desconfiança não prejudica o pacto ambíguo nem o duplo
protocolo de leitura. Mas, e as pessoas mais próximas e envolvidas na história –
família, amigos, vizinhos e conhecidos, como leem essa autoficção? Que
prejuízos não tiveram as personagens inspiradas em pessoais reais, por terem a
sua intimidade exposta de maneira involuntária na ficção?
A superexposição alheia na autoficção pode contribuir para o sucesso do
lançamento e das vendas, mas também tisnar a reputação do autor, como bem
observa Hidalgo:

Quando expõem questões íntimas, escritores franceses também violam a


privacidade de seus maridos, mulheres, amantes e filhos. Alguns
convertem conflitos típicos de telenovelas em romances esteticamente
elegantes. No entanto, a deselegância dessa superexposição alheia vem
gerando crescente número de reclamações de parentes nos tribunais,
levando a questão da ética na autoficção e injetando um viés de
escândalo na literatura – o que até ajuda a vender livros, mas afeta a
reputação do autor e influencia a leitura do texto em si (Hidalgo,
2013a).

E quando o ator involuntário da autoficção é alguém que já morreu, como


é comum em romances-luto ou no caso de autores que só autorizam a
publicação da obra após a morte dos envolvidos ou a sua própria morte? Como
ficaria o direito da pessoa exposta, agora defunto-personagem (com perdão do
trocadilho machadiano), de se defender? Um bom caso para pensar é a
polêmica gerada pela autoficção Livre Brisé (1989), que acarretou o suicídio
por embriguez da esposa de Doubrovsky. O caso é interessante porque inclui
nuance adicional: as fronteiras entre o relato autobiográfico e autoficcional,
mediado pelos jogos de verdade e ficção.
Doubrovsky diz não ser legalmente culpado pela morte da esposa, e alegou
se tratar de uma “autobiografia (ou autoficção) autorizada”, já que mostrava
cada capítulo e recebia aval prévio para publicação. Contudo, parece-me
incoerente falar em “autoficção autorizada”, pois o emprego da palavra ficção
funcionou originalmente para aliviar o seu autor das censuras. Acusado de ter
matado a sua mulher por amor à literatura, Doubrovsky afirma que somente o
escritor e o juiz podem, “em sua alma e consciência”, decidir os limites do que
pode ou não ser dito/publicado, ou de como será dito. Eis o impasse de toda a
escrita do eu, incluindo a autoficção: de um lado, o escritor e seu direito de
liberdade de expressão; do outro, a “vítima” com seu direito de privacidade.
Qual seria, então, a diferença entre a recepção de uma autoficção e de uma
autobiografia? Se os biografemas dos quais o autor parte para a escrita da
própria vida são fontes de ferimento ao outro, de vergonha e de intimidação,
acarretam processos jurídicos, humilhação e ofensa, qual a real distinção entre
uma autobiografia e seu pacto autobiográfico e uma autoficção e seu pacto
ambíguo? Que ambiguidade é essa que acaba por não livrar o seu escritor de
acusações nas cortes ou, se o livre destas, não subtrai o conflito ético-moral?
Quando falamos na extimidade como o perigo da autoficção, quase sempre
amenizada por seu caráter fictício, podemos relacionar de imediato com a
polêmica em torno das biografias não autorizadas. Artistas integrantes do
grupo Procure Saber,41 tais como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Chico
Buarque, Caetano Veloso, Djavan, defendem o direito à privacidade por meio
da autorização prévia a biografias. Segundo os artigos 20 e 21 do Código Civil,
é proibida a publicação de informações pessoais de qualquer cidadão em casos
que “atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a
fins comerciais”. Há três casos famosos de censura de biografias não autorizadas
no Brasil: a biografia Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar de Araújo; a
biografia de Garrincha, de Ruy Castro; e a biografia de Daniella Perez escrita
por Guilherme de Pádua, seu assassino. De um lado, artistas reivindicando o
direito de preservarem a vida pessoal; de outro lado, jornalistas e biógrafos
evocando o direito à liberdade de expressão e os riscos de retrocesso à censura.
Em 2013, acadêmicos divulgaram carta intitulada “Liberdade para as
biografias” a favor das biografias não autorizadas. Um grupo de duzentos
acadêmicos (historiadores, escritores, intelectuais e pesquisadores) apoiaram a
causa, alegando que

As vidas dos indivíduos são parte da história. As biografias são, portanto,


formas de entender a realidade e não podem ser objeto de nenhum
limite ou interdição. Castrar a biografia significa ferir mortalmente a
compreensão das sociedades. O biógrafo deve poder interpretar seus
personagens livremente, assim como o historiador escolhe e analisa os
seus temas sem entraves ou imposições. [...] A biografia não busca
elogiar nem insultar, mas entender. O biógrafo deve ser livre para
reconhecer e expor as virtudes e os defeitos dos atores da história, acima
das sensibilidades pessoais ou dos interesses de qualquer natureza. A
biografia pode ser inconveniente, mas jamais desonesta com os fatos.42
O biógrafo Ruy Castro, que escreveu sobre a vida de Nelson Rodrigues,
Garrincha e Carmem Miranda, aponta a contradição dos artistas que alegam
invasão de privacidade no exercício biográfico:

Estão nos confundindo com revistas de fofocas, revistas essas para as


quais eles já abriram inúmeras vezes as portas das suas casas para serem
fotografadas, deixaram à mostra sua intimidade, descreveram os
tratamentos físicos de suas mulheres para se tornarem as sereias que elas
são. Durante várias ocasiões, não tiveram nada contra essas revistas,
talvez não tenham, porque essas revistas lhes ajudam a vender discos,
fazerem shows etc. Agora, uma biografia que leva três, cinco anos para
ser feita, não pode.43

O então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, se


alinhava com Ruy Castro, pois a biografia

É relato de vida já acontecida ou de desfrute já exaurido do direito à


intimidade, vida privada e vida social genérica. É apenas um retrato
falado do modo pelo qual o direito ao desfrute já se consumou. Modo a
que o biógrafo teve acesso.

Para Britto, a lei protege o biografado daquele biógrafo que inventar,


distorcer fatos ou ofender a sua honra:

[...] se o biógrafo descamba para o campo da invencionice, ou então da


coleta de dados tão maliciosamente distorcidos a ponto de ofender a
honra do biografado, além de causar a este prejuízos de ordem “material,
moral ou à imagem”, o que pode ocorrer em termos jurídicos? Bem, o
que pode ocorrer não é senão a aplicabilidade das normas
constitucionais que falam do direito de resposta e de indenização. De
parelha com aquelas que legitimam o Código Penal a criminalizar
condutas caluniosas, difamatórias ou injuriosas.44

Existiriam, enfim, autoficções autorizadas e não-autorizadas? Doubrovsky


chama a atenção para isso ao dizer que a esposa, cuja vida foi exposta no
romance, acompanhou o processo de escrita, “autorizando” o conteúdo. Não
seria este um paradoxo? Quem resolveria o caso da publicação de autoficções
“não-autorizadas”, uma vez que a autoficção – teoricamente – não partilha da
intenção de verdade imanente às biografias? E fato de as pessoas envolvidas na
autoficção não serem celebridades, famosas, influenciaria em alguma coisa
nesse imbróglio? Qual o limite da ficcionalização do eu e dos outros?
Como observou Lecarme, o uso do nome próprio é um dos problemas da
autoficção, e a alteração dos nomes seria um dos processos de ficcionalização,
oportuno para evitar problemas jurídicos. Por isso, “a manutenção integral
desses nomes próprios é um desafio” (Lecarme, 2014, p. 100). Seria, então, a
autoficção um gênero indelicado? Para Lecarme, sim:

Resta dizer que a autoficção corre sempre o risco de perturbar as vidas


privadas de seus atores involuntários, sendo um gênero essencialmente
indelicado, que procura seu caminho entre a grosseria, que joga na cara
das pessoas seus nomes e sobrenomes, e a perfídia, que faz com que se
reconheçam através das telas protetoras (Lecarme, 2014, p. 100).

Talvez, o limite da autoficção, enquanto escrita de si e do outro, seja


análogo ao da biografia. Ambas podem ser inconvenientes, porém a lei protege
o biografado de condutas caluniosas, difamatórias e injuriosas. Este poderia ser
um parâmetro para o bom-senso dos escritores na prática autoficcional.
O narrador do Divórcio fala do desejo de vingança da mulher a partir da
escrita e publicação do que ela fez, a fim de desmascará-la e de revelar para
todo mundo quem realmente ela é e do que ela é capaz. Sensacionalista ou não,
o livro teve grande repercussão, dando continuidade à trajetória literária de
Lísias, principalmente depois de publicar O livro dos mandarins (2009), que, de
acordo com Luciene Azevedo (2013, p. 88), “claramente delineia a assinatura
de Lísias no contexto da literatura contemporânea” e é considerado o “romance
de maturidade” do autor.
Azevedo ainda aposta que uma grande marca distintiva de Lísias como
autor possa estar “na ‘guinada subjetiva’ como gesto performático de inscrição
de um nome de autor, de inscrição de uma assinatura literária”. A estudiosa
encontra os mesmos motes temáticos na obra de Lísias, que parecem reescrever
e reelaborar o mesmo texto: “o apelo a uma intimidade mezzo fake, o retorno
do narrador solitário e dolorido com a morte de seu melhor amigo, com a
separação conjugal –, recuperados em publicações distintas” (Azevedo, 2013, p.
104).
Não há como negar que o exercício autoficcional coloca à mostra a vida de
quem escreve e de quem participa da vida do autor. As histórias, em geral,
partem da experiência pessoal e traumática, mesmo que resultem em situações
ficcionais. Trata-se de uma exposição espetacularizada, em que não é possível
escrever sobre si sem expor o outro. Como o caráter ficcional parece livrar o
autor da pendenga judicial, caberia então ao escritor, assim como na biografia,
o bom senso na escolha da forma como vai utilizar a experiência de si e do
outro na literatura. Essa é a posição de Camille Laurens:

[...] há coisas que eu não posso dizer, que tocam o segredo do outro, a
sua vergonha. Nesses momentos, faço o que posso. Acho que às vezes há
coisas que eu não devo escrever, mesmo que eu tenha o direito de fazê-
lo. Eu não sei tudo e posso usurpar a palavra dos outros. [...] o escritor
deve ter uma ética, que está atrelada à verdade (Laurens, 2011).45

Delinear tais fronteiras não é trivial, contudo. Como anotou Annie Ernaux,
“é difícil conhecer os contornos da censura interior. Ela depende da época, do
que é aceitável ou pensável dizer no momento em que se escreve” (Ernaux,
2011).46 Assim como o exemplo de Tezza na literatura brasileira, Ernaux
explica que só conseguiu falar pela primeira vez de seus filhos em Les Années
(2008) porque utilizou o recurso da terceira pessoa.
A proximidade da relação entre a literatura e a esfera judicial não é atributo
específico da autoficção contemporânea. Recente é o tipo de acusação que
penaliza a referencialidade da ficção e provavelmente “se deve à abolição
proclamada da fronteira entre fato e ficção” (Lavocat, 2016, p. 277).
Processos envolvendo esses limites turvos resultaram na condenação de
Mathieu Lindon, em 1999, por conta do livro Le Procès de Jean-Marie Le Pen
(1998); de Françoise Chandernagor, em 2000, pelo Le Roman vrai du Dr
Godard; o caso de Michel Houellebecq que foi obrigado a alterar o nome de
uma das personanges na reedição de Particules élementaires, em 1998; Camille
Laurens, duplamente processada pelos romances Philippe (1995) e L’Amour,
roman (2003) etc.
A autoficção pode ser esse lugar de uma negociação constante em busca de
equilíbrio entre as coisas que podem ser ditas e as coisas que não deveriam ser.47
Existe um perfil da autoficção, que é o de Angot, que não se preocupa com os
limites e os perigos da extimidade. O compromisso do autor é consigo mesmo
e com sua liberdade de expressão. Angot é uma das escritoras mais polêmicas
da França. Além das autoficções geradoras de polêmica, com recepção
acalorada, os autores alimentam uma vida espetacular por meio da mídia, dos
eventos e das redes sociais. Trata-se de carreiras autoficcionais estrategicamente
articuladas. Contudo, como disse anteriormente, é um perfil de carreira
autoficcional. Podemos pensar em outros exemplos da literatura brasileira,
como é o caso da obra autoficcional de João Anzanello Carrascoza.
A prosa intimista de Carrascoza, que flui entre os limites da realidade e da
ficção, tem dicção poética peculiar e raro esmero na linguagem. Na contramão
dos exemplos que vimos, a autoficção de Carrascoza não é midiática, polêmica
ou escandalosa. Mas sim o que considero a verdadeira transformação de
biografemas em arte; o primor do trabalho literário da linguagem; a
ficcionalização de si e do outro, a elaboração da dor e o mergulho profundo no
eu por meio da escrita literária – marcada por lacunas, lirismo e polissemia.
Carrascoza embaralha as fronteiras entre ficção e realidade não apenas na
literatura tida como “adulta”, mas também na infanto-juvenil. Em Meu avô
espanhol (2009), acompanhamos a história envolvente do narrador-
protagonista criança chamado João Carrascoza em busca de maior
conhecimento a respeito do avô. O interesse de João pela origem do sobrenome
Carrascoza surgiu na sala de aula, quando a professora disse: “– O João, por
exemplo – ela disse, e me apontou. – Com esse sobrenome, Carrascoza, só
pode ser mesmo descendente de espanhóis!” (Carrascoza, 2009, p. 10). O
menino ficou contente com a descoberta, pois acreditava que a professora
“estava me entregando uma coisa valiosa. Tão valiosa que eu nem sabia direito
o que fazer com ela. Fui embora sorrindo por dentro. Estava começando a
conhecer um pouco mais do pai do meu pai” (p. 10). No final do livro, temos
informações sobre a chegada dos espanhóis no Brasil e sobre o autor, nascido
em Cravinhos (SP), cidadezinha “onde seu avô espanhol foi viver quando
chegou ao Brasil”.
O exemplo de Carrascoza é interessante pois mostra um perfil de autor que
não escreve apenas uma única autoficção, mas, sim, uma obra autoficcional
contínua, embaralhando os limites entre o real e a ficção, com talento literário
na composição de um mundo ficcional atraente e convincente. E de forma
discreta, pois não se envolve em polêmicas, sendo reconhecido pelos inúmeros
prêmios literários. Sendo assim, é possível que um(a) autor(a) enverede para o
campo da autoficção, de modo a construir uma “carreira autoficcional”. Essa
noção foi desenvolvida pela estudiosa especialista em biografias Anna Caballé,48
para analisar a trajetória literária de Enrique Vila-Matas como paradigma da
carreira autoficcional em língua espanhola.

Quem tem medo da autoficção?


É comum escritores brasileiros afirmarem não escrever autoficção, embora
criem a partir de experiências pessoais, compartilhem traumas, ao modo de
uma terapia, por meio do desabafo escrito e da criação literária, estabeleçam o
pacto ambíguo com o leitor por meio de variadas estratégias, misturem
realidade e ficção, coloquem seus nomes próprios nas personagens ou
indiquem um possível homonimato. Mas, quando entrevistados, não apoiam o
uso do termo. Os esforços de Lecarme para entender a autoficção como um
novo (e mau) gênero levam-no ao seguinte questionamento: “Por que defender
tanto a existência de um gênero, cuja comprovação não é garantida, uma vez
que o termo que o designa não é reivindicado pelos autores que o praticam?”
(Lecarme, [1993] 2014, p. 102).
Acredito, contudo, que já exista uma mudança, ou seja, uma aceitação
maior e mais natural do emprego da autoficção, seja por seus autores, seja pelos
editores, seja pela crítica de jornal e acadêmica. Provavelmente, fruto dos
esclarecimentos que vêm sendo feitos acerca do que significa, afinal, dizer que
uma obra é autoficcional. Além de pesquisas e produção científica universitária,
há uma série de cursos de escrita criativa voltados para a autoficção, como os
ministrados por Ana Letícia Leal, Jacques Fux e Júlian Fuks. Com maior
clareza, o monstro desconhecido – e temido – pode passar a ser um bom aliado
para nomear grande parte da produção literária contemporânea.
Ricardo Lísias sempre demonstrou pouco apreço pelo termo, sobretudo à
época da polêmica em torno de Divórcio. Negava não apenas a autoficção, mas
também a possibilidade de a linguagem transformar o íntimo em arte.
Questionado se a autoficção indica uma tendência atual de a ficção incorporar
de modo mais explícito experiências pessoais do autor, Lísias argumenta que a
literatura não reproduz a realidade; cria outra realidade a partir da utilização da
linguagem, pois “a experiência pessoal ‘está perdida’ assim que ela acontece”
(Lísias, apêndice deste livro).
Em termos de teoria literatura, a impossibilidade de a literatura representar
a realidade tal como ela é, ou mesmo a crise da representação, já foi tema de
muito debate teórico. Não há nada de surpreendente nessa concepção, assim
como não há nada que inviabilize a autoficção. Vale lembrar que uma das
razões da autoficção existir e persistir é justamente a descrença na representação
da realidade.
A autoficção se caracteriza por esse jogo de ambiguidades instaurado na
escrita e na leitura do texto literário. O pacto oximórico da autoficção leva o
leitor à dupla recepção: é verdade e não é verdade; é o autor e não é o autor (é
uma personagem, um duplo ou um alter ego do autor); é realidade, fato, e é,
ao mesmo tempo, ficção, imaginação. Ao explicar seu projeto literário, Lísias
afirma tentar escrever obras que “induzam as pessoas a verem como elas podem
se enganar quando vão atrás da realidade” (Lísias, apêndice deste livro). Penso a
autoficção justamente como essa possibilidade de recriar a realidade pela
linguagem. Doubrovsky afirma que todo contar de si é ficcionalizante e, por
isso, ao partir de experiências pessoais, quando contadas por meio da literatura,
trata-se de criação e de ficcionalização da “experiência pessoal que está
perdida”.
O neologismo autoficção acabou se banalizando na França, de maneira que
hoje o termo também é rejeitado por muitos escritores e estudiosos franceses.
Difentemente do que ocorre nos Estados Unidos,49 onde o termo auto ction
tem sido cada vez mais empregado em detrimento do self- ction. Fenômeno
igualmente digno de análise, na teoria de língua francesa, foi a criação de vários
neologismos para nomear práticas similares: autonarração, autofabulação,
autosociobiografia, surfiction, faction, nova autobiografia, otobiografia,
alterficção, entre outros.
Arnaud Schmitt, em Je réel / Je ctif: Au-delà d’une confusion postmoderne,
justifica o uso neologismo autonarração (autonarration) em substituição ao
termo “autoficção”. Para Schmitt, o termo autonarração evitaria a recepção
dual, ambígua, na recepção da obra: “[...] o primeiro ponto, já mencionado,
mas essencial para mim é essa impossibilidade de manter duas ideias genéricas
simultaneamente” pois “o cérebro é um órgão de escolha, e que escolher
significa excluir” (Schmitt, 2010, p. 73).50 A experiência da mistura é, na
maioria das vezes, pouco enriquecedora. E, na autoficção, a figura do autor é
tirânica, pois este detém todas as chaves do texto, e o leitor nunca sabe o que é
referencial e o que é fictício.51
É oportuno lembrar que a teórica norte-americana Dorrit Cohn é autora
dos neologismos “psiconarração” e “autonarração”, em 1978, no livro
Transparents minds. Primeiramente, Cohn identifica três tipos de apresentação
da consciência nos contextos de narração em terceira pessoa: a psiconarração,
isto é, o discurso do narrador sobre a consciência de um personagem; o
monólogo citado, o discurso mental de um personagem; e o monólogo
narrado, o discurso mental de um personagem “disfarçado”, “por baixo” do
discurso do narrador. A seguir, Cohn analisa a apresentação da consciência
representada no contexto de narração em primeira pessoa, transformando a
psiconarração em autonarração, ou seja, em autoanálise; o monólogo citado em
autocitado; o monólogo narrado em autonarrado. A distinção básica entre o
discurso em terceira e primeira pessoa é que a inspeção de uma consciência é
própria da terceira pessoa do discurso, e a retrospecção de uma consciência da
primeira pessoa. A estudiosa observa que essa conversão do discurso em terceira
pessoa para o discurso em primeira pessoa não trata apenas de examinar um
território análogo no qual “ele pensava” é substituído por “eu pensava”,
observando que isso é uma redundância no estudo a respeito das formas
narrativas em primeira e terceira pessoa. Cohn afirma que há profunda
mudança no “clima da narrativa” ao movimentar-se entre esses dois territórios,
mudança esta que é muitas vezes subestimada pelos estudos estruturalistas:

Isto resulta da relação alterada entre o narrador e seu protagonista


quando este protagonista é seu próprio Eu no passado. A narração de
acontecimentos internos se vê mais fortemente afetada por essa
mudança de pessoa que a narração de acontecimentos externos; o
pensamento passado deve ser agora apresentado como recordado por seu
Eu, uma vez que é expressado pelo Eu (Cohn, 1978, p. 14-15).52

De acordo com Cohn (1978, p. 11), tanto a “psiconarração” (neologismo


da crítica) como a autonarração identificam o objeto (mente/psique) e a
atividade que ele denota, o processo de narração, em analogia à psicologia e à
psicanálise. A psiconarração é semelhante à psicanálise no momento em que
alguém, de fora, analisa a mente do paciente/personagem. A autonarração é a
expressão dos conflitos internos, na qual o próprio narrador mergulha em si,
num processo de autoconhecimento, autorreflexão, numa ação de “olhar para
dentro”.
Colonna fala em “autofabulação” e “autoficção fantástica”, aceitando a
possibilidade de o autor criar, fabular uma história de si próprio. A identidade
onomástica permanece, porém, a história é inventada. Para Doubrovsky, tal
desdobramento da autoficção é inadmissível por ferir a característica
fundamental do conceito por ele cunhado, a adesão à realidade.53
Embora tenha resultado um propósito que se mostrou estéril, Doubrovsky
parecia acreditar em sua capacidade de controlar a recepção do termo que
cunhou, bem como em sua legitimidade para (des)autorizar as apropriações
feitas pelos demais. Hoje, é cada vez mais difícil o consenso sobre o que seja
uma autoficção.
Essa indefinição teórica estimula muitos escritores a negarem que escrevem
autoficção. É possível que o receio decorra da antecipação do risco de ser “mal
visto” e, ainda, porque o autor não quer enquadrar a própria obra, concebida a
seus olhos como original e singular, em um conceito específico e assistir o valor
literário de sua obra ser reduzido em função da incontrolável potência de
plurissignificação que se associa a qualquer conceito.
Acontece também de autores, ao contrário de rejeitarem o termo,
classificarem como autoficcional toda sua produção ou uma produção que à
princípio não seria considerada autoficcional. Esse foi o caso do escritor gaúcho
Altair Martins, que, ao ser indagado se já tinha escrito alguma autoficção,
acabou considerando A parede no escuro (2008) e Enquanto água (2011) obras
autoficcionais.

Tudo o que ali está é fruto das minhas experiências como pessoa e como
leitor. Se Emanuel, Maria do Céu, Adorno e todos os outros
personagens d’A parede não têm o meu nome, é porque fui impostor.
Penso, às vezes, em escrever um livro em que todos os personagens se
chamariam Altair. Todos eles vivem exatamente o que eu vivo: um deles
é pai de dois filhos, casado; o outro é professor; o outro joga futebol,
não muito bem, nas segundas-feiras; quem sabe um (que já publicou A
parede no escuro e Enquanto água) escreve sobre os outros três (Martins,
apêndice deste livro).

A afirmação do autor contribui para o nosso debate acerca da especificidade


da autoficção, pois os livros de Martins são considerados como romances e
contos ficcionais, e não autoficções propriamente ditas – não há identidade
onomástica, não estabelecem pacto oximórico, não há indícios suficientes para
que se estabeleça a ambiguidade etc. Não é raro a confusão entre o fato de a
obra literária ter elementos biográficos de seu autor e aquilo que estamos
tentando teorizar como uma prática literária específica e singular que é a
autoficção.
Com o sucesso do termo no mercado editorial, a associação de livros
recentemente lançados à etiqueta da autoficção aumentou. Algumas editoras,
agentes literários e, até mesmo, escritores viram as vantagens do uso do termo
como forma de divulgação e promoção de seus livros.54 Em linhas gerais, é
possível diagnosticar tanto 1) o medo da autoficção, do “enquadramento” de
obras literárias como autoficcionais, talvez por uma desconfiança do que venha
a ser exatamente a autoficção e da sua recepção a longo prazo, como 2) o
aproveitamento da onda de sucesso midiático do termo como forma de
emplacar novos livros e ampliar a divulgação de um escritor.
Jogando com modelos tradicionais, outros dois conceitos ainda merecem
atenção nesta reflexão, por apontarem para variações no campo de estudos
autobiográficos. O primeiro conceito é o de alterbiografia. Silviano Santiago
chama a atenção para a definição de alterbiografia proposta pela professora Ana
Maria Bulhões-Carvalho, em sua tese de Doutorado:

[...] na minha produção propriamente ficcional seria importante que se


compreendesse o papel deflagrador do romance Em liberdade, publicado
em 1980, onde todos os jogos textuais, retóricos e filosóficos citados
acima já estão sendo acionados de maneira bem pouco convencional.
Ana Maria Bulhões de Carvalho, em tese defendida na PUC/RJ,
chamou ao experimento de ‘alterbiografia’. Para dizer a verdade, às
vezes gosto mais do conceito de alterbiografia (acho-o mais rico, isto é,
mais rentável analiticamente) que o conceito de autoficção (Silviano
Santiago, apêndice do livro, grifo meu).

Santiago compara o conceito de alterbiografia com o de autoficção,


considerando o primeiro mais rico. Todavia, podemos perceber que são duas
práticas distintas, apesar de sua proximidade conceitual. Sendo assim, não se
trata exatamente de uma questão de valor, isto é, de avaliar qual das duas
práticas é a mais rica ou qual o melhor termo para designá-las. Para Bulhões-
Carvalho, o que caracteriza a alterbiografia não é um tema, “mas um
movimento interno da narração, fazendo correr paralelamente à tessitura do
mundo ficcional o processo de angústia da criação. Processo que se dá
paralelamente à astuciosa construção da autoficção” (Bulhões-Carvalho, 2011,
p. 35). Dessa forma, alterbiografia e autoficção caminham paralelamente, com
suas semelhanças e leves distinções: “A diferença entre os efeitos discursivos de
uma e outra modalidade está no seu movimento pendular (novamente os ‘pés-
no-ar!” entre a alteridade e a ipseidade, entre ver-se através do outro ou ver o
outro através de si, mas de, sempre, ver ou ver-se em différance!” (Bulhões-
Carvalho, 2011, p. 35).
Pensando na etimologia da palavra alterbiografia (alter/outro + biografia –
do grego antigo: βιογραφία, de βíος – bíos, vida e γράφειν – gráphein,
escrever), vemos que se trata de uma escrita da vida do outro, ou ainda, uma
escrita de si como se fosse um outro. O corpus do trabalho de Bulhões-
Carvalho é o livro de Silviano Santiago, Em liberdade.55 Trata-se de uma espécie
de diário do escritor brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953), inventado por
Santiago, escrito no intervalo entre sua saída da cadeia e a instauração do
Estado Novo. Não é, de forma alguma, uma biografia estrito senso de
Graciliano Ramos, mas sim uma “apropriação” de sua voz narrativa, uma
apropriação de sua identidade, numa mescla ousada de gêneros – biografia,
romance, ensaio, em que, de acordo com Bulhões-Carvalho, “cabe
perfeitamente o nome de alterbiogra a”:

A mescla de recursos, agenciados numa mesma obra pela lógica do


paradoxo – porque aponta simultaneamente para dois sentidos opostos
–, serve para que este escritor possa escrever a vida de um outro,
personagem real da literatura e da história política brasileira, Graciliano
Ramos, usando provas factuais suficientes para que se garanta sua
identificação, num primeiro movimento, como se fosse encapsular-lhe a
vida numa biografia; para depois, num golpe certeiro, apossar-se de sua
identidade, de modo a passar por ele, registrando seus pensamentos e
emoções como se fosse ele, imitando a escrita de um possível diário
iniciado após a saída da prisão. Isto é, torna-se narrador de uma
autobiografia de outro, criando-o como um alter de si mesmo. A essa
forma miscigenada de discurso, suficientemente ambíguo para dar conta
das vicissitudes de projeto literário tão ousado, cabe perfeitamente o
nome alterbiogra a (Bulhões-Carvalho, 2011, p. 28, grifos meus).

Outro exemplo é o livro de Gertrude Stein, A autobiogra a de Alice B.


Toklas. Stein escreve sobre si mesma através da voz da companheira Alice:
O inverno seguiu. Três vidas foi escrito. Gertrude Stein pediu para sua
cunhada vir e ler. Ela veio e ficou profundamente comovida. Isso
agradou imensamente a Gertrude Stein, ela não acreditava que ninguém
pudesse ler alguma coisa que ela tinha escrito e se interessar. [...] A
esposa de seu irmão mais velho sempre foi muito importante na vida
dela porém nunca mais do que naquela tarde. E o livro então tinha de
ser datilografado. Gertrude Stein tinha nessa época uma pequena
máquina de escrever portátil vagabunda que nunca usava. Sempre nessa
época e durante muitos anos depois ela escrevia em pedaços de papel a
lápis, copiava tudo em cadernos escolares franceses à tinta e depois
muitas vezes copiava de novo à tinta. Foi a esse respeito que seu irmão
mais velho uma vez observou, não sei se Gertrude tem mais gênio que o
resto de nós, isso eu absolutamente não sei, mas uma coisa eu sempre
notei, o resto de vocês pinta, escreve, não fica satisfeito e joga fora ou
rasga, ela não diz se está satisfeita ou não, ela copia muitas vezes mas
nunca joga fora nenhum pedaço de papel em que escreveu (Stein, 2009,
p. 56-57).

A princípio, seria uma alterficção, já que a narradora é Alice, e não uma


autoficção, na qual a narradora seria a própria Gertrude. A não ser que
tomemos o termo autoficção como algo mais abrangente que possa dar conta
também desse tipo de narrativa.
Santiago, autor do posfácio da edição da Cosac Naify, publicada 2009, fala
sobre o caráter híbrido da obra de Stein e sobre o despertar de questões teóricas
sobre gênero literário:

Não sendo exatamente uma autobiografia, o livro de Gertrude sobre


Alice também não é uma biografia e pode ser semelhante, em termos de
fatura formal, a um romance clássico inglês. Por essa razão, as primeiras
sugestões críticas de leitura terão de girar em torno de eixos teóricos
internacionais, visto que as questões de gênero (autobiografia + biografia
+ romance) não se encontram explícitas na bibliografia canônica de e
sobre Gertrude Stein. A autobiogra a de Alice B. Toklas – esse texto
híbrido, por assim dizer – desperta questões teóricas que só dominarão a
pesquisa avançada na área de Letras nos anos 1980 (Santiago, 2009, p.
278).

Para Santiago, o termo autoficção daria conta desse recado:

Dando prosseguimento ao percurso histórico-teórico das questões


propostas pela leitura de A autobiogra a de Alice B. Toklas, chega-se no
novo milênio a uma categoria de análise que melhor dá conta do
hibridismo textual, de que é sem dúvida precursora a obra de Gertrude
Stein e, em particular, a autobiografia. Refiro-me à questão da auto cção
[...] (Santiago, 2009, p. 280).

O nome da narradora e da protagonista – Alice – não é o mesmo da autora


– Gertrude. É a escrita da vida do outro (de Alice B. Toklas, no caso de Stein, e
de Graciliano Ramos, no caso de Santiago) e da sua própria vida (Stein,
Santiago) por meio da apropriação da voz narrativa do outro. Trata-se de um
desdobramento da escrita autobiográfica. A autobiogra a de Alice B. Toklas
inicia de um modo aparentemente convencional, pelo lugar de origem e
filiação de Toklas:

Nasci em San Francisco, Califórnia. Consequentemente sempre preferi


viver em clima temperado [...]. O pai da minha mãe foi um pioneiro
que chegou à Califórnia em 1849 e casou com minha vó que gostava
muito de música. Ela era aluna de Clara Schumann. Minha mãe era
uma mulher quieta e encantadora chamada Emilie. Meu pai descendia
de patriotas poloneses (Stein, 2009, p. 9).
Contudo, já nesse primeiro capítulo, “Alice” introduz o nome de Stein,
apresentando-a como um gênio:

[...] conheci Gertrude Stein. Fiquei impressionada com o broche de


coral que ela usava e com sua voz. Posso dizer que só três vezes na vida
encontrei gênios e a cada vez um sino tocou dentro de mim e eu não
estava errada, e posso dizer que em cada caso foi antes do
reconhecimento geral da qualidade de gênio neles. Os três gênios de que
quero falar são Gertrude Stein, Pablo Picasso e Alfred Whitehead.
Conheci muitas pessoas importantes, conheci várias grandes pessoas,
mas só conheci três gênios de primeira classe e em cada caso
imediatamente alguma coisa ressoou dentro de mim. Em nenhum dos
três casos me enganei. E assim começou uma nova vida cheia para mim
(Stein, 2009, p. 11).

É curioso que a própria escritora Stein esteja falando sobre si, sem modéstia,
por intermédio da voz de Alice: “Ela [Gertrude Stein] entende muito bem a
base da criação e, portanto, seu conselho e sua crítica são inestimáveis para
todos os seus amigos” (Stein, 2009, p. 81). O que aparentemente são
considerações e apreciações de Alice, na verdade, são escritas pela própria Stein,
uma forma forjada de autocelebração:

Gertrude Stein, em seu trabalho, sempre foi possuída pela paixão


intelectual da exatidão ao descrever a realidade interna e externa. Ela
produziu uma simplificação por essa concentração, e como resultado a
destruição da emoção associoativa na poesia e na prosa. Ela sabe que
beleza, música, decoração, o resultado emocional não deve ser nunca a
causa, mesmo eventos não devem ser a causa de emoção em mdevem ser
o material da poesia e prosa. Estas devem existir numa exata reprodução
de uma realidade seja externa seja interna (Stein, 2009, p. 213).
Tudo indica que o termo alterficção tenha sido utilizado pela primeira vez
no Brasil por Evando Nascimento (2010). Entretanto, a concepção de
Nascimento para o termo, naquele momento, diverge da que estou propondo
aqui: “[...] sempre preferi, em vez do neologismo autoficção, um outro, um
pouco mais estranho, o de alter cção ou ainda o de hetero cção” (Nascimento,
2010, p. 192). O crítico prefere o termo alterficção em detrimento do termo
autoficção, como se fosse nomear práticas semelhantes, porém com
nomenclatura mais apropriada. Nascimento considera necessário “[...] marcar
que tudo vem do outro e a ele-ela retorna, malgrado a passagem necessária pelo
eu” (p. 192). Todavia, neste livro, considero como alterficções apenas exemplos
como o de Santiago e de Stein, em que o autor fala de si por meio da voz
explícita do outro, construindo uma personagem, com outro nome, para dar
conta daquilo que ele quer dizer.
Outro termo que marca uma mudança de perspectiva da autobiografia é
otobiografia, de Jacques Derrida. Esse termo, criado a partir da leitura de
Nietzsche, chama a atenção para a “orelha do outro”, sugerindo um
descolamento da boca de quem fala para a orelha de quem escuta, uma
transformação de auto para oto (do grego oúç, significa ouvido), da mesmidade
do autor (que produz sua autobiografia) para o ouvido do outro (que
escuta/recebe do texto do autor):

Em primeiro lugar, no que diz respeito obviamente a essa transformação


deliberada de auto em oto, que tem sido de uma forma quiasmática56
hoje [...] passamos por meio da orelha – a orelha envolvida em qualquer
discurso autobiográfico que ainda está em fase da própria orelha falar.
(Ou seja: Estou me contando a minha história, como disse Nietzsche,
essa é a história que eu estou dizendo a mim mesmo, e isso significa que
eu me ouço falar.) Falar de mim mesmo para mim mesmo de uma certa
maneira, e meu ouvido é, portanto, imediatamente conectado a meu
discurso e a minha escrita (Derrida, 1988, p. 49-50).57
Para Derrida, quem assina o texto é a orelha do outro – e não mais o autor:
“[...] é a orelha do outro que assina. A orelha do outro me diz a mim mesmo e
constitui os autos da minha autobiografia. Quando, muito mais tarde, o outro
tiver percebido com um ouvido aguçado o suficiente o que eu tiver abordado
ou destinado a ele ou ela, então a minha assinatura terá ocorrido” (Derrida,
1988, p. 51).58 Sendo assim, a escuta não é uma atividade passiva (na qual
quem fala é quem age), a otobiografia é o próprio corpo em vibração, que
ressoa a tensão do mundo.
Camille Laurens e Annie Ernaux, escritoras renomadas cujas obras são
associadas à autoficção, debatem sobre as definições do gênero em entrevista ao
Le Monde.59 Para Laurens, toda autobiografia tem um pouco de ficção, já que
se trata de um “ato literário”60 e, na construção do texto, o autor utiliza
recursos narrativos literários. É, justamente, a mistura de autobiografia e ficção
o que lhe interessa no termo autoficção:

Ao termo auto cção, eu prefiro ‘escrita de si’ (e não do ‘eu’, que tende ao
narcisismo). O ‘si’ transcende o ‘eu’ e pode alcançar algo no leitor.
Contudo, o que me interessa nesse termo é a reunião da autobiografia e
da ficção. Isso ressalta que a autobiografia é sempre uma ficção. A partir
do momento em que utilizamos palavras para contar a vida, deixamos
entrar o imaginário, a memória infiel, os processos narrativos tais como
a condensação, a elipse...61

Segundo Ernaux, a autoficção é

[...] um monstro informe, um tipo de arquigênero, que recobre todas as


formas de escrita do eu e coloca sob a mesma bandeira escritas
extremamente diferentes. Cada vez que o personagem é o mesmo que o
autor, fala-se de autoficção. Mais do que uma ‘ cção de eventos e de fatos
estritamente reais’ definição dada por Serge Doubrovsky, penso que a
autoficção é a continuação do romance autobiográfico, mas transportada
à nossa época, que é diferente, especialmente porque a recepção mudou.
Antes, o romance autobiográfico procurava, sobretudo, dissimular o
autor; hoje, a autoficção serve para revelar e é isso que me interessa.62

Ernaux chama a atenção para a mudança na recepção das obras literárias


nos dias de hoje. Se pensávamos a autoficção como uma escrita pós-moderna,
ou conforme Doubrovsky, “uma variação pós-moderna da autobiografia”, agora
é importante considerar a diferença da recepção conforme as épocas. O leitor
pós-moderno, marcado pela dúvida, desconfia do narrador da autobiografia e
da neutralidade do seu discurso, assim como aceita, na autoficção, a revelação
do autor nas suas mais diversificadas e ambíguas formas.
As duas escritoras são pontuais naquilo que diz respeito aos benefícios do
termo para o campo de estudos literários sobre escritas do eu. Primeiro, a
noção de “uma continuação do romance autobiográfico, transportada para a
nossa época”, reconhecendo uma mudança na recepção; segundo, a
possibilidade de “reunião da autobiografia e da ficção”, apontada por Laurens.
Entretanto, mesmo assim, existe resistência à adoção do neologismo, como
vimos ser comum também a alguns escritores e pesquisadores da literatura
brasileira.
Autosociobiografia é o neologismo proposto por Annie Ernaux, para definir
sua própria prática literária, muitas vezes considerada pela crítica como
autoficconal, por mais que a autora rejeite veementemente o termo:

Para falar de meu pai, de sua trajetória social, eu não encontrava a


maneira, e a única escrita adequada me pareceu ser a recusa de toda
ficção e aquilo que chamei então de ‘autosociobiografia’, porque eu me
baseio quase sempre na relação de si com a realidade sócio-histórica
(Ernaux, 2011).63

Diferentemente de Lísias, que também rejeita o termo, mas esteve


envolvido em eventos sobre a autoficção, Ernaux afirma que: “não vou jamais
aos colóquios e encontros sobre autoficção, isso não me diz respeito”.
Surficção (sur ction) é o termo criado pelo escritor experimentalista
Raymond Federman (1928-2009), em 1973, para designar um novo tipo de
ficção pós-moderna. Conhecido pelos seus estudos críticos sobre Samuel
Beckett, Federman questiona a condição da ficção e o significado dos termos
inovador e experimental no contexto contemporâneo. Sur ction: ction now and
tomorrow (1975) traz à baila dezenove ensaios de escritores e críticos
contemporâneos, entre eles John Barth, Italo Calvino, Philippe Sollers e Jean
Ricardou, organizados por Federman, sendo de sua autoria o polêmico ensaio
introdutório – “Surfiction: four propositions in forms of an introduction”. O
prefixo “sur” vem de surrealismo, e a filosofia de composição dos surficcionistas
é marcada pela ruptura com o realismo, invenção individual, inovação e
metaficção. Para Federman, surficção é

[...] o tipo de ficção que tenta explorar as possibilidades da ficção; o tipo


de ficção que desafia a tradição que a governa; o tipo de ficção que
renova constantemente nossa fé na imaginação do homem e não na
visão distorcida que o homem tem da realidade – o que revela a
irracionalidade do homem ao invés de racionalidade. Isso eu chamo
SURFICÇÃO. Entretanto, não porque imita a realidade, mas porque
expõe a ficcionalidade da realidade. Assim como os Surrealistas
chamaram o nível de experiência do homem que funciona no
subconsciente SURREALIDADE, chamo esse nível de atividade do
homem que revela a vida como ficção SURFICÇÃO (Federman, 1975,
p. 7).64

O caráter autorreflexivo, o questionamento sobre as condições da ficção na


contemporaneidade – sobretudo os limites da ficção e sua definição –, a relação
intrínseca com o surrealismo – uma vez que a escrita de Doubrovsky está
associada à noção escrita automática –, o abandono do realismo, a inovação,
aproximam os conceitos de surficção e autoficção.
Não deixa de ser impressionante a variedade de neologismos para definir
um exercício literário contemporâneo recorrente. Percebe-se que a criação de
cada termo tem uma justificativa própria e coerente. Entretanto, considero
contraproducente especificar com excessivo rigor a escrita literária, sendo que
podemos – e isso já está acontecendo – aderir à autoficção como um termo
menos restrito, e com isso quero dizer que o termo não se restringe mais à
obra-paradigma de Doubrovsky, mas uma proposta híbrida que abrange um
vasto leque de diferentes perfis de obras literárias e autores.
A despeito do crescente emaranhado em que se constituiu o debate sobre e
as alternativas conceituais à autoficção, o fato é que houve consolidação deste
termo para designar a prática híbrida e literária de ficcionalização de si, mesmo
flexibilizando-o em relação à formulação original. A ferramenta Ngram, que
rastreia o uso das palavras em obras digitalizadas mundo afora, indica que, em
língua francesa, o crescimento do uso do termo foi expressivo, desde a
formulação de Doubrovsky, em 1977. E, em comparação com os temos “récit
de soi” e “écriture du moi”, a autoficção impera.

Figura 2: Presença do Termo ‘Autofiction’ em Língua Francesa (1970-2008)

Fonte: Google Ngram. Dado gerado em 01 jun. 2020.


Nota: O projeto Ngram foi encerrado em 2009, razão para a limitação da série.
Figura 3: Evolução do uso dos termos “autofiction”, “récit de soi”, “écriture du
moi” em língua francesa (1970-2008)

Fonte: Google Ngram. Dado gerado em 01 jun. 2020.


Teorias francesas da autoficção

A autoficção tomou muitos rumos, diferentes daqueles postulados por


Doubrovsky, portanto há muitas facetas da autoficção atualmente.
Eurídice Figueiredo

Neste capítulo, apresento o debate teórico acerca do conceito de autoficção,


realizado predominantemente em língua francesa, especificando as divergências –
inconsistências – entre as denominadas “escolas da autoficção”.

O que dizem alguns teóricos da autoficção

É preciso constatar que o conceito de autoficção fugiu ao controle de seu


criador.
Philippe Gasparini

Teóricos franceses ampliaram o conceito doubrovskyano. Entre os estudiosos da


autoficção estão Gérard Genette, Vincent Colonna, Jacques Lecarme, Philippe
Vilain, Philippe Gasparini, Philippe Forest, Sébastien Hubier, Arnaud Schmitt,
Marie Darrieussecq, Jean-Louis Jeannelle, Claude Burgelin, Arnaud Genon, Isabelle
Grell, Annie Richard, Patrick Saveau, Hélène Jaccomard. Ainda em língua francesa,
no Canadá, Madeleine Ouellette-Michalska e Régine Robin. Faz-se necessário
acrescentar uma exceção, em língua espanhola, Manuel Alberca. As seções seguintes
analisam variações importantes do conceito de autoficção propostas por alguns
autores.

Vincent Colonna e Gérard Genette


Eu, autor, vou contar para vocês uma história da qual eu sou o herói,
mas que nunca aconteceu comigo.
Gérard Genette

O desvio

Genette e Colonna partilham uma nova concepção de autoficção. Em 1989,


Vincent Colonna defendeu a tese de doutorado L’auto ction, essai sur la
ctionalisation de soi en littérature, orientado por Gérard Genette. Se Doubrovsky
defendia que a matéria da autoficção é estritamente autobiográfica e a maneira,
ficcional, no sentido de dar forma e de modular, Genette e Colonna subvertem o
seu sentido original, sustentando ser a autoficção uma projeção do autor em
situações imaginárias. Para Colonna, o escritor é indiferente à verossimilhança e
transfigura sua existência e identidade em uma história irreal. O quadro 7 resume as
diferenças.

Quadro 7: Diferentes concepções da autoficção, segundo Doubrovsky e


Colonna/Genette
AUTOFICÇÃO
SERGE DOUBROVSKY GENETTE; COLONNA
MATÉRIA AUTOBIOGRÁFICA MATÉRIA FICCIONAL
MANEIRA FICCIONAL MANEIRA AUTOBIOGRÁFICA
Fonte: Elaborado pela autora.

Colonna (2004) enumera quatro diferentes formas da fabulação de si: fantástica,


biográfica, especular e intrusiva. Para ele, “não há uma forma de autoficção, mas
várias, assim como existem diferentes mecanismos de conversão de um personagem
histórico em personagem fictício”.1 Para este teórico francês, são autoficções

as composições literárias onde um escritor se inscreve sob seu próprio nome


(ou um derivado indubitável) em uma história que apresenta as características
da ficção, seja por um conteúdo irreal, por uma conformação convencional (o
romance, a comédia) ou por um contrato passado com o leitor (Colonna,
2004, p. 70-71).2

Na autoficção fantástica, o escritor se situa no centro do texto, como em uma


autobiografia. Ele é o herói, mas transforma sua existência e identidade em história
irreal, sem se preocupar em manter verossimilhança: “O duplo projetado se
transforma em um personagem extraordinário, um puro herói de ficção” (Colonna,
2004, p. 75).3 A autoficção fantástica inventa a existência; o escritor, além de
personagem, é também objeto estético: “o leitor experimenta com o escritor um
‘tornar-se-ficcional’, um estado de despersonalização, mas também de expansão e de
nomadismo do Eu” (p. 70-71).4 O paradigma da autoficção fantástica é a Divina
Comédia, de Dante Alighieri.
Na autoficção biográfica o escritor é sempre o herói da sua história e fabula sua
existência a partir de dados reais. Colonna (2004, p. 93-117) afirma que o leitor
compreende se tratar de um “mentir-verdadeiro” (mentir-vrai), uma distorção a
serviço da veracidade.

[…] graças ao mecanismo do ‘mentir-vrai’, o autor modela sua imagem


literária, a esculpe com uma liberdade que a literatura íntima, ligada ao
postulado de sinceridade estabelecido por Rousseau e estendido por Leiris,
não permitia (Colonna, 2004, p. 94).5

A autoficção especular relaciona-se à metáfora do espelho e se caracteriza por


apresentar um reflexo do autor ou do livro dentro do próprio livro. O realismo e
verossimilhança do texto tornam-se elemento secundário, e o autor não se encontra
necessariamente no centro da obra: “pode ser somente uma silhueta; o importante é
que ele se estabeleça em algum canto de sua obra, que reflita dali sua presença, como
o faria um espelho” (Colonna, 2004, p. 120).6
Na autoficção intrusiva (autoral), o autor não é o protagonista, mas o
observador, um “intruso” na história. Nesse caso,

A transformação do escritor não se dá por intermédio de um personagem, seu


intérprete não pertence ao enredo propriamente dito. O avatar do escritor é
um recitante, um contador de histórias ou um comentador, em suma, um
‘narrador-autor’ na margem da intriga”7 (Colonna, 2004, p. 135).

O quadro 8 resume as formas de autoficção propostas por Colonna.

Quadro 8: Formas da autoficção de acordo com a proposta de V. Colonna


FORMAS DA AUTOFICÇÃO: “mecanismos de conversão de um personagem
histórico em personagem fictício” (V. COLONNA, 2004)
DEFINIÇÃO: “Todas as composições literárias onde um escritor se inscreve sob
seu próprio nome (ou um derivado indubitável) em uma história que apresenta as
características da ficção, seja por um conteúdo irreal, por uma conformação
convencional (o romance, a comédia) ou por um contrato passado com o leitor”.
AUTOFICÇÃO AUTOFICÇÃO
AUTOFICÇÃO
AUTOFICÇÃO BIOGRÁFICA INTRUSIVA
ESPECULAR
FANTÁSTICA ESCRITOR = (AUTORAL)
ESCRITOR =
ESCRITOR = NO NO CENTRO ESCRITOR =
NO CANTO
CENTRO DO TEXTO = DO TEXTO = CONTADOR
DO TEXTO
HERÓI HERÓI DE
METÁFORA
INVENTA A FABULA A HISTÓRIAS =
DO ESPELHO
EXISTÊNCIA = PARTIR DE “NARRADOR-
– REFLEXO
HISTÓRIA IRREAL DADOS REAIS AUTOR” NA
DO AUTOR E
DESPERSONALIZAÇÃO “MENTIR- MARGEM DA
DO LIVRO
VRAI” INTRIGA
Fonte: Elaborado pela autora.8

As definições apresentadas por Colonna foram criticadas, em particular o


argumento de que a autoficção é “uma narrativa feita por um autor-narrador-
personagem real de aventuras imaginárias”. O próprio Dubrovsky assinalou que a
definição se desvia do âmago da noção original de autoficção, que não admitiria o
elemento fantástico, a inverossimilhança:

A definição proposta por Vincent Colonna como narrativa feita por um


autor-narrador-personagem real de aventuras imaginárias, tal como Dante no
inferno ou Cyrano na lua, é certamente uma possibilidade, um caso
particular desviante do sentido primeiro. Isso não poderia de modo algum
constituir a natureza e a essência da autoficção. A palavra, em seu uso
corrente, remete sempre à existência real de um autor. A fórmula do romance
autobiográfico foi igualmente proposta como definição da autoficção. Mas
resta precisamente mostrar como autobiografia e romance podem coexistir
em um mesmo texto (Doubrovsky, [2010] 2014, p. 120-121, grifo meu).

Diferentemente de Doubrovsky, Philippe Gasparini atribui valor heurístico à


definição de Colonna, pois grande parte das autoficções apresenta situações
imaginadas e fabulações do autor:

[...] boa parte da produção autoficcional atual tem mais ou menos a ver com
a autofabulação na medida em que o autor se representa nela,
voluntariamente, em situações que não viveu. Mantendo-se no limite
plausível, essas narrativas imitam a autobiografia sem respeitar seu contrato
de verdade. Apenas a menção ‘romance’ as preserva de uma acusação de
mentira ou embuste (Gasparini, 2014, p. 201-202).

Todavia, Genette, orientador de Colonna, com quem partilhava os principais


argumentos, assume, mais tarde, que tinha em mente algo distinto da autoficção
doubrovskyana ao debater o estatuto da autoficção. A definição mais estrita que
defendia era “uma narrativa contraditoriamente de estatuto declarado autobiográfico
[...], mas de conteúdo manifestadamente ficcional” (Genette apud Gasparini, 2014,
p. 200-201). Ao rever suas afirmações, Genette reconhece que falava de outra
prática, ainda sem um termo para classificá-la, “seu corpus ficou sem nome”:

Tal como é praticado hoje, o ‘gênero’ autoficção corresponde quase fielmente,


senão dignamente, à definição ampla, e deliberadamente desconcertante, de
Serge Doubrovsky. A definição mais estrita que defendi durante um tempo,
acreditando que estava certo, visava algo totalmente diferente: uma narrativa
contraditoriamente de estatuto declarado autobiográfico (segundo os critérios
de Philippe Lejeune: por homonímia entre autor, narrador e personagem),
mas de conteúdo manifestadamente ficcional (por exemplo: fantástico ou
maravilhoso) como o da Divina comédia de Dante ou o Aleph de Borges.
Mantenho minha definição genérica, mas me vejo forçado a não empregar
para nomeá-la um termo que chamaria hoje de aviltado, se não tivesse
consciência de tê-lo eu mesmo, outrora, tomado emprestado abusivamente a
seu inventor para designar um gênero no qual ele de fato não estava
pensando. De todo modo, o corpus ao qual eu o aplicava é ínfimo do ponto
de vista quantitativo, se comparado ao da autoficção, no sentido corrente e
até mesmo abundante – como se diz de uma enchente ou de uma maré negra
– que adquiriu em nossos dias. Mas, com isso, esse corpus (o meu) ficou sem
nome. Imaginei de maneira fugidia o conceito igualmente contraditório de
autobiografia não autorizada, mas como não estou certo de que convenha,
prefiro reservá-lo para outra ocasião (Genette apud Gasparini, 2014, p. 200-
201, grifos meus).

O termo para esta prática literária foi cunhado por Colonna: autofabulação.

Philippe Gasparini

Em minha opinião, o termo autoficção deveria ser reservado aos textos


que desenvolvem, em pleno conhecimento de causa, a tendência natural
a se ficcionalizar, própria à narrativa de si.
Gasparini

Philippe Gasparini (2014, p. 217) propõe três termos diferentes para tratar do
espaço autobiográfico contemporâneo no campo da teoria literária: autofabulação,
autoficção e autobiografia. O esforço em buscar um consenso entre os pesquisadores
é relevante no sentido de demarcar a diferença essencial entre o conceito de
Doubrovsky – matéria autobiográ ca, maneira ccional – e o de Colonna/Genette –
matéria ccional, maneira autobiográ ca. Entretanto, Gasparini era cético quanto à
difusão de sua tríade conceitual: “[...] é pouco provável que essas distinções entrem
em uso. O neologismo criado por Doubrovsky vai, provavelmente, continuar
embaralhando as cartas” (idem).
Há vários problemas teóricos na discussão sobre a autoficção que justificam o
pessimismo de Gasparini sobre a viabilidade de um consenso conceitual. O primeiro
questionamento feito é em relação à invenção na autoficção. Se Doubrovsky acredita
que a ficcionalização de si significa dar forma romanesca a uma matéria estritamente
autobiográfica, sem invenção (como sugeriria a teoria de Colonna e Genette), como
explicar a invenção de uma sessão de análise em Fils? “Trata-se, em quase 200
páginas, de uma sessão fictícia” (Gasparini, 2014, p. 190).
Gasparini analisa que o conceito de autoficção “teve inicialmente como base uma
ontologia e uma ética da escrita do eu”, uma vez que Doubrovsky “postulava que
não é possível se contar sem construir um personagem para si, sem elaborar um
roteiro, sem ‘dar feição’ a uma história” (Gasparini, 2014, p. 187). Para Gasparini,
Doubrovsky não é o primeiro a observar isso. Rousseau, Freud, Valéry e Sartre são
exemplos anteriores a Doubrovsky que mostraram “o quanto somos propensos a
preencher nossas lacunas de memória para compor uma narrativa coerente,
agradável e significante” (Gasparini, 2014, p. 187). O neologismo, segundo o
teórico francês, surgiu “no momento oportuno para traduzir e cristalizar as
numerosas dúvidas levantadas, desde o início do século XX, pelas noções de sujeito,
identidade, verdade, sinceridade, escrita do eu” (p. 189). Por isso, Gasparini
considera que Doubrovsky não apenas preenche a casa vazia do quadro de Lejeune,
mas postula a “perempção da autobiografia enquanto promessa de narrativa
verídica” (p. 189).
Em prol de um esclarecimento mínimo sobre confusões teóricas complexas,
Gasparini distingue três tipos de ficcionalização do vivido: (1) ficcionalização
inconsciente; (2) autofabulação; e (3) autoficção voluntária. O primeiro tipo se
refere a toda escrita do eu, circunscrita à esfera da memória e constituída de erros,
esquecimentos, seleção, roteirização e deformações. A autofabulação “projeta
deliberadamente o autor em uma série de situações imaginárias e fantásticas”, e “o
leitor é informado, ou desconfia desde o início, que a história ‘nunca aconteceu’”
(Gasparini, 2014, p. 203-204). A autoficção voluntária “passa voluntariamente da
autobiografia à ficção sem abrir mão da verossimilhança”, e “o leitor pode ser
enganado, apesar da menção ‘romance’, pela aparência autobiográfica da narrativa”
(p. 203-204). A autoficção voluntária é, para Gasparini, o caso mais adequado de
autoficção (segundo a concepção original).
Gasparini também analisa os “contratos de leitura”. Para ele, a autoficção não
propõe um novo tipo de contrato e existem três possibilidades pragmáticas:

o contrato de verdade, que rege a comunicação referencial, do qual depende a


escrita do eu em geral e a autobiografia em particular;
o contrato de ficção, que rege o romance, a poesia, o teatro etc.;
a associação dos dois, na qual se baseia a estratégia de ambiguidade do romance
autobiográfico (Gasparini, 2014, p. 204).

O teórico afirma que

Certos textos classificados como autoficções são lidos como autobiografias, ou


pedaços de autobiografias; outros são lidos como romances, principalmente
aqueles que se apresentam visivelmente como autofabulações. A maioria deles
desenvolve estratégias de ambiguidade que os inscrevem na tradição do
romance autobiográfico, mesmo se o herói-narrador tem o nome do autor,
pois essa homonímia funciona somente como um indício suplementar de
referencialidade, suscetível de ser contrabalanceado por indícios de
ficcionalidade igualmente convincentes (Gasparini, 2014, p. 204-205).

Percebe-se que, mesmo rejeitando a ideia de um novo contrato de leitura,


Gasparini não discorda que a autoficção estabelece um pacto ambíguo, que é uma
associação dos dois contratos de leitura – o de verdade e o de ficção. Entretanto, seu
ponto de vista ainda resiste à aceitação do jogo ambíguo. Em Est-il je? (2004), ao
analisar as estratégias de ambiguidade nas narrativas de autoficção, afirma que o
leitor sempre se pergunta se “é este o autor que reconta a sua vida ou o personagem
fictício?” (Gasparini, 2004, p. 9), e que os romances autoficcionais têm dupla
recepção – ora ficcional ora autobiográfica.
Posição um pouco diferente é a do teórico espanhol Manuel Alberca (2007), que
acredita ser o leitor ideal aquele que resiste à leitura de um só estatuto, entra e aceita
o jogo ambíguo da autoficção, aceita a indeterminação, as incógnitas insolúveis,
transita entre o romanesco e o autobiográfico e desfruta de máxima liberdade para
mover-se entre ambas as interpretações.

Madeleine Ouellette-Michalska

Madeleine Ouellette-Michalska é autora do livro Auto ction et dévoilement de soi


(2007), no qual analisa autoficções contemporâneas escritas por mulheres,
propondo uma leitura da sociedade contemporânea por meio da literatura.
Enquanto a autobiografia é um gênero predominantemente masculino, Ouelette-
Michalska observa que a autoficção é, também, uma escrita de mulheres. A ensaísta
constata que as mulheres são a maioria nas escritas do eu e que o erotismo é
característico dessa produção feminina: “Se examinamos a autoficção recente, dois
elementos saltam aos olhos: a abundância de mulheres que a praticam e o lugar que
o corpo ocupa. Por que tantas mulheres e por que tantos corpos? Existe alguma
relação entre a mulher, a autoficção e o corpo?” (Ouellette-Michalska, 2007, p. 79).9
O livro trata do retorno às escritas íntimas, das mutações do gênero
autobiográfico e da expansão da autoficção na contemporaneidade. Entre as
autoficcionistas estudadas, estão Annie Ernaux, Nelly Arcan, Marguerite Duras,
Ying Chen, Catherine Millet e Marie José ériault. Além das delas, a obra de
Sartre e Bianciotti. Ouellette-Michalska segue a linha de Régine Robin e de
Colonna, considerando a autoficção como um gênero híbrido em que se misturam
ficção e realidade, o imaginário e o real, a certeza e o “pode ser”, enviando, assim,
uma mensagem contraditória: “sou eu e não sou eu”, “é verdade e não é verdade”.
Sobre a narrativa autobiográfica, ela afirma que

[...] o escritor assume a tripla identidade autor-narrador-personagem e


impõe, assim, o pacto de leitura cujos limites eu destaquei, isto é, a maneira
como o livro será lido. O autor, que encena sua própria pessoa, é ao mesmo
tempo sujeito e objeto da ação descrita. Na autoficção, ao contrário, o
narrador ou a narradora encarnam uma personagem com a qual eles não
necessariamente compartilham a identidade. Porém, na maioria das vezes,
sente-se a sua presença sob as palavras, pronta para reorientar o texto em sua
direção, para investir seu desejo, suas obsessões e as suas preocupações. E a
parte da esquiva, da fraude ou da mistificação que a narrativa permite é
provavelmente comparável àquela contida no postulado de verdade e de
autenticidade ao qual os autobiográfos se viam forçados a aderir (Ouellette-
Michalska, 2007, p. 71).10

Michalska faz uma distinção fundamental entre a autoficção e outras escritas


autobiográficas. Acredito que marcar essa diferença – a colocação da identidade do
autor no texto – seja fundamental para que pensemos a especificidade da autoficção:

Todo escritor projeta em sua obra suas fantasias, seus pensamentos, seu
mundo imaginário e suas experiências de vida. A inserção de fatos
autobiográficos na trama romanesca, ou criar personagens a partir de pessoas
conhecidas, não é da mesma ordem que encenar a si mesmo em um texto
com sua própria identidade. Na autoficção, o autor se reserva o direito de se
apagar, ou de aparecer no texto com seu nome ou mesmo com seu nome
acompanhado de referências pessoais: sexo, profissão, vida sentimental, lugar
habitado etc (Ouellette-Michalska, 2007, p. 7-12).11

Annie Richard

O trabalho de Annie Richard, assim como o de Madeleine Ouellette-Michalska,


volta-se para a questão de gênero. Richard é presidente da associação Femmes-
Monde, especialista na obra da escritora francesa Gisèle Prassinos12 (1920-2015), e
se interessa pela criação das mulheres, sobretudo no campo da autoficção. Em
L’auto ction et les femmes: un chemin vers l’altruisme? (2013), Richard analisa as obras
de Camille Laurens, Sophie Calle, Catherine Millet, Christine Angot e Chloé
Delaume.
Apesar de observar que a autoficção “existe cotidianamente” e que sempre existiu
na literatura – “les critiques ont beau jeu de déceler dans le romanesque la présence
de l’auteur, de ses proches, tout son univers transposé de façon plus ou moins
directe ou voilée” (Richard, 2013, p. 9) –, Richard considera que existe uma
mudança em relação à percepção do fenômeno: “a autoficção se tornou consciente” e,
desde então, “capaz de ser trabalhada, distanciada, parodiada, ela é um gênero
pleno”.13 A especificidade da autoficção estaria, então, numa mudança de
perspectiva, ou seja, na tomada de consciência do “mentir-vrai” presente na escrita do
eu. Para Richard, a autoficção é integrante do movimento reflexivo da arte
contemporânea.
Ao pensar a tomada de consciência por parte do autor, Richard não ignora a
reconfiguração existente na relação entre autor e leitor. Na brincadeira deliberada
entre verdade e mentira no romance, a teórica francesa observa questões importantes
relativas ao novo gênero, como a adesão do leitor, uma espécie de “educação do
leitor”, a emergência de um endosso ao pacto autobiográfico lejeuniano, o mundo
literário como lugar de exposição e ataque, e a sua midiatização (Richard, 2013, p.
11).
A tese defendida no livro, antecipada por seu subtítulo e posta como
questionamento em sua introdução, é a de que a autoficção é um caminho para o
altruísmo. Sophie Calle e as demais autoras analisadas servem para endossar o seu
argumento. Para Richard (2013, p. 11), a autoficção “se revela indissociável de uma
alter-ficção”, o prefixo ‘auto’ cede espaço para o ‘alter’, dando a ‘alter ego’ um
sentido novo de reciprocidade (entre o outro e o ego), em contraposição à ideia de
similitude. Essa noção de alterficção é propícia e fértil para pensar as novas matizes
da relação autor-leitor. As performances de Sophie Calle, segundo Richard,
concretizam um público-leitor e provam que a autoficção é um caminho para o
altruísmo. Além disso, trata-se de um público feminino, justificando o título
L’auto ction et les femmes não apenas como um espaço de análise da produção
autoficcional de artistas e escritoras mulheres, mas também de uma relação recíproca
com seu público-leitor feminino.

Jacques Lecarme

Lecarme é um dos primeiros teóricos a falar em autoficção como um novo


gênero. Em 1997, publica em coautoria com Éliane Lecarme-Tabone, o livro
L’autobiographie (Armand Colin), no qual analisa as definições de autobiografia e os
seus problemas, passando pelo pacto autobiográfico, pela relação da autobiografia
com as mulheres, a morte, os retratos, os diários, o cinema, a sociologia etc. O
último capítulo interessa-nos especialmente por tratar da autoficção. Lecarme afirma
que a autoficção “é, inicialmente, um dispositivo bem simples, em que autor,
narrador e protagonista de uma narrativa possuem a mesma identidade nominal e
cuja denominação genérica indica que se trata de um romance”14 (Lecarme, 1999, p.
268, grifo meu). O que parece muito simples para Lecarme, é questionado por
Gasparini, que considera “problemática” a aplicação desses dois critérios (Gasparini,
2014, p. 197), uma vez que a homonímia não impede a fabulação, e a etiqueta
“romance” está além do domínio do autor, pois envolve editores, questões de
mercado e de recepção literária.
Entretanto, Lecarme não ignora tal complexidade e a expõe em seus textos. Vale
notar que, em sua afirmação, ele utiliza o termo inicialmente, relativizando a
aparente simplicidade de sua concepção:

Acredita-se, em primeiro lugar, que o subtítulo romance seja um marcador


muito seguro: se aparece em um texto de regime uninominal, é autoficção; se
não aparece, é autobiografia, esse era o postulado de Lejeune e Doubrovsky à
época da invenção do termo... Mas, na verdade, a participação do autor na
escolha ou omissão de um subtítulo é da smais problemáticas: esse gênero de
peritexto se revela muito mais ‘editorial’ do que ‘autoral’. Nenhum dos
grandes romances do século XIX comportava esse subtítulo [...] (Lecarme,
2014, p. 86)

Em seu artigo mais conhecido, “Autoficção: um mau gênero?”, traduzido por


Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes e publicado no livro
indispensável Ensaios sobre a auto cção (2014), Lecarme analisa as contradições do
uso do termo autoficção e de sua definição, começando pelas ambivalências do
próprio inventor do neologismo, Serge Doubrovsky. Se, inicialmente, a autoficção
doubrovskyana fazia uma oposição à autobiografia, como vemos nos postulados de
Doubrovsky, sobretudo quando trata de Fils, com o tempo e o consequente
amadurecimento do debate em torno do fenômeno, Lecarme (2014, p. 68) percebe
que Doubrovsky “toma distância do neologismo, sem renegá-lo completamente”,
mudando a sua concepção original: “a autoficção se torna, por efeito de um
pequeno ardil transparente, uma autobiografia desenfreada” (p. 68).
A autoficção é um gênero, e é um mau gênero. “Por que defender tanto a
existência de um gênero, cuja comprovação não é garantida, uma vez que o termo
que o designa não é reivindicado pelos autores que o praticam?”, se pergunta
Lecarme (2014, p. 102). O mau gênero sofre dupla rejeição: de um lado, os
próprios autores não assumem o termo autoficção, com exceção de Doubrovsky e
Nizon; de outro, os autoficcionadores passam pela reprovação dos doutos e letrados
(Lecarme, 2019, p. 102). No Brasil, a recepção não foi diferente. Muitos autores
rejeitaram o uso de termo para classificar sua obra; e muitos acadêmicos também
demonstraram antipatia pelo neologismo. Acredito que, no Brasil, boa parte da
antipatia procedeu do desconhecimento do amplo debate em torno do novo termo e
da possibilidade de estabelecimento de um novo gênero literário. O corolário disso
foi a banalização da autoficção e uma concepção simplista e generalista de que “tudo
é autoficção”.
Lecarme mostra, ainda, que outros termos começaram a ser usados pela teoria e
crítica literária, com intuito de superar a tão problemática autoficção: surfiction,
fiction of facts, faction. No capítulo “O perigo da autoficção”, apresentei alguns
termos eleitos para substituir o mau gênero da autoficção. No território contestado
da teoria literária houve muitas disputas pelo melhor termo e conceito cujo berço
foi a polêmica da autoficção atrelada ao seu criador, Serge Doubrovsky.
Outro ponto importante nos estudos de Lecarme é o seu ensaio de fazer uma
arqueologia das obras autoficcionais na França: “tentativa de agrupamento não
exaustivo de textos que se inscrevem no campo da autoficção” (Lecarme, 2014, p.
81). Seu quadro apresenta dois extremos – “narrativa verdadeira” (à esquerda) e
“romance” (à direita) – que circunscrevem a divisão da autoficção em dois tipos:
“definição estrita” de autoficção (Doubrovsky) e “definição ampla”. Dessa forma,
Lecarme considera, por exemplo, a obra de Barthes – Roland Barthes par R. B. –
autoficção estrita, isto é, doubrovskyana; e obras como W ou le souvenir d’efance, de
Perec, e Livret de famille, Des si braves garçons, Remise de peine, Fleur de ruine, de
Modiano, como autoficção ampla. Vale lembrar que Silviano Santiago chamou a
atenção para a importância do trabalho – ainda não realizado – de arqueologia da
autoficção brasileira:

[...] qualquer etiqueta – e autoficção é uma delas – merece por parte do


crítico universitário um trabalho de arqueologia, para retomar o trabalho de
investigação posto à nossa disposição por Michel Foucault. Encantar-se com
uma etiqueta não é sinal de maturidade crítica. O sinal de atualidade vem da
acoplagem da pesquisa tanto ao universo da produção contemporânea quanto
ao universo da produção que a precede de anos, décadas ou séculos (Santiago,
entrevista no apêndice deste livro).

Jean-Louis Jeanelle

Em “A quantas anda a reflexão sobre a autoficção”,15 Jeanelle revela a gradual


legitimação da autoficção como gênero literário, embora indefinido ainda se haverá
uma concepção dominante de autoficção. O desmembramento da autoficção em
dois grandes modelos – o de Doubrovsky e o de Colonna – é parte da indefinição
corrente. A fim de compreender a evolução da autoficção, Jeanelle seleciona quatro
momentos que “desempenham o campo de forças críticas no qual se encontra
doravante preso todo e qualquer pesquisador que trabalhe com autoficção” (2014, p.
131):

1. 1989/2004: Vincent Colonna e a ficcionalização de si


2. 1996: Marie Darrieussecq: é possível ser sinceramente não sério?
3. 2001: Philippe Forest e o elogio do romance
4. 2004: Philippe Gasparini, retorno ao início do jogo (Jeanelle, 2014, p. 131-
139).

O texto de Jeanelle é importante para compreender o estado da arte por


proporcionar ao leitor o acompanhamento de boa parte da trajetória do conceito de
autoficção e seus principais articuladores. Mas não avança ao propor um conceito
mais sintético. Antes, Jeanelle aposta que a teoria da autoficção pode tornar-se
monotóna, por conta dos estudos que a apresentam como um “gênero ‘estabelecido’,
correspondendo a uma clase bem determinada” (Jeanelle, 2014, p. 131-139).
O ponto alto do texto de Jeanelle é estabelecer uma distinção entre ambiguidade
e hibridez: “o que Lejeune interpretava como um fenômeno de ambiguidade,
Doubrovsky e seus sucessores consideram como um fenômeno de hibridez”
(Jeanelle, 2014, p. 143). A ambiguidade de um texto advém da falta de informação
suficiente e pode ser desfeita com um complemento de informação “suficiente para
fazê-lo passar de um lado para o outro da fronteira” (p. 144). Já o estatuto híbrido
do gênero se define pela coexistência de elementos factuais e ficcionais, e não mais
um problema de falta de informação: “Na verdade, a indecidibilidade deixa de ser
então problema de falta de informação ou de instrumentos poéticos adequados: ela
define propriamente a narrativa autoficcional” (p. 144). Contudo, Jeanelle analisa
que “não é certo que haja muito a ganhar se instalando assim no paradoxo,
simplesmente porque ao fazer deste um traço que define o gênero, arrisca-se a anular
o próprio problema” (p. 144).
Para Jeanelle, a confusão teórica para definir ficção é a raíz do problema:

Existem, de maneira geral, três grandes definições. Para uns, a ficção é um


modo narrativo constituído de asserções simuladas (trata-se do ccional), para
outros, ela se define em função de um criterio de orden temática, isto é, pelo
recurso ao imaginário (trata-se do ctício); para outros, ainda, ela representa
tudo aquilo que não é referencial: o imaginário, mas também o hipotético, o
irreal, o mentiroso etc. (trata-se do falso). Mas, na maioria das vezes, o
ficcional e o falso se confundem, por falta de uma análise do próprio estatuto
da ficção e de seus marcadores. Esse ponto é, contudo, esencial, já que é sobre
essa questão que os dois modelos reconhecidos por Doubrovsky e Colonna se
dividem: para o primeiro, a autoficção se define antes de tudo pela hesitação
ou pela indecisão que produz no leitor, incerto quanto à natureza das
informações apresentadas; para o segundo, a autoficção debe mergulhar o
leitor em um mundo ficcional, sob pena de ser somente uma variante
modernizada do ‘romance autobiográfico’ (Jeanelle, 2014, p. 145-146).
Para Jeanelle, em matéria de teoria, “não há nada mais perigoso que o consenso”
(2014, p. 141). Sendo assim, considera as dificuldades teóricas suscitadas pelo
conceito da autoficção algo a ser preservado, como um valor, renunciando à
coerência do modelo literário que designa.

Sébastien Hubier

Hubier estuda as literaturas íntimas (littératures intimes), o uso singular da


primeira pessoa nos discursos referenciais e literários, e questiona se é possível
definir um gênero baseando-se exclusivamente sobre o modo de enunciação dos
textos que se deseja classificar. O estudioso francês propõe diferenciar os gêneros que
se pretendem referenciais, ou seja, valorizam a autenticidade do discurso, e os
gêneros ficcionais, que podem utilizar a forma dos primeiros como intencional
estratégia literária.
Hubier observa que as ficções em primeira pessoa – autobiografia; as memórias;
os diários (journal intime); romance epistolar; romance autobiográfico; crônicas;
relatos de viagem; e autoficção – “procuram imitar os gêneros referenciais em que o
eu designa o autor real absorvido pela pintura de si-mesmo e pela evocação das
diferentes épocas de sua vida”. Há, portanto, relação entre autobiografia e memórias
ficcionais, correspondência autêntica e romance epistolar, diário íntimo e diário
ficcional, autorretrato e Künstlerroman ou Bildungsroman, isto é, história fictícia dos
anos decisivos de uma vida ou o personagem atinge lentamente a maturidade e
encontra seu lugar no mundo (Hubier, 2003, p. 109). Há, ainda, os discursos que
ficam entre esses dois gêneros, os que estão nos limiares da realidade e da
imaginação.
Hubier critica a concepção dualista, na qual verdade e ficção se opõem, em prol
de se pensar em um espaço lúdico e transitório:

O problema dessa concepção dualista é que ela negligencia todos os textos


literários que se inscrevem nas fronteiras da autobiografia e do romance, que
misturam diferentes gêneros, que transpõem a vida em romance e que se
baseiam justamente sob a dialética do verdadeiro e falso (Hubier, 2003, p.
109).16

Contribuição adicional do teórico para os estudos de literatura íntima foi


perceber que a autoficção é autoanalítica, autorreferencial, metatextual e, até
mesmo, metaficcional. A inserção da experiência analítica na narrativa corresponde a
uma reflexão profunda sobre a produção da literatura por ela mesma e sobre a
escrita autoficcional:

De fato, S. Doubrovsky, introduzindo a experiência analítica no âmago do


texto, é conduzido a teorizar sobre sua prática literária, a se entregar a uma
análise do funcionamento de sua escrita. A autoficção teria assim, como
característica, a apresentação, em filigrana, de uma reflexão sobre o estatuto
teórico das escritas na primeira pessoa e iluminar os territórios obscuros da
personalidade (Hubier, 2003, p. 126-127, grifos meus).17

A autoficção é “uma escrita da fantasia e, a este título, ela encena o desejo, mais
ou menos disfarçado, de seu autor que procura dizer, ao mesmo tempo, todos os eus
que o constituem”.18 Doubrovsky justificara e teorizara já sobre o uso lúdico de uma
literatura de “fricção”, nas fronteiras da existência real e da vida imaginária, nos
limites da autobiografia e do romance.
Sendo assim, por se tratar de uma ficcionalização de si, essa projeção pode
ocorrer de maneira mais livre, ou até mesmo mais idealizada, pois não se trata mais
do eu, mas do ser-ficcional. A escrita do eu é real e ficcional, e é por meio dessa
“mentira” que o autor revela a si mesmo e o seu íntimo, iluminando os “territórios
obscuros de sua personalidade”:

As interrogações identitárias são sempre oblíquas: como se, afinal, só se


pudesse ser si-mesmo através da mentira – e como se apenas a mentira
pudesse nos revelar a nós mesmos. O espaço que se constrói, em torno desse
eu ambivalente, é feito de instabilidade, de transições, de incertezas (Hubier,
2003, p. 134).19
Autoficção surge, para Hubier, como uma solução para tirar a autobiografia de
seus impasses. O pacto apropriado para essa variante pós-moderna da autobiografia
é o pacto oximórico, que alivia o autor do pacto autobiográfico e o liberta da ilusão
de autenticidade do relato:

Um dos privilégios da autoficção, fundado sobre um pacto oximórico, seria


então a possibilidade de falar, por ela, de si mesmo e dos outros sem
nenhuma forma de censura, de entregar todos os segredos de um eu variável,
polimorfo, e de se afirmar livre finalmente de ideologias literárias
aparentemente ultrapassadas. Ela oferece ao escritor a oportunidade de
experimentar a partir de sua vida e de sua ficcionalização, de ser ao mesmo
tempo ele mesmo e outro (Hubier, 2003, p. 125).20

Utilizar a primeira pessoa faculta ao autor da autoficção repensar experiências


subjetivas (Hubier, 2003, p. 134),21 pois os “escritos à primeira pessoa são, então,
particularmente capazes de compreender não somente a banalidade da vida
quotidiana, da comédia social, da inconstância dos seres e da insignificância dos
dias, mas também da infância, da morte, do sexo, dos sonhos, das mentiras a si
próprio” (Hubier, 2003, p. 135).22
Enfim, Hubier analisa o uso da primeira pessoa na autoficção, a liberdade do
autor em face ao gênero híbrido e contraditório e a junção entre realidade e ficção,
sonho e verdade:

O autor de autoficção confunde metodicamente as pistas e deixa ao leitor a


liberdade de seguir os caminhos obscuros da autenticidade e das quimeras, de
descobrir, aqui e acolá, os pontos de emergência e de transparência da
personalidade. O uso da primeira pessoa permite assegurar a coerência dos
fantasmas, dos sonhos obsedantes, das imagens caóticas, das metáforas
surpreendentes, das sensações estranhas. [...] O uso da primeira pessoa
permite ao autor de autoficção de reavaliar suas experiências íntimas, seus
hábitos. Nós vimos que é, sem dúvida, porque esta é a expressão de
contradições insolúveis, que a autoficção pende irremediavelmente para o
imaginário (embora, novamente, ela possa ser mais real que a própria
realidade). É também porque ela se situa irremediavelmente no ponto de
junção do sonho e da verdade, que ela se constitui de imagens em
movimento, de aparições efêmeras, de fragmentos de pesadelos (Hubier,
2003, p. 134).23

Isabelle Grell

Isabelle Grell é referência importante nos estudos sobre a autoficção. Professora


de literatura alemã, pesquisadora do Institut de Textes et Manuscrits Modernes
(ITEM), onde coordena o grupo Genèses d’auto ctions, Grell co-dirige, ao lado de
Arnaud Genon, o site autofiction.org, fonte de amplo material multimídia sobre a
autoficção.
Em 2014, Grell publicou o curto e denso livro L’auto ction (Armand Colin), no
qual retraça o nascimento do termo, sua genealogia e seu contexto. Grell analisa as
críticas da autoficção, tais como a questão moral do exibicionismo, a autoficção
como uma escrita feminina, o “empobrecimento” do romance, ou seja, reflexões
sobre a qualidade literária do conteúdo e do estilo da autoficção etc.
O livro encerra com uma tentativa de traçar a autoficção no mundo: 1) Europa
(países germânicos, Itália e Espanha); 2) Brasil; 3) Áfricas; 4) Caribes; e 5) Mundo
Asiático. Na parte destinada à autoficção brasileira, o estudo tem como base o
trabalho de Luciana Hidalgo, sobretudo a conferência no Colloque de Cerisy (em
2012), que analisarei no próximo capítulo sobre a teoria da autoficção no Brasil. Os
autores abordados como autoficcionais em L’auto ction são os mesmos apontados
por Hidalgo: Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997), Fernando Gabeira (Os guerrilheiros
estão cansados, 1980), Silviano Santiago (Histórias mal contadas, 2005), Tatiana
Salem Levy (A chave de casa, 2007), Ferréz (Capão Pecado, 2005), Cristóvão Tezza
(O lho eterno, 2007), Gustavo Bernardo (O gosto do appfelstrudel, 2010), José
Castello (Ribamar, 2010), entre outros. Ressoante às ideias de Hidalgo, Grell
encontra os gérmens da autoficção brasileira em Lima Barreto, Vida e morte de M. J.
Gonzaga (1919), livro no qual o autor trocou seu nome próprio na última revisão,
abrindo mão do que viria a ser uma “autoficção homoníma” (Grell, 2014, p. 100).
Grell observa que, por ser o Brasil um país tão complexo, em sua geografia,
miscigenação, desigualdades, os autoficcionadores acabam tratando de questões
políticas, raciais e sociais do país em suas obras intimistas, como foi o caso de Lima
Barreto e de Fernando Gabeira.
Outro ponto interessante diz respeito à breve análise de Cidade de Deus, cujo
autor, Paulo Lins, faria emergir uma espécie de “je-favela” (eu-favela), pois ao partir
de sua experiência em uma favela do Rio de Janeiro assumiria uma voz coletiva,
disseminada em vários personagens – “un je quasi collectif, soumis à la géographie
politico-sociale et qui va justement la dépasser à travers l’écriture” (Grell, 2014, p.
101). Grell finaliza com o conceito articulado por Hidalgo de “situação-limite”,
afirmando que “o simples testemunho não é mais suficiente e a autoficção se torna
fundamental” (p. 101).
A análise teórica de Grell questiona a gênese da escrita do Eu pós-moderno;
aborda as fronteiras geográficas e disciplinares (cinema, fotografia, HQ, pintura,
internet etc.); define autoficção como uma arte engajada (transformação estética de
sua própria vida pela escrita, arte) de um “Eu” assumido (homonímia entre
autor/narrador/protagonista, anônimo ou pseudônimo seguro), testemunhando, a
partir de um pacto de verdade pós-freudiana e de um Eu na sua fragmentação
individual (psiquê), universal (sócio-histórico) e em relação com o outro.
Na sua conclusão acerca do debate ficcional, a autora parece abrir mão das
nuances do gênero – “peu importe le pays où l’on écrit de l’autofiction, qu’elle se
tienne au précepte doubrovskien [...], que l’auteur ne se nomme pas ou apparaisse
sous le signe d’une lettre [...], ou qu’il a ait opté pour un synonyme assumé que
lecteur identifie” (Grell, 2014, p. 107) –, que sempre geraram polêmica, para
ultimar a vitalidade da autoficção ligada ao movimento de tensão entre o dentro e o
fora, o indivíduo e o mundo, considerando primordial a impossibilidade de separar
a escrita do eu e o questionamento do mundo (p. 107): “il s’agit [...] toujours de
variations d’un moi en situation, assumé, d’une image variable d’un je dans un
monde inconstant” (p. 108).
Autoficção na crítica literária brasileira

A autoficção é sintoma de nossa época.


Eurídice Figueiredo

Neste capítulo, discuto a autoficção no Brasil, em interlocução com textos


críticos escritos por Ana Cláudia Viegas, Diana Klinger, Eurídice Figueiredo,
Evando Nascimento, Jovita Maria Gerheim Noronha, Luciana Hidalgo e
Luciene Azevedo. Apesar de o termo autoficção não ser mais novidade nos
estudos críticos e literários realizados no Brasil, o estágio das discussões teóricas
aqui não se compara com a da teoria em língua francesa. No país europeu, é
possível encontrar textos acadêmicos sobre o neologismo datados dos anos
1980.

Jovita Maria Gerheim Noronha

Se o debate sobre a autoficção, no Brasil, avançou de forma célere nos


últimos anos, deve-se triburar à Jovita Noronha grande parte dos méritos.
Noronha traduziu – com Maria Inês Coimbra Guedes – um dos livros mais
importantes para a discussão teórica de autobiografia – O pacto autobiográ co:
de Rousseau à internet (2008), de Philippe Lejeune. Além desse livro
indispensável, ela também organizou e traduziu uma coletânea de ensaios
escritos pelos principais teóricos franceses, os Ensaios sobre a auto cção (2014).
Noronha vem trabalhando há bastante tempo com os temas escritas de si,
construções identitárias, literatura comparada e francesa. Para quem está
começando a enveredar pelos caminhos da autoficção, um bom guia é o artigo
“Notas sobre autobiografia e autoficção” (2010). A intimidade com os textos
de Lejeune revelada neste artigo possibilita que o seu leitor conheça a evolução
da reflexão teórica lejeuniana acerca da autobiografia, por meio de atualizações
do pacto autobiográfico e das respostas aos questionamentos (e provocações)
feitos por Doubrovsky e outros pesquisadores franceses.
Noronha concorda que a criação do termo por Serge Doubrovsky (1977)
tenha provocado uma mudança na produção ficcional contemporânea,
sublinhando a “briga política” entre duas concepções de literatura – “Temos,
então, de nos lembrar que isso envolve uma ‘briga’ política entre duas
concepções de literatura, de arte” (Noronha) – sobre se há ou não valor
literário na autobiografia: “a autoficção se tornou uma ‘etiqueta’ cômoda para
muitos autores que querem falar sobre suas vidas, mas não querem assumir que
fazem autobiografia, pois estimam que só a ficção é arte, literatura” (Noronha,
apêndice deste livro). A estudiosa relembra o que Lejeune afirmou, com
“humor e ironia”, no texto “Autobiografia e ficção”, trazendo uma citação do
teórico, que considera longa, porém necessária:

[...] ‘quando comecei inocentemente a estudar e defender meu gênero


preferido, fiquei impressionado de ver pouco a pouco que entrara em
uma espécie de guerra civil, na qual minha ação defensiva levantava as
frentes de batalha. Não era essa minha intenção. Pensava poder falar da
autobiografia, gata borralheira da literatura, sem provocar ciúmes no
romance, gênero-rei. Pode-se gostar dos dois, e há lugar para todos! Mas
o ato de definir a autobiografia, e consequentemente de levá-la a sério,
de respeitá-la, de valorizá-la, de reconhecer nela um território de escrita,
remobiliza instantaneamente aqueles que decidiram acantoná-la fora do
campo sagrado da criação, longe das servidões desinteressantes da vida
quotidiana, como pagar impostos ou escovar os dentes. Há, na França,
tanta hostilidade e irritação em torno da autobiografia ‘autêntica’ que
um certo número de escritores acampam, se posso dizer assim,
‘ilegalmente’ em seu território. Eles mobilizam, dizendo claramente
fazê-lo, a experiência pessoal, às vezes o próprio nome, brincando assim
com a curiosidade e a credulidade do leitor, mas batizam ‘romance’
textos nos quais dão um jeito de se entender com a verdade, tratando-a
como bem querem. Essa zona ‘mista’ é muito frequentada, muito viva e,
sem dúvida, como todos os locais de mestiçagem, muito propícia à
criação. Usufruir dos benefícios do pacto autobiográfico sem pagar
nenhum preço por isso pode ser uma conduta fácil, mas também
propiciar exercícios irônicos plenos de virtuosismo ou abrir caminho
para pesquisas das quais a autobiografia ‘autêntica’ poderá tirar proveito.
Mas os escritores que frequentam essa zona, justamente porque estão
sempre esbarrando na autobiografia, são os que mais violentamente a
depreciam e a renegam: sobretudo que ninguém pense que eles a
praticam! Eles estão inteiramente no campo da arte! — A violência
chega ao paroxismo quando o texto é totalmente autobiográfico, como
em L’Inceste [O Incesto] de Christine Angot, que recusa que seu texto
seja considerado uma ‘merda de depoimento’ (Lejeune apud Noronha,
entrevista no apêndice deste livro, grifos meus).

Para Noronha, é correta a perspectiva de Leujeune, que demarca a diferença


entre autobiografia e autoficção com base no tipo de pacto de leitura:

Trata-se de uma questão de pacto, de contrato de leitura. Na


autobiografia, o narrador, que se confunde com o personagem, e que é o
próprio autor, se compromete em dizer a verdade. Mas é preciso pensar,
como propõe Philippe Lejeune, que ‘o autobiógrafo não é alguém que
diz a verdade, mas alguém que diz estar dizendo a verdade’. Já na
autoficção, se tomarmos a concepção de Doubrovsky, este insiste na
elaboração ccional da narrativa, na criação de ‘um pacto oximórico’.
Como ele já sustentou por diversas vezes, trata-se de narrativas, nas
quais ‘a matéria é estritamente autobiográfica, e a maneira estritamente
ficcional’, de uma ficção ‘confirmada pela própria escrita que se inventa
como mimese, na qual a abolição de toda e qualquer sintaxe substitui,
por fragmentos de frases, entrecortadas de vazios, a ordem da narração
autobiográfica’ (Noronha, apêndice deste livro, grifos meus).

Noronha observa também o conceito de ficcional utilizado por


Doubrovsky. Trata-se da ficção como narrativa, e não como invenção. Esta
concepção de ficção é utilizada na criação do conceito de autoficção:

Percebe-se, todavia, em sua análise, que o ccional não é compreendido


como fictício, como pura invenção, mas como mobilização de
estratégias narrativas tomadas de empréstimo ao romance moderno e
contemporâneo: “a autoficção, para mim, não mente, não disfarça, mas
enuncia e denuncia na forma que escolheu para si: ‘Ficção de
acontecimentos e fatos estritamente reais’”.

Vê-se que, para Doubrovsky, a autoficção tem um caráter referencial.


Entretanto, temos, hoje, pelo menos na França, obras que estabelecem
um pacto autobiográfico, referencial, mas que se valem de
procedimentos do romance contemporâneo (assim como houve autores
– Michel Leiris, Georges Perec que inovaram o gênero autobiográfico
em sua época). Uma das questões importantes é se perguntar até que
ponto as autoficções são lidas segundo um pacto contraditório,
‘oximórico’ (Noronha, apêndice deste livro, grifos meus).

Luciana Hidalgo

Luciana Hidalgo é referência importante nos estudos de autoficção. Em


julho de 2012, realizou uma conferência no tradicional Colloque de Cerisy-la-
salle, intitulada “L’autofiction brésilienne: une écriture-limite”, onde
apresentou aos franceses uma reflexão sobre a nossa prática literária
contemporânea autoficcional e teceu aproximações entre a literatura brasileira e
o conceito francês. Os textos de Hidalgo sempre pensam a autoficção
relacionada à prática literária brasileira.
Hidalgo posiciona-se em relação ao termo auto cção:

Como disse recentemente o próprio Serge Doubrovsky, ‘era uma palavra


necessária’. Embora seja um conceito polêmico por se aproximar do
‘romance autobiográfico’ já tão bem definido por Philippe Lejeune,
acabou se tornando um ‘fenômeno’ em todo o mundo (segundo
Philippe Forest). Gosto muito de acompanhar toda a polêmica que o
termo provoca e de ver como é utilizado por escritores das formas mais
subjetivas e fluidas. Talvez nunca se chegue a um consenso teórico em
relação à auto cção, mas o neologismo vem ‘avalizando’, ‘autorizando’,
muitos autores a se aventurar cada vez mais em ficções pessoais
(Hidalgo, entrevista no apêndice deste livro).

Sobre a diferença entre autobiografia e autoficção, Hidalgo afirma que a


autoficção, em geral,

[...] tem mesmo um tom mais contemporâneo, por vezes mais


fragmentado, onde a preocupação com uma recapitulação fiel,
cronológica e ‘histórica’ dos fatos não é importante. Autores recorrem à
memória, a eventos de suas histórias pessoais, para compor uma ficção
que, por vezes, foge muito deles mesmos; um paradoxo. E há
principalmente a questão da identidade onomástica entre autor,
narrador e protagonista. A partir do momento em que um escritor dá
seu próprio nome ao personagem principal, ele assume profundamente a
auto cção, diferenciando-a do romance autobiográfico, onde a relação
autor-protagonista podia ser, em geral, menos óbvia, mais velada
(Hidalgo, apêndice deste livro, grifo meu).
Vale lembrar o que Lejeune fala sobre o romance autobiográfico, uma vez
que Hidalgo e Lejeune percebem diferenças não apenas entre a autobiografia e
autoficção, mas também entre a autoficção e o romance autobiográfico:

Não se deve confundir o pseudônimo assim definido como nome de


autor (que consta na capa do livro) com o nome atribuído a uma pessoa
fictícia dentro do livro (mesmo se essa pessoa tem estatuto de narrador e
assume a totalidade da enunciação do texto), pois essa pessoa é ela
própria designada como fictícia pelo simples fato de que não pode ser o
autor do livro. [...] No caso do nome fictício (isto é, diferente do nome
do autor) dado a um personagem que conta sua vida, o leitor pode ter
razões de pensar que a história vivida pelo personagem é exatamente a
do autor [...]. Ainda que se tenha todas as razões do mundo para pensar
que a história é exatamente a mesma, esse texto não é uma
autobiografia, já que esta pressupõe, em primeiro lugar, uma identidade
assumida na enunciação, sendo a semelhança produzida pelo enunciado
totalmente secundária. Esses textos entrariam na categoria do ‘romance
autobiográfico’ (Lejeune, 2014, p. 29, grifo meu).

Hidalgo teve papel importante na divulgação do termo na mídia brasileira,


na qual pôde esclarecer algumas especificidades da autoficção e sua realização
na literatura contemporânea. Estudiosa da obra de Lima Barreto, também
questiona a identidade onomástica como aspecto fundamental na classificação
de uma obra autoficcional, tendo em vista que Lima Barreto seria, em sua
opinião, o primeiro escritor brasileiro de autoficção, com Recordações do
Escrivão Isaías Caminha (1917).

Eurídice Figueiredo
A professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Eurídice Figueiredo contribuiu significativamente para o debate autoficcional,
sendo uma das pioneiras. Em 1977, trouxe para a Universidade Federal
Fluminense (RJ) a escritora Régine Robin, instaurando o conceito de
autoficção no Brasil. No livro Mulheres ao espelho: autobiogra a, cção e
auto cção, Figueiredo (2013) indaga como diferentes gerações de mulheres se
constroem imageticamente nos seus textos autobiográficos, autoficcionais ou
memorialísticos, da década de 1970 até hoje. O foco nas mulheres escritoras é
muito interessante, pois a autobiografia sempre foi vista como um gênero
predominantemente masculino.
A literatura contemporânea, para Figueiredo, abre espaço para um novo
tipo de escrita do eu, que pode ser considerada híbrida e intersticial:

[...] de Serge Doubrovsky a Patrick Modiano, de Paul Auster a Philip


Roth, de Silviano Santiago a João Gilberto Noll, embaralha as categorias
de autobiografia e ficção, colocando em cena novos tipos de escrita de
si, descentrada, fragmentada, com sujeitos instáveis que dizem ‘eu’ sem
que se saiba exatamente a qual instância enunciativa ele corresponde. A
maneira de construir e de encarar as categorias de autobiografia e ficção
sofreram grandes transformações nos últimos 30 anos, e hoje as
fronteiras entre elas se desvanecem (Figueiredo, 2007, p. 21, grifo meu).

Contribuição adicional ao debate autoficcional é reviver o conceito de


“extimidade”, que retrata o quase inexorável anseio das pessoas – escritoras/es,
em particular –, por tornar público aspectos da existência até então
circunscritos à esfera privada. Para Figueiredo,

se vive hoje a era da extimidade, já que se exibe aquilo que sempre foi
considerado intimidade; assim, fala-se em ‘extimidade’ quando o que,
em princípio, deveria ficar reservado ao domínio do privado é exposto
pelo sujeito. Esse aspecto aproxima certos textos de autoficção do que se
passa nos reality shows (no Brasil, o mais conhecido é o Big Brother
Brazil, da TV Globo, franquia criada na Holanda). O termo
‘extimidade’ (extimité) foi usado pelo psicanalista francês Serge Tisseron,
em L’intimité surexposée [2001]. (Figueiredo, 2013, p. 68, grifo meu).

No livro mencionado e no ensaio intitulado “Autoficção feminina: a mulher


nua diante do espelho”, a autora constata essa tendência na proliferação de
narrativas – em língua francesa, no caso – de escritoras que relatam sua vida
sexual, “colocando-se como protagonistas, com seu nome próprio (ou
pseudônimos). Trata-se de um novo gênero, a autoficção, que embaralha as
categorias de autobiografia e ficção” (Figueiredo, 2010, p. 91, grifo meu). O
ensaio analisa a produção de Christine Angot e Marie-Sissi Labrèche, e o livro
compara romances que tratam da sexualidade e que são escritos por jovens
autoras francesas com algumas escritoras brasileiras: Annie Ernaux, Nélida
Piñon, Conceição Evaristo, Eliane Potiguara, Régine Robin, Tatiana Salem
Levy, Carola Saavedra, Adriana Lisboa, Hilda Hilst etc. Figueiredo observa que
é graças à

[...] possibilidade de criar um duplo de si que essas escritoras podem


expor-se, com seu próprio nome, nessas formas de autoficção,
desvelando assuntos tabus como incesto e prostituição, ou ainda,
explorando temas como lesbianismo, desdobramento esquizoide ou
paranoico, porque a autoficção não tem compromisso com a verdade,
ela é uma ficção que se inspira e joga, livremente, com os biografemas
(Figueiredo, 2010, p. 101, grifo meu).

No artigo “Regine Robin: autoficção, bioficção, ciberficção”, Figueiredo


propõe diferenciar autoficção, bioficção e ciberficção. A primeira é a
ficcionalização de si. A bioficção é a ficcionalização de sua vida. A ciberficção
são os biografemas disponíveis na internet (cf. Figueiredo, 2007).
Luciene Azevedo

A autora de “Autoficção e literatura contemporânea” (2008) e “Blogs:


escrita de si na rede dos textos” (2007) sustentou que a estratégia básica da
autoficção é “o equilíbrio precário de um hibridismo entre o ficcional e o
autoreferencial, um entre-lugar indecidível que bagunça o horizonte de
expectativa do leitor” (Azevedo, 2008, p. 38). A originalidade da autoficção é a
consciente intenção do autor em jogar com as suas próprias identidades de
maneira performática.

Para rebater a negatividade de Genette, diríamos que o que é realmente


novidade na autoficção é a vontade consciente, estrategicamente
teatralizada nos textos, de jogar com a multiplicidade de identidades
autorais, os mitos do autor, e ainda que essa estratégia esteja referedada
pela instabilidade de constituição de um ‘eu’, é preciso que ela esteja
calcada em uma referencialidade pragmática, exterior ao texto, uma
figura do autor, claro, ele mesmo também conscientemente construído
(Azevedo, 2008, p. 37).

A contribuição de Azevedo para o debate autoficcional no Brasil é relevante


em vários sentidos, como o esclarecimento que a pesquisadora oferece em
relação às diferenças entre os gêneros autobiográfico e autoficcional. Ao levar
em consideração a vontade consciente e estratégica do autor, grande parte da
nebulosidade que confunde a discussão existente em torno da autoficção se
dissipa.
Azevedo afirma que “o autor assume um duplo estatuto contraditório: um
lugar vazio impossível de garantir a veracidade referencial e simultaneamente
um intruso que se assume interlocutor de si, colocando-se abertamente na
posição de autor, fingindo-se outros” (Azevedo, 2008, p. 39). Sendo assim,
podemos pensar o autor da autoficção como um fingidor, um ficcionista, que
joga estrategicamente com o leitor e com a própria construção do texto.
Azevedo também é autora da tese defendida em 2004, na UERJ, Estratégias
para enfrentar o presente: a performance, o segredo e a memória. Entre outros
autores trabalhados na tese, como Adriana Lisboa, Michel Laub, Santiago Veja,
Juan José Becerra, Martín Prieto e Carlos Gamerro, está Marcelo Mirisola, um
dos escritores pioneiros da autoficção no Brasil. Segundo Azevedo,

As informações autobiográficas [...] capturadas no romance são uma


colagem de declarações feitas pelo autor em entrevistas que, apesar de
negar a preocupação com a construção de uma mitologia pessoal,
trabalha no limite da dúvida: ‘As histórias são todas misturadas.
Totalmente autobiográfico e exagerado’. [...] A preocupação em criar um
perfil de autor tão polêmico quanto seus próprios textos é evidente em
várias entrevistas (Azevedo, 2004, p. 80-81).

Evando Nascimento

O escritor, professor e crítico de literatura também se interessou por


autoficção, desde que assistiu palestra de Régine Robin, no Rio de Janeiro, em
1997. A própria obra literária de Nascimento tem grande afinidade com o
conceito de autoficção, uma vez que o autor mescla ficção e realidade,
imaginário e vivido.
Evando Nascimento considera estarmos diante de autoficções:

1. todas as vezes em que os nomes de autor, narrador e personagem


coincidem, embora isso nem sempre seja explícito;
2. de um modo geral, a coincidência se faz de modo fragmentário e não
linear;
3. há forte relação com o presente, mesmo quando a história começa ou
ocorre no passado;
4. os limites entre ficção e realidade se esboroam, levando o possível leitor a
um certo grau de perplexidade e dúvida intelectual: mentira ou verdade,
ficção ou testemunho? Essa indecidibilidade é, a meu ver, a marca maior
do que hoje se chama de “autoficção” (Nascimento, entrevista no
apêndice deste livro).

Leitor especial de Derrida, Evando atribui à sua leitura uma espécie de


“preparação do espírito” para o pacto ambíguo da autoficção:

O livro de Rousseau e as leituras de Derrida me prepararam o espírito


não para o ‘pacto autobiográfico’ de Lejeune, autor que só viria a ler
depois, mas para a autoficção de Serge Doubrovsky, escritor francês que
criou esse termo até certo ponto como provocação à teoria, em muitos
aspectos limitada, de Lejeune, o qual viria também a lhe dar a réplica,
num ciclo de provocações sem fim. [...] Também por meio de Derrida,
aprendi a desconfiar de tudo o que leva o prefixo ‘auto’, de toda carga
excessiva colocada no ‘eu’, no ‘me’ e no ‘mim’, além, é claro, do nome
dito próprio. Tal como desenvolvi num dos capítulos de Derrida e a
literatura, tudo o que leva a marca do que chamamos de ‘eu’ tanto me
sidera quando me põe em guarda, atento aos riscos do narcisismo
exacerbado (Nascimento, 2010, p. 190-192).

Nascimento revela seus incômodos em relação à autoficção, em especial à


questão do gênero, e também analisa aquilo que ele chama de a “força da
autoficção”:

Destacaria ainda outros incômodos em face da autoficção, além do já


mencionado. Primeiro, é o temor de que se converta em definitivo em
novo gênero, reduzindo-se a clichês e ideias fixas. A graça e o frescor da
invenção doubrovskyana é ter sido uma provocação literária ao papa do
sacrossanto gênero da autobiografia, Lejeune. Converter autoficção
num gênero com características definidas e repetidas à saciedade, parece-
me uma traição ao impulso inventivo original. [...]

A força da autoficção é que ela não tem mais compromisso algum nem
com a autobiografia estrito senso (que ela não promete), nem com a
ficção igualmente estrito senso (com que rompe). Ao fazer coincidir, na
maior parte das vezes, os nomes e as biografias do autor, do narrador e
do protagonista, o valor operatório da autoficção cria um impasse entre
o sentido literal (a referência real da narrativa) e o sentido literário (a
referência imaginária). O literal e o literário se contaminam
simultaneamente, impedindo uma decisão simples por um dos polos,
com a ultrapassagem da fronteira (Nascimento, 2010, p. 194-6, grifos
meus).

Em suma, Nascimento compreende a autoficção como um dispositivo, e não


um gênero literário:

Autoficção não será jamais um gênero literário e consensual, mas sempre


um dispositivo que nos libera a reinventar a mediocridade de nossas
vidas, segundo a modulação que eventual e momentaneamente
interessa: ora na pele do poeta, do romancista ou do dramaturgo, ora na
pele do crítico, universitário ou não, ora na pele do jornalista. Etc. Mais
uma vez, não há equivalência entre essas designações, mas todas são
modos de heteronomia criativa, fazendo com que sejamos sempre mais
de um, mesmo ou sobretudo quando ostentamos um mesmo rosto,
aparentemente uma única feição (Nascimento. In: Nascif e Coutinho,
2010, p. 201).

Ana Cláudia Viegas


Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Ana
Cláudia Viegas tem vasta produção no tema da autoficção. Viegas desenvolve
os conceitos de autor, autobiografia e autoficção na literatura brasileira
contemporânea e no cinema, identificando procedimentos de
autoficcionalização.
Em sintonia com os demais estudiosos da autoficção no Brasil, Viegas
considera a diferença entre a autoficção e a autobiografia, afirmando que a
demarcação dessa distinção “seria a mistura deliberada de dados referenciais,
biográficos (como o nome do autor, data e⁄ou local de nascimento, títulos de
livros publicados, nomes de membros da família, entre outros) com elementos
totalmente inventados, que não correspondem à biografia do autor” (Viegas,
entrevista no apêndice deste livro).
As considerações de Viegas, sobretudo em relação à questão do gênero,
dialogam com as de Eurídice Figueiredo. Se, para Figueiredo, a autoficção é
uma metamorfose do romance; para Viegas, também não se trata de um
subgênero do romance, mas um tipo de romance: “Levando em consideração a
plasticidade do gênero romance, que desde a sua criação sempre se apresentou
sob diversos formatos – incorporando, inclusive, formas de outros gêneros −,
não diria que é um subgênero do romance, mas um tipo de romance” (Viegas,
entrevista no apêndice deste livro).
Os estudos de Viegas são relevantes para se pensar a relação entre a
autoficção e as novas tecnologias, sendo referência nos estudos sobre blogs. Em
“O ‘eu’ como matéria de ficção – o espaço biográfico contemporâneo e as
tecnologias digitais” (2008), a autora aborda questões importantes para a teoria
da autoficção como a atual proliferação dos discursos em primeira pessoa e dos
relatos de experiência na mídia; a relação entre as escritas de si e o uso “das
tecnologias que produzem um ‘efeito’ de presença, de real” (Viegas, 2008, p.
2); e o hibridismo entre realidade e ficção, vida e obra, autor e narrador. Para
isso, Viegas analisa contos, crônicas e blog da escritora Cecília Giannetti, e o
livro Por que sou gorda, mamãe?, de Cíntia Moscovich.
Diana Klinger

Vale, ainda, ressaltar a pesquisa da professora Drª. Diana Klinger (UFF).


Autora da importante tese publicada em livro Escritas de si, escritas do outro: o
retorno do autor e a virada etnográ ca (2007), Klinger analisa a obra de seis
escritores – Bernardo Carvalho, Fernando Vallejo, Washington Cucurto, João
Gilberto Noll, César Aira e Silviano Santiago – como escritas de si que
aparecem “como indagação de um eu que, a princípio, parece ligado ao
narcisismo midiático contemporâneo” (Klinger, 2007, p. 25). Para Klinger, “a
autoficção se inscreve no coração do paradoxo deste final de século XX: entre o
desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de
exprimir uma ‘verdade’ na escrita” (p. 26).
O conceito de autoficção, segundo a estudiosa, é concebido a partir da
crítica filosófica da noção de sujeito. “A categoria de autoficção implica não
necessariamente uma corrosão de verossimilhança interna do romance, e sim
um questionamento das noções de verdade e de sujeito” (Klinger, 2007, p. 47);
“[...] a autoficção é um gênero bivalente, ambíguo, andrógino” (p. 48). Uma das
contribuições de sua análise é associar o conceito de autoficção ao de
performance e ressaltar o caráter teatralizado da construção da imagem do autor.
Escritas de si, escritas do outro foi alvo de crítica realizada por Nabil Araújo,
em 2019, no Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada
(ABRALIC). Em “Exumações: do autor (‘pensar o sujeito da escrita depois da
crítica estruturalista do sujeito’...)”, o professor de teoria da literatura da UERJ
critica o “cerne da potência programática do livro” de Klinger, ou seja, a
“fórmula antibarthesiana em seu subtítulo, ‘o retorno do autor’, enunciada, é
claro, em contraposição à famigerada declaração da ‘morte do autor’ (1968)”
(Araújo, 2019, p. 2615). Araújo coloca em xeque o retorno do autor e a virada
etnográfica defendidos por Klinger como tendências da narrativa
contemporânea que superaram a [dita] obliteração estruturalista do sujeito da
escrita (Klinger, 2007, p. 12). Os argumentos de Nabil apontam para uma
confusão no entendimento da “morte do autor” entre o que seria a recepção
literária e a produção literária. Tanto a morte quando a volta do autor
repercurtem, segundo o crítico, no âmbito da recepção, e não da produção.
Seria, pois, um equívoco pensar a volta do autor no âmbito da produção
literária.
Entretanto, vale lembrar que Barthes se refere a autores franceses que
tentaram abalar o “império do autor” no âmbito da produção, tais como
Mallarmé – “sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a
necessidade de colocar a própria linguagem no lugar daquele que era até então
considerado seu proprietário” (Barthes, 2004, p. 59) – e Valéry, que “muito
edulcorou a teoria mallarmeana” e “não cessou de colocar em dúvida e em
derrisão o Autor [...] reivindicou ao longo de todos os seus livros em prosa a
favor da condição essencialmente verbal da literatura, em face da qual todo
recurso à interioridade do escritor lhe parecia pura superstição” (p. 59). Se
Barthes afirma que “toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor
em proveito da escritura”, é bem verdade que a volta do autor se dá no âmbito
da recepção, mas também da produção literária.
Também são criticadas as noções de “escritas de si” e “escritas do outro”
como modalidades distintas de escrita: “não há ‘produção da subjetividade’ que
não se dê num horizonte de alteridade discursiva”, isto é, escritas de si e escritas
do outro coexistem, são codependentes discursivamente (Araújo, 2019, p.
2618).

***

Como pudemos ver, na crítica brasileira da autoficção há bastante diálogo e


ideias convergentes. Os estudiosos aqui mencionados tendem a demarcar a
distinção da autoficção em relação às demais produções de escritas de si.
Considero essa demarcação de suma importância para a definição da
especificidade da autoficção.
O interesse pela autoficção continua crescendo. Alguns trabalhos recentes a
destacar são os da professora Eneida Maria de Souza, publicado em forma de
capítulos de livros “Notas sobre a crítica biográfica” (2007) e “A crítica
biográfica, ainda” (2010), e livro Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográ ca
(2011); o capítulo “A autoficção e os limites do eu” do livro Mutações da
literatura no século XXI, de Leyla Perrone-Moisés (2016); Eu: itinerário para a
auto cção, de Bruno Lima (2015); o artigo “Quando a justiça ganha d(a)
(autoficção)”, de Willian Vieira (2016), abordando as relações entre ética,
justiça, romance e autoficção; a tese de doutorado de Nelson Luis Barbosa,
In nitamente pessoal: a auto cção de Caio Fernando Abreu, ‘O biógrafo da
emoção’ (USP, 2009) e outros artigos mais recentes do mesmo autor baseados
na tese; a tese de doutorado da professora Kelley Duarte (FURG) A escrita
auto ccional de Régine Robin: mobilidades e desvios no registro da memória
(UFRGS, 2010); a tese de doutorado Auto cção e outras mobilidades híbridas
em romances de Chico Buarque e Michel Laub, de Giovana dos Santos Lopes
(Mackenzie, São Paulo, 2017); a dissertação de mestrado O pacto ambíguo em
O irmão alemão: uma auto cção de Chico Buarque, de Jhonatan Rodrigues
Peixoto da Silva (UERJ, 2018); a dissertação de mestrado A auto cção em
“Procura do romance” e “A resistência”: con uências, travessias e fronteiras entre o
biográ co e o ccional em Julián Fuks de Cristian de Oliveira Lopes (UFGD,
2019); entre outros.
Por um conceito de autoficção1

O termo autoficção tornou-se popular e, em certa medida, vulgarizado.


Com isso, o neologismo de Serge Doubrovsky começou a ser utilizado de
maneiras que ele não autorizaria. Entretanto, o terreno é complexo, pois o
próprio Doubrosvky contribuirá para as contradições na formulação do
conceito de autoficção. Ao se tornar polissêmico, o conceito perdeu parte de
seu valor heurístico. Nesse cenário, é desejável propor uma formulação
mínima, consensual, para nortear a pesquisa sobre autoficção na teoria da
literatura. Para isso, será preciso partir de Doubrovsky e considerar todo o
percurso teórico da autoficção. Atualmente, nos encontramos no que Mounir
Laouyen (1999) denominou “recepção problemática” do conceito, apesar de
seu próprio artigo não abrandar o problema. A recepção problemática da
autoficção desembocou em duas consequências extremas: a rejeição do termo
(por escritores, críticos, editores, jornalistas) ou a banalização de seu emprego
(tudo passa a ser autoficcional). Acredito que se tivermos um entendimento
mínimo e consensual da autoficção será possível superar as indevidas
banalização ou renúncia.
Neste capítulo, demarco as fronteiras que definem uma obra autoficcional e
apresento as características que considero necessárias dos textos autoficcionais.
Cumpro esse objetivo dialogando com textos teóricos relevantes e com
exemplos da literatura brasileira contemporânea.
Para início de conversa, lanço mão do que considero como autoficção. O
capítulo a seguir discutirá ponto a ponto esta definição: a autoficção é a prática
literária – em especial, contemporânea – de ficcionalizar a si mesmo e de
mergulho introspectivo. O autor estabelece um pacto ambíguo com o leitor e
elimina – deliberadamente – a linha divisória entre fato/ficção,
verdade/mentira, real/imaginário, vida/obra. O modo composicional da
autoficção é caracterizado pela fragmentação. Isto é, o autor não pretende (e
talvez não creia ser possível) abranger linearmente a história total de sua vida;
porque na autoficção o movimento é da obra para a vida, não da vida para a
obra, caso da autobiografia. Essa inversão abre espaço para um texto com
linguagem criadora mais livre. A narrativa é em tempo presente, e, como no
estilo lírico, marcada por recordações. O autor rememora fatos e emoções
passadas que marcam seu presente e precisam ser compartilhadas por meio da
escrita metaficcional. A identidade onomástica entre autor, narrador e
protagonista é explícita ou implícita, desde que o autor intencionalmente crie
um jogo de contradições. Nesse jogo, a indecidibilidade é a marca da
autoficção.
Para pensar os contornos da autoficção, é necessário aceitar que há
autoficções no plural. Em seguida, definir o que é constante e o que é variável
na autoficção. Analiso a seguir alguns aspectos que se vinculam à prática
autoficcional:

1. mistura de ficção e realidade: jogo ambíguo e indecidibilidade;


2. identidade entre autor-narrador-protagonista: explicitada por diferentes
meios;
3. aspecto dramático, que se manifesta no luto, na dor ou no trauma
compartilhados;
4. escrita literária e metaficção;
5. fragmentação e tempo presente;

Para demarcar a especificidade da autoficção em relação às demais “escritas


do eu”, apresento as condições necessárias e as condições su cientes para delimitá-
la. Afirmar ser autoficção um exercício literário em que o autor se transforma
em personagem do seu romance, misturando realidade e ficção, é uma
condição necessária, mas não é suficiente.
Mistura de ficção e realidade

Julho de 2006 – Congresso da Abralic


Escrevo um paper relativamente autobiográfico, levantando a
questão da herança e dos fantasmas, o leitmotiv do romance. [...]
Algumas pessoas se dizem incomodadas com o tom autobiográfico.
Mas quem disse que a mulher paralisada do romance sou eu? Quem
disse que o eu do ensaio sou eu? O mal-estar com a verdade (o
desejo de verdade?) parece vir muito mais de quem lê/ouve do que
de quem escreve.
Tatiana Salem Levy

A mistura de realidade e ficção (no sentido de criação, invenção) não é


característica apenas das autoficções, pois se encontra em outros tipos de
narrativas híbridas, como romances históricos e romances autobiográficos. A
diferença essencial está em como isso é feito. O Ateneu (1888), de Raul
Pompeia, só pode ser classificado como romance autobiográfico após a
verificação de informações extratextuais que não são sugeridas explicitamente
pelo autor no texto. Pompeia não cria – e parece não desejar – um pacto de
leitura ambíguo. Na autoficção é necessária a intenção de abolir os limites entre
o real e a ficção para confundir o leitor e provocar uma recepção contraditória
da obra. Por isso, dizemos que um novo protocolo de leitura é instaurado pelo
processo de ficcionalização do eu.
As diferenças entre o romance autobiográfico e a autoficção são também um
aspecto corrente no debate sobre o conceito. Alguns teóricos consideram
“romance autobiográfico” uma classificação obsoleta, mas indistinta da
autoficção; exemplo de um novo rótulo para uma garrafa antiga. É o que faz
Isabelle Grell em seu livro L’auto ction (2014).2 Há, contudo, uma diferença
sutil entre ambos. O pacto do romance autobiográfico é o fantasmático (ou
fantasmagórico); o autor não se revela no texto e só o encontramos recorrendo
à extratextualidade. É como se, no texto, tivéssemos um “fantasma” do autor.
Voltemos ao caso d’ O Ateneu. Miguel Sanches Neto (2015) classifica o
romance de Pompeia como o “precursor da autoficção”. Todavia, é possível que
haja, neste caso, uma confusão teórico-conceitual entre romance autobiográfico
e autoficção. Ao falar sobre a experiência vivida, submetida ao exercício e à
energia da linguagem, como matéria-prima para a literatura, Sanches Neto
afirma que em O Ateneu “este mesmo aproveitamento do material
autobiográfico, processado por uma linguagem de alta voltagem, vai identificar
e explorar uma modalidade nova de ficção” (Neto, 2015). Entretanto, o
romance autobiográfico, caso de O Ateneu, não é uma modalidade nova de
ficção, visto que esse gênero existe há muitos anos. A nova modalidade de
ficção é a chamada autoficção, cuja diferença essencial está na figura
performática do autor, que se assume enquanto personagem de sua própria
ficção, marcada pela ambiguidade e pela indecidibilidade. Já O Ateneu deixa de
ser indecidível, quando associamos a vida do protagonista Sérgio com a do
autor Pompeia, por meio de informações extratextuais, passando de
romance/ficção para o híbrido romance autobiográfico.
Jean-Louis Jeannelle (2014) analisa o percurso das reflexões sobre a
autoficção e observa um de seus limites: “o gênero só existe na medida em que
produz no leitor (qualquer que seja o estado dos conhecimentos prévios sobre o
autor dos quais ele dispõe) certa hesitação – hesitação quanto ao estatuto das
informações fornecidas e quanto à natureza do texto apresentando” (Jeannelle,
2014, p. 150-151). Para o teórico, trata-se de um “jogo de vai-e-vem entre
ficção e não ficção” associado às condições de recepção da obra (p. 151).
Manuel Alberca (2007) considera que há um salto qualificativo do romance
autobiográfico à autoficção; da dissimulação e do ocultamento do romance
autobiográfico passa-se à simulação e à aparência de transparência da
autoficção. Segundo o estudioso, na autoficção, um romance pode simular uma
autobiografia ou, sob denominação de romance e com ambiguidades, camuflar
um relato autobiográfico.
Na sociedade midiática contemporânea, a informação em detalhe sobre
aspectos da vida privada é praticamente uma norma para pessoas de interesse
público. Isso dá fácil conhecimento do leitor à vida do autor. Ademais, o autor
está no palco, nas feiras e festas literárias, nos eventos acadêmicos, em mesas-
redondas, na televisão, em entrevistas, na imprensa periódica, nas redes sociais,
falando sobre sua literatura, sobre sua vida e intermediando leituras possíveis
de sua obra. Em suma, o autor se autopromove. Contudo, mesmo que o
extraliterário leve o leitor a identificar a personagem – mascarada na ficção –
com o seu autor, isso não faz de uma narrativa em primeira pessoa uma
autoficção. O autor enquanto personagem performático pode auxiliar a
especificar um romance como romance autobiográ co, pelo conhecimento
inevitável que o leitor tem da vida de seu autor. Entretanto, o pacto da
autoficção tem que ser estabelecido no momento da leitura, por meio do
próprio texto literário ou de recursos utilizados no próprio livro. Se um leitor
alheio às informações sobre o autor ler o livro deste como romance e, depois,
descobrir semelhanças entre autor e personagem, trata-se de um romance
autobiográfico. Se desde o início da leitura ficar em dúvida se aquela primeira
pessoa é ou não é o autor, estamos, pois, frente à autoficção.
Tudo indica que considerar O Ateneu uma autoficção seja anacrônico. Para
Sanches Neto, a ausência da identidade onomástica entre o autor e a
personagem do romance se contorna “por outras formas de assinatura pessoal”,
por eventos que são da própria história da vida de Raul Pompeia.3
Não há dúvida que a história pessoal de Pompeia está inscrita no livro. O
que se deve indagar é por que chamar de autoficção um livro que já tem a sua
classificação: romance autobiográfico. Teoricamente, qual é a contribuição
dessa substituição de rótulos? Sanches Neto afirma ser lógico que, no final do
século XIX, o narrador Sérgio não poderia assumir o nome de Raul Pompeia.
Curiosamente, é esse mesmo raciocínio que justifica a autoficção como uma
modalidade nova de escrita do eu, pois somente na autoficção o autor se revela,
deliberada e performaticamente. Quando não se pode assumir o nome do
autor, a chance de estarmos diante do conceito de romance autobiográfico é
grande.
Sanches Neto ainda afirma que
As relações indiretas estabelecidas entre o Ateneu e o Colégio Abílio são
claras — a localização geográfica, o histórico da escola e do educador, a
recente passagem de Raul Pompeia por ela. Tudo isso permite que o
leitor entre no Colégio Abílio pelas portas do Ateneu, criando uma
comunicação subterrânea entre eles.

Entretanto, nem sempre essa comunicação subterrânea será possível, uma


vez que as relações indiretas são claras apenas para leitores que se assenhoram
dessas informações. No romance autobiográfico, existe a comunicação
subterrânea. Na autoficção, o que acontece é justamente o contrário, pois
prevalece a autoexposição explícita do autor. O pacto ambíguo da autoficção
não depende da extratextualidade. O leitor, apenas com o livro em mãos,
consegue identificá-lo, de maneira atemporal e universal.
A ambiguidade é característica fundamental de uma autoficção. Há um
jogo de ambiguidade referencial (é ou não é o autor?) e de fatos (aconteceu ou
foi inventado?). Não há dúvidas de que antes do neologismo autores já criavam
esse pacto contraditório de leitura, sem ter um termo que o nomeasse; apesar
de ser menos frequente no passado, o exercício autoficcional é anterior à sua
formulação conceitual. Doubrovsky é o inventor do termo, mas não “da
coisa”,4 e ele próprio dá exemplos em que narrador e personagem já se
confundiam, como textos de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) e Sidonie
Gabrielle Colette (1873-1954).5
Em Ribamar (2010), José Castello instaura a ambiguidade do romance de
diferentes maneiras e desde a epígrafe do livro: “Tudo o que vejo, tudo o que
fico sabendo, tudo o que me advém há alguns meses, gostaria de fazer entrar no
romance”. A citação de André Gide cria no leitor uma expectativa em relação à
inserção de elementos da realidade na ficção. A segunda estratégia é a
identidade onomástica: “Sem esperar minha resposta, leu a dedicatória: ‘Para o
papai com um beijo e o amor do filho José’” (p. 21). Outra possibilidade é a
reflexão sobre as ambiguidades da língua na própria tessitura: “A insistência dos
sentidos duplos me enlouquece. A língua vacila. Jamais poderei confiar nas
palavras” (Castello, 2010, p. 226).
A ambiguidade propositada marca o livro Antiterapias, de Jacques Fux
(2014):

Um homem com qualidades simples e com muita sensibilidade. Assim,


minha vida e minha família, apesar de especiais, não eram únicas.
Outras vidas e outras literaturas fatalmente teriam sido como a minha.
Será que é por isso que falo e falseio aqui a minha vida e a minha
literatura? Sou ou não sou especial? Somos todos escolhidos?
Escolhemos os nossos caminhos? Je m’en fou. Sigo vivendo, escrevendo,
rememorando e inventando. E sendo normal (Fux, 2014, p. 16, grifo
meu).

Bernardo Kucinski (2014), em K, relato de uma busca, recorre a uma


epígrafe e uma dedicatória para alertar (confundir?) o leitor da mistura
inseparável entre a ficção e a realidade no romance:

Caro leitor:
Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.
B. Kucinski.

E, na dedicatória:

Às amigas, que a perderam:


De repente
Um universo de afetos se desfez.

A orelha escrita por Cíntia Moscovich em A chave de casa, de Tatiana Salem


Levy (2007), cumpre a função de acautelar o leitor de que se trata de uma
autoficção, ajustando as expectativas deste para que encontre na obra os traços
de verdade na narrativa da autora:
Neta de judeus, turcos, nascida em Lisboa, emigrada para o Brasil aos 9
meses de idade, a estreante Tatiana Salem Levy chega, neste A chave de
casa, ao ponto que muitos almejam e bem poucos alcançam: condensar
o jorro da memória e transformá-lo em literatura.

Concretizando o que denomina de ‘autoficção’, a autora tece um


romance de vozes diversas – como são as vozes da memória –, histórias
que se complementam num tom de densa estranheza. Tudo se inicia
quando a personagem-narradora recebe do avô a chave da casa da
família deixada para trás, no tempo e na distância, em Esmirna. Rumo à
Turquia, toca a ela procurar a herança passada, tarefa a que se entrega
não sem medo e expectativa de modificar seu próprio presente.

Passando por temas como a morte da mãe e a relação com um homem


violento – dores exploradas nos extremos do lirismo e da crueldade –,
Tatiana demonstra grande pendor para o gênero a que se dedica.
Escritora refinada, capaz de frases torneadas com precisão e de cortes e
elipses nunca menos que exatos, o romance seduz pelo apelo sensorial,
pela extrema competência narrativa e, em especial, por um alto sentido
de humanidade.

Sobre os estilhaços da memória individual. Tatiana soube assentar as


bases de uma literatura singular e vigorosa (Moscovich, orelha do livro,
grifos meus).

O romance Divórcio (2013), de Ricardo Lísias, é um livro que explora do


início ao fim o jogo ambíguo com o leitor. O narrador se questiona sobre
gênero do livro – é romance? É ficção? –, sobre o que é literatura e como a
literatura trabalha a questão do trauma. O discurso do narrador é
contraditório; afirma e nega constantemente as informações dadas.
Em O lho eterno (2007), de Cristovão Tezza, é possível encontrar
biografemas como a profissão do protagonista, escritor e professor, assim como
referências aos títulos dos livros anteriores de Tezza. Quando oculto o nome do
narrador-protagonista, as referências livrescas – isto é, a referência aos livros
publicados anteriormente pelo autor – servem para criar o pacto de leitura.
Além disso, a epígrafe de omas Bernhard também sugere ambiguidade no
romance: “Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade.
Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é
outra coisa que não a verdade”.
O gosto do Apfelstrudel (2010), de Gustavo Bernardo, traz uma epígrafe
reveladora: “Qualquer semelhança desta história com pessoas vivas ou mortas
não será nunca mera coincidência, assim como também nunca poderia ser
mera semelhança”. Também a dedicatória serve como estratégia para revelar
que a personagem Z é a mãe do autor: “Para Z, / Minha mãe”.
Poltrona 27 (2011), de Carlos Herculano Lopes, enuncia na capa se tratar
do gênero romance. A dedicatória insere o leitor no jogo ambíguo da narrativa:
“Para meus pais, Herculano de Oliveira Lopes, pela lembrança, e Iracema
Aguiar de Oliveira, personagens dessas histórias [...]”. Sabendo que os pais do
autor são personagens da história, o leitor ainda se depara com três epígrafes,
que endossam a ambiguidade:

Só me balanço a expor a coisa observada e sentida, Graciliano Ramos.

Toda memória é uma aliada da invenção. O que predomina na vida é a


versão, Nélida Piñon.

La vida no vale nada, no vale nada la vida, De uma canção mexicana.

O posfácio “Entre dois mundos”, de Silviano Santiago, não deixa margem à


dúvida:
Poltrona 27, de Carlos Herculano Lopes, prestigiado romancista
mineiro, pode ser enquadrado na categoria da literatura do eu, cujo
último rebento é o subgênero definido pelos teóricos franceses como
auto cção (Santiago, posfácio).

São inúmeros exemplos de autoficção na literatura brasileira contemporânea


em que o autor instaura a ambiguidade, de diferentes formas, de modo a
chamar a atenção para a indecidibilidade, para esse lugar entre dois protocolos
de leitura – ficcional e autobiográfico. Quando Kucinski escreve que “tudo
neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”, estrategicamente ele conduz
o leitor ao entre-lugar da autoficção, onde invenção e fato transitam juntos sem
necessidade de distinção. Assim, a mistura da ficção com a realidade é uma
característica da autoficção, porém não é suficiente, por si só, para definir a sua
especificidade em relação às demais escritas do eu. O que pode caracterizar a
narrativa híbrida autoficcional é o fato de essa mistura não se dissolver, não se
resolver, mesmo com informações extratextuais. Também o fato de ela ser
instaurada no próprio texto, com recursos discursivos que levam o leitor à
dupla recepção – ficcional e autobiográfica. Isto é, será sempre indecidível, de
modo a criar protocolos de leitura ambíguos.

Autor-narrador-protagonista

A ambiguidade entre real e ficcional se amplia com o recurso à identidade


onomástica entre autor, narrador e protagonista, embora existam variações e
nuances na forma como a identidade se estabelece.6
Existem diferentes meios para forjar a identidade entre autor-narrador-
protagonista na narrativa. O nome do autor pode vir explícito, como faz
Ricardo Lísias em O céu dos suicidas e Divórcio; o nome do autor pode aparecer
apenas com as iniciais, como é usual ao escritor Marcelo Mirisola (MM) e
também utilizado por Gustavo Bernardo em O gosto do Apfelstrudel; o livro
pode estar escrito na terceira pessoa do discurso, como a “falsa terceira pessoa”
empregada por Cristovão Tezza em O lho eterno; o autor pode usar um
pseudônimo que equivalha ao seu nome próprio, como faz Júlian Fuks com
seu Sebastián; pode ainda ocultar seu nome, já que o autor é narrador-
protagonista de seu próprio romance, sendo desnecessário se (auto)mencionar,
a exemplo do livro Antiterapias, em que Jacques Fux é autor-narrador em
primeira pessoa e não revela o seu nome ao longo do romance, mas deixa pistas
provocativas ao leitor para propositalmente aproximar autor, narrador e
personagem:

Na verdade, temos todos os mesmos medos, receios, sonhos. Mas eu sou


o centro dessa ficção. O olhar do narrador está voltado para mim. Eu,
judeu, protegido por vários úteros, inserido em muitos pequenos
mundos. Família, escola, amigos, diáspora (Fux, 2014, p. 43).

Enquanto leitores, somos guiados pela voz deste narrador, masculino, que
se diz o centro da ficção. No decorrer do livro, o narrador mostra-se consciente
da fabulação que faz de si, criando a ambiguidade do espaço que é ao mesmo
tempo autobiográfico e ficcional. Fux cria um texto metaficcional, preocupado
com o seu próprio fazer literário, considerando o domínio que possui da teoria
literária.7

Estou me lembrando. Testemunho minhas lembranças. Preencho meus


esquecimentos com literatura. Com ficção. Acontecimentos que
realmente aconteceram? Onde estão eles? (Fux, 2014, p. 63).

As nossas histórias, muitas vezes, são falaciosas, modeladas pelo tempo,


pela mente, pelo desejo e pelas frustrações. Mas posso, a partir da
literatura, fantasiar minha vida. Posso recontá-la como Dom Quixote ou
como Forrest Gump. E, remodelando minha memória, remodelaria meu
passado (Fux, 2014, p. 18).
O narrador em Antiterapias afirma escrever uma autoficção mesclando fatos
advindos da memória e preenchendo as lacunas do esquecimento com ficção.
Lísias, em Divórcio, além da identidade onomástica perfeita (A = N = P),
recorre a referências livrescas, as quais confudem ainda mais o leitor:

Apaixonei-me pela minha ex-mulher no dia do lançamento de O livro


dos mandarins. Não aconteceu nada: ela não escreveu esse diário e não
cobriu o Festival de Cannes de 2011 para um jornal. É só um conto.
[...] Só pode ser ficção. No meu último romance, O ceú dos suicidas, o
narrador enlouquece e sai andando. Agora, fiquei louco e estou vivendo
minhas personagens (Lísias, 2013, p. 15).

No trecho do diário da ex-mulher, único momento em temos acesso à sua


voz, limitada porque é intermediada pelo narrador, ela se refere à profissão do
marido – escritor, e o chama de Ricardo:

10 de julho: Nova York. Eu estou viajando em lua de mel mas não estou
apaixonada. O Ricardo é legal, inteligente e às vezes me diverte, apesar
de andar muito. Mas apaixonada eu não estou. Eu não sei o que vai ser
quando voltarmos ao Brasil. Eu gosto de ser casada com um escritor. É
só esconder certas coisas e pronto. Eu sou uma mulher atraente, não
tenho dificuldades para achar amantes, nunca tive. Quanto ao jornal, eu
acho que vou sair mesmo. Sou a maior jornalista de cultura do Brasil
(Lísias, 2013, p. 35, itálico do autor).

O mesmo procedimento é utilizado em O céu dos suicidas, livro no qual o


escritor utiliza os nomes reais – Ricardo e André – para compor suas
personagens:

A vida tinha que continuar. Ele depois pediu para vir à minha casa.
Ficou uns poucos dias e transtornou tudo, quebrou tudo. Eu o flagrei
cortando a pele das mãos com o canivete. Fiquei muito nervoso e gritei.
Ele se levantou com o canivete. Peguei uma cadeira. – Se você vier, te
acerto, você não pode comigo, André. – Lembro direitinho: – Nunca
vou te fazer mal, Ricardo. Ele foi embora nesse momento (Lísias, 2011,
p. 144, grifos meus).

Em entrevista, Gustavo Bernardo comenta o uso das iniciais no seu


romance e o uso do termo autoficção:

Nunca escrevi nada pensando ‘agora vou fazer uma autoficção’, até
porque sempre me disfarcei de algum modo nos meus enredos; mas o
romance que melhor se encaixa no termo é O gosto do Apfelstrudel,
publicado pela Escrita Fina. Nele, eu e pessoas da minha família
comparecemos através das iniciais dos nossos nomes. O romance conta
o que passou pela cabeça do meu pai no mês em que esteve em coma,
antes de morrer (Gustavo Bernardo, apêndide deste livro, grifo meu).

Z, H, G e G são as personagens de O gosto do Apfelstrudel:

Ele pensa, eu queria ter dito adeus para todos eles. Os meus filhos. Meus
netos. As minhas netas. E para a mulher de toda a minha vida.

Ele diria, por exemplo:

Z, você resume todo o alfabeto. Foi bom viver com você, foi muito bom
comemorarmos juntos as nossas bodas de ouro. Z, é bom morrer
olhando para você (Gustavo Bernardo, 2010, p. 13-14)

Muito bonito, de fato belíssimo, achou quando o ouviu na voz do filho


(e claro, chorou como sempre), mas agora crê que o verso não se aplica a
ele mesmo, por que H percebe que já sabem quem é: o gosto do
apfelstrudel na boca, misturado aos risos dos pais há pouco (ainda que
também há quase um século) e aos soluços de Z, G e G na sala de
espera, abraçando-se entre si, dizem muito bem quem ele é e quem ele
sempre foi: um filho, um marido, um pai, um avô, um homem, enfim,
que se pode definir com apenas um adjetivo.

Bom.

Ele sabe que é quem sempre quis ser: apenas um homem bom (Gustavo
Bernardo, 2010, p. 85).

A identidade onomástica perfeita entre Autor-Narrador-Protagonista (A =


N = P), ou seja, a manutenção da identidade real do autor com a conservação
de seu nome próprio no romance, foi durante muito tempo uma condição
necessária da autoficção. Sobretudo por conta de Doubrovksy, que, como
vimos, pareceu ter criado o termo para designar a sua própria obra
autoficcional, na qual sempre manteve seu nome, sem máscaras, sem disfarces,
e, até mesmo, sem muita autocensura.
Após preencher a “casa cega” de Lejeune e criar um termo para classificar
seu Fils, Doubrosky vira alvo de muitas críticas, sendo constantemente
acusado, principalmente por Genette, de fazer “falsa autoficção” ou
“autobiografia envergonhada”. Com o tempo e o amadurecimento da teoria da
autoficção, assim como a viralização do termo, o conceito que estava muito
restrito à obra de seu criador ganhou asas e passou a abranger um leque maior
de narrativas íntimas e híbridas. Hoje, já compreendemos que a identidade
onomástica perfeita não é condição necessária para que um romance seja
considerado autoficcional. É possível que livros “nos quais falta a homonímia
do autor e do personagem, e outros que brincam com o anonimato do
protagonista, possam entrar no campo da autoficção” (Lecarme, 2014, p. 74-
75). Outras formas de estabelecer a relação identitária são possíveis, para além
da homonímia perfeita, sem danos ao pacto ambíguo. Os exemplos
mencionados mostram como a autoficção brasileira contemporânea é versátil e
como as nossas escritoras e os nossos escritores encontram formas peculiares de
expressão literária, contribuindo para a polivalência da autoficção e da
literatura brasileira.
Vale lembrar, no entanto, que a homonímia perfeita também não garante à
obra status de autoficção. Lecarme critica a posição de Genette sobre equalizar
narrativas homodiegéticas e autoficções. Os casos de Dante Alighieri (A divina
comédia) e Jorge Luis Borges (O Aleph) pertenceriam, segundo Lecarme, “à
categoria presumida do inverossímil ou do fabuloso” (Lecarme, 2014, p. 73),
sendo a estratégia de “fingir que o autor entra em sua própria ficção” um
procedimento ficcional antigo de metalepse, cuja função é “dar impulso à
ficção” (p. 74).

Aspecto dramático ou escrita terapêutica

O aspecto dramático das autoficções remete a memórias fragmentárias e


estilhaçadas.8 Não são raras as autoficções brasileiras voltadas para sublimar a
estética da inelutabilidade da morte. Há bons exemplos na literatura brasileira
contemporânea. A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, que rememora a morte
da mãe, o sentimento de impotência em face da doença e de orfandade:

Eu acreditei, você não morreria. [...]. Você escondeu o quanto pôde, até
o dia em que não pôde mais. No princípio, simplesmente recuávamos o
olhar do seu ventre crescendo, do seu pescoço inchando, mas com o
tempo fomos obrigadas a ver o que não queríamos. Você tinha barriga
de grávida, embora não houvesse bebê algum. Gânglios espalhados pelo
pescoço, embaixo do braço, na virilha. Cansava-se um pouco. Enjoava.
Vomitava sangue. Era a realidade querendo vencer a nossa fantasia [...]
(Levy, 2007, p. 14).
Meus desacontecimentos, de Eliane Brum, que evoca a morte da irmã, o
sentimento de dor profunda e as memórias dramáticas:

A morte é o mundo sem palavras. E é curioso que minha primeira


lembrança seja a morte. Como se eu tivesse nascido morta. E a vida só
tivesse acontecido alguns anos depois, quando eu já era um zumbi
crescido.

Nasci não de um, mas de vários túmulos. O primeiro deles foi o corpo
da minha mãe, assassinado pela morte da criança que veio antes. Uma
menina, a primeira menina (Brum, 2014, p. 12-13).

O livro é atravessado pelo tom dramático. Brum só teria nascido por causa
da morte da irmã ainda bebê. No capítulo “Irmãs”, a narradora confessa em
tom pungente: “Minha irmã me deu uma bio, já que eu não nasceria se ela não
tivesse morrido. Eu agora lhe dou uma gra a. Aqui consumamos nossa fusão,
mas também a separação definitiva” (Brum, 2014, p. 24).
Outro exemplo é Ribamar, de José Castello, no qual a morte em vista é a do
pai, cujo nome dá título ao livro:

Ainda não lhe disse, pai: escrevo um romance. Não sei se chegará a ser
isso. O mais correto é falar de notas para o livro que, um dia, escreverei,
Ribamar, ele se chamará. Eu o dedicarei a você (Castello, 2010, p. 13-
14).

O ceú dos suicidas, de Ricardo Lísias, em que a morte traumática do melhor


amigo do protagonista é mote para a escrita autoficcional. Este excerto do
romance mostra o último diálogo entre Ricardo e o amigo André:

Acho que no dia seguinte, ou uns dois dias depois, ele me ligou: –
Ricardo, vou me internar de novo, fica de olho em tudo e me ajuda. –
André, eu não aguento mais, foi isso que respondi. Então acho que se
passaram mais uns dois dias e me telefonaram dizendo que ele tinha se
enforcado (Lísias, 2012, p. 144).

K, relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, que tem como horizonte a


morte da irmã, Ana Kucinski, e de seu cunhado, sequestrados no período da
ditadura militar brasileira:

Assim começou a saga do velho pai, cada dia mais aflito, mais
maldormido. No vigésimo dia, depois de mais uma incursão inútil ao
campus e à casa de Padre Chico, recorreu aos amigos do círculo literário;
os mesmos que por descontrole havia amaldiçoado. Quem sabe
conheciam alguém que conhecesse alguém outro, na polícia, no exército,
no SNI, seja onde for dentro daquele sistema que engolia pessoas sem
deixar traços (Kucinski, 2014, p. 18).

A motivação para a escrita autobiográfica é tema de interesse de diversos


pesquisadores das escritas de si. A formulação original de Doubrovsky relaciona
autoficção à psicanálise, considerando ambas “práticas da cura”, o que talvez
explique o patente aspecto dramático da autoficção. É comum autores
declararem a necessidade de escrever um romance a partir do trauma, para
mitigar a dor e conferir maior inteligibilidade à experiência traumática que, no
plano dos sentimentos, antes da escrita, é confusa e caótica. Mas o aspecto
dramático presente nessas obras varia em intensidade. Antiterapias, de Jacques
Fux (2014), por exemplo, revela dramaticidade com um tom mais leve que
Ribamar (Castello, 2010), A chave de casa (Levy, 2007) ou O céu dos suicidas
(Lísias, 2012). Em todo caso, a motivação primeva para os escritores seria, na
anotação de Philippe Vilain, o desejo inerente ao ser humano de se conhecer:

O desejo de se conhecer, de se identificar com uma imagem de si,


motiva, na maioria dos casos, a escrita autobiográfica, mas não é certo
que tal motivação possa derivar de um puro exercício de contemplação
pois, mesmo que possamos contemplar de fora aquilo que não
conhecemos, nós sempre apreciamos mais a contemplação daquilo que
conhecemos intimamente e que podemos identificar claramente (Vilain,
2005, p. 18).

Autoconhecimento, autocompreensão, reconstituição de si, partilha da dor,


elaboração do trauma, reestruturação do caos interno, “exorcização dos
fantasmas”, registro da urgência da situação pessoal, experiência da análise,
deflagram as escritas do eu.
A noção de escrita terapêutica é constantemente rechaçada entre os literatos
por conta da implicação de um “utilitarismo rasteiro” para a literatura. Luciene
Azevedo partilha dessa opinião, refuta caracterizar a autoficção como recurso
terapêutico, embora considere a presença do “desnudamento” e da
reconstrução do autor, mediada pela escrita:

ainda que eu tenda a rejeitar a autoficção como ‘terapia’, porque me


parece que isso implicaria em um utilitarismo rasteiro, acho que a ideia
pode ter relação com [...] uma certa demanda (do público) por ver,
reconhecer um sujeito desnudando-se, (de)compondo-se por escrito, na
frente do leitor, construindo um sujeito na realidade das palavras
(Luciene Azevedo, entrevista, apêndice deste livro).

Desnudar-se para se enxergar e se entender melhor. Escrever para aliviar.


Fabular um sofrimento para elaborá-lo. Colocar na realidade das palavras uma
experiência traumática para compartilhar o sofrimento e reestruturar o caos
interno. Ricardo Lísias – autor e personagem – recorre à literatura para se
recuperar da dor produzida pela revelação de informações chocantes sobre si
ou, em outro momento, para compartilhar o trauma que vivenciou com o
suicídio de seu amigo. Em Divórcio, o narrador afirma se tratar de um romance
sobre o trauma e mostra a consciência de que o romance lida com um corpo
ferido, traumatizado; a escrita do romance é a refeitura da pele perdida:

Ao resolver publicar alguns textos, ordenando a minha dor, procurando


dar forma literária ao caos que não me deixava dormir e apostando que a
literatura, com o auxílio da corrida, iria refazer a pele que o diário da
minha ex-mulher levou, a situação mudou e os fofoqueiros passaram a
achar um absurdo que tudo que me contaram fosse registrado (Lísias,
2013, p. 182).

A necessidade em escrever sobre o trauma e fazer um romance sobre ele,


ordenando a dor e dando ordem ao caos, também é abordada no romance:

Meu corpo ferido, por mais que ainda perca energia, precisa portanto
virar literatura. De um jeito ou de outro, a assombração inicial era
verdadeira. Dois contos não são suficientes para o tamanho do meu
trauma (ou da pele do meu corpo). Preciso fazer um romance (Lísias,
2013, p. 172).

É interessante observar que nessa passagem do livro o narrador menciona


que dois contos são insuficientes para dar conta de sua dor. Vale lembrar que
Lísias escreveu esses contos sobre a separação, na verdade três, “Meus três
Marcelos”, “Divórcio” e “Sobre a arte e o amor”, espécie de gérmens do
romance Divórcio.
A literatura na obra de Lísias é frequentemente relacionada com a
possibilidade de escapar do caos interno, de sublimar a dor, funcionando como
uma espécie de válvula de escape. Ainda em Divórcio, o narrador afirma:

A literatura serve-me em grande parte para isso: adoro ficar remexendo a


linguagem, medindo todas as possibilidades e tentando entender até
onde posso ir, para no final pesar o resultado e refletir para saber se o
texto realmente me expressa. É a maneira que tenho, silenciosa e
discreta, de sair organizadamente da confusão que tantas vezes me
assalta por dentro (Lísias, 2013, p. 36-37).

Se a autoficção não cura e nem “expurga os males”, ela é no mínimo, assim


como as outras formas de expressão autobiográfica, uma tentativa quase sisífica
de elaborar um passado irrecuperável.
Para Altair Martins, é o “impulso vivido” que leva um escritor a escrever
sobre si, e escrever sobre esse impulso “constitui, de certo modo, um conjunto
de atividades que nos revisam”. Adriana Lisboa vê a motivação para a escrita
autobiográfica desde a “elaboração quase que psicanalítica das próprias
experiências até o exibicionismo passando pela ‘normalidade’ de considerar sua
própria vida apenas um tema entre tantos outros, e tão válido quanto”. Já
Cristovão Tezza não sabe o que leva um escritor a escrever sobre si mesmo,
afirmando que escreveu sobre a sua experiência porque ela não era mais
“traumática”, “era apenas uma memória a ser trabalhada literariamente”. Tezza
acredita que foi um desafio mais literário do que existencial. Para Michel Laub,
todo escritor escreve sobre si mesmo, a matéria da escrita é a memória: “O
texto é uma tentativa de expressar o que pensamos, ou um pensamento que
estamos imitando ou a que estamos nos opondo (no caso de um narrador
diverso de nós). Ou seja, a matriz somos nós, o que pensamos, que é o que
somos”.9
O fato de usarmos a vida como matéria-prima sempre ocorreu na história
da literatura, como Evando Nascimento (2014) aponta. Nos casos das
autobiografias e dos “dispositivos autoficcionais”, a atitude expressa é
consciente, “embora com propósitos e resultados distintos”. Nascimento
também chama a atenção para a “necessidade humana de entender
minimamente o que se vivencia”. No caso da autoficção, por meio da palavra
inventiva:
Diria que na autoficção ocorre um tratamento sem fim das experiências
traumáticas e não traumáticas. Mas um tratamento no sentido literário e
não no sentido clínico, ou seja, uma abordagem formal de determinados
conteúdos experienciais. E quando o tratamento é bem realizado tema e
forma não podem mais ser separados, consistindo num processo sem
fim. É o que se chama hoje de ‘obra em processo’, cujo processo de
significação jamais se conclui (Nascimento, apêndice deste livro).

Ressoante ao aspecto dramático da autoficção, o narrador de O gosto do


Apfelstrudel alerta que irá contar uma história triste. Trata-se da morte do pai:

Começo a contar uma história triste – mas uma história tão triste, tão
triste, tão triste, que é capaz de sentirmos juntos uma alegria boa no
final.

Claro, se eu contar direito.

[...]

Porque a história que quero contar não tem nada a ver com isso. Ela é
triste, confesso desde o início, mas a tristeza, mesmo quando é muito,
mesmo quando é forte demais, não deixa de ser uma coisa muito boa
(Bernardo, 2010, p. 9).

Outro exemplo para refletirmos sobre o fenômeno da autoficção é o


romance Feliz ano velho, publicado nos anos 1980, quando o conceito de
autoficção ainda não figurava nos domínios da teoria da literatura brasileira.
Marcelo Rubens Paiva compartilha o trauma de se tornar tetraplégico ao se
atirar de cabeça num lago raso. Entramos na vida de Marcelo a partir do
acidente. O narrador em primeira pessoa nos fala da experiência autobiográfica
que mudou a sua vida, sobre o desaparecimento de seu pai, deputado federal
Rubens Paiva, na ditadura militar, sua relação com a mãe e a irmã, relações de
amizades e de amores, frustrações, dificuldades etc.:

14 DE DEZEMBRO DE 1979

17 HORAS

SOL EM CONJUNÇÃO COM NETUNO

E EM OPOSIÇÃO A VÊNUS

Subi numa pedra e gritei:

— Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo,
seu milionário disfarçado.

Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que
ouvi a melodia: biiiiiiin.

Estava debaixo d’água, não mexia os braços nem as pernas, somente via
a água barrenta e ouvia: biiiiiiiiiiiiiin. Acabara toda a loucura, baixou o
santo e me deu um estado total de lucidez: ‘Estou morrendo afogado’.
Mantive a calma, prendi a respiração, sabendo que ia precisar dela para
boiar e aguentar até que alguém percebesse e me tirasse dali. ‘Calma,
cara, tente pensar em alguma coisa’. Lembrei que sempre tivera
curiosidade em saber como eram os cinco segundos antes da morte,
aqueles em que o bandido com vinte balas no corpo suspira... (Paiva,
[1982] 2006, p. 13).

José Castello escreve um romance-carta ao pai Ribamar, à la Kafka, após


perdê-lo. No romance Ribamar, o narrador e protagonista José descreve a
experiência de busca e de autocompreensão, que alivia a dor e ajuda a
reestruturar – mesmo que parcialmente – o caos:

Meu mal tem uma origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka. Não
que eu o inveje ou deseje ser como ele. Também não o odeio e, com
algum esforço, reconheço sua grandeza. Meu problema é que não
consigo parar de pensar em Kafka.

Isso começou quando eu era um menino. Vi, em algum lugar, uma


fotografia daqueles olhos nervosos, que copiam os meus. Sempre vestido
em cores escuras, como eu mesmo me vestia. Uma sombra o envolve, e
eu a sinto roçar minhas costas. [...]

Ainda não lhe disse, pai: escrevo um romance. Não sei se chegará a ser
isso. O mais correto é falar de notas para o livro que, um dia, escreverei,
Ribamar, ele se chamará. Eu o dedicarei a você (Castello, 2010, p. 13-
14).

Castello, em entrevista a Bia Corrêa Lago, fala da necessidade de escrever


sobre a sua relação distante com o pai e da impossibilidade de ser fiel à
memória, pela distância entre o tempo vivido e o tempo narrado. O livro foi
concebido na pesquisa de Castello sobre as relações de alguns escritores
famosos – Clarice Lispector, Virginia Woolf etc. – com os seus pais. A pesquisa
despertou o desejo de uma escrita efetiva de pequenas memórias, momentos de
sua relação com o pai. O resultado – Ribamar – é um amálgama entre memória
e ficção. Durante o processo, é impossível ter controle sobre o por vir da escrita.
Depois de escrito, não se pode discernir fragmentos de verdade e fragmentos de
criação, mentira, deformação, reinvenção. A escrita híbrida de Ribamar é
autoficção.
Em Diário da Queda (2011), Michel Laub descreve o trauma irreparável de
compactuar com a queda de um colega na época da escola e o peso – que
carregou durante a adolescência e carrega na idade adulta – da herança judaica,
da carga histórica do Holocausto, da relação com o pai e com o avô, memórias
de três gerações. A experiência lhe vale como aprendizado para romper o ciclo
de fardo e de culpa, não repetindo com o filho recém-nascido comportamentos
familiares:

Ter um filho é deixar para trás a inviabilidade da experiência humana


em todos os tempos e lugares, como se perdesse o sentido falar sobre as
maneiras como ela se manifesta na vida de qualquer um, e as maneiras
como cada um tenta e consegue se livrar dela, e comigo tudo se resume
ao dia em que simplesmente deixei de beber, em que passei a
educadamente recusar bebida, em que passei a educadamente dizer que
não bebo nem uma taça de vinho num coquetel cercado de pessoas
amigas e bem-intencionadas porque isso não me faria bem, e é mais fácil
do que parece e eu não faço propaganda disso e se pela última vez estou
dizendo o que penso a respeito é para que no futuro você leia e chegue
às suas próprias conclusões. Porque não vou atrapalhar sua infância
insistindo no assunto. Não vou estragar sua vida fazendo com que
tudo gire em torno disso. Você começará do zero sem necessidade de
carregar o peso disso [...] verdade ou mentira no passado que também
não é nada diante daquilo que sou e serei, quarenta anos, tudo ainda
pela frente, a partir do dia em que você nascer (Laub, 2011, p. 150-151,
grifo meu).

O aspecto dramático também está presente em A queda: as memórias de um


pai em 424 passos, de Diogo Mainardi (2012). A escrita parece terapêutica, pois
o pai, autor do livro, compartilha o sentimento de culpa por ter insistido no
nascimento do filho em hospital reconhecido por erros médicos. Ignorar as
estatísticas de erros do hospital de Veneza não isentou seu filho de fazer parte
dela:
Em 30 de setembro de 2000, minha mulher e eu nos encaminhamos ao
hospital de Veneza, no Campo Santi Giovanni e Paolo. O parto de
nosso filho ocorreria naquele dia. Nome de minha mulher: Anna. Nome
de nosso filho: sim, Tito.

Quando chegamos ao Campo Santi Giovanni e Paolo, à altura da


estátua de Bartolomeo Colleoni, Anna disse:

— Estou com medo do parto.

Ela já manifestara o mesmo temor nas semanas anteriores, porque o


hospital de Veneza, que agora se erguia à nossa frente, era conhecido por
seus erros médicos.

Contemplei sua fachada por um instante.

O hospital de Veneza instalara-se no prédio da Scuola Grande di San


Marco em 1808. A fachada arquitetada por Pietro Lombardo, em 1489,
tornara-se sua porta de entrada.

Respondi:

— Com esta fachada, aceito até um filho deforme (Mainardi, 2012, p.


5).

Tatiana Salem Levy, em A chave da casa (2007), procura sentido para sua
herança judaica por meio da escrita. Levy ficcionaliza a sua própria história,
criando uma personagem-protagonista em busca de suas origens. A autora
conta sobre o seu processo de escrita do romance em “Do diário à ficção: um
projeto de tese/romance”. Ela afirma que fez um mergulho nas histórias
contadas nas cartas e nos diários da família, no relato da imigração, nos
motivos e nas dores da partida, na chegada ao Brasil. Foram esses materiais, o
contato com a família, a memória, a viagem que a levaram a “exorcizar os
fantasmas” que a atormentavam a partir da escrita de A chave da casa:

Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de


onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso
escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a
sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci
velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços
ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos
sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é
que nasci com os pés na cova. Não falo de aparência física, mas de um
peso que carrego nas costas, um peso que me endurece os ombros e me
torce o pescoço, que me deixa dias a fio – às vezes um, dois meses – com
a cabeça no mesmo lugar. Um peso que não é de todo meu, pois já nasci
com ele. Como se toda vez em que digo ‘eu’ estivesse dizendo ‘nós’.
Nunca falo sozinha, falo sempre na companhia desse sopro que me
segue desde o primeiro dia (Levy, 2007, p. 9).

Em O lho eterno, Tezza aborda o tema do amadurecimento de um pai que


passa por um processo de aceitação de si mesmo e do filho, portador da
síndrome de Down. Tezza parte de um dado biográfico seu – tem um filho
especial, chamado Felipe, tal como está no romance. Porém, o romance está
escrito em terceira pessoa, o que, segundo o autor, foi a “chave técnica” do
livro, permitindo que ele se distanciasse do narrador. A narrativa é cruel, e o
leitor de O lho eterno não sai indiferente dessa experiência angustiante e
emocionante. A crueldade da narrativa se desvela, por exemplo, no jeito como
o pai se refere ao filho: o estorvo, a coisa, um ser insignificante, criança
horrível, pequeno monstro, pedra inútil, deficiente mental, absolutamente
nada, pequeno leproso, problema a ser resolvido, idiota, pequena vergonha,
mongoloide, entre outros. A aspereza na descrição de como a personagem
percebe os portadores de Down, lhe confere um manto de anti-herói repulsivo
e insensível.
Luciana Hidalgo observa que

No caso da autoficção, talvez o que realmente interesse seja a carga de


sugestão ontológica do neologismo; a pulsão do eu, da expressão do eu,
tão urgente que o faz ultrapassar todos os limites. Isto é, o neologismo
parece avalizar autores, mas o que os move, e inspira, no fundo, em
vários casos, é a urgência de sua situação pessoal – e do registro desta,
que em geral supera o puro depoimento. Na autoficção brasileira, não
por acaso algumas obras são romances-luto [...] (Hidalgo, 2013, p. 228).

Esse fragmento e os exemplos acima estão próximos da própria experiência


relevada por Doubrovsky, já que “a autoficção é a ficção que decidi, enquanto
escritor, dar a mim mesmo e por mim mesmo, nela incorporando, no sentido
pleno do termo, a experiência da análise, não apenas na temática, mas na
produção do texto” (Doubrovsky, 1988, p. 77).10
Sobre a sua autoficção Fils, Doubrovsky escreve um ensaio de autoanálise
dos processos de escrita colocados em jogo pelo romance, “a saber, os recursos
do domínio consonântico substituídos pela ordem sintática e discursiva
tradicional, para tentar elaborar não uma escrita do inconsciente (que, sem
dúvida, não a tem), mas para o inconsciente (o que se esforça em fazer, sem
sabê-lo, a própria escrita analítica, desde que ela existe)”.11
Fala-se em explorar as profundezas inconscientes de sua intimidade, elucidar
coisas ainda obscuras, e em uma análise interminável:

A experiência da Psicanálise, possível somente depois de Freud, é o


primeiro esforço ou efeito de ruptura em relação ao dilema clássico de
um autoconhecimento separado de si mesmo em sua dimensão do
outro, uma vez que é através da escuta do outro que a verdade retorna
(acontece) no discurso que o sujeito se esforça para compreender
(Doubrovsky, 1988, p. 65).12

A projeção do autor na escrita e a construção desse ser-ficcional, ou desse


duplo-ficcional, apresenta nuances em cada obra literária.
Em “Neuroses do indivíduo contemporâneo e escrita autoficcional: o caso
Fils”,13 Camille Renard (2010) analisa a escrita autoficcional como prática da
cura. Renard observa que a proposta de um novo gênero literário se associa a
três elementos – o inconsciente, a escrita e a cura analítica. Tal reflexão ajuda-
nos a melhor entender o aspecto terapêutico da autoficção:

A escrita da cura analítica expressa, graças à autoficção, o inconsciente


do autor/narrador. Depois que a psicanálise atacou a noção de
identidade pessoal que funda tradicionalmente a escrita do eu, a
ambição da autoficção consiste em renovar o gênero autobiográfico. Mas
ao estabelecer uma escrita do inconsciente, ‘pós-analítica’, Doubrovsky
realiza um discurso sobre o significado sócio-cultural de sua obra. A
autoficção literária revelaria as evoluções de um indivíduo
contemporâneo à identidade equivocada (Renard, 2010, s.p).14

Sendo assim, o sujeito da autoficção está à procura de si e busca, por meio


do jogo de palavras, elaborar os meandros do inconsciente. Entretanto Renard
mostra que a autoficção, enquanto escrita da cura e das neuroses do indivíduo
contemporâneo, permite que o texto literário construa imagens coletivas e “um
espírito do tempo” (zeitgeist):15 “O espírito do tempo é o produto de um
gênero literário informado pelas mutações sociais informadas pela produção
literária.”16 A estudiosa observa que há uma interação entre a produção literária
e a evolução sócio-cultural.
Nesse sentido, o notável trabalho de Régine Robin,17 Le Golem de l’écriture,
reflete sobre a relação da autoficção com a judeidade,18 e sobre a construção de
imagens coletivas, como propõe Renard (2010). Robin é referência no assunto
da judeidade, tanto na sua obra literária como na ensaística. A questão da
identidade judaica é o cerne de sua reflexão:

A maioria dos escritores e artistas do meu corpus são escritores judeus;


isso não significa, contudo, que seja um livro que concerne apenas à
identidade judaica, ainda que esse problema seja o cerne da minha
reflexão. Entrelaçado ao redor da identidade narrativa, com efeito, há
algo que diz respeito à identidade judaica, a essa judeidade que habita e
assombra a maior parte dos autores da minha obra (Robin, [1997]
2005, p. 26-27).19

Os temas obsessivos que permeiam a obra de Robin são, para Eurídice


Figueiredo, “as travessias de línguas, culturas, histórias, geografias, nomes
próprios, evocando desde a Shoá até a criação de biografias na internet”
(Figueiredo, 2013, p. 170). A protagonista em todas as bioficções é uma
escritora na faixa dos 60 anos, que se desdobra em vários papéis, atravessando
suas várias identidades – judia, francesa, canadense, de origem polonesa –, e
que vive “uma judeidade cheia de ambiguidades, traumas, recusas, fantasmas”
(Figueiredo, 2013, p. 170 e ss.).
O título do livro mencionado revive a curiosa figura do Golem para Robin
recontar a versão da lenda de Praga. Golem20 é um grande boneco de argila em
forma humana moldado por Rabino Loew (1525-1609), matemático, cabalista
e talmudista. “Quando ele introduziu em sua boca ou em seu peito (segundo as
diferentes versões) Emeth (a verdade) ou um dos nomes de Deus, que se pode
escrever e pronunciar, a estátua se tornou um ser vivo” (Robin, 2005, p. 35).21
O gueto da cidade estava sendo saqueado, as mulheres estupradas e as crianças
queimadas, e o Golem é utilizado para defender o gueto de seus invasores e
livrar os judeus dos seus perseguidores:

Mas a literatura não termina aí. Fizemos do Golem aquele que socorrera
o gueto nos momentos de perigo, aquele que perseguira os transeuntes
suspeitos, um super-homem que, graças a suas fórmulas cabalísticas,
viera pôr fim a todas as ameaças e todos os perigos (Robin, [1997] 2005,
p. 36).22

O “Golem” da escrita, a matéria-prima e/ou a estratégia textual da


autoficção, é a marca da judeidade. Robin questiona a especificidade da
inscrição da judeidade nos dispositivos autoficcionais,23 dizendo que ela
[especificidade] está justamente em “fazer algo a parte, alguma coisa étnica e
distintiva” (Robin, 2005, p. 30).24
O caso de Robin se aproxima de Doubrovsky e de outros escritores judeus
“pela Shoá, a perda de familiares nos campos de concentração, a experiência
durante a ocupação de Paris pelos nazistas” (Figueiredo, 2013, p. 178). Outra
obsessão dos escritores judeus seria a América, “a ruptura que significou para
ambos a emigração. Doubrovsky, indo para os Estados Unidos, teve de se
separar de sua mãe, que permaneceu na França, enquanto Robin, ao partir para
Montreal, deixou sua filha em Paris” (2013, p. 178).
Nas histórias em quadrinhos, vale citar a obra do sueco Art Spiegelman, em
especial seu premiado romance gráfico Maus25 (Spiegelman, 1992). A narrativa
dos quadrinhos de Spiegelman é fruto de sua memória dos efeitos da guerra na
sua família. O autor parte da experiência de luta de seu pai judeu para
sobreviver ao Holocausto. No enredo, os nazistas são representados pelos gatos,
e os judeus pelos ratos; os poloneses são os porcos, e os americanos são os
cachorros. É mais que uma curiosidade notar que Spiegelman ganhou o
“Prêmio Especial Pulitzer”, categoria criada pelo fato de o comitê não saber se
classificava Maus como uma obra de ficção ou de biografia. Hoje, já podemos
classificá-la como uma obra híbrida, tal como a autoficção.
Na literatura contemporânea do Brasil, é possível encontrar a conexão entre
autoficção e judeidade em Michel Laub (Diário da queda), Tatiana Salem Levy
(A chave de casa) e Jacques Fux (Antiterapias). Como fez notar Hildalgo (2013),
a urgência de uma situação pessoal move o exercício autoficcional e destaca o
romance-luto como prática recorrente na literatura brasileira.
Para refletir sobre o “impulso autoficcional”, perguntei a alguns
autoficcionistas do país o que leva um escritor a escrever sobre si mesmo através da
cção?26
A escritora e ministrante de oficinas literárias sobre autoficção, Ana Letícia
Leal, identifica o trabalho psicanalítico com a escrita autoficcional. Além de sua
experiência com a escrita de diários, cartas e blog, as oficinas de autoficção a
fazem pensar constantemente sobre os motivos que levam alguém a escrever
sobre si:

Na minha experiência, comecei a escrever diários e cartas na infância e a


intensificação disso na adolescência é que me trouxe à escrita
propriamente literária. Acho que a autoficção é sempre narcísica, porém
muitas vezes não é apenas isso. O meu blog Diários Bordados anda
parado, mas lá tem várias crônicas em que procuro entender o que eu
mesma tenho tomado por autoficção. Minhas oficinas, aliás,
prosperaram e se tornaram minha principal atividade profissional (Ana
Letícia Leal, entrevista, apêndice deste livro).

Para o autor de A parede no escuro (2008), Altair Martins, escrever sobre si

[...] constitui, de certo modo, um conjunto de atividades que nos


revisam. Neste sentido, todo escritor que se debruça sobre sua matéria
viva (no grau de proximidade entre o escrito e o vivido, que os gêneros
mais biográficos oportunizam) está buscando, na modificação ficcional
(não há como ser fiel senão sendo ingênuo), a instância estética, que tem
algo de miniatura, de maquete (Martins, entrevista, apêndice deste
livro).
Para Tezza, os motivos que o conduzem à escrita de si são claros; mas, em
dissonância com o que se tem apresentado até aqui, afirma só poder escrever
sobre sua experiência após superado o trauma, e não para superá-lo:

No meu caso, esse impulso aconteceu tardiamente, com O lho eterno,


depois de mais de dez livros publicados. E acho que já esgotei o material
biográfico para a minha ficção. Posso dizer, retrospectivamente, que
escrevi sobre a minha experiência porque ela não era mais ‘traumática’;
era apenas uma memória a ser trabalhada literariamente. De certa
forma, foi um desafio quase que mais literário que existencial – o tema
do filho especial é um convite para todas as cascas de banana
sentimentais que a ficção tem à disposição. No sentido pessoal, senti um
certo impulso de enfrentar o acontecimento mais importante da minha
vida. Eu começava a sentir uma espécie de covardia por jamais ter
tratado do assunto (Cristovão Tezza, entrevista, apêndice deste livro).

Para Gustavo Bernardo, a resposta varia conforme o escritor: “alguns podem


até procurar uma espécie de catarse psicanalítica, enquanto outros inventam
falsos duplos para brincar consigo mesmos e com os leitores” (Bernardo,
entrevista, apêndice deste livro).
Evando Nascimento aponta para a complexidade da questão posta em jogo.
O ser humano busca incansavelmente entender o que vivencia, e pode fazê-lo
por meio da arte:

Não tenho resposta simples para a questão, mas intuo que seja a
necessidade humana de entender minimamente o que se vivencia. Uns
fazem isso por meio de cinema, filosofia, pintura, já os escritores optam
pela palavra inventiva. Com ou sem autobiografia ou autoficção, creio
que toda literatura e mesmo toda arte, em certo sentido, passa pela
experiência pessoal. O que distingue artistas e autores entre si é o
procedimento utilizado: autobiografia em uns, autoficção em outros.
Nessa perspectiva, bons exemplos de autoficção no cinema são os
personagens de Woody Allen representados por ele próprio, em que
diretor, roteirista, protagonista e narrador se confundem no corpo do
ator. Isso acontece mais uma vez em sua última película Para Roma com
amor, na qual ele encarna um diretor de ópera em crise. O italiano
Nano Moretti realizou também dois filmes autoficcionais muito bons:
Caro diário e Abril (Nascimento, apêncide deste livro).

Em linha com este argumento, Michel Laub crê que toda a literatura e a
arte passam pela experiência pessoal. Para o autor de Diário da queda (2011) e
A maçã envenenada (2013), a memória, em sentido amplo, é a matéria da
escrita:

A matéria da escrita é a memória, que não necessariamente é a memória


de coisas vividas. Só uso a palavra ‘casa’ porque sei o que é uma casa – já
morei numa, já entrei em outras tantas, já vi fotos e filmes e ouvi relatos
a respeito –, e isso também é autobiografia (Michel Laub, entrevista,
apêndice deste livro).

Jacques Fux considera que alguns escritores “conseguem alcançar uma


‘verdade literária’ mais profunda quando falam de si mesmo”.
A maioria das respostas caminham ao encontro da proposta doubrovskyana,
considerando que o escritor precisa escrever sobre si para se entender, para se
aliviar da “urgência de uma situação pessoal”, para se “revisar”. Entretanto, a
boa crítica é feita de polêmicas e contradições. Duas respostas vão de encontro
às demais. A primeira é a de Luciene Azevedo, que nos ajuda a pensar a relação
da psicanálise com a autoficção ou com a escrita de si. Achamos cabível trazer o
exemplo que a professora nos conta sobre um episódio que aconteceu em
Congresso da Abralic,27 realizado em 2012. A nossa pergunta era: Serge
Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise, afirmando que
a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade contemporânea, o que
levaria um escritor a escrever sobre si mesmo por meio da ficção, dos diários,
cartas etc.? Seria um impulso autobiográfico narcísico (refletido nos blogs e
redes sociais) ou seria uma necessidade de compartilhar uma dor (luto,
trauma), através da linguagem literária escrita?

Não concordo com nenhuma das duas possibilidades aventadas pela


pergunta. Não compartilho dos diagnósticos apocalípticos que veem na
autoficção uma mera exposição narcísica do sujeito, tampouco acredito
que se trate de mera questão mercadológica. É claro que o mercado tem
sua parcela de contribuição, mas não acredito que tudo se resuma à
visão adorniana. Tampouco acho que Doubrovsky seja uma boa
referência para pensar o termo, embora o tenha cunhado (a respeito
disso, concordo com Gasparini. Na opinião dele, a criatura (a
autoficção) tornou-se independente do criador). A questão da terapia
pela escrita também não me agrada, mas sobre isso tenho um episódio
que pode ser interessante contar.

No encontro da Abralic de 2012, Diana Klinger, comentando o poema


de Carlito Azevedo, ‘H’, (o texto está publicado nos anais) afirmou que
o procedimento em questão ali era o da catarse, da purgação
psicanalítica pela perda da mãe. Paloma Vidal, escritora presente na
audiência (e que tem um livro autoficcional (?), Algum Lugar), repudiou
com veemência essa leitura. Eu mesma reagi, negando essa interpretação.
Mas lendo o romance-diário de Mário Levrero, La Novela Luminosa,
fiquei pensando se não era um pouco dessa operação que estava em
jogo, não apenas na escrita do texto, mas também na leitura dele.
Enfim, ainda que eu tenda a rejeitar a autoficção como ‘terapia’, porque
me parece que isso implicaria em um utilitarismo rasteiro, acho que a
ideia pode ter relação com algo que aventei em outra resposta: uma certa
demanda (do público) por ver, reconhecer um sujeito desnudando-se,
(de)compondo-se por escrito, na frente do leitor, construindo um
sujeito na realidade das palavras (Luciene Azevedo, apêndice deste livro,
grifos meus).

***

Angústias, traumas, dores, relações familiares conflitantes, heranças


familiares, culturais e religiosas, insatisfações, lutos, desamparos, histórias mal
resolvidas, são “motivos impulsionadores”, motes que levam pessoas a escrever
um romance, um texto literário, por vezes testemunhal, confessional,
memorialista, mas também ficcional. Tal como a autoficção. “Narração de
acontecimentos estritamente reais”, mas dominados pela linguagem; pelo
descontrole do autor em relação ao seu próprio relato e à sua escrita. Diante da
multiplicidade dos exercícios autoficcionais na literatura brasileira
contemporânea, é difícil postular uma autoficção no singular. Autoficções, no
plural, talvez seja mais realista, “como para mostrar melhor a diversidade e a
vivacidade de um gênero que não é exatamente um” (Burgelin, Grell e Roche,
2010).

Escrita literária e metaficção

Nos estudos sobre a autoficção, predominam algumas constatações. Uma


delas é o fato de que a autoficção é para ser lida como um romance. Trata-se de
um livro que se autodenomina romanesco/fictício, seja pela indicação na capa
do livro ou na ficha catalográfica, muitas vezes com evidente interesse editorial
e alheio ao próprio autor, seja pelos paratextos intencionalmente elaborados
pelo autor, como o título do livro, as dedicatórias, as epígrafes etc. Além disso,
a pretensão literária, isto é, o trabalho com a linguagem e o propósito
deliberado de escrever literariamente a experiência, diferenciaria a autoficção
das demais escritas de si.
Na conferência “Écrire sa vie”,28 em Limoges, Phillipe Lejeune fala sobre as
escritas autobiográficas ordinárias, como é o caso do diário (journal intime),
gênero vizinho da autobiografia, ao qual Lejeune se dedica não apenas a
escrever desde os 15 anos de idade, mas também a analisar. Ao mostrar o seu
próprio percurso como “escritor ordinário”, Lejeune observa que o diarista não
tem pretensão literária, “não quer criar uma obra literária ou fazer um objeto
de linguagem”. O diário é uma escrita que acompanha a sua vida, espaço
totalmente secreto de deliberação, reflexão e alívio. Lejeune afirma que o diário
é “uma maneira de viver”. Diferentemente do romancista, o diarista não
escreve para ser lido, nem apreciado por um público-leitor. Trata-se de uma
escrita ordinária, sem revisões posteriores, sem rasuras e sem reescritas com fins
estéticos, uma escrita íntima em seu sentido mais profundo, guardada, no caso
de Lejeune, em uma gaveta com chave. Em sua pesquisa, Lejeune pôde
constatar que nos manuscritos de diários a melhora do estilo, da precisão ou da
beleza da expressão se dá pela repetição, e não pela correção.
Para discutir a escrita literária como característica da autoficção, volto ao
Antiterapias, de Jacques Fux. O título do livro e a intenção do autor
contribuem para a discussão acerca da escrita literária. O que seria uma
antiterapia? Segundo Fux, o prefixo funciona como negação, no projeto
estético de sua autoficção, da ideia que temos de terapia como prática do
desnudamento, do contar sobre si da forma mais clara possível. E, com isso,
chama a atenção para a questão literária, o embelezamento característico da
literatura que ludibria o leitor e o próprio autor.
Este é um dos critérios da autoficção: o rebuscamento no trato com o texto
e com a linguagem. Os autores revelam preocupação estética e linguística,
procuram formas originais de (auto)expressão. Por esse motivo, é comum nos
depararmos com a palavra romance na capa de um livro autoficcional, que
funciona como estratégia de afastamento do gênero autobiográfico e de
inserção no campo literário. O risco de associação com a autobiografia
acontece porque a autoficção ainda não está totalmente estabelecida.
Lecarme observa que o trabalho arqueológico da autoficção não inclui a
avaliação estética de seus elementos (Lecarme, 2014, p. 80). A escrita literária
como critério necessário da autoficção não garante à obra valor literário.
Autoficções podem ser boas ou ruins, podem funcionar ou não, risco inevitável
a qualquer obra, seja ela ficcional ou não. Em seu breve capítulo sobre a
autoficção, Leyla Perrone-Moisés analisa a obra autoficcional do norueguês
Karl Ove Knausgård como paradigma de qualidade literária, mostrando a
importância do trabalho imaginativo com a linguagem, da sublimação artística,
da invenção e da autocrítica nas autoficções literárias:

O êxito artístico de Minha luta demonstra, por comparação, que as


autoficções literárias se dividem em duas categorias: aquelas que são
apenas escritas do eu, sem se abrir para o leitor; e aquelas que são
trabalho de linguagem, imaginativo e não imaginário. O eu é sempre o
herói das autoficções; mas elas podem ser apenas o cultivo narcisista do
eu, obras de autoexibição, de autojustificação, de ressentimento ou de
vingança, sem nenhuma sublimação artística, isto é, nenhuma
imaginação, nenhuma invenção e nenhuma autocrítica. Nesse caso, elas
interessam ao próprio autor e são tediosas para os outros. Elas são
apenas auto, e não cções (Perrone-Moisés, 2016, p. 218-219).

Na literatura brasileira contemporânea, há muitos exemplos de autoficções


ou, como sublinha Perrone-Moisés, “autoficções literárias”, cujo trabalho
imaginativo com a linguagem, a sublimação artística e a autocrítica superam a
mera autoexibição narcisista. Em Antiterapias, a preocupação com a linguagem,
a polissemia e as intertextualidades inesgotam os sentidos do texto literário. O
livro inicia de maneira inusitada. Em vez de epígrafes, deparamo-nos com o
que Fux chama de prefácios, cujos autores são Marcel Proust, Mario Vargas
Llosa, Jorge Luis Borges, Ferreira Gullar, Sigmund Freud, Isaac Bashevis
Singer, Primo Levi, Rousseau e Leon Tolstoi. Essas e outras vozes estarão
presentes ao longo da narrativa. A divisão de capítulos também é elaborada, e
cada capítulo refere-se a uma profissão. São 21 profissões, seguidas da
conjunção “ou” e uma frase explicativa e/ou alternativa da profissão:
“ASTROFÍSICO ou Aquele que sonha as estrelas”, “ARQUEÓLOGO ou
Aquele que inventa o passado”, “DELINQUENTE ou Aquele que subverte
uma época”, “ANTROPÓLOGO ou Aquele que inventa o porvir” etc. Por
fim, um posfácio, cujo título é “Autor ou Aquele que plagia a outra dor”,
última profissão que encerra o livro. Outra peculiaridade do texto é a
abundância de intertextualidade, que leva o próprio autor a se questionar sobre
o que seria um plágio, uma vez que somos aquilo que lemos e trazemos
conosco todas essas vozes: “[...] o edifício imenso da recordação. Ficção.
Literatura. Plágio. As memórias não são mais dos fatos, e sim dos sentimentos
vividos. Assim sinto” (Fux, 2014, p. 37).
Em entrevistas, Fux diz que sua intenção é a de que o leitor a cada nova
leitura perceba novas intertextualidades em um texto que se quer infinito. No
fragmento a seguir, vemos a presença dos versos de Drummond:

Não imaginava e nem fazia ideia de que o fato de eu ter pipiu e Silvinha
não o ter poderia resultar em grandes prazeres. E eu seguia amando.
Que pode uma criatura, senão, entre as criaturas, amar? Amar e
esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? E, apesar de nunca
declarar publicamente meu amor, meus olhos não o escondiam (Fux,
2014, p. 20, grifo meu).

Neste outro, a intertextualidade com Fernando Pessoa e seu heterônimo


Álvaro de Campos mostra a apropriação que Fux faz de textos predecessores a
fim de escrever a sua autoficção a partir de todas as vozes que o constitui:

Eu tive que negar meu grande amor. Ela me perguntou se aquilo seria
verdade. Neguei. Nego. Negarei. O meu amor era só meu. Não era e
não podia ser compartilhado ainda. Era jovem demais para me expor.
Revelar-me. Descobrir-me. O amor é a exposição ao que você próprio
julga ridículo. Como todas as cartas de amor. E eu não estava
preparado. Não estou preparado. Estarei? (Fux, 2014, p. 20, grifo meu).

Os exemplos mencionados revelam atributos do texto autoficcional, em que


cada autor busca a sua própria forma, transgredindo a linear, que o distinguem
do texto autobiográfico clássico. Gasparini observa a narrativização e
roteirização dos fragmentos da vida do autor por meio de técnicas narrativas
que intensificam e dramatizam a situação, mostrando, assim, o caráter literário
da autoficção e a magia do termo:

Uma situação, uma relação, um episódio, são narrados e roteirizados,


intensificados e dramatizados por técnicas narrativas que favorecem a
identificação do leitor com o autor-herói-narrador. De um ponto de
vista pragmático, são romances autobiográficos, baseados em um duplo
contrato de leitura. No entanto, a partir do momento em que são
designados pelo neologismo um pouco mágico de ‘autoficção’, eles se
tornam outra coisa. Não são mais textos isolados, esparsos,
inclassificáveis, nos quais um escritor dissimula com mais ou menos
engenho suas confidências sob um verniz romanesco, ou vice-versa.
Inscrevem-se em um movimento literário e cultural que reflete a
sociedade de hoje e evolui com ela (Gasparini, 2014, p. 217).

Há, portanto, na prática autoficcional, o esforço por um projeto estético de


recriação estrutural – marcado pela fragmentação – e linguística. “Somente
renovando a língua é que se pode renovar o mundo”, diz Guimarães Rosa
(1991).29 A forma adquire, por sua vez, um objetivo ético de resgatar o valor da
vida. Para os Formalistas Russos, renovar a percepção é um desejo de novidade
pela fuga do racional, da vida mecânica, da automatização do pensamento. Se,
na linguagem cotidiana, nós “reconhecemos” os objetos; na linguagem poética,
os objetos devem ser “vistos”. É o que os teóricos denominam de estranhamento
ou desfamiliarização. Se o mundo moderno faz com que as coisas percam o
sabor, cabe à arte devolvê-lo. A linguagem literária é aquela que causa o desvio
na leitura, mostrando um desejo de novidade, uma renovação da percepção por
uma alquimia que devolve o “frescor” à linguagem. Essa seria, então, a função
da arte para os Formalistas Russos (Toledo, 1973).
Nesse sentido, o rótulo romance na capa do livro ou na ficha catalográfica
funciona também como uma espécie de alerta para o projeto estético da
autoficção. O leitor sente-se convidado a ler um romance, cujo “tapete
vermelho” garante um mergulho em um texto com qualidade e esmero
literários. O que importa é menos o conteúdo, a curiosidade sobre a vida de
alguma celebridade, e mais a aventura do romance, o “êxito artístico”, para
citar as palavras de Perrone-Moisés. Entretanto, sabemos que existem
autobiografias com preocupação estética, muito bem escritas, alçadas ao
patamar artístico – para lembrar a trajetória de luta de Lejeune –, e autoficções
com avaliação estética questionável. Em suma, não é o rótulo que garante o
valor de uma obra autoficcional ou autobiográfica. Entretanto, o rótulo pode
cumprir a função de sugerir tais juízos.

Fragmentação e tempo presente

ings fall apart; the centre cannot hold; / Mere anarchy is loosed
upon the world.
William Butler Yeats

Em Auto ction: une aventure du langage, Philippe Gasparini aborda a


reinvenção da escrita autobiográfica. Para o teórico francês, autoficção é “texto
autobiográfico e literário com muitas características de oralidade, inovação
formal, complexidade narrativa, fragmentação, alteridade, disparidade e
autocomentário que tendem a problematizar a relação entre escrita e
experiência” (Gasparini, 2008, p. 311).30 Apresentarei a fragmentação e o
recurso ao tempo presente como características fundamentais da autoficção
doubrovskyana, porém sem renunciar à breve análise dos demais elementos
apontados por Gasparini. No exercício reflexivo sobre o tempo presente da
autoficção, percebi a proximidade entre os gêneros autoficcional e lírico. Minha
hipótese é de que autoficção e lírica se aproximam por seu caráter subjetivo,
fragmentário, temporal (presente), oral, inovador e complexo. Para isso,
retomo conceitos da poética de Emil Staiger (1975) e de Hegel (1964).
Sobre a fragmentação é possível pensar em um triplo desdobramento: 1)
fragmentação do sujeito; 2) fragmentação do conteúdo – tema abordado; e 3)
fragmentação formal (da escrita autoficcional) e linguística (da sintaxe). Esta
última, cara para o criador do termo, definiria a “inovação” formal do gênero.
Em capítulo anterior, tratamos da fragmentação do sujeito pós-moderno,
que é instável e desordenado. Vimos as reflexões de J. Ginzburg sobre essa
fragmentação poder ser “indicação de ruptura com a concepção cartesiana de
sujeito” (Ginzburg, 2012, p. 169). A autoficção enquanto “variação pós-
moderna da autobiografia” desacreditaria na possibilidade de reconstituição do
eu, passando a considerar a descontinuidade do eu. Nesse sentido, a
fragmentação do sujeito é fundamental para caracterizar a autoficção.
Doubrovsky revela o modo fragmentado como percebe a vida: “Não
percebo de modo algum minha vida como um todo, mas como fragmentos
esparsos, níveis de existência partidos, frases soltas, não coincidências
sucessivas, ou até simultâneas” (Doubrovsky, 2014, p. 123). A existência,
matéria prima da autoficção, é fragmentada, mas também as frases são soltas,
ou seja, a linguagem é igualmente fragmentada. Ao analisar Un homme de
passage [Um homem de passagem], o autor considera que a forma fragmentada
da escrita reflete a fragmentação incontrolável de um sujeito-autor que se sente
incoerente, despedaçado, repleto de vazios. Esse é modo que o autor de Fils
encontrou, e utilizou em todos os seus livros, para revelar o seu jeito de ser:

As letras do meu nome não são fornecidas em meu texto logo de início
apenas com o intuito de insistir na questão da autoficção, e provocar o
leitor. Mais profundamente, essas letras debulhadas separadamente
representam o não pertencimento do sujeito à sociedade em que vive e
na qual seu nome é difícil de se pronunciar e memorizar. As letras
despedaçadas ilustram também o despedaçamento irremediável do
referido sujeito literalmente in-coerente (despedaçamento, fragmento,
lacuna, vazio, esquizo, cissiparidade etc. estão presentes em todos os
meus livros para caracterizar seu modo de ser) (Doubrovsky, 2014, p.
117-18).

Além de caracterizar o sujeito, a fragmentação é própria do conteúdo, isto


é, o recorte temático da obra. O texto literário não tentará dar conta de uma
vida inteira (início-meio-fim próximo), como acontece na autobiografia
convencional. A escrita autoficional seleciona um momento específico, um
fragmento – entre tantos – de uma história de vida, predominando o efêmero
sobre o permanente: o nascimento de um filho com Síndrome de Down, como
O lho eterno de Tezza; a morte de um ente querido, casos de O céu dos suicidas
e Ribamar; a separação traumática de um casal, Divórcio; uma experiência
traumática, pessoal ou coletiva, como em K, relato de uma busca, A resistência e
A ocupação; a herança judaica; o exílio; a migração; uma doença etc.
Ademais, não apenas o tema representa a fragmentação do presente. A
escrita autoficcional também é fragmentada e compõe a estética da obra.
Geralmente, são livros com capítulos curtos, escrita não-linear, narrativa de vai-
e-vem e linguagem fluida. Doubrovsky falará, ainda, de uma linguagem
fragmentada – “frases soltas”, “fragmentos de frases”, “abolição da sintaxe” –,
afirmando que “esta ficção é confirmada pela própria escrita que se inventa
como mimese, na qual a abolição de toda e qualquer sintaxe substitui, por
fragmentos de frases, entrecortadas de vazios, a ordem da narração
autobiográfica” (2014, p. 116). É interessante reparar o aspecto visual de suas
autoficções. É esse aspecto que ele tenta descrever em palavras no artigo “O
último eu” (Mon dernier moi), porém é difícil fazer com que o leitor visualize
essa “inovação”. Doubrovsky coloca em prática o jogo da “aventura da
linguagem” e da “linguagem da aventura” e brinca com a sintaxe das frases e a
organização do texto, de forma análoga ao poema visual de nossos concretistas
(anos 1950) ou, em contexto francês, ao vanguardista Guillaume Apollinaire
(1880-1918). Para Doubrovsky, a escrita

[...] visa criar para o leitor uma corrente de sensações imprevisíveis e


disparatadas que solicitam uma identificação com a pseudomimese de
um fluxo de consciência. O modo de leitura se inscreve no âmbito do
pacto romanesco. O pacto particular do texto é propriamente
oximórico. [...] No que me diz respeito, e retornando um pouco ao
início do que eu chamaria de bom grado meu ‘self-romance’, creio que é
além ou aquém do problema dos ‘pactos’ que se inscreve a autoficção:
no funcionamento simbólico da própria escrita. Esse funcionamento
que encarna em sua própria enunciação o tema mais profundo desta
obra e de minha obra em geral (Doubrovsky, 2014, 116-117).

A desconstrução da sintaxe, a escrita automática dos surrealistas, a invenção


de uma nova estética são obsessões do criador da autoficção. Ainda em sua
análise sobre Um homem de passagem, Doubrovsky afirma que, embora tenha o
aspecto referencial da autoficção logo na primeira parte do livro, intitulada
Partida, existe também a estética fragmentada e a inovação formal da
autoficção:

as palavras com as quais essa narrativa é escrita surgem por si mesmas,


umas chamando as outras por consonância, proliferam segundo os
acasos, os encontros, os choques, inventam até mesmo pouco a pouco
sua própria sintaxe, desconstruindo se necessário a sintaxe tradicional.
[...] É nesse sentido que declarei na quarta capa de Fils: ‘confiar a
linguagem de uma aventura à aventura da linguagem’. A fórmula, alguns
observam, já estava na obra de Jean Ricardou. Dou fé (Doubrovsky,
2014, p. 119-120).
Talvez a ideia de inovação formal da autoficção seja sobrevalorizada por seu
criador, sendo passível de constestação, sobretudo por escritores e poetas
predecessores. Dizer que a autoficção tem dispositivos singulares e originais,
como bem fez Lecarme, não é a mesma coisa de atestar a sua inovação formal,
cujo argumento principal se pauta em sua fragmentação estrutural e linguística.
Doubrovsky define a autoficção como uma escrita do presente e marca a sua
distinção em relação à autobiografia, cujo tempo é o da recapitulação histórica.
O autor reflete que, em suas autoficções, “a enunciação e o enunciado não
estão separados por um necessário intervalo, mas são simultâneos”. Afirma,
ainda, que a primeira parte de Um homem de passagem é “escrupulosamente
referencial”, havendo, portanto, homonímia autor-narrador-personagem e
inscrição no pacto autobiográfico. Na afirmação seguinte, parece mudar de
ideia: “olhando, entretanto, um pouco mais de perto, um ‘eu referente’ (no
presente) não conta a experiência de um ‘eu referido’ (no passado), o que é a
estrutura normal de uma narração autobiográfica” (Doubrovsky, 2014, p. 116).
É certo que a escrita autoficcional retoma um passado. Como vimos, o
autoficcionador parte de uma experiência que já aconteceu, transformando-a
em matéria pulsante de seu romance. Contudo, Doubrovsky retoma Sartre
para reiterar a simultaneidade de enunciação e enunciado, do vivivo e do
contado, em sua percepção de escrita autoficcional: “‘Viver ou contar’, dizia
Sartre em A náusea. Aqui, o vivido se conta vivendo, sob forma de um fluxo de
consciência naturalmente impossível de se transcrever no fluxo do vivido-
escrito, se desenrolando página após página” (Doubrovsky, 2014, p. 116).
Embora muitos teóricos da autoficção não desenvolvam profundamente o
aspecto temporal, Doubrovsky o considera fundamental para a especificidade
do gênero. Acredito ser possível aproximar a autoficção do estilo lírico, cuja
marca principal, é a recordação (Staiger, 1975). O tempo gramatical do lírico,
assim como o da autoficção, é o presente, e “o passado como tema do lírico é
um tesouro de recordação” (Staiger, 1975, p. 55). Ao compartilhar a
experiência pretérita, em geral caracterizada pelo aspecto dramático, o
autoficcionista revela um sentimento que é do presente. Por se tratar de um
gênero subjetivo, a narração não é dos acontecimentos em si, mas de sua
repercussão na interioridade do sujeito. Em consonância com a lírica, “deve
mostrar o reflexo das coisas e dos acontecimentos na consciência individual.
[…] a criação lírica é íntima” (Staiger, 1975, p. 57). O passado aparece como
presente, como expressão interior do sujeito. Staiger observa que o poeta está
próximo do passado e do presente, “ele se dilui aí, quer dizer ele ‘recorda’.
‘Recordar’ deve ser o termo para a falta de distância entre sujeito e objeto, para
o um-no-outro lírico. Fatos presentes, passados e até futuros podem ser
recordados na criação lírica” (Staiger, 1975, p. 59-60).
Para Hegel, a força da criação poética reside na transformação da
objetividade exterior em objetividade interior, uma vez que “a poesia modela
um conteúdo interiormente” (1964, p. 93). Na Estética, considera-se que a
poesia lírica está em oposição à épica, por ter como conteúdo “o subjetivo, o
mundo interior, a alma agitada por sentimentos, alma que, em vez de agir,
persiste na sua interioridade e não pode por consequência ter por forma e por
fim senão a expansão do sujeito, a sua expressão” (Hegel, p. 158). Hegel
observa que “a intuição, o sentimento, a contemplação interna exprimem até o
mais substantial e mais concreto como fazendo parte do sujeito, como
relacionando-se estreitamente com as suas paixões, disposições e reflexões,
como nascendo nele no próprio momento em que se exprime” (p. 158, grifo
meu). Novamente, o tempo presente aparece na concepção da expressão lírica e
pode dialogar com as reflexões doubrovskyanas.
Talvez seja possível relacionar o sentimento do presente com a
caracterização da autoficção como prática de cura, uma vez que existe o
trabalho literário de elaboração de questões conflitantes, traumáticas e/ou
dolorosas. O autor rememora fatos e emoções passadas que marcam seu
presente e precisam ser compartilhadas por meio da escrita. Há, contudo,
relatos que podem contestar tal argumento. Como é o caso de Cristóvão Tezza
ao afirmar que só conseguiu escrever O lho eterno porque já havia passado
tempo suficiente do nascimento de Felipe, e a experiência “não era mais
‘traumática’; era apenas uma memória a ser trabalhada literariamente” (Tezza,
entrevista no apêndice deste livro).
Voltando a Hegel, observa-se que poeta/cantor exprime representações e
considerações como “parte da sua subjetividade, como algo que sente
profundamente”. Aqui, Hegel atenta para o caráter musical do gênero lírico: “E
como é a interioridade que deve animar a exposição, a sua expressão reveste
quase necessariamente um caráter musical e torna possíveis, por vezes mesmo
necessárias, as modulações variadas da voz, do canto, um acompanhamento
musical etc.” (Hegel, 1964, p. 158). A própria origem do adjetivo “lírico”, que
vem do nome lira, instrumento musical de cordas dos antigos gregos, nos
lembra que os poemas, até determinado tempo, eram cantados. Talvez aqui
estejamos frente à aproximação viável da autoficção com a lírica, pensando
elementos como a oralidade, o ritmo e a musicalidade, próprios da poesia, mas
constituintes da escrita autoficcional.
Exemplo oportuno na literatura brasileira é Júlian Fuks. Ao falar de sua
autoficção mais recente, A ocupação (2019), que, na ocasião da entrevista, ainda
estava em processo de escrita, revela a sua preocupação com a musicalidade e o
ritmo de sua escrita:

Talvez em Procura do romance, a intenção de escrever o melhor livro que


poderia escrever, o mais meticuloso, com maior controle sobre aquilo
que eu estava criando, isso me fez ter uma preocupação constante com a
escolha de cada palavra. Não saía da frase enquanto não estivesse
plenamente satisfeito com ela. E isso foi criando uma preocupação com
música, ritmo, que não necessariamente é visto quando se lê, mas que
sei que está lá. Por isso, questões de revisão me passaram a ser delicadas
(Fuks, 2017).

Outras características abordadas por Gasparini para definir a autoficção já


foram trabalhadas neste livro, como são os casos do autocomentário, da
mistura entre texto autobiográfico e literário, e alteridade. Espero aprofundar
as reflexões sobre esses elementos em oportunidade próxima. Por ora, interessa-
me trazê-los para o debate, mesmo que de forma breve, a fim de pensar a
autoficção como reinvenção. Reinvenção do ponto de vista conceitual e dos
protocolos de leitura, no âmbito da recepção, como tem sido feito
amplamente, mas também do ponto de vista formal, no âmbito da produção.

***

Percebendo que a autobiografia era um gênero muito praticado na França,


entretanto pouco estudado no âmbito universitário, Philippe Lejeune investiu
seu esforço intelectual em definir a autobiografia e em constituir um corpus da
escrita autobiográfica (L’autobiographie en France, 1971). Nos anos 1970, o
terreno de estudos sobre a autobiografia, segundo Lejeune, ainda era virgem; ao
entrar numa livraria, não havia um livro sequer sobre o gênero autobiográfico.
Curiosamente, na terra de escritores prestigiosos de autobiografia, como
Rousseau, Chateaubriand, Gide e Sartre, o gênero era menosprezado pela
crítica universitária. A Lejeune, devemos a inserção das escritas autobiográficas
nos estudos críticos literários.
O autor d’O pacto autobiográ co reconhece que traçar uma fronteira com
vistas a definir o que é e o que não é autobiografia é um gesto ingênuo, com ar
um pouco autoritário, tal como um dicionário. Porém, demonstra-se seguro da
necessidade de seu gesto inicial. A partir de suas pesquisas e publicações
pioneiras sobre a autobiografia, foi possível expandir a reflexão sobre as escritas
de si, estabelecer aproximações e diferenças. Precisamos reconhecer que, sem
um ponto de partida, talvez os estudos sobre escritas autobiográficas não
tivessem alcançado tamanho avanço. Lejeune não é apenas responsável pelo
ponto de partida; ao longo de toda a sua vida, continuou desenvolvendo os
estudos sobre escritas de si, dedicando-se também à pesquisa daquilo que
considera “escritas autobiográficas ordinárias”, isto é, escrita de diários e textos
afins, sem pretensão literária, realizada por pessoas comuns, no dia a dia, sem
intenção de publicação.
A autoficção surge no Brasil por volta dos anos 2000. Importada da França,
sem muitos textos em língua portuguesa sobre o fenômeno, começa a se
espalhar pela academia, pelas editoras e pelos meios de comunicação. Sempre
tida como uma prática de escrita controversa, para alguns com sentido, para
outros sem sentido algum. É curioso como o termo se populariza, porém sem
um consenso mínimo comum do que viria a ser, enfim, a tão famosa
autoficção. Talvez, o que faltou nos estudos literários brasileiros tenha sido
aquele primeiro esforço intelectual de Lejeune em relação à autobiografia,
traçar “umas fronteiras, uns arredores, um centro”, mesmo que tal prática seja
considerada ingênua, uma tentativa à la Sísifo, sujeita a constantes revisões.
Não à toa, Lejeune, hoje com 83 anos de idade, dedicou sua vida inteira aos
estudos da escrita autobiográfica.
Desde então, o campo literário tem aberto espaço para a discussão
conceitual e literária acerca da autoficção no Brasil. Este livro apresentou o
estado da arte da autoficção de maneira mais global, mas também de maneira
restrita à crítica literária nacional. Artigos, dissertações, teses, livros,
conferências, eventos acadêmicos, entrevista com autores-autoficcionistas têm
contribuído para a expansão da autoficção, mas também para sua melhor
aceitação.
O que é e o que não é autoficção, quais obras constituem um corpus
autoficcional, quais as nuances do gênero, o que é novo – de fato – na proposta
da autoficção, são questões pertinentes ao debate e merecem uma reflexão mais
demorada. Lejeune questionava-se sobre a possibilidade de existir uma obra em
que autor e personagem fossem homônimos de modo a não comprometer a
natureza romanesca do contrato. Existia uma lacuna. Faltava, ainda, comprovar
a possibilidade do hibridismo no romance – identidade onomástica (A = N =
P) + ficção –, de modo a pensar em obras intersticiais. Carecia, também, de um
nome que classificaria tais obras. Tanto a obra quanto a nomenclatura foram
dadas por Serge Doubrovsky, Fils – a obra – e autoficção – a nomenclatura.
Philippe Gasparini observou a necessidade do termo criado por
Doubrovsky, mostrando que seria equivocado reduzir a expansão da autoficção
a um “fenômeno de moda”: “Se ele ‘pegou’, se entrou em uso, é sinal de que era
preciso um termo para qualificar as criações que manifestam uma nova
concepção do eu e de sua expressão” (Gasparini, 2014, p. 214). É possível
afirmar, após a revisão dos principais argumentos críticos da autoficção na
França e no Brasil, que parte significativa dos estudiosos vão ao encontro do
que pensa Gasparini sobre a necessidade do neologismo. Penso que, se foi
preciso criar um termo para nomear um conjunto de obras até então
inclassificáveis, se havia realmente uma lacuna a ser preenchida, é por que a
autoficção era um rótulo novo para obras híbridas que já vinham sendo
experimentadas, com características próprias e específicas, que as distinguiriam
das demais escritas devidamente classificadas.
Mesmo que parte da crítica literária desacredite da possibilidade de se
definir a especificidade da autoficção – “as tentativas de se definir as
características intrínsecas de um pretenso gênero autoficcional malograram
uma a uma” (Araújo, 2019, p. 2620) –, é possível reconhecer, no percurso
teórico da autoficção, certo esforço intelectual dos críticos em definir um
consenso mínimo sobre seu conceito, de modo a diferenciá-lo dos demais tipos
de escritas do eu. Araújo cita um fragmento do texto de Ph. Gasparini –
“Autoficção é o nome de quê?” – para reiterar seu argumento sobre a
inviabilidade do gênero. A saber:

É preciso constatar que ‘autoficção’ se tornou, hoje, o nome de todos os


tipos de textos em primeira pessoa. Funcionando como um
‘arquigênero’, ele subsume todo ‘o espaço autobiográfico’: passado e
contemporâneo, narrativo e discursivo; com ou sem contrato de
verdade. Vítima ou beneficiário dessa confusão, o termo começa a ser
empregado para valorizar ou desvalorizar não apenas livros de todos os
gêneros, mas também álbuns de histórias em quadrinhos, filmes,
espetáculos e obras de arte contemporânea (Gasparini, 2014, p. 214).

Contudo, apesar de diagnosticar o mau uso da autoficção – “palavra-teste,


palavra-espelho, que nos devolve as definições que lhe atribuímos” (Gasparini,
2014, p. 218) –, Gasparini está buscando os limites da autoficção, como
mostra a frase anterior ao fragmento citado por Nabil Araújo – “Vocês me
dirão: por que falar de Annie Ernaux e de Philippe Lejeune, a propósito de
uma categoria que ambos rejeitam? Precisamente para buscar seus limites”
(Gasparini, 2014, p. 214). No final de seu texto, apresentado na Universidade
de Lausanne em 2009, Gasparini parece adotar um tom derrotista, pois
considera pouco provável um consenso comum entre os pesquisadores do
espaço autobiográfico:

Um consenso parece se esboçar entre os pesquisadores para adotar a


seguinte tripartidação do espaço autobiográfico contemporâneo:
autofabulação/autoficção/autobiografia (ou autonarração). Mas é pouco
provável que essas distinções entrem em uso. O neologismo criado por
Doubrovsky vai, provavelmente, continuar embaralhando as cartas
(Gasparini, 2014, p. 217).

Acredito, pois, que o tom pessimista de parte dos estudiosos quanto à


definição mínima e consensual da autoficção não seja consequente da
inespecificidade do gênero em si, mas sim do descontrole de seu uso, ou seja,
de certa irresponsabilidade e banalização em suas apropriações. E atribuo aqui
a irresponsabilidade àqueles que, fascinados pelo termo – “a sedução do termo
se deve à sua ambiguidade, a seu mistério”, acreditaria Gasparini (2014, p.
218) –, passam a adotá-lo de um modo muito particular, com uma definição
própria criada à revelia do extenso debate autoficcional já instaurado. Ou seja,
parece tratar-se muito mais de uma possível “preguiça intelectual” (em face à
extensão da discussão) ou de um descaso preconceituoso em relação à reflexão
sobre a autoficção, do que propriamente da inespecificidade do gênero. É
interessante porque tal apropriação, indevida, parece não ser realizada com
outros conceitos teóricos. Vale lembrar que muitas das confusões teóricas
criadas em torno da autoficção já foram resolvidas, como é o caso de Génette e
Colonna. Génette reconheceu que estava, na verdade, falando de outra prática
de escrita, ainda inominada, e diferente da autoficção doubrovskyana.
Assumir a pluralidade da autoficção não implode seu valor heurístico, não
minimiza o debate teórico nem o esforço para se criar “um centro, uns
arredores, umas fronteiras”. Lecarme (2014, p. 80-81) ao aventar uma
arqueologia do modelo, por meio do “agrupamento não exaustivo de textos que
se inscrevem no campo da autoficção”, mostra que existe um conjunto literário
com certos dispositivos e regras de funcionamento observáveis. O trabalho do
teórico é justamente analisar quais seriam esses dispositivos e essas regras para,
enfim, caracterizar o gênero autoficcional, definindo um consenso mínimo de
modo a evitar a banalização ou a rejeição do neologismo doubrovskyano.
Autoficções são plurais e, para Lecarme, é justamente pela originalidade de seus
dispositivos que elas são diversas e inovadoras, “dois traços constantes de nosso
gênero”.
É verdade que o neologismo de Doubrovsky se expandiu, fugindo ao seu
criador e encontrando abrigo em outros olhares teóricos. Considerar a
expansão da autoficção na teoria literária, suas apropriações e reformulações
conceituais, não minora a nossa capacidade analítica de postular um conjunto
de obras autoficcionais, literárias e artísticas, com dispositivos e regras
semelhantes. Ao agrupar autoficções francesas, Lecarme considera os dois
sentidos dados à autoficção: “um estrito (Doubrovsky) e outro mais amplo e
mais solto (Colonna)” (Lecarme, 2014, p. 80). A ampliação do sentido original
da autoficção, e aqui vale lembrar que foi feita pelo seu próprio criador, não
afeta a perspectiva de um conjunto literário. Ambas as possibilidades –
definição estrita e ampla – continuam no entre-lugar, no espaço intermediário
da narrativa verdadeira e do romance.
As reflexões propostas neste livro avançam em sintonia com Lecarme, no
sentido de pensar a autoficção como um gênero (mau gênero, que seja!), e de
analisar a singularidade de seus dispositivos. Se aceitamos a ideia de conjunto,
apropriada da matemática, podemos visualizar a autoficção como uma coleção
de obras híbridas, com elementos próprios e exclusivos dela, e elementos
comuns a outros gêneros.
Apêndice

Recepção do termo autoficção no Brasil: entrevistas com autores e


críticos literários

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras


maiores perguntas.
Riobaldo

As entrevistas a seguir abrangem escritores da literatura brasileira


contemporânea, bem como pesquisadores e críticos literários, que, em algum
momento, tiveram seu nome associado à prática autoficcional. Inicialmente,
elaborei questionários distintos para cada um dos dois perfis, para diferenciar as
questões destinadas a quem escreve autoficção e a quem analisa o exercício
autoficcional na literatura brasileira. No entanto, é comum o escritor ser
também o professor estudioso de teoria da literatura que atua nas duas frentes.
Para lidar com tais nuances, houve alguma variação no questionário. O caso de
Silviano Santiago, por exemplo, demandou perguntas mais específicas, tal
como o caso do autor-crítico-teórico Evando Nascimento.
Alguns autores de autoficção dizem ter tomado conhecimento do termo à
posteriori, e os críticos, em geral, demonstram simpatia em relação ao
neologismo. As entrevistas disponibilizam de maneira sucinta as ideias
principais dos estudiosos do assunto já publicadas em livros e artigos, servindo
de ponte entre o leitor interessado em autoficção e a bibliografia já disponível.
Nos questionários destinados aos “autores”, incluí o conceito original de
autoficção (já discutido neste livro):
Autoficção: O termo autoficção tem origem francesa, auto ction, e foi
criado pelo escritor francês e professor de literatura Serge Doubrovsky,
publicado, oficialmente, em 1977: “Ficção, de acontecimentos e fatos
estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem
de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da
sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras,
aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da
literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: autofricção,
pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer”.

Foi possível perceber que o termo e o conceito de autoficção já não soavam


mais como novidade nos anos 2013, ano de realização da maioria das
entrevistas. Aconteceu de algum entrevistado não saber bem a sua definição,
mas o termo já circulava nos estudos literários brasileiros, mesmo que sofresse
alguma rejeição.
Ressalto que as entrevistas foram realizadas por e-mail e os entrevistados
autorizaram a sua publicação.
Entrevistados (por ordem alfabética)

I. Adriana Lisboa
II. Altair Martins
III. Ana Cláudia Viegas
IV. Ana Letícia Leal
V. Cristovão Tezza
VI. Eurídice Figueiredo
VII. Evando Nascimento
VIII. Gustavo Bernardo
IX. Jacques Fux
X. Jovita Noronha
XI. Luciana Hidalgo
XII. Luciene Azevedo
XIII. Marcelo Mirisola
XIV. Michel Laub
XV. Ricardo Lísias
XVI. Silviano Santiago

I. Adriana Lisboa

Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro. Romancista, poeta e contista, é


autora, entre outros livros, dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José
Saramago), Um beijo de colombina, Rakushisha, Azul corvo (um dos livros do
ano do jornal inglês e Independent) e Hanói (um dos livros do ano do jornal
O Globo), e dos poemas de Deriva, Parte da paisagem e Pequena música
(menção honrosa do Prêmio Casa de las Américas e um dos livros do ano da
revista Bravo!). Publicou também algumas obras para crianças, como Língua de
trapos (prêmio de autor revelação da FNLIJ) e Um rei sem majestade. Seus livros
foram traduzidos em mais de vinte países. Seus poemas e contos saíram em
publicações como Modern Poetry in Translation, Granta, Asymptote e revista
Casa de las Américas.
É mestre em literatura brasileira e doutora em literatura comparada pela
UERJ, e foi pesquisadora visitante em Nichibunken (Kyoto), na Universidade
do Texas em Austin e na Universidade do Novo México. Foi também escritora
residente na Universidade da Califórnia Berkeley e na Universidade de
Chicago.
Morou na França, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos – onde vive
atualmente, na cidade de Austin.1

1. O que leva um escritor a escrever sobre si mesmo através da ficção, dos


diários, cartas, etc?
A própria vida do escritor, penso, é apenas mais um entre os virtualmente
infinitos temas à sua disposição. Há jogos de espelho, em muitos textos
contemporâneos, em que autor e personagem se fundem/confundem, e,
portanto, as fronteiras entre si mesmo/o outro se esfumaçam. Mas quando se
trata de escrever, assumidamente, um texto autobiográfico ou autoficcional,
parece-me que o autor, ao contrário, afirma a sua presença, a sua “vida real”,
mesmo que ficcionalizada. Claro que os olhos que temos abertos para o mundo
são somente um par, o nosso, e qualquer tema será escrito sob o filtro desses
olhos, dessa percepção: um romance histórico, policial, de ficção científica etc.
Nesse sentido, valeria afirmar que toda escrita de ficção é, num certo grau,
autobiográfica. Mas inscrever-se na escrita através do mecanismo da chamada
autoficção talvez dê um passo além, e os motivos me parecem que podem ser
os mais variados. Eles podem ir desde a elaboração quase que psicanalítica das
próprias experiências até o exibicionismo, passando pela “normalidade” de
considerar sua própria vida apenas um tema entre tantos outros, e tão válido
quanto.

2. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?

Acho que ele dá conta de uma zona que se situa entre a autobiografia e a
ficção, e acho interessante como aponta para possíveis experiências de escrita de
si, onde o ficcional tem permissão para entrar a qualquer momento, sem que
isso equivalha a uma traição do pacto inicial.

3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

Embora a minha leitura sobre esse tema seja praticamente inexistente, acho
que sim.
4. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Não. Todos os meus romances relatam, até um certo nível, experiências


vividas por mim ou relatadas por outros, paisagens observadas, pessoas que
conheci, e essas coisas se costuram umas às outras sem regra nem critério.
Então, há elementos autobiográficos em todos eles, mas não de forma intensa
ou significativa o bastante para que eu possa considerar algum deles uma
autoficção. Na verdade, é como se a minha vida aparecesse em pinceladas sobre
a ficção, que para mim é sempre muito mais relevante. Acho, inclusive, que o
maior privilégio que um autor de ficção tem é o de poder entrar na pele do
outro – qualquer outro –, então me interessa muito mais imaginar como seria a
vida de uma senhora de oitenta anos, de um refugiado político ou de um
animal do que me estender sobre as minhas próprias experiências.

II. Altair Martins

Altair Martins é escritor, professor, bacharel em Letras – francês, Mestre e


Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Nasceu em Porto Alegre, em 1975. Ministrou a disciplina de Conto no Curso
superior de Formação de Escritores da UNISINOS entre 2007 e 2010. Tem
textos publicados no Uruguai, em Portugal, Itália, França, EUA e Argentina.
Trabalha com grupos de literatura para o vestibular desde 1995. Vencedor de
um dos maiores prêmios literários no Brasil, o Prêmio São Paulo de Literatura,
em 2009, na categoria “primeiro romance”, com o livro A parede no escuro. Foi
vencedor do Prêmio Guimarães Rosa da Rádio France Internationale. Publicou
as antologias de crônicas ou contos Como se moesse ferro (1999), Dentro do olho
dentro (2001), Se choverem pássaros (2002) e Enquanto água (2011). Publicou,
em 2014, o romance Terra avulsa, e Os donos do inverno em 2019.
1. O que leva um escritor a escrever sobre si mesmo por meio da ficção,
dos diários, cartas etc?

Creio que o impulso do vivido seja extremamente latente em qualquer


leitor. Escrever sobre isso constitui, de certo modo, um conjunto de atividades
que nos revisam. Nesse sentido, todo escritor que se debruça sobre sua matéria
viva (no grau de proximidade entre o escrito e o vivido, que os gêneros mais
biográficos oportunizam) está buscando, na modificação ficcional (não há
como ser fiel senão sendo ingênuo), a instância estética, que tem algo de
miniatura, de maquete.

2. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?

Não acredito no termo, ou, pelo menos, na especificidade do termo, como


se fosse uma categoria. Creio que qualquer gesto de escrita é, naturalmente,
autoficcional (embora reconheça que não seja suficiente de acordo com a teoria
de Doubrovsky), porque entendo literatura, mesmo na sua potência mais
ficcional, como um gesto de memória. Talvez, no embate com a autobiografia,
reste apenas, como diferença, uma intenção.

3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

Pergunto: se toda ficção é memória, qual ficção não tem experiências


pessoais do autor? Não, o termo não dá conta, porque especifica o
inclassificável. É algo facilmente corroído, por exemplo, pelo gesto da
impostura contemporânea, que é forjar experiências nunca experimentadas.
Nesse sentido, o autoficcional é um selo. Imprime mais um gesto de leitura que
de escritura.
4. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Tenho. São os dois livros que escrevi – A parede no escuro e Enquanto água.
Tudo o que ali está é fruto das minhas experiências como pessoa e como leitor.
Se Emanuel, Maria do Céu, Adorno e todos os outros personagens d’A parede
não têm o meu nome, é porque fui impostor. Penso, às vezes, em escrever um
livro em que todos os personagens se chamariam Altair. Todos eles vivem
exatamente o que eu vivo: um deles é pai de dois filhos, casado; o outro é
professor; o outro joga futebol, não muito bem, nas segundas-feiras; quem sabe
um (que já publicou A parede no escuro e Enquanto água) escreve sobre os
outros três. Enfim, creio que o termo auto cção é algo que se esgota na própria
atividade da escrita. Serve para modular a leitura. Para os autores, para mim,
não faz sentido.

III. Ana Cláudia Viegas

Ana Claúdia Viegas é professora associada na Universidade do Estado do


Rio de Janeiro (UERJ). Possui graduação em Letras pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (1985), mestrado em Letras pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (1991) e doutorado em Antropologia
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997). Tem experiência na
área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente
nos seguintes temas: contemporaneidade, novas tecnologias, memória,
imagem, acervos literários e vida literária.

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção?

Considero um termo que remete tanto às “ficções de si” criadas pelas


narrativas em 1ª pessoa, quanto à junção de autobiografia + ficção, ou seja, do
aspecto referencial presente nas autobiografias com a invenção deliberada que
distingue a autoficção dessa outra forma de escrita de si.
2. A criação do termo por Serge Doubrovsky (1977) provocou alguma
mudança na produção ficcional contemporânea? Como, por exemplo, um
crescimento da produção autoficcional?

Não creio que a criação do termo tenha provocado um crescimento da


produção autoficcional. Com o novo termo, Doubrovsky pretendeu “preencher
uma lacuna” nas classificações das “escritas de si”, buscando nomear as
narrativas ficcionais que incorporam deliberadamente dados biográficos de seu
autor.
O crescimento dessa produção me parece se dever mais ao fato de a
narrativa autoficcional, por seu caráter ambíguo e indecidível entre fato e
ficção, adequar-se aos “dilemas da subjetividade contemporânea”, para usar
uma expressão da Leonor Arfuch. É claro que não se pode desprezar a questão
do mercado editorial, que acaba também estimulando a produção desse tipo de
narrativa.

3. Pode-se considerar que a autoficção é um subgênero do romance?

Levando em consideração a plasticidade do gênero romance, que desde a


sua criação sempre se apresentou sob diversos formatos – incorporando,
inclusive, formas de outros gêneros −, não diria que é um subgênero do
romance, mas um tipo de romance.

4. O que demarcaria a diferença entre autobiografia e autoficção?

É claro que o simples fato de a autoficção mesclar dados referenciais com


ficção não a distingue da autobiografia, que não se define pela veracidade ou
fidelidade a fatos efetivamente acontecidos. A autobiografia, como narrativa,
constrói seu sujeito, sendo sua “vida” mais o produto dessa narração do que
algo real que seria reproduzido ou contado por ela. Já é quase um lugar comum
afirmarmos que a memória se compõe também de esquecimento, lacunas,
invenção. Logo a ficção também faz parte da narrativa autobiográfica.
O que, no entanto, demarcaria a diferença da autoficção em relação à
autobiografia seria a mistura deliberada de dados referenciais, biográficos
(como o nome do autor, data e/ou local de nascimento, títulos de livros
publicados, nomes de membros da família, entre outros) com elementos
totalmente inventados, que não correspondem à biografia do autor.

IV. Ana Letícia Leal

Ana Letícia Leal é escritora, revisora e professora de oficinas literárias.


Nasceu no Rio de Janeiro. Trabalha como livreira e ministra regularmente a
oficina de Autoficção na Estação das Letras. Formada em jornalismo pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez Mestrado em
Comunicação Social e Doutorado em Letras na PUC-Rio. Publicou Meninas
inventadas (Bom Texto, 2007, finalista do prêmio Jabuti), Para crescer (Escrita
Fina, 2010), Maria Flor (Escrita Fina, 2011), A gente vai se separar (Tinta
Negra, 2016), entre outros.

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção?

A primeira vez que prestei atenção nessa palavra foi no começo de 2007, eu
lia um resumo de tese que não explicava do que se tratava, porém logo
relacionei a palavra ao que eu mesma sempre fiz e ao que considero ter sido
sempre a minha motivação pra escrever. A partir desse primeiro contato com a
palavra, fui passando a prestar atenção nisso e cheguei a propor uma oficina
literária com este tema para a Estação das Letras. No fim do ano, a Luciana
Hidalgo organizou um simpósio no Sesc muito esclarecedor para mim. Ao sair
da conferência do Silviano Santiago, já passei a usar a autoficção como um
“instrumento de leitura” da obra de Lygia Bojunga, pois estava justamente
escrevendo meu projeto de tese, e minha qualificação seria em dois meses.
Aliás, a ideia da autoficção como instrumento de leitura é do Vincent
Colonna, cujo livro foi indicado pelo Silviano nesse dia. Enfim, entrei no ano
de 2007 sem conhecer a palavra autoficção, mas, no fim do ano, eu já tinha um
projeto de tese aprovado sobre a autoficção na obra de Lygia Bojunga e uma
oficina de autoficção programada para o ano seguinte.

2. Você acredita que a criação do neologismo por Serge Doubrovsky


(autofiction, 1977) e a discussão teórica recém-chegada ao Brasil em torno
da autoficção tenha provocado alguma mudança na produção ficcional
contemporânea? Como, por exemplo, um crescimento da produção
autoficcional? E na recepção desses textos?

Não.

3. Você acredita na potencialidade do termo autoficção para designar um


novo gênero da literatura contemporânea? Ou a autoficção estaria mais
para um subgênero do romance?

Nem um, nem outro.

4. Seria possível demarcar a diferença entre autobiografia e autoficção?

Sim, mas precisamos ser cautelosas. Evidentemente, toda autobiografia


pode ser considerada uma autoficção. Gosto quando o... acho que é Genon...
diz que “autoficção” começa com “eu”. Mas a autobiografia é um gênero
constituído; enquanto a autoficção está presente em diferentes graus desde a
autobiografia até a ficção mais distante do que se considere a realidade. Dizer
que autobiografia é o mesmo que autoficção seria dizer que a biografia é igual
ao romance. Não é. Sabemos do componente ficcional presente em toda
biografia, como ademais em todo discurso, mas são textos de natureza
diferente. Então, eu prefiro chamar de autoficção toda escrita de si que invente
sobre o eu biográfico.

5. Serge Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise,


afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade
contemporânea, o que levaria um escritor a escrever sobre si mesmo
através da ficção, dos diários, cartas etc? Seria um impulso autobiográfico
narcísico (refletido nos blogs e redes sociais) ou seria uma necessidade de
compartilhar uma dor (luto, trauma), por meio da linguagem literária
escrita?

Os dois. Eu também identifico o trabalho psicanalítico com a escrita


autoficcional. Na minha experiência, comecei a escrever diários e cartas na
infância e, a intensificação disso, na adolescência, é que me trouxe à escrita
propriamente literária. Acho que a autoficção é sempre narcísica, porém muitas
vezes não é apenas isso. O meu blog Diários Bordados anda parado, mas lá tem
várias crônicas em que procuro entender o que eu mesma tenho tomado por
autoficção. Minhas oficinas, aliás, prosperaram e se tornaram minha principal
atividade profissional.

V. Cristovão Tezza

Cristovão Tezza é escritor. Nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1952. Em


1984, mudou-se para Florianópolis, onde trabalhou como professor de Língua
Portuguesa da UFSC. Voltou à Curitiba em 1986, dando aulas na UFPR até
2009, quando se demitiu para dedicar-se exclusivamente à literatura. Publicou
muitos livros, entre eles, Trapo (1988), Aventuras provisórias (1989), Juliano
Pavolini (1989), A suavidade do vento (1991), O fantasma da infância (1994),
Uma noite em Curitiba (1995), O fotógrafo (2004), O lho eterno (2007),
Beatriz (2011), O professor (2014), A tradutora (2016), A tirania do amor
(2018) e A tensão super cial do tempo (2020). Seu romance Breve espaço entre
cor e sombra (1998) foi contemplado com o Prêmio Machado de Assis da
Biblioteca Nacional (melhor romance do ano), e O fotógrafo (2004) recebeu,
em 2005, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do
ano e o Prêmio Bravo! de melhor obra. Em 2007, o romance O lho eterno
recebeu o Prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de
melhor obra de ficção do ano. Na sequência, recebeu o prêmio Jabuti de
melhor romance, Bravo! de melhor obra, Portugal-Telecom de Literatura em
Língua Portuguesa melhor livro do ano, prêmio Zaffari & Bourbon, da
Jornada Literária de Passo Fundo, como o melhor livro dos últimos dois anos.

1. O que leva um escritor a escrever sobre si mesmo através da ficção, dos


diários, cartas etc?

Sinceramente, não sei. No meu caso, esse impulso aconteceu tardiamente,


com O lho eterno, depois de mais de dez livros publicados. E acho que já
esgotei o material biográfico para a minha ficção. Posso dizer,
retrospectivamente, que escrevi sobre a minha experiência porque ela não era
mais “traumática”; era apenas uma memória a ser trabalhada literariamente. De
certa forma, foi um desafio quase que mais literário que existencial – o tema do
filho especial é um convite para todas as cascas de banana sentimentais que a
ficção tem à disposição. No sentido pessoal, senti um certo impulso de
enfrentar o acontecimento mais importante da minha vida. Eu começava a
sentir uma espécie de covardia por jamais ter tratado do assunto.
Em O espírito da prosa, que é um ensaio, tento responder à outra questão: o
que leva alguém, simplesmente, a escrever.

2. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?
É uma definição interessante, para fins didáticos. O engraçado é que só ouvi
falar desta expressão depois de publicar o livro – foi o comentário de alguém
ligado à teoria literária francesa. Mas isso é apenas ignorância minha – já há
alguns anos eu estava afastado dos estudos literários acadêmicos.
Eu acho que o elemento biográfico, na ficção, é apenas um objeto narrativo
entre outros. A diferença é mais quantitativa que qualitativa. E o que define a
ficção é a criação do narrador, não o seu tema. Mas, como disse, não conheço a
teoria sobre a autoficção.

3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

Não sei. Estamos numa época grandemente confessional, a partir do


advento da internet; é como se a tecnologia criasse o meio de, enfim, todo
mundo “botar a boca no mundo”. Em outro sentido, é o resultado de uma
afirmação do indivíduo, ou de seus “direitos absolutos”, que começou a se
consolidar com a revolução cultural dos anos 60 e 70. Hoje, a geração que
cresceu aprendendo a identificar vida e arte nos anos 60 parece estar madura
para, enfim, falar objetivamente de si mesma.

4. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Como eu disse, não conheço os termos da teoria que dá sentido à expressão.


Eu escrevi um romance (no sentido bakhtiniano do termo, uma narrativa de
prosa romanesca) que tomou de empréstimo um grande número de fatos da
minha vida pessoal. Este romance é O lho eterno, que, de modo algum, pode
ser entendido como uma “biografia”; sequer uma “autobiografia” (O espírito da
prosa, esse sim, é uma autobiografia).

VI. Eurídice Figueiredo


Eurídice Figueiredo é professora associada aposentada da Universidade
Federal Fluminense (UFF), atuando no Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Literatura. Possui Graduação em Letras pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (1968), Maîtrise en Lettres pela Université de
Nice (França, 1972), Mestrado em Língua e Literatura Francesa pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), Doutorado em Letras
Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988) e Pós-
doutorado Sênior pela UFMG (2009). Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Literaturas Francesa/Francófonas e Literatura Comparada, atuando
principalmente nos seguintes temas: literaturas pós-coloniais, representações da
alteridade (os negros, os indígenas, as mulheres), as escritas de si na literatura
contemporânea. Publicou os livros: Por uma crítica feminista: leituras
transversais de escritoras brasileiras (Zouk, 2020), Literatura como arquivo da
ditadura brasileira (7Letras, 2017), Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção,
autoficção (EdUERJ, 2013), Representações de etnicidade: perspectivas
interamericanas de literatura e cultura (7Letras, 2010) e Construções de
identidades pós-coloniais na literatura antilhana (EdUFF, 1998).

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção?

A autoficção é uma das formas que o romance adquiriu desde os anos 80.
Ela é sintoma de nossa época.

2. Você acredita que a criação do neologismo por Serge Doubrovsky


(autofiction, 1977) e a discussão teórica recém-chegada ao Brasil em torno
da autoficção tenha provocado alguma mudança na produção ficcional
contemporânea? Como, por exemplo, um crescimento da produção
autoficcional? E na recepção desses textos?

Acho que não foi a criação do termo que desencadeou essa produção.
Como disse antes, a autoficção é expressão, sintoma, de uma época. Aliás, eu
encontrei Cristovão Tezza na França em 2009, quando foi lançada a tradução
francesa de seu romance O lho eterno e perguntei-lhe se ele o considerava uma
autoficção, mas, até então, ele nunca tinha ouvido falar em autoficção. Desde
então, em suas entrevistas, ele diz que é uma autoficção. Isso prova que o
literário surge antes da crítica. O próprio Silviano Santiago, um crítico e
ensaísta antenado, começou a usar o termo recentemente, apesar de fazer
autoficção há muito tempo.

3. Você acredita na potencialidade do termo autoficção para designar um


novo gênero da literatura contemporânea? Ou a autoficção estaria mais
para um subgênero do romance?

Vejo a autoficção como uma nova forma de romance.

4. Seria possível demarcar a diferença entre autobiografia e autoficção?

Sim, porque a autobiografia tem uma forma mais linear e se pretende mais
próxima do vivido (embora isso seja desde o início condenado ao fracasso).

5. Serge Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise,


afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade
contemporânea, o que levaria um escritor a escrever sobre si mesmo
através da ficção, dos diários, cartas etc? Seria um impulso autobiográfico
narcísico (refletido nos blogs e redes sociais) ou seria uma necessidade de
compartilhar uma dor (luto, trauma), através da linguagem literária
escrita?

A autoficção tomou muitos rumos, diferentes daqueles postulados por


Doubrovsky, portanto há muitas facetas da autoficção atualmente.

VII. Evando Nascimento


Evando Nascimento é professor universitário, pesquisador e escritor. Seu
trabalho se desenvolve em torno das áreas de Filosofia, Literatura e Artes
Plásticas. Fez graduação na UFBA, mestrado na PUC-Rio e Doutorado na
UFRJ. Completou sua formação em Paris, onde foi aluno de Jacques Derrida
(na École des Hautes Études en Sciences Sociales) e de Sarah Kofman (na
Sorbonne). Lecionou durante três anos na Université Stendhal, de Grenoble.
Em 2007, realizou um pós-doutorado em Filosofia, sobre Benjamin e Derrida,
na Universidade Livre de Berlim (com bolsa dos governos alemão DAAD e
brasileiro Fapemig), onde, também, proferiu conferência. Já ministrou cursos e
palestras em diversas instituições internacionais e nacionais. É conhecido como
especialista em pensamento francês recente: Foucault, Deleuze, Barthes,
Derrida, sobretudo esse último. Tem diversos livros publicados, como autor ou
organizador: Derrida e a literatura (2ª. ed., EdUFF), Ângulos: literatura &
outras artes (Ed. Argos), Derrida (Ed. Zahar), Pensar a desconstrução (Ed.
Estação Liberdade), entre outros. Coordena, atualmente, a Coleção
Contemporânea Literatura, Filosofia & Artes, pela Civilização Brasileira, com a
participação de renomados especialistas. Publicou, igualmente, os livros de
ficção Retrato Desnatural (2008) e Cantos do Mundo (Contos 2011, Finalista do
Prêmio Portugal Telecom 2012), ambos pela Record.

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?

Diria que tenho uma visão bastante pessoal disso que atualmente se chama
de “autoficção” – as aspas são propositais e devem ser sempre presumidas,
mesmo quando invisíveis. Minhas concepções do termo enquanto escritor,
professor universitário e ensaísta são bastante convergentes. Antes de mais
nada, ao contrário de alguns pesquisadores, não considero a autoficção um
novo gênero. A biogra a e a autobiogra a, sim, configuram gêneros
documentais e literários, estando, hoje, bastante mapeados, sobretudo a partir
do trabalho pioneiro do estudioso francês Philippe Lejeune, realizado nos anos
1970, o arquifamoso O Pacto autobiográ co, já traduzido no Brasil.
A autoficção trouxe novas questões exatamente por sua dificuldade de
definição e seu não enquadramento nas classificações tradicionais. Nisso,
consiste seu valor de reflexão para o campo da literatura, das artes e das ciências
humanas em geral. Não se trata de uma propriedade exclusiva do texto
literário, mas algo mais amplo.

2. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

A tendência a trazer experiências pessoais para a literatura não é exclusiva da


contemporaneidade. O que tem havido é uma tentativa de rastrear e até certo
ponto configurar uma modalidade ainda pouco compreendida. A autoficção é
um fenômeno, ou melhor, um dispositivo que surge em determinadas
circunstâncias, com certas características, mas sem materializar uma identidade
genérica. Seria, portanto, uma tendência mesmo e não uma essência ou
substância. Segundo penso, a autoficção não materializa um gênero pleno, mas
implica um conjunto de dispositivos ficcionais que geram efeitos específicos
nos leitores. Um dispositivo é um mecanismo, uma técnica narrativa, por
exemplo, que funciona de diversas maneiras no circuito entre a produção e a
recepção da obra. Certamente nem todo aproveitamento da experiência pessoal
ocorre como autoficção, mas esse é um dos mecanismos fundamentais,
sobretudo para a literatura hoje.

3. Seria possível demarcar a diferença entre autobiografia e autoficção?

Dou continuidade à resposta anterior, a fim de explicar em que consistem


esses dispositivos ficcionais, os quais permitem distinguir elementos
autoficcionais de elementos autobiográficos. A meu ver, na autobiografia, os
limites entre ficção e realidade se encontram bem delimitados: o leitor sabe de
ponta a ponta que se trata de um romance ou de um ensaio que tem um
compromisso com a verdade da vida do autor, embora aqui e ali esse
compromisso possa ser traído. Já na autoficção esses limites entre ficção e
realidade se embaralham bastante, sobretudo porque, frequentemente, o nome
do autor, do narrador e do personagem coincidem. Por mais paradoxal que
seja, esse excesso de referencialidade é que gera o questionamento dos limites.
Uma das coisas que ajuda a autobiografia a manter as esferas separadas é
que na maior parte das vezes se lida com fatos passados ou, como no caso de
Graciliano Ramos, um período de uma existência bem delimitado no tempo e
no espaço. Já a autoficção, mesmo quando se refere ao passado, tende a se
confundir com o presente, fazendo com que o autor-narrador tenha pouco
distanciamento e, portanto, pouco controle sobre os eventos relatados. Por
exemplo, quando, no excelente romance Lord, João Gilberto Noll narra sua ida
a Londres para um estágio como escritor-visitante, não há quase nenhuma
separação entre o autor do presente e o protagonista do passado, mas,
sobretudo, é praticamente impossível saber com certeza se aqueles fatos são
verdadeiros ou não. Há ali o personagem de um professor que convida Noll a ir
à capital britânica e que nunca se materializa de todo ao longo da narrativa,
como uma fantasmagoria jamais encarnada.
Os dispositivos autoficcionais fazem fracassar o pacto de verdade e até
mesmo de verossimilhança entre autor e leitor. Creio que isso tem ocorrido
desde a antiguidade, mas, no século XX, a narrativa que prenunciou o recurso
foi sem dúvida Em Busca do tempo perdido, cujo narrador-personagem Marcel
coincide em inúmeros aspectos com o autor Marcel Proust. É isso o que
defende o especialista omas Carrier-Lafleur, e eu concordo plenamente.
Muitos dos episódios de Em Busca, narrados em primeira pessoa, parecem
colados à vivência autoral, mas também há tanta fantasia que é impossível
estabelecer um pacto autobiográfico totalmente confiável com os leitores dos
mais diversos lugares. Ressalto, contudo, que histórias autoficcionais se
tornaram mais frequentes nas últimas décadas, sobretudo após a obra inaugural
de Serge Doubrovsky.
Em resumo: a autobiografia ficcional é o tipo de gênero em que a vida do
autor é reinventada ficcionalmente, mas mantendo com os fatos certo grau de
verdade ou, pelo menos, de verossimilhança. Já na autoficção, a
verossimilhança, em relação a fatos externos, é bastante secundária, pois o que
importa é a verossimilhança interna ao próprio relato. Um paradigma do
gênero autobiográfico entre nós são as magníficas Memórias do cárcere, do já
referido Graciliano Ramos, em que o escritor alagoano narra o período em que
esteve preso, por causa de sua militância comunista, durante a ditadura de
Vargas. Embora, nesse caso, o autor possa recorrer a um dado ou outro da
imaginação, os leitores supõem que a história narrada é verdadeira, que o autor,
o narrador e o protagonista de fato vivenciaram aqueles acontecimentos,
naquele período, em tal lugar etc. É esse, em princípio, o pacto entre o escritor
e seus leitores para que o gênero autobiográfico funcione.

4. Serge Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise,


afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade
contemporânea, o que levaria um escritor a escrever sobre si mesmo
através da ficção, dos diários, cartas etc.?

Usar a própria vida como matéria-prima sempre ocorreu na história da


literatura. A diferença é que, no caso da autobiografia e dos dispositivos
autoficcionais, a atitude é geralmente expressa e consciente, embora com
propósitos e resultados distintos.
Não tenho resposta simples para a questão, mas intuo que seja a necessidade
humana de entender minimamente o que se vivencia. Uns fazem isso por meio
de cinema, filosofia, pintura, já os escritores optam pela palavra inventiva. Com
ou sem autobiografia ou autoficção, creio que toda literatura, e mesmo toda
arte, em certo sentido, passa pela experiência pessoal. O que distingue artistas e
autores entre si é o procedimento utilizado: autobiografia em uns, autoficção
em outros.
Nessa perspectiva, bons exemplos de autoficção no cinema são os
personagens de Woody Allen representados por ele próprio, em que diretor,
roteirista, protagonista e narrador se confundem no corpo do ator. Isso
acontece mais uma vez em sua última película Para Roma com amor, na qual ele
encarna um diretor de ópera em crise. O italiano Nano Moretti realizou
também dois filmes autoficcionais muito bons: Caro diário e Abril.
Creio que há autoficção: 1) todas as vezes em que os nomes de autor,
narrador e personagem coincidem, embora isso nem sempre seja explícito; 2)
de um modo geral, a coincidência se faz de modo fragmentário e não linear; 3)
há forte relação com o presente, mesmo quando a história começa ou ocorre no
passado; 4) os limites entre ficção e realidade se esboroam, levando o possível
leitor a um certo grau de perplexidade e dúvida intelectual: mentira ou
verdade, ficção ou testemunho? Essa indecidibilidade é, a meu ver, a marca
maior do que hoje se chama de “autoficção”.
Finalmente, não me agrada muito a noção, psicanalítica ou não, de “cura”.
Diria que na autoficção ocorre um tratamento, sem fim, das experiências
traumáticas e não traumáticas. Mas um tratamento no sentido literário e não
no sentido clínico, ou seja, uma abordagem formal de determinados conteúdos
experienciais. E quando o tratamento é bem realizado, tema e forma não
podem mais ser separados, consistindo num processo sem fim. É o que se
chama hoje de “obra em processo”, cujo processo de significação jamais se
conclui.

5. Você acredita que a criação do neologismo por Serge Doubrovsky


(autofiction, 1977) e a discussão teórica recém-chegada ao Brasil em torno
da autoficção tenham provocado alguma mudança na produção ficcional
contemporânea? Como, por exemplo, um crescimento da produção
autoficcional? E na recepção desses textos?
É sempre difícil, se não impossível, marcar o momento em que surge um
fenômeno. Porém, o termo teve e tem como referência fundamental os
trabalhos do referido escritor francês Serge Doubrovsky. Como você mesma
assinala, essa foi uma palavra encontrada em seus escritos por especialistas e
que comparece na quarta capa de seu romance Fils (Filho ou Fios), de 1977.
Por assim dizer, esse signo “autoficção” acabou se tornando a marca da própria
literatura desse autor franco-judaico, como autorreferência existencial e
artística. Não saberia dizer quem propriamente inaugurou essa prática no
Brasil, mas alguns nomes se destacaram nas últimas décadas com relação a isso:
Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, o citado João Gilberto Noll,
Silviano Santiago, Cristóvão Tezza, Tatiana Salem Levy, Ricardo Lísias, e eu
incluiria, com ressalvas, até Clarice Lispector, por causa de Água viva e A hora
da estrela. Meu próprio trabalho se relaciona até certo ponto com essa
tendência. Autores estrangeiros que lidam com um maior ou menor grau de
autoficção seriam Paul Auster, Sebald, Enrique Vila-Matas, Nadine Gordimer,
Philippe Roth e Coetzee, entre outros.
A diferença em relação a outras práticas ficcionais é que com a autoficção os
autores perdem o medo de utilizar, de forma bastante explícita, fatos que
vivenciaram, sem, no entanto, cair na autobiografia como requisição de
verdade. Ao contrário, a autoficção, muitas vezes, ocorre para despistar e
confundir o leitor, justamente quando ele pensava estar identificando uma
realidade pontual, concreta, bem demarcada como referente último da obra.
Quem faz isso igualmente à maravilha é a artista plástica francesa Sophie Calle,
que já esteve na Flip, pois a escrita também é parte de sua obra. Há nela todo
um diálogo entre imagem e palavra como forma de autoficção.
Por esses motivos todos, creio, sim, que tanto a produção quanto a recepção
do que se chama de autoficção ampliou o quadro da literatura no mundo,
como também no Brasil. Não acho que seja uma moda passageira, mas algo
que veio para dar uma contribuição incontornável à velho-nova instituição
chamada “literatura”, cujo conceito tem sido cada vez mais questionando e
igualmente ampliado.

6. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Reconheço traços autoficcionais em muitos de meus textos, mas não os


enquadraria nunca no gênero da autoficção, porque simplesmente, como disse,
não creio que seja um gênero à parte, completamente formatado. Ao contrário,
o fato de existirem tantos estudos, colóquios e publicações sobre o assunto
demonstra a dificuldade de definição. Nesse caso, a indefinição é um ganho e
um mérito. No dia em que o definirem plenamente como gênero, para mim
terá perdido todo o interesse. É porque não se presta a simplificações que a
autoficção me instiga a elaborar textos com algumas de suas marcas e a refletir
sobre o assunto. Por exemplo, meu primeiro livro ficcional publicado se chama
Retrato desnatural (diários 2004-2007), e, desde a epígrafe de Montaigne, eu
digo que “é a mim mesmo que pinto”. Por que Montaigne? Porque ele fez na
filosofia o que os escritores tentam fazer, com maior ou menor sucesso, na
literatura: autoficcionalizar-se. Não há uma linha de seus Ensaios que não seja
autoficção e, no entanto, são realmente ensaios, quer dizer, textos muito
eruditos versando sobre temas universais: a morte, a experiência em geral, a
amizade, a política, os costumes etc. O caso dele é fascinante porque não
precisa a cada passo narrar um episódio para nos garantir que, no fundo, o
tema de seus ensaios é a própria vida do autor. Mas, com efeito, essa vida nos é
dada em fragmentos, sendo pouco épica e heroica, como muitas vezes é o caso
da autobiografia, gênero que tende a ser autolaudatório – nem sempre, mas
com frequência, isso ocorre. O autor de autoficção propende à derrisão, à
autoironia, quando não ao humor explícito.
A primeira vez em que ouvi falar no termo autoficção foi numa palestra
com a professora e escritora francesa radicada no Canadá Régine Robin. O
evento foi organizado pela também especialista no assunto Eurídice Figueiredo,
na Universidade Federal Fluminense, em 1997. Fiquei absolutamente
fascinado e acabei por ler o livro teórico-crítico de Robin: Le Golem de
l’écriture: de l’auto ction au cybersoi. Entre 1998 e 2000, cheguei a escrever um
livro de mais de 500 páginas, em que narrava dia após dia a história de um
romance que estava vivenciando na época. Era uma espécie de diário –
intitulado provisoriamente Poliedros: o último romance –, que acabou quando a
relação terminou na vida real. Por razões afetivas, nunca tive coragem de
retomar esses arquivos depois disso, talvez um dia o faça e, quem sabe, chegue
a publicar. Por enquanto, é meu romance proibido... O já citado Retrato
desnatural tem também a estrutura de um diário, mas logo no texto da quarta
capa é dito que se trata de um “romance”. Só que é um romance (se for
mesmo, espero que
sim) totalmente fragmentário, com textos de vários gêneros: poemas em verso e
em prosa, microensaios, emails, cartas, minicontos, pequenos dramas etc. Em
Cantos do mundo, de 2011, alguns contos remetem a fatos mais ou menos
recentes, como o período em que estudei na Alemanha em 2007, narrado “À
Espera: Warum, warum?”, bem como uma história erótica vivida na tenra
juventude, intitulada “Arte Nova”. Mas, atenção, em ambos os casos a narrativa
biográfica está misturada com coisas irreais, que foram surgindo ao sabor da
pena ou do teclado. Só não digo o que é verdade ou mentira para não estragar
o brinquedo, e até porque, de algum modo, nem eu mesmo mais sei onde
acaba a realidade e onde começa a ficção, pois, no fundo, para mim, o grande
lance da autoficção é levar a desacreditar numa Verdade total, absoluta,
objetiva, independente de quem a viveu. Creio na verdade, mas numa verdade
que reinventamos a cada dia, até mesmo nas conversas com amigos, amantes
ou colegas. A diferença é que o escritor sabe que essa verdade factual também
não passa de ficção e, por isso, se permite brincar de realidade. Esse brincar
com a realidade é a marca primacial da autoficção, retirando-lhe o peso do
compromisso ou pacto autobiográfico.
Assinalaria, ainda, que um dos problemas do termo autoficção é o
narcisismo exacerbado a que, se não for tomado cuidado, induz. Nada tenho
contra o narcisismo em si, acho-o até benéfico, mas é preciso ter certo cuidado
com os excessos da “escrita do eu” para que ela não se torne demasiado
egocêntrica. Por isso, muitas vezes, prefiro chamar de alter ou de heteroficção,
pois alter e hétero remetem para o outro, o diferente do eu. Pois, segundo
penso, tudo começa com um outro ou uma outra sem os quais não há
verdadeira experiência. A Invenção de si (A Invenção da solidão é um belo título
de Auster, um autêntico autoficcionista, como referi) começa e acaba no outro,
na outra. Costumo dizer que “eu” só existo porque duas células diferentes, que
não eram minhas, se juntaram para me engendrar. É verdade que a clonagem
complica tudo, mas, por enquanto, ainda viemos dos outros, dos pais, da
família, do grupo em que nascemos, do país e do mundo em que vivemos.
Mesmo na clonagem, para haver cópia, é preciso que, em algum momento, as
células tenham sido transmitidas por outro alguém. Meu nome foi dado por
um outro e uma outra, as palavras que uso não são minhas. Quase nada me
pertence, com exceção, talvez, dessa capacidade eventual de dizer “eu” e assinar
o meu nome, nada mais.

VIII. Gustavo Bernardo

Gustavo Bernardo é ensaísta, romancista, escritor de literatura infantil e


juvenil e educador. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1955. Mestre em Literatura
Brasileira (UERJ, 1992) e doutor em Literatura Comparada (UERJ, 1995), fez
estágio de pós-doutorado em Filosofia (UFMG, 2006). Professor associado
aposentado de Teoria da Literatura na UERJ. Bolsista do CNPq, desenvolveu o
projeto “O Deus da ficção e a ficção de Deus”. Publicou um livro de poemas,
Pálpebra (1975). Publicou os romances Pedro Pedra (1982), Me nina (1989),
Lúcia (1999), A alma do urso (1999), Desenho mudo (2002), O mágico de
verdade (2006), Reviravolta (2007), A lha do escritor (2008), Monte Verità
(2009) e O gosto do apfelstrudel (2010). Publicou os ensaios Redação inquieta
(1985), Quem pode julgar a primeira pedra? (1993), Cola sombra da escola
(1997), Educação pelo argumento (2000), A dúvida de Flusser (2002), A cção
cética (2004), Verdades quixotescas (2006), Vilém Flusser: uma introdução (2008,
com Anke Finger e Rainer Guldin), O livro da meta cção (2010), O problema
do realismo de Machado de Assis (2011) e Conversas com um professor de
literatura (2013). Organizou e publicou as coletâneas Literatura e sistemas
culturais (1998), Vilém Flusser no Brasil (2000), As margens da tradução (2002),
José de Alencar (2002), Literatura e ceticismo (2005), Contos de amor e ciúme de
Machado de Assis (2008), Machado de Assis e a escravidão (2010, com Markus
Schäffauer e Joachim Michael) e A loso a da cção de Vilém Flusser (2011).

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?

É um termo interessante, porque econômico e, ao mesmo tempo,


autocontraditório. Como a ficção implica invenção, a ficção de si mesmo
implica no final das contas, ou dos contos, a invenção de si mesmo.

2. Você acredita que a criação do neologismo por Serge Doubrovsky


(autofiction, 1977) e a discussão teórica recém-chegada ao Brasil em torno
da autoficção tenha provocado alguma mudança na produção ficcional
contemporânea? Como, por exemplo, um crescimento da produção
autoficcional? E na recepção desses textos?

Creio que o neologismo apenas achou um bom nome para um determinado


momento da literatura, quando se enfatizaram aspectos biográficos dos autores
nas suas obras. Na verdade, esses aspectos sempre perpassaram todas as obras
de todos os tempos, uma vez que todos escrevemos a partir das nossas
experiências. A ênfase atual se explica por muitos motivos históricos, e, entre
eles, está a incerteza sobre a própria identidade, teorizada da psicanálise à física.
Não creio que o termo tenha provocado nenhuma mudança nessa literatura,
mas, sim, que tenha ampliado sua recepção, principalmente na universidade.
3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

O termo ajuda a comentar essa tendência, mas não dá conta dela, uma vez
que a melhor literatura não pode ser completamente explicada e esgotada nem
pela melhor teoria.

4. Você acredita na potencialidade do termo autoficção para designar um


novo gênero da literatura contemporânea? Ou a autoficção estaria mais
para um subgênero do romance?

Segunda opção, claro.

5. Serge Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise,


afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade
contemporânea, o que levaria um escritor a escrever sobre si mesmo
através da ficção, dos diários, cartas etc?

A resposta varia conforme cada escritor: alguns podem até procurar uma
espécie de catarse psicanalítica, enquanto outros inventam falsos duplos para
brincar consigo mesmo e com os leitores.

6. Você tem alguma obra literária que considera ser uma autoficção?

Nunca escrevi nada pensando “agora vou fazer uma autoficção”, até porque
sempre me disfarcei de algum modo nos meus enredos; mas o romance que
melhor se encaixa no termo é O gosto do Apfelstrudel, publicado pela Escrita
Fina. Nele, eu e pessoas da minha família comparecemos através das iniciais
dos nossos nomes. O romance conta o que passou pela cabeça do meu pai no
mês em que esteve em coma, antes de morrer.
IX. Jacques Fux

Jacques Fux é escritor e ensaísta. Nasceu em Belo Horizonte, em 1977. É


doutor e pós-doutor em Literatura Comparada (UFMG), e Docteur en
Langue, Littérature et Civilisation Françaises (Université de Lille 3). Formado
em Matemática, mestre em Ciência da Computação, é autor de Antiterapias
(2012), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura (autor estreante, 2013);
Brochadas – Con ssões sexuais de um jovem escritor (2015), que recebeu menção
honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte; Literatura e matemática: Jorge
Luís Borges, Georges Perec e o OULIPO (2016), Meshugá: um romance sobre a
loucura (2016) e Nobel (2018).

1. O que leva um escritor a escrever sobre si mesmo através da ficção, dos


diários, cartas etc?

Eu gosto de me colocar como personagem dos meus livros. O Antiterapias


usa a primeira pessoa, mas não fala o nome do personagem principal. O
Brochadas tem o Jacques Fux como protagonista, e há muita semelhança com o
escritor. Já o Meshugá: um romance sobre a loucura, trabalha na terceira pessoa e,
no último capítulo, escrevo um ensaio bem pessoal. Não sei, penso que alguns
escritores conseguem alcançar uma “verdade literária” mais profunda quando
falam de sim mesmo. Esses livros sempre me tocaram um pouco mais que os
outros, e por isso quis fazer algo nessa linha. Tenho essa curiosidade, essa
vontade de bisbilhotar a minha própria alma, de perscrutar meus monstros,
minhas alegrias, angústias, certezas, dúvidas e também meu cânone literário.

2. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?

Eu gosto do termo. Acho poético, literário, carrega uma história e


possibilita inúmeras interpretações e variações. Porém, cai nessa necessidade
humana, e também literária (vide Borges e Perec), de classificação. Uma
tentativa inútil de enquadramento, de ordenamento de algo contingente e
humano, dessa vontade fútil (mas importante) de rotular, agrupar e categorizar
coisas completamente únicas.

3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

Acho que esse termo é amplo e ambicioso e, como disse, permite diversas
interpretações e variações. Claro que não dá conta, mas é fundamental que ele
exista e que procure fazer bem seu trabalho. Talvez seja um “ornitorrinco”, uma
aberração, um “ser imaginário”, porém merece continuar sendo estudado.

4. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Sim! Acho que meus três romances – Antiterapias, Brochadas e Meshugá –


são livros autoficcionais, uns mais “auto” outros mais ‘ficcionais’. Eu tenho um
projeto literário, e todos meus livros se conversam, se completam e se
transformam. Também, meu próximo livro, vai seguir essa linha. Talvez esteja
desenvolvendo um “projeto fictício-autoficcional literário”, mas tentando
extrapolar ao máximo as possibilidades.

5. A criação do termo por Serge Doubrovsky (1977) provocou alguma


mudança na produção ficcional contemporânea? Como, por exemplo, um
crescimento da produção autoficcional?

Acho que ele foi o ponto de partida “teórico”. O que deu o nome a algo que
já se sentia. Um pioneiro. Um classificador. Acho que o termo pode ser
comparado com a teoria do “centésimo macaco”. (Conhece, Anna? Acho que
vai gostar de pensar dessa forma. Uma sugestão inédita, ou mais uma das
minhas pirações - http://galileu.globo.com/edic/91/conhecimento1.htm).
X. Jovita Maria Gerheim Noronha

Jovita Noronha é professora associada aposentada da Universidade Federal


de Juiz de Fora (UFJF), onde atuou no Curso de Letras e no PPG Letras –
Estudos Literários. Graduada em Letras (Português-Francês) pela Universidade
Federal de Juiz de Fora, mestra em Literaturas Francófonas pela Universidade
Federal Fluminense (1999), doutora em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense (2003). Tem experiência de ensino, pesquisa
e orientação na área de Letras, com ênfase em estudos de literatura, atuando
principalmente nos seguintes temas: escritas de si, construções identitárias,
literaturas de língua francesa. É organizadora e uma das tradutoras do livro O
pacto autobiográ co (Editora UFMG, 2ª ed., 2014), de Philippe Lejeune.
Também organizou e traduziu o indispensável livro Ensaios sobre a auto cção
(Editora UFMG, 2014).

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção?

É difícil dizer em poucas palavras... A ideia de autoficção e a história da


palavra são muito interessantes, pois o termo foi criado por um autor que é
“agente duplo” (ou triplo... professor, teórico e escritor). Ele criou um termo
com o fim de dar nome a uma certa prática literária que ele propunha (ainda
que, depois, ele tenha reconhecido que o procedimento já existia). Por essa
razão, talvez não seja suficiente ler apenas seus textos teóricos, mas também os
literários, para se entender de fato do que ele está falando. Penso que o termo
autoficção se tornou uma categoria “passe-partout” e vem sendo usado meio
que indiscriminadamente para designar uma diversidade de textos bem
distintos: desde a autoficção no sentido que lhe deu o criador do termo até a
mais pura invenção (que poderia simplesmente ser chamada de romance). Não
que isso seja “proibido”, é próprio das categorias conceituais se transformarem,
serem suplementadas, repensadas, reapropriadas. Mas isso significa que, hoje,
para se usar o termo, tornou-se no mínimo necessário especificar em que
sentido nos apropriamos dele. Senão, vira meio “vale-tudo”. Ultimamente, eu
estou tendendo a concordar com certos críticos, como Jean-Louis Jeannelle,
que dizem, de maneira bem mais severa, por exemplo: “parler d’un genre dont
l’identité reste si confuse me donne l’impression d’une imposture” (Jean-Louis
Jeannelle, “D’une gêne persistante à l’égard de l’autofiction”. In Je & Moi.
Nouvelle Revue Française no 598, octobre 2011) – Não sei se você leu o artigo,
mas aconselho.

2. A criação do termo por Serge Doubrovsky (1977) provocou alguma


mudança na produção ficcional contemporânea? Como, por exemplo, um
crescimento da produção autoficcional?

Penso que sim. Mas, sobretudo, a autoficção se tornou uma “etiqueta”


cômoda para muitos autores que querem falar sobre suas vidas, mas não
querem assumir que fazem autobiografia, pois estimam que só a ficção é arte,
literatura... Temos, então, de nos lembrar que isso envolve uma “briga” política
entre duas concepções de literatura, de arte... É o que Lejeune diz, com muito
humor e ironia, em seu texto “Autobiografia e ficção”. A citação é meio longa,
mas vale a pena ser lembrada: “quando comecei inocentemente a estudar e
defender meu gênero preferido, fiquei impressionado de ver pouco a pouco que
entrara em uma espécie de guerra civil, na qual minha ação defensiva levantava
as frentes de batalha. Não era essa minha intenção. Pensava poder falar da
autobiografia, gata borralheira da literatura, sem provocar ciúmes no romance,
gênero-rei. Pode-se gostar dos dois, e há lugar para todos! Mas o ato de definir
a autobiografia, e consequentemente de levá-la a sério, de respeitá-la, de
valorizá-la, de reconhecer nela um território de escrita, remobiliza
instantaneamente aqueles que decidiram acantoná-la fora do campo sagrado da
criação, longe das servidões desinteressantes da vida quotidiana, como pagar
impostos ou escovar os dentes. Há, na França, tanta hostilidade e irritação em
torno da autobiografia ‘autêntica’ que um certo número de escritores acampa,
se posso dizer assim, ‘ilegalmente’ em seu território. Eles mobilizam, dizendo
claramente fazê-lo, a experiência pessoal, às vezes o próprio nome, brincando
assim com a curiosidade e a credulidade do leitor, mas batizam ‘romance’
textos nos quais dão um jeito de se entender com a verdade, tratando-a como
bem querem. Essa zona ‘mista’ é muito frequentada, muito viva e, sem dúvida,
como todos os locais de mestiçagem, muito propícia à criação. Usufruir dos
benefícios do pacto autobiográfico sem pagar nenhum preço por isso pode ser
uma conduta fácil, mas também propiciar exercícios irônicos plenos de
virtuosismo ou abrir caminho para pesquisas das quais a autobiografia
‘autêntica’ poderá tirar proveito. Mas os escritores que frequentam essa zona,
justamente porque estão sempre esbarrando na autobiografia, são os que mais
violentamente a depreciam e a renegam: sobretudo que ninguém pense que eles
a praticam! Eles estão inteiramente no campo da arte! — A violência chega ao
paroxismo quando o texto é totalmente autobiográfico, como em L’Inceste [O
Incesto] de Christine Angot, que recusa que seu texto seja considerado uma
‘merda de depoimento’”.

3. Pode-se considerar que a autoficção é um subgênero do romance?

Penso que a autoficção seria, antes, um “subgênero” das escritas de si e não


do romance. Mas é um “híbrido”. Talvez seja melhor falar em uma das
manifestações ou formas contemporâneas das escritas de si ou das escritas do
eu. Há quem a considere um gênero circunscrito historicamente (próprio à
contemporaneidade, à pós-modernidade), há quem a considere, como Vincent
Colonna, que ela é um procedimento que sempre existiu.

4. O que demarcaria a diferença entre autobiografia e autoficção?

Trata-se de uma questão de pacto, de contrato de leitura. Na autobiografia,


o narrador, que se confunde com o personagem, e que é o próprio autor, se
compromete em dizer a verdade. Mas é preciso pensar, como propõe Philippe
Lejeune, que “o autobiógrafo não é alguém que diz a verdade, mas alguém que
diz estar dizendo a verdade”. Já na autoficção, se tomarmos a concepção de
Doubrovsky, este insiste na elaboração ccional da narrativa, na criação de “um
pacto oximórico”. Como ele já sustentou por diversas vezes, trata-se de
narrativas, nas quais “a matéria é estritamente autobiográfica, e a maneira
estritamente ficcional”,2 de uma ficção “confirmada pela própria escrita que se
inventa como mimese, na qual a abolição de toda e qualquer sintaxe substitui,
por fragmentos de frases, entrecortadas de vazios, a ordem da narração
autobiográfica.” Percebe-se, todavia, em sua análise, que o ccional não é
compreendido como fictício, como pura invenção, mas como mobilização de
estratégias narrativas tomadas de empréstimo ao romance moderno e
contemporâneo: “a autoficção, para mim, não mente, não disfarça, mas
enuncia e denuncia na forma que escolheu para si: ‘Ficção de acontecimentos e
fatos estritamente reais’”. Vê-se que, para Doubrovsky, a autoficção tem um
caráter referencial. Entretanto, temos, hoje, pelo menos na França, obras que
estabelecem um pacto autobiográfico, referencial, mas que se valem de
procedimentos do romance contemporâneo (assim como houve autores –
Michel Leiris, Georges Perec que inovaram o gênero autobiográfico em sua
época). Uma das questões importantes é se perguntar até que ponto as
autoficções são lidas segundo um pacto contraditório, “oximórico”. Como disse
inúmeras vezes Philippe Lejeune (veja a entrevista concedida a Jean-Louis
Jeannelle, no Le Monde des livres da semana passada:
http://www.lemonde.fr/livres/article/2013/05/02/philippe-lejeune-le-recit-de-
soi-c-est-lui_3169697_3260.html): “Je ne crois pas qu’on puisse vraiment lire
assis entre deux chaises. La plupart des autofictions sont reçues comme des
autobiographies: le lecteur ne saurait faire autrement”.
Não podemos nos esquecer, entretanto, do que mencionei na segunda
pergunta, quanto ao aspecto político dessa demarcação entre autobiografia e
autoficção...
XI. Luciana Hidalgo

Luciana Hidalgo é jornalista e escritora. Nasceu no Rio de Janeiro, em


1965. Doutora em Literatura Comparada (UERJ), com pós-doutorado na
Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris III, na França. Lançou, em 1996, a
biografia Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto (Rocco), obra
contemplada com o Prêmio Jabuti e adaptada para o cinema em filme
homônimo a ser lançado em 2014. É também autora do livro Literatura da
urgência – Lima Barreto no domínio da loucura (Annablume, 2008), premiado
com outro Jabuti em 2009, e do romance O passeador (Rocco, 2011),
contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária e finalista dos prêmios
Jabuti, Portugal Telecom e São Paulo de Literatura em 2012. Em 2016,
publicou Rio-Paris-Rio, também pela Rocco. No jornalismo, trabalhou em
cadernos culturais e literários de grandes jornais cariocas, como o “Caderno B”
do Jornal do Brasil e o “Prosa & Verso” de O Globo. Na área acadêmica, deu
aulas no Departamento de Letras da UERJ e palestras em diversas
universidades brasileiras e estrangeiras.

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção?

Como disse recentemente o próprio Serge Doubrovsky, “era uma palavra


necessária”. Embora seja um conceito polêmico por se aproximar do “romance
autobiográfico” já tão bem definido por Philippe Lejeune, acabou se tornando
um “fenômeno” em todo o mundo (segundo Philippe Forest). Gosto muito de
acompanhar toda a polêmica que o termo provoca e de ver como é utilizado
por escritores das formas mais subjetivas e fluidas. Talvez nunca se chegue a um
consenso teórico em relação à auto cção, mas o neologismo vem “avalizando”,
“autorizando”, muitos autores a se aventurar cada vez mais em ficções pessoais.

2. A criação do termo por Serge Doubrovsky (1977) provocou alguma


mudança na produção ficcional contemporânea? Como, por exemplo, um
crescimento da produção autoficcional?

Acho que sim. Talvez seja devido à potência do neologismo, ao impacto


rápido de sua composição etimológica. A soma AUTO + FICÇÃO parece
simples, mas está longe de ser exata. No entanto, escritores contemporâneos
em diversas literaturas adotam-no cada vez mais.

3. Pode-se considerar que a autoficção é um subgênero do romance?

Não considero assim. Acho que se trata de um romance como outro


qualquer, com um acento auto ccional.

4. O que demarcaria a diferença entre autobiografia e autoficção?

Em geral, a autoficção, a meu ver, tem mesmo um tom mais


contemporâneo, por vezes mais fragmentado, onde a preocupação com uma
recapitulação fiel, cronológica e “histórica” dos fatos não é importante. Autores
recorrem à memória, a eventos de suas histórias pessoais, para compor uma
ficção que, por vezes, foge muito deles mesmos; um paradoxo. E há
principalmente a questão da identidade onomástica entre autor, narrador e
protagonista. A partir do momento em que um escritor dá seu próprio nome
ao personagem principal, ele assume profundamente a auto cção,
diferenciando-a do romance autobiográ co, onde a relação autor-protagonista
podia ser, em geral, menos óbvia, mais velada.

XII. Luciene Almeida de Azevedo

Luciene Azevedo é professora de Teoría Literária da Universidade Federal da


Bahia (UFBA), vinculada ao programa de Pós-Graduação em Literatura e
Cultura. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira
e Teoria Literária, atuando principalmente nos temas: narrativa contemporânea
latino-americana, performance narrativa, cinismo e autoficção. Possui
doutorado em Literatura Comparada (2004) pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Sua tese intitula-se Estratégias para enfrentar o presente:
a performance, o segredo e a memória.

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção?

Acho que o termo, apesar da instabilidade epistemológica, é o


acontecimento mais instigante para os estudos literários, hoje, porque obriga-
nos a redefinir as fronteiras entre realidade e ficção e, portanto, a repensar o
entendimento da literatura como ficção.

2. Você acredita que a criação do neologismo por Serge Doubrovsky


(autofiction, 1977) e a discussão teórica recém chegada ao Brasil em torno
da autoficção tenha provocado alguma mudança na produção ficcional
contemporânea? Como, por exemplo, um crescimento da produção
autoficcional? E na recepção desses textos?

Acredito que ainda é muito incipiente a discussão teórica sobre o termo no


Brasil, mas os trabalhos que se arriscam na discussão da questão seguem a
mesma linha francesa, por exemplo, já que é possível encontrar as mais
diferentes interpretações e os mais controversos entendimentos sobre a
autoficção. Acho que a tendência à “volta do eu” é mundial, pois é possível
perceber um incremento significativo da narrativa autobiográfica em diversas
literaturas nacionais (basta ver a análise que Manuel Alberca faz da produção
espanhola recente). Mesmo países que não tinham tradição memorialística,
como a Noruega, se fazem notar, como o fenômeno Karl Ove, que virou best-
seller mundial. Mas acho que os próprios autores não são boa referência para a
problematização do termo (claro, nem essa é a tarefa deles). Basta ver os
comentários recentes de Ricardo Lísias sobre seus últimos romances e a
autoficção. São comentários que consideram o termo de uma perspectiva
pouco problemática, realçando apenas o senso comum.
Recentemente, recebemos, aqui na UFBA, o Assis Brasil. Ele contou que é
muito difícil propor um exercício de escrita em terceira pessoa para os alunos
das oficinas literárias dele porque todos só querem/conseguem escrever em
primeira pessoa. Achei o depoimento muito sintomático de uma espécie de
zeitgeist contemporâneo. Mesmo autores que negligenciavam o tom
“confessional” ou “autobiográfico” e eram elogiados por isso, como o próprio
Lísias recepcionado pela Perrone-Moisés, deram a sua “guinada subjetiva”. E
acho que é fácil, hoje, elencar romances recentes em vários países que brincam
com as fronteiras entre a autobiografia e a ficção, com a noção de “espaço
biográfico”, tal como discutido pela Arfuch: Houllebecq, na França; Sebald, na
Alemanha; Coetzee, na África do Sul; Philip Roth, nos Eua; Javier Cercas e
Javier Marias, na Espanha; Mário Levrero, no Uruguai; Cesar Aira, na
Argentina; Karl Ove na Noruega;
Em relação à recepção, acho que há uma fome de real, para falar como
David Shields. As pessoas querem uma proximidade maior com o núcleo duro
do sujeito, querem resgatar a representação da subjetividade, que foi
duramente castigada pelas premissas pós-estruturalistas. Se hoje não é mais
possível escamotear a certeza de que não há essências, muito menos aquelas
ligadas ao sujeito, acho que há certa demanda por recuperar alguma coisa que
não seja apenas a certeza do irrepresentável.

3. Você acredita na potencialidade do termo autoficção para designar um


novo gênero da literatura contemporânea? Ou a autoficção estaria mais
para um subgênero do romance?

Essa é uma questão que é muito difícil de responder. É possível notar, hoje,
em certa dicção crítica, a constatação de que “há certo cansaço da ficção”,
como afirma Beatriz Sarlo. David Shields, crítico americano que escreveu
Reality Hunger, defende com veemência que não dá mais para o romance no
século XXI. Acho que a categoria do gênero talvez não dê conta de abarcar a
complexidade dos elementos que estão em jogo com a autoficção, mas acredito
que ela pode fazer vacilar a caracterização do romance como forma narrativa,
sim. Enfim, acho que a discussão sobre se a autoficção pode ou não ser um
gênero e a dificuldade de responder a isso tem a ver com o fato de que essa
pergunta pede uma investigação de cunho epistemológico que envolve mais do
que a compreensão da autoficção, mas também o romance, como forma
narrativa, e a literatura como discurso.

4. Seria possível demarcar a diferença entre autobiografia e autoficção? E


entre romance autobiográfico e autoficção?

Aposto absolutamente que sim no caso da primeira pergunta. A questão dos


limites, das fronteiras também é um problema teórico para mim. Porque
embora não queira dogmaticamente voltar à defesa de uma separação estrita
entre a ficção e a realidade (se é que ainda é possível aferrar-se a essa posição,
em pleno século XXI), reluto em acreditar que tudo é autobiográfico (como
dizia De Man) ou que tudo é ficção (como defendem os pós-estruturalistas).
Essas são opções que facilitam tudo e a facilidade não é boa companheira
teórica... Eu diria que o problema maior não está na diferença entre a
autobiografia e a autoficção, mas entre a autoficção e o romance (como gênero
associado à ficção literária). A questão do romance autobiográfico também
precisa ser melhor aprofundada, porque acho que a investigação sobre o gênero
pode ajudar a pensar a autoficção. Por exemplo, o romance do Karl Ove, o
norueguês que cito em outra resposta, mais acima. Acho que há aí um bom
exemplar de romance autobiográfico para ser investigado. Seria preciso tentar
definir melhor esse termo. Mas acho sugestivo que essa nomenclatura
(“romance autobiográfico”) tenha voltado agora com a voga da autoficção, já
que a crítica e a teoria literária não investiram na especulação sobre o termo.
5. Serge Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise,
afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade
contemporânea, o que levaria um escritor a escrever sobre si mesmo
através da ficção, dos diários, cartas, etc? Seria um impulso autobiográfico
narcísico (refletido nos blogs e redes sociais) ou seria uma necessidade de
compartilhar uma dor (luto, trauma), através da linguagem literária
escrita?

Não concordo com nenhuma das duas possibilidades aventadas pela


pergunta. Não compartilho dos diagnósticos apocalípticos que veem na
autoficção uma mera exposição narcísica do sujeito, tampouco acredito que se
trate de mera questão mercadológica. É claro que o mercado tem sua parcela de
contribuição, mas não acredito que tudo se resuma à visão adorniana.
Tampouco acho que Doubrovsky seja uma boa referência para pensar o termo,
embora o tenha cunhado – a respeito disso, concordo com Gasparini. Na
opinião dele, a criatura (a autoficção) tornou-se independente do criador. A
questão da terapia pela escrita também não me agrada, mas, sobre isso, tenho
um episódio que pode ser interessante contar.
No encontro da Abralic de 2012, Diana Klinger, comentando o poema de
Carlito Azevedo, “H”, (o texto está publicado nos anais) afirmou que o
procedimento em questão ali era o da catarse, da purgação psicanalítica pela
perda da mãe. Paloma Vidal, escritora presente na audiência (e que tem um
livro autoficcional [?], Algum Lugar), repudiou com veemência essa leitura. Eu
mesma reagi, negando essa interpretação. Mas lendo o romance-diário de
Mário Levrero, La Novela Luminosa, fiquei pensando se não era um pouco
dessa operação que estava em jogo, não apenas na escrita do texto, mas
também na leitura dele. Enfim, ainda que eu tenda a rejeitar a autoficção como
“terapia”, porque me parece que isso implicaria em um utilitarismo rasteiro,
acho que a ideia pode ter relação com algo que aventei em outra resposta: uma
certa demanda (do público) por ver, reconhecer um sujeito desnudando-se,
(de)compondo-se por escrito, na frente do leitor, construindo um sujeito na
realidade das palavras.

XIII. Marcelo Mirisola

Marcelo Mirisola é escritor e bacharel em Direito. Nasceu em São Paulo,


em 1966. Autor de contos, romances, crônicas e dramaturgia, é considerado
um dos precursores da escrita autoficcional no Brasil. Dono de uma obra vasta,
publicou Fátima fez os pés para mostrar na choperia (contos, 1998), O herói
devolvido (contos, 2000), O azul do lho morto (romance, 2002), Bangalô
(romance, 2003), Joana a contragosto (romance, 2005), Notas de arrebentação
(2005), A vida não tem cura (romance, 2016), Como se me fumasse (romance,
2017), entre outros. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.

1. O que leva um escritor a escrever sobre si mesmo através da ficção, dos


diários, cartas etc?

Falta de assunto.

2. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?

Um jeito histérico de situar a coisa, colocá-la num escaninho. Seria muito


mais fácil simplesmente chamar de literatura.

3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

Dizem que Dante realmente frequentou o inferno, o purgatório e o paraíso.


Consta, se o caso é falta de provas, que Dostoiévski e Graciliano estiveram
presos. Henry Miller foi amante de Anais Nin, Machado era o fantasma de um
negro disfarçado de Brás Cubas etc. etc. Portanto, com muito boa vontade, a
tendência (se é que existe) é apenas e tão somente colocar um “eu” no lugar de
“tu, vós, eles”.

4. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Sim, o título é “Minha vida” e, o pior, terceiros a escrevem!

5. A criação do termo por Serge Doubrovsky (1977) provocou alguma


mudança na produção ficcional contemporânea? Como, por exemplo, um
crescimento da produção autoficcional?

Aproveitadores, oportunistas, surfistas e catalogadores sempre existirão.


Nada demais.
Me ocorreu mais um “dado”. Quem senta a bunda pra escrever não é o nós,
nem vós, nem o tu nem o eles, é, irrevogavelmente, o EU, ele mesmo.

XIV. Michel Laub

Michel Laub é escritor, jornalista e advogado, formado em Direito pela


UFRGS (1996). Nasceu em Porto Alegre, em 1973. Foi editor-chefe da revista
Bravo e coordenador de publicações e internet do Instituto Moreira Salles.
Atualmente, é colunista da Folha de São Paulo e da revista Vip, além de
colaborar com diversas editoras e veículos. Publicou, pela Companhia das
Letras, Música Anterior (2001), Longe da água (2004), O segundo tempo (2006),
O gato diz adeus (2009), Diário da Queda (2011), que teve os direitos vendidos
para onze países e virará filme, e A maçã envenenada (2013). Recebeu os
prêmios Bienal de Brasília (2012), Bravo Prime (2011) e Erico Verissimo
(2001) e foi finalista dos prêmios Portugal Telecom (2005, 2007 e 2012),
Zaffari&Bourbon (2005 e 2012), Jabuti (2007) e São Paulo de Literatura
(2012). Em 2016, publicou O Tribunal da quinta-feira; em 2020, Solução de
dois estados. Também tem contos publicados em antologias no Brasil e no
exterior. É um dos integrantes da edição Os melhores jovens escritores brasileiros,
da revista inglesa Granta.

1. O que leva um escritor a escrever sobre si mesmo através da ficção, dos


diários, cartas etc.?

Todo escritor escreve sobre si mesmo. A matéria da escrita é a memória, que


não necessariamente é a memória de coisas vividas. Só uso a palavra “casa”
porque sei o que é uma casa – já morei numa, já entrei em outras tantas, já vi
fotos e filmes e ouvi relatos a respeito –, e isso também é autobiografia. O texto
é uma tentativa de expressar o que pensamos, ou um pensamento que estamos
imitando ou a que estamos nos opondo (no caso de um narrador diverso de
nós). Ou seja, a matriz somos nós, o que pensamos, que é o que somos. Isso
tudo é o nível mais básico, óbvio mesmo. Depois vem o resto, que é
consequência: o quanto um livro guarda de relação com coisas que
“aconteceram”, considerando que tudo o que “aconteceu” é uma versão
também.

2. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?

Há mais de um uso para esse termo. Muita gente o confunde com


autobiografia. Outros dizem que é uma forma ficcional de lidar com a própria
biografia. De qualquer modo, é uma vertente extrema – talvez a extrema
oposta da pura fantasia – do espectro nascido da operação básica tratada no
item 1, sendo que não existe essa fantasia “pura”, assim como não existe
autoficção “pura”. Em resumo, acho um termo ok para facilitar a classificação
de gêneros, quem sabe até em termos comerciais, mas há um erro conceitual na
origem disso.
3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

Em termos comerciais, como falei, pode ser. Em termos conceituais, como


falei também, não.

4. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Todas, porque trabalho com a matriz da memória, na forma exposta no


item 1, com alguma ênfase em fatos objetivos – do tipo o personagem ter a
minha idade e vir da mesma cidade que eu. Mas aí entramos na questão
conceitual do item 2. Se você considerar “autoficção” o mesmo que
autobiografia, digo apenas que os principais elementos das minhas histórias –
que muitas vezes não aparecem na superfície – são 100% inventados.

XV. Ricardo Lísias

Ricardo Lísias é escritor e professor. Nasceu em São Paulo, em 1975.


Doutor em Letras – Literatura Brasileira – pela USP (2005). Colabora com
alguns veículos da imprensa, como a revista Piauí. É autor dos romances
Cobertor de Estrelas (1999, Rocco), Duas praças (2005, Globo), O Livro dos
Mandarins (2009, Alfaguara), O Céu dos Suicidas (2012, Alfaguara, vencedor
do Prêmio APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – categoria:
Melhor Romance, 2012), Divórcio (2013, Alfaguara), Inquérito policial família
Tobias (2016, Lote 42), A vista particular (2016, Alfaguara), Diário da cadeia
(2017, Record) e Diário da catástrofe brasileira: I – transição (2018). Também
publicou livro de contos e crônicas, Anna O e outras novelas (2007, Globo).

1. Qual a sua opinião sobre o termo autoficção difundido na


contemporaneidade?
Parece um termo muito usado, então talvez esteja servindo para abarcar
experiências muito diferentes. No mais das vezes, acho um termo falho.

2. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?

Não acho possível que a ficção traga “experiências pessoais do autor”. Creio
que a discussão que o termo “autoficção” traz, no mais das vezes, parece
equivocada. A “experiência pessoal” está perdida assim que ela acontece. A
literatura não reproduz a realidade, mas cria outra realidade a partir da
utilização da linguagem. Sabemos todos que a linguagem é limitada e muito
diferente da realidade, as palavras não são as coisas. Portanto, não pode haver
realidade de nenhuma ordem na ficção.
O que parece ocorrer é que, com as novas mídias, a figura do autor passou a
aparecer mais e, então, a leitura dos textos dos autores começa a ser calcada
nessa representação de sua vida pelas diferentes mídias. Ainda que o resultado
sociológico possa ser interessante, uma leitura do tipo “há experiência pessoal
aqui” é redutora do ponto de vista artístico. Estou tentando escrever, na minha
ficção, textos que induzam as pessoas a verem como elas podem se enganar
quando vão atrás da “realidade”.

3. Serge Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise,


afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade
contemporânea, o que levaria um escritor a escrever sobre si mesmo
através da ficção, dos diários, cartas etc?

Não posso responder, pois não acho possível que um texto de ficção
contenha o autor em si.

4. Você acredita que a criação do neologismo por Serge Doubrovsky


(autofiction, 1977) e a discussão teórica recém-chegada ao Brasil em torno
da autoficção tenha provocado alguma mudança na produção ficcional
contemporânea? Como, por exemplo, um crescimento da produção
autoficcional? E na recepção desses textos?

Acompanho pouco tanto a criação do termo como a recepção. Eu gosto


muito de ler textos de não-ficção, mas confesso que não acompanho a crítica
literária mais recente. Acho a definição de Doubrovsky (ao menos o trecho
reproduzido acima das perguntas nesse questionário) infeliz e equivocada,
segundo os parâmetros da filosofia desenvolvidos pelo século XX. Como eu
disse, acho que a realidade se perde assim que acontece.

5. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?

Como eu disse, acho o termo infeliz, então tenho dificuldades inclusive de


pensar nele.

XVI. Silviano Santiago

Silviano Santiago é romancista, contista, poeta, crítico literário e professor.


Nasceu em Formiga (MG), em 1936. Atualmente, mora no Rio de Janeiro
(RJ). Três vezes vencedor do Prêmio Jabuti, é autor de livros importantes como
Em liberdade, considerado um dos dez melhores romances brasileiros dos
últimos trinta anos, e Stella Manhattan, ambos temas constantes em teses de
mestrado e doutorado nas universidades brasileiras, latino-americanas e norte-
americanas. É também autor de Uma história de família (1993), Viagem ao
México (1995), De cócoras (1999), O falso mentiroso (2004), Mil rosas roubadas
(2014) – vencedor do Prêmio Oceanos 2015 –, Machado, romance (2016) –
vencedor do Prêmio Jabuti 2017. Entre os seus livros de ensaio, destacam-se:
Uma literatura nos trópicos, Nas malhas da letra e O cosmopolitismo do pobre.
Silviano é graduado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal de Minas
Gerais, doutor pela Universidade de Paris – Sorbonne. Lecionou em
universidades de renome internacional, como as de Yale, Stanford, Texas,
Indiana e Toronto. É professor aposentado de Literatura Brasileira da
Universidade Federal Fluminense. Escreve nos principais veículos da imprensa
brasileira. Vários dos seus livros encontram-se traduzidos.

1. De acordo com Luciana Hidalgo, o senhor foi um dos primeiros


escritores brasileiros a utilizar o termo autoficção para apresentar seu livro
de contos Histórias mal contadas. Noto, também, que o senhor afirma ser
O falso mentiroso uma autoficção, levando em conta as questões da
experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética. O senhor
acredita que a criação do neologismo por Serge Doubrovsky (autofiction,
1977) e a discussão teórica recém-chegada ao Brasil em torno da
autoficção tenha provocado alguma mudança na produção ficcional
contemporânea? Como, por exemplo, um crescimento da produção
autoficcional? E na recepção desses textos?

O historiador literário deve dar a uma etiqueta e seu autor o papel que eles
merecem. A etiqueta em questão, criada por Doubrovsky, e talvez utilizada por
mim pela primeira vez no Brasil, como, aliás, outras etiquetas, servem para
acentuar um traço dominante em determinada produção que requer tanto o
devido registro (daí a criação do vocábulo) quanto a devida análise (daí a
transformação do vocábulo em conceito). Quero dizer que Doubrovsky criou o
vocábulo e o conceito a fim de normatizar importante filão da literatura
modernista e contemporânea (independente de nacionalidade). Parabéns a ele.
Se por acaso você conhece minha obra crítica, terá observado que, desde o
início dos anos 1980, acentuava o fato de que grande parte da ficção
modernista brasileira tinha sido escrita numa mescla de escrita autobiográfica e
escrita ficcional. [Consultar na minha própria produção:
http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D10_Vale_quanto_pe
sa.pdf] Dava exemplos contundentes. Por exemplo, o fato de Lins do Rego ter
escrito Menino de engenho e também publicado, ao final da carreira, um
repeteco da trama, Meus verdes anos, agora considerando o volume como de
memória. O mesmo acontece – e paro por aqui os exemplos – com Oswald de
Andrade. Compare Memórias sentimentais de João Miramar (ficção) e Sob as
ordens de mamãe (autobiografia).
Com isso, estou querendo dizer que qualquer etiqueta – e autoficção é uma
delas – merece por parte do crítico universitário um trabalho de arqueologia,
para retomar o trabalho de investigação posto à nossa disposição por Michel
Foucault. Encantar-se com uma etiqueta não é sinal de maturidade crítica. O
sinal de atualidade vem da acoplagem da pesquisa tanto ao universo da
produção contemporânea quanto ao universo da produção que a precede de
anos, décadas ou séculos.
Nesse sentido, o livro de Vincent Colonna, Auto ction & autres
mythomanies littéraires, é tão importante para o pós-graduando quanto as
observações críticas de Doubrovsky.

2. O senhor, enquanto professor, crítico e teórico literário é altamente


consciente do seu fazer literário e utiliza o romance O falso mentiroso
como espaço para jogar linguisticamente com as noções pertinentes a todo
debate em torno do conceito de autoficção – falso/verdadeiro;
mentira/verdade; real/imaginário; ficção/realidade; incerteza;
identidade(s); fragmentação do sujeito; autorreferência; metaficção; etc. É
interessante saber que a descoberta do termo doubrovskyano pelo senhor
é posterior à escrita do seu romance, levando em consideração que o
próprio Doubrovsky afirma, depois de aberta a discussão, que ele é o
criador do termo e não da “coisa”. Eu arriscaria dizer que O falso
mentiroso funciona como uma “meta-auto-ficção”, pela presença, no texto,
de uma reflexão profunda de todas essas noções pertinentes à prática da
autoficção. Seria isso mesmo? Num dos capítulos da minha tese, eu utilizo
a expressão “o jogo autoficcional em O falso mentiroso”. Posso considerá-
lo um jogo, uma brincadeira com o leitor, ou, até mesmo, uma
provocação à moda machadiana?

Terei talvez de me repetir, alertando-a para o fato de que na minha


produção propriamente ficcional seria importante que se compreendesse o
papel deflagrador do romance Em liberdade, publicado em 1980, onde todos os
jogos textuais, retóricos e filosóficos citados acima já estão sendo acionados de
maneira bem pouco convencional. Ana Maria Bulhões de Carvalho, em tese
defendida na PUC/RJ, chamou ao experimento de “alterbiografia”. Para dizer a
verdade, às vezes gosto mais do conceito de alterbiografia (acho-o mais rico,
isto é, mais rentável analiticamente) que o conceito de autoficção.
Se não fosse pedante da minha parte, gostaria de lhe recomendar a leitura
da tese de Ana Maria (não foi publicada, mas se encontra nos arquivos da
PUC/RJ).
Por outro lado, a discussão-teórica-sobre-o-romance dentro do romance-
que-se-escreve é uma prática comum da pós-modernidade. No meu caso,
herdei-a diretamente de André Gide e do clássico Les faux-monnayeurs que,
como sabe, foi devidamente acompanhado do Journal des Faux-Monnayeurs.
Em suma, a escrita do romance não independe – a não ser nos casos óbvios de
produção moderna comercial – da reflexão interna sobre o ato de criação.

3. Gosto muito da noção de arte apresentada em O falso mentiroso.


Percebo que a relação do narrador com a mãe contribui para o seu
conceito de arte. Com a mãe, ele aprende a arte da maquiagem, ele passa a
preferir o panqueique ao rosto limpo; a maquiagem, tal como a arte,
disfarça, esconde, renova, recria, é “mais da representação do que da
realidade”: “Passei a ser como ela. Totalmente contra a coisa real. A favor
do algo extra que você acrescenta à coisa real para que ela, sem se tornar
irreal, seja mais bonita, frajola e fofa do que já é” (Santiago, 2004, p.
141). A autoficção não seria a arte da maquiagem, do “despojar para
mostrar melhor”?
Talvez por debaixo, bem por debaixo da sua pergunta, exista um dos temas
que mais me interessa. Não se deve confundir sinceridade com ficção.
Sinceridade pode ser útil no caso de depoimentos, mas, mesmo assim, duvido
que os depoimentos sejam sinceros. Valem-se, os autores de textos sinceros, de
uma retórica da sinceridade, se me entende. Tentam impingir ao leitor – e na
maioria das vezes conseguem, porque os olhos de leitor se encantam, a priori,
com o pedido de leitura pela sinceridade – o tom sincero e, por isso,
verdadeiro. Como se a busca da verdade, na leitura, pudesse ser produto de
argumentação em palavras onde o autor quase sempre puxa a sardinha para o
próprio prato.
Nesse sentido, Machado é gênio. Veja, por exemplo, o modo como
desentranhei da sinceridade do narrador Dom Casmurro uma retórica da
verossimilhança (e não do verdadeiro, aclaro). Não foi difícil que surgisse uma
geração que lesse Capitu como adúltera (seguindo a clave estabelecida
corretamente por Flaubert), ou então como inocente (seguindo a clave
antípoda, pró-feminina). O difícil é trabalhar o jogo. O jogo entre o que, no
texto, a diz ser adúltera e o que, ali também, a diz ser inocente. Certa ficção é
criada dessa forma e requer um tipo intrometido e perspicaz de leitor.

4. O senhor acredita na potencialidade do termo autoficção para designar


um novo gênero da literatura contemporânea? Ou a autoficção estaria
mais para um subgênero do romance?

A ideia de potencialidade de algo no projeto de criação literária é qualquer


coisa de bem forte na literatura da contemporaneidade. Basta que me refira a
Oulipo (iniciais de “Ouvroir de littérature potentielle”), movimento criado nos
anos 1960 na Europa. Só que o potencial – para Queneau, Pérec, Calvino etc.
– advinha de uma contrainte que o romancista colocava a priori como
obstáculo à criação, e não de uma facilidade. Julgo que o conceito de
autoficção já está bastante usado (não digo, por favor, esgotado; repito: digo
usado) e seu potencial já pode ser medido de maneira acurada pelos jovens
críticos. Julgo também que, no momento em que determinado motivador da
criação torna-se comum, ele se torna menos eficaz.
O falso mentiroso, a que você se refere nas perguntas, pode ser enquadrado
dentro do movimento Oulipo. A ideia de autoficção encontra o seu potencial
numa escrita Oulipo, ou seja, uma que exige que se escreva um texto ficcional
sem se valer de adversativas.

5. Seria possível demarcar a diferença entre autobiografia e autoficção?

Trabalho bem fácil. Basta que você evite o jogo quando se vale das categorias
que já levantou anteriormente. Tomo a liberdade de copiá-las: falso/verdadeiro;
mentira/verdade; real/imaginário; ficção/realidade; incerteza; identidade(s);
fragmentação do sujeito. Se você coagular cada um dos elementos que estão
unidos pela barra, coibir a incerteza e a fragmentação, você imediatamente
criará um campo crítico lógico e coerente que servirá ou para definir
autobiografia ou para definir autoficção.

6. Serge Doubrovsky relaciona a escrita autoficcional com a psicanálise,


afirmando que a autoficção é uma “prática da cura”. Na nossa sociedade
contemporânea, o que levaria um escritor a escrever sobre si mesmo
através da ficção, dos diários, cartas, etc? Seria um impulso autobiográfico
narcísico (refletido nos blogs e redes sociais) ou seria uma necessidade de
compartilhar uma dor (luto, trauma), através da linguagem literária
escrita?

Gosto da curiosidade psicanalítica despertada em Serge por Doubrovsky.


Esses desdobramentos são sempre bem legais e ricos. O crítico bem aparelhado
teoricamente conversa com o criador um tanto curioso sobre o sujeito que
existe nele e é carente. Mas não sei se eles seriam passíveis de reprodução no
processo de explicação dos muitos que se exercitam nisto a que estamos
chamando de autoficção. As observações críticas de Doubrovsky são úteis, mas
não são exemplares, se me faço entender.
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Sobre a autora

Anna Faedrich é docente de Literatura Brasileira na Universidade Federal


Fluminense (UFF), em Niterói, Rio de Janeiro. Licenciada em Letras e
especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS, 2006 e 2008), obteve seus títulos de mestre e de doutor em
Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS, 2010 e 2014). Sua experiência profissional abrange o ensino
Médio (CAp-UERJ) e ensino Superior (UERJ, UFRRJ, UNIRIO e UFF).
Coordena o projeto de pesquisa “Literatura de autoria feminina na belle
époque brasileira: memória, esquecimento e repertórios de exclusão”.
Organizou, em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional, as reedições do
romance Exaltação (1916), de Albertina Bertha; do livro de poesia Nebulosas
(1872), de Narcisa Amália; e da coletânea de crônicas Dois dedos de prosa: o
cotidiano carioca por Júlia Lopes de Almeida. Tem pesquisa sobre escritoras
brasileiras oitocentistas e sobre o conceito teórico de autoficção, com foco na
literatura brasileira contemporânea.
Notas

Prefácio

1 Entrevista para revista Télérama, em 26/08/2014.


2 Seghers, Anna. Transit. Aix-en-Provence (França): Alinea, 1990.
3 Wolf, Christa. Préface. In: SEGHERS, Anna, id., p. 7-19.
4 Semprun, J. A escrita ou a vida. Trad. Rosa F. Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 22-3.
5 Cerquiglini, Blanche “Le roman d’aujourd’ hui”. In: Tadié, Jean-Yves & Cerquiglini, Blanche. Le roman
d’hier à demain. Paris: Gallimard, 2012. p. 277-454.
6 Burgelin, Claude. “Pour l’ Autofiction”. In: Burgelin, C.; Grell, I.; Roche, R-Y. Auto ction(s). Colloque
de Cerisy, 2008. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2010. p. 5-21.

Apresentação

1 La surexposition du terme d’auto ction, au lieu de conduire à l’éclaircissement d’un nouveau champ
littéraire, n’a fait que l’obscurcir (Saveau, 2011, p. 13).
2 Que, de resto, incorre no mesmo problema que critica, ou seja, seu artigo extenso e hermético não
contribui para minorar o problema.
3 Expressão utilizada por Evando Nascimento (2010, p. 190).
4 tese defendida em 2014, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com
orientação da professora Drª. Ana Maria Lisboa, e coorientação da professora Drª. Jacqueline Penjon
(Sorbonne Nouvelle – Paris 3): Auto cções: do conceito teórico à prática na literatura brasileira
contemporânea (Faedrich, 2014).
5 Ressalto o caso de Silviano Santiago que me permitiu aprimorar as questões da entrevista. O diálogo
com Santiago é extremamente enriquecedor porque ele é o autor de romances e contos que mexem
com as fronteiras entre o real e o ficcional, professor e crítico de literatura, altamente consciente do
seu fazer literário.

Por que falar de autoficção?

1 O termo foi publicado na capa de sua autoficção, Fils, em 1977.


2 Ainda que exista o termo “self-fiction”, “autofiction” tem sido amplamente adotado em língua inglesa.
Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, o termo chega tardiamente (em comparação com o
contexto francês), mas funciona para nomear boa parte da literatura americana contemporânea. Nesse
sentido, recomendo o trabalho da professora Dra. Marjorie Worthington, de Eastern Ilinois University
(EIU), sobre a autoficção no contexto americano. Ver em Referências.
3 Le terme ‘auto ction’ a connu un succès étonnant. Quels que soient les reproches qu’on a pu lui faire, et certes
il y a eu des abus et des malversations, ce terme, conçu pour mon usage personnel, est devenu courant non
seulement en France, où il est entre dans les dictionnaires Larousse et Robert, mais, à ma connaissance, il est
aussi couramment employé en anglais, allemand, espagnol, portugais, italien, voire polonais. J’ai même
appris avec étonnement qu’il y avait eu un colloque sur l’auto ction française à l’université de Téhéran.
4 D’une part, le je du récit peut renvoyer directement à l’auteur, lequel, se confondant avec l’instance du
narrateur, cherche à faire, en toute sincérité, le récit de ss vie. À cet ensemble textuel, dont la valeur
principale est l’authenticité, se rattachent des hypogenres tels que l’autobiographie, les mémoires, le journal
intime, etc. D’autre part, le je peut évoquer un individu absolument ctif, qui n’a de la vérité que
l’apparence. Nous sommes alors dans l’univers du roman – même si ce dernier reprend les structures de
l’autobiographie, des mémoires ou d’autres écrits intimes réels. Mais, entre ces deux mondes, le fosse est loin
d’être infranchissable. Et nous serons amené à montrer que quantité d’écrivains, d’André Breton à Serge
Doubrovsky, ou de Pierre Loti à Jean Genet, explorent, par un usage singulier de la première personne, les
limites fugitives de la réalité et de l’imagination.
5 As entrevistas disponíveis no apêndice deste livro foram publicadas originalmente na minha tese de
Doutorado; Auto cções: da teoria à prática na literatura brasileira contemporânea (Faedrich, 2014), com
algumas exceções.
6 Doubrovsky se reconheceu como o criador do “termo” e não da “prática literária”, embora esta tenha
recebido novos adeptos nas últimas décadas e tenha sido decisiva para demandar um conceito que
recortasse.
7 Prêmio Jabuti de Melhor Romance (2016), A resistência é um livro híbrido, mescla de fato e ficção,
narrado por Sebastián, que rememora a própria história familiar – a fuga dos pais militantes contra a
ditadura militar argentina, o exílio no Brasil, assim como o delicado processo de busca pelo narrador
do irmão adotado. A resistência vivida e necessária nos anos de chumbo de 1970, presente no livro, é
também a resistência de hoje, face à atual ruptura de uma institucionalidade democrática no Brasil,
conforme Fuks afirmou em diversas entrevistas.
8 Esse aspecto da autoficção relacionado ao conceito de extimidade será analisado com maior cuidado no
capítulo sobre os perigos da autoficção.
9 Outras autoficções brasileiras marcadas pelo discurso metaficcional e presença performática do autor
são Ribamar, de José Castello (2010); Antiterapias, de Jacques Fux (2012); e A chave de casa, de
Tatiana Salem Levy (2007).
10 Santiago, 2004, p. 20 (sempre que citações breves do romance aparecerem no corpo do texto, a
referência será feita em nota de rodapé para não interromper a leitura).
11 Id., p. 176.
12 Id., p. 18, grifo meu.
13 Id., p. 106.
14 Id., p. 182.
15 Santiago, 2004, p. 141.
16 Santiago, 2004, p. 180.
17 Expressão utilizada por Camille Renard (2010), em “Neuroses do indivíduo contemporâneo e escrita
autoficcional: o caso Fils”.

Autoficção: um centro, uns arredores, umas fronteiras

1 Trabalho de equipe realizado pelos geneticistas Arnoud Genon, Isabelle Grell e Philippe Weigel. Serge
Doubrovsky: comment ‘Le Monstre’ devint Fils. Disponível em:
http://www.everyoneweb.com/doubrovskymanuscrit.com/. Acesso em: 24 maio 2012.
2 Existe uma variação nas afirmações acerca do número de páginas manuscritas de Le Monstre. Para
Pierre-Alexandre Sicard, trata-se de 9 mil páginas; para a editora Grasset e para a pesquisadora e
especialista Dr. Luciana Persice Nogueira (2015) são 3 mil folhas. Pelos relatos de Arnoud Genon
(2007), um dos membros da equipe de geneticistas que trabalhou com o manuscrito, o número de
páginas varia porque Doubrovsky foi encontrando novas páginas e entregando para a equipe. A equipe
começou com 2599 folhas, depois Doubrovsky entregou mais 1500. À época, esses textos foram
recusados pela editora francesa Grasset. Depois de muitos recortes, um pouco mais de quatrocentas
originaram a autofição Fils publicada em 1977.
3 O ITEM é o “Instituto de Textos e Manuscritos Modernos”, dirigido por Pierre-Marc de Biasi, que se
consagra ao estudo dos manuscritos dos escritores para elucidar o processo da gênese. Disponível em:
http://www.item.ens.fr/. Acesso em: 24 maio 2012.
4 Jean-Louis Jeanelle considera que essa retificação, isto é, a passagem do prefácio ao manuscrito, é de
“grande alcance simbólico”, pois “propõe substituir uma perspectiva determinada pela recepção dos
textos e pelos efeitos de leitura esperados por uma perspectiva mais atenta aos mecanismos de
produção” (Jeanelle, 2014, p. 157). Para o crítico, esse é um elemento que modifica toda a narrativa
da origem do termo/conceito da autoficção, uma vez que a autoficção surgiu “durante o próprio
processo de composição de Fils” e não mais na quarta capa “com o objetivo de apresentar a um leitor
apressado as grandes linhas do texto que ele ainda não conhece” (p. 156).
5 Lejeune levanta, nesse momento, a reflexão sobre questões elementares, mas que considerava
fundamentais: “O que é uma autobiografia? Como ela se diferencia de um romance, de um diário
íntimo, de memórias? Desde quando ela existe? Por que existem tantos discursos a favor, e, sobretudo,
tantos discursos contra? É ruim recontar a vida? É possível recontá-la?” (Lejeune, [1971] 2010, p. 7).
6 Concepção de arte dos Formalistas Russos, escola literária conhedida como crítica formalista, com vida
breve na Rússia, de 1910 a 1930. Os formalistas acreditavam na especificidade da literatura e na
função poética da linguagem. Boris Eikenbaum, Yuri Tynianov e Vitor Chklovski (entre outros) eram
estudiosos ligados ao Círculo Linguístico de Moscou, que fundaram a OPOIAZ (Obscestvo izucenija
Poeticeskogo Jazyka), Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética, em São Petersburgo. Para
consultar considerações sobre a função da arte para os formalistas, três ensaios do livro Teoria da
literatura: formalistas russos (Toledo, 1973) são fundamentais: “A teoria do método formal”, de
Eikhenbaum; “Da evolução literária”, de Tynianov, e “A arte como procedimento”, de Chklovski.
7 Na definição de literatura, é imprescindível considerar a autoridade do autor, ou seja, quem está
autorizado a falar, quem pode escrever literatura, quem tem espaço para “dizer sobre si e sobre o
mundo, de se fazer visível dentro dele” (Dalcastagné, 2012, p. 8). Esse é um espaço em disputa,
território contestado, conforme denominação de Regina Dalcastagné, onde as minorias permanecem
silenciadas. Definir o que é literatura é, portanto, uma questão de poder, de definir os critérios que
conferem legitimidade e capital simbólico para definr as fronteiras do campo literário. Ao fazê-lo,
operam-se também exclusões, que inevitavelmente têm um componente de arbitrariedade.
8 Dois exemplos recentes para pensarmos a efemeridade do conceito de literatura, bem como de suas
diferentes concepções, foram (1) o Prêmio Nobel de Literatura 2016 ter sido concedido a um músico,
Bob Dylan; e (2) a polêmica acerca da obra de Carolina Maria de Jesus, homenageada pela Academia
Carioca de Letras, não ter sido considerada como literatura por um de seus acadêmicos. Não entrarei,
aqui, no mérito da questão para não desviar o foco deste livro, mas fica posta a complexidade do
assunto, gerador de muitas polêmicas.
9 Termo utilizado por Beatriz Sarlo em Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva, 2007.
10 Philippe Lejeune nasceu no dia 13 de agosto de 1938. Foi professor de literatura francesa na Université
Paris-Nord (Villetaneuse), de 1972 a 2004, e membro do Institut Universitaire de France. Cofundador
da Association pour l’Autobiographie et le Patrimoine Autobiographique (APA), criada em 1992. A
associação funciona até hoje, promovendo conferências, debates, jornadas, grupos de leitura e
pesquisa, numerosas publicações que giram em torno do tema da autobiografia. O site da APA
também está em funcionamento e atualizado: association.sitapa.org. No período de doutorado-
sanduíche em Paris (fevereiro-junho/2012), tive a oportunidade de participar dessas conferências,
comprar revistas e conhecer pessoalmente Philippe Lejeune.
11 Talvez Lejeune não partisse do zero. Um estudo relevante já tinha sido realizado anteriormente por
Georges Gusdorf: La Découverte de Soi (1948).
12 On a assisté à une véritable explosion de l’écriture autobiographique, et le discours critique a pris son essor:
non, aujourd’hui, on ne part plus de zero.
13 Ginzburg faz um recorte específico dentro da discussão teórica sobre autobiografia; ele trabalha com
textos que se referem a experiências de violência coletiva, em regimes autoritários e situações históricas
de opressão.
14 O uso desta obra literária é feito com o propósito de exemplificar as minhas considerações teóricas.
Não considero este livro uma autoficção.
15 Sobre os efeitos irônicos da autoficção, recomendo o texto “Fiction in the ‘Post-Truth’ Era: e Ironic
Effects of Autofiction”, de Marjorie Worthington (2017).
16 Autobiographie ? Non. C’est un privilège réservé aux importants de ce monde, au soir de leur vie et dans un
beau style. Fiction d’événements et de faits strictement réels; si l’on veut, auto ction d’avoir con é le langage
d’une aventure à l’aventure du langage, hors sagesse et hors syntaxe du roman traditionnel ou nouveau.
Rencontre, ls de mots, allitérations, assonances, dissonances, écriture d’avant ou d’après littérature,
concrète, comme on dit en musique. Ou encore, autofriction patiemment onaniste que espère faire
maintenant partager son plaisir.
17 Julien Serge Doubrovsky nasceu no dia 22 de maio de 1928, em Paris, e morreu no ano de 2017.
Escritor, crítico literário (especialista em Corneille) e professor de literatura francesa. Foi professor
honorário na New York University e, atualmente, está aposentado e de volta a Paris. Publicou obras
críticas (Corneille et la dialectique du héros, 1963; Pourquoi le nouvelle critique, 1996; La Place de la
Madeleine: écriture et fantasme chez Proust, 1974; Parcours critique, 1980; Autobiographiques: de
Corneille à Sartre, 1988; Parcours critique II, 2006) e obras literárias (Le Jour S, 1963; La Dispersion,
1969; Fils, 1977; Un amour de soi, 1982; Le livre brisé, Prix Médicins 1989; L’Après-vivre, 1994; Laissé
pour conte, Prix de l’Écrit intime 1999; Un homme de passage, 2011; La vie l’instante, 2011).
18 Neologismo de Roland Barthes para tratar da noção de uma biografia feita a partir de fragmentos, de
traços autobiográficos, repleta de vazios, de forma a convidar o leitor a criar ativamente. No capítulo
“Autoficção e a presença obsessiva do eu em O lho eterno”, retornaremos ao conceito de biografema
de forma mais detida.
19 Récit dont la matière est entièrement autobiographique, la manière entièrement ctionelle.
20 Dans l’oeuvre de Doubrovsky, ‘ ction’ n’est pas à prendre dans le sens d’inventer, mais plutôt dans le sens de
modeler, façonner.
21 La narration n’est pas une copie, elle est recréation d’une existence dans les mots, réinvention langagière par
le Je du discours de ses Moi successifs. Dès lors c’est le mode ou modèle de la narration qui façonne ‘notre’ vie.
L’autobiographie classique, selon la formule de Jean Starobinski, est la biographie d’une personne faire par
elle-même. Elle sera donc chronologique et logique, elle s’efforcera, malgré les lacunes inévitables de la
mémoire, de suivre le déroulement d’une vie en tâchant de l’éclairer par la ré exion et l’introspection.
Personnelement, j’ai favorisé une autre approche, mon mode ou modèle narratif est passé de l’HISTOIRE
au ROMAN. La conception même du sujet a changé. D’uni é à travers le récit, il est devenu brisé, morcelé,
fragmentaire, à la limite incohérent.
22 Dans mon cas particulier, l’écriture auto ctionnelle abolit la structure narrative linéaire, concasse la syntaxe
classique, lui substitue un enchaînement des mots par consonance, assonance ou dissonance, la phrase est
toujours guidée, construite en une succion de paronymes, des virgules, des points, des blancs, disparition
parfois de toute syntaxe, des associations de mots comme il y a des associations libres en psychanalyse.
L’écriture tente de rendre la fragmentation, la brisure du moi, l’impossibilité de le retrouver dans une belle
unité harmonieuse. Dans ce surgissement inattendu de mots et de pensées déconnectés se révèle une altérité
fondamentale du sujet dans la durée.
23 L’autobiographie n’est ni plus vrai, ni moins ctive, que l’auto ction. Et à son tour, l’auto ction est
nalement la forme contemporaine de l’autobiographie.
24 Conceito de Leonor Arfuch (2010) entendido como a confluência de múltiplas formas, gêneros e
horizontes de expectativa. Arfuch pretende ir além da definição sumária de Lejeune para o espaço
biográfico – “reservatório das formas diversas em que as vidas se narram e circulam”. Para Arfuch, tal
definição não é suficiente para delinear um campo conceitual. Ela pretende ir além da busca de
exemplos para dar conta da ênfase biográfica que caracteriza o mundo atual (Arfuch, 2010, p. 58-59).
25 [...] sous l’apparence d’une continuité du je, des brisures absolues.
26 les ruptures absolues entre ce que j’étais au présent à diverses époques de ma vie.
27 On ne meurt pas qu’une fois, dans une vie il y a plusieurs morts don’t la mort n’est que la dernière. / Je suis
toujours au présent, mais ce présent a chu dans le néant.
28 No III Seminário Caminhos da Literatura Brasileira, realizado na UFF, em agosto de 2014.
29 Un curieux tourniquet s’instaure alors: fausse ction, qui est histoire d’une vraie vie, le texte, de par le
mouvement de son écriture, se déloge instantanément du registre patenté du réel. Ni autobiographie ni
roman, donc, au sens strict, il fonctionne dans l’entre-deux, en un renvoi incessant, en un lieu impossible et
insaisissable ailleurs que dans l’opération du texte. Texte/vie: le texte, à son tour, opère dans une vie, non
dans le vide.
30 Expressão proposta por Hélène Jaccomard em Lecteur et lecture dans l’autobiographie française
contemporaine: Violette Leduc, Françoise d’Eaubonne, Serge Doubrovsky, Marguerite Yourcenar (1993).
Neste livro, Jaccomard apresenta uma “poética do leitor” a partir da análise de textos que borram as
fronteiras da concepção de autobiografia como confissão. O termo utilizado pela estudiosa é “le pacte
oxymoronique”.
31 [...] néglige tous les textes littéraires qui s’inscrevent aux frontières de l’autobiographie et du roman, qui
entremêlent différents genres, qui transposent la vie en roman et qui reposent justement sur la dialectique du
vrai et du faux.
32 [...] laisse au lecteur l’initiative et l’ocasion de décider par lui-même du degré de véracité du texte qu’il
traverse.
33 Manuel Alberca, professor da Universidade de Málaga (Espanha), publicou o livro El pacto ambíguo:
de la novela autobiográ ca a la auto cción, em Madri, 2007. Trata-se de uma obra de grande fôlego,
que permite uma complexa reflexão teórico-crítica sobre o conceito de autoficção e a sua relação com
a literatura de língua espanhola.

O impulso autoficcional

1 Uma das versões mais antigas e mais conhecidas do mito de Narciso encontra-se no livro III, de
Metamorfoses, de Ovídio (43 a. C. – 16 d. C.), célebre obra do poeta latino, considerada a
“enciclopédia da mitologia clássica”, escrita no século I, entre os anos 2 e 8. Existem, vale lembrar,
outros três registros literários do mito, que são as versões de Cânon, Filóstrato e Pausânias, com as
quais não pretendo trabalhar.
2 […] il contemple d’un regard insatiable l’image mensongère. Il meurt, victime de ses propres yeux.
Légèrement soulevé et tendant ses bras vers les arbres qui l’entourent (Ovídio, 1992, p. 121).
3 [...] une infralittérature narcissique, sans esthétique et moralment suspecte.
4 le récit de vie d’une personne fait par elle-même, la mise en scène d’un ego épris de sa personalité.
5 se victimiser, établir un plaidoyer pro domo sua, se morfondre dans une nostalgie régressive et dans le souvenir
d’une situation antérieure paradisiaque, ou bien, revendiquer l’estime de soi, se contempler, se peindre
complaisamment non comme on se voit mais comme on veut se voir en adaptant son image à la personne
idéale que l’on souhaiterait devenir.
6 [...] ne pas parler de soi, s’occulter en tant qu’énonciateur dans le texte pour laisser le soin à son éloquence non
de dire ce que je suis, mais de dire, par le niveau même du langage que j’emploie, ce que je vaux, et de
majorer ainsi le moi créateur de discours (le stylisme peut être interpreté comme la dissolution du moi en un
pur esthétisme narcissique); la modestie étant, comme on le sait, l’art d’être loué deux fois, une autre forme
consiste à faire dire aux autres l’estime qu’ils ont de moi et à se faire un simple transcripteur de l’éloge; en n,
se peindre dans une posture honori que, exagérer sa générosité, sa tolérance, sa bienveillance ou son
empathie à l’égard d’autrui pour rechercher la atterie et donner de soi l’image d’un individu admirable,
aimable, dont la singulière perfection embrasserait le projet de construire sa legende préposthume.
7 Em seu recente livro, Mutações da literatura no século XXI (2016), Leyla Perrone-Moisés dedica um
capítulo à autoficção, intitulado “A autoficção e os limites do eu”, no qual conclui que “as autoficções
literárias se dividem em duas categorias: aquelas que são apenas escritas do eu, sem se abrir para o
leitor; e aquelas que são trabalho de linguagem, imaginativo e não imaginário. O eu é sempre o herói
das autoficções; mas elas podem ser apenas o cultivo narcisista do eu, obras de autoexibição, de
autojustificação, de ressentimento ou de vingança, sem nenhuma sublimação artística, isto é,
nenhuma imaginação, nenhuma invenção e nenhuma autocrítica. Nesse caso, elas só interessam ao
próprio autor e são tediosas para os outros” (Perrone-Moisés, 2016, p. 219). Na teoria francesa,
Philippe Vilain é o autor de análise similar e anterior, publicada em Défense de Narcisse (2005), que
não é citado no livro.
8 Trata-se do projeto de pesquisa “Espaços circunscritos e subjetividade: estudo sobre a formação do
romance de introspecção no Brasil”, coordenado por Ana Maria Lisboa de Mello, na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010-2014).
9 Termo cunhado por Williams James para descrever a forma de como se apresenta consciência por si
mesma.
10 Psiconarração é o neologismo criado pela teórica norte-americana Dorrit Cohn para tratar da escrita
intimista num contexto de terceira pessoa. O leitor aproxima-se da consciência narrada por meio da
análise do narrador, ou seja, conforme Cohn, através da inspeção. Tal definição encontra-se no livro
Transparent minds (1978), em que a autora mostra as técnicas utilizadas, no âmbito da narratologia,
para “transparecer a mente” da personagem.
11 Pode acontecer, também, na literatura de introspecção, que é mais abrangente que a escrita
confessional, a possibilidade de narrativas em terceira pessoa, nas quais o eu que narra não é o eu que
age. Podemos observar os romances de Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e
Perto do coração selvagem, em que o narrador de fora, em terceira pessoa, aproxima-se da personagem
numa relação tênue, dificultando a diferenciação entre ambos (narrador e personagem), pois o
narrador se apaga para dar espaço à personagem e, muitas vezes, adota a sua linguagem, fundindo-se
com a consciência narrada.
12 Para aqueles que consideram “tudo como ficção”, este esforço de distinção e classificação seria estéril
por não haver diferença real entre o autor e a personagem fictícia. Afinal, argumenta-se, por mais que
o autor revele seu desejo de falar sobre si, como no caso da autobiografia, presume-se que tudo é
criação e que tudo “foge ao autor”.
13 Croire que l’écriture autobiographique possède la fonction magique de sauver de l’oubli son passe, de se
connaître, de se retrouver dans l’univers du langage, de se remplacer et de se transformer en un objet
littéraire transcendant, paraîtra, en effet, éminemment dérisoire, puisque la littérature ne permet jamais de
retrouver de soi qu’une image imparfaite, un fantôme, une ombre, et puisque son ambition, quasi
sisyphéenne, condamne d’emblée son auteur à demeurer dans l’inconsolation permanente.
14 Il ne s’agit plus de trouver le moi, mais d’essayer, à la manière de Montaigne, de le trouver, seulement de
rechercher ce moi perdu dans le temps, comme si seule cette tentative intéressait.
15 Le désir de se connaître, de s’identi er à une image de soi, motive le plus souvent l’écriture
autobiographique, mais il n’est pas certain qu’une telle motivation puisse relever d’un pur exercice de
contemplation, car si nous pouvons contempler de l’extérieur ce que nous ne connaissons pas, nous
apprécions toujours mieux la contemplation de tout ce dont nous avons une connaissance intime et de tout
de que nous pouvons clairement identi er.
16 [...] si le soi est du côté de la xité, de l’image, de l’achevé, du stéréotype, le moi est ouvert au jeu, à
l’indécidable, à l’inachevé, ao biographème. Il y aurait comme deux aspects du moi (je n’ose pas parler ici du
sujet), le moi et le soi.
17 Dans mon salon j’ai étalé sur la commode des photos de ce que j’appelle moi aux différentes phases de ma
vie. Ce que je vois de moi est à chaque fois un autre, ‘je est un autre’ selon la formule célèbre de Rimbaud,
Je, qui n’existe qu’en un pur présent et qui pour moi ne peut jamais s’écrire qu’au présent (réel et ctif ), ne
peut plus s’identi er à la diversité de ses moi passés.
18 França – Le ls du printemps; Holanda – Eeuwig kind; Itália – Bambino per sempre; Portugal – O lho
eterno; Espanha – Ed. catalã: El ll etern; Austrália e Nova Zelândia – e eternal son. Na França, o
título foi traduzido para Le ls du Printemps (O lho da primavera). Já existia uma autoficção
intitulada L’enfant éternel, anterior à de Tezza, escrita pelo francês Philippe Forest (1962, Paris). Em
L’enfant éternel, publicado em 1997, Forest narra em primeira pessoa a história triste e delicada da
morte de sua filha Pauline, com câncer, aos quatro anos de idade. Na última página da autoficção,
Forest afirma que fez da sua filha um “ser de papel”, transformando suas memórias em aventuras
inventadas: “J’ai fait de ma lle un être de papier. J’ai tous les soirs transformé mon bureau en un théâtre
d’encre où se jouaient encore ses aventures inventées” (Forest, 1997, p. 399).
19 A prática de escrever sobre um tema pesado e cruel já acontecia em outras literaturas. Kenzaburo Oe
(1935), japonês, escreveu a experiência de ter o primeiro filho com anomalia cerebral, em Uma questão
pessoal, romance de 1964, traduzido para o português em 2003, pela Companhia das Letras, também
escrito na terceira pessoa do discurso. O recurso de imiscuir o monólogo interior do pai no uso da
terceira pessoa, bem como a temática da autoficção de Oe, assemelha-se muito a de O lho eterno. Em
Uma questão pessoal, o pai Bird deseja a morte do filho que nasceu com uma anomalia cerebral: “Seus
passos se apertavam cada vez mais, na ânsia de receber o quanto antes o anúncio da morte do bebê.
[...] Direi que nosso bebê, morto por um ferimento recebido na cabeça, selou nossa união carnal. Algo
assim. A vida doméstica voltará à normalidade – às mesmas insatisfações, às mesmas frustrações, a
África sempre distante...” (Oe, 2003, p. 96). Tal passagem é muito semelhante à narrativa de Tezza.
20 Transcrição da entrevista on-line com Cristóvão Tezza, realizada pela Saraiva Conteúdo. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Oi8O8V2hLKY. Acesso em 17 mai 2017.
21 Nesses estudos, Ricœur mostra o caráter temporal da existência humana, bem como o mundo exibido
na obra narrativa como um mundo temporal.
22 Barthes considera, ainda, que o eu pode ficar aquém da convenção, como no caso do Proust, ou além
da convenção, como nas narrativas gidianas. Já o ele romancesco representa uma convenção
indiscutível, “signo de um pacto inteligível entre a sociedade e o autor; mas é também para este último
o primeiro meio de fazer com que o mundo se mantenha do jeito que ele quer. É mais do que uma
experiência literária, portanto: um ato humano que liga a criação à História ou à existência” (Barthes,
2004, p. 32).
23 [...] fausse ction, qui est histoire d’une vraie vie (Doubrovsky, 1988, p. 69-70).
24 Transcrição da entrevista on-line com Cristóvão Tezza, realizada pela Saraiva Conteúdo. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Oi8O8V2hLKY. Acesso em 17 mai 2017.
25 Le Point.fr, 27 mai 2013. Disponível em: http://www.lepoint.fr/ces-gens-la/l-ecrivain-christine-angot-
condamnee-pour-atteinte-a-la-vie-privee-27-05-2013-1672728_264.php. Acesso em: 28 out. 2016.
26 L’Obs, 7 out 2011. Disponível em: http://tempsreel.nouvelobs.com/le-dossier-de-l-
obs/20111007.OBS1980/histoires-d-ex-ce-livre-est-une-revanche.html. Acesso em: 28 out. 2016.
27 Le Point.fr, 25 fev 2013. Disponível em: http://www.lepoint.fr/culture/j-ai-lu-belle-et-bete-le-livre-de-
marcela-iacub-sur-dsk-25-02-2013-1632213_3.php. Acesso em: 10 nov 2016.
28 “Ecrire sur soi, c’est inévitablement écrire aussi sur les autres” (Doubrovsky, 2013).
29 O modo como o livro foi escrito e produzido é um tanto curioso, a autora escreve da forma mais
secreta possível, atenta a todos detalhes, já prevendo a repercussão polêmica de sua publicação e a
possibilidade de boicote: “O livro só chega às livrarias francesas nesta quinta, mas na quarta-feira já era
o mais encomendado no site da Amazon francesa. A obra foi escrita em total sigilo e sua produção e
distribuição parecem um romance de espionagem. Para manter o segredo, os livros foram impressos na
Alemanha e só foram transportados de caminhão para a França na quarta-feira. Trierweiler utilizou
um computador não conectado à internet para evitar vazamentos. O trabalho sai por uma pequena
editora, Les Arènes, a fim de limitar o número de pessoas envolvidas na publicação” (Fernandes,
2014).
30 Para Laub, “quem publica algo do gênero precisa assumir as consequências de suas escolhas”, senão é
querer ficar apenas com a parte boa da mamadeira.
31 A mesma identidade onomástica já aparecia em O céu dos suicidas, romance de Ricardo Lísias anterior
ao Divórcio, publicado em 2012, também pela editora Alfaguara. O estilo de escrita fluido, dividido
em pequenas partes, a identidade onomástica, o trabalho de um trauma, o tom pesado, a partilha da
dor, culpa e raiva, aproximam os dois romances autoficcionais de Lísias. No primeiro, O céu dos
suicidas, a experiência pessoal da perda do amigo André, que se enforcou, leva o escritor à trajetória
agônica de luto e desabafo. Lísias (narrador-personagem) não se conforma com o suicídio do amigo e
compartilha, por meio da escrita, seu sofrimento, o sentimento de culpa e sua resistência às verdades
estabelecidas (religiões e psiquiatria, principalmente), realizando, assim, uma espécie de luto da morte
do amigo. Nesse livro, ficção e realidade se misturam, mas o autor mantém o nome verdadeiro do
amigo André.
32 Para Jacques Lecarme, um dos problemas da autoficção é “o tratamento do nome próprio dos outros
personagens”. A ficção começaria com a mudança desses nomes próprios, de forma a poupar o autor
de problemas jurídicos (Lecarme, 2014, p. 100).
33 Lísias, 2013, p. 226, p. 189.
34 Idem, Ibidem.
35 Lísias, 2013, p. 214.
36 Resposta de Ricardo Lísias para a pergunta de Luciano Trigo: “A exposição de episódios da vida
pessoal que envolve também outras pessoas não cria uma questão ética? Como você lida com ela?”. G1
“Máquina de escrever”, 08 set. 2013. Disponível em:
http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/tag/divorcio/. Acesso em: 10 out. 2013.
37 serait donc qu’il est possible de parler, par elle, de soi-même et des autres sans aucun souci de censure.
38 Título do romance de Silviano Santiago, no qual o autor joga com as noções de ficção/realidade;
verdade/mentira; real/imaginário; etc.
39 À época de publicação, o ex-deputado federal Eduardo Cunha encontrava-se preso e condenado por
corrupção. Aguardava-se que fosse pleitear os benefícios da denominada “delação premiada”, criada
com a aprovação da lei anticorrupção, aprovada em 2013. Por meio desse mecanismo, acusados de
crimes podem ter suas penas reduzidas no caso de delatarem e comprovarem o envolvimento de outras
pessoas, bem como os mecanismos e estratégias de que se valiam os criminosos.
40 Segundo a matéria de Sérgio Luz, o escritor Ricardo Lísias e seu editor Carlos Andreazza foram
condenados a pagar 30 mil a Cunha, por indenização moral. Além disso, houve recolhimento das
cópias. Fonte: “Justiça manda recolher livro de Ricardo Lísias”, Sérgio Luz, Segundo Caderno, 16 mar.
2020, p. 6.
41 Associação composta por autores, intérpretes e herdeiros de direitos autorais sobre obras musicais e
líteromusicais, dedicada a estudar e informar aos interessados, e à população em geral, as regras, leis e
o funcionamento de associações de direito autoral, entidades e instituições relacionadas à
administração e licenciamento de direitos autorais e conexos e da indústria da música, bem como
atuar como uma plataforma profissional de atuação política e representativa na defesa e
implementação dos interesses da classe. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/procure-
saber/gloss%C3%A1rio-discuss%C3%B5es-pls-129/434470673318219. Acesso em: 26 out. 2013.
42 “Acadêmicos divulgam carta a favor das biografias não autorizadas; leia íntegra”. Folha de São Paulo.
Ilustrada. 12/11/2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1370016-
academicos-divulgam-carta-a-favor-das-biografias-nao-autorizadas-leia-integra.shtml. Acesso em 12
nov. 2013.
43 “Roberto Carlos é censor nato e hereditário’, diz Ruy Castro em festival de biografias”. Folha de São
Paulo. Ilustrada. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1372166-tese-da-
biografia-independente-ja-esta-ganha-diz-ruy-castro-em-fortaleza.shtml. Acesso em 15 nov. 2013.
44 “Biografia não é invasão de privacidade”. O Globo. Opinião. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/opiniao/biografia-nao-invasao-de-privacidade-10762406. Acesso em: 13 nov.
2013.
45 [...] il y a des choses que je ne peux pas dire, qui touchent au secret d’autrui, à sa honte. Dans ces moments-
là, je fais comme je peux. Je pense parfois qu’il existe des choses que je ne dois pas écrire, même si j’ai le droit
de le faire. Je ne sais pas tout, et je ne peux usurper la parole des autres. [...] le écrivain doit avoir une
éthique, et celle-ci est chevillée à la vérité.
46 Il est difficile de connaître les contours de sa censure intérieure. Elle dépend beaucoup de l’époque, de ce qui
est acceptable ou pensable de dire au moment où l’on écrit.
47 Lavocat lembra de exemplos remotos, como o caso de Zola: “Na França, no século XX, antes mesmo
de pronunciadas as palavras ‘autoficção’, ‘docuficção’ ou ‘faction’, são Émile Zola, Jules Verne, Anatole
France, Georges Simenon ou San-Antonio que foram julgados por ficcionalidade imperfeita ou
factualidade abusiva” (Lavocat, 2016, 281-282).
48 Anotações do Workshop Auto cciones, ministrado na PUCRS, em 2013.
49 Conforme dados obtidos no Ngram, o gráfico aponta um crescimento expressivo do uso do termo
autofiction a partir dos anos 2010. Disponível em: https://books.google.com/ngrams/graph?
content=autofiction&year_start=1977&year_end=2019&corpus=26&smoothing=3. Acesso em: 25
nov. 2020.
50 No original: “Le premier point, déjà mentionné mais essentiel selon moi, est cette impossibilité d’entretenir
deux idées génériques simultanément”, “[...] le cerveau est un organe de choix, et que choisir signi e
exclure”.
51 Schmitt também relaciona a autoficção com outro movimento literário nascido nos Estados Unidos
nos anos 1960: “faction, fusão dos termos ingleses ‘fact’ e ‘fiction’. [...] Revisitar o real com a liberdade
da ficção” (Schmitt, 2010, p. 81).
52 It stems from the altered relationship between the narrator and his protagonist when that protagonist is his
own past self. e narration of inner events is far more strongly affected by this change of person than the
narration of outer events; past thought must now be presented as remembered by the self, as well as expressed
by the self.
53 “É um abuso inadmissível assimilá-lo, como Vincent Colonna, à autofabulação, em que um sujeito,
dotado do nome do autor, inventaria para si uma existência imaginária, tal como Dante contando sua
descida ao inferno ou Cyrano seu voo em direção à lua” (Doubrovsky apud Gasparini, 2008, p. 298).
No original: C’est un abus inadmissible que de l’assimiler, comme Vincent Colonna, à l’autofabulation,
par laquelle un sujet, doté du nom de l’auteur, s’inventerait une existence imaginaire, tel Dante racontant sa
descente en enfer ou Cyrano son envol vers la lune.
54 Vale esclarecer que esse não é o caso de Altair Martins, que nunca teve sua obra associada à autoficção,
nem apresentou interesse nisso. Apenas na entrevista, Martins afirma considerar a autoficção uma
etiqueta possível para seus livros.
55 1981; vencedor do Prêmio Jabuti de Romance, em 1982.
56 Termo advindo da genética, vem de quiasma, que é um ponto de encontro entre os cromatídeos,
durante a divisão celular.
57 First of all, as concerns that obviously deliberate transformation of auto into oto, which has been in a
chiasmatic fashion today [...] we pass by way of the ear – the ear involved in any autobiographical discourse
that is still at the stage of earing oneself speak. (at is: I am telling myself my story, as Nietzsche said, here
is the story that I am telling myself; and that means I hear myself speak.) I speak myself to myself in a
certain manner, and my ear is thus immediately plugged into my discourse and my writing.
58 [...] it is the ear of the other that signs. e ear of the other says me to me and constitutes the autos of my
autobiography. When, much later, the other will have perceived with a keen-enough ear what I will have
addressed or destinated to him or her, then my signature will have taken place.
59 Rérolle, Raphaëlle. “Toute écriture de vérité déclenche les passions”. Autofiction/Dossier. Le Monde.
Vendredi 3 février 2011.
60 Termo de Elizabeth Bruss, estudiosa da questão da autobiografia a partir do modelo linguístico, que
entende a autobiografia como ato literário (e não como pacto – Lejeune).
61 Au mot autofiction, je préfère ‘écriture du soi’ (et non pas du ‘moi’, qui fait pencher du côté du narcissisme).
Le ‘soi’ transcende le ‘moi’ et doit pouvoir rejoindre quelque chose chez le lecteur. Néanmoins, ce qui
m’intéresse dans ce mot, c’est la réunion de l’autobiographie et de la ction. Cela souligne que
l’autobiographie est toujours une ction. Dès qu’on utilise des mots pour raconter sa vie, on fait entrer de
l’imaginaire, la mémoire in dèle, des procédés narratifs tels que la condensation, l’ellipse...
62 C’est un monstre informe, une sorte d’archi-genre, qui recouvre toutes les formes d’écriture du moi et met
sous la même bannière des écritures extrêmement différentes. Chaque fois que le personnage est le même que
l’auteur, on parle d’auto ction. Plus qu’une ‘ ction d’événements et de faits strictement réels’, dé nition
donnée par Serge Doubrovsky, je pense que l’auto ction est la suite du roman autobiographique, mais
transposé à notre époque, donc différent, notamment parce que la réception a changé. Avant, le roman
autobiographique cherchait surtout à dissimuler l’auteur, aujourd’hui l’auto ction sert à le dévoiler et c’est
ça qui intéresse.
63 Pour parler de mon père, de sa trajectoire sociale, ça ne marchait pas, la seule écriture juste m’a paru
être le refus de toute fiction et ce que j’ai appelé ensuite ‘autosociobiographique’ parce que je me fonde
presque toujours sur un rapport de soi à la realité sociohistorique.
64 […] that kind of ction that tries to explore the possibilities of ction; the kind of ction that challenges the
tradition that governes it; the kind of ction that constantly renews our faith in man’s imagination and not
in man’s distorted vision of reality – that reveals man’s irrationality rather than man’s rationality. is I call
SURFICTION. However, not because it imitates reality, but because it exposes the ctionality of reality.
Just as the Surrealists called that level of man’s experience that functions in the subconscious SURREALITY,
I call that level of man’s activity that reveals life as a ction SURFICTION.

Teorias francesas da autoficção

1 Il n’y a pas une forme d’auto ction, mais plusieurs, comme il existe différents mécanismes de conversion d’une
personne historique en personnage ctif.
2 Tous les composés littéraires où un écrivain s’enrole sous son nom propre (ou un dérivé indiscutable) dans une
histoire qui presente les caractéristiques de la ction, que ce soit par un contenu irréel, par une conformation
conventionnelle (le roman, la comédie) ou par un contrat passé avec le lecteur.
3 Le double projeté devient un personnage hors norme, um pur héros de ction.
4 le lecteur experimente avec l’écrivan un ‘devenir- ctionnel’, un état de dépersonnalisation, mais aussi
d’expansion et de nomadisme du Moi.
5 Grâce au mécanisme du ‘mentir-vrai’, l’auteur modele son image littéraire, la sculpte avec une liberte que la
littérature intime, liée au postulat de sincerité posé par Rousseau et reconduit par Leiris, ne permettait pas.
6 Ce peut n’être qu’une silhouette; l’important est qu’il vienne se placer dans un coin de son ouvre, qui ré échit
alors sa présence comme le ferait un miroir.
7 “[...] la transformation de l’écrivain n’a pas lieu par le truchement d’un personnage, son interprète
n’appartient pas à l’intrigue proprement dite. L’avatar de l’écrivain est un récitant, un raconteur ou un
commentateur, bref un ‘narrateur-auteur’ en marge de l’intrigue”.
8 Na minha tese de doutorado, ensaiei classificar as autoficções brasileiras, como um princípio de
trabalho arqueológico da autoficção, conforme a tipologia de Colonna. Com o amadurecimento da
pesquisa, renunciei a tal classificação e retirei os títulos deste quadro (originalmente publicado na
tese).
9 Si l’on examine l’auto ction recente, deux éléments sautent aux yeux: l’abondance de femmes qui la
pratiquent et la place qu’y ocupe le corps. Pourquoi tant de femmes et pourquoi tant de corps? Existe-t-il un
lieu entre la femme, l’auto ction et le corps?
10 [...] l’écrivain assume la triple identité auteur-narrateur-personnage et impose par le fait même le pacte de
lecture dont j’ai souligné les limites, c’est-à-dire la façon dont le livre sera lu. L’auteur, qui met en scène sa
prope personne, est à la fois sujet et objet de l’action décrite. À l’opposé, dans l’auto ction, le narrateur ou la
narratrice incarnent un personnage dont ils ne partagent pas nécessairement l’identité. Mais on sent la
plupart du temps celle-ci presente sous les mots, prête à in echir le texte dans sa direction, à l’investir de son
désir, de ses hantises et de ses préocupations. Et la part d’esquive, de dérobade ou de mysti cation que le récit
permet est sans doute comparable à celle contenue dans le postulat de vérité et d’authenticité auquel se
voyaient forcés de souscrire les autobiographes.
11 Tout écrivain projette dans son oeuvre ses fantasmes, ses pensées, son monde imaginaire et ses expériences de
vie. L’insertion des faits autobiographiques dans l’intrigue romanesque, ou créer des personnages à partir de
gens connus, n’est pas du même ordre que de se mettre en scène dans un texte sous sa prope identité. Dans
l’auto ction, l’auteur se réserve le droit de s’effacer, ou d’apparaître dans le texte avec son prénom ou même
son nom accompagné de réferences personalles: sexe, profession, vie sentimentale, lieu habité, etc.
12 Gisèle Prassinos nasceu na Constantinopla, em 26 de fevereiro de 1920, numa família de origem
grega, e emigrou para a França em 1922, por causa da guerra greco-turca (1919-1922). Também foi
poeta e tradutora. Ver: http://www.leshommessansepaules.com/auteur-Gis%C3%A8le_PRASSINOS-
555-1-1-0-1.html.
13 L’auto ction est devenue consciente. Dès lors, susceptible d’être travailée, distanciée, parodiée, elle est genre à
part entière (Richard, 2013, p. 9).
14 [...] est d’abord un dispositif très simple, soit un récit dont auteur, narrateur et protagoniste partagent la
même identité nominale et dont l’intitulé générique indique qu’il s’agit d’un roman.
15 Texto publicado em 2007 e traduzido para o português em 2014, disponível em Ensaios sobre a
auto cção, p. 127-162.
16 Le problème de cette conception dualiste est qu’elle néglige tous les textes littéraires qui s’inscrivent aux
frontières de l’autobiographie et du roman, qui entremêlent différents genres, qui transposent la vie en
roman et qui reposent justement sur la dialectique du vrai et du faux.
17 De fait, S. Doubrovsky, introduisant l’expérience analytique au sein du texte, est amené à théoriser sa
pratique littéraire, à se livrer à une analyse du fonctionnement de son écriture. L’auto ction aurait ainsi
pour caractéristique de présenter, en ligrane, une ré exion sur le statut théorique des écritures à la première
personne et de jeter la lumière sur les terroirs obscurs de la personnalité.
18 Elle est une écriture du fantasme et, à ce titre, ele met en scène le désir, plus ou moins déguisé, de son auteur
qui cherche à dire, en même temps, tous les moi qui le constituent.
19 Les interrogations identitaires sont toujours louvoyantes, obliques: comme si, nalement, on n’était jamais
soi-même que dans le mensonge – et comme si le mensonge seul pouvait nous révéler à nous-mêmes. L’espace
qui se construit autour de ce moi ambivalent est fait d’instabilité, de transitions, d’incertitudes.
20 L’un des privilèges de l’auto ction, fondé sur un « pacte oxymorique », serait donc qu’il est possible de parler,
par elle, de soi-même et des autres sans aucun souci de censure, de livrer tous les secrets d’un moi
changeant, polymorphe, et de s’affirmer libre en n d’idéologies littéraires en apparence dépasées. Elle offre à
l’écrivain l’opportunité d´expérimenter à partir de sa vie et de la mise en ction de celle-ci, d’être tout à la
fois et lui-même et un autre.
21 L’usage de la première personne permet à l’auteur d’auto ction de réévaluer ses expériences intimes, ses
habitudes.
22 Les écrits à la première personne sont donc particulièrement à même de rendre compte non seulement de la
banalité de la vie quotidienne, de la comédie sociale, de l’inconscient des jours, mais aussi de l’enfance, de la
mort, du sexe, des rêves, des mensonges à soi-même.
23 L’auteur d’auto ction brouille méthodiquement les pistes et laisse au lecteur la liberté de suivre les chemins
obscurs de l’authenticité et des chimères, de décrouvir, çà et là, des points d’emergence et de clarté de la
personnalité. L’usage de la première personne permet d’assurrer la cohérence de fantasmes, de rêves obsédants,
d’images chaotiques, de métaphores étonnantes, d’étranges sensations. [...] L’usage de la première personne
permet à l’auteur d’auto ction de réevaluer ses expériences intimes, ses habitudes. Nous avons vu que cést
sans doute parce qu’elle est l’expression de contradictions insolubles, que l’auto ction bascule
irrémédiablement dans l’imaginaire (même si, encore une fois, celui-ci peut être plus réel que la réalité elle-
même). C’est aussi parce qu’elle se situe irrémédiablement au point de jonction du rêve et de la vérité, qu’elle
est constituée d’images en mouvement, d’apparitions éphémères, de lambeaux de cauchemars.

Por um conceito de autoficção

1 Parte dessa reflexão já foi publicada em artigos e capítulo de livro.


2 L’auto ction ‘est un des phénomènes les plus massifs’ de notre période, phénomène qui a suplanté le roman
autobiographique chéri à la n du XIXe et au début du XXe siècle (Grell, 2014, p. 7).
3 “Logicamente, no final do século 19, o narrador de O Ateneu não poderia assumir o nome do autor,
nem os demais personagens teriam como exibir seus nomes próprios. Esta limitação teórica para
inscrever o romance na categoria de autoficção pode ser contornada por outras formas de assinatura da
história pessoal de Pompeia no livro” (Sanches Neto, 2015).
4 Esse tipo de afirmação por parte de Doubrovsky é tardia. Primeiramente, ele diz ter criado o conceito
de autoficção para definir a sua própria prática literária – todos os seus romances seriam
autoficcionais; inclusive, o Fils seria o primeiro exemplo do gênero. Porém, com o passar do tempo e a
repercussão do debate, o teórico francês foi flexibilizando seu discurso e relativizando suas
asseverações. Por isso, podemos, hoje, falar numa “atualização do conceito de autoficção”, tendo em
vista as mudanças no discurso do próprio criador do neologismo.
5 A afirmação aparece na entrevista concedida a Philippe Vilain, na qual Doubrovsky afirma “si j’ai
inventé le mot je n’ai absolument pas inventé la chose, qui été pratiquée avant moi par très grands
écrivains” (Vilain, 2005, p. 177).
6 Segundo Evando Nascimento, os limites entre realidade e ficção se embaralham bastante na autoficção
“sobretudo porque, frequentemente, o nome do autor, do narrador e do personagem coincidem. Por
mais paradoxal que seja, esse excesso de referencialidade é que gera o questionamento dos limites”
(Nascimento, entrevista no apêndice deste livro).
7 É interessante observar que Jacques Fux é doutor em Letras, tal como Silviano Santiago – que é
professor, crítico e teórico literário –, é altamente consciente do seu fazer literário. Ambos exercem
dupla função: atuam juntamente na prática (escrevem autoficções) e na teoria literária (são críticos do
conceito). Santiago há muito tempo vem trabalhando com essas noções fronteiriças na sua literatura e
utiliza o romance O falso mentiroso como espaço para jogar linguisticamente com as noções
pertinentes a todo debate em torno do conceito de autoficção – falso/verdadeiro; mentira/verdade;
real/imaginário; ficção/realidade; incerteza; identidade(s); fragmentação do sujeito; autorreferência;
metaficção etc.
8 Apresentei parte das reflexões em “Memórias estilhaçadas e autoficção: reiventando a escrita
autobiográfica” (Faedrich, 2019) e na jornada do CREPAL, na Sorbonne, “Raconter la vie – la mort
en vue: poétique de l’écriture de l’expérience limite”, em 2019.
9 Todas as citações estão nas entrevistas disponíveis no apêndice deste livro.
10 Auto ction, c’est la ction que j’ai décidé, en tant qu’écrivain, de me donner de moi-même et par moi-
même, en y incorporant, au sens plein du terme, l’expérience de l’analyse, non point seulement dans la
thématique, mais dans la production du texte.
11 […] à savoir les ressources du domaine consonantique substituées à l’ordre syntaxique et discursif
traditionnel, pour tenter d’élaborer non une écriture de l’inconscient (qui n’en a sans doute pas), mais pour
l’inconscient (ce que s’efforce de faire, sans bien le savoir, l’écriture analytique elle-même, depuis qu’elle
existe).
12 L’experience de la psychanalyse, possible seulement depuis Freud, est bien le premier effort ou effet de rupture
par rapport au dilemme classique d’une autoconnaissance coupée d’elle-même en sa dimension de l’autre,
puisque c’est de l’écoute de l’autre que la vérité revient (advient) dans le discours où le sujet tâche à se saisir.
13 Névroses de l’individu contemporain et écriture auto ctionnelle: le cas Fils. Renard, na época da
publicação, era doutoranda em Ciência Política na Paris II e na EHESS (École de hautes études en
sciences sociales).
14 L’écriture de la cure analytique exprimerait grâce à l’auto ction l’inconscient de l’auteur/narrateur. La
psychanalyse ayant battu en brèche la notion d’identité personnelle qui fonde traditionnellement l’écriture
du «moi», l’ambition de l’auto ction consiste à renouveler le genre autobiographique. Or tout en instituant
une écriture de l’inconscient, «postanalytique», Doubrovsky tient un discours sur la portée socio-culturelle de
son œuvre. L’auto ction littéraire révèlerait les évolutions d’un individu contemporain à l’identité
équivoque.
15 Termo alemão que significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. O Zeitgeist
significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as
características genéricas de um determinado período/tempo.
16 L’esprit du temps est le produit aussi bien d’un genre littéraire informé par les mutations sociales que des
mutations sociales informées par la production littéraire.
17 Régine Robin, filha de judeus poloneses, nasceu em Paris, em 1939. Em 1977, emigrou para o
Canadá, onde passou a lecionar na Université du Québec à Montréal (UQAM).
18 Eurídice Figueiredo (2013, p. 180) traz à luz a distinção entre o conceito de judeidade, judaísmo e
judaicidade, proposta pelo escritor franco-tunisiano-judeu Albert Memmi, em 1962: “a judeidade
(juidéité) é o fato e a maneira de ser judeu; o judaísmo (judaïsme) é o conjunto de doutrinas e
instituições judaicas; a judaicidade (judaïcité) é o conjunto de pessoas judias (Memmi: 1962, 29)”.
19 La plupart des écrivains et artistes de mon corpus sont des écrivains juifs, cela n’en fait pas pour autant un
livre uniquement concerné par l’identité juive, même se ce problème est au coeur de ma ré exion. Dans les
tissages noués autour de l’identité narrative, en effet, il y a quelque chose qui touche à l’identité juive, à cette
judéité qui habite et vient hanter la plupart des auteurs de mon ouvrage.
20 No folclore judaico, o golem (‫ )גולם‬é uma figura artificialmente construída em forma de ser humano,
dotada de vida. A palavra golem pode significar também “tolo”, “imbecil” ou “estúpido”. O nome é
uma derivação da palavra gelem (‫)גלם‬, que significa “matéria-prima”. Fonte: Academic Dictionaries
and Encyclopedias. Disponível em: http://universalium.academic.ru/121359/golem. Acesso em: 20
nov 2013.
21 Quand il lui mettait dans la bouche ou à la place du couer (selon les diferentes versions) Emeth (la vérité)
ou um des noms de Dieu qu’in peut écrire et prononcer, la statue se présentait comme um être vivant [...].
22 Mais la littérature n’en est pas restée là. On a fait du Golem celui qui secourait le ghetto dans les moments
de danger, celui qui suivait les passants suspects, un surhomme qui, grâce à ses formules cabalistiques, venait
à bout de toutes les menaces et de tous les dangers.
23 Quelle est alors la spéci cité de l’inscription de la judéité dans ces dispositifs auto ctionnels?
24 [...] faire quelque chose d’à part’, d’éthinique, de distinctif.
25 A primeira publicação de Maus: a survivor’s tale – my father bleeds history, volume I, foi em 1973; e
Maus: a survivor’s tale – and here my troubles began, volume II, em 1986. e Complete Maus foi
publicado, pela primeira vez, em 1996 (Pantheon Books).
26 Utilizaremos, aqui, as respostas dos entrevistados. Todas estão disponíveis no apêndice do livro.
27 Associação Brasileira de Literatura Comparada.
28 Conferência disponibilizada pela Bibliothèque Francophone Multimédia de Limoges. Disponível em:
https://www.dailymotion.com/video/x44op6y. Acesso em: 26 jun. 2020.
29 Em conversa com Günter Lorenz (1991).
30 Texte autobiographique et littéraire présentant de nombreux traits d’oralité, d´innovation formelle, de
complexité narrative, de fragmentation, d’altérité, de disparate et d’autocommentaire qui tendent à
problématiser le rapport entre l’écriture et l’expérience.

Apêndice
1 Fonte: www.adrianalisboa.com/biografia.
2 Entrevista disponível em http://www.lepoint.fr/grands-entretiens/serge-doubrovsky-ecrire-sur-soi-c-est-
ecrire-sur-les-autres-22-02-2011-1298292_326.php.

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