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Maria Cristina Cardoso Ribas
Tania Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
Anibal Francisco Alves Bragança (EdUFF)
Anna Faedrich
Teorias da autoficção
Rio de Janeiro
2022
Copyright © 2022, EdUERJ.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É
proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer meios, sem
autorização expressa da editora.
EdUERJ
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
ISBN 978-65-87949-61-1
1. Literatura – História e crítica – Teoria, etc. 2. Ficção autobiográfica. 3. Análise
do discurso literário. I. Título.
CDU 82
Lista de figuras
Lista de quadros
Prefácio
Introdução
O impulso autoficcional
Mito de Narciso: o show do eu na sociedade do espetáculo
Autoficção e a presença obsessiva do eu em O filho eterno
O perigo da autoficção
O caso Divórcio
Quem tem medo da autoficção?
Apêndice
Recepção do termo autoficção no Brasil: entrevistas com autores e críticos
literários
I. Adriana Lisboa
II. Altair Martins
III. Ana Cláudia Viegas
IV. Ana Letícia Leal
V. Cristovão Tezza
VI. Eurídice Figueiredo
VII. Evando Nascimento
VIII. Gustavo Bernardo
IX. Jacques Fux
X. Jovita Maria Gerheim Noronha
XI. Luciana Hidalgo
XII. Luciene Almeida de Azevedo
XIII. Marcelo Mirisola
XIV. Michel Laub
XV. Ricardo Lísias
XVI. Silviano Santiago
Referências
Sobre a autora
Lista de figuras
Lista de quadros
Como indica a epígrafe de Saveau (2011), o termo auto cção está, hoje,
disseminado no campo literário e artístico, mas é empregado com diversas
conotações que, quando cotejadas, indicam incoerência ou confusão
conceitual. A carência de debate teórico estruturado sobre o tema e sobre o
conceito alimenta a “recepção problemática”, na denominação de Mounir
Laouyen (1999).2
Se na França, lugar de origem do neologismo, o debate ocupa espaço
privilegiado há algumas décadas, no Brasil ainda restam alguns pontos teóricos
que merecem maior atenção e amadurecimento crítico.
Teorias da auto cção analisa o extenso e conflituoso percurso teórico da
autoficção. Conhecer esse percurso ajuda a compreender a natureza da
imprecisão conceitual e a polissemia a que o termo autoficção está sujeito.
Há mais de quarenta anos iniciou-se um debate estimulado pela provocação
de Serge Doubrovsky (Fils, 1977) aos estudos de Philippe Lejeune sobre a
autobiografia (Le pacte autobiographique, 1975). O que à primeira vista seria
um termo a designar uma mera combinação de autobiografia com ficção (auto
+ ficção), na verdade encerra uma complexidade digna de análise mais detida.
Neste livro, proponho precisar o conceito de autoficção, após discutir a
trajetória das apropriações, dos usos (e abusos) do termo doubrovskyano, desde
a sua criação. Adoto o seguinte percurso: analiso a origem do termo na França
e o “ciclo de provocações sem fim”3 entre os conterrâneos Doubrovsky e
Lejeune; o debate teórico subsequente sobre o conceito de autoficção, realizado
predominantemente em língua francesa; as divergências teóricas entre as
diferentes “escolas” da autoficção (Serge Doubrovsky, Vincent Colonna, Gérard
Genette, Jacques Lecarme, Philippe Gasparini, Philippe Vilain, Jean-Louis
Jeanelle, Régine Robin, entre outros); os estudos críticos sobre o tema
realizados no Brasil, por escritores e pesquisadores de literatura íntima.
Considero fundamental apresentar e valorizar a crítica brasileira de autoficção,
justamente por perceber que alguns de nossos pares nas Letras acabam, de
forma equivocada – e aparentemente deliberada –, ignorando os estudos já
realizados no Brasil, estudos relevantes e pioneiros no tema, em prol da crítica
francesa ou qualquer outra estrangeira. Por não concordar com essa prática de
menosprezo do material produzido no Brasil, faço questão de abrir espaço para
apresentar os principais argumentos publicados no País.
Este livro é uma versão bastante modificada de minha tese de doutorado.4 A
principal alteração é a inclusão de um novo capítulo – “Por um conceito de
autoficção” –, além de novas seções e reformulações ao longo do texto. Neste
novo capítulo, proponho um enquadramento conceitual do termo autoficção,
e espero que ele estimule interlocução mais fecunda entre interessados no tema.
Passados oito anos da defesa da tese, tive oportunidade de acompanhar a
continuidade do debate autoficcional e de sua recepção – agora, mais branda –,
reescrever meu texto e amadurecer as reflexões. Ressalto que este livro é uma
discussão predominantemente teórica e, portanto, os exemplos de autoficções
brasileiras são utilizados por seu valor para pensar o conceito. Não se trata de
um estudo arqueológico da autoficção no Brasil.
Ao final, apresento entrevistas realizadas com escritoras e escritores
brasileiros contemporâneos que estudam e/ou escrevem autoficção, com intuito
de analisar como o termo francês vem sendo apropriado pelos brasileiros.
Interessa-me aqui verificar a recepção do neologismo doubrovskyano em nosso
cenário literário, se há diferenças substanciais entre aqueles que escrevem
autoficção e aqueles que a estudam. As perguntas variaram um pouco para se
adaptar à diferença entre os perfis entrevistados e pela necessidade de aprimorar
o questionário à medida que conduzia a pesquisa.5 Dessa forma, o ineditismo
das entrevistas oferece ao leitor informação primária que lhe permite analisar a
recepção do termo e do conceito no Brasil, e explorar as diferenças, por
abranger escritoras/es que estão diretamente envolvidos no tema deste livro.
As traduções que realizei neste livro são livres. Os fragmentos originais
acompanham as traduções, em notas de rodapé. As traduções que não são
minhas estão explicitadas.
Agradeço ao CNPq pela bolsa integral para o doutorado; à CAPES, pela
bolsa de doutorado-sanduíche na Université de la Sorbonne Nouvelle – Paris 3;
à PUCRS, por todas as oportunidades acadêmicas oferecidas; aos governos
Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), pela fase de bonança nas
Universidades brasileiras, pelo fortalecimento das instituições de fomento à
pesquisa (CAPES e CNPq), por meio de bolsas de estudos no País e no
exterior, das quais me beneficiei, do meu mestrado (iniciado em 2008) ao pós-
doutorado (em 2014-2015), e sem as quais eu não conseguiria me dedicar
integralmente aos estudos de literatura e teoria literária e seguir na carreira
acadêmica.
Gostaria de agradecer especialmente à minha orientadora de graduação,
especialização, mestrado e doutorado, de UFRGS e PUCRS, Ana Maria Lisboa
de Mello, pela generosidade intelectual, apoio e incentivo fundamentais para a
minha trajetória de pesquisadora; agradeço à Eurídice Figueiredo, supervisora
de pós-doutoramento na UFF, pelos diálogos produtivos, por todos esses anos
de parceria e de trabalho juntas e pela acolhida afetuosa no Rio de Janeiro; à
Jacqueline Penjon, co-orientadora de tese, pela recepção afável em Paris, pela
interação contínua e pela amizade; à Olinda Kleiman, pelo acolhimento no
Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (CREPAL) e na jornada
“Raconter la vie – la mort en vue: poétique de l’écriture de l’expérience limite”,
momento muito especial em que pude apresentar o meu trabalho sobre o
aspecto dramático da autoficção; aos escritores e às escritoras que cederam as
entrevistas e autorizaram sua publicação, em especial às queridas Luciana
Hidalgo, Luciene Azevedo e Jovita Noronha, vozes importantes neste livro,
pelo carinho e pela contribuição inestimável para o desenvolvimento dos meus
estudos; à interlocução proveitosa com o arguto Evando Nascimento; à Regina
Lúcia de Faria, pelo nosso Curso de Extensão “Escritas do Eu: desdobramentos
na teoria e na ficção” na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), espaço propício ao debate construtivo com alunos e colegas
interessados; a todos os professores que contribuíram com o Curso de
Extensão, ministrando aulas, especialmente aos companheiros de pesquisa Elisa
Abrantes, Marcos Pasche e Christian Dutilleux; às colegas Ana Chiara e Andréa
Sirihal Werkema, pela oportunidade de ministrar curso sobre autoficção na
Especialização em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ); ao João Cezar de Castro Rocha e à Cida Salgueiro, pela
discussão com interlocutores qualificados no curso de autoficção ofertado na
simpática Casa Dirce; ao Sergio Bellei, mestre - no sentido do "seu João" -,
pelo despertar crítico que, assim como os óculos de Miguilim, mudou meu
modo de ler o mundo; à Andréa Ilha, amiga e revisora da primeira versão da
tese, pelo olhar crítico e desafiador, fundamental para a reformulação e
melhoria do texto; aos membros da banca de defesa da tese, Márcia Ivana de
Lima e Silva – querida amiga – e Ricardo Barberena, pelas arguições instigantes
e incentivo, não apenas no momento da defesa, mas também desde a
graduação na UFRGS; à Sissa Jacoby (in memorian), igualmente membro da
banca de defesa, pela parceria nos estudos de autobiografia e autoficção, por
trazer à PUCRS o curso ministrado pela professora catalã Anna Caballé,
iniciativa que contribuiu muito com o meu percurso de pesquisa; à Ieda Magri,
por sua leitura crítica e estimulante do campo literário, partilhada comigo em
momentos inspiradores, capaz de mudar percepções e rumos de pesquisa; aos
amigos que acompanham meu trabalho, pela escuta e pela partilha inesgotável,
em especial Laura Barbosa Campos, Maria Inês Coimbra Guedes, Bruno Lima,
Luciano Moraes e Rodrigo Jorge, meu arrimo em terras cariocas; à Laura, mais
uma vez, por todos os textos e livros trazidos da França carinhosa e
especialmente para mim; ao Dejair Martins, pela interlocução e pelo ânimo
ofertado nos momentos em que a vontade de desistir do livro aparecia.
Agradeço, ainda, a Ana Cláudia Viegas, Carlinda Fragale Pate Nuñez, Fátima
Cristina Dias Rocha, Júlio França e Roberto Acízelo, pela acolhida na UERJ
(minha primeira “casa” no Rio) e pelos momentos de trocas enriquecedoras; ao
Nabil Araújo, pelas rápidas trocas, que vieram no momento final de revisão do
livro, mas que foram verdadeiras “injeções de ânimo” para seguir perseverante
no investimento desta pesquisa. E, por fim (last but not least), ao Felix,
companheiro incansável nessa jornada teórica e literária de mais de sete anos,
que acabou se tornando um sociólogo especialista em autoficção, a quem devo
a coragem para publicar este livro e muito mais.
Todas essas interlocuções qualificaram a elaboração do livro, embora os
argumentos sejam de minha exclusiva responsabilidade. Ainda que eu
proponha redefinições conceituais, este livro deve ser lido como ponto de
partida e um convite para novos debates sobre o conceito de autoficção.
Por que falar de autoficção?
Desde a invenção pelo escritor francês Serge Doubrovsky para classificar sua
própria obra literária,1 o termo autoficção rompeu fronteiras geográficas e
funciona bem em diferentes campos da arte e em diferentes línguas: no francês,
auto ction; no inglês, auto ction;2 no espanhol, auto cción; no catalão,
auto cció; no alemão, auto ktion; em holandês, auto ctie etc. Doubrovsky, em
entrevista realizada por Isabelle Grell intitulada “C’est fini”, revela-se orgulhoso
de sua própria invenção ao constatar que o neologismo se espalhou pelo
mundo:
Autoficção no Brasil
[...] minha obra crítica [...] desde o início dos anos 1980, acentuava o
fato de que grande parte da ficção modernista brasileira tinha sido
escrita numa mescla de escrita autobiográfica e escrita ficcional. [...]
Dava exemplos contundentes. Por exemplo, o fato de Lins do Rego ter
escritor Menino de engenho e também publicado, ao final da carreira, um
repeteco da trama, Meus verdes anos, agora considerando o volume como
de memória. O mesmo acontece – e paro por aqui os exemplos – com
Oswald de Andrade. Compare Memórias sentimentais de João Miramar
(ficção) e Sob as ordens de mamãe (autobiografia).
Com isso estou querendo dizer que qualquer etiqueta – e autoficção é
uma delas – merece por parte do crítico universitário um trabalho de
arqueologia, para retomar o trabalho de investigação posto à nossa
disposição por Michel Foucault. Encantar-se com uma etiqueta não é
sinal de maturidade crítica. O sinal de atualidade vem da acoplagem da
pesquisa tanto ao universo da produção contemporânea quanto ao
universo da produção que a precede de anos, décadas ou séculos
(Santiago, apêndice deste livro).
Na noite passada meus pais leram o livro que lhes enviei, enganaram a
insônia com estas páginas, por algum tempo estiveram depurando o que
poderiam comentar, como lidariam com esta situação um tanto
exótica. É claro que não podem fazer observações meramente literárias,
ambos ressalvam como se quisessem se desculpar, durante toda a leitura
sentiram uma insólita duplicidade, sentiram-se partidos entre leitores e
personagens, oscilaram ao infinito entre história e história. É estranho,
minha mãe diz, você diz mãe e eu vejo meu rosto, você diz que eu digo e
eu ouço a minha voz, mas logo o rosto se transforma e a voz se distorce,
logo não me identifico mais. Não sei se essa mulher sou eu, me sinto e
não me sinto representada, não sei se esses pais somos nós (Fuks, 2015,
p. 134-35, grifos meus).
Não tive mãe. Não me lembro da cara dela. Não conheci meu pai.
Também não lembro da cara dele. Não me mostraram foto dos dois.
Não sei o nome de cada um. Ninguém quis me descrevê-lo com
palavras. Também não pedi a ninguém que me dissesse como eram.
Adivinho.
Posso estar mentindo. Posso estar dizendo a verdade (Santiago, 2004,
p. 9, grifo meu).
Será esse, caro leitor, o motivo que o levou a procurar estas memórias na
livraria mais próxima? a comprá-las e a lê-las?
Agradeço-lhe o voto de confiança. O nome do autor é verdadeiro. A
proposta do livro que o nome vende – a narrativa autobiográfica duma
experiência de vida corriqueira e triunfal com o título de O falso
mentiroso – é enganosa. Não encontrei melhor solução nem título. Fui
tentado por outro. O patinho feio. Estaria mais próximo da realidade. E
seria pior.
Falta de imaginação? Falta de talento? Faltam-me as palavras? Dou-lhe o
direito à resposta.
Você chegou até aqui. Calculo. A duras penas. Parabéns (Santiago,
2004, p. 174).
Vale lembrar o que Santiago afirma sobre a genialidade do jogo criado por
Machado de Assis:
[...] Machado é gênio. Veja, por exemplo, o modo como desentranhei da
sinceridade do narrador Dom Casmurro uma retórica da
verossimilhança (e não do verdadeiro, aclaro). Não foi difícil que
surgisse uma geração que lesse Capitu como adúltera (seguindo a clave
estabelecida corretamente por Flaubert), ou então como inocente
(seguindo a clave antípoda, pró-feminina). O difícil é trabalhar o jogo.
O jogo entre o que, no texto, a diz ser adúltera e o que, ali também, a
diz ser inocente. Certa ficção é criada dessa forma e requer um tipo
intrometido e perspicaz de leitor (Santiago, apêndice deste livro).
Sou contra a adversativa. Nada tenho a ver com mas, porém, contudo,
entretanto, no entanto, todavia. [...]
Leia (isto é, releia) este livro de fio a pavio. Por cada adversativa
encontrada, o autor se compromete a depositar na sua conta bancária a
quantia de cem dólares. [...]
Não há relativismos patrióticos ou geracionais embebidos na minha
estilística. [...]
Ia esquecendo de dizer.
Fui esquecendo de dizer.
Não é a mesma coisa. Ia esquecendo e fui esquecendo. Tenho de
escolher entre a primeira e a segunda forma verbal. Decidir (Santiago,
2004, p. 220-222).
Que peso dei às palavras dele? Segui a lição que aprendi. Dei dois pesos
a elas. Duas medidas.
Dezenove dias a mais, sai vencedora a cópia. Dezenove dias a menos, sai
vencedor o original. Será que faz diferença? Por mais que me
tranquilizem, sei que faz. Faz diferença, e muita. Ninguém volta
impunemente do signo de Virgem, a sexta constelação. Menos
impunemente se arrebata alguém do signo de Virgem para jogá-lo no
signo de Libra. Para trás ou para frente, vira barata tonta (Santiago,
2004, p. 49, grifos meus).
Samuel compreende o seu ódio por leite ao analisar que nunca tomou o
leite materno ou recebeu o carinho da mãe, a referência segura com a qual ele
poderia se identificar. Sempre sentiu a falta, a carência, e por isso o repúdio e o
ódio àquilo que melhor simbolizaria a maternidade:
A crise existencial de Samuel segue até sua maturidade. Como falso pintor,
o plágio das obras de Goeldi assemelha-se à sua relação com os pais falsos:
“Acabei entrando nas galerias de arte e nos museus pela porta dos fundos.
Carma. Entrava de novo no mundo pela cozinha” (Santiago, 2004, p. 189).
A figura do pai é tão importante para a construção da personalidade de
Samuel que ele praticamente faz uma biografia da vida paterna, cedendo,
assim, um espaço considerável de suas memórias para as lembranças do pai.
Essa é uma relação conflituosa, e Samuel deixa-se revelar uma personalidade
triste, analisando seus motivos:
‘Que filho porra nenhuma! Um bastardo que a gente encontrou na rua.
À míngua de água, comida e carinho. Um bastardo que cultua a figura
de Alexander Fleming não merece a mínima consideração do fabricante
de camisinhas-de-vênus. Ao inferno com ele! Com os dois!’
A questão da autoria
As casas cegas
Ao todo, são nove casas, sete possibilidades e duas casas vazias. Na primeira
coluna do quadro, o romance é a única possibilidade quando o nome da
personagem é diferente do nome do autor. Quando os nomes do autor e da
personagem divergem, a autobiografia não é possível. Os quadros 1a e 1b
indicam romances cujos pactos são “romanesco” e – o assim chamado – “pacto
zero”, respectivamente. No primeiro, há atestado de ficcionalidade, uma vez
que o nome do autor é diferente do nome da personagem. Já no segundo caso
não há atestado de ficcionalidade, que são os casos em que o nome da
personagem não aparece. Segundo Lejeune,
Guinada subjetiva
A escrita de Fils teve por objetivo exemplificar, na prática, o que vinha a ser
a autoficção. A primeira definição de autoficção disponível ao público-leitor é a
seguinte:
Desde que Doubrovsky17 nomeou este gênero (um novo gênero? Uma
forma de realçar a confusão e hibridização de todos os genêros? Uma
metamorfose do romance?), as discussões sobre a autoficção têm ganhado
espaço nos estudos críticos e literários, sendo a França e o Canadá francês os
precursores nesse debate.
Se a autobiografia é “um privilégio reservado aos importantes desse mundo,
ao fim de suas vidas, e em belo estilo”, saliento a primeira diferença essencial
entre a autobiografia e a autoficção: o movimento entre vida e obra. Podemos
dizer que o movimento da autobiografia parte da vida em direção ao texto,
uma vez que é a vida de uma celebridade que chama a atenção (em geral,
alguém famoso, “digno de uma autobiografia”, como os artistas, músicos,
jogadores de futebol, políticos etc.) e, por ser “importante desse mundo”,
resulta no texto autobiográfico. O nome do autobiografado virá em letras
garrafais na capa do livro acompanhado de uma fotografia. O
leitor/consumidor, no caso, compra o livro para saber mais sobre a vida
daquela pessoa importante, seja importância histórica, política, como atleta,
como alguém que superou alguma doença ou algum limite, pela fama, pela
carreira etc. Nesse sentido, pouco importaria o estilo de escrita, o trabalho com
a linguagem, o prazer estético, porque o leitor está atrás do registro da vida
daquela pessoa específica, desse alguém que desperta muito interesse por outro
talento que não o de escritor. Quando o talento (de escritor) não é o
despertador de interesse no leitor, entram no jogo da sedução a fofoca
midiática, o escândalo ou a vida incomum/extraordinária de alguém.
Autobiografias de prostitutas ou pessoas com apelos midiáticos têm sido
comum. O movimento da autoficção parece ser diferente: do texto, da obra
literária, para a vida. Em geral, um escritor que ficcionaliza de forma deliberada
fragmentos de sua vida em uma narrativa para ser lida como romance. Essa
ênfase no romance significa que o leitor está em busca da forma, do modo
como o texto faz sentido, seus símbolos e suas metáforas. Um bom escritor
pode realçar sua biografia por meio do texto ficcional, mas é sempre o texto
literário que está em primeiro plano. Os biografemas18 estão ali funcionando
como estratégia literária de ficcionalização de si.
De uma maneira sintética, teríamos o seguinte quadro para ilustrar os
movimentos recém mencionados:
Quadro 1: “Movimentos da autobiografia e da autoficção”
AUTOBIOGRAFIA: VIDA → TEXTO
AUTOFICÇÃO: TEXTO → VIDA
Elaboração da autora.
A obra literária de Doubrovsky retrata o que ele entende por autoficção, seu
projeto literário. No auge de sua vida, o autor fala sobre seus oito romances e
como eles realizam uma forma de luto:
Minha obra autoficcional, que conta oito romances, passou pelas fases
sucessivas de minha vida. É uma escrita a posteriori. Princípio que
formulei assim: ‘Quando uma página de minha vida é virada, é preciso
escrevê-la’. É o que tem regrado a aparição dos meus livros, são as
diferentes etapas de minha vida, logo após que cada uma seja resolvida.
Escrever é uma forma de ressuscitá-las e de conservá-las. Sem dúvida
para escapar do tempo, do desaparecimento. Eu disse em Fils: ‘Eu
escrevo para morrer menos’. Pode ser ilusão, mas incitação e excitação de
milhares de páginas [...]. Cada uma de minhas obras realizam um
trabalho de luto e é sempre o luto de uma mulher. A começar, é claro,
pela minha mãe cuja presença transformada em falta inspirou Fils e Le
monstre. [...] Depois de oito anos de relação intensa e tensa, Rachel me
deixa: é Un amour de soi. Nove anos de casamento feliz e infeliz: é Le
livre brisé. Depois de dez anos de um adultério oficial e fixo, ‘Ela’ se
suicida: é L’après-vivre, que é premonição. Em Laissé pour conte os fatos
todos reaparecem por fragmentos. [...] Un homme de passage vem para
fechar todos esses episódios, dessa vez a morte será a minha e de repente,
em flashes, em pedaços, todas as memórias de uma vida me assaltam
(Doubrovsky, 2011, p. 26-27).
Outra “fase” de Doubrovsky é marcada pela mudança de seu conceito
inicial de ficção. Ao passar do sentido de “modular, dar forma” da ficção ao
sentido de “criação”, Doubrovsky instaura divergências teóricas – até hoje não
resolvidas – sobre o que é autoficção. Ele afirma, agora, se tratar de “uma
‘história’ que, qualquer que seja o acúmulo de referências e sua precisão, nunca
aconteceu na ‘realidade’, e cujo único lugar real é o discurso em que ela se
desenrola” (Doubrovsky, 1988, p. 73, grifo meu).
No já mencionado “Mon dernier moi” (2010), ao fim de quarenta anos de
prática autoficcional, Doubrovsky subverte completamente suas noções de
autoficção anteriores, ao afirmar que:
A definição enfatiza o texto da autoficção, que deve ser lido como romance,
e não como recapitulação histórica, e a memória, falível e lacunar, capaz de
reconstruir apenas fragmentos. No Colóquio de Cerisy, Doubrovsky traz à
baila a fragmentação como atributo fundamental da autoficção:
Não percebo, de modo algum, minha vida como um todo, mas como
fragmentos esparsos, níveis de existência partidos, frases soltas, não
coincidências sucessivas, ou até simultâneas. É isso que preciso escrever.
O gosto íntimo da existência, e não sua impossível história
(Doubrovsky, [2010] 2014, p. 123, grifo meu).
Adriana Lisboa acredita que o termo autoficção “dá conta de uma zona que
se situa entre a autobiografia e a ficção” e aponta “para possíveis experiências de
escrita de si, onde o ficcional tem permissão para entrar a qualquer momento,
sem que isso equivalha a uma traição do pacto inicial” (Lisboa, apêndice deste
livro).
Silviano Santiago, por sua vez, considera bem fácil o trabalho de diferenciar
autobiografia de autoficção:
Basta que você evite o jogo quando se vale das categorias que já levantou
anteriormente. Tomo a liberdade de copiá-las: falso/verdadeiro;
mentira/verdade; real/imaginário; ficção/realidade; incerteza;
identidade(s); fragmentação do sujeito. Se você coagular cada um dos
elementos que estão unidos pela barra, coibir a incerteza e a
fragmentação, você imediatamente criará um campo crítico lógico e
coerente que servirá ou para definir autobiografia ou para definir
autoficção (Santiago, apêndice deste livro).
Manuel Alberca: o pacto ambíguo
1. Princípio de
Princípio de identidade 1. Princípio de
identidade
A ≠ N // A ≠ P identidade
A≠N-A≠P
Identidade nominal fictícia A=N=P
Identificação
ou anonimato: Identidade nominal
nominal fictícia:
N = P // N ≠ P expressa
N = P // A = editor
Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se
vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar
entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último
fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é
também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Je est un autre.
Rimbaud
Aos 28 anos não acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe
muito, dá risadas prolongadas e inconvenientes, lê caoticamente e
escreve textos que atafulham a gaveta. Um gancho atávico ainda o
prende à nostalgia de uma comunidade de teatro, que frequenta uma
vez por ano, numa prolongada dependência ao guru da infância, uma
ginástica interminável e insolúvel para ajustar o relógio de hoje à
fantasmagoria de um tempo acabado. Filhote retardatário dos anos 70,
impregnado da soberba da periferia, vai farejando pela intuição alguma
saída. É difícil renascer, ele dirá, alguns anos depois, mais frio. Enquanto
isso, dá aulas particulares de redação e revisa compenetrado teses e
dissertações de mestrado sobre qualquer tema. A gramática é uma
abstração que aceita tudo (Tezza, 2008, p. 13).
Recusa. Recusar: ele não olha para a cama, não olha nem para os
médicos – sente uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem
do inferno em cada minuto subsequente de sua vida. Ninguém está
preparado para um primeiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda
mais um filho assim, algo que ele simplesmente não consegue
transformar em filho.
Poucos vão além dos... quantos anos? Ele pensou em 10 anos, e calculou
a própria idade, achando muito; talvez 5, fantasiou, vendo
imediatamente uma sequência rápida de anos, os amigos consternados
pela sua luta, a mão no seu ombro, mas foi inútil – morreu ontem. Sim,
não resistiu. Voltariam do cemitério com o peso da tragédia na alma,
mas, enfim, a vida recomeça, não é? Um sopro de renovação – como se
ele tivesse existido apenas para lhes dar forças, para uni-los, ao pai e à
mãe, sagrados (Tezza, 2008, p. 37).
O filho começa a dar os primeiros passos, dois anos e dois meses depois
de nascer. Eu também nunca fui precoce, ele pensa, sorrindo, ao ver o
menino andando sozinho pela primeira vez, num equilíbrio delicado e
cuidadoso, mas firme (2008, p. 121, grifo meu).
Pensa na teimosia: o seu filho é teimoso. Faz parte da síndrome, ele sabe,
a circularidade dos gestos e das intenções, que se repetem
intensivamente como um disco riscado que não sai de sua curva – mas o
pai também é teimoso, e mais obtuso ainda, porque sem a desculpa da
síndrome (2008, p. 129, grifo meu).
Sempre digo que o texto sabe mais do que eu. [...] O filho eterno me
ensinou isso, eu estava com uma visão muito limitada dele, [...]
mesquinha. Eu percebi que escrevi um livro muito maior do que eu.
Tem coisa ali que foi a minha história que escreveu, não foi aquele
provavelmente sujeito que estava dizendo opiniões e colocando visões de
mundo. Isso para mim é maturidade literária.24
O perigo da autoficção
O caso Divórcio
Divórcio apresenta identidade onomástica perfeita entre autor, narrador e
personagem principal: Ricardo Lísias.31 Nome e sobrenome idênticos, na vida e
no papel. O romance trata de um trauma recente na vida da personagem: a
descoberta inesperada do diário da sua mulher:
Sem saber, fui apresentado ainda para quatro ex-amantes dela e descobri
há um mês que vivi a constrangedora situação de ter tomado café em
Paris com um fotógrafo francês com quem ela tinha transado anos antes.
[...] Não sei se algum dia vou entender o que faz uma mulher de trinta e
sete anos escrever um diário como esse e, ainda mais, deixá-lo para o
marido com quem acabara de se casar. Divórcio é um romance sobre o
trauma (Lísias, 2013, p. 130, grifo meu).
Mandei uma mensagem pelo celular quando ela estava saindo para o
almoço de despedida com os colegas do jornal. Fiz uma cópia do seu
diário e não quero mais te ver. Aceito o divórcio amigável, mas exijo que
você devolva o dinheiro que gastei no casamento. Ela respondeu na
hora: Ricardo, você descobriu minha sombra (Lísias, 2013, p. 88).
[...] Ardeu porque meu corpo estava sem pele. O caixão continuava ali.
De alguma forma, meu queixo acertou o joelho esquerdo. A carne viva
latejou e ardeu. Como o choque foi leve, não durou muito. A sensação
de queimadura também passou logo. Mesmo assim, meus olhos
reviraram. Alguns desses movimentos são claros para mim. Estão em
câmera lenta na minha cabeça.
Outra vez estendi o braço direito e ele tocou o caixão. O cadáver sem
pele ainda me obedecia. Tentei abrir os olhos para confirmar se
continuava morto na cama nova. Não consegui. Meu estômago
encolheu. Senti falta de ar. É difícil respirar com tanta escuridão. O
coração dispara. Veio-me à cabeça o dia em que minha ex-mulher
demorou para fazer alguma coisa enquanto eu me afogava. Tive
dificuldade para abrir os olhos. Minhas mãos latejavam. Um clarão
distante me deixou com tontura. Um corpo em carne viva é quente
(Lísias, 2013, p. 7-8, grifos meus).
O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro lugar,
Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à trama
ficcional elementos da realidade. Depois há um narrador visivelmente
criado e diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência, para
justamente causar uma separação. Eu queria me ver livre de muita coisa.
Sim, Excelência, a palavra adequada é ‘separar-me’. [...] Enfim,
Excelência, o senhor sabe que a literatura recria outra realidade para que
a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era justamente reparar um
trauma: como achei que estava dentro de um romance ou de um conto
que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter certeza de que estou
aqui do lado de fora, Excelência (Lísias, 2013, p. 217-218).
Será mesmo que se o leitor de Divórcio for atrás de informações factuais, vai
se enganar? Antes da publicação deste romance, Lísias publicara três contos
sobre separação: “Meus três Marcelos”, “Divórcio” e “Sobre a arte e o amor”,
espécie de gérmens do romance Divórcio. De acordo com Luciene Azevedo
(2013), o conto “Meus três Marcelos” passa a circular depois do “anúncio do
divórcio, feito pelo próprio Lísias nas redes sociais de que ele participa na
internet”, e os três Marcelos identificados são os amigos de Lísias – Moreschi,
Ferroni e Mirisola (Azevedo, 2013, p. 103). Já “Divórcio” é um texto
publicado na revista Piauí, em novembro de 2011, em que “sem homonímia
ou a menção a qualquer diário [...] é muito mais sutil em relação à dicção
escancaradamente autobiográfica” (p. 104). E, por fim, “Sobre a arte e o amor”,
é uma espécie de carta assinada por Lísias, “como resposta à notificação
extrajudicial enviada pelo advogado de Ana Paula Souza, ex-mulher do autor”,
cuja circulação é considerada – por Azevedo – “a grande volta do parafuso” (p.
104).
Se o ponto de partida do autor de Divórcio é pessoal e traumático, seria
suficiente, depois de publicado, dizer que a literatura não reproduz a realidade
e que o autor criou situações ficcionais? Ao responder à notificação
extrajudicial, Lísias-personagem discorda que tenha invadido a privacidade da
ex-mulher ao divulgar parcialmente seu diário íntimo (como vemos as
justificativas no próprio romance). Afirmar que o livro é ficção seria, então,
uma forma de se absolver da censura e da cobrança de outrem pela
superexposição? Falar em criação de personagens não seria uma maneira de se
aliviar dos imperativos éticos e das ameaças jurídicas que circundam a escrita
escandalosa do trauma irrecuperável? Nessa questão, é difícil definir os limites
da autoficção.
Até que ponto a autoficção, em contraposição à autobiografia, dá liberdade
plena a seu autor para manipular verdades e eventos narrados sobre a vida de
outros? Sébastien Hubier considera como privilégio da autoficção “a
possibilidade de falar, por ela, de si mesmo e dos outros sem nenhuma forma
de censura” (Hubier, 2003, p. 125, grifo meu).37 Entretanto, vemos que não é
bem assim. Se o pacto oximórico permite que o autor fale dele mesmo e dos
outros sem censura nem autocensura, como explicar o constrangimento ou os
processos jurídicos que os autores enfrentam por escreverem e reinventarem a
própria vida e, por consequência, a vida dos outros? Ao afirmar que tudo o que
escreveu é cção, Lísias estaria livre do impasse da autobiografia e de seu “pacto
autobiográfico”? O rótulo cção pouparia, então, o autor de problemas
jurídicos? Não seria Ricardo Lísias um falso mentiroso?38
A trajetória de Lísias pós-Divórcio revela contínuo investimento nesse perfil
performático e na recepção confusa e midiática de suas obras. O livro Inquérito
policial família Tobias (2016), em seu formato inovador – anexando cópias de
documentos de diferentes tipos, conversas por celular, trocas de e-mails,
portarias e documentos oficiais –, também se deparou com recepção ambígua
de seus leitores. Não se sabia se o escritor havia sido processado ou se inventara
um processo para compor matéria para o livro. O autor afirmava, em público,
que o processo era verdadeiro. Novamente, Lísias provoca a recepção do livro
colocando em xeque as fronteiras entre a realidade e a ficção. O perfil midiático
do escritor continua sendo explorado em Diário da cadeia – com trechos da obra
inédita Impeachment (2017), assinado por Eduardo Cunha39 pseudônimo.
Lísias usufruiu do contexto de prisão de Eduardo Cunha e do desejo revelado
do ex-deputado em aproveitar o tempo na cadeia para escrever um livro, e
escreve sob o pseudônimo de Cunha. O livro teria sido proibido de circulação
por conta de uma ação judicial do próprio Cunha, porém o termo ficção
possibilitou a circulação do livro após o julgamento da ação para impedi-la.
Em 16 de março de 2020, O Globo publicou a notícia de que “Diário de
Cadeia, narrado pelo personagem ‘Eduardo Cunha (pseudônimo)’, foi barrado
em decisão favorável ao ex-deputado”.40 O que nos interessa é o modo
performático como o escritor se articula nas redes sociais e na mídia, e a
transformação do tribunal em personagem na sua carreira autoficcional. Os
temas de seus livros têm sido polêmicos e, independentemente dos méritos do
texto, o fato é que este tem recepção acalorada e imediata, por conta do
imbróglio. Após o Divórcio, Lísias tem investido no que denomina “literatura
performática”, cuja definição seria uma espécie de intervenção na realidade
contemporânea.
A indicação – bem cômoda – do livro como cção aliviou Camille Laurens,
no caso do já mencionado L’amour, roman. O pedido de Yves Mézières, ex-
marido cujo nome foi mantido na autoficção, foi indeferido por conta da
palavra cção, que poupou a escritora da condenação.
Os exemplos acima nos levam a indagar sobre os perigos da auto cção. Um
dos riscos para o autor é violar princípios éticos e morais, por isso, ser obrigado
às reparações impostas pela justiça. Risco adicional para o autor é se sentir
culpado pelas consequências negativas da publicação da obra, para as
personagens do livro viventes no mundo real. Como no exemplo drástico de
Doubrovsky, acusado de matar a mulher por amor à literatura. Doubrovsky
escreveu uma longa autodefesa para o caso e, ainda assim, permaneceu com a
culpa, em profunda depressão desde que sua mulher faleceu.
O “perigo da autoficção” não se circunscreve ao autor, mas também para os
envolvidos na história, cujas intimidades e segredos sofrem exposição invasiva.
Reinventar a si mesmo e aos outros, misturar realidade e ficção, por meio do
exercício autoficcional, pode resultar em textos bem indiscretos e
constrangedores. Jacques Lecarme considera a autoficção como um “gênero
essencialmente indelicado”, que “corre sempre o risco de perturbar as vidas
privadas de seus atores involuntários” (Lecarme, 2014, p. 100). Daí, o
questionamento sobre o direito do escritor de expor o outro. Ocultar o nome
de personagens reais, na narrativa, é suficiente para preservá-los? Quando Lísias
escreve sobre sua ex-mulher, leitores anônimos e desavisados não sabem de
quem se trata e a ambiguidade da narrativa os leva a desconfiar da veracidade
dos fatos. Essa desconfiança não prejudica o pacto ambíguo nem o duplo
protocolo de leitura. Mas, e as pessoas mais próximas e envolvidas na história –
família, amigos, vizinhos e conhecidos, como leem essa autoficção? Que
prejuízos não tiveram as personagens inspiradas em pessoais reais, por terem a
sua intimidade exposta de maneira involuntária na ficção?
A superexposição alheia na autoficção pode contribuir para o sucesso do
lançamento e das vendas, mas também tisnar a reputação do autor, como bem
observa Hidalgo:
[...] há coisas que eu não posso dizer, que tocam o segredo do outro, a
sua vergonha. Nesses momentos, faço o que posso. Acho que às vezes há
coisas que eu não devo escrever, mesmo que eu tenha o direito de fazê-
lo. Eu não sei tudo e posso usurpar a palavra dos outros. [...] o escritor
deve ter uma ética, que está atrelada à verdade (Laurens, 2011).45
Delinear tais fronteiras não é trivial, contudo. Como anotou Annie Ernaux,
“é difícil conhecer os contornos da censura interior. Ela depende da época, do
que é aceitável ou pensável dizer no momento em que se escreve” (Ernaux,
2011).46 Assim como o exemplo de Tezza na literatura brasileira, Ernaux
explica que só conseguiu falar pela primeira vez de seus filhos em Les Années
(2008) porque utilizou o recurso da terceira pessoa.
A proximidade da relação entre a literatura e a esfera judicial não é atributo
específico da autoficção contemporânea. Recente é o tipo de acusação que
penaliza a referencialidade da ficção e provavelmente “se deve à abolição
proclamada da fronteira entre fato e ficção” (Lavocat, 2016, p. 277).
Processos envolvendo esses limites turvos resultaram na condenação de
Mathieu Lindon, em 1999, por conta do livro Le Procès de Jean-Marie Le Pen
(1998); de Françoise Chandernagor, em 2000, pelo Le Roman vrai du Dr
Godard; o caso de Michel Houellebecq que foi obrigado a alterar o nome de
uma das personanges na reedição de Particules élementaires, em 1998; Camille
Laurens, duplamente processada pelos romances Philippe (1995) e L’Amour,
roman (2003) etc.
A autoficção pode ser esse lugar de uma negociação constante em busca de
equilíbrio entre as coisas que podem ser ditas e as coisas que não deveriam ser.47
Existe um perfil da autoficção, que é o de Angot, que não se preocupa com os
limites e os perigos da extimidade. O compromisso do autor é consigo mesmo
e com sua liberdade de expressão. Angot é uma das escritoras mais polêmicas
da França. Além das autoficções geradoras de polêmica, com recepção
acalorada, os autores alimentam uma vida espetacular por meio da mídia, dos
eventos e das redes sociais. Trata-se de carreiras autoficcionais estrategicamente
articuladas. Contudo, como disse anteriormente, é um perfil de carreira
autoficcional. Podemos pensar em outros exemplos da literatura brasileira,
como é o caso da obra autoficcional de João Anzanello Carrascoza.
A prosa intimista de Carrascoza, que flui entre os limites da realidade e da
ficção, tem dicção poética peculiar e raro esmero na linguagem. Na contramão
dos exemplos que vimos, a autoficção de Carrascoza não é midiática, polêmica
ou escandalosa. Mas sim o que considero a verdadeira transformação de
biografemas em arte; o primor do trabalho literário da linguagem; a
ficcionalização de si e do outro, a elaboração da dor e o mergulho profundo no
eu por meio da escrita literária – marcada por lacunas, lirismo e polissemia.
Carrascoza embaralha as fronteiras entre ficção e realidade não apenas na
literatura tida como “adulta”, mas também na infanto-juvenil. Em Meu avô
espanhol (2009), acompanhamos a história envolvente do narrador-
protagonista criança chamado João Carrascoza em busca de maior
conhecimento a respeito do avô. O interesse de João pela origem do sobrenome
Carrascoza surgiu na sala de aula, quando a professora disse: “– O João, por
exemplo – ela disse, e me apontou. – Com esse sobrenome, Carrascoza, só
pode ser mesmo descendente de espanhóis!” (Carrascoza, 2009, p. 10). O
menino ficou contente com a descoberta, pois acreditava que a professora
“estava me entregando uma coisa valiosa. Tão valiosa que eu nem sabia direito
o que fazer com ela. Fui embora sorrindo por dentro. Estava começando a
conhecer um pouco mais do pai do meu pai” (p. 10). No final do livro, temos
informações sobre a chegada dos espanhóis no Brasil e sobre o autor, nascido
em Cravinhos (SP), cidadezinha “onde seu avô espanhol foi viver quando
chegou ao Brasil”.
O exemplo de Carrascoza é interessante pois mostra um perfil de autor que
não escreve apenas uma única autoficção, mas, sim, uma obra autoficcional
contínua, embaralhando os limites entre o real e a ficção, com talento literário
na composição de um mundo ficcional atraente e convincente. E de forma
discreta, pois não se envolve em polêmicas, sendo reconhecido pelos inúmeros
prêmios literários. Sendo assim, é possível que um(a) autor(a) enverede para o
campo da autoficção, de modo a construir uma “carreira autoficcional”. Essa
noção foi desenvolvida pela estudiosa especialista em biografias Anna Caballé,48
para analisar a trajetória literária de Enrique Vila-Matas como paradigma da
carreira autoficcional em língua espanhola.
Tudo o que ali está é fruto das minhas experiências como pessoa e como
leitor. Se Emanuel, Maria do Céu, Adorno e todos os outros
personagens d’A parede não têm o meu nome, é porque fui impostor.
Penso, às vezes, em escrever um livro em que todos os personagens se
chamariam Altair. Todos eles vivem exatamente o que eu vivo: um deles
é pai de dois filhos, casado; o outro é professor; o outro joga futebol,
não muito bem, nas segundas-feiras; quem sabe um (que já publicou A
parede no escuro e Enquanto água) escreve sobre os outros três (Martins,
apêndice deste livro).
É curioso que a própria escritora Stein esteja falando sobre si, sem modéstia,
por intermédio da voz de Alice: “Ela [Gertrude Stein] entende muito bem a
base da criação e, portanto, seu conselho e sua crítica são inestimáveis para
todos os seus amigos” (Stein, 2009, p. 81). O que aparentemente são
considerações e apreciações de Alice, na verdade, são escritas pela própria Stein,
uma forma forjada de autocelebração:
Ao termo auto cção, eu prefiro ‘escrita de si’ (e não do ‘eu’, que tende ao
narcisismo). O ‘si’ transcende o ‘eu’ e pode alcançar algo no leitor.
Contudo, o que me interessa nesse termo é a reunião da autobiografia e
da ficção. Isso ressalta que a autobiografia é sempre uma ficção. A partir
do momento em que utilizamos palavras para contar a vida, deixamos
entrar o imaginário, a memória infiel, os processos narrativos tais como
a condensação, a elipse...61
O desvio
[...] boa parte da produção autoficcional atual tem mais ou menos a ver com
a autofabulação na medida em que o autor se representa nela,
voluntariamente, em situações que não viveu. Mantendo-se no limite
plausível, essas narrativas imitam a autobiografia sem respeitar seu contrato
de verdade. Apenas a menção ‘romance’ as preserva de uma acusação de
mentira ou embuste (Gasparini, 2014, p. 201-202).
O termo para esta prática literária foi cunhado por Colonna: autofabulação.
Philippe Gasparini
Philippe Gasparini (2014, p. 217) propõe três termos diferentes para tratar do
espaço autobiográfico contemporâneo no campo da teoria literária: autofabulação,
autoficção e autobiografia. O esforço em buscar um consenso entre os pesquisadores
é relevante no sentido de demarcar a diferença essencial entre o conceito de
Doubrovsky – matéria autobiográ ca, maneira ccional – e o de Colonna/Genette –
matéria ccional, maneira autobiográ ca. Entretanto, Gasparini era cético quanto à
difusão de sua tríade conceitual: “[...] é pouco provável que essas distinções entrem
em uso. O neologismo criado por Doubrovsky vai, provavelmente, continuar
embaralhando as cartas” (idem).
Há vários problemas teóricos na discussão sobre a autoficção que justificam o
pessimismo de Gasparini sobre a viabilidade de um consenso conceitual. O primeiro
questionamento feito é em relação à invenção na autoficção. Se Doubrovsky acredita
que a ficcionalização de si significa dar forma romanesca a uma matéria estritamente
autobiográfica, sem invenção (como sugeriria a teoria de Colonna e Genette), como
explicar a invenção de uma sessão de análise em Fils? “Trata-se, em quase 200
páginas, de uma sessão fictícia” (Gasparini, 2014, p. 190).
Gasparini analisa que o conceito de autoficção “teve inicialmente como base uma
ontologia e uma ética da escrita do eu”, uma vez que Doubrovsky “postulava que
não é possível se contar sem construir um personagem para si, sem elaborar um
roteiro, sem ‘dar feição’ a uma história” (Gasparini, 2014, p. 187). Para Gasparini,
Doubrovsky não é o primeiro a observar isso. Rousseau, Freud, Valéry e Sartre são
exemplos anteriores a Doubrovsky que mostraram “o quanto somos propensos a
preencher nossas lacunas de memória para compor uma narrativa coerente,
agradável e significante” (Gasparini, 2014, p. 187). O neologismo, segundo o
teórico francês, surgiu “no momento oportuno para traduzir e cristalizar as
numerosas dúvidas levantadas, desde o início do século XX, pelas noções de sujeito,
identidade, verdade, sinceridade, escrita do eu” (p. 189). Por isso, Gasparini
considera que Doubrovsky não apenas preenche a casa vazia do quadro de Lejeune,
mas postula a “perempção da autobiografia enquanto promessa de narrativa
verídica” (p. 189).
Em prol de um esclarecimento mínimo sobre confusões teóricas complexas,
Gasparini distingue três tipos de ficcionalização do vivido: (1) ficcionalização
inconsciente; (2) autofabulação; e (3) autoficção voluntária. O primeiro tipo se
refere a toda escrita do eu, circunscrita à esfera da memória e constituída de erros,
esquecimentos, seleção, roteirização e deformações. A autofabulação “projeta
deliberadamente o autor em uma série de situações imaginárias e fantásticas”, e “o
leitor é informado, ou desconfia desde o início, que a história ‘nunca aconteceu’”
(Gasparini, 2014, p. 203-204). A autoficção voluntária “passa voluntariamente da
autobiografia à ficção sem abrir mão da verossimilhança”, e “o leitor pode ser
enganado, apesar da menção ‘romance’, pela aparência autobiográfica da narrativa”
(p. 203-204). A autoficção voluntária é, para Gasparini, o caso mais adequado de
autoficção (segundo a concepção original).
Gasparini também analisa os “contratos de leitura”. Para ele, a autoficção não
propõe um novo tipo de contrato e existem três possibilidades pragmáticas:
Madeleine Ouellette-Michalska
Todo escritor projeta em sua obra suas fantasias, seus pensamentos, seu
mundo imaginário e suas experiências de vida. A inserção de fatos
autobiográficos na trama romanesca, ou criar personagens a partir de pessoas
conhecidas, não é da mesma ordem que encenar a si mesmo em um texto
com sua própria identidade. Na autoficção, o autor se reserva o direito de se
apagar, ou de aparecer no texto com seu nome ou mesmo com seu nome
acompanhado de referências pessoais: sexo, profissão, vida sentimental, lugar
habitado etc (Ouellette-Michalska, 2007, p. 7-12).11
Annie Richard
Jacques Lecarme
Jean-Louis Jeanelle
Sébastien Hubier
A autoficção é “uma escrita da fantasia e, a este título, ela encena o desejo, mais
ou menos disfarçado, de seu autor que procura dizer, ao mesmo tempo, todos os eus
que o constituem”.18 Doubrovsky justificara e teorizara já sobre o uso lúdico de uma
literatura de “fricção”, nas fronteiras da existência real e da vida imaginária, nos
limites da autobiografia e do romance.
Sendo assim, por se tratar de uma ficcionalização de si, essa projeção pode
ocorrer de maneira mais livre, ou até mesmo mais idealizada, pois não se trata mais
do eu, mas do ser-ficcional. A escrita do eu é real e ficcional, e é por meio dessa
“mentira” que o autor revela a si mesmo e o seu íntimo, iluminando os “territórios
obscuros de sua personalidade”:
Isabelle Grell
Luciana Hidalgo
Eurídice Figueiredo
A professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Eurídice Figueiredo contribuiu significativamente para o debate autoficcional,
sendo uma das pioneiras. Em 1977, trouxe para a Universidade Federal
Fluminense (RJ) a escritora Régine Robin, instaurando o conceito de
autoficção no Brasil. No livro Mulheres ao espelho: autobiogra a, cção e
auto cção, Figueiredo (2013) indaga como diferentes gerações de mulheres se
constroem imageticamente nos seus textos autobiográficos, autoficcionais ou
memorialísticos, da década de 1970 até hoje. O foco nas mulheres escritoras é
muito interessante, pois a autobiografia sempre foi vista como um gênero
predominantemente masculino.
A literatura contemporânea, para Figueiredo, abre espaço para um novo
tipo de escrita do eu, que pode ser considerada híbrida e intersticial:
se vive hoje a era da extimidade, já que se exibe aquilo que sempre foi
considerado intimidade; assim, fala-se em ‘extimidade’ quando o que,
em princípio, deveria ficar reservado ao domínio do privado é exposto
pelo sujeito. Esse aspecto aproxima certos textos de autoficção do que se
passa nos reality shows (no Brasil, o mais conhecido é o Big Brother
Brazil, da TV Globo, franquia criada na Holanda). O termo
‘extimidade’ (extimité) foi usado pelo psicanalista francês Serge Tisseron,
em L’intimité surexposée [2001]. (Figueiredo, 2013, p. 68, grifo meu).
Evando Nascimento
A força da autoficção é que ela não tem mais compromisso algum nem
com a autobiografia estrito senso (que ela não promete), nem com a
ficção igualmente estrito senso (com que rompe). Ao fazer coincidir, na
maior parte das vezes, os nomes e as biografias do autor, do narrador e
do protagonista, o valor operatório da autoficção cria um impasse entre
o sentido literal (a referência real da narrativa) e o sentido literário (a
referência imaginária). O literal e o literário se contaminam
simultaneamente, impedindo uma decisão simples por um dos polos,
com a ultrapassagem da fronteira (Nascimento, 2010, p. 194-6, grifos
meus).
***
Caro leitor:
Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.
B. Kucinski.
E, na dedicatória:
Autor-narrador-protagonista
Enquanto leitores, somos guiados pela voz deste narrador, masculino, que
se diz o centro da ficção. No decorrer do livro, o narrador mostra-se consciente
da fabulação que faz de si, criando a ambiguidade do espaço que é ao mesmo
tempo autobiográfico e ficcional. Fux cria um texto metaficcional, preocupado
com o seu próprio fazer literário, considerando o domínio que possui da teoria
literária.7
10 de julho: Nova York. Eu estou viajando em lua de mel mas não estou
apaixonada. O Ricardo é legal, inteligente e às vezes me diverte, apesar
de andar muito. Mas apaixonada eu não estou. Eu não sei o que vai ser
quando voltarmos ao Brasil. Eu gosto de ser casada com um escritor. É
só esconder certas coisas e pronto. Eu sou uma mulher atraente, não
tenho dificuldades para achar amantes, nunca tive. Quanto ao jornal, eu
acho que vou sair mesmo. Sou a maior jornalista de cultura do Brasil
(Lísias, 2013, p. 35, itálico do autor).
A vida tinha que continuar. Ele depois pediu para vir à minha casa.
Ficou uns poucos dias e transtornou tudo, quebrou tudo. Eu o flagrei
cortando a pele das mãos com o canivete. Fiquei muito nervoso e gritei.
Ele se levantou com o canivete. Peguei uma cadeira. – Se você vier, te
acerto, você não pode comigo, André. – Lembro direitinho: – Nunca
vou te fazer mal, Ricardo. Ele foi embora nesse momento (Lísias, 2011,
p. 144, grifos meus).
Nunca escrevi nada pensando ‘agora vou fazer uma autoficção’, até
porque sempre me disfarcei de algum modo nos meus enredos; mas o
romance que melhor se encaixa no termo é O gosto do Apfelstrudel,
publicado pela Escrita Fina. Nele, eu e pessoas da minha família
comparecemos através das iniciais dos nossos nomes. O romance conta
o que passou pela cabeça do meu pai no mês em que esteve em coma,
antes de morrer (Gustavo Bernardo, apêndide deste livro, grifo meu).
Ele pensa, eu queria ter dito adeus para todos eles. Os meus filhos. Meus
netos. As minhas netas. E para a mulher de toda a minha vida.
Z, você resume todo o alfabeto. Foi bom viver com você, foi muito bom
comemorarmos juntos as nossas bodas de ouro. Z, é bom morrer
olhando para você (Gustavo Bernardo, 2010, p. 13-14)
Bom.
Ele sabe que é quem sempre quis ser: apenas um homem bom (Gustavo
Bernardo, 2010, p. 85).
Eu acreditei, você não morreria. [...]. Você escondeu o quanto pôde, até
o dia em que não pôde mais. No princípio, simplesmente recuávamos o
olhar do seu ventre crescendo, do seu pescoço inchando, mas com o
tempo fomos obrigadas a ver o que não queríamos. Você tinha barriga
de grávida, embora não houvesse bebê algum. Gânglios espalhados pelo
pescoço, embaixo do braço, na virilha. Cansava-se um pouco. Enjoava.
Vomitava sangue. Era a realidade querendo vencer a nossa fantasia [...]
(Levy, 2007, p. 14).
Meus desacontecimentos, de Eliane Brum, que evoca a morte da irmã, o
sentimento de dor profunda e as memórias dramáticas:
Nasci não de um, mas de vários túmulos. O primeiro deles foi o corpo
da minha mãe, assassinado pela morte da criança que veio antes. Uma
menina, a primeira menina (Brum, 2014, p. 12-13).
O livro é atravessado pelo tom dramático. Brum só teria nascido por causa
da morte da irmã ainda bebê. No capítulo “Irmãs”, a narradora confessa em
tom pungente: “Minha irmã me deu uma bio, já que eu não nasceria se ela não
tivesse morrido. Eu agora lhe dou uma gra a. Aqui consumamos nossa fusão,
mas também a separação definitiva” (Brum, 2014, p. 24).
Outro exemplo é Ribamar, de José Castello, no qual a morte em vista é a do
pai, cujo nome dá título ao livro:
Ainda não lhe disse, pai: escrevo um romance. Não sei se chegará a ser
isso. O mais correto é falar de notas para o livro que, um dia, escreverei,
Ribamar, ele se chamará. Eu o dedicarei a você (Castello, 2010, p. 13-
14).
Acho que no dia seguinte, ou uns dois dias depois, ele me ligou: –
Ricardo, vou me internar de novo, fica de olho em tudo e me ajuda. –
André, eu não aguento mais, foi isso que respondi. Então acho que se
passaram mais uns dois dias e me telefonaram dizendo que ele tinha se
enforcado (Lísias, 2012, p. 144).
Assim começou a saga do velho pai, cada dia mais aflito, mais
maldormido. No vigésimo dia, depois de mais uma incursão inútil ao
campus e à casa de Padre Chico, recorreu aos amigos do círculo literário;
os mesmos que por descontrole havia amaldiçoado. Quem sabe
conheciam alguém que conhecesse alguém outro, na polícia, no exército,
no SNI, seja onde for dentro daquele sistema que engolia pessoas sem
deixar traços (Kucinski, 2014, p. 18).
Meu corpo ferido, por mais que ainda perca energia, precisa portanto
virar literatura. De um jeito ou de outro, a assombração inicial era
verdadeira. Dois contos não são suficientes para o tamanho do meu
trauma (ou da pele do meu corpo). Preciso fazer um romance (Lísias,
2013, p. 172).
Começo a contar uma história triste – mas uma história tão triste, tão
triste, tão triste, que é capaz de sentirmos juntos uma alegria boa no
final.
[...]
Porque a história que quero contar não tem nada a ver com isso. Ela é
triste, confesso desde o início, mas a tristeza, mesmo quando é muito,
mesmo quando é forte demais, não deixa de ser uma coisa muito boa
(Bernardo, 2010, p. 9).
14 DE DEZEMBRO DE 1979
17 HORAS
E EM OPOSIÇÃO A VÊNUS
— Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo,
seu milionário disfarçado.
Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que
ouvi a melodia: biiiiiiin.
Estava debaixo d’água, não mexia os braços nem as pernas, somente via
a água barrenta e ouvia: biiiiiiiiiiiiiin. Acabara toda a loucura, baixou o
santo e me deu um estado total de lucidez: ‘Estou morrendo afogado’.
Mantive a calma, prendi a respiração, sabendo que ia precisar dela para
boiar e aguentar até que alguém percebesse e me tirasse dali. ‘Calma,
cara, tente pensar em alguma coisa’. Lembrei que sempre tivera
curiosidade em saber como eram os cinco segundos antes da morte,
aqueles em que o bandido com vinte balas no corpo suspira... (Paiva,
[1982] 2006, p. 13).
Meu mal tem uma origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka. Não
que eu o inveje ou deseje ser como ele. Também não o odeio e, com
algum esforço, reconheço sua grandeza. Meu problema é que não
consigo parar de pensar em Kafka.
Ainda não lhe disse, pai: escrevo um romance. Não sei se chegará a ser
isso. O mais correto é falar de notas para o livro que, um dia, escreverei,
Ribamar, ele se chamará. Eu o dedicarei a você (Castello, 2010, p. 13-
14).
Respondi:
Tatiana Salem Levy, em A chave da casa (2007), procura sentido para sua
herança judaica por meio da escrita. Levy ficcionaliza a sua própria história,
criando uma personagem-protagonista em busca de suas origens. A autora
conta sobre o seu processo de escrita do romance em “Do diário à ficção: um
projeto de tese/romance”. Ela afirma que fez um mergulho nas histórias
contadas nas cartas e nos diários da família, no relato da imigração, nos
motivos e nas dores da partida, na chegada ao Brasil. Foram esses materiais, o
contato com a família, a memória, a viagem que a levaram a “exorcizar os
fantasmas” que a atormentavam a partir da escrita de A chave da casa:
Mas a literatura não termina aí. Fizemos do Golem aquele que socorrera
o gueto nos momentos de perigo, aquele que perseguira os transeuntes
suspeitos, um super-homem que, graças a suas fórmulas cabalísticas,
viera pôr fim a todas as ameaças e todos os perigos (Robin, [1997] 2005,
p. 36).22
Não tenho resposta simples para a questão, mas intuo que seja a
necessidade humana de entender minimamente o que se vivencia. Uns
fazem isso por meio de cinema, filosofia, pintura, já os escritores optam
pela palavra inventiva. Com ou sem autobiografia ou autoficção, creio
que toda literatura e mesmo toda arte, em certo sentido, passa pela
experiência pessoal. O que distingue artistas e autores entre si é o
procedimento utilizado: autobiografia em uns, autoficção em outros.
Nessa perspectiva, bons exemplos de autoficção no cinema são os
personagens de Woody Allen representados por ele próprio, em que
diretor, roteirista, protagonista e narrador se confundem no corpo do
ator. Isso acontece mais uma vez em sua última película Para Roma com
amor, na qual ele encarna um diretor de ópera em crise. O italiano
Nano Moretti realizou também dois filmes autoficcionais muito bons:
Caro diário e Abril (Nascimento, apêncide deste livro).
Em linha com este argumento, Michel Laub crê que toda a literatura e a
arte passam pela experiência pessoal. Para o autor de Diário da queda (2011) e
A maçã envenenada (2013), a memória, em sentido amplo, é a matéria da
escrita:
***
Não imaginava e nem fazia ideia de que o fato de eu ter pipiu e Silvinha
não o ter poderia resultar em grandes prazeres. E eu seguia amando.
Que pode uma criatura, senão, entre as criaturas, amar? Amar e
esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? E, apesar de nunca
declarar publicamente meu amor, meus olhos não o escondiam (Fux,
2014, p. 20, grifo meu).
Eu tive que negar meu grande amor. Ela me perguntou se aquilo seria
verdade. Neguei. Nego. Negarei. O meu amor era só meu. Não era e
não podia ser compartilhado ainda. Era jovem demais para me expor.
Revelar-me. Descobrir-me. O amor é a exposição ao que você próprio
julga ridículo. Como todas as cartas de amor. E eu não estava
preparado. Não estou preparado. Estarei? (Fux, 2014, p. 20, grifo meu).
ings fall apart; the centre cannot hold; / Mere anarchy is loosed
upon the world.
William Butler Yeats
As letras do meu nome não são fornecidas em meu texto logo de início
apenas com o intuito de insistir na questão da autoficção, e provocar o
leitor. Mais profundamente, essas letras debulhadas separadamente
representam o não pertencimento do sujeito à sociedade em que vive e
na qual seu nome é difícil de se pronunciar e memorizar. As letras
despedaçadas ilustram também o despedaçamento irremediável do
referido sujeito literalmente in-coerente (despedaçamento, fragmento,
lacuna, vazio, esquizo, cissiparidade etc. estão presentes em todos os
meus livros para caracterizar seu modo de ser) (Doubrovsky, 2014, p.
117-18).
***
I. Adriana Lisboa
II. Altair Martins
III. Ana Cláudia Viegas
IV. Ana Letícia Leal
V. Cristovão Tezza
VI. Eurídice Figueiredo
VII. Evando Nascimento
VIII. Gustavo Bernardo
IX. Jacques Fux
X. Jovita Noronha
XI. Luciana Hidalgo
XII. Luciene Azevedo
XIII. Marcelo Mirisola
XIV. Michel Laub
XV. Ricardo Lísias
XVI. Silviano Santiago
I. Adriana Lisboa
Acho que ele dá conta de uma zona que se situa entre a autobiografia e a
ficção, e acho interessante como aponta para possíveis experiências de escrita de
si, onde o ficcional tem permissão para entrar a qualquer momento, sem que
isso equivalha a uma traição do pacto inicial.
3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?
Embora a minha leitura sobre esse tema seja praticamente inexistente, acho
que sim.
4. Você tem alguma obra que considera ser uma autoficção?
3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?
Tenho. São os dois livros que escrevi – A parede no escuro e Enquanto água.
Tudo o que ali está é fruto das minhas experiências como pessoa e como leitor.
Se Emanuel, Maria do Céu, Adorno e todos os outros personagens d’A parede
não têm o meu nome, é porque fui impostor. Penso, às vezes, em escrever um
livro em que todos os personagens se chamariam Altair. Todos eles vivem
exatamente o que eu vivo: um deles é pai de dois filhos, casado; o outro é
professor; o outro joga futebol, não muito bem, nas segundas-feiras; quem sabe
um (que já publicou A parede no escuro e Enquanto água) escreve sobre os
outros três. Enfim, creio que o termo auto cção é algo que se esgota na própria
atividade da escrita. Serve para modular a leitura. Para os autores, para mim,
não faz sentido.
A primeira vez que prestei atenção nessa palavra foi no começo de 2007, eu
lia um resumo de tese que não explicava do que se tratava, porém logo
relacionei a palavra ao que eu mesma sempre fiz e ao que considero ter sido
sempre a minha motivação pra escrever. A partir desse primeiro contato com a
palavra, fui passando a prestar atenção nisso e cheguei a propor uma oficina
literária com este tema para a Estação das Letras. No fim do ano, a Luciana
Hidalgo organizou um simpósio no Sesc muito esclarecedor para mim. Ao sair
da conferência do Silviano Santiago, já passei a usar a autoficção como um
“instrumento de leitura” da obra de Lygia Bojunga, pois estava justamente
escrevendo meu projeto de tese, e minha qualificação seria em dois meses.
Aliás, a ideia da autoficção como instrumento de leitura é do Vincent
Colonna, cujo livro foi indicado pelo Silviano nesse dia. Enfim, entrei no ano
de 2007 sem conhecer a palavra autoficção, mas, no fim do ano, eu já tinha um
projeto de tese aprovado sobre a autoficção na obra de Lygia Bojunga e uma
oficina de autoficção programada para o ano seguinte.
Não.
V. Cristovão Tezza
3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?
A autoficção é uma das formas que o romance adquiriu desde os anos 80.
Ela é sintoma de nossa época.
Acho que não foi a criação do termo que desencadeou essa produção.
Como disse antes, a autoficção é expressão, sintoma, de uma época. Aliás, eu
encontrei Cristovão Tezza na França em 2009, quando foi lançada a tradução
francesa de seu romance O lho eterno e perguntei-lhe se ele o considerava uma
autoficção, mas, até então, ele nunca tinha ouvido falar em autoficção. Desde
então, em suas entrevistas, ele diz que é uma autoficção. Isso prova que o
literário surge antes da crítica. O próprio Silviano Santiago, um crítico e
ensaísta antenado, começou a usar o termo recentemente, apesar de fazer
autoficção há muito tempo.
Sim, porque a autobiografia tem uma forma mais linear e se pretende mais
próxima do vivido (embora isso seja desde o início condenado ao fracasso).
Diria que tenho uma visão bastante pessoal disso que atualmente se chama
de “autoficção” – as aspas são propositais e devem ser sempre presumidas,
mesmo quando invisíveis. Minhas concepções do termo enquanto escritor,
professor universitário e ensaísta são bastante convergentes. Antes de mais
nada, ao contrário de alguns pesquisadores, não considero a autoficção um
novo gênero. A biogra a e a autobiogra a, sim, configuram gêneros
documentais e literários, estando, hoje, bastante mapeados, sobretudo a partir
do trabalho pioneiro do estudioso francês Philippe Lejeune, realizado nos anos
1970, o arquifamoso O Pacto autobiográ co, já traduzido no Brasil.
A autoficção trouxe novas questões exatamente por sua dificuldade de
definição e seu não enquadramento nas classificações tradicionais. Nisso,
consiste seu valor de reflexão para o campo da literatura, das artes e das ciências
humanas em geral. Não se trata de uma propriedade exclusiva do texto
literário, mas algo mais amplo.
2. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?
O termo ajuda a comentar essa tendência, mas não dá conta dela, uma vez
que a melhor literatura não pode ser completamente explicada e esgotada nem
pela melhor teoria.
A resposta varia conforme cada escritor: alguns podem até procurar uma
espécie de catarse psicanalítica, enquanto outros inventam falsos duplos para
brincar consigo mesmo e com os leitores.
6. Você tem alguma obra literária que considera ser uma autoficção?
Nunca escrevi nada pensando “agora vou fazer uma autoficção”, até porque
sempre me disfarcei de algum modo nos meus enredos; mas o romance que
melhor se encaixa no termo é O gosto do Apfelstrudel, publicado pela Escrita
Fina. Nele, eu e pessoas da minha família comparecemos através das iniciais
dos nossos nomes. O romance conta o que passou pela cabeça do meu pai no
mês em que esteve em coma, antes de morrer.
IX. Jacques Fux
3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?
Acho que esse termo é amplo e ambicioso e, como disse, permite diversas
interpretações e variações. Claro que não dá conta, mas é fundamental que ele
exista e que procure fazer bem seu trabalho. Talvez seja um “ornitorrinco”, uma
aberração, um “ser imaginário”, porém merece continuar sendo estudado.
Acho que ele foi o ponto de partida “teórico”. O que deu o nome a algo que
já se sentia. Um pioneiro. Um classificador. Acho que o termo pode ser
comparado com a teoria do “centésimo macaco”. (Conhece, Anna? Acho que
vai gostar de pensar dessa forma. Uma sugestão inédita, ou mais uma das
minhas pirações - http://galileu.globo.com/edic/91/conhecimento1.htm).
X. Jovita Maria Gerheim Noronha
Essa é uma questão que é muito difícil de responder. É possível notar, hoje,
em certa dicção crítica, a constatação de que “há certo cansaço da ficção”,
como afirma Beatriz Sarlo. David Shields, crítico americano que escreveu
Reality Hunger, defende com veemência que não dá mais para o romance no
século XXI. Acho que a categoria do gênero talvez não dê conta de abarcar a
complexidade dos elementos que estão em jogo com a autoficção, mas acredito
que ela pode fazer vacilar a caracterização do romance como forma narrativa,
sim. Enfim, acho que a discussão sobre se a autoficção pode ou não ser um
gênero e a dificuldade de responder a isso tem a ver com o fato de que essa
pergunta pede uma investigação de cunho epistemológico que envolve mais do
que a compreensão da autoficção, mas também o romance, como forma
narrativa, e a literatura como discurso.
Falta de assunto.
3. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?
2. Esse termo daria conta do que parece ser uma tendência atual de a
ficção trazer experiências pessoais do autor?
Não acho possível que a ficção traga “experiências pessoais do autor”. Creio
que a discussão que o termo “autoficção” traz, no mais das vezes, parece
equivocada. A “experiência pessoal” está perdida assim que ela acontece. A
literatura não reproduz a realidade, mas cria outra realidade a partir da
utilização da linguagem. Sabemos todos que a linguagem é limitada e muito
diferente da realidade, as palavras não são as coisas. Portanto, não pode haver
realidade de nenhuma ordem na ficção.
O que parece ocorrer é que, com as novas mídias, a figura do autor passou a
aparecer mais e, então, a leitura dos textos dos autores começa a ser calcada
nessa representação de sua vida pelas diferentes mídias. Ainda que o resultado
sociológico possa ser interessante, uma leitura do tipo “há experiência pessoal
aqui” é redutora do ponto de vista artístico. Estou tentando escrever, na minha
ficção, textos que induzam as pessoas a verem como elas podem se enganar
quando vão atrás da “realidade”.
Não posso responder, pois não acho possível que um texto de ficção
contenha o autor em si.
O historiador literário deve dar a uma etiqueta e seu autor o papel que eles
merecem. A etiqueta em questão, criada por Doubrovsky, e talvez utilizada por
mim pela primeira vez no Brasil, como, aliás, outras etiquetas, servem para
acentuar um traço dominante em determinada produção que requer tanto o
devido registro (daí a criação do vocábulo) quanto a devida análise (daí a
transformação do vocábulo em conceito). Quero dizer que Doubrovsky criou o
vocábulo e o conceito a fim de normatizar importante filão da literatura
modernista e contemporânea (independente de nacionalidade). Parabéns a ele.
Se por acaso você conhece minha obra crítica, terá observado que, desde o
início dos anos 1980, acentuava o fato de que grande parte da ficção
modernista brasileira tinha sido escrita numa mescla de escrita autobiográfica e
escrita ficcional. [Consultar na minha própria produção:
http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D10_Vale_quanto_pe
sa.pdf] Dava exemplos contundentes. Por exemplo, o fato de Lins do Rego ter
escrito Menino de engenho e também publicado, ao final da carreira, um
repeteco da trama, Meus verdes anos, agora considerando o volume como de
memória. O mesmo acontece – e paro por aqui os exemplos – com Oswald de
Andrade. Compare Memórias sentimentais de João Miramar (ficção) e Sob as
ordens de mamãe (autobiografia).
Com isso, estou querendo dizer que qualquer etiqueta – e autoficção é uma
delas – merece por parte do crítico universitário um trabalho de arqueologia,
para retomar o trabalho de investigação posto à nossa disposição por Michel
Foucault. Encantar-se com uma etiqueta não é sinal de maturidade crítica. O
sinal de atualidade vem da acoplagem da pesquisa tanto ao universo da
produção contemporânea quanto ao universo da produção que a precede de
anos, décadas ou séculos.
Nesse sentido, o livro de Vincent Colonna, Auto ction & autres
mythomanies littéraires, é tão importante para o pós-graduando quanto as
observações críticas de Doubrovsky.
Trabalho bem fácil. Basta que você evite o jogo quando se vale das categorias
que já levantou anteriormente. Tomo a liberdade de copiá-las: falso/verdadeiro;
mentira/verdade; real/imaginário; ficção/realidade; incerteza; identidade(s);
fragmentação do sujeito. Se você coagular cada um dos elementos que estão
unidos pela barra, coibir a incerteza e a fragmentação, você imediatamente
criará um campo crítico lógico e coerente que servirá ou para definir
autobiografia ou para definir autoficção.
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Vidal, Paloma. Algum lugar. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.
Sobre a autora
Prefácio
Apresentação
1 La surexposition du terme d’auto ction, au lieu de conduire à l’éclaircissement d’un nouveau champ
littéraire, n’a fait que l’obscurcir (Saveau, 2011, p. 13).
2 Que, de resto, incorre no mesmo problema que critica, ou seja, seu artigo extenso e hermético não
contribui para minorar o problema.
3 Expressão utilizada por Evando Nascimento (2010, p. 190).
4 tese defendida em 2014, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com
orientação da professora Drª. Ana Maria Lisboa, e coorientação da professora Drª. Jacqueline Penjon
(Sorbonne Nouvelle – Paris 3): Auto cções: do conceito teórico à prática na literatura brasileira
contemporânea (Faedrich, 2014).
5 Ressalto o caso de Silviano Santiago que me permitiu aprimorar as questões da entrevista. O diálogo
com Santiago é extremamente enriquecedor porque ele é o autor de romances e contos que mexem
com as fronteiras entre o real e o ficcional, professor e crítico de literatura, altamente consciente do
seu fazer literário.
1 Trabalho de equipe realizado pelos geneticistas Arnoud Genon, Isabelle Grell e Philippe Weigel. Serge
Doubrovsky: comment ‘Le Monstre’ devint Fils. Disponível em:
http://www.everyoneweb.com/doubrovskymanuscrit.com/. Acesso em: 24 maio 2012.
2 Existe uma variação nas afirmações acerca do número de páginas manuscritas de Le Monstre. Para
Pierre-Alexandre Sicard, trata-se de 9 mil páginas; para a editora Grasset e para a pesquisadora e
especialista Dr. Luciana Persice Nogueira (2015) são 3 mil folhas. Pelos relatos de Arnoud Genon
(2007), um dos membros da equipe de geneticistas que trabalhou com o manuscrito, o número de
páginas varia porque Doubrovsky foi encontrando novas páginas e entregando para a equipe. A equipe
começou com 2599 folhas, depois Doubrovsky entregou mais 1500. À época, esses textos foram
recusados pela editora francesa Grasset. Depois de muitos recortes, um pouco mais de quatrocentas
originaram a autofição Fils publicada em 1977.
3 O ITEM é o “Instituto de Textos e Manuscritos Modernos”, dirigido por Pierre-Marc de Biasi, que se
consagra ao estudo dos manuscritos dos escritores para elucidar o processo da gênese. Disponível em:
http://www.item.ens.fr/. Acesso em: 24 maio 2012.
4 Jean-Louis Jeanelle considera que essa retificação, isto é, a passagem do prefácio ao manuscrito, é de
“grande alcance simbólico”, pois “propõe substituir uma perspectiva determinada pela recepção dos
textos e pelos efeitos de leitura esperados por uma perspectiva mais atenta aos mecanismos de
produção” (Jeanelle, 2014, p. 157). Para o crítico, esse é um elemento que modifica toda a narrativa
da origem do termo/conceito da autoficção, uma vez que a autoficção surgiu “durante o próprio
processo de composição de Fils” e não mais na quarta capa “com o objetivo de apresentar a um leitor
apressado as grandes linhas do texto que ele ainda não conhece” (p. 156).
5 Lejeune levanta, nesse momento, a reflexão sobre questões elementares, mas que considerava
fundamentais: “O que é uma autobiografia? Como ela se diferencia de um romance, de um diário
íntimo, de memórias? Desde quando ela existe? Por que existem tantos discursos a favor, e, sobretudo,
tantos discursos contra? É ruim recontar a vida? É possível recontá-la?” (Lejeune, [1971] 2010, p. 7).
6 Concepção de arte dos Formalistas Russos, escola literária conhedida como crítica formalista, com vida
breve na Rússia, de 1910 a 1930. Os formalistas acreditavam na especificidade da literatura e na
função poética da linguagem. Boris Eikenbaum, Yuri Tynianov e Vitor Chklovski (entre outros) eram
estudiosos ligados ao Círculo Linguístico de Moscou, que fundaram a OPOIAZ (Obscestvo izucenija
Poeticeskogo Jazyka), Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética, em São Petersburgo. Para
consultar considerações sobre a função da arte para os formalistas, três ensaios do livro Teoria da
literatura: formalistas russos (Toledo, 1973) são fundamentais: “A teoria do método formal”, de
Eikhenbaum; “Da evolução literária”, de Tynianov, e “A arte como procedimento”, de Chklovski.
7 Na definição de literatura, é imprescindível considerar a autoridade do autor, ou seja, quem está
autorizado a falar, quem pode escrever literatura, quem tem espaço para “dizer sobre si e sobre o
mundo, de se fazer visível dentro dele” (Dalcastagné, 2012, p. 8). Esse é um espaço em disputa,
território contestado, conforme denominação de Regina Dalcastagné, onde as minorias permanecem
silenciadas. Definir o que é literatura é, portanto, uma questão de poder, de definir os critérios que
conferem legitimidade e capital simbólico para definr as fronteiras do campo literário. Ao fazê-lo,
operam-se também exclusões, que inevitavelmente têm um componente de arbitrariedade.
8 Dois exemplos recentes para pensarmos a efemeridade do conceito de literatura, bem como de suas
diferentes concepções, foram (1) o Prêmio Nobel de Literatura 2016 ter sido concedido a um músico,
Bob Dylan; e (2) a polêmica acerca da obra de Carolina Maria de Jesus, homenageada pela Academia
Carioca de Letras, não ter sido considerada como literatura por um de seus acadêmicos. Não entrarei,
aqui, no mérito da questão para não desviar o foco deste livro, mas fica posta a complexidade do
assunto, gerador de muitas polêmicas.
9 Termo utilizado por Beatriz Sarlo em Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva, 2007.
10 Philippe Lejeune nasceu no dia 13 de agosto de 1938. Foi professor de literatura francesa na Université
Paris-Nord (Villetaneuse), de 1972 a 2004, e membro do Institut Universitaire de France. Cofundador
da Association pour l’Autobiographie et le Patrimoine Autobiographique (APA), criada em 1992. A
associação funciona até hoje, promovendo conferências, debates, jornadas, grupos de leitura e
pesquisa, numerosas publicações que giram em torno do tema da autobiografia. O site da APA
também está em funcionamento e atualizado: association.sitapa.org. No período de doutorado-
sanduíche em Paris (fevereiro-junho/2012), tive a oportunidade de participar dessas conferências,
comprar revistas e conhecer pessoalmente Philippe Lejeune.
11 Talvez Lejeune não partisse do zero. Um estudo relevante já tinha sido realizado anteriormente por
Georges Gusdorf: La Découverte de Soi (1948).
12 On a assisté à une véritable explosion de l’écriture autobiographique, et le discours critique a pris son essor:
non, aujourd’hui, on ne part plus de zero.
13 Ginzburg faz um recorte específico dentro da discussão teórica sobre autobiografia; ele trabalha com
textos que se referem a experiências de violência coletiva, em regimes autoritários e situações históricas
de opressão.
14 O uso desta obra literária é feito com o propósito de exemplificar as minhas considerações teóricas.
Não considero este livro uma autoficção.
15 Sobre os efeitos irônicos da autoficção, recomendo o texto “Fiction in the ‘Post-Truth’ Era: e Ironic
Effects of Autofiction”, de Marjorie Worthington (2017).
16 Autobiographie ? Non. C’est un privilège réservé aux importants de ce monde, au soir de leur vie et dans un
beau style. Fiction d’événements et de faits strictement réels; si l’on veut, auto ction d’avoir con é le langage
d’une aventure à l’aventure du langage, hors sagesse et hors syntaxe du roman traditionnel ou nouveau.
Rencontre, ls de mots, allitérations, assonances, dissonances, écriture d’avant ou d’après littérature,
concrète, comme on dit en musique. Ou encore, autofriction patiemment onaniste que espère faire
maintenant partager son plaisir.
17 Julien Serge Doubrovsky nasceu no dia 22 de maio de 1928, em Paris, e morreu no ano de 2017.
Escritor, crítico literário (especialista em Corneille) e professor de literatura francesa. Foi professor
honorário na New York University e, atualmente, está aposentado e de volta a Paris. Publicou obras
críticas (Corneille et la dialectique du héros, 1963; Pourquoi le nouvelle critique, 1996; La Place de la
Madeleine: écriture et fantasme chez Proust, 1974; Parcours critique, 1980; Autobiographiques: de
Corneille à Sartre, 1988; Parcours critique II, 2006) e obras literárias (Le Jour S, 1963; La Dispersion,
1969; Fils, 1977; Un amour de soi, 1982; Le livre brisé, Prix Médicins 1989; L’Après-vivre, 1994; Laissé
pour conte, Prix de l’Écrit intime 1999; Un homme de passage, 2011; La vie l’instante, 2011).
18 Neologismo de Roland Barthes para tratar da noção de uma biografia feita a partir de fragmentos, de
traços autobiográficos, repleta de vazios, de forma a convidar o leitor a criar ativamente. No capítulo
“Autoficção e a presença obsessiva do eu em O lho eterno”, retornaremos ao conceito de biografema
de forma mais detida.
19 Récit dont la matière est entièrement autobiographique, la manière entièrement ctionelle.
20 Dans l’oeuvre de Doubrovsky, ‘ ction’ n’est pas à prendre dans le sens d’inventer, mais plutôt dans le sens de
modeler, façonner.
21 La narration n’est pas une copie, elle est recréation d’une existence dans les mots, réinvention langagière par
le Je du discours de ses Moi successifs. Dès lors c’est le mode ou modèle de la narration qui façonne ‘notre’ vie.
L’autobiographie classique, selon la formule de Jean Starobinski, est la biographie d’une personne faire par
elle-même. Elle sera donc chronologique et logique, elle s’efforcera, malgré les lacunes inévitables de la
mémoire, de suivre le déroulement d’une vie en tâchant de l’éclairer par la ré exion et l’introspection.
Personnelement, j’ai favorisé une autre approche, mon mode ou modèle narratif est passé de l’HISTOIRE
au ROMAN. La conception même du sujet a changé. D’uni é à travers le récit, il est devenu brisé, morcelé,
fragmentaire, à la limite incohérent.
22 Dans mon cas particulier, l’écriture auto ctionnelle abolit la structure narrative linéaire, concasse la syntaxe
classique, lui substitue un enchaînement des mots par consonance, assonance ou dissonance, la phrase est
toujours guidée, construite en une succion de paronymes, des virgules, des points, des blancs, disparition
parfois de toute syntaxe, des associations de mots comme il y a des associations libres en psychanalyse.
L’écriture tente de rendre la fragmentation, la brisure du moi, l’impossibilité de le retrouver dans une belle
unité harmonieuse. Dans ce surgissement inattendu de mots et de pensées déconnectés se révèle une altérité
fondamentale du sujet dans la durée.
23 L’autobiographie n’est ni plus vrai, ni moins ctive, que l’auto ction. Et à son tour, l’auto ction est
nalement la forme contemporaine de l’autobiographie.
24 Conceito de Leonor Arfuch (2010) entendido como a confluência de múltiplas formas, gêneros e
horizontes de expectativa. Arfuch pretende ir além da definição sumária de Lejeune para o espaço
biográfico – “reservatório das formas diversas em que as vidas se narram e circulam”. Para Arfuch, tal
definição não é suficiente para delinear um campo conceitual. Ela pretende ir além da busca de
exemplos para dar conta da ênfase biográfica que caracteriza o mundo atual (Arfuch, 2010, p. 58-59).
25 [...] sous l’apparence d’une continuité du je, des brisures absolues.
26 les ruptures absolues entre ce que j’étais au présent à diverses époques de ma vie.
27 On ne meurt pas qu’une fois, dans une vie il y a plusieurs morts don’t la mort n’est que la dernière. / Je suis
toujours au présent, mais ce présent a chu dans le néant.
28 No III Seminário Caminhos da Literatura Brasileira, realizado na UFF, em agosto de 2014.
29 Un curieux tourniquet s’instaure alors: fausse ction, qui est histoire d’une vraie vie, le texte, de par le
mouvement de son écriture, se déloge instantanément du registre patenté du réel. Ni autobiographie ni
roman, donc, au sens strict, il fonctionne dans l’entre-deux, en un renvoi incessant, en un lieu impossible et
insaisissable ailleurs que dans l’opération du texte. Texte/vie: le texte, à son tour, opère dans une vie, non
dans le vide.
30 Expressão proposta por Hélène Jaccomard em Lecteur et lecture dans l’autobiographie française
contemporaine: Violette Leduc, Françoise d’Eaubonne, Serge Doubrovsky, Marguerite Yourcenar (1993).
Neste livro, Jaccomard apresenta uma “poética do leitor” a partir da análise de textos que borram as
fronteiras da concepção de autobiografia como confissão. O termo utilizado pela estudiosa é “le pacte
oxymoronique”.
31 [...] néglige tous les textes littéraires qui s’inscrevent aux frontières de l’autobiographie et du roman, qui
entremêlent différents genres, qui transposent la vie en roman et qui reposent justement sur la dialectique du
vrai et du faux.
32 [...] laisse au lecteur l’initiative et l’ocasion de décider par lui-même du degré de véracité du texte qu’il
traverse.
33 Manuel Alberca, professor da Universidade de Málaga (Espanha), publicou o livro El pacto ambíguo:
de la novela autobiográ ca a la auto cción, em Madri, 2007. Trata-se de uma obra de grande fôlego,
que permite uma complexa reflexão teórico-crítica sobre o conceito de autoficção e a sua relação com
a literatura de língua espanhola.
O impulso autoficcional
1 Uma das versões mais antigas e mais conhecidas do mito de Narciso encontra-se no livro III, de
Metamorfoses, de Ovídio (43 a. C. – 16 d. C.), célebre obra do poeta latino, considerada a
“enciclopédia da mitologia clássica”, escrita no século I, entre os anos 2 e 8. Existem, vale lembrar,
outros três registros literários do mito, que são as versões de Cânon, Filóstrato e Pausânias, com as
quais não pretendo trabalhar.
2 […] il contemple d’un regard insatiable l’image mensongère. Il meurt, victime de ses propres yeux.
Légèrement soulevé et tendant ses bras vers les arbres qui l’entourent (Ovídio, 1992, p. 121).
3 [...] une infralittérature narcissique, sans esthétique et moralment suspecte.
4 le récit de vie d’une personne fait par elle-même, la mise en scène d’un ego épris de sa personalité.
5 se victimiser, établir un plaidoyer pro domo sua, se morfondre dans une nostalgie régressive et dans le souvenir
d’une situation antérieure paradisiaque, ou bien, revendiquer l’estime de soi, se contempler, se peindre
complaisamment non comme on se voit mais comme on veut se voir en adaptant son image à la personne
idéale que l’on souhaiterait devenir.
6 [...] ne pas parler de soi, s’occulter en tant qu’énonciateur dans le texte pour laisser le soin à son éloquence non
de dire ce que je suis, mais de dire, par le niveau même du langage que j’emploie, ce que je vaux, et de
majorer ainsi le moi créateur de discours (le stylisme peut être interpreté comme la dissolution du moi en un
pur esthétisme narcissique); la modestie étant, comme on le sait, l’art d’être loué deux fois, une autre forme
consiste à faire dire aux autres l’estime qu’ils ont de moi et à se faire un simple transcripteur de l’éloge; en n,
se peindre dans une posture honori que, exagérer sa générosité, sa tolérance, sa bienveillance ou son
empathie à l’égard d’autrui pour rechercher la atterie et donner de soi l’image d’un individu admirable,
aimable, dont la singulière perfection embrasserait le projet de construire sa legende préposthume.
7 Em seu recente livro, Mutações da literatura no século XXI (2016), Leyla Perrone-Moisés dedica um
capítulo à autoficção, intitulado “A autoficção e os limites do eu”, no qual conclui que “as autoficções
literárias se dividem em duas categorias: aquelas que são apenas escritas do eu, sem se abrir para o
leitor; e aquelas que são trabalho de linguagem, imaginativo e não imaginário. O eu é sempre o herói
das autoficções; mas elas podem ser apenas o cultivo narcisista do eu, obras de autoexibição, de
autojustificação, de ressentimento ou de vingança, sem nenhuma sublimação artística, isto é,
nenhuma imaginação, nenhuma invenção e nenhuma autocrítica. Nesse caso, elas só interessam ao
próprio autor e são tediosas para os outros” (Perrone-Moisés, 2016, p. 219). Na teoria francesa,
Philippe Vilain é o autor de análise similar e anterior, publicada em Défense de Narcisse (2005), que
não é citado no livro.
8 Trata-se do projeto de pesquisa “Espaços circunscritos e subjetividade: estudo sobre a formação do
romance de introspecção no Brasil”, coordenado por Ana Maria Lisboa de Mello, na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010-2014).
9 Termo cunhado por Williams James para descrever a forma de como se apresenta consciência por si
mesma.
10 Psiconarração é o neologismo criado pela teórica norte-americana Dorrit Cohn para tratar da escrita
intimista num contexto de terceira pessoa. O leitor aproxima-se da consciência narrada por meio da
análise do narrador, ou seja, conforme Cohn, através da inspeção. Tal definição encontra-se no livro
Transparent minds (1978), em que a autora mostra as técnicas utilizadas, no âmbito da narratologia,
para “transparecer a mente” da personagem.
11 Pode acontecer, também, na literatura de introspecção, que é mais abrangente que a escrita
confessional, a possibilidade de narrativas em terceira pessoa, nas quais o eu que narra não é o eu que
age. Podemos observar os romances de Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e
Perto do coração selvagem, em que o narrador de fora, em terceira pessoa, aproxima-se da personagem
numa relação tênue, dificultando a diferenciação entre ambos (narrador e personagem), pois o
narrador se apaga para dar espaço à personagem e, muitas vezes, adota a sua linguagem, fundindo-se
com a consciência narrada.
12 Para aqueles que consideram “tudo como ficção”, este esforço de distinção e classificação seria estéril
por não haver diferença real entre o autor e a personagem fictícia. Afinal, argumenta-se, por mais que
o autor revele seu desejo de falar sobre si, como no caso da autobiografia, presume-se que tudo é
criação e que tudo “foge ao autor”.
13 Croire que l’écriture autobiographique possède la fonction magique de sauver de l’oubli son passe, de se
connaître, de se retrouver dans l’univers du langage, de se remplacer et de se transformer en un objet
littéraire transcendant, paraîtra, en effet, éminemment dérisoire, puisque la littérature ne permet jamais de
retrouver de soi qu’une image imparfaite, un fantôme, une ombre, et puisque son ambition, quasi
sisyphéenne, condamne d’emblée son auteur à demeurer dans l’inconsolation permanente.
14 Il ne s’agit plus de trouver le moi, mais d’essayer, à la manière de Montaigne, de le trouver, seulement de
rechercher ce moi perdu dans le temps, comme si seule cette tentative intéressait.
15 Le désir de se connaître, de s’identi er à une image de soi, motive le plus souvent l’écriture
autobiographique, mais il n’est pas certain qu’une telle motivation puisse relever d’un pur exercice de
contemplation, car si nous pouvons contempler de l’extérieur ce que nous ne connaissons pas, nous
apprécions toujours mieux la contemplation de tout ce dont nous avons une connaissance intime et de tout
de que nous pouvons clairement identi er.
16 [...] si le soi est du côté de la xité, de l’image, de l’achevé, du stéréotype, le moi est ouvert au jeu, à
l’indécidable, à l’inachevé, ao biographème. Il y aurait comme deux aspects du moi (je n’ose pas parler ici du
sujet), le moi et le soi.
17 Dans mon salon j’ai étalé sur la commode des photos de ce que j’appelle moi aux différentes phases de ma
vie. Ce que je vois de moi est à chaque fois un autre, ‘je est un autre’ selon la formule célèbre de Rimbaud,
Je, qui n’existe qu’en un pur présent et qui pour moi ne peut jamais s’écrire qu’au présent (réel et ctif ), ne
peut plus s’identi er à la diversité de ses moi passés.
18 França – Le ls du printemps; Holanda – Eeuwig kind; Itália – Bambino per sempre; Portugal – O lho
eterno; Espanha – Ed. catalã: El ll etern; Austrália e Nova Zelândia – e eternal son. Na França, o
título foi traduzido para Le ls du Printemps (O lho da primavera). Já existia uma autoficção
intitulada L’enfant éternel, anterior à de Tezza, escrita pelo francês Philippe Forest (1962, Paris). Em
L’enfant éternel, publicado em 1997, Forest narra em primeira pessoa a história triste e delicada da
morte de sua filha Pauline, com câncer, aos quatro anos de idade. Na última página da autoficção,
Forest afirma que fez da sua filha um “ser de papel”, transformando suas memórias em aventuras
inventadas: “J’ai fait de ma lle un être de papier. J’ai tous les soirs transformé mon bureau en un théâtre
d’encre où se jouaient encore ses aventures inventées” (Forest, 1997, p. 399).
19 A prática de escrever sobre um tema pesado e cruel já acontecia em outras literaturas. Kenzaburo Oe
(1935), japonês, escreveu a experiência de ter o primeiro filho com anomalia cerebral, em Uma questão
pessoal, romance de 1964, traduzido para o português em 2003, pela Companhia das Letras, também
escrito na terceira pessoa do discurso. O recurso de imiscuir o monólogo interior do pai no uso da
terceira pessoa, bem como a temática da autoficção de Oe, assemelha-se muito a de O lho eterno. Em
Uma questão pessoal, o pai Bird deseja a morte do filho que nasceu com uma anomalia cerebral: “Seus
passos se apertavam cada vez mais, na ânsia de receber o quanto antes o anúncio da morte do bebê.
[...] Direi que nosso bebê, morto por um ferimento recebido na cabeça, selou nossa união carnal. Algo
assim. A vida doméstica voltará à normalidade – às mesmas insatisfações, às mesmas frustrações, a
África sempre distante...” (Oe, 2003, p. 96). Tal passagem é muito semelhante à narrativa de Tezza.
20 Transcrição da entrevista on-line com Cristóvão Tezza, realizada pela Saraiva Conteúdo. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Oi8O8V2hLKY. Acesso em 17 mai 2017.
21 Nesses estudos, Ricœur mostra o caráter temporal da existência humana, bem como o mundo exibido
na obra narrativa como um mundo temporal.
22 Barthes considera, ainda, que o eu pode ficar aquém da convenção, como no caso do Proust, ou além
da convenção, como nas narrativas gidianas. Já o ele romancesco representa uma convenção
indiscutível, “signo de um pacto inteligível entre a sociedade e o autor; mas é também para este último
o primeiro meio de fazer com que o mundo se mantenha do jeito que ele quer. É mais do que uma
experiência literária, portanto: um ato humano que liga a criação à História ou à existência” (Barthes,
2004, p. 32).
23 [...] fausse ction, qui est histoire d’une vraie vie (Doubrovsky, 1988, p. 69-70).
24 Transcrição da entrevista on-line com Cristóvão Tezza, realizada pela Saraiva Conteúdo. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Oi8O8V2hLKY. Acesso em 17 mai 2017.
25 Le Point.fr, 27 mai 2013. Disponível em: http://www.lepoint.fr/ces-gens-la/l-ecrivain-christine-angot-
condamnee-pour-atteinte-a-la-vie-privee-27-05-2013-1672728_264.php. Acesso em: 28 out. 2016.
26 L’Obs, 7 out 2011. Disponível em: http://tempsreel.nouvelobs.com/le-dossier-de-l-
obs/20111007.OBS1980/histoires-d-ex-ce-livre-est-une-revanche.html. Acesso em: 28 out. 2016.
27 Le Point.fr, 25 fev 2013. Disponível em: http://www.lepoint.fr/culture/j-ai-lu-belle-et-bete-le-livre-de-
marcela-iacub-sur-dsk-25-02-2013-1632213_3.php. Acesso em: 10 nov 2016.
28 “Ecrire sur soi, c’est inévitablement écrire aussi sur les autres” (Doubrovsky, 2013).
29 O modo como o livro foi escrito e produzido é um tanto curioso, a autora escreve da forma mais
secreta possível, atenta a todos detalhes, já prevendo a repercussão polêmica de sua publicação e a
possibilidade de boicote: “O livro só chega às livrarias francesas nesta quinta, mas na quarta-feira já era
o mais encomendado no site da Amazon francesa. A obra foi escrita em total sigilo e sua produção e
distribuição parecem um romance de espionagem. Para manter o segredo, os livros foram impressos na
Alemanha e só foram transportados de caminhão para a França na quarta-feira. Trierweiler utilizou
um computador não conectado à internet para evitar vazamentos. O trabalho sai por uma pequena
editora, Les Arènes, a fim de limitar o número de pessoas envolvidas na publicação” (Fernandes,
2014).
30 Para Laub, “quem publica algo do gênero precisa assumir as consequências de suas escolhas”, senão é
querer ficar apenas com a parte boa da mamadeira.
31 A mesma identidade onomástica já aparecia em O céu dos suicidas, romance de Ricardo Lísias anterior
ao Divórcio, publicado em 2012, também pela editora Alfaguara. O estilo de escrita fluido, dividido
em pequenas partes, a identidade onomástica, o trabalho de um trauma, o tom pesado, a partilha da
dor, culpa e raiva, aproximam os dois romances autoficcionais de Lísias. No primeiro, O céu dos
suicidas, a experiência pessoal da perda do amigo André, que se enforcou, leva o escritor à trajetória
agônica de luto e desabafo. Lísias (narrador-personagem) não se conforma com o suicídio do amigo e
compartilha, por meio da escrita, seu sofrimento, o sentimento de culpa e sua resistência às verdades
estabelecidas (religiões e psiquiatria, principalmente), realizando, assim, uma espécie de luto da morte
do amigo. Nesse livro, ficção e realidade se misturam, mas o autor mantém o nome verdadeiro do
amigo André.
32 Para Jacques Lecarme, um dos problemas da autoficção é “o tratamento do nome próprio dos outros
personagens”. A ficção começaria com a mudança desses nomes próprios, de forma a poupar o autor
de problemas jurídicos (Lecarme, 2014, p. 100).
33 Lísias, 2013, p. 226, p. 189.
34 Idem, Ibidem.
35 Lísias, 2013, p. 214.
36 Resposta de Ricardo Lísias para a pergunta de Luciano Trigo: “A exposição de episódios da vida
pessoal que envolve também outras pessoas não cria uma questão ética? Como você lida com ela?”. G1
“Máquina de escrever”, 08 set. 2013. Disponível em:
http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/tag/divorcio/. Acesso em: 10 out. 2013.
37 serait donc qu’il est possible de parler, par elle, de soi-même et des autres sans aucun souci de censure.
38 Título do romance de Silviano Santiago, no qual o autor joga com as noções de ficção/realidade;
verdade/mentira; real/imaginário; etc.
39 À época de publicação, o ex-deputado federal Eduardo Cunha encontrava-se preso e condenado por
corrupção. Aguardava-se que fosse pleitear os benefícios da denominada “delação premiada”, criada
com a aprovação da lei anticorrupção, aprovada em 2013. Por meio desse mecanismo, acusados de
crimes podem ter suas penas reduzidas no caso de delatarem e comprovarem o envolvimento de outras
pessoas, bem como os mecanismos e estratégias de que se valiam os criminosos.
40 Segundo a matéria de Sérgio Luz, o escritor Ricardo Lísias e seu editor Carlos Andreazza foram
condenados a pagar 30 mil a Cunha, por indenização moral. Além disso, houve recolhimento das
cópias. Fonte: “Justiça manda recolher livro de Ricardo Lísias”, Sérgio Luz, Segundo Caderno, 16 mar.
2020, p. 6.
41 Associação composta por autores, intérpretes e herdeiros de direitos autorais sobre obras musicais e
líteromusicais, dedicada a estudar e informar aos interessados, e à população em geral, as regras, leis e
o funcionamento de associações de direito autoral, entidades e instituições relacionadas à
administração e licenciamento de direitos autorais e conexos e da indústria da música, bem como
atuar como uma plataforma profissional de atuação política e representativa na defesa e
implementação dos interesses da classe. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/procure-
saber/gloss%C3%A1rio-discuss%C3%B5es-pls-129/434470673318219. Acesso em: 26 out. 2013.
42 “Acadêmicos divulgam carta a favor das biografias não autorizadas; leia íntegra”. Folha de São Paulo.
Ilustrada. 12/11/2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1370016-
academicos-divulgam-carta-a-favor-das-biografias-nao-autorizadas-leia-integra.shtml. Acesso em 12
nov. 2013.
43 “Roberto Carlos é censor nato e hereditário’, diz Ruy Castro em festival de biografias”. Folha de São
Paulo. Ilustrada. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1372166-tese-da-
biografia-independente-ja-esta-ganha-diz-ruy-castro-em-fortaleza.shtml. Acesso em 15 nov. 2013.
44 “Biografia não é invasão de privacidade”. O Globo. Opinião. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/opiniao/biografia-nao-invasao-de-privacidade-10762406. Acesso em: 13 nov.
2013.
45 [...] il y a des choses que je ne peux pas dire, qui touchent au secret d’autrui, à sa honte. Dans ces moments-
là, je fais comme je peux. Je pense parfois qu’il existe des choses que je ne dois pas écrire, même si j’ai le droit
de le faire. Je ne sais pas tout, et je ne peux usurper la parole des autres. [...] le écrivain doit avoir une
éthique, et celle-ci est chevillée à la vérité.
46 Il est difficile de connaître les contours de sa censure intérieure. Elle dépend beaucoup de l’époque, de ce qui
est acceptable ou pensable de dire au moment où l’on écrit.
47 Lavocat lembra de exemplos remotos, como o caso de Zola: “Na França, no século XX, antes mesmo
de pronunciadas as palavras ‘autoficção’, ‘docuficção’ ou ‘faction’, são Émile Zola, Jules Verne, Anatole
France, Georges Simenon ou San-Antonio que foram julgados por ficcionalidade imperfeita ou
factualidade abusiva” (Lavocat, 2016, 281-282).
48 Anotações do Workshop Auto cciones, ministrado na PUCRS, em 2013.
49 Conforme dados obtidos no Ngram, o gráfico aponta um crescimento expressivo do uso do termo
autofiction a partir dos anos 2010. Disponível em: https://books.google.com/ngrams/graph?
content=autofiction&year_start=1977&year_end=2019&corpus=26&smoothing=3. Acesso em: 25
nov. 2020.
50 No original: “Le premier point, déjà mentionné mais essentiel selon moi, est cette impossibilité d’entretenir
deux idées génériques simultanément”, “[...] le cerveau est un organe de choix, et que choisir signi e
exclure”.
51 Schmitt também relaciona a autoficção com outro movimento literário nascido nos Estados Unidos
nos anos 1960: “faction, fusão dos termos ingleses ‘fact’ e ‘fiction’. [...] Revisitar o real com a liberdade
da ficção” (Schmitt, 2010, p. 81).
52 It stems from the altered relationship between the narrator and his protagonist when that protagonist is his
own past self. e narration of inner events is far more strongly affected by this change of person than the
narration of outer events; past thought must now be presented as remembered by the self, as well as expressed
by the self.
53 “É um abuso inadmissível assimilá-lo, como Vincent Colonna, à autofabulação, em que um sujeito,
dotado do nome do autor, inventaria para si uma existência imaginária, tal como Dante contando sua
descida ao inferno ou Cyrano seu voo em direção à lua” (Doubrovsky apud Gasparini, 2008, p. 298).
No original: C’est un abus inadmissible que de l’assimiler, comme Vincent Colonna, à l’autofabulation,
par laquelle un sujet, doté du nom de l’auteur, s’inventerait une existence imaginaire, tel Dante racontant sa
descente en enfer ou Cyrano son envol vers la lune.
54 Vale esclarecer que esse não é o caso de Altair Martins, que nunca teve sua obra associada à autoficção,
nem apresentou interesse nisso. Apenas na entrevista, Martins afirma considerar a autoficção uma
etiqueta possível para seus livros.
55 1981; vencedor do Prêmio Jabuti de Romance, em 1982.
56 Termo advindo da genética, vem de quiasma, que é um ponto de encontro entre os cromatídeos,
durante a divisão celular.
57 First of all, as concerns that obviously deliberate transformation of auto into oto, which has been in a
chiasmatic fashion today [...] we pass by way of the ear – the ear involved in any autobiographical discourse
that is still at the stage of earing oneself speak. (at is: I am telling myself my story, as Nietzsche said, here
is the story that I am telling myself; and that means I hear myself speak.) I speak myself to myself in a
certain manner, and my ear is thus immediately plugged into my discourse and my writing.
58 [...] it is the ear of the other that signs. e ear of the other says me to me and constitutes the autos of my
autobiography. When, much later, the other will have perceived with a keen-enough ear what I will have
addressed or destinated to him or her, then my signature will have taken place.
59 Rérolle, Raphaëlle. “Toute écriture de vérité déclenche les passions”. Autofiction/Dossier. Le Monde.
Vendredi 3 février 2011.
60 Termo de Elizabeth Bruss, estudiosa da questão da autobiografia a partir do modelo linguístico, que
entende a autobiografia como ato literário (e não como pacto – Lejeune).
61 Au mot autofiction, je préfère ‘écriture du soi’ (et non pas du ‘moi’, qui fait pencher du côté du narcissisme).
Le ‘soi’ transcende le ‘moi’ et doit pouvoir rejoindre quelque chose chez le lecteur. Néanmoins, ce qui
m’intéresse dans ce mot, c’est la réunion de l’autobiographie et de la ction. Cela souligne que
l’autobiographie est toujours une ction. Dès qu’on utilise des mots pour raconter sa vie, on fait entrer de
l’imaginaire, la mémoire in dèle, des procédés narratifs tels que la condensation, l’ellipse...
62 C’est un monstre informe, une sorte d’archi-genre, qui recouvre toutes les formes d’écriture du moi et met
sous la même bannière des écritures extrêmement différentes. Chaque fois que le personnage est le même que
l’auteur, on parle d’auto ction. Plus qu’une ‘ ction d’événements et de faits strictement réels’, dé nition
donnée par Serge Doubrovsky, je pense que l’auto ction est la suite du roman autobiographique, mais
transposé à notre époque, donc différent, notamment parce que la réception a changé. Avant, le roman
autobiographique cherchait surtout à dissimuler l’auteur, aujourd’hui l’auto ction sert à le dévoiler et c’est
ça qui intéresse.
63 Pour parler de mon père, de sa trajectoire sociale, ça ne marchait pas, la seule écriture juste m’a paru
être le refus de toute fiction et ce que j’ai appelé ensuite ‘autosociobiographique’ parce que je me fonde
presque toujours sur un rapport de soi à la realité sociohistorique.
64 […] that kind of ction that tries to explore the possibilities of ction; the kind of ction that challenges the
tradition that governes it; the kind of ction that constantly renews our faith in man’s imagination and not
in man’s distorted vision of reality – that reveals man’s irrationality rather than man’s rationality. is I call
SURFICTION. However, not because it imitates reality, but because it exposes the ctionality of reality.
Just as the Surrealists called that level of man’s experience that functions in the subconscious SURREALITY,
I call that level of man’s activity that reveals life as a ction SURFICTION.
1 Il n’y a pas une forme d’auto ction, mais plusieurs, comme il existe différents mécanismes de conversion d’une
personne historique en personnage ctif.
2 Tous les composés littéraires où un écrivain s’enrole sous son nom propre (ou un dérivé indiscutable) dans une
histoire qui presente les caractéristiques de la ction, que ce soit par un contenu irréel, par une conformation
conventionnelle (le roman, la comédie) ou par un contrat passé avec le lecteur.
3 Le double projeté devient un personnage hors norme, um pur héros de ction.
4 le lecteur experimente avec l’écrivan un ‘devenir- ctionnel’, un état de dépersonnalisation, mais aussi
d’expansion et de nomadisme du Moi.
5 Grâce au mécanisme du ‘mentir-vrai’, l’auteur modele son image littéraire, la sculpte avec une liberte que la
littérature intime, liée au postulat de sincerité posé par Rousseau et reconduit par Leiris, ne permettait pas.
6 Ce peut n’être qu’une silhouette; l’important est qu’il vienne se placer dans un coin de son ouvre, qui ré échit
alors sa présence comme le ferait un miroir.
7 “[...] la transformation de l’écrivain n’a pas lieu par le truchement d’un personnage, son interprète
n’appartient pas à l’intrigue proprement dite. L’avatar de l’écrivain est un récitant, un raconteur ou un
commentateur, bref un ‘narrateur-auteur’ en marge de l’intrigue”.
8 Na minha tese de doutorado, ensaiei classificar as autoficções brasileiras, como um princípio de
trabalho arqueológico da autoficção, conforme a tipologia de Colonna. Com o amadurecimento da
pesquisa, renunciei a tal classificação e retirei os títulos deste quadro (originalmente publicado na
tese).
9 Si l’on examine l’auto ction recente, deux éléments sautent aux yeux: l’abondance de femmes qui la
pratiquent et la place qu’y ocupe le corps. Pourquoi tant de femmes et pourquoi tant de corps? Existe-t-il un
lieu entre la femme, l’auto ction et le corps?
10 [...] l’écrivain assume la triple identité auteur-narrateur-personnage et impose par le fait même le pacte de
lecture dont j’ai souligné les limites, c’est-à-dire la façon dont le livre sera lu. L’auteur, qui met en scène sa
prope personne, est à la fois sujet et objet de l’action décrite. À l’opposé, dans l’auto ction, le narrateur ou la
narratrice incarnent un personnage dont ils ne partagent pas nécessairement l’identité. Mais on sent la
plupart du temps celle-ci presente sous les mots, prête à in echir le texte dans sa direction, à l’investir de son
désir, de ses hantises et de ses préocupations. Et la part d’esquive, de dérobade ou de mysti cation que le récit
permet est sans doute comparable à celle contenue dans le postulat de vérité et d’authenticité auquel se
voyaient forcés de souscrire les autobiographes.
11 Tout écrivain projette dans son oeuvre ses fantasmes, ses pensées, son monde imaginaire et ses expériences de
vie. L’insertion des faits autobiographiques dans l’intrigue romanesque, ou créer des personnages à partir de
gens connus, n’est pas du même ordre que de se mettre en scène dans un texte sous sa prope identité. Dans
l’auto ction, l’auteur se réserve le droit de s’effacer, ou d’apparaître dans le texte avec son prénom ou même
son nom accompagné de réferences personalles: sexe, profession, vie sentimentale, lieu habité, etc.
12 Gisèle Prassinos nasceu na Constantinopla, em 26 de fevereiro de 1920, numa família de origem
grega, e emigrou para a França em 1922, por causa da guerra greco-turca (1919-1922). Também foi
poeta e tradutora. Ver: http://www.leshommessansepaules.com/auteur-Gis%C3%A8le_PRASSINOS-
555-1-1-0-1.html.
13 L’auto ction est devenue consciente. Dès lors, susceptible d’être travailée, distanciée, parodiée, elle est genre à
part entière (Richard, 2013, p. 9).
14 [...] est d’abord un dispositif très simple, soit un récit dont auteur, narrateur et protagoniste partagent la
même identité nominale et dont l’intitulé générique indique qu’il s’agit d’un roman.
15 Texto publicado em 2007 e traduzido para o português em 2014, disponível em Ensaios sobre a
auto cção, p. 127-162.
16 Le problème de cette conception dualiste est qu’elle néglige tous les textes littéraires qui s’inscrivent aux
frontières de l’autobiographie et du roman, qui entremêlent différents genres, qui transposent la vie en
roman et qui reposent justement sur la dialectique du vrai et du faux.
17 De fait, S. Doubrovsky, introduisant l’expérience analytique au sein du texte, est amené à théoriser sa
pratique littéraire, à se livrer à une analyse du fonctionnement de son écriture. L’auto ction aurait ainsi
pour caractéristique de présenter, en ligrane, une ré exion sur le statut théorique des écritures à la première
personne et de jeter la lumière sur les terroirs obscurs de la personnalité.
18 Elle est une écriture du fantasme et, à ce titre, ele met en scène le désir, plus ou moins déguisé, de son auteur
qui cherche à dire, en même temps, tous les moi qui le constituent.
19 Les interrogations identitaires sont toujours louvoyantes, obliques: comme si, nalement, on n’était jamais
soi-même que dans le mensonge – et comme si le mensonge seul pouvait nous révéler à nous-mêmes. L’espace
qui se construit autour de ce moi ambivalent est fait d’instabilité, de transitions, d’incertitudes.
20 L’un des privilèges de l’auto ction, fondé sur un « pacte oxymorique », serait donc qu’il est possible de parler,
par elle, de soi-même et des autres sans aucun souci de censure, de livrer tous les secrets d’un moi
changeant, polymorphe, et de s’affirmer libre en n d’idéologies littéraires en apparence dépasées. Elle offre à
l’écrivain l’opportunité d´expérimenter à partir de sa vie et de la mise en ction de celle-ci, d’être tout à la
fois et lui-même et un autre.
21 L’usage de la première personne permet à l’auteur d’auto ction de réévaluer ses expériences intimes, ses
habitudes.
22 Les écrits à la première personne sont donc particulièrement à même de rendre compte non seulement de la
banalité de la vie quotidienne, de la comédie sociale, de l’inconscient des jours, mais aussi de l’enfance, de la
mort, du sexe, des rêves, des mensonges à soi-même.
23 L’auteur d’auto ction brouille méthodiquement les pistes et laisse au lecteur la liberté de suivre les chemins
obscurs de l’authenticité et des chimères, de décrouvir, çà et là, des points d’emergence et de clarté de la
personnalité. L’usage de la première personne permet d’assurrer la cohérence de fantasmes, de rêves obsédants,
d’images chaotiques, de métaphores étonnantes, d’étranges sensations. [...] L’usage de la première personne
permet à l’auteur d’auto ction de réevaluer ses expériences intimes, ses habitudes. Nous avons vu que cést
sans doute parce qu’elle est l’expression de contradictions insolubles, que l’auto ction bascule
irrémédiablement dans l’imaginaire (même si, encore une fois, celui-ci peut être plus réel que la réalité elle-
même). C’est aussi parce qu’elle se situe irrémédiablement au point de jonction du rêve et de la vérité, qu’elle
est constituée d’images en mouvement, d’apparitions éphémères, de lambeaux de cauchemars.
Apêndice
1 Fonte: www.adrianalisboa.com/biografia.
2 Entrevista disponível em http://www.lepoint.fr/grands-entretiens/serge-doubrovsky-ecrire-sur-soi-c-est-
ecrire-sur-les-autres-22-02-2011-1298292_326.php.