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PRINCÍPIOS BÁSICOS DA

GRANDE ESTÉTICA DE LUKÁCS


Deribaldo Santos

PRINCÍPIOS BÁSICOS DA
GRANDE ESTÉTICA DE LUKÁCS

1ª Edição
2023
Diagramação: Coletivo Veredas
Capa: Coletivo Veredas
Revisão: Rogério Rufino de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
________________________________________________________
Santos, Deribaldo
Princípios básicos da grande estética de Lukács / Deribaldo
Santos. -- 1. ed. -- Maceió, AL : Coletivo Veredas, 2023.

Bibliografia.
ISBN 978-65-88704-34-9

1. Estética 2. Lukács, Gyorgy, 1885-1971 - Estética 3. Marx,


Karl, 1818-1883 - Filosofia 4. Marxismo I. Título.

23-164722 CDD-335.401
_______________________________________________________
Índices para catálogo sistemático:
1. Marxismo : Filosofia 335.401
Bibliotecária responsável: Tábata Alves da Silva - CRB-8/9253

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1ª Edição
2023

Coletivo Veredas
www.coletivoveredas.com.br
Prefácio

Princípio básico de boas-vindas

Rogério Rufino de Oliveira

O nome que Georg Lukács deu a seu livro, A peculiaridade


do estético, serve não apenas como título, mas se faz de anúncio
da proposta de conteúdo feita ao leitor. O horizonte do autor é
o apontamento das características ontológicas do fato artístico,
dos elementos constitutivos do ser da arte, daí a apreciação do
que lhe é peculiar. O desafio é imenso porque a arte faz parte
da sociedade, medeia as contradições das relações humanas e
entre as pessoas e a natureza. O esforço teórico de apresenta-
ção do teor especificamente artístico por meio da exposição do
desenvolvimento histórico e da constituição de suas categorias
imanentes é o que o leitor encontrará na Estética.
A diferença entre o que é a arte e o que são a política, a so-
ciedade, a economia, o modo de produção capitalista, o direito,
a filosofia, a militância partidária, a subjetividade etc torna-se
um grande mote que, para Lukács, define-se sob as rédeas do
devir histórico. A história mostra, por dentro e não por fora do
seu desenvolvimento, sem lançar mão de uma razão teleológica,
o fator da arte que não se repete em nenhum outro empreen-
dimento social também historicamente elaborado. A relação do
propriamente artístico com a totalidade social não possui auto-
nomia absoluta, mas relativa e dialética.
O fato de o motor que dá vida e sustentação rigorosa ao
texto de Lukács ser a ciência da história faz com que o livro
do autor considere os traços próprios dessa abordagem, preser-
vando as marcas de seu movimento contínuo, contraditório e

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complexo. O leitor encontrará uma sistematização detalhada
e refinada do processo de desenvolvimento das categorias es-
téticas, formação intimamente atrelada à evolução social des-
de os tempos mais remotos da sociedade humana. A paulatina
composição do ser social determinou a definição do artístico,
que, por sua vez, em seu progresso, estabeleceu a reciprocidade
da mútua determinação com o ser social. Durante a história, o
que havia de categorias pré-estéticas e posteriormente estéticas
sempre se vinculou ao patamar qualitativo de organização dos
grupos sociais correspondentes à época e ao lugar.
Quando Lukács apresenta, por exemplo, os reflexos cien-
tífico, religioso e artístico, a gênese de cada um, o que possuem
em comum, de diferente e a maneira como se desmembraram
um do outro, tudo isso torna evidente o passeio da história atra-
vés das metamorfoses da materialidade. Conceitos conhecidos
da filosofia da arte como a mimese, a catarse, a evocação, os
gêneros artísticos etc ganham, na Estética, a consideração minu-
ciosa a respeito do que fizeram ser o que são em conluio com a
práxis humana.
No Brasil, a versão mais lida do livro é a tradução de Ma-
nuel Sacristán para o espanhol, pertencente às Ediciones Grijal-
bo, publicada em 1966 (os tomos I e II) e em 1967 (os tomos
III e IV), na Espanha. São mais de 1800 páginas voltadas a uma
filosofia da arte filiada ao marxismo, e que debate com grandes
pensadores ocidentais que escreveram sobre o assunto. Aristó-
teles, Spinoza, Goethe, Kant, Hegel, Marx e inúmeros outros
são submetidos ao estudo crítico de Lukács, que extrai desses
filósofos aquilo que é pertinentemente definido pelo objeto que
está no centro da análise, a peculiaridade do estético.
Não é fácil ler e estudar a Estética, não adianta dizer o
contrário. Não só pelo tamanho do livro e pela dimensão me-
tafísica de seu enfoque, mas também pelo comportamento
paciente de seu texto, que desvela detalhadamente seus temas
conforme a coerência de seu projeto, que delineia cada etapa da

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formação daquilo que, do ponto de vista histórico, apenas tar-
diamente veio a se constituir como arte. Em vários momentos
de sua redação, Lukács começa a exposição de um assunto e diz
no mesmo trecho que só mais à frente o desenvolverá a conten-
to; o autor compreende que antes precisa apresentar informa-
ções prévias que ajudarão na compreensão, mas também que
estão situadas numa etapa anterior ou intermediária da con-
formação do tema posteriormente esclarecido. Exemplo disso é
que, dividida em quatro tomos na edição espanhola, apenas no
terceiro é que se aprecia, em um capítulo exclusivo, a categoria
da particularidade detidamente. Porém, antes, nos tomos um
e dois, onde estão as questões preliminares e de princípio e da
mimese, a particularidade já se faz presente, não devidamen-
te conceituada, mas como embrião em movimento no texto,
rumo à consistência e à nitidez.
Guardadas as devidas características de cada livro, Deri-
baldo Santos faz o mesmo em alguns momentos neste Princípios
básicos da Grande Estética de Lukács. Quem chegou aqui para
aprender com pressa, encontrará uma introdução que não dis-
pensa a leitura da Estética. Quem veio em prol de uma consulta
de catálogo, perceberá que Deribaldo, apesar de abrandar o grau
de abstração, conserva proporcionalmente o entrelaçamento das
categorias, fazendo com que a noção de uma contribua para o
aprendizado das outras. Quem tem apreço por abordagens da
moda, encontrará um caminho cujo horizonte, historicamente
respaldado, é apontar que apenas poucas criações merecem a
consideração de arte autêntica. Quem opta pelo conforto de uma
conduta criticamente branda, que capitula, intencionalmente ou
não, com as formas decadentes da sociedade capitalista neoli-
beral, perceberá que, e compreenderá o porquê, assim como as
pessoas, a verdadeira arte também é hostilizada pelo capital.
Na Estética, o mesmo fator que pode instigar e fascinar
alguns, repele e decepciona quem busca uma abordagem na mes-
ma toada das teorias hegemônicas da dinâmica de mercadorias

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conceituais das universidades atuais. Publicada originalmente
por Lukács em 1963, em Berlim, poderia se dizer que seu livro
continua atual, mas a questão ainda não é bem essa. A discussão
a respeito de sua atualidade seria mais pertinente se as ideias da
Estética fossem amplamente discutidas no Brasil. Mas o fato é
que, sessenta anos depois, ainda não são. Não há, por enquan-
to, sequer uma tradução para o português, fator que certamente
contribui para tamanho desconhecimento. Não há como se man-
ter atual aquilo que ainda não se estabeleceu consideravelmente
através de pesquisas e debates. A tarefa deste Princípios básicos da
Grande Estética de Lukács é a de ser mais que um livro comen-
tador, o trabalho de Deribaldo se coloca, para muitas pessoas,
como o de uma apresentação capaz de conduzir o/a estudante a
uma teoria estética, talvez inédita para ele/ela, que nada tem a ver
com a obsolescência programada dos conceitos pertencentes às
modas circunstanciais das pesquisas acadêmicas em sua maioria.
Uma porta de entrada para princípios básicos não revela
de uma vez todas as dependências de uma casa. Sua função é a
de ser portal para um ambiente de recepção, propiciar uma boa
acolhida, momento prévio cuja função de familiarização pre-
para para um porvir. As demais partes da casa são conhecidas
em outros momentos, quando se tem intimidade com o lugar e
com os responsáveis por ele. Quando os outros espaços passam
a ser necessários ao hóspede, de acordo com o seu tempo de
permanência ali, naturalmente serão abertos e revelados. Cada
cômodo ou canto descoberto, pela forma própria de sua deco-
ração, produzirá algum estranhamento, surpresa, talvez rejeição
no começo, ou encantamento desde o instante da descoberta.
Assimila-se aos poucos, sem pressa. Decora-se os caminhos pas-
sando por eles mais de uma vez.
Conhecer uma casa implica estar nela por dentro, ser envol-
vido por seu espaço total com chão, paredes e teto. Assim é com
a Estética. Considere este Princípios básicos da Grande Estética de
Lukács como uma saudação de boas-vindas. O livro de Deribaldo

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não é mero instrumento passivo nessa experiência, pois o que se
revela nele é capaz de despertar no hóspede uma vontade incon-
trolável de desbravar os segredos de toda a casa, desde as bases de
sua construção até as sutilezas mais implícitas de seus adornos. Até
que um dia, se assim desejar, possa considerá-la como lar.
O professor Deribaldo Santos é trabalhador da educação
que se dedica, entre outros temas de seu ofício, ao estudo da teo-
ria estética de Lukács há anos. Os livros que já publicou sobre
esse tema relevam, pelas próprias características dessas publica-
ções, tanto um preparo para a sistematização do todo, visto em
Estética em Lukács: a criação de um mundo para chamar de seu
(2018), como habilidade para o aprofundamento de categorias
e abordagens específicas da Estética, visto em A particularidade
na Estética de Lukács (2017), em Arte-educação, estética e forma-
ção humana (2020) e em A ética na Grande Estética de Lukács: a
arte como unanimidade anônima (2021). Tanto numa proposta
como na outra, o desafio é enorme.
No primeiro caso, Deribaldo submete o maior livro de filo-
sofia da arte de Lukács, o mais importante do marxismo e um dos
mais relevantes já feitos, à sua capacidade professoral de transmi-
tir o denso e o complexo no sinteticamente acessível, sem que se
perca em qualidade aquilo que pertence à densidade. No segundo
caso, o tratamento específico mostra a importância de categorias
centrais sem fazer parecer que podem ser apreciadas e esgotadas
isoladamente. O desafio de um livro breve, como este Princípios
básicos da Grande Estética de Lukács, estaria mais próximo do pri-
meiro ou do segundo? Na verdade, trata-se de um desafio novo,
de outro tipo, pois conserva a pretensão de abordar toda a Estética
e ao mesmo fazê-lo com a intenção da coesão sucinta.
O professor Deribaldo é pioneiro no Brasil no estudo e
na produção intelectual sobre a Estética. Outros estudioso e co-
mentadores da obra de Lukács, considerando outras fases de sua
produção intelectual, o neokantismo, o hegelianismo e os pri-
meiros anos já como marxista, escreveram e ainda escrevem tex-

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tos que apreciam a empresa lukacsiana. Mas ninguém escreveu
sobre a Estética como Deribaldo, é com ele que a principal obra
de filosofia de arte de Lukács ganhou no Brasil uma “tradução”
antes da tradução. Além do trabalho bibliográfico, o professor
sempre participa ou mesmo promove cursos, encontros e grupos
de estudo, amplificando a difusão do livro e de suas ideias a es-
tudiosos de diversas partes do Brasil. Neste livro, o leitor encon-
trará uma apreciação não apenas de um professor, um pensador,
um intelectual, há também algo do artista. Deribaldo também é
autor do romance Segredos de Serendipte (2019).
A condição de intelectual-artista, assim como a arte, pos-
sui sua peculiaridade. O artista que é intelectual não pode dei-
xar que seu conhecimento conceitual interfira em sua criação, de
modo a danificar a razão de ser de seu empreendimento criativo.
O intelectual que é artista não pode vacilar no rigor, não pode se
deixar levar pelo vislumbre criativo e variado das formas, perder-
-se naquilo que possui aparência agradável e prazerosa a ponto
de ferir subjetivamente a credibilidade de sua crítica. A arte vem
primeiro, ela lidera o cortejo de que a teoria também faz parte,
seguindo logo atrás em prol de iluminar aquilo que de tempos
em tempos surge como o novo, o ainda sem nome. Deribaldo
permanece nas suas posições. Está com a arte, em sua posição de
liderança no caminho da história, e desse ponto de vista conse-
gue perceber logo atrás o comportamento posterior da teoria sem
apreciá-lo com racionalismo insensível de enciclopédia. Está com
a teoria, liderada historicamente pela arte, e desse ponto de vista
conduz a sensibilidade do artista para compreender e manusear
categorias não como ferramentas meramente úteis, mas como
recursos que refinam o vigor da experiência de educação estética.
Princípios básicos da Grande Estética de Lukács mantém, de
acordo com a sua proposta de síntese, a ordem da exposição das
categorias da Estética. Essa opção não só tem a intenção de levar
ao leitor a organização do livro de Lukács, mas essa diretriz tem
ela mesma uma proposta de sistematização que, primeiro é his-

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tórica, e depois, de maneira compatível, didática. As noções de
trabalho, cotidiano e reflexo são apresentadas antes, não só por-
que Lukács também o faz, mas porque preparam o pensamento
do leitor para receber o que virá depois, indissociável da impor-
tância que cumprem tais categorias. Quando alguém lê o termo
“objetivações superiores”, mais à frente, pode pensar que se trata
de um termo muito abstrato; essa dificuldade pode ser mais fa-
cilmente superada porque já se apresentou, antes, os papeis que
cumprem o trabalho, o cotidiano e o reflexo que, juntos, possi-
bilitam essas objetivações qualitativamente mais desenvolvidas.
Para facilitar ainda mais a compreensão, Deribaldo elabo-
rou, por sua conta, uma organização de categorias, denomina-
das por ele de nodais, que, por serem apresentadas dentro de um
conjunto coerente conforte a função de cada conceito, oferece ao
estudante uma organização de raciocínio que primeiro alcança a
proposta de abstração desse conjunto dado pelo professor antes
de perceber o sentido que tais categorias possuem na constitui-
ção do propriamente estético. Os sentidos que possuem as no-
ções de antropomorfização, desantropormofização, imanência
e transcendência, termos também aplicados fora do âmbito da
filosofia da arte, ganham aqui, no esquema do quarteto de duas
duplas (antropomorfização e desantropormofização formam um
par, imanência e transcendência pertencem a outro), o direcio-
namento que conduz tais nomes ao encaixe que possuem dentro
da concepção do propriamente estético. A diferença entre arte,
religião e ciência, distinção fundamental para a compreensão do
livro de Lukács, define-se com precisão por meio desses pares.
Pode-se dividir este livro em três partes. A primeira con-
tém os capítulos 1 e 2, que apresentam as categorias básicas de
compreensão da formação onto-histórica da arte, seu envolvi-
mento no cotidiano, sua participação no complexo social ao
longo da história e no tempo presente. O capítulo 3 funcio-
na como mediador entre o que vem antes e depois. Ele trata
da particularidade, categoria central da Estética. Pode-se dizer

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que o que se apresentou antes se articula histórica e logicamen-
te para que a particularidade, sem a qual a arte não é possível,
possa ser formulada. A dificuldade de se responder à questão “o
que é arte?”, bastante difundida no senso comum, livra-se da
vulgaridade em que costumeiramente é submetida e se eleva ao
patamar do desafio ontológico da própria proposição. A dificul-
dade de se estabelecer o que é a arte, ou se isso ou aquilo é arte,
permanece, mesmo estudando Lukács, mas o problema passa
a viver na imanência do objeto em sua relação dialética com o
mundo, com a teoria e, principalmente, com a história.
No capítulo da particularidade, o leitor terá acesso ao fa-
tor ímpar do fenômeno artístico. É o encontro entre o leitor e
a realização do título do livro de Lukács. Mas há uma surpresa
para a expectativa que considera uma categoria como a marca
fixa do significado de um fenômeno do real, que se coloca nele
a fim de sinalizá-lo à consciência. Deribaldo descreve o porte de
mediação maleável dessa categoria, seu comportamento elástico
que se molda junto à universalidade e à singularidade, e que
ganha sempre uma nova forma a cada novo objeto artístico que
traz em si algum grau de novidade. A categoria, que de certa
forma trabalha para classificar, faz de seu ofício o momento para
uma contínua dança com novos movimentos surpreendentes na
coreografia da razão.
Os capítulos 4, 5 e 6 são desdobramentos da etapa alcan-
çada até aqui. As noções apresentadas só são possíveis depois
que se compreende o que a arte apresenta como particularida-
de. A tipicidade e o realismo, que com frequência são entendi-
dos equivocadamente, posicionam-se, segundo a abordagem de
Lukács alocada neste livro, justamente nesse campo móvel do
âmbito particular; nesse momento fará sentido o erro que é pen-
sar o realismo como escola/fase artística ou mera classificação
formal, pois a apreciação da Estética, facilitada por Deribaldo,
livra-o de qualquer rigidez normativa. Quando se fala da catarse
e da autoconsciência humana, novos horizontes do universo da

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arte se abrem. Torna-se mais acessível à compreensão a noção
de humano inteiro, uma vez que a catarse se refere a uma ra-
cionalidade totalmente sensível, e por isso quebra a dicotomia
antidialética entre razão e emoção.
A inteireza de cada pessoa diz respeito ao que pensa e sen-
te, sem que deixe de ser quem é em um ou noutro instante, in-
clusive porque tais momentos não se dissociam completamente
na experiência da vida. O efeito da catarse no indivíduo, que,
conforme mostra Deribaldo, varia entre os gêneros da arte, ex-
plica muito bem a função social efetiva do métier artístico nos
sujeitos, segundo a teoria de Lukács: por um instante, a pessoa
particular pode ter acesso, com a cabeça e com o coração, intei-
ra, àquilo que ela é o tempo todo sem perceber, inteiramente
humana. A partir desse momento, é possível saber, segundo o
que a arte é, aquilo que de fato ela pode fazer em contribuição
com a transformação social que pretende superar a exploração
do humano pelo humano, responsável por aprofundar o blo-
queio que impede cada sujeito inteiro do ser social de alcançar a
si mesmo completamente.
Em seguida, no capítulo 5, Deribaldo apresenta brevemen-
te o desdobramento das categorias apresentadas anteriormen-
te determinadas nos gêneros específicos da arte. A mimese, por
exemplo, que se duplica na música, na arquitetura e no cinema.
Ao escrever o modo como essa duplicação ocorre em cada gênero,
a exposição do professor, ao mesmo tempo que oferece uma apre-
ciação teórico-conceitual, conduz o leitor a insights a respeito do
próprio gênero abordado, fazendo com que finalmente se apro-
prie racionalmente do comportamento específico de tais expres-
sões que ele aprecia em seu cotidiano, provavelmente sem saber
dos segredos evocativos da forma do conteúdo a que pertencem.
Como uma aula expositiva para uma turma de pessoas
com variados níveis de repertório acerca do conteúdo ensinado,
Deribaldo opta por um recurso de repetição de termos e enun-
ciados, que primeiro aparecem quando determinado assunto é

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apresentado e, posteriormente, em outros momentos no desen-
volvimento do texto, quando o conceito exposto passa a fazer
parte de um raciocínio mais complexo no percurso de explana-
ção das categorias estéticas. Como não é sala de aula, o leitor não
pode levantar a mão e pedir para que se repita uma afirmação,
ou para sanar suas dúvidas. A repetição, que pode servir para
facilitar a assimilação, está presente em todos os capítulos do
livro. No entanto, em alguns desses momentos de retomada, o
livro nem sempre oferece exemplos ilustrativos da categoria apre-
ciada ou mesmo uma gradação na abordagem, no sentido de
simplificar a exposição com argumentações que pudessem variar
o grau de abstração ou mesmo a diversidade de recursos retóricos
voltados à condução do leitor pelo caminho do mais simples ao
mais complexo, mas sem abrir mão da simplicidade. A repetição,
sozinha, em alguns momentos facilita, noutros, nem tanto.
Mediante as categorias estéticas e o comportamento delas
no complexo do real de que fazem parte, a arte, o recurso de De-
ribaldo para expô-las com clareza por vezes recorre ao exemplo
figurativo, algo que faz parte do universo da vida do leitor para
que este possa identificar mais facilmente o que se trata. Mas
não é sempre que isso acontece. O grau de profundidade das
categorias é amenizado, sobretudo por conta do caráter sintético
do texto, que inclusive é determinado por sua extensão, afinal,
1800 páginas são condensadas em pouco mais de 100.
Este livro não ensina tudo sobre a Estética, nem é essa a
sua intenção, menos ainda pretende substituí-la. Há, no entan-
to, de maneira bem resumida, um parâmetro do todo. Talvez
seja justamente o contrário, a sua leitura fará com que se perceba
a necessidade de encarar o livro de referência. Se o leitor passar
por alguns dos subtítulos deste livro ainda com dúvidas, poderá
relê-lo, mas, ao mesmo tempo, há coisas que só se resolverão
com estudo aprofundado e extensivo. Por mais que categorias
como a mimese e a catarse, por exemplo, estejam presentes nos
vários debates acadêmicos sobre a arte e até mesmo noutros as-

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suntos, em Lukács elas possuem fisionomia e função específicas
(as mais de quinhentas páginas do livro 2, por exemplo, voltam-
-se todas para a mimese). De certa forma, pela densidade com
que tais conceitos são tratados sob a atitude onto-histórica de
abordagem, pode-se pensar, a partir deste Princípios básicos da
Grande Estética de Lukács, numa experiência de aprendê-los no-
vamente do zero, ou quase isso. Mais do que imitar ou purificar,
ainda em referência à mimese e à catarse, o que Lukács propõe é
um verdadeiro tratado a respeito do funcionamento lógico des-
sas categorias, desde a sua formação histórica até a contribuição
de ambas para que se possa identificar o que de fato é arte em
pleno século XX, período em que Lukács viveu e atuou, e tam-
bém agora no XXI, enquanto este livro é lido.
A apresentação das categorias e de seu funcionamento ora
estão expostos com maior clareza, condizente com uma propos-
ta de introdução, ora se distanciam mais desse objetivo. Mas
o aspecto introdutório ainda se mantém nesses momentos de
dificuldade pelo fato de se tratar de um livro curto. Os assuntos
estão sempre próximos uns dos outros. Na Estética, a explanação
de Lukács a respeito da particularidade ocupa um capítulo com
mais de 70 páginas, aqui a seção correspondente se resume a
aproximadamente 12. O fator de vantagem dessa redução é que
uma categoria ajuda a compreender a outra, e essa contribui-
ção torna-se mais ligeiramente efetiva, sob um projeto sintético,
quando cada tema se coloca perto um do outro na própria dia-
gramação do livro, favorecendo a memória e a assimilação para
quem passeia pelo pensamento de Lukács pela primeira vez. A
função de uma determina o comportamento de outra, e essa
mediação categorial recíproca, apesar de tornar mais complexa
a exposição do trabalho de cada conceito, revela ao leitor a sua
verdadeira vocação categorial.
Se a ideia da práxis consiste na unidade dialética entre teo-
ria e prática, e que a qualidade desta se define também pela sofis-
ticação daquela, então este Princípios básicos da Grande Estética de

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Lukács se porta dentro de uma ação cujo início é a atitude de um
professor, e a continuidade está tanto em sua leitura quanto nos
efeitos posteriores ao ensinamento. A educação estética contribui
para que se possa acessar com discernimento todo o repertório
artístico produzido pelos humanos ao longo de sua história. Co-
nhecer o mecanismo de registro da autoconsciência da humani-
dade, saber como a própria obra elabora isso em sua imanência.
Descobrir a verdadeira contribuição da arte para a transformação
social, saber o que ela realmente pode fazer segundo suas caracte-
rísticas ontológicas. Essa educação possui um potencial forte de
refinamento da sensibilidade teórica e crítica de cada leitor.
Todas as pessoas merecem e devem ter acesso à educação
estética. Quando Antonio Candido escreveu sobre o direito à
literatura, apontando seus benefícios à humanização, tratou de
explicar o seu entendimento a respeito:
Entendo por humanização (já que tenho falado muito nela) o proces-
so que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais,
como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição
para o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar
nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexida-
de do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve
em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.1

Esse direito e esses benefícios valem para a literatura e


todos os gêneros de arte, também se estendem às grandes pro-
duções da filosofia da arte, que não apenas contribuem para que
se conheça teoricamente uma disciplina filosófica, mas para que
se consiga apreciar uma grande obra artística em sua profunda
totalidade. A iniciativa de Deribaldo Santos neste livro é conce-
der aos leitores a possibilidade de uma porta de entrada para que
cada um e cada uma, o leitor inteiro e a leitura inteira, possam,
na peculiaridade da arte, acessar o que já faz parte do que são,
mesmo que não saibam, o leitor ou leitora inteiramente humano.

1 CANDIDO, 2011, p. 182, itálico do original.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.................................................................... 19

CAPÍTULO 1)
PRESSUPOSTOS ONTO-METODOLÓGICOS: TRABALHO,
COTIDIANO, REFLEXO, CATEGORIAS NODAIS............. 27
1.1) Cotidiano: a antessala do fator estético..............................................27
1.2) Reflexo e objetivações superiores....................................................... 32
1.3) Sistemas de mediação: analogia e inferência analógica....................... 40
1.4) Reflexo mimético: a imitação que se aproxima da evocação............... 44
1.5) Aplicando as categorias nodais .........................................................49
1.6) Cismundanidade e trasnmundanidade: a arte é pedestre!................... 54

CAPÍTULO 2)
GÊNESE, DESDOBRAMENTOS E INDEPENDENTIZAÇÃO
DA ARTE: DA MIMESE AO RITMO E DO ÚTIL AO AGRA-
DÁVEL..................................................................................... 57
2.1) Mimese evocativa e gênese da arte: com um pé dentro da estética ..... 57
2.1.1) Da mimese à evocação: a espontaneidade do nascimento da arte.... 57
2.2) Ritmo: a utilidade que agrada...........................................................64
2.3) A independentização da arte: do útil ao agradável.............................68

CAPÍTULO 3)
CATEGORIAS ESTRUTURANTES: PARTICULARIDADE,
MEIO HOMOGÊNEO, TERCEIRO NÍVEL DE SINALIZA-
ÇÃO, SER HUMANO INTEIRO E SER INTEIRAMENTE HU-
MANO..................................................................................... 75
3.1) A particularidade como categoria central........................................... 75
3.2) Relação entre particularidade, tipicidade e realismo........................... 80
3.3) Meio homogêneo e terceiro nível de sinalização: a “linguagem” da arte...84
3.4) Relação ser humano inteiro-ser inteiramente humano....................... 92

17
CAPÍTULO 4)
FUNÇÃO SOCIAL DA ARTE: CATARSE E AUTOCONSCIÊN-
CIA HUMANA......................................................................... 95
4.1) O Antes e o Depois do efeito catártico.............................................. 95
4.2) Catarse: uma racionalidade totalmente sensível................................. 97
4.3) Agradável e desagradável no sujeito privado singular: uma conexão com
a tipicidade artística ............................................................................... 102

CAPÍTULO 5)
MIMESE DUPLICADA........................................................ 107
5.1) Objetividade indeterminada............................................................ 107
5.2) Duplicação mimética musical.......................................................... 114
5.3) Duplicação mimética arquitetônica ................................................ 123
5.4) Duplicação mimética cinematográfica............................................. 133

CAPÍTULO 6)
ABREVIAÇÕES SOBRE ÉTICA E VANGUARDA ARTÍSTICA... 143
6.1) Notas acerca da ética na Grande Estética de Lukács....................... 143
6.2) Vanguarda artística: um divertimento melancólico.......................... 151

CONSIDERAÇÕES FINAIS: PORTAS A SEREM ABERTAS,


LACUNAS A SEREM FECHADAS....................................... 161

REFERÊNCIAS ..................................................................... 171

18
Apresentação

A falta que ela me faz


Entra por todos os poros
Entre lágrimas e espermas tento me desvencilhar
Zé da Campina.

A vontade de escrever um livro sintético sobre a Grande


Estética de Lukács é antiga. Mas a vontade sozinha não basta.
Antes de iniciar a escrita, era preciso compreender o monumen-
to estético do autor húngaro.
Incialmente, pareceu-me que o idioma seria o maior obs-
táculo. Puro engano. Depois de vencer o dificílimo desafio de
aprender outro idioma, revelou-se que a filosofia era um obs-
táculo ainda maior. Para usar uma metáfora, era como se eu
precisasse subir uma montanha e não encontrasse fôlego para a
íngreme caminhada.
Depois de concluir a trilogia1, que tem a pretensão de
interpretar os quatro volumes da tradução espanhola do livro
de Lukács, senti-me motivado a enfrentar a desafiante missão
de escrever uma exposição que apresentasse uma síntese para a
Grande estética do autor húngaro.
Entre os dois primeiros livros da trilogia e o último, se-
cundarizei a conclusão deste projeto para me dedicar à produção
de um livro específico sobre a chamada arte-educação2. Aqui,
apresentei a crítica aos Parâmetros Curriculares Nacionais/Arte
(PCN/Arte), bem como procurei demonstrar as debilidades te-
1 SANTOS, Deribaldo. A ética na estética de Lukács: a arte como uma unanimi-
dade anônima. Marília/SP: LutasAnticapital, 2021; SANTOS, Deribaldo. A par-
ticularidade na estética de Lukács. São Paulo: Instituto Lukács, 2017; SANTOS,
Deribaldo. Estética em Lukács: a criação de um mundo para chamar de seu. São
Paulo: Instituto Lukács, 2018.
2 SANTOS, Deribaldo. Arte-educação, estética e formação humana. Maceió:
Coletivo Veredas, 2020.

19
óricas e práticas do que se convencionou chamar no Brasil de
arte-educação. Toda a fundamentação onto-metodológica desse
livro teve a Estética de Lukács como centro.
A troca de rumo deu-se em virtude da necessidade de
apresentar uma crítica, embora bem sintética, à forma como a
política educativa brasileira impõe aos professores da educação
básica seus modelos. Os chamados novos paradigmas educativos,
como moda da vez, invadem a escola com força e ganham eco. A
dita arte-educação entra como parte do pacote. A intenção desses
denominados novos paradigmas educacionais é fazer o corpo do-
cente da educação básica acreditar que, mesmo sem considerar a
luta de classes, existem ferramentas educacionais eficazes para os
problemas de aprendizagem-ensino produzidos pelo capitalismo.
Com a conclusão dessa publicação, retomei a redação do
último livro da trilogia, concluída em 2020. Logo em seguida
ao seu lançamento, compus, como horizonte próximo, o início
do projeto de uma exposição que possibilitasse aos estudantes e
pesquisadores uma apresentação dos principais pontos da Gran-
de Estética de Lukács.
A intenção do presente livro é clara: mostrar alguns dos
principais pontos da estética marxista, de modo que os inician-
tes ao estudo encontrem subsídios, ainda que sintéticos, para se
moverem na leitura.
A exposição está organizada em sete capítulos. A sua or-
ganização não segue necessariamente a ordem cronológica que
o livro de Lukács apresenta. Essa opção dá-se, sobretudo, pelas
exigências sintéticas aplicadas à presente publicação.
Desse modo, o capítulo um procura esclarecer as bases
estruturantes do livro e da estética marxista como um todo. Ou
seja, seu caráter onto-metodológico. Por isso, o primeiro capítu-
lo procurou demostrar a importância da divisão social e técni-
ca do trabalho para a reprodução humana e consequentemente
para o desenvolvimento da estética. Problematizou-se aqui o
trabalho em relação ao reflexo e este em articulação dialética

20
com o cotidiano. Por fim, apresentou-se as categorias nodais.
Isto é, os pares relacionais que o esteta húngaro usa para a estru-
turação de seus argumentos sobre estética.
Já o capítulo segundo trata do nascimento espontâneo da
arte: como a arte nasce, desdobra-se e torna-se um complexo
substantivo para a vida humana. É nessa seção que se debate a
importância do reflexo mimético para o nascimento espontâneo
do fator artístico, bem como a relação entre a utilidade e o ele-
mento agradável.
As categorias estruturantes da estética: particularidade,
meio homogêneo, terceiro nível de sinalização e ser humano in-
teiro, ser inteiramente humano, são tratadas no Capítulo três. A
particularidade, para o esteta magiar, é a categoria central da esté-
tica. Com seu devido tratamento, poder-se-á demostrar como o
meio homogêneo em articulação com o terceiro nível de sinaliza-
ção logra a façanha de sacudir a pessoa, conduzindo-a do estado
de ser humano inteiro ao patamar de ser inteiramente humano.
Com base no soerguimento do sujeito humano, mesmo
que apenas por instantes, à condição de usufruidor do gênero
do espírito humano, o capítulo quatro, por sua vez, aponta que
a função social da arte é o registro da autoconsciência humana.
Registrar a autoconsciência da humanidade, contudo, apenas é
possível à arte por intermédio da catarse. Por isso, para Lukács,
a catarse é a categoria geral da estética.
Com todos esses elementos destacados, são abertas as con-
dições necessárias para enfrentar as questões limites da estética.
O capítulo cinco inicia o tratamento desses limites pela duplica-
ção mimética. Sob a indicação da objetividade indeterminada,
portanto, discute-se os casos de dupla mimese: música, arquite-
tura (jardinagem e artesanato artístico) e cinema.
O capítulo seis, aproximando-se ao final do livro, deita
suas palavras sobre a problemática da relação entre ética e esté-
tica, destacando, por fim, alguns elementos sobre a polêmica do
que se entende por vanguarda artística.

21
O livro fecha suas reflexões com o capítulo sete, denomi-
nado, não por acaso, de Portas a serem abertas, lacunas a serem
fechadas. Esse título procura injetar luz no seguinte fato: muito
foi dito sobre a Grande Estética nas páginas do presente livro,
não obstante a esta constatação, há muito ainda o que ser es-
tudado, aprendido, escrito... sobre a monumental estética do
autor de Budapeste. Aqui vale advertir que o contato com a
presente publicação não substitui, em hipótese alguma, a leitura
da Grande Estética.
Ao caminhar com esta apresentação para o seu final, ne-
cessito documentar que não estou sozinho na empreitada de
compreender e explicar essa obra. Para angariar condições de
sintetizar o construto estético de Lukács, contei com o apoio
colaborativo de muitas pessoas e com a participação em eventos
que foram preponderantes para que a inercia fosse vencida.
Em início, preciso relembrar que os estudos sobre o tema
têm amparo no Instituto de Estudos e Pesquisa do Movimento
Operário (IMO), ainda no começo deste século. A professora
Susana Jimenez foi responsável por fertilizar e fomentar os pri-
meiros estudos.
Alguns importantes trabalhos foram desenvolvidos no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)
da Universidade Estadual do Ceará (UECE), do Programa de
Pós-Graduação em Educação Brasileira PPGEb da Universidade
Federal do Ceará (UFC), do Mestrado Acadêmico em Educação
e Ensinos (MAIE) da mesma UECE, entre outras inciativas uni-
versitárias e não acadêmicas. O amadurecimento dessas investi-
gações fez com que seus resultados retroagissem sobre as pessoas
que as estudaram. Os frutos dessa dialética histórico-social resul-
taram em importantes publicações que, por sua vez, refletem as
produções desenvolvidas no âmbito desses programas e entorno.
No cenário sanitário-catastrófico da pandemia da Covid-19,
que teve ápice entre 2020 e 2022, algumas atividades foram de-
senvolvidas com vistas a enfrentar o trágico quadro pandêmico.

22
No âmbito do executivo federal, o enfretamento ao pro-
blema sanitário foi pintado com arrogância e prepotência reves-
tida de um nagacionismo autoritário. As lágrimas, falta de ar e
muita dor, entre diversas outras dramáticas situações enfrenta-
das pelas famílias brasileiras, sobretudo as mais pobres, foram
absorvidas, pelo governo central, como naturais e passageiras.
A expressão máxima dessa arrogância administrativa veio por
meio da frase “isso é apenas uma gripezinha passageira”, dita
pelo protótipo de ditador que comandava o Planalto Central no
período da crise sanitária.
Durante esses nefastos dias, algumas pessoas se organiza-
ram em torno de atividades remotas com o intuito, em primeira
ordem, de manter vivo o sentimento de gregarismo humano.
Entre esses eventos, para efeito do desenvolvimento do presente
livro, importa citar os seguintes:
• Estudos da Ontologia do ser social em Lukács. Grupo de
estudos produzido em parceria com a Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal
do Piauí (UFPI) e apoiado pela UFC.
• Essa experiência propiciou a produção do curso de
extensão organizado em colaboração com a Universi-
dade Federal de Viçosa (UFV), Educação Materialista:
Introdução à Estética em Lukács.
• Entre julho e setembro de 2020, a pedido da pro-
grama Pós-Graduação em Ciências Sociais (POSCS)
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP), campus de Marília, ministramos re-
motamente a disciplina Lukács e a Grande estética: es-
trutura e desenvolvimento, que contou, mais uma vez,
com o apoio da UFC.
• Atendendo à solicitação do Coletivo Veredas, condu-
zimos entre setembro de 2021 e maio de 2022 o Curso
Livre de Introdução à Grande Estética de Lukács.

23
Ainda vale memoriar algumas iniciativas que marcaram
a minha formação de modo geral e de maneira específica con-
tribuíram com a feitura do presente livro. São elas: Formação
estética dos sentidos humanos: a arte e a educação em debate, curso
de extensão ofertado aos docentes da educação básica da região
do Sertão Central do Ceará, desenvolvido no segundo semestre
de 2019; minicurso A Estética de György Lukács, realizada con-
juntamente com o Grupo de Pesquisa Organizações e Demo-
cracia (GPOD) da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp,
Campus de Marília), em parceria com o Núcleo de Estudos de
Ontologia Marxiana (NEOM).
Por fim, interessa destacar a origem do título do livro.
Em dezembro de 2022, ministrei na Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC, Campus de Florianópolis), a convite do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Ontologia Crítica (GEPOC),
o minicurso intitulado Princípios Básicos da Grade Estética
de Lukács. Aproveito a oportunidade para agradecer à profes-
sora Patricia Torriglia a nominação do seminário, cujo caráter
linguístico-sintético encaixou-se com a proposta do livro que
agora se publica.
Esse conjunto de atividades, além de contribuir com a
difícil travessia do quadro pandêmico, colaborou decisivamen-
te para que a autoria do presente livro angariasse condições de
escrevê-lo. As intervenções, perguntas, debates, polêmicas e co-
laborações, colhidas por meio de tais atividades, encorajam-me
a enfrentar o desafio de construir uma exposição que procurasse
se comunicar com os estudantes e estudiosos da obra-monu-
mento de Lukács, e assim apresentar uma síntese.
O livro é dedicado
À memória das pessoas vitimadas pela Covid-19...
A mídia documenta, até o presente momento, quase sete
milhões de óbitos em todo o mundo. Já a nível local, informa-se
cerca de setecentas mil mortes.

24
Impossível aos dados oficiais destacar a história humana de
pessoas como Rosana Urbano e Manoel Freitas Pereira Filho, que
tingiram as páginas da imprensa local como os primeiros nomes
a ilustrar a funesta estatística que se iniciou em março de 2020.
Diante da impossível tarefa de homenagear todas as vidas
que se foram com a crise sanitária, chamamos a poesia para au-
xiliar-nos:
André Cavalcante era professor/ amigo de todos e pai do Pedrinho/ O
Bruno Campelo seguiu seu caminho/ Tornou-se enfermeiro por puro
amor/ Já Carlos Antônio, era cobrador/ Estava ansioso pra se aposen-
tar/ A Diva Thereza amava tocar/ Seu belo piano de forma eloquente/
Se números frios não tocam a gente/ Espero que nomes consigam
tocar/ Elaine Cristina, grande paratleta/ fez três faculdades e ganhou
medalhas/ Felipe Pedrosa vencia as batalhas/ Dirigindo uber em bus-
ca da meta/ Gastão Dias Junior, pessoa discreta/ na pediatria escolheu
se doar/ Horácia Coutinho e seu dom de cuidar/ De cada amigo e de
cada parente/ Se números frios não tocam a gente/ Espero que nomes
consigam tocar/ Iramar Carneiro, herói da estrada/ foi caminhoneiro,
ajudou o Brasil/ Joana Maria, bisavó gentil./ E Katia Cilene uma mãe
dedicada/ Lenita Maria, era muito animada/ baiana de escola de sam-
ba a sambar/ Margarida Veras amava ensinar/ era professora bondosa
e presente./ Se números frios não tocam a gente/ Espero que nomes
consigam tocar/ Norberto Eugênio era jogador/ piloto, artista, multi-
funcional/ Olinda Menezes amava o natal./ Pasqual Stefano dentista,
pintor/ Curtia cinema, mais um sonhador/ Que na pandemia parou
de sonhar/ A vó da Camily não vai lhe abraçar/ com Quitéria Melo
não foi diferente/ Se números frios não tocam a gente/ Espero que
nomes consigam tocar/ Raimundo dos Santos, um homem guerreiro/
O senhor dos rios, dos peixes também/ Salvador José, baiano do bem/
Bebia cerveja e era roqueiro/ Terezinha Maia sorria ligeiro/ cuidava
das plantas, cuidava do lar/ Vanessa dos Santos era luz solar/ mulher
colorida e irreverente/ Se números frios não tocam a gente/ Espero
que nomes consigam tocar/ Wilma Bassetti vó especial/ pra netos e
filhos fazia banquete/ Yvonne Martins fazia um sorvete/ Das mangas
tiradas do pé no quintal/ Zulmira de Sousa, esposa leal/ falava com
Deus, vivia a rezar./ O X da questão talvez seja amar/ por isso não
seja tão indiferente/ Se números frios não tocam a gente/ Espero que
nomes consigam tocar.3
3 Inumeráveis é o título dessa canção escrita em 2020. Ela foi composta por Chico
Cesar com base em poema de Bráulio Bessa.

25
Não posso terminar esta apresentação sem nominar algu-
mas pessoas que cuidaram, decisivamente, para que a presente
publicação tomasse corpo material.
Em primeiro plano, agradeço à cuidadosa revisão posta
em prática por Rogério Rufino de Oliveira. Sob as orientações
críticas e sugestões de Rogério, senti-me mais confiante em pôr
a publicação em ato.
Às professoras Andressa Lima, Escolástica Santos, Karine
Sobral e Lenha Diógenes contribuíram com críticas, sugestões e
revisões que fizeram a redação crescer no seu modo expositivo.
Por isso, é real e honesto meus mais sinceros agradecimentos a
essas pessoas humanas!
Apresentação concluída em de janeiro de 2023!
Uma sexta-feira nordestina lindamente chuvosa!

26
Capítulo 1)

Pressupostos onto-metodológicos:
trabalho, cotidiano, reflexo, categorias nodais

1.1) Cotidiano: a antessala do fator estético

Para adentrar à Grande Estética de Lukács é necessário


passar primeiro por sua antessala. O cotidiano possibilita esse
acesso. Melhor: a vida cotidiana não é apenas a porta de entrada
da Estética. Ela, além de ser o solo de nascedouro da ciência e da
arte, entre outras objetivações superiores, é o terreno para onde
tais objetivações desaguam depois de se tornarem substantivas
para a vida humana.
Impossível, desse modo, compreender a Estética sem en-
tender a relação que a arte mantém com as formas de pensa-
mento da vida cotidiana. É na relação dialética entre o pensa-
mento da cotidianidade e as formas superiores de reflexão que
o pesquisador magiar constrói o edifício da estética marxista.
Para nosso investigador, o cotidiano é o começo e, ao mesmo
tempo, o fim de toda atividade humana. Como aproximação,
o marxista magiar ilustra que, ao se comparar a cotidianidade
com um grande rio, pode-se inferir que, da cabeceira de onde
saem as águas, desprendem-se os elos que vão se constituir nos
complexos da ciência, da arte, da religião, da ética, dentre outras
formas superiores de recepção e reprodução da realidade.
Para que possamos entender adequadamente a relação en-
tre as formas de pensamento da vida cotidiana e as formas supe-
riores de pensamento, desprendidas, por sua vez, da cotidianida-
de, é necessário antes indicar o que é e de onde vem o cotidiano.

27
Antes de mais nada, é preciso ficar claro que o cotidiano é
o solo onde se desdobra a práxis humana. Por mais que existam
teorias irracionalistas que turvam a forma de pensar da vida co-
tidiana, a exemplo do idealismo de Heidegger (2002), é no dia
a dia transcorrido no cotidiano que a pessoa põe em ato seu ser
humano inteiro1. A base que estrutura o solo da cotidianidade,
o que fundamenta os desdobramentos da práxis humana, é a
divisão social e técnica do trabalho.
Isso implica dizer que é impossível compreender o cotidia-
no, e sua importância para o desenvolvimento humano, sem an-
tes entender quem lhe dá sustentação. Esse movimento objetivo
impõe à esta exposição que tratemos inicialmente do trabalho.
Resumindo: o cotidiano não é somente a porta de entrada
da Estética do marxista húngaro, ele é o solo onde se desdobra
a práxis humana. Para uma compreensão adequada da forma
de pensar da vida cotidiana, contudo, é necessário entender o
que lhe dá sustentação. Ou seja, temos que estudar o trabalho,
pois é por meio de ato de trabalhar que o sujeito humano se põe
socialmente no mundo.
Mesmo sob risco de ser repetitivo, o cotidiano, para que
não haja dúvidas, é o terreno que serve de base para os desdo-
bramentos da práxis humana. Esta, por sua natureza, tem como
sustentáculo, como desenvolveu Marx (1996), o trabalho.
Mas o que é o trabalho?
Como elucidou Marx (1996, p. 298), o trabalho é o in-
tercâmbio entre o ser social e a natureza; essa mediação entre o
ser que trabalha e a natureza, não podemos esquecer, pertence
exclusivamente à humanidade: “Uma aranha executa operações
semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um ar-
quiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias”.
O que distingue, não obstante, “o pior arquiteto da melhor abe-
lha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-
-lo em cera” (p. 298). Ao final do processo de trabalho, o resul-
1 Mais à frente debateremos com mais cuidado a relação entre ser humano inteiro
e ser inteiramente humano.

28
tado conquistado revela-se como a consecução do que já, desde
o início, existia idealmente na imaginação de quem trabalha, no
nosso caso o arquiteto.
Com essas palavras, Marx (1996) anuncia a categoria on-
tológica central do trabalho: a teleologia. Como relembra Lukács
(2018b, p. 12): “através do trabalho é realizada uma posição teleo-
lógica no interior do ser material como o nascimento de uma nova
objetividade”. Para o filósofo húngaro, em Marx (1996) fica acla-
rado definitivamente que o nascimento de uma nova objetividade
se realiza sobre uma posição de finalidade. Isto é, monta-se uma
cadeia de elos sucessivos em que o trabalho é o desencadeador da
corrente. Sem o trabalho humano é impossível a novidade. A pro-
dução incessante do novo é o que caracteriza a vida humano-social.
O novo, no entanto, não se produz sem que a materialidade
concreta seja adequada ao plano traçado na cabeça de quem traba-
lha. Não adianta o ser que trabalha ter uma ideia avançada, uma
teleologia progressista, sem que haja uma causalidade material que
lhe comporte. A teleologia, portanto, realiza-se por meio do traba-
lho desde que encontre uma causalidade que a torne possível. Sem
que haja a síntese entre a ideia subjetiva e a causalidade encontrada
na materialidade concreta, a ideia não se objetiva. Continua como
ideia, mesmo que avançada e necessária ao progresso humano.
Pensemos nos exemplos de Ícaro e Leonardo da Vinci. Ambos ide-
alizaram voar. Santos Dumont foi quem encontrou a base da ma-
terialidade histórica adequada para voar ao redor da Torre Eiffel.
Se se pudesse usar apenas uma expressão, poderia ser dito
o seguinte: por meio da objetividade se produz a realização da
finalidade teleologicamente posta pelo sujeito. Isto é, sem a con-
cretude material adequada, uma ideia não se objetiva, permane-
ce ideia. Apenas por meio da objetividade, possível pela ação do
trabalho, que sintetiza, de um lado a telelologia do sujeito tra-
balhador e, de outro, a causalidade da materialidade histórica, é
permitido a sucessiva criação do novo.
Pelo trabalho, desse modo, realiza-se uma finalidade que
concretiza uma nova objetividade.

29
A formulação dada por Sergio Lessa (2015) sintetiza bem
esse processo. Segundo analisa o intérprete brasileiro, quando o
sujeito concretiza na prática uma determinada teleologia, mate-
rializa sua ideia por meio de um determinado objeto: a intenção
teleológica adquire forma concreta ao objetivar-se como a fina-
lidade anteriormente planejada. A objetivação, sempre conside-
rando a transformação de um setor da realidade, é denominada
por Lukács como o “processo que articula a conversão do ideali-
zado em objeto [...]” (LESSA, 2015, p. 23). Como conclui esse
interprete: “o objeto socialmente posto é subjetividade objetiva-
do [...]” (p. 25). Isso quer dizer o seguinte: o objeto que é posto
apenas pode adquirir importância social pela objetivação que,
por sua vez, segue uma posição de finalidade, uma teleologia.
Disso se depreende que o produto objetivado não pode ser
idêntico ao sujeito que o planejou idealmente. Por isso a recusa
marxiana da identidade objeto-sujeito, ser-consciência. E também
por isso escrevemos o par relacional objeto-sujeito com o objeto
em primeiro termo, dado que a prioridade recai sobre a objetivi-
dade do ser e não sobre a interpretação do sujeito sobre o objeto.
Para que possamos tratar mais especificamente das ob-
jetivações, uma vez que a Estética de Lukács considera que as
objetivações superiores se desprendem do cotidiano, sintetize-
mos mais uma vez a relação teleologia, trabalho, causalidade:
a teleologia, ou seja, a finalidade que se realiza pelo trabalho,
somente pode se materializar quando há uma determinada cau-
salidade que lhe possibilita a consecução. Isto é, toda intenção
subjetiva, toda finalidade, toda teleologia, apenas encontra meio
de se objetivar quando a materialidade correspondente permite.
Em outras palavras, o trabalho guarda o cerne de realizar a tele-
ologia, mas esta somente se concretiza perante uma causalidade
materialmente adequada à intenção do sujeito.
Estando claro a importância do trabalho para a produção
de uma objetivação, agora precisamos debater como ela realiza-
-se. A objetivação, não se pode perder de mira, é produto de uma

30
relação entre opostos. De um lado o objeto e de outro o sujeito.
Deste lado sai a ideia que pleiteia um resultado, uma finalidade;
daquele existe o ser material que se opõe ao sujeito idealizador.
Como é que a objetividade está em oposição ao sujeito?
Ela se opõe à intenção subjetiva, dado que não é a ideia,
senão a tentativa objetiva de correção do resultado sinteticamente
contraditório entre objeto e sujeito. O produto dessa união sinté-
tico-contraditória, portanto, sempre será fruto de uma interação,
de uma articulação dialética entre opostos: objeto material que
possibilita ou não a concretude da ideia e o sujeito que idealiza
uma finalidade. Em um lado, o ser composto por sua materialida-
de histórica e, em outro, a consciência que planeja um resultado.
Não há como debater neste livro, ao menos em largos
passos, a problemática da exteriorização. Sua tematização de-
mandaria um nível de profundidade que desviaria o objetivo
aqui planejado. Indicamos, para quem pleiteia aprofundar, as
pesquisas de Sergio Lessa (2015). Para efeito do presente estudo,
vale ressaltar que na “objetivação, o que pensamos do mundo
se exterioriza e se confronta com o mundo objetivo” (LESSA,
2015, p. 467). O resultado sintético desse processo pode ser
descrito do seguinte modo: quando novos conhecimentos e no-
vas habilidades são produzidos, criam a possibilidade para que
os indivíduos possam transformar a própria existência material,
dado que são dotados, pelo ato do trabalho, para adquirir sem-
pre novas habilidades e conhecimentos sobre a materialidade
histórico-social do mundo concreto.
Essa contradição entre ser e consciência, entre objeto e su-
jeito, entre ideia e matéria, evidencia que o elo responsável pelo
processo do conhecimento também tem natureza contraditória.
O nexo que potencializa no ser social o conhecimento do
mundo que o circunda é exatamente essa contraditória síntese. Com-
preende-se, desse modo, que é imperiosamente necessário, para que
haja a produção do conhecimento, respeitar a distinção entre objeto
e sujeito, entre ser e consciência, entre teleologia e causalidade.

31
Dissemos acima que, para compreender o cotidiano, an-
tes teríamos que entender sua base: o trabalho. Antes, contudo,
adiantamos que, para a adequada compreensão da Estética do
marxista húngaro, era preciso compreender o cotidiano.
Não há dúvida, como demostrado, que o cotidiano tem
por suporte a divisão social e técnica do trabalho. Por isso, evi-
denciamos a importância do trabalho para a vida social. Depois,
mostramos a relação contraditória entre o ser e a consciência,
que se materializa por meio da síntese possibilitada pelo traba-
lho. Desse debate, retiramos a importância do processo de obje-
tivação, pois na relação entre as objetivações (básicas e superio-
res) é que o autor de Budapeste constrói a distinção entre formas
de pensar da vida cotidiana e formas de pensamento superiores,
a exemplo da ciência e da arte.
Agora, para que possamos iniciar a síntese da estética mar-
xista, necessitamos debater o reflexo.

1.2) Reflexo e objetivações superiores

Parágrafos acima, lembramos que o conhecimento é possi-


bilitado pela oposição entre ser e consciência, entre objeto e sujei-
to, entre causalidade e teleologia, entre matéria e ideia. Usamos a
expressão ELO para denominar a síntese contraditória, posta em
ato pelo trabalho, possibilitada entre esses pares opostos.
O reflexo é exatamente o elo que liga o objeto ao sujeito
que trabalha.
Para que possamos demonstrar com mais clareza a ação
sinteticamente contraditória do caráter do reflexo, precisamos
repetir, mesmo correndo o perigo da redundância, sua dupla
peculiaridade:
• por um lado, ele existe em oposição a qualquer ser,
pois, por ser exatamente um reflexo (um elo de sínte-
se), não pode existir enquanto ser.

32
• por outro lado, embora corroborando com o primeiro
momento, o reflexo é a mediação pela qual se consti-
tuem novas objetividades no próprio ser social.
Isto é, para que haja a reprodução do ser humano, com
suas objetivações básicas e, portanto, no mesmo nível social
existente até então, é indispensável a síntese contraditória en-
tre ser e consciência, entre objeto e sujeito. Essa síntese é me-
diada pela ação do reflexo. Para que ocorra a reprodução social
da humanidade em um patamar mais desenvolvido, a nível das
objetivações superiores (ciência e arte, por exemplo), do mesmo
modo, é o elo de síntese (o reflexo) que proporciona a mediação
entre o mundo e a consciência subjetiva.
Sumariando: para que haja a reprodução do ser social, ao
nível das objetivações básicas ou superiores, há a necessidade
da ação do reflexo, que funciona como um elo de síntese entre
matéria objetiva e sujeito pensante. Por isso que o reflexo é o
responsável pela construção, no sujeito que pensa, do conheci-
mento. Haja vista que o conhecimento não é um problema do
ser e sim da consciência. Esta precisa aproximar-se o máximo
possível daquele. Essa aproximação torna-se possível, rematan-
do, pela mediação, pelo elo, formado pelo reflexo.
Marx, no entendimento de Lukács (2018a), põe no centro
da problemática do conhecimento o reflexo. É esse elo de síntese
que, em relação dialética com a objetividade real, proporciona
ao sujeito humano adquirir e acumular conhecimento. Para o
esteta magiar, não se deve negligenciar a importância desse elo.
Caso haja negligencia, inevitavelmente, produz-se determinadas
confusões entre a realidade objetiva e o reflexo imediato que a
realidade envia ao sujeito que tenta conhecê-la.
Fica claro, desse modo, que um processo de objetivação,
para ser exitoso, precisa que o sujeito domine, mesmo que apro-
ximadamente e com o conhecimento efetivo que dispõe até en-
tão, o setor da realidade que pretende transformar. Após esse
processo de aproximação, a partir do idealizado, o conhecimen-

33
to do sujeito que põe a finalidade amplia-se. Isso se explica pelo
resultado conquistado com o intuito planejado. Independente-
mente se exitoso ou não, o resultado faz retroagir sobre a pessoa
que trabalha, pelo processo que Lukács chama de exteriorização,
determinado conhecimento sobre o que acaba de produzir.
Estando explicado como se processa a relação entre o ser e
a consciência, entre o objeto e o sujeito no processo de objetiva-
ção, vejamos como Lukács (2018b, p. 381) define objetividade:
“intenção do pensamento ao em-si dos objetos e suas conexões,
não adulterado por ingredientes subjetivos, projeções, etc., à
qual a qualidade pertence tanto quanto a quantidade”.
Quem nos lê deve ter percebido que iniciamos o livro
com o cotidiano, depois falamos da objetivação e ainda falare-
mos muito de ambos os conceitos. Agora, para que possamos
criar uma conexão entre os dois, adentraremos ao que Lukács
chama de formas superiores de objetivação.
Para isso, antes, esclarecemos que as formas básicas de
objetivação da vida cotidiana, a exemplo do trabalho e da lin-
guagem, apresentam “essencialmente em muitos aspectos o ca-
ráter de objetivações” (LUKÁCS, 1966a, p. 39). Como entende
nosso esteta, “o modo de comportamento dos homens [e das
mulheres] depende essencialmente do nível de objetivação de
sua atividade”, pois o pensamento da vida cotidiana não pode
desenvolver sua forma espontânea de pensar sem que opere so-
bre essa espontaneidade as autênticas objetivações (p. 74).

Sabemos, para iniciar, o seguinte:


1. É impossível ao pensamento cotidiano existir e se de-
senvolver sem objetivações;
2. As formas básicas de objetivação, a exemplo do traba-
lho e da linguagem, permeiam todo o tecido da coti-
dianidade;
3. As formas de pensamento da vida cotidiana são es-
pontâneas.

34
Com isso, precisamos agora relacionar as formas básicas
de reflexão, que se expressam espontaneamente no pensamento
diário, com as formas superiores de objetivação, a exemplo da
ciência e da arte.
Para dar clareza e concretude à exposição, todavia, há a
necessidade de demostrar como algumas manifestações huma-
nas, como ciência, arte, mas também religião e ética, atingem a
insígnia de objetivações superiores.
Vamos à explicação: quando algumas atividades logram
elevado nível de objetividade, quando suas leis objetivas alcan-
çam o patamar de influenciar decisivamente o comportamento
das pessoas humanas que vivem na espontaneidade da vida co-
tidiana, pode ser dito que tais complexos alcançam a pletora de
se constituir em uma objetivação superior.
Bem, se uma objetivação superior galga esse patamar
quando passa a influenciar decisivamente a vida cotidiana,
quem pode confirmar a existência de uma objetivação superior?
Quem pode garantir que um determinado complexo humano se
converteu em objetividade superior, naturalmente, é o compor-
tamento do sujeito vivente da cotidianidade.
Quando todas as faculdades desse sujeito exigem a pro-
dução de um comportamento humano distinto do vivenciado
no cotidiano, passa a ser coproduzido pelos próprios viventes
determinada orientação para que sejam cumpridas todas as
legalidades nascidas e cobradas no mundo pelas objetivações
superiores. É na dialética de brotar, de surgir, de germinar na
espontaneidade da vida cotidiana que se confirma a existência
da produção de um comportamento humano diferente daquele
vivido na correnteza da cotidianidade.
Esse comportamento diferenciado é tomado pelas objeti-
vações superiores, a exemplo da ciência e da arte, mais também
da religião e da ética. Nunca é demais repetir: é por meio do
trabalho que o ser humano desenvolve a potência do novo. Pela
natureza dessas novidades, produz-se também novas demandas

35
postas à humanidade. É assim que, por exemplo, complexos que
cobram objetivações superiores, como a ciência e a arte, alçam-
-se à condição de cumprirem tais exigência. Depois que esses
complexos se tornam substantivos para a humanidade, voltam a
desaguar suas potências na corrente sanguínea da vida cotidiana.
Como está claro que as objetivações superiores têm nasci-
mento no cotidiano e que este se organiza sobre a divisão social e
técnica do trabalho, advertimos com Lukács (1966a/b, 1967a/b)
que há entre essas formas superiores de pensar e o trabalho a se-
guinte interconexão: uma relativa independência e uma também
relativa autonomia que, por intermédio de um processo de reci-
procidade dialética, tais objetivações mantêm com o trabalho uma
inextrincável relação. Não obstante a essa relativa independência e
a essa relativa autonomia, na relação entre as objetividades superio-
res e o trabalho, a prioridade ontológica, repetindo, é do trabalho.
Em síntese: ao se desprenderem do cotidiano, as formas
superiores de objetivação, a exemplo da ciência, da arte, da reli-
gião, mas também a ética, ao serem guiadas por suas finalidades
sociais específicas, acabam por se diferenciarem uma das outras.
O progresso dessa diferenciação, sempre contraditório, atinge, a
depender de cada especificidade, sua forma puramente diferen-
ciada, sua maturidade como complexo social, sua subatividade
para a vida humana. Ou seja, as necessidades do solo cotidiano
fazem brotar as formas superiores de objetivação. Quando tais
formas, por meio de suas contradições especificamente históri-
co-sociais, tornam-se substantivas para a vida humana, retro-
agem sobre a cotidianidade. Ao retroagirem sobre a forma de
pensamento da vida cotidiana, enriquecem o modo sempre es-
pontâneo de pensar dos sujeitos que agem no cotidiano.
Condensando: não se pode tirar do plano de análise que
o pensamento cotidiano tem como base o trabalho humano. É
o trabalho que concentra, por intermédio da síntese causalida-
de-teleologia, os elementos que desencadeiam as necessidades,
sempre crescentes, que, por seu caráter, chamam para o desen-

36
volvimento da vida humana as objetivações superiores. O co-
tidiano, como solo comum de nascimento e germinação dos
complexos sociais em suas distintas peculiaridades, como o caso
da ciência e da arte, tem na divisão social e técnica do trabalho
seu impulso primário.
Como o cotidiano é o solo comum das atividades huma-
nas superiores, portanto, ele é também o terreno de onde as
objetivações superiores se desprendem. É a cotidianidade, com
efeito, que alimenta os reflexos científicos, os artísticos, bem
como os demais reflexos superiores.
Por fim, para que possamos adentrar definitivamente na
antessala do estético, necessário pontuar o seguinte:
• O comportamento do sujeito humano, perante as
objetivações superiores, é distinto do modo como ele
vivencia sua experiência espontâneo-cotidiana;
• A arte, a ciência, a religião e a ética, cada uma à sua
maneira específica de refletir a realidade, são formas
superiores de objetivação;
• As formas superiores de objetivação são complexos so-
ciais que se relacionam de modo diferenciado com os
sujeitos humanos
Já podemos retomar com mais elementos a questão do
Reflexo: o elo entre o ser e a consciência.
O pressuposto principal para iniciar a discussão sobre a im-
portância do reflexo para a Estética do marxista húngaro é o seguinte:
Se quisermos estudar o reflexo da vida cotidiana, na ciência e na arte,
nos interessando por suas diferenças, teremos que recordar sempre
claramente que as três formas [ciência, arte e cotidiano] refletem a
mesma realidade (LUKÁCS, 1966a, p. 35).

O reflexo, como define Lukács, é a tentativa consciente de


captação da realidade. Ele é a representação, na consciência do
sujeito, da realidade. O reflexo, com efeito, é a imagem do real
refletida subjetivamente pela consciência. O reflexo é, portanto,
a imagem projetada na consciência do ser real.

37
É preciso advertir, contudo, como visto acima, que o ob-
jeto é diferente do sujeito, do mesmo modo como o ser é distin-
to da consciência.
• Ser ≠ Reflexo projetado na consciência; Objeto ≠ Sujeito.
Lukács (2018b, p. 30), já na Ontologia, explica essa dife-
renciação do seguinte modo:
[...] no reflexo da realidade, como pressuposto para a finalidade e o
meio do trabalho, é consumada uma separação, um destacar, do ser
humano de seu entorno, um distanciamento claramente mostrado no
estar-contraposto de sujeito e objeto.

O ser real, como diria Hartmann (1954), é indiferente


ao sujeito pensante. Isto é, o conhecimento é um problema do
pensamento, não da concretude do objeto real.
Em uma expressão: a realidade não se interessa pelo conhe-
cimento. O sujeito pensante, este sim, tem, sob o risco de perecer,
que se interessar para, no pensamento, refletir o mais adequa-
damente possível a realidade. Isso não quer dizer, como quer o
pensamento pós-moderno, que não exista a realidade. A realidade
existente, entretanto, independe da consciência subjetiva, uma vez
que, como já exposto, o ser é distinto de consciência. Esta, por ser
diferente daquele, precisa apreender o movimentar da realidade,
para assim plasmar, na consciência pensante, o conhecimento.
Lukács (2018a/b), com base em Marx (1996), coloca o
reflexo dialético da realidade objetiva como ponto central do
conhecimento humano:
Sendo isso negligenciado, surge inevitavelmente uma permanente con-
fusão da realidade objetiva e seu — ontologicamente considerado —,
sempre subjetivo, reflexo imediato. (Que este, quando é aproximada-
mente fiel, obtenha uma objetividade cognoscitiva não toca essa questão
ontológica nem o fato, [...] de que o reflexo, sob circunstâncias concretas
determinadas, cujo tipo, limites etc. dependem do respectivo ser social,
pode contribuir ativamente para causar novos estados de fato ontológi-
cos na sociedade.) (LUKÁCS, 2018a, p. 327).

O ser social, no plano ontológico, é a subdivisão sintética


de dois momentos heterogêneos e contrapostos entre si, dado

38
que, de um lado, temos o ser objetivo e, do outro, o seu reflexo
na consciência subjetiva. Na esfera do ser social, produz-se uma
dualidade entre ser e consciência. Havendo, no entanto, um
fato fundamental, a prioridade ontológica daquele sobre esta.
Importante verificar que o fundamento da tendência evo-
lutiva dos reflexos encontra-se, precisamente, na mobilidade e
no distanciamento da síntese contraditória entre o ser e a cons-
ciência. O distanciamento e a mobilidade são condicionados,
por sua vez, pela interação entre o objeto e a recepção subjetiva
(LUKÁCS, 2018b).
A citação a seguir expressa o estado ontológico da relação
objeto-sujeito em sua necessária e trivial facticidade. As palavras
do filósofo marxista aclaram a necessidade de se compreender, o
mais aproximado possível, a realidade concreta:
o fato de que a adaptação ativa ao mundo ambiente não tenha con-
duzido a nenhum declínio da humanidade mas, ao contrário, a uma
expansão, tanto extensiva, quanto intensiva, de seu poder de ação (ain-
da que, isto, muitas vezes, possa nos parecer tão problemático) pode
exibir como prova que a linha geral do domínio da realidade pelos
seres humanos se baseou, no mínimo, em reproduções intelectuais
amplamente corretas (relativamente corretas) e que o conhecimento
post festum dos conhecimentos científicos que visavam a essa corretude,
apesar de toda relatividade, confirma que os seus resultados mostram a
realidade dessas conexões (LUKÁCS, 2018b, p. 304).

O autor sugere que é uma futilidade problematizar se, de


fato, o pensamento humano pode ou não reproduzir na consci-
ência o ser real, a realidade concreta:
Claro que toda objetividade contém um número infinito de determi-
nações e o tipo de suas interações nos processos ontológicos expressa,
evidentemente, as consequências de tal situação. É por isso que, como
constatou Marx, todo conhecimento é apenas uma aproximação mais
ou menos ampla ao objeto. E os meios espirituais e materiais dessa
aproximação são determinados pelas possibilidades objetivas da res-
pectiva socialidade. Em todo o conhecimento pode tratar-se, portanto,
tanto subjetiva, quanto objetivamente, apenas de aproximações (tam-
bém relativas). Mas, como as constelações objetivas, das quais brotam

39
tanto as perguntas quanto as respostas, são determinadas pelo desenvol-
vimento objetivo que também produz a base ontológica de todo ser hu-
mano singular, as relatividades ali contidas, um tanto frequentemente,
recebem imediatamente, para os que com elas convivem, um caráter
absoluto, o qual pode ser fixado como absoluto ou por outro lado,
ultrapassado como relativo, pelo patamar de desenvolvimento objetivo,
pelas condições do seu movimento (LUKÁCS, 2018b, p. 304).

Nunca é de mais lembrar que, por meio do trabalho, o


objeto, para ser conhecido, estabelece com o reflexo uma rela-
ção em constante e ineliminável dialética. Tal articulação, como
mostrado acima, desenvolve-se sob a dualidade que subjaz à
relação objeto-sujeito. Mesmo em processos em que as media-
ções sobre o trabalho sejam bem mais amplas, como no caso do
modo de produção do capitalismo já desenvolvido, a dualidade
entre o objeto e o sujeito não pode apagar o fato de que o refle-
xo é determinado pelo objeto e não pela vontade subjetiva do
sujeito que pensa.
O reflexo, como elo do conhecimento, como nexo que
liga o sujeito ao mundo objetivo, possibilita a construção dos
sistemas de mediação. Ele próprio é um sistema primário
de mediação. Com base nele, desdobram-se outros sistemas
mediadores. Isso leva a exposição ao estudo da analogia e de
suas inferências analógicas que, por sua natureza, são sistemas
de mediação.

1.3) Sistemas de mediação: analogia e inferência analógica

Com o surgimento dos sistemas de mediação, nascidos


da elaboração articulada do reflexo, o sujeito ganha um compo-
nente que lhe auxilia na compreensão da realidade e, consequen-
temente, dota-o com uma melhor condição de atuar sobre o real.
Mas o que são sistemas de mediação?
Em uma expressão: esses sistemas são formados por refle-
xos que potencializam o ser social na condição de compreender
melhor a realidade em sua volta.

40
Para nosso autor, com base no trabalho, e na consequente
produção de reflexos, surgem sistemas que dotam o vivente da
condição de interagir com a matéria, cujo intuito é a transfor-
mação da realidade.
Para os desdobramentos da estética, interessa, em primei-
ro plano, a analogia e a mimese, que são tipos específicos de
reflexo. Comecemos pela analogia.
A analogia é uma das formas originais de mediação: é um
sistema de mediação cuja ação tem forte influência no modo de
pensamento da vida cotidiana. Na cotidianidade, a analogia age,
predominantemente, no enlace e na transformação do reflexo
imediato da realidade objetiva que chega ao vivente. É peculiar ao
pensamento analógico a dificuldade de se desligar do pensamento
cotidiano; é de seu caráter funcionar misturando teoria e prática.
Como feito páginas antes, para melhorar o entendimento
da analogia, lançamos mão do dicionário de filosofia doe escritor
italiano Nicola Abbagnano (2007). Para ele a analogia é “[...] o
sentido de extensão provável do conhecimento mediante o uso
de semelhanças genéricas que se podem aduzir entre situações di-
versas [...]” (ABBAGNANO, 2012, p. 58 – itálico do original).
Com base nessa dicionarização, pode-se compreender
o seguinte: o reflexo analógico relaciona-se com a capacida-
de intelectual de representar no pensamento, tomando como
base comparações, algo já memorizado. A forma de pensar por
analogia, é necessário advertir, guarda muitos limites, dado
que o pensamento analógico, por seu caráter imediato, pode
induzir a equívocos. Embora que a analogia nunca tenha de-
saparecido da maneira de pensar da humanidade, mesmo no
capitalismo avançado, o desenvolvimento social logrou outras
formas de pensamento.
Para que se possa ilustrar com um exemplo o limite do
pensamento analógico, pensemos no caso de uma criança que
aprende a identificar um cachorro por ele ser quadrúpede. Pos-
teriormente, a mesma criança, ao ser apresentada a um cavalo,

41
por analogia, pode ser levada a acreditar que o equino venha a
ser um cão pelo fato de ambos os animais, na imediatez analógi-
ca, apresentarem a característica de andarem sobre quatro patas.
Mesmo funcionando sem distinguir teoria de prática, pela
natureza mediadora do pensamento analógico, ele é decisivo no
modo de vida das comunidades primitivas. A analogia, como
sistema de mediação, sobretudo no período mágico, consegue
um grande domínio sobre as formas de comunicação. Pela im-
portância desse sistema mediador para as comunidades primiti-
vas, é “[...] de conhecimento geral que a primeira categoria da
ordenação das ideias e do domínio sobre a realidade objetiva é a
analogia” (LUKÁCS, 2018b, p. 659).
A inferência analógica, por sua vez, é um desdobramento
do processo de analogia. Depois que o ser social primitivo se de-
para com determinado fenômeno, em primeira instância, é a ana-
logia que o auxilia na compreensão do evento. Em seguida, com
suporte na mediação possibilitada pela analogia, o sujeito primi-
tivo monta no pensamento certas inferências. Lukács (1966a) de-
nomina esse processo conclusivo de inferências analógicas.
Para que não haja dúvida entre a analogia e as inferências
analógicas, esclarecemos que a primeira é o modo de compre-
ensão primário que o sujeito humano usa para se mover na re-
alidade. Por exemplo, ao se deparar com a aproximação de um
ônibus, antes de ler seu letreiro, por meio da análise das cores,
tamanho, forma, entre outros caracteres do transporte, a pessoa,
por analogia, fica atenta pois este pode ser o automóvel que lhe
conduzirá a seu destino. Quando o ônibus se aproxima e é pos-
sível ao passageiro que o espera ler no letreiro o destino, ou uma
numeração correspondente ao percurso do transporte, a pessoa
que espera o automóvel tem elementos para concluir se este é
de fato sua condução, ou se ele não o é. Essa conclusão, para
Lukács, é uma inferência analógica, ou seja, com base na analo-
gia, o primeiro momento da análise cotidiana, o ser social tem
como tirar conclusões posteriores, fazer inferências analógicas, o
momento seguinte da análise.

42
Embora pareça que são dois momentos distintos, adverti-
mos com o autor que a analogia e a inferências analógica com-
põem um sistema de mediação unitário, isto é, não há separação
rigidamente mecânica entre os dois momentos. A analogia e a
inferência analógica, esta desprendida, daquela, fazem parte de
um unitário sistema de mediação.
As analogias e as inferências analógicas, perante a necessi-
dade de tomar uma decisão na imediatez da vida cotidiana pri-
mitiva, funcionam como as ferramentas intelectuais, imaginati-
vas, emocionais e espontâneas que o ser social primitivo possui
para agir sobre o mundo. Esses sistemas de mediação, portanto,
compõem o instrumental intelectual com o qual o agente hu-
mano atua, principalmente, no modo de produção primitivo.
O esteta magiar entende que elas funcionam como siste-
mas de mediação, pois são essencialmente uma espécie de “[..]
trampolim para a formação de categorias reais [matemática, por
exemplo], que expressam realmente o comportamento, as cone-
xões, etc., do mundo material” (LUKÁCS, 2018b, p. 410). Para
nosso autor, “os resultados mostram imediatamente se e quanto
um analogismo que tem imediatas consequências materiais cor-
responde a algo na realidade, ou não” (LUKÁCS, 2018b, p. 410).
Importante deixar registrado que a forma de pensamento
analógico e suas formas inferenciais, por sua vez, realizam-se por
meio da analogia, não desaparecem nos modos de produção que
requisitam formas de pensamento mais desenvolvidas, como no
capitalismo, por exemplo.
Esses sistemas de mediação, por fim, sejam os que se ma-
nifestam nas formas cotidianas de pensamento ou nas objetiva-
ções superiores, sejam elas no mundo primitivo ou no capita-
lismo contemporâneo, nunca deixam de operar na articulação
entre o ser e a consciência pensante, entre o objeto e o sujeito
que tenta conhecer a realidade concreta.
Com base na compreensão da importância dos sistemas
de mediação formados pela analogia e pela inferência analógica,
já podemos tratar da relação entre o reflexo e a mimese.

43
Antes, porém, precisamos apresentar um breve resumo.
O reflexo, como um sistema primário de mediação, é o
elo que funciona na tentativa consciente de captação da realida-
de. Ele é distinto da realidade, pois é apenas a tentativa subjetiva
de captação do real.
A analogia e a inferência analógica, esta desprendida da-
quela, são sistemas de mediação compostos por reflexos que au-
xiliam o ser social na compreensão da realidade. Da analogia,
portanto, desprendem-se as inferências analógicas.
Os sistemas de mediação, que são compostos pela articu-
lação elaborada do reflexo, dotam o sujeito humano da condi-
ção de compreender e consequentemente intervir na realidade.
Depois de mais esse pequeno resumo, já podemos tratar
da questão do reflexo mimético.

1.4) Reflexo mimético: a imitação que se aproxima da evo-


cação

O estudo do reflexo mimético é indispensável para a aná-


lise estética, pois a mimese é o primeiro elemento pelo qual a
arte se ergue. Assim como a analogia, a mimese é uma forma de
reflexo. Artisticamente, pode ser dito que a mimese é um reflexo
enriquecido. Ao enriquecer-se, a mimese transforma-se em evo-
cação2 de algo real e concretamente presente na vida humana.
Quando apontamos que a mimese artística é um reflexo
enriquecido da realidade, temos como suporte o entendimento
de que essa classe mimética cria um determinado meio homo-
gêneo3 que, por sua força depuradora, filtra o modo de aparição
dos fenômenos que surgem na forma de pensamento da vida
cotidiana. Usando as palavras de Lukács (2018a, p. 255) sobre a
diferença entre a mimese artística e a geral, pode ser dito, antes
2 Guardemos a palavra evocação, mais à frente explicaremos com mais detalhes a
importância da evocação para a gênese das formações estéticas.
3 Tal qual a evocação, o estudo do meio homogêneo será apresentado mais adiante.

44
de tudo, “que a mimese estética sempre cria um ‘meio homogê-
neo’ (p.ex., o da pura visibilidade etc.) com cuja ajuda todos os
objetos do reflexo são qualitativamente colocados em um mes-
mo plano”. O funcionamento desse filtro lapidador opera do
seguinte modo:
sua homogeneidade assim alcançada intensifica, ao mesmo tempo,
sua própria substância e faz todas as relações mais ricas e essenciais do
que, por princípio, a realidade sempre heterogênea jamais poderia;
com isso essa aplicação aparente da realidade imediatamente dada
ao material de uma “segunda imediaticidade” conduz de volta, enri-
quecidamente, às suas essências. Com isto deve apenas ser indicado o
poder de intensificação do meio homogêneo como forma objetivada
da mimese (LUKÁCS, 2018a, p. 255).

A análise mimética, para ser adequadamente tratada,


precisa, como abstração razoável, apreender o seguinte: a apa-
rência imediata do cotidiano é frequentemente produtora de
muitas oscilações. Principalmente na análise do fator estético,
há momentos de oscilante transição. Isso dificulta, na aparên-
cia turva do fenômeno, decifrar o momento exato em que co-
meça e ou termina uma espontânea ação cotidiana, o ponto
onde se inicia uma prática cientificamente dirigida ou artisti-
camente substantiva.
A evocação, que será estudada posteriormente, é o nexo
de articulação entre o que é prioritariamente cotidiano e o
que ganha tendência artística. Mas deixemos a evocação para
mais tarde.
Por hora e para enfrentar essa dificuldade de partida, recor-
damos o que foi constatado acima: o reflexo cotidiano, o cientí-
fico e o artístico refletem a mesma realidade. Apenas tendo como
base essa constatação lukacsiana é possível dar o devido tratamen-
to à problemática do reflexo mimético. Para enfrentar a análise
desse problema, é necessário considerar, em primeiro plano, que
em quase todos os animais superiores se verifica algum tipo de
mimese. Esse tipo de mimese deriva diretamente da imitação.

45
Esses pressupostos são importantes, dado que Lukács uti-
liza a mimese exatamente em seu sentido clássico; isto é, como
uma derivação da imitação4.
A filosofia grega, devido à sua espontâneo-ingênua genialidade ontoló-
gica e dialética, sustentava a mimese como um fato fundamental do do-
mínio humano, intelectual bem como vivencial, da realidade. Que suas
concretas interpretações frequentemente estão ultrapassadas conecta-se a
circunstâncias históricas, entre outras ao não desenvolvimento das ciên-
cias de então, embora isso não diminua nem um pouco a manutenção da
validade das teorias da mimese de Aristóteles também para hoje. Apenas
o pensamento metafísico-mecanicista do período moderno — antes de
tudo o materialismo vulgar de meados de século 19 — gradualmente
degradou a mimese a uma imitação fotográfica da realidade. A reação
da filosofia idealista a tal — do ponto de vista da mimese corretamente
apreendida — simplificação inadmissível e distorcida foi uma rejeição
geral de toda mimese, o que se tornou, para todo filósofo digno de sua
profissão, especialmente no kantismo, um credo, um axioma que não
necessita de nenhuma prova (LUKÁCS, 2018a, p. 452).

Como modo de imitação de algo a ser refletido na consciên-


cia, a mimese não é, contudo, um produto exclusivo da arte. No
caso da estética, produz-se uma refiguração artística do imitado, ou
seja, refigura-se artisticamente o que é mimetizável na realidade.
O estudo da mimese, é preciso deixar claro, não é im-
portante apenas para a estética. Na atualidade, a filosofia de es-
critório que ocupa os corredores acadêmicos, contudo, quase
que sepultou totalmente a investigação da mimese. Como faz
questão de registrar o marxista de Budapeste, em função des-
se desaparecimento nas pesquisas sobre a realidade, a mimese
“[...] existe apenas como uma teoria incorreta da representação
fielmente fotográfica da realidade” (LUKÁCS, 2018a, p. 454).
Já está claro em nossa exposição, mas vale o esforço insistir, que
uma representação mecânico-fotográfica da realidade, como
essa projetada pelo idealismo positivista, “[...] não existe em
parte alguma, seja dito de passagem, exceto nas diversas formas

4 Para saber mais sobre a relação entre imitação e mimese, ver Contrim (2015);
Saltarelli (2009).

46
do próprio fotografar, certamente não como um ato humano de
apreensão da realidade” (p. 454).
O processo de imitação por analogia, para ficar ainda mais
claro, é fruto das relações humanas, da interação ser social-natureza-
-sociedade. Esse tipo de reflexo mimético, processado nas comuni-
dades primitivas, para dar um exemplo, tinha muito mais centralida-
de para tal comunidade do que tem hoje nas sociedades capitalistas.
Isso não autoriza concluir que atualmente a analogia, como sistema
primário de mediação, tenha perdido sua importância.
Para amarrar o que acabamos de ver, podemos repetir o
seguinte: a mimese é um tipo de reflexo que, por sua natureza,
desprende-se da imitação. O reflexo mimético não é exclusivida-
de da arte, pois o cotidiano é prenhe de mimetismo. A estética
enriquece o reflexo produzido pela mimese.
Nunca é demais relembrar a importância da divisão so-
cial e técnica do trabalho para esse processo. Fora da base pos-
sibilitada pelo trabalho e por seus resultados, não faz sentido
falar em reflexo mimético que expressa determinada imitação.
Sem o trabalho, o máximo que a imitação atinge, como no caso
de alguns animais superiores, é um processo mimético adequa-
do a um epifenômeno, jamais a uma imitação humano-social.
(Como dito, mais adiante veremos que a mimese-imitativa ga-
nha o caráter de evocação).
Relembrando: as formas de reflexo da realidade, a exem-
plo dos sistemas de mediação, como analogia, inferência analó-
gica, mimese etc, são processos de objetivação. Por meio de pro-
cessos de aproximação e distanciamento, esses reflexos dotam o
ser social da condição de entender mais e melhor o mundo que
o rodeia e, assim, intervir sobre seu entorno.
Tendo essa compreensão como baliza e apoiados nas
orientações lukacsianas, advertimos o seguinte: os resultados,
fixados na consciência subjetiva do sujeito pensante, logrados
com a atuação desses processos de mediação, não podem, ja-
mais, serem entendidos como reproduções mecânicas de cópias
fotográficas que recriam a realidade no pensamento subjetivo.

47
Contra esse mecanicismo abstrato, com base no marxis-
mo clássico, arguimos que os atos humanos são orientados pe-
las finalidades postas pelo antropomorfismo do sujeito ponente
(por quem tem a intenção, por quem planeja, por quem adianta
uma teleologia). Em termos genéticos, é a reprodução social da
vida, guiada pelo princípio do trabalho, que decide, nunca me-
canicamente, a eficácia final de tal processo. Essa orientação,
concretamente teleológica do reflexo, é a fonte da força de sua
fecundidade. Como escrito parágrafos antes, esse processo é
também o que forma a tendência contínua ao conhecimento: o
que garante o descobrimento de novidades, a garantia do novo
na vida humana. Em uma expressão: o devir social.
Para que possamos observar como surge o reflexo artístico,
temos que antes cumprir algumas etapas. Mas aqui já podemos
adiantar, em primeiro plano, um fato importantíssimo. Quando
comparado com o científico, o reflexo artístico surge tardiamen-
te: pois o nascimento do reflexo da arte “supõe materialmente
uma determinada altura da técnica, e, ademais, um ócio para a
criação de ‘superfluidade’, determinado pelo aumento das for-
ças produtivas do trabalho” (LUKÁCS, 1966a, p. 251). Embora
com nascimento tardio, para nosso autor, é evidente o incre-
mento qualitativo que a atividade artística propicia nas tendên-
cias nascidas do trabalho, inclusive desenvolvendo-as.
Pela altura de nossa exposição, não há elementos suficien-
tes para que possamos exemplificar como as tendências nascidas
da arte retroagem sobre o processo de trabalho, potencializando
qualitativamente seus resultados. Resta apontar que mais adian-
te, quando tratarmos da importância do ritmo para o desenvol-
vimento humano, aclarar-se-á como as criações artísticas poten-
cializam a produção social material da vida.
Com o intuito de aproximação ao que distingue as forma-
ções superiores da forma de reflexão da vida cotidiana, precisamos
registrar uma veemente advertência lukacsiana: quando as formas
superiores de objetivação passam a se submeter a elaborações fe-
chada em si, correm o perigo de não retroagirem sobre o cotidia-

48
no. O fato de não saírem de si mesmas, abandonando a tarefa de
enriquecimento das formas de reflexo do pensamento cotidiano,
traz como consequência contraditória a criação da tendência a
atingirem o âmbito de um comportamento decididamente su-
perior. Ou seja, quando as objetivações superiores se fecham em
si, desligando-se do cotidiano, tendem a deixar de ser objetiva-
ções superiores, inclinam-se apenas para formações fechadas em
si mesmas que não dialogam com a vida humano-pedestre.
Dissemos, para melhorar a base pela qual seguiremos com
a exposição, que a analogia e a mimese são formas de reflexo da
realidade. A mimese, vale insistir, não é um reflexo exclusivo da
esfera artística. Não podemos, contudo, entender esses reflexos
como se eles fossem reproduções fotográficas que copiam meca-
nicamente, no pensamento subjetivo, a realidade.
Também escrevemos que os reflexos provenientes da for-
ma de pensamento da vida cotidiana oscilam. Tais oscilações
criam determinadas dificuldades para o adequado entendimen-
to de onde começa e termina as atividades vinculadas às abstra-
ções superiores, como a ciência e a arte. Por isso, é importante
repetir que esses dois complexos refletem a mesma realidade que
é refletida pela forma de pensamento da cotidianidade.
Advertimos, por fim, seguindo a linha lukacsiana, que
se as objetivações superiores se fecharem em si próprias, ten-
dem a perder o caráter de objetivação superior. Inclinam-se,
assim, a sistemas fechados que abandonam o modo de existir
do cotidiano.

1.5) Aplicando as categorias nodais

Em Santos (2018), propusemos que o autor húngaro uti-


liza um grupo de categorias para se aproximar do complexo ar-
tístico. Com esse grupo categorial, Lukács também se aproxima
dos complexos da ciência e da religião, e até dos da ética. Cha-
mamos tal grupo de categorias nodais.

49
Com base nessas categorias e como forma de sugerir uma
melhor diferenciação entre os reflexos produzidos na vida cotidia-
na e os realizados nas abstrações superiores, precisamos estudar as
categorias nodais; são elas: antropomorfização, desantropomorfiza-
ção, imanência e transcendência (SANTOS, 2018). O que propo-
mos com a aplicação dessas categorias, portanto, é um instrumen-
to de aproximação e distanciamento entre os reflexos superiores
de pensamento e os produzidos no cotidiano. Isso se justifica uma
vez que ciência, arte e cotidiano, como certifica Lukács (1966a) e
como lembrado acima, refletem a mesma realidade objetiva.
Comecemos pelo reflexo desantropomórfico.
Como se sabe, o reflexo científico da realidade, para cum-
prir sua função de elo do conhecimento, necessita se libertar
de todas as determinações antropológicas e antropomórficas,
independentemente se venham dos sentidos ou da intelectuali-
dade humana. Essa classe de reflexo empreende seu esforço para
recriar, na consciência subjetiva, os objetos como são em-si, ou
seja, como são concretamente na realidade e em completa inde-
pendência da vontade do sujeito.
Na consciência, ressalta-se, não chega o objeto mesmo,
senão sua imagem projetada pelo sujeito. Essa representação no
pensamento, independentemente da consciência subjetiva, precisa
ser projetada o mais fiel possível: necessita estar o mais aproxima-
do que se possa à realidade. É, em outros termos, o movimento
consciente para reprodução do ser em sua forma real e concreta. A
esse processo Lukács (1966a) denomina de desantropomorfização.
Como ensina Lukács (2018a, p. 382), “a vida cotidiana
necessariamente desenvolve por si, na ciência, [...] o reflexo de-
santropomorfizante da realidade”. Mas para que ele serve? “Para
que, em cada caso singular, ao menos aproximadamente, apre-
enda o em-si da natureza e, com isso, e para permanecer com
nosso exemplo, produza ferramentas que funcionem correta-
mente” (p. 382).

50
Já sobre o reflexo antropomórfico, quando consultamos
a síntese condensada por Nicola Abbagnano (2007), encontra-
mos que o substantivo masculino antropomorfismo deriva da
união das palavras gregas anthropos (homem) e morphe (forma).
Esse conceito é utilizado, de modo geral, para atribuir caracte-
rísticas humanas – físicas, comportamentais, emocionais etc. – a
animais, entidades místicas, mitológicas, religiosas e até ao meio
natural, entre outras atribuições. O verbete antropomorfismo
(in. Anthropomorphísni; fr. Anthropomorphisme, ai. Anthropo-
morphismus; it. Antropomorfismó), é assim registrado por Nicola
Abbagnano (2007, p. 68): “Indica-se com este nome a tendên-
cia a interpretar todo tipo ou espécie de realidade em termos de
comportamento humano ou por semelhança ou analogia com
esse comportamento. ‘Crenças antropomórficas’ ou ‘antropo-
morfismos’ são chamadas, em geral, as interpretações de Deus
em termos de conduta humana”.
Sobre a antropomorfização, como lembra Lukács (1967b),
pode ser dito que o vivente humano possui um eixo vertical em
relação ao sistema de coordenadas de um espaço determinado
que, por meio da força da gravidade, aponta ao centro da terra.
Por isso, a experiência imediata do sujeito humano no cotidiano
tem a tendência geocêntrica. Esses elementos, em relação ao ser
social primitivo, são preponderantes. Haja vista que, por exem-
plo, a marcha ereta é fator decisivo para o processo de hominiza-
ção e a consequente humanização do ser social: apenas o sujeito
humano anda ereto e sobre dois pés.
Essa conjunção de fatores, mesmo sem o sujeito humano
primitivo estar munido plena e conscientemente de um sistema
de coordenadas, dota-o de condições, cada vez mais diferencia-
das, de lidar com o mundo circundante. Isso lhe garante uma
melhor condição de se movimentar em referência ao seu entorno,
observar melhor, por exemplo, o que está à sua frente ou atrás de
si (LUKÁCS, 1967b). É por isso que o autor considera o reflexo
antropomórfico como algo característico ao sujeito humano.

51
Para que tenhamos mais elementos, poder-se-ia dizer que
a reflexão desantropomórfica é a que independe da consciência
subjetiva para existir: existe com independência do sujeito. Já a re-
flexão antropomórfica, por ser o que caracteriza o sujeito humano,
depende da consciência para ter sua existência no mundo. Aquela
sai do ser concreto da realidade e caminha em direção ao sujeito.
Esta é gerada no sujeito pensante e se direciona ao objeto real.
Como forma de exemplificar: se o reflexo científico é desan-
tropomórfico, o reflexo estético, por sua natureza de se originar
nas pessoas e orientar sua finalidade para elas, é peculiarmente dis-
tinto. Esta classe de reflexo parte do mundo humano e volta para
ele. Seu tráfego, por depender da vontade humana, dá-se entre os
sujeitos, de um vivente para outros e destes para aquele. Por isso,
Lukács (1966a) entende que o reflexo artístico é antropomórfico,
enquanto o científico é desantropomórfico, visto que na ciência
há a exigência de se conhecer o objeto com independência da
consciência humana, independentemente da vontade subjetiva.
Resumindo: enquanto o reflexo desantropomórfico
parte do ser concretamente real para se projetar na consciência
subjetiva, o antropomórfico parte da consciência humana em
direção ao ser objetivo da realidade. Neste segundo caso, o ser
concretamente real pode ser outro sujeito humano envolto com
a problemática do drama e do destino da humanidade: alegrias,
tristezas, frustações, esperanças etc.
Depois de tratado, ainda que de modo bastante sumário,
da desantropomorfização e da antropomorfização, vamos agora
ao entendimento lukacsiano da imanência e da transcendên-
cia. Pode ser dito que a primeira representa a lei que movimenta
o objeto, ou seja, o que é próprio ao ser objetivo. A transcendên-
cia, por sua vez, é algo que não está no objeto, vem de fora para
tentar movimentá-lo; é uma força externa ao ser, mas que tenta
controlá-lo, dominá-lo.
Com as categorias nodais adiantadas, utilizamo-las como
parâmetros de aproximação e distanciamento entre cotidiano,

52
ciência e arte. Antes, porém, precisamos expor a seguinte adver-
tência marxiana: somente ao sujeito humano, como afirma Marx
(2011a), sob as contradições da evolução social, é possível produ-
zir a si próprio, ou seja, é possível fazer a história, dado que ela é
imanente ao sujeito histórico e este àquela. Aplicaremos, portan-
to, as categorias nodais para melhor caracterizar a ciência e a arte.
Vejamos os exemplos aplicando, incialmente, a imanência
ao caso da ciência e da arte:
1. A ciência é um exemplo figurativo de imanência hu-
mana, uma vez que apenas ao sujeito é possível conhe-
cer e, assim, ao operar sobre a matéria social/natural,
transformar conscientemente o mundo.
2. A arte serve de exemplo típico do que é imanência,
uma vez que, como entende Lukács (1966a, p. 28),
ela demonstra a imanência humana: “a imanente obs-
tinação, o descansar-em-si-mesma de toda autêntica
obra de arte – espécie de reflexo que não encontra
analogia nas demais classes de reações humanas ao
mundo externo – é sempre por seu conteúdo”, teste-
munho da imanência humana.
3. Impossível, portanto, que arte e ciência possam surgir
de alguma forma de transcendência.
4. Os reflexos científicos e artísticos são imanentes ao
sujeito humano, uma vez que apenas à ação humana é
possível produzir ciência e arte.
5. Qualitativamente, no entanto, são reflexões distintas.
6. Enquanto a ciência reflete os objetos como são em sua
forma concretamente real: desantropomorfizadamente.
7. A arte reflete seus objetos antropomorfizadamente,
visto que, como é uma forma especial da relação obje-
to-sujeito, seu elã se realiza de um sujeito vivente para
outro que, por sua vez, vive com os pés no chão de um
mundo compartilhado, humanamente, por ambos.

53
Podemos, assim, arriscar uma conclusão sobre o comple-
xo artístico. A natureza estética da arte tem necessariamente que
atender ao caráter de incerteza presente com muita força na co-
tidianidade. Essa natureza incerta do reflexo artístico o faz ser
mais aproximado dos reflexos do pensamento e da linguagem
do cotidiano – carregada de antropomorfismo – do que do si-
logismo lógico científico – necessariamente desantropomórfico.
No intuito de deixar bem aclarado o que são e como são
aplicadas as categorias nodais, lançamos mão agora de algumas
anotações complementares sobre esse conjunto de pares relacio-
nais que o filósofo magiar usa para vencer o obstáculo de partida
para definir a arte.
Os pares que formam o conjunto das categorias nodais
são, reprisando: imanência-transcendência e antropomorfiza-
ção-desantropomorfização5. Lukács, todavia, necessita de outro
par relacional para distanciar a arte da religião: cismundanida-
de-trasnmundanidade.

1.6) Cismundanidade e trasnmundanidade: a arte é pedestre!

Com o apoio da cismundanidade e da trasnmundanida-


de, o esteta compreende a existência de um parentesco estrutural
entre o cotidiano e a religião. Entende também o desacordo que
há entre o complexo religioso e o científico. Deixa claro, ainda
mais, qual o ponto de contato partilhado entre a ciência e a
arte. Por fim, aclara que embora haja um ponto de aproximação
entre o reflexo artístico e o religioso, os dois complexos possuem
naturezas distintas e a comunhão é apenas aparente. Quando se
mergulha para além da aparência dessa comunhão, encontra-se
os motivos que aproximam, aparentemente, a arte da religião.

5 Consideramos, inclusive, que tais pares relacionais facilitam a compreensão da


Ontologia, visto que são muito utilizados ao longo do texto. Há várias outras expo-
sições do marxista de Budapeste que se valem dessas expressões.

54
O complexo artístico e o religioso comungam, de fato,
de uma reflexão antropomórfica. Ambas as reflexões dependem
do sujeito para existirem, no entanto, entre religião e arte existe
uma importante distinção.
Explicando melhor: enquanto o reflexo artístico é ima-
nente, trafega entre pessoas terrenas, o reflexo religioso é trans-
cendente, seu tráfego ocorre de uma pessoa para uma entidade
sobrenatural, distante do solo terreno.
Exatamente para ressaltar a diferença existente entre o re-
flexo artístico e o religioso, ambos de caráter antropomórfico, que
Lukács utiliza o par relacional: cismundano-transmundano.
Com esse par, dilata-se ainda mais a diferença, pois en-
quanto a religião apenas pode prometer algo – inclusive no as-
pecto ético – no mais-além, fora do mundo, do outro lado deste
mundo terreno, a arte apresenta rebatimento pedestre/terrenal,
aqui e agora (hic et nunc).
Vale ressaltar que a origem dos prefixos cis e trans deriva
do latim. Se o primeiro significa “deste lado de”, o segundo tem
significado oposto, “em frente de”, pode ser também “do outro
lado de”. Para exemplificar, pode ser citado: Cisalpina (deste lado
dos Alpes), Cisjordânia como distinto de Transjordânia etc6.
6 Convém registrar, embora sem nenhuma pretensão de aprofundamento, que
é atribuído ao químico Alfred Werner (1866-1919) a descoberta dos isômeros, ou
seja, o fenômeno em que dois ou mais compostos químicos apresentam a mes-
ma fórmula molecular, mas possuem estruturas distintas; apresentam o mesmo
conjunto de átomos, mas que recebem diferentes arranjos. Quando, em uma
determinada molécula, as ligações atômicas estão do mesmo lado, denomina-se
de isômeros-cis. Quando, diferentemente, as ligações (ligantes) iguais estão em
lados opostos, atribui-se a denominação de isômeros-trans. Conforme explicam
Salete Queiroz e Alzir Batista (1998, p. 193): “O isomerismo geométrico do tipo
cis-trans é observado quando dois grupos iguais ocupam posições adjacentes (cis)
ou opostas (trans), um em relação ao outro em um complexo”. Ao que se refere à
utilização dos prefixos cis e trans para designação dos gêneros sexuais, a publicação
do médico alemão Volkmar Sigusch, especializado em sexologia, deve ser conside-
rada. Foi o sexólogo quem indicou o prefixo cis como alinhamento de identidade
de género com o sexo de nascimento. Em sua publicação Die Transsexuellen und
unser nosomorpher Blic (Transexuais e nossa visão nosomórfica), apoderou-se do
neologismo (zissexuell). A partir desse artigo, outras publicações proliferaram-se
usando o cisgênero/transgênero, como a comunicação de 1998, do mesmo autor,
intitulada A revolução neossexual.

55
O que mais importa sumariar sobre a aplicação das cate-
gorias nodais para nossa exposição é o seguinte:
• Entre a ciência e a arte há a produção de uma comunhão
e uma dissidência. O reflexo científico é desantropomór-
fico enquanto o artístico e antropomórfico, o que confir-
ma a dissidência. Em relação à comunhão, pode ser re-
lembrado que tanto a ciência quanto a arte são imanentes.
• Entre a arte e a religião também se produz uma co-
munhão e uma dissidência. Ambas provêm de reflexos
antropomórficos, no entanto, separam-se, uma vez que
enquanto aquela é imanente, esta é transcendente. O
detalhe imprescindível para compreender que, mesmo
sendo proveniente de reflexos antropomórficos, en-
quanto a reflexão artística tem origem na vida pedestre
da humanidade, sendo cismundana, o reflexo religioso
realiza-se por meio da transcendência transmundana.
• Com o apoio, portanto, nas categorias nodais, o mar-
xista magiar consegue provar que a ciência e a arte,
embora marchem separadas, combatem juntas, pois
estão objetivamente aliadas na luta histórico-universal
pela cismundanidade do mundo concreto.
• Por fim, entre a ciência e a religião não há encontro
algum. Haja vista que esta é produzida por uma clas-
se de reflexo antropomórfico-transcendente e aquela
pela reflexão desantropomórfica-imanente.7
Para finalizarmos o debate sobre as categorias nodais, é impor-
tante que seja dito o seguinte: o reflexo da realidade do pensamento
cotidiano é dotado de uma insuperável ambiguidade que tem como
fonte a relação imediata entre teoria e prática. Diferentemente da
formação dos reflexos do pensamento cotidiano, as reflexões gera-
das nas objeções superiores – a ciência e a arte – são, como visto,
mais complexas e possuem um grau mais elevado de mediações.
7 Para Lukács (1966a), o verdadeiro campo de batalha entre cismundano-
-transmundano é a ética. Em Santos (2021), debatemos com um pouco mais de
profundidade essa tese do autor húngaro.

56
Capítulo 2)

Gênese, desdobramentos e independentização


da arte: da mimese ao ritmo e do útil ao
agradável

2.1) Mimese evocativa e gênese da arte: com um pé dentro


da estética

2.1.1) Da mimese à evocação: a espontaneidade do nascimento


da arte
Com base na estruturação onto-metodológica certificada
pelo marxismo clássico, foram apresentados no capítulo prece-
dente determinados parâmetros sobre trabalho, cotidiano, refle-
xo – e algumas de suas formas de manifestação. Aproveitamos
ainda a oportunidade dada pelo movimento do objeto e apre-
sentamos as categorias nodais.
Baseado nesse quando, pela natureza necessariamente su-
cinta de nosso livro, chega o momento de averiguar a série evo-
lutiva de onde gemina a arte.
O nascimento do complexo artístico, todavia, não tem
ocorrência unívoca. Sua germinação, como insiste Lukács
(1966a), deve ter acontecido de modo espontâneo e com diver-
sas origens. Entretanto, há acordo sobre dois pontos:
1. seu nascimento é tardio, dá-se, por exemplo, posterior
ao surgimento da ciência e
2. a matriz de sua gênese ancora-se, inevitavelmente, na
divisão social e técnica do trabalho.

57
Com base nesses pontos, apresentamos o plano de nasci-
mento e desenvolvimento da arte. Vejamos sua série evolutiva:
• Reflexo mimético da vida cotidiana;
• Reflexo da mimese mágica;
• Reflexo da evocação.
A mimese cotidiana significa, de um modo imediato, que
a ação evocadora de algo real representado na consciência subje-
tivo-receptora, orienta-se, exclusivamente, à receptividade do su-
jeito humano. Em outros termos, o efeito evocador que chega ao
sujeito receptor, conseguido, por sua vez, por meio da formação
mimética, alcançou totalmente a sua finalidade. Ou seja, ganhou
representação na consciência, logrou significado consciente.
Já a mimese mágica, quando imita determinados proces-
sos, aspira influenciar certas forças ocultas que, supostamente,
dominam a realidade. O mimetismo mágico, com efeito, tenta
antecipar, por intermédio de procedimentos mágico-imitativo-
-manipulatórios, uma determinada correspondência com a rea-
lidade. Como exemplo para o modo de como se processa, nesse
segundo tipo de imitação, Lukács (1966b) cita os rituais das dan-
ças primitivas, em que o praticante imita ações a serem reprodu-
zidas na guerra, na caça, entre outras atividades cujo objetivo é
influenciar favoravelmente o resultado final de tal atividade.
Aqui, já é possível adiantar que esse tipo de processo
mágico-imitativo-manipulatório, produz, naturalmente, certa
transcendência. O efeito prático dessa transcendência mágica se
manifesta por meio de determinada imanência que, por sua na-
tureza imediatista, aproxima-se muito do efeito estético.
Para fechar a série, precisamos retomar, como prometido,
ao debate sobre a evocação. Como parâmetro de partida, po-
der-se-ia dizer que a evocação é um reflexo de um reflexo. Desse
modo, é um processo consciente, portanto subjetivo. Sua fun-
ção é fazer conexões entre um determinado dado mimetizado
do real e o que esse fato representa na vida humana. Psicologi-
camente, de modo abreviado, a evocação seria o movimento da
memória na direção de relembrar algo já fixado na consciência.

58
O evocado esteticamente, com efeito, nasce ao longo de
um complexo, largo e contraditório caminho. A discussão pre-
liminar sobre a série mimética (mimese cotidiana-mimese má-
gica), contudo, permite indicar o ponto onde nasce o estético.
Essa série deixa claro o seguinte: a arte tem nascimento nos
movimentos dos modos de comportamento das ocupações co-
tidianas entre os indivíduos e suas relações dialéticas com a na-
tureza e a sociedade. No intenso e extenso tráfego processado
no interior dessas relações, é produzida certas imitações, cuja
mimese cobra uma determinada evocação. A partir desse ponto,
a evocação exige que o ser social dê respostas ao resultado do que
foi evocado. Isto é, ao que significa a evocação.
Tais reflexos de reflexos, convertidos em ações, não imitam
somente determinadas finalidades práticas imediatas, apenas fe-
nômenos específicos e espontâneos repetitivos da realidade. Por
não ser baseada em processos simplesmente mecanizados, a evo-
cação, como reflexo de reflexo, também agrupa suas imagens
segundo princípios plenamente novos. Essa classe de reflexão,
tendo como base a história social da humanidade, provoca a
evocação do que ainda não existe, do ainda não conhecido, do
ainda não consciente. Em uma palavra: do novo!
Para que fique claro o terceiro estágio da série que desem-
boca no estético, ouçamos as palavras de Lukács (1966b, p. 38):
concentram-se na intenção de despertar no espectador determinadas
ideias, convicções, determinados sentimentos, paixões etc. Como é
natural, essa intenção evocadora-mimética apresenta-se também na
vida cotidiana; sem essa ‘preparação’ não podia se situar no centro da
representação mimética.

É necessário deixar em evidência a seguinte advertência:


a separação entre a magia e a arte não se processa de uma hora
para a outra. Há, para que ocorra a separação, a necessidade de
uma longa e contraditória evolução social. O desenvolvimento
da divisão social e técnica do trabalho, com todas as suas ine-
rentes contradições, é o solo onde a arte pode deitar suas raízes.

59
No início do modo de produção primitivo, por força das
necessidades cotidianas, o reflexo mágico não permite que haja
separação entre a sua mimese e a reflexão artística. Os momentos
objetivos da tendência à divergência entre as duas reflexões apare-
cem muito posteriormente. Por isso se indica que a arte é tardia.
Essas duas formas de reflexo do mundo, no início do de-
senvolvimento humano, coincidem provavelmente em quase
tudo, visto que a peculiaridade da típica primitividade, nascida
espontaneamente da prática mágica, contém já os germes da dis-
tinção entre a magia e a arte.
Consignada dentro de um longo intervalo de tempo, a
distinção entre magia e arte não se desdobrou de forma linear e
contínua. A separação entre as duas tendências processou-se sob
muitos conflitos e diversas contradições. A decisiva cisão entre as
duas classes de reflexos somente apresenta condições de iniciar-se
quando a evolução social produz colisões entre o indivíduo e a
totalidade. A obstrução da união entre indivíduo e gênero huma-
no, como documenta a história, apenas pode manifestar-se como
fenômeno típico da decomposição do comunismo primitivo. O
consequente nascimento das primeiras sociedades de classes cria a
divergência definitiva entre o ser individual e a totalidade.
Com os parâmetros principais sobre a evocação apresenta-
dos, mesmo que sem a necessária profundidade, podemos apon-
tar que a relação entre a mimese e a evocação se processa sob
uma estreita vinculação. A mimese e sua inextrincável vincula-
ção com a evocação é um fator básico do tráfico cotidiano das
mulheres e dos homens entre si, e destes com a natureza e com a
sociedade. Esse vínculo de extrema proximidade apresenta, com
base na divisão social e técnica do trabalho, o fundamento para
desenvolver os sentidos humanos.
Como escrito parágrafos antes, existem muitos elementos
que poderiam ser elencados como base do nascimento da arte.
Isso se justifica, visto que o complexo artístico, segundo Lukács
(1966a), deve ter como raiz de surgimento muitas e diversas
origens e que sua germinação deve ter realização espontânea.

60
O que fizemos foi indicar, seguindo o plano onto-históri-
co, que o nascimento da arte deve ter saído das práticas mágicas.
Para que a separação entre o reflexo artístico e o mágico fique
ainda mais clara, exemplificaremos a seguir alguns desses mo-
mentos elementares. Com a ilustração desses momentos, cuja
relevância é decisiva para a ocorrência do desdobramento do
campo artístico a partir do solo cotidiano regido por ideais má-
gicos, acreditá-lo-emos que a separação entre reflexo mágico e
artístico ganha mais iluminação:
• O reflexo estético, ao constituir-se como obra de arte,
cria um sistema que se fecha em si mesmo: imanente
e cismundano. Já o reflexo presente na magia, ou até
na religião, refere-se a uma realidade transcendente.
• O reflexo do cotidiano, por sua natureza, é distinto
do artístico, pois enquanto este é mediado, aquele ne-
cessita dar respostas imediatas. O reflexo da vida coti-
diana tem, inexoravelmente, que dar respostas para as
demandas do dia a dia.
• A orientação de todas as artes à cismundanidade apre-
senta a marca do antropocêntrico: centrado, referido
ao humano.
• Toda arte pressupõe um determinado nível de evolu-
ção da divisão social e técnica do trabalho.
• O profundo humanismo presente no fator estético
apenas torna-se possível por registrar, por intermédio
da evocação, a autoconsciência humana.
Se nos fosse possível realizar um resumo dentro de pala-
vras já tão abreviadas, arriscaríamos dizer que a arte tem seu nas-
cedouro nos reflexos surgidos na vida cotidiana. A série evoluti-
va que possibilita à arte se erguer é a seguinte: reflexo mimético
do cotidiano, reflexo mimético da magia, reflexo evocativo.
Não se despreza que essa evolução se deu diante de muitas con-
tradições e sob a base do desenvolvimento da divisão social e
técnica do trabalho.

61
Retomá-lo-emos novamente, e quantas vezes forem ne-
cessárias, a vinculação do desenvolvimento dos sentidos huma-
nos com a divisão social e técnica do trabalho mais à frente. Por
hora, basta insistir que a divisão social e técnica do trabalho
fornece a base pela qual ocorre o desenvolvimento estético dos
cinco sentidos humanos. A estreita vinculação da evocação e da
mimese existente no tráfego cotidiano dos homens e mulheres
entre si, e destes com a natureza e a sociedade, tem como fun-
damento o desenvolvimento dos cinco sentidos humanos. Os
cinco sentidos da pessoa que trabalha, por seu caráter biológico-
-social, apenas podem se desenvolver por intermédio do traba-
lho, da divisão social e técnica do trabalho.
Mas por que o trabalho e sua divisão social e técnica é o
pressuposto principal para o desenvolvimento dos cinco senti-
dos humanos?
Para que se realize o trabalho, em sua essência teleologi-
camente objetiva, é preciso supor a existência de um complexo
de objetos, de um grupo de leis que determinam o trabalho em
suas especificidades: movimentos, ritmos, proporções, opera-
ções, entre outros elementos. A consciência humana trata es-
pontaneamente todos esses fatores como entidades que existem
e funcionam independentemente dela, pois, conforme conclui
Lukács (1966a), a essência do trabalho, para que possa criar o
novo, consiste precisamente em observar, decifrar e utilizar esse
ser e devir que são formas concretas da realidade. Esse materia-
lismo tem um caráter puramente espontâneo, dirigido aos obje-
tos imediatos da prática.
Em consequência dessa espontaneidade, o materialismo
prático-espontâneo da vida cotidiana é limitado. Também por
isso, a cotidianidade cobra do desenvolvimento humano a pro-
dução de objetivações superiores. Para ir além do limite da es-
pontaneidade do materialismo da vida cotidiana, a humanidade
se impõe a tarefa de criar suas objetivações superiores, a exemplo
da ciência e da arte.

62
Mesmo que o materialismo espontâneo tenha como meio
para conhecer a realidade objetiva limitadas mediações intelec-
tuais, ele é a forma de pensar, por excelência, da vida cotidiana.
Isso se justifica, visto que essa forma de pensar materialmente
espontânea, mistura teoria e prática. A não separação da teoria
da prática implica dizer que imitação, analogia, inferência ana-
lógica, evocação, entre outras primitivas formas de manifestação
do reflexo da realidade, deitam suas raízes no materialismo es-
pontâneo. Ou seja, a forma de pensar da vida cotidiana funcio-
na de forma espontaneamente material.
A divisão social e técnica do trabalho em seus momentos
incipientes não tem como fugir do materialismo espontâneo. Des-
se modo, quando tal divisão ensaiava seus primeiros passos, ao
possibilitar aos xamãs primitivos algum tipo de ócio, potencializa-
va-os a desenvolver o pensamento. O restante da tribo trabalhava
para sustentar a todos. Com isso, delegava-se a uma determinada
pessoa a tarefa de pensar. O trabalho coletivo da tribo possibilitava
que um sujeito humano fosse escolhido e, por isso, separado da
produção da materialidade. O que se esperava com essa separação
das atividades manuais é que o resultado da tarefa exclusiva de
pensamento retroagisse sobre os demais membros da tribo.
Esse processo de separação de uma pessoa para a tarefa ex-
clusiva de pensar, para Lukács (1966a), marca o germe do ócio.
Mas outras consequências, para o autor, podem ser atribuídas
ao fato de uma dada pessoa separar-se das atividades produtivas
para pensar. Uma de suas consequências é que o mundo, mes-
mo que a cotidianidade primitiva se mova sob o materialismo
espontâneo, é apreendido inicialmente por uma forma idealista
e não materialista.
Em um momento de baixo poder das forças produtivas,
o incipiente desenvolvimento da divisão social e técnica do tra-
balho separa um ser humano para pensar. Assim, o responsável
por formar uma imagem de mundo no pensamento, gnosiolo-
gicamente, não tinha como compreender o seu entorno, em um

63
momento de produção precária da vida material, senão pela se-
paração entre mente e mãos, pensar e fazer. Forma-se, portanto,
as bases do idealismo.
Para Lukács (1966a/b; 1967a/b), de todo modo, esse pro-
cesso de compreensão do mundo é positivo. Considera o autor
que, para o conjunto social, é melhor que haja uma síntese de
mundo do que a sua inexistência. Mesmo que, nesse momento
histórico, a imagem de mundo possível seja subjetivo-idealista,
ainda é melhor do que não a tê-la.
Do ponto de vista desse precário desenvolvimento, esse
avanço se compara, na interpretação metafórica do filósofo mar-
xista, a sair do canibalismo e avançar para a escravidão.
Retomar-se-á, mais adiante, a relação dialética entre a for-
mação estética dos sentidos humanos e o desenvolvimento da di-
visão social e técnica do trabalho. Agora, para modelar melhor a
exposição, pois é preciso criar as bases adequadas para tratar da for-
mação estética dos sentidos humanos, temos que apresentar mais
elementos sobre como a arte nasce, desdobra-se e torna-se substan-
tiva para a vida humana. Com base nessa necessidade, urge tratar
da relação entre o útil e o agradável. Relação que, por sua natureza,
tem desprendimento sob a divisão social e técnica do trabalho.
Antes de tratar do problemático ciclo do agradável, é ne-
cessário adentrar ao debate do ritmo. Vamos a ele.

2.2) Ritmo: a utilidade que agrada

Mesmo quando o sujeito humano não tinha consciência


do ritmo, ele já dispunha de um ritmo em seu corpo. Pulsação,
respiração, batimentos cardíacos, entre outros elementos que
compõem os sistemas rítmicos do corpo humano. Sem eles, o
corpo físico da pessoa não funciona biologicamente.
Em diversas formas externas ao corpo humano, o ritmo
também existe. A natureza externa ao humano é cheia de processos

64
rítmicos: fases da lua, sequência noite e dia, estações do ano, entre
outros fatores. Quando o ser social, sob o desenvolvimento social e
técnico do trabalho, descobre que em seu corpo – e fora dele – há
um ritmo, o sujeito que trabalha logra um significativo avanço.
Do modo como comentamos acima, sempre com base nas
pesquisas de Lukács (1966a/b); 1967a/b), a estética não tem um
nascimento unívoco. Possivelmente, como insiste o autor, seu ger-
minar tenha ocorrido de forma espontânea. Isso ilustra bem a es-
colha do mote da Grande Estética: “não sabem, porém o fazem”.
Expressão pinçada das pesquisas de Marx (1996).
O que nos importa com isso é indicar que a descoberta do
ritmo potencializa a produção. Ao ritmar os movimentos corpóre-
os no processo de trabalho, o ser social faz com que sua produção
melhore em quantidade e qualidade. A ordenação dos movimentos
de trabalho, assim, retroage sobre o produto final, que aumenta
em quantidade e fica mais refinado. O produtor que age sobre a
matéria natural, ao mesmo tempo em que produz mais e me-
lhor, recebe, retroalimentado em seu corpo, os resultados desse
melhor controle sobre o ritmo de trabalho.
O momento mais importante do ritmo no processo pro-
dutivo é a incorporação de certo aligeiramento que, por ordenar
os movimentos, cria facilidades para o trabalho. Isso, segundo o
esteta de Budapeste, constitui, por assim dizer, a função origi-
nária do ritmo na sociabilidade humana: ordenar, por meio do
tempo, os movimentos do trabalho.
As pessoas que trabalham, ao ritmarem seus movimen-
tos para quebrar pedras, por exemplo no mundo primitivo, ou
como forma de facilitar qualquer outra atividade que necessite
da ordenação dos movimentos físicos, descobrem que o próprio
corpo pode ser utilizado de modo que a produção do trabalho
desempenhado aumente consideravelmente.
Mesmo ao nível incipiente do debate do ritmo, já é possí-
vel apontar que ao ritmar seus movimentos em função da produ-
ção material da existência, o ser humano que trabalha logra um
degrau importante para o registro da autoconsciência humana.

65
Quanto mais aumenta o entendimento desse ritmo de tra-
balho, mais se consegue, em proporção direta, uma melhor orde-
nação das necessidades da produção. Isto é, na remota cotidiani-
dade vivida no modo de produção primitivo, o ritmo põe na vida
humana um aumento quantitativo-qualitativo. Haja vista que
melhora o rendimento da produção e, ao mesmo tempo, apresen-
ta ao corpo de quem trabalha um alívio das tarefas do trabalho.
Essa conjunção de fatores acaba por revelar ao sujeito que
age sobre a matéria natural um elemento ontológico dos mais
importantes para o posterior desenvolvimento social: a auto-
consciência de quem trabalha. Para recuperar o mote de Marx
(1996), lembrado acima, as contradições da evolução social re-
velam a quem trabalha que é o sujeito produtor quem produz a
si próprio. Por isso, mesmo sem saber, o ser social cotidiano faz
a si próprio (CHILDE, 1986).
De modo a atender as exigências da exposição, dividimos o
ritmo em primeiro e segundo estágio. Aquele é puramente útil, sua
preocupação principal concentra-se na produção da materialida-
de. O segundo estágio, por sua vez, carrega a tendência ao estético.
O primeiro estágio do ritmo, portanto, é puramente
útil. Há nesse estágio um tráfego, uma transição que o eleva ao
segundo. Sempre considerando a dialética do real, ao descobrir
em seu corpo esse importante elemento, o vivente humano que
trabalha sobre a matéria natural se compraz com a satisfação de
aumentar a produção: produz mais e melhor, além de controlar
com maior eficácia a produção.
Essa satisfação tem, em primeiro termo, a utilidade como
resultado. Ou seja, quem trabalha se satisfaz pelo resultado, pela
utilidade que o retomo lhe proporciona. Tal satisfação útil acom-
panha, concomitantemente, determinado prazer corpóreo, uma
vez que, ao ritmar seus movimentos, o corpo puramente físico
se sente melhor, além de mais produtivo.
Se quisermos pensar em um exemplo contemporâneo,
lembremos na satisfação proporcionada por um determinado

66
praticante de musculação. Essa pessoa, ao concluir a sequência
de seus esforços físicos, sente os efeitos hormonais que a prática
recorrente de exercícios retroage sobre o seu corpo. Ou seja, o
praticante sistemático, ao terminar sua série de exercícios de gi-
nástica, ou mesmo de musculação, sente que o corpo responde
melhor às demandas cotidianas.
Em resumo: o primeiro estágio do ritmo é puramente útil
e, não obstante a tal utilidade, essa fase já guarda o germe com
tendência à pura satisfação, ao estético.
O segundo estágio do ritmo, que, como debatido, tem
nascimento no primeiro, inclina-se tendencialmente ao es-
tético. Explicando com outros termos. A utilidade agradável
– primeiro estágio do ritmo – é o elemento responsável por
propiciar ao ser social, ainda em remoto desenvolvimento das
forças produtivas, o próximo momento. Esse segundo estágio
é o que guarda a tendência ao caráter estético: o caminho para
a satisfação espiritual.
O segundo estágio do ritmo, primeiramente, caminha
para o ordenamento rítmico da dança. Mas é daqui que se des-
prende também música, pintura, literatura etc.
Sintetizando: com a descoberta do ritmo, as mulheres e
os homens o utilizam de forma eminentemente utilitária, para
produzir mais e melhor. Esse caráter útil, porém, também pro-
porciona satisfação física à pessoa que trabalha, que age sobre
a matéria natural. Tal satisfação tem caráter puramente utilitá-
ria. Mesmo sendo completamente útil, trafega para outra forma,
mais elevada, mais requintada, que abre as portas para uma sa-
tisfação fora do ato produtivo. Ou seja, do ritmo do trabalho se
desprende o puramente útil. Dessa utilização, desprende-se outro
tipo de utilidade, agora de natureza agradável. Esse processo de-
semboca na satisfação espiritual, com tendência ao fator estético.
Não se pode esquecer, com risco de afogamento nas águas
do idealismo, que a satisfação agradável, a que vai contribuir
com a produção da vivência estética, jamais poderá ser conse-

67
guida sem sua relação com a materialidade da vida cotidiana.
Mesmo que tal relação se processe perante uma dependência/
independência ontológica e autonomia relativa da divisão social
e técnica do trabalho, sua dialética não pode ser negligenciada.
À guisa de fechamento, podemos escrever que a desco-
berta do ritmo proporciona a transição do meramente útil, que
passa pelo agradável e se inclina para satisfação espiritual, com
tendência ao puramente estético. A elevação estética do espírito
humano, contudo, jamais se desliga ontologicamente da mate-
rialidade da vida cotidiana.
Calçados na problemática do ritmo em relação à utilidade
e à satisfação, a exposição pode agora trazer para a discussão a
importante questão que Lukács (1967b) chama de ciclo proble-
mático do agradável.

2.3) A independentização da arte: do útil ao agradável

Sabendo que os reflexos de reflexos chamados de evocação


estão na série que possibilita o nascimento da arte, podemos
agora dar um passo a mais sobre como a arte nasce e se des-
dobra. Mas para isso é preciso atender ao tratamento do que o
autor magiar chama de ciclo problemático do agradável.
Parece razoável adiantar, para as pessoas que leem este li-
vro, que a tarefa de tratar adequadamente o ciclo problemático
do agradável está fora das condições de uma exposição resumida
como a presente. Não há, entretanto, condições de se debater,
nem que seja minimamente, o nascimento e o desdobramento
do complexo artístico sem mencionar a problemática do agradá-
vel/desagradável para a vida humana. Dado que, como escreve
Lukács (1966b, p. 242), não constitui nenhum exagero dizer que,
se a natureza humana não fora como é, “[...] tal que o agradável
desempenha um papel importante e até essencial – vital e social-
mente – em sua vida, talvez que a arte nunca pudesse ter nascido”.

68
Desse modo, introduziremos o debate do agradável espe-
rando que a exposição, posteriormente, nos forneça uma opor-
tunidade para escrever mais algumas linhas acerca do tema.
Começaremos a problematização pela questão do interes-
se. Para o marxista húngaro, a estética, considerada no plano
ontológico, processa-se na constante transição entre a prática e
a suspensão de suas finalidades imediatas. Precisamente na in-
destrutível articulação unitária entre a posição de fim e o exame
“desinteressado” do produto planejado, reside a “harmonia
contraditória” que peculiariza o processo de criação artística.
A tese do esteta húngaro é que, no processo criador, cujo
resultado é uma autêntica conformação artística, nunca há a pro-
dução de uma supressão. Produz-se, com efeito, uma suspensão,
embora seja transitória. É preciso reconhecer, contudo, que o
caráter imediato da receptividade pura certifica, aparentemente,
a tese do desinteresse de Kant (1974), uma vez que, no momen-
to da entrega imediata à obra em sua completa autenticidade,
o receptor se desliga completamente dos interesses imediatos
do cotidiano. Ao se observar com atenção esse fenômeno, indo
além dos elementos aparentes, verifica-se que esse desligamento
não se processa como uma supressão do interesse do receptor.
Ele é tão somente uma suspensão transitória.
Para avançar, interessa entender qual é o papel da singu-
laridade privada para a relação entre a utilidade e a agradabili-
dade. Quando a singularidade privada – o que mais singulariza
a pessoa humana – é preservada em sua imediatez, o agradável
tem acento primordial. O útil, mesmo quando se restringe a
uma utilidade privada, por ser algo que tem raiz nas necessida-
des sociais, consegue superar, ainda que com muitas contradi-
ções, o elemento exclusivamente singular-privado.
À medida que o sujeito humano afirma a si próprio, na
relação direta ou indireta de objetos ou grupos de objetos com
sua própria pessoa, cria-se, por meio da realização útil de sua
produção, a emoção do que é ou não agradável. Para o caso do

69
desenvolvimento da estética, o nexo de disputa para a devida
formulação da problemática é a aproximação e o distanciamen-
to entre o útil e o agradável. Tudo que se considera agradável a
uma pessoa, o é como categoria subjetiva; já a utilidade, por sua
necessidade de dar resultado ao desenvolvimento social, é uma
categoria objetiva. Nesta última predomina o caráter desantro-
pomórfico; já no agradável, a predominância é antropomórfica.
Duas advertências são necessárias:
• Primeira, existem muitas transições e diversos pontos
de contato e distanciamento entre a utilidade e a agra-
dabilidade.
• Segunda, o desejo humano de unir o agradável com o
útil pode levar, em muitos casos, ao fracasso da finali-
dade planejada.
Por regra geral, é um equívoco considerar diretamente o
caminho que leva do agradável ao útil. O ser humano da coti-
dianidade, como considera Lukács (1967b, p. 220), muitas ve-
zes não pode
realizar o útil mais que eliminando na preparação de seu plano de
ação todos os momentos subjetivos e todas as possibilidades dessa or-
dem, dirigindo a atenção exclusivamente à objetividade da situação,
dos meios etc.

Com essas situações preliminares aclaradas, já podemos


apresentar uma primeira síntese: tanto o agradável como o esté-
tico se desenvolvem a partir de reflexos antropomórficos. Use-
mos o ritmo como exemplo.
No processo de trabalho observa-se que o agradável se
desprende da utilidade e não o contrário. Na atividade tra-
balhadora, como visto, a satisfação agradável é obtida do se-
guinte modo: como resultado do melhor desempenho do ato
de trabalhar sobre a matéria natural. Também é possível que
o elo que agrada venha, por exemplo, pela ornamentação de
determinada ferramenta que, por sua vez, é responsável pelo
aumento da produção.

70
Como ilustra Lukács (1967b), a colaboração entre o cão e
o caçador, em que este sente relativa satisfação ao se comunicar
com o animal, serve de mais um exemplo. Ou ainda, o resultado
que se consegue com o trabalho de cozimento de alimentos para
o consumo humano. Há, nesse processo, determinado prazer e
satisfação degustativa em produzir o alimento do próprio corpo.
Essa classe de satisfação agradável é inicialmente biológica, mas
obviamente também é, principalmente, social.
Importa destacar, sempre com nosso autor, o seguinte:
mesmo que o vivente abandone sua posição posteriormente, o
agradável tem caráter definitivo. Ou seja, a sensação que o fez
considerar, no passado, aquela situação como agradável, relacio-
na-se à dependência do momento que causou a satisfação. Isso
atenua o constrangimento de ter que admitir, posteriormente,
aquilo como desagradável. O caráter que emana do objeto que
causou, no passado, a emoção agradável, faz com que toda ex-
periência desse porte seja insuperável em sua momentaneidade:
“[...] neste caso segue sendo o hic et nunc mais imediato de cada
homem [e de cada mulher] a instância última, e definitivamente
decisiva em cada instante, do que vai se sentir como agradável”
(LUKÁCS, 1967b, p. 224).
Não se pode esconder que a moda, as convenções, as tra-
dições, entre outros elementos ligados aos costumes convencio-
nados em cada sociedade dada, impõem ao sujeito humano de-
cisões contrárias às suas intenções.
Debater o agradável deixa a exposição em condições de
adentrar à sala de estar da Grande Estética de Lukács.
A utilidade, como visto, provoca uma evocação que, em-
bora carregue alguma satisfação, é, em última instância, de cará-
ter útil. Esta satisfação utilitária dá luz à determinada evocação
que traz satisfação agradável. É dessa agradabilidade que se des-
dobra a satisfação espiritual, com tendência ao estético.
Acima, ao debatermos as categorias nodais, apontamos
que a arte é imanente e se processa por meio de reflexos antropo-

71
mórficos. A ciência, por sua natureza, também é imanente, no
entanto, seu reflexo, diferentemente do da arte, é desantropo-
mórfico. Agora, após apresentarmos a importância do agradável
para estética, é-nos oportunizado ilustrar, mais uma vez, como
o esteta magiar aplica tais categorias para caracterizar a ciência
e a arte.
De maneira geral, a consciência cotidiana – em seu ma-
terialismo espontâneo –, chama frequentemente de transcen-
dência a “[...] um vazio temporário, uma parada transitória na
transformação do Em-si em um Para-nós”1 (LUKÁCS, 1967b,
p. 535). No reflexo estético, a transcendência, ao contrário, é
carregada com tudo que inclui a imanência humana, o que pa-
tenteia a história e o destino da pessoa humana.
Na arte [...], a transcendência sempre aparece objetivamente como
a assinatura de certa situação histórica, como um elemento da psi-
cologia, a concepção do mundo etc., dos homens direta ou indire-
tamente representados e, portanto, sempre relativizados, embora de
uma maneira diferente da ciência: quando aparece como elemento
da imagem do mundo imanente e fechado, a transcendência torna-se
historicamente relativizada (LUKÁCS, 1967b, p. 549).

Isso traz como consequência, adiantando apontamentos


futuros, que o reflexo artístico tem as seguintes características:
• As representações transcendentes que se fazem pre-
sentes por meio das obras de arte guardam as veias
da circulação do sangue histórico que, por seu caráter
imanente, registra a evolução da humanidade, sua au-
toconsciência.
• Nessa classe de reflexo estético, o plasma social é um
produto pleno da subjetividade dos agentes humanos.

1 Aproveitamos para advertir que a relação entre o em-si e o para-nós é bem


mais profunda e importante para a teoria do conhecimento do que, de modo geral,
a epistemologia burguesa deixa transparecer. Aqui, lamentavelmente, não temos
como aprofundar essa relação. Indicamos, para uma necessária entrada no tema, o
que escrevemos em Santos (2022).

72
• São homens e mulheres representados e constituídos
como espécie de um horizonte que delimita a unidade
do mundo puramente humano.
• É o registro, em cada ente singular, por meio da particu-
laridade captada na obra, da universalidade mundana.
• Tais representações plasmadas nas obras de arte, por
não serem produtos do mero subjetivismo, apenas
alcançam esse orgulhoso resultado por conferirem
visibilidade à articulação natureza-sociedade-sujeito
humano.
Para seguir com a discussão das categorias estruturantes,
assunto estudado no próximo capítulo, importa pontuar sobre
as “representações transcendentes” o seguinte: conforme aborda
Lukács na Grande Estética e na Ontologia, transcendência não é
o mesmo que apreensão subjetiva do mundo objetivo. No caso
artístico, não é uma oposição à objetividade da obra de arte. A
arte, com efeito, não existe sem a presença do sujeito que sente.
Lembremos do caráter antropomórfico do reflexo artístico. Para
o autor húngaro, “representações transcendentes” são as ima-
gens que o sujeito humano forma na consciência com base em
objetos que existem fora do mundo concreto. Para citar o caso
do reflexo religioso, no mais além da vida, no transmundano,
logo, em oposição ao cismundano.
Com o aclaramento da relação entre as “representações
transcendentes” e a consciência subjetiva, já podemos apresen-
tar a particularidade, o meio homogêneo, o ser humano inteiro
e o ser inteiramente humano como categorias estruturantes da
Grande Estética. O que será feito a seguir.

73
Capítulo 3)

Categorias estruturantes: particularidade, meio


homogêneo, terceiro nível de sinalização, ser
humano inteiro e ser inteiramente humano

3.1) A particularidade como categoria central

Na Grande Estética, seu autor especifica a particularidade


como categoria central. A catarse ele categoriza como geral para
o estético. Essas duas categorias, portanto, seriam as principais
estruturas da construção do edifício estético do filósofo marxis-
ta. Aquela é o terreno onde se realiza a autoconsciência e a par-
ticularidade é a responsável pelo diálogo com o material vital,
cuja matéria é tratada pela criação artística.
Em páginas anteriores, sempre sob orientações de Lukács
(1966a/b; 1967a/b), analisamos o desprendimento do reflexo
evocativo que se solta, mais ou menos espontaneamente, da
relação entre o agradável e a utilidade. É da articulação entre
o desantropomorfismo útil e o antropomorfismo da satisfação
agradável que se encontra, assim, o nexo de onde se desprende
a tendência à estética.
Uma vez que já conhecemos o modo como se processou
o nascimento contraditório e espontâneo do elemento artístico,
repetindo, mimese cotidiana, mimese mágica e mimese evoca-
tiva, temos agora as condições de problematizar a importância
da particularidade para a Estética de Lukács. Sobre a catarse, por
hora pode ser apontado que ainda nos faltam elementos para
apresentá-la como categoria geral da estética marxista. Deixe-
mo-la para um debate posterior.

75
Iniciamos registrando que antes de a particularidade ser
central para a arte, ela é imprescindível como mediação para
se compreender a realidade cotidiana. Pois a particularidade é
o elemento que realiza a movimentação da mediação dialética
entre os ambientes de tensão, jogo e ludicidade existentes na ar-
ticulação da singularidade com a universalidade. Motivado por
seu modo de operar, ela efetiva as determinações objetivas que
interferem nos dois extremos. Para o caso da estética, tal efeito
é muito relevante, pois é a categoria da particularidade que pu-
rifica as extremidades (universalidade e singularidade). Essa pu-
rificação deixa a reflexão artística potencialmente enriquecida.
Sendo impossível para nosso livro apresentar o necessário
debate sobre a particularidade, sobretudo em sua aplicação no
campo da ciência, indicamos como Chasin (1988, p. 82-83)
sumaria o tema. O autor explica que a
ciência se faz quando se reproduz objetivamente através da força da
abstração, por meio de abstrações razoáveis, delimitadas, não formais
que integram o uno e o múltiplo, ficando decisivamente acentuada a
necessidade de, neste caminho, fazer a determinação do movimento
preponderante. Para levar isto aos últimos desdobramentos caberia
[...] retomar a abstração delimitada e mostrar como é que ela se faz.
É neste ponto que entra a lógica da particularidade ou do concreto
ou da concreção. É o chamado “caminho de volta” no Marx. O Marx
[…] diz que o caminho é do real ao abstrato e do abstrato ao real.
Nós podemos traduzir isso sob a forma: do concreto ao abstrato e do
abstrato ao concreto. Para melhor inteligibilidade: do empírico ao
abstrato, do abstrato ao concreto. Isto é o sentido mais preciso.

Para esse autor:


sem a lógica da concreção ou da particularidade, cancela-se, à seme-
lhança do que faz todo o pensamento burguês, como Lukács muito
bem apontou, precisamente o ente por cuja mediação é capturada a
individualidade e a humanidade concretas – a classe. É o truque ló-
gico que faz desaparecer, aos olhos da teoria burguesa, o proletariado
(p. 83).

76
Na tentativa de realizar uma articulação entre o reflexo e a
particularidade, poder-se-ia dizer o seguinte:
• A particularidade, em filosofia, designa “determina-
ção”; pode ser o que impressiona, o que é mais visível:
salta à vista, o destaque, o que é específico – isso em
sentido positivo ou negativo.
• A particularidade, a determinação e a especificação
contêm os elementos da crítica, do exame, de deter-
minações mais próximas e concretamente possíveis a
um fenômeno, a uma lei. Ou seja, quando, em igual
medida, enxerga-se na particularidade dois articula-
dos polos.
• A particularidade pode ser entendida como o princí-
pio de movimento do conhecimento, ou como uma
etapa, um momento do caminho dialético.
Importa advertir que a particularidade não é um elemen-
to pontualmente fixo da mediação entre a universalidade e a
singularidade. Ela é uma espécie de campo de mediação que se
movimenta do universal para o singular e deste para aquele (um
espaço de movimentação, uma área de manobra, nunca fixo).
Com o debate que necessariamente faremos em seguida
acerca do realismo e da tipicidade, a compreensão conceitual da
particularidade para a esfera estética será enriquecida.
Por hora, importa reprisar onde reside o êxito da autênti-
ca arte: é na elevação dialética ocorrida na personalidade privada
do sujeito singular, que, imerso na vida cotidiana, abandona as
objetivações simples do solo da cotidianidade e atinge, ainda
que momentaneamente, o soerguimento ao patamar das objeti-
vações superiores.

Mas como isso acontece?


• Primeiro, da elaboração operada pelo artista sobre sua
obra, retirada com apoio da particularidade do material
vital existente no cotidiano, germina a viva contradição

77
dialética entre a personalidade privada do sujeito singu-
lar que cria a obra e a universalidade do mundo.
• Segundo, quem determina os méritos ou deméritos
do criador é sua capacidade de reconhecer, ou ao me-
nos pressentir, que no processo de criação pode se des-
cobrir algo qualitativamente diverso e novo, mesmo
que seja antigo e inefável.
Esses elementos, que às vezes parecem ser invisíveis, por
sua universalização, possuem tanta força que sua área de mano-
bra, repleta de tensa ludicidade, ultrapassa as iniciais observa-
ções e impressões do produtor. Assim tensionada, a personalida-
de privada singular do sujeito criador, conseguida, por sua vez,
a partir de sua singularidade individual cotidiana, é superada
na dialética da negação que, concomitantemente, a conserva
(como bem entende a dialética hegeliana).
Como insiste Lukács (1968), a partir de diálogo com He-
gel e Engels, a conservação da singularidade privada superada no
particular deve ser entendida no sentido de que, quanto maior
for a força criadora do artista, com maior sensibilidade ele refi-
gurará as mediações descobertas na nova imediaticidade.
Esse elemento imediato, reforçando, é o material vital que
o cotidiano, por meio da particularidade, fornece ao artista. A
formação de um particular partindo do singular, desse modo,
permite ao criador concentrar organicamente a imediaticidade
assim despertada.
Para o investigador magiar, Aristóteles foi quem estabe-
leceu os parâmetros para que se observasse o seguinte: do de-
senvolvimento dos poemas iâmbicos até a comédia, foi possível
verificar que, na sátira, as pessoas deixam de aparecer como
indivíduos singulares e passam a ser representadas como indi-
víduos típicos.
Lukács (1968, p. 202-203), para que não pairem mais
dúvidas, explica como se processa a superação da personalidade
privada do singular do sujeito criador:

78
Sobre tais objetos, o criador aprende a conhecer a si mesmo, às suas
mais autênticas simpatias e antipatias sociais, melhor do que o fizera
em sua vida cotidiana repleta de preconceitos e limitada por ideias
fixas; olhando para eles, plasmando-os, deixando que eles sigam seu
caminho, o criador se eleva como artista acima de sua costumeira
individualidade. As correções efetuadas no eu criador e na obra – cor-
reções produzidas pelo “triunfo do realismo” – indicam, portanto,
o caminho que conduz do falso particular, das universalidades de-
correntes de preconceitos superficiais, à justa particularidade artística.

O autor entende ainda que


Neste processo, renuncia-se à imediaticidade originária da vida co-
tidiana; mas a universalização na particularidade não a destrói: pelo
contrário, ela gera uma nova imediaticidade num nível mais elevado.
Assim, a obra se torna um “mundo” próprio, não apenas para quem
dela se aproxima, mas também para o seu criador: ele a cria, mas ela
o ajuda a elevar-se a uma altitude de subjetividade estético-social,
à altitude desta particularidade, única a permitir a sua realização
artística (aspas do original, negritos nossos).

Quem nos lê nesse momento, deve estar se perguntando


por exemplos. O autor utiliza com fartura o gênio criador de
Balzac1 para exemplificar a relação entre a particularidade e o
realismo. O escritor francês, embora fosse alinhado à perspecti-
va da classe burguesa, era levado, em seus romances, a contrariar
suas tendências pessoais. Nesse artista, pela profundidade do
que escreveu, fica evidente a força depuradora da categoria da
particularidade.
O caso de Balzac e tantos outros artistas autênticos – que
respeitam a arte – serve para que Lukács (1968, p. 201) sublinhe
como se processa “a elevação da personalidade criadora da sin-
gularidade individual particular à particularidade, à sua própria
particularidade”.

1 A pesquisa de Lenha Aparecida Diógenes (2020) tece profundas relações entre


o escritor francês e o realismo segundo o esteta magiar. Recomendamos a leitura.

79
3.2) Relação entre particularidade, tipicidade e realismo

Sobre a articulação entre a particularidade, a tipicidade


e o realismo, muito ainda precisa ser escrito. Por agora, consi-
deramos relevante adiantar os seguintes pontos:
1. O alcance da arte que se produz depende, em larga
medida, do resultado do conflito entre a personalida-
de privada singular do artista e a mundanidade.
2. Isso quer dizer que, ao conservar a vida própria das
figuras artísticas, na lógica interna de suas situações,
com frequência, encontra-se a marca que distingue a
autêntica capacidade do criador.
3. Ao contrário, quando o artista opera alguma inter-
venção que pensa ser exitosa na vida própria da obra,
deformando seu original aparecimento, na maioria
das vezes, verifica-se que essa operação encontra tão
somente o fracasso do resultado artístico.
4. O que ocorre de fato no interior dessa dialética é que
a sensibilidade do espírito observador, que se manifes-
ta espontaneamente, entre outros fatores, permite ao
criador se deparar com situações cuja própria lógica
interna, ao entrar em conflito com os preconceitos de
sua personalidade privada singular, leva-o a superá-los.
Para complementar, resta escrever que a sensibilidade
do espírito observador do sujeito humano se enriquece com a
fantasia. Os elementos fantásticos que impregnam o dia a dia
são impossíveis de serem apagados do cotidiano. Mais à frente,
quando estudarmos o sistema de sinalização de terceira ordem,
abordar-se-á a fantasia do movimento. Espera-se que, com a ar-
ticulação entre a fantasia do movimento e o sistema de sinaliza-
ção de terceira ordem, fique mais clara como a sensibilidade do
espírito observador do sujeito humano se enriquece.

80
Para que o realismo e sua relação com a particularidade
fique mais evidente, o autor não o compreende como um entre
outros estilos ou períodos classificatórios da história da arte. O
esteta marxista compreende que “o triunfo do realismo não é
um simples milagre, mas o resultado necessário de um proces-
so dialético bastante complexo, de uma relação mútua e fecun-
da do escritor [artista autêntico] com a realidade” (LUKÁCS,
2010a, p. 76).
O realismo, com efeito, triunfa quando a obra atinge a
capacidade de expressar um conhecimento profundamente ín-
timo dos problemas humanos: seus dramas, destinos, alegrias,
tristezas, constrangimentos, esperanças e demais conflitos vivi-
dos pela humanidade.
Aqui, cabe bem a carta que Engels escreveu para a escri-
tora Margaret Harkness. Observemos um pequeno trecho da
missiva citada por Lukács (2010c, 32):
Não há dúvida que, em política, Balzac era legitimista. A grande
obra que deixou é uma elegia permanente, lamentando a decompo-
sição inevitável da alta sociedade; todas as suas simpatias vão para a
classe condenada a desaparecer. Mas, apesar disso, a sátira nunca é
tão contundente nem a ironia nunca tão amarga como quando põe
em ação, precisamente, os aristocratas, esses homens e mulheres por
quem sentia uma simpatia tão profunda (ENGELS Apud LUKÁCS,
2010c, p. 32).

O esteta magiar, utilizando as argutas palavras de Engels,


não deixa de enfatizar como a obra depura as contradições vivi-
das pelo escritor parisiense.
O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as próprias simpatias
de classe e contra seus preconceitos políticos, o fato de ter visto o
fim inelutável de seus tão estimados aristocratas e de os ter descrito
como não merecendo melhor sorte, o fato de ter visto os verdadeiros
homens do futuro no único local onde, na época, podiam ser en-
contrados – tudo isso eu considero como um dos maiores triunfos
do realismo e uma das características mais notáveis do velho Balzac
(ENGELS Apud LUKÁCS, 2010c, p. 32).

81
Carece, antes de adiantar a exposição, relembrar alguns
importantes pressupostos estético-lukacsianos. Para nosso autor,
na medida em que a arte reflete a realidade objetiva, a conver-
gência entre a vida e a refiguração artística é coisa óbvia. Disso se
depreende que o mais importante para a problemática da estética
é o seguinte: a arte precisa, no curso do desenvolvimento social,
assinalar o aspecto particular (hic et nunc) existente na realidade.
Como lembrado, agora já temos, mesmo que de modo
necessariamente resumido, novos elementos sobre a relação re-
alismo-tipicidade. Desse modo, tentemos articular tal relação à
particularidade e assim enriquecer a categoria central para a esté-
tica do autor magiar. Isso quer dizer que arriscamos articular uma
síntese sobre o problema da relação entre a particularidade e o re-
alismo-tipicidade. Segundo nosso autor, a justeza da definição do
típico como específica e central encarnação da particularidade na
arte, portanto, deve ser verificada em seu conteúdo de verdade objeti-
va, de tal modo que a verdade estética não seja concebida como uma
simples cópia científica, nem que sua negação abstrata conduza a um
relativismo estético (LUKÁCS, 1968, p. 265).

Essa citação precisa ser compreendida no contexto de que


é necessário se distanciar, ao mesmo tempo, do naturalismo e
das tentativas de fazer da arte um registro científico. É muito
importante compreender que o típico, na concepção realístico-
-particular de Lukács, representa o mais alto nível de generaliza-
ção, ou seja, a verdade da forma.
E essa forma verdadeira ocorre dado que o produtor, ao
tornar visível a particularidade concreta, por meio de uma pre-
cisão evidente, revela formalmente, nada mais nada menos, que
a verdade da própria vida cotidiana. Isto é, a conformação artís-
tica intensifica ao máximo a verdade real do conteúdo que ela
dá forma ao refletir.
Caso ainda não esteja claro, repetimos que é por intermé-
dio do típico que se chega ao fundamento ideal de cada compo-
sição (ao seu realismo). É por meio da tipicidade, do modo como
a criação processa a hierarquização das figuras existentes em toda

82
obra, de como se apresenta a reciprocidade entre os tipos e a mé-
dia, de como a luta contraditória entre o caráter individual e os
destinos humanos se processa, que há a vitória do realismo.
Essa imbricação dialética onto-materialista é assim resumida
pelo nosso autor como a síntese contraditória captada, precisamen-
te, pela particularidade: “a unidade orgânica indivisível do singular
e do universal, sua superação (ou melhor, sua fusão) na nova sín-
tese, na qual eles já não podem mais ser descobertos” (LUKÁCS,
1968, p. 278). É na particularidade e em seu modo fenomênico de
aparição típico-realista, portanto, que reside a especificidade verda-
deira do conteúdo de toda obra autenticamente artística.
Acabamos de ver a particularidade como categoria central
da estética marxista. Isso foi feito, relacionando o particular com
a tipicidade e com o realismo. Com esse plano atendido, como
forma de avançar com a exposição, precisamos apresentar agora
a função do meio homogêneo dentro da edificação da Gran-
de Estética. Depois que ficar claro o funcionamento do meio
homogêneo, potencializar-se-á a explicação da relação entre ser
humano inteiro e o ser inteiramente humano.2

2 Vedda (2018), anota que Lukács (1966a/b; 1967a/b) utiliza a categoria ho-
mem-inteiro (der ganze Mensch) para designar o sujeito humano que vive no coti-
diano. Do modo como compreende o autor argentino, para tornar-se homem-in-
teiramente (der Mensch ganz), o sujeito humano precisa se libertar do meramente
imediato para assim acessar, mesmo que por alguns instantes, por meio do efeito da
obra de arte, a plenitude do humano (VEDDA, 2018). Já Tertulian (2008, p. 276)
escreve sobre esse debate o seguinte: “O destaque necessariamente unilateral da ex-
periência estética através de um sentido ou um ‘órgão’ determinado de recepção do
mundo, levando à homogeneização correspondente da matéria da obra, é descrito
como um processo de condensação e expressão da personalidade integral. Lukács
caracteriza este duplo processo de eclosão da imanência sensível e da elaboração
em seu interior de um mundo sui generis como a necessária passagem da expe-
riência heteróclita e disparatada do homem da vida cotidiana (der ganze Mensch)
ao homem em sua plenitude, com todas suas pulsões e faculdades mobilizadas e
condensadas, da subjetividade estética (o que denomina der Mensch ganz)”. Adéle
Araújo (2020), com base nesse debate, indaga a possibilidade de denominar ho-
mem-inteiro de ser-humano (pessoa) total e homem-inteiramente de ser-humano
(pessoa) inteiramente/completamente. Com base na pesquisa de Araújo (2020),
sugerimos que as expressões homem-inteiro e homem-inteiramente sejam traduzi-
das, respectivamente, para ser humano inteiro e ser inteiramente humano.

83
3.3) Meio homogêneo e terceiro nível de sinalização: a “lin-
guagem” da arte

Para iniciar a apresentação do meio homogêneo, é preciso


antecipar o seguinte: cada arte e cada estilo em particular pos-
suem seu meio homogêneo próprio, seu meio de expressão, sua
“linguagem”.
A função do meio homogêneo é lapidar as impurezas do
cotidiano, filtrar a heterogeneidade da vida cotidiana.
Mas como se processa essa filtragem?
O meio homogêneo, ao realizar a mediação entre o sujeito
humano e as impurezas típicas da heterogeneidade do pensa-
mento cotidiano, filtra os elementos heterogêneos dessa forma
de pensar. Ou seja, o meio homogêneo produz uma lapidação
na forma de pensamento da vida cotidiana, cuja ação sustenta as
categorias estéticas (LUKÁCS, 1967a).
Resta explicar como age esse filtro. O meio homogêneo
opera do seguinte modo:
1. Em primeiro lugar, estreita “e especializa o reflexo da
realidade, por exemplo, reduzindo-o à visualidade,
audibilidade etc” (LUKÁCS, 1967a, p. 122);
2. Em segundo lugar, “levanta esse aspecto particular do
mundo ao nível de uma universalidade que afeta pro-
fundamente [...]” o humano de cada pessoa (p. 122);
3. Por último, “realiza as necessárias generalizações não
como abstrações conceituais, senão de tal modo que
procura, encontra e faz sensível o típico no caso sin-
gular conformado [...]” (p. 122).
Qual o resultado da lapidação operada pelo meio ho-
mogêneo?
O que resulta com o filtro operado pelo meio homogê-
neo, na arte, é que a percepção do que não é explicável com o
logicismo das palavras, ganha, por meio dessa lapidação, uma
explicação. Mas uma explicação de ordem distinta da linguagem

84
silogístico-gramatical. O meio homogêneo artístico, a sua “lin-
guagem”, comunica seus objetos diferentemente da forma como
são comunicados pelo silogismo gramatical.
Essa operação, que mais parece um “milagre” mundano,
funciona do seguinte modo: a lapidação – o milagre mundano
– proporcionada pelo meio homogêneo, processa-se por inter-
médio do filtro lapidador que, por sua vez, é fruto de cada arte
específica, sua “linguagem”. Isso resulta que por meio da força
refigurativa antropomórfica, acompanhada de um tipo peculiar
de “linguagem”, o filtro abarca, por sua especificidade, impor-
tantes elementos da linguagem em sentido stricto.
A ação do meio homogêneo como “linguagem” artística,
ganha materialidade por intermédio do terceiro nível de sina-
lização, chamado também pelo autor de sinalização de terceira
ordem, ou ainda, sistema de sinalização 1’. Por meio desse siste-
ma, compreendemos os motivos pelos quais a arte, mesmo não
sendo uma realidade concretamente em si, não pode se afastar
completamente do chão real e terreno onde as pessoas produto-
ras e receptoras do fluir artístico vivem.
O próprio processo do trabalho, segundo sustenta nosso
autor, fornece os pressupostos para o funcionamento do sistema
de sinalização 1’. Esse sistema é formado por
reflexos que, embora não se levantem por cima da sensibilidade ime-
diata de um modo ostensivamente abstrato como a linguagem, não
são – como pensava Pavlov – simples reflexos condicionados, senão
que se parecem mais com a linguagem em sentido de que são sinais
de sinais (LUKÁCS, 1967a, p. 35).

Isto é, já na própria atividade de trabalho, produz-se re-


flexos que, mesmo não se comparando à sensibilidade abstrata
imediata da linguagem, são sinais de um sistema de terceira or-
dem que se situam entre os reflexos condicionados e a lingua-
gem. Por isso, com o objetivo de destacar a posição interme-
diária entre os reflexos condicionados e a linguagem, o autor
considera coerente denominar esse tipo de reflexo de sistema de
sinalização de terceira ordem, ou sistema de sinalização 1’.

85
O que justifica estudar, então, um terceiro sistema de si-
nalização? Em Santos (2018, p. 294), indicamos uma justifica-
tiva para tal estudo:
[...] o objetivo de dedicar-se à psicologia reflexológica é inserir um
terceiro nível de sinalização, chamado por Lukács de sistema de si-
nalização 1’. O que propõe o autor húngaro com este novo nível?
Considerando apenas uma apresentação de partida, o filósofo propõe
que entre o primeiro sistema de sinalização, os reflexos condicionados
– chamado pelo autor de sistema de sinalização 1 – e o segundo nível
de sinalização, a linguagem – chamado pelo esteta de sistema de sina-
lização 2 –, existe um terceiro nível, cujo desdobramento e interação
com a humanidade seria dado pela fantasia, conceituado pelo esteta
como terceiro nível de sinalização, que estaria dentro do que o autor
chama de sinais de sinais.

A capacidade artística, de cada arte em particular, e de


cada estilo em especial, será o elo capaz de resolver a contradição
existente entre as tendências da linguagem e as do sistema de si-
nalização 1’. O terceiro nível de sinalização, por sua força, opera
uma unificação que respeita as distinções existentes entre a lin-
guagem e os reflexos condicionados. Em uma expressão: mesmo
que guardem diferenças entre si, para o terceiro nível de sinali-
zação, a linguagem opera articulada aos reflexos condicionados.
Essa unificação, produzida pelo sistema de sinalização 1’,
recebe, com efeito, sua substância das mais profundas fontes pessoais
do criador; porém, por outra parte, é o único veículo que pode levar
esse tipo de reflexo fundado no sujeito a uma objetividade geral, à ca-
pacidade de brotar evocativamente em todos os homens [e mulheres]
(LUKÁCS, 1967a, p. 154).

O sistema de sinalização de terceira ordem, como visto,


opera em estreita articulação com a linguagem. Essa dialetici-
dade, ao mesmo tempo em que conserva determinados reflexos
condicionados e incondicionados, os nega para produzir a supe-
ração. A articulação dialética descrita, portanto, permite que a
atuação do sistema de sinalização 1’ consiga dar respostas para
uma forma específica de consciência: uma determinada forma
de consciência cabível apenas ao soerguimento estético.

86
Mas o que é uma forma específica de consciência?
Essa forma de consciência sui generis especifica-se pela
função de, a partir de objetos colhidos na vida cotidiana pela
particularidade, elevar a consciência do sujeito a um patamar
superior de reflexão. Em outras palavras, o sistema de sinaliza-
ção 1’ é especificamente responsável por desnudar os dramas e
destinos humanos, aquilo que envolve as paixões das pessoas,
suas alegrias, tristezas, esperanças, constrangimentos, entre di-
versas outras emoções.
Para compor o papel dessa importante classe de consciên-
cia, a criação artística necessita, por um lado, da consciência que
põe em prática o papel social do sujeito e, por outro, precisa, em
relação dialética com essa práxis, de uma forma de consciência
ainda não efetivada. Lukács (1967a) denomina esse fenômeno
de processos ainda não-conscientes.
Esse processo de consciência especial, que embora ainda
não seja consciente, mas já percorre as veias do cotidiano, é tra-
tado com base na fantasia do movimento. O filósofo de Buda-
peste retira a categoria fantasia do movimento das pesquisas de
Arnold Gehlen (1987).
No presente livro, não é possível um estudo aprofunda-
do sobre os vários e interessantes desdobramentos acerca das
investigações que Gehlen empreende sobra a fantasia. Resta a
oportunidade de, ao menos de modo demasiadamente sintético,
citar que esse autor articula e considera a fantasia do movimento
como a “fantasia cinética ou kinefantasia” em articulação com a
“fantasia da percepção sensorial ou estetofantasia (Empfindun-
gsphantasie)” (GEHLEN, 1987, p. 166).
Como compreende esse investigador, a fantasia do movi-
mento configura-se por meio do comportamento humano capaz
de antecipar uma resposta de certo movimento em determinado
espaço. Ou seja, “trata-se, em primeiro lugar, de que nossa kine-
fantasia nos proporciona a oportunidade de anunciar ou figurar
simbolicamente o movimento real ou representativo virtualmen-

87
te” (GEHLEN, 1987, p. 264). Em síntese, a fantasia do movi-
mento é “[...] o produto do processo de encurtamento, [...]” que
possibilita a um sujeito antecipar um movimento antes de ele
se completar, “[...] antes de consistir nos acentos elegantes do
minimum do movimento dominado” (GEHLEN, 1987, p. 225).
Como exemplo, podemos pensar em uma determinada
pessoa que em sua caminhada se depara com um buraco. Ela
precisa pular sobre o obstáculo, mas não tem precisão do tama-
nho do impulso que precisa dar para chegar ao outro lado, visto
que não sabe com exatidão a distância de uma extremidade à
outra do buraco. O cotidiano, prenhe da fantasia do movimen-
to, dota tal pessoa da condição de analisar se é possível pular o
buraco ou contorná-lo.
Esse exemplo é utilizado pelo autor húngaro para ilustrar
como a a imediatez do cotidiano põe na frente de um ser social
que, por exemplo caminhando pela rua e ao se depara com um
buraco, precisa ultrapassá-lo. Interessante reforçar que não há pre-
cisão alguma sobre o tamanho do obstáculo, tampouco qual o im-
pulso necessário que o caminhante precisa dar em seu corpo para
vencer o buraco e chegar do outro lado. A fantasia do movimento
é a ferramenta responsável para que a pessoa decida se precisa pro-
curar outro caminho ou se tem condições de, com um salto, pular
e ultrapassar o obstáculo, chegando ao outro lado do buraco.
Cremos ser importante apontar outro exemplo. Imagine-
mos, como ilustração, o seguinte caso: uma certa pessoa, por
meio do movimento das mãos, laça pelo ar um determina objeto
à outra, mas antes que esta pessoa o receba, uma terceira o inter-
cepta. Os três envolvidos não tem condições, em movimentos
cotidianos como o exemplo ilustrativo, de precisar suas forças,
movimentação, agilidade, tampouco as distâncias envolvidas no
processo. Não obstante a essa imprecisão, é possível que seus
movimentos logrem êxito na espontaneidade da ação. A esse
processo Lukács (1966b; 1967a), com base em Gehlen (1987,
p. 427), denomina de fantasia do movimento.

88
Quando um sujeito na vida cotidiana assume que pode re-
produzir um movimento com sucesso, a realização dessa emprei-
tada está relacionada com a fantasia do movimento. Como con-
clui Gehlen (1987, p. 427), o sujeito humano “[...] pode repetir
essas ações e movimentos de tal modo, que o resultado já alcança-
do se transforme em meta de um movimento repetitivo orientado
que termine nele e cujos contornos esboça a kinefantasia”.
Com base na articulação dialética que envolve a fantasia
do movimento, a linguagem, os reflexos condicionados e incon-
dicionados, o terceiro nível de sinalização se forma. Esse siste-
ma de sinalização cria a área de manobra, o espaço de jogo e o
campo de ação lúdica que possibilita à arte se construir como
uma forma superior de objetivação. Isso ocorre, dado que tal
articulação dialética dota o complexo artístico da capacidade de
alcançar determinadas reflexões que, pela natureza estética da-
quela dialética, são impossíveis de serem captadas puramente
por meio da linguagem silogística.
Dois fatores têm importância decisiva nessa íntima vin-
culação. Em primeiro lugar, a fantasia do movimento possibili-
ta aos sujeitos sociais uma maior habilidade em suas operações
cotidianas, pois os capacita para antecipar, por exemplo com o
disparo de um gesto, um posterior decurso de um movimento já
iniciado por ele ou por outra pessoa. Esse processo imitativo de
antecipar um lapso do movimento pode reproduzir evocadora-
mente o próprio movimento na fantasia de um espectador. Com
relação aos ruídos, podemos considerar, mudando o que deve
ser mudado, a mesma interpretação. Imaginemos, para exem-
plificar, a denominação de certas ações humano-cotidianas que
ganham fechamento por meio das palavras, mas também por in-
termédio de alguns sons ou mesmo de determinados gestos etc.
Quanto mais desenvolvida está a fantasia do movimento, tanto
mais distanciada e elaboradas estarão as aparências que, por esse
caminho, podem converterem-se em vivências de ação imediata
e evocadora (LUKÁCS, 1967a).

89
Em segundo lugar, é preciso considerar a divisão social e
técnica do trabalho entre os sentidos. Os assim chamados sen-
tidos superiores: visão e audição cobram, por sobre essa divisão,
uma diferenciação qualitativa em relação aos demais sentidos.
Assim, visão e audição iniciam sua tendência à universalidade.
O tráfico inter-humano já desenvolvido e o conhecimento do huma-
no desdobrado sobre sua base descansam amplamente em um ulterior
desenvolvimento dessa divisão do trabalho entre os sentidos, nesse
tendencial universalismo da visão e da audição (LUKÁCS, 1966a,
p. 66-7)3.

O autor, procurando dar mais claridade às distinções


entre a linguagem e o sistema de sinalização 1’, escreve o se-
guinte: “Quando digo mesa ou cão, fica lembrado um objeto
cuja existência é independente da percepção subjetiva” (LUKÁ-
CS, 1967a, p. 161); a objetividade mundana do animal e do
utensílio doméstico independe da vontade de quem a sente no
mundo. Na captação que se processa por meio do sistema de si-
nalização 1’, diferentemente, ocorre uma inseparabilidade entre
o sujeito vivente e aquilo que ele sente no mundo, “ainda que,
naturalmente, também neste caso os sujeitos [viventes] existem
em-si, independentemente do sujeito [criador ou receptor]” (p.
161). É aqui que se abre a fresta para o desdobramento da fan-
tasia do movimento.
Com o tratamento do terceiro sistema de sinalização, a
exposição adquire condições de indicar algumas articulações im-
portantes. Vejamos como esse sistema de sinalização se relacio-
na, por exemplo, com a particularidade recém-estudada.
Através de uma extraordinária e comovente visibilidade
de determinado aspecto da cultura pessoal (particularidade),
surge na conformação artística uma forma peculiar de consci-
ência. Essa autoconsciência funciona como memória da hu-
manidade. Haja vista que é dotada da capacidade de ampliar e
3 Sobre a evolução social e sua relação com o desenvolvimento dos sentidos,
Lukács lembra que é possível averiguar mediante o olfato (cheirando um perfume,
por exemplo) se uma pessoa está influenciada por uma moda já passada.

90
aprofundar a receptividade do sujeito vivente em relação a tudo
o que necessita de destaque e enriquecimento para o desenvolvi-
mento ampliado dos indivíduos.
Como escrito páginas acima, a particularidade não é uma
mediação fixa, ela se movimenta entre os dois extremos: a uni-
versalidade e a singularidade. A particularidade estética funcio-
na, para que fique mais claro, como um campo de mediação,
uma área de manobra onde se processa o espaço de jogo lúdico
que possibilita a movimentação do que precisa ser despertado
artisticamente e que se move do universal para o singular e deste
para aquele. Há de se advertir, mesmo sendo repetitivo, que esse
espaço de movimentação, nunca é fixo.
Depois de mostrado como o sistema de sinalização 1’ arti-
cula-se dialeticamente com a particularidade, podemos apontar
como esse sistema se vincula como o meio homogêneo.
Por intermédio do sistema de sinalização 1’ e da operação
do meio homogêneo da arte de que se trate (sua “linguagem”),
aquilo que tem importância para o vivente, mas não se explica
apenas por meio de silogismos lógicos, encontra amplo amparo
humano. Ou seja, os objetos que o sujeito tem contato no coti-
diano chega aos sentidos humanos com a mais profunda pun-
gência: chega como uma expressão claramente articulada.
Com esses elementos definidos, torna-se possível aclarar
que a arte é responsável por explicar o que é mais inefável do
que invisível. Ou seja, o que está na sociedade, mas não se con-
segue ver claramente com as lentes do cotidiano: não é invisível,
porém também não é latente. Por isso, mesmo não sendo invi-
sível, pois está encoberto pelas demandas cotidiana, clama pela
necessidade de sua existência inefável (que não é possível de ser
descrever com precisão silogística, que não pode ser nomeado
somente pela linguagem verbal). O inefável, pela força de sua
natureza, embora indescritível segundo a linguagem silogística,
carrega a beleza, o humor, a tragicidade, entre outros elementos
do drama humano. Por fim e para que não se suspeite de que

91
esse inefável tem algum caráter permanentemente transcenden-
te, ele é pedestre, tem os pés no chão social da problemática
humana. Em uma palavra: é cismundano!
Podemos dizer, com base nisso, que, por meio da arte, a
formação dos sentidos estéticos da humanidade se educa: revi-
gora-se, refina-se. Por isso, sustentamos em Santos (2020) que a
catarse é, por excelência, o elemento educativo da arte.
Pronto, já temos a definição do sistema de sinalização de
terceira ordem e sua relação com a particularidade e com o meio
homogêneo. Agora podemos ver como esse sistema se articula
com a relação entre o ser humano inteiro e o ser inteiramente
humano. Tal articulação permite, entre outros elementos, apre-
sentar o papel da catarse no processo educativo.

3.4) Relação ser humano inteiro-ser inteiramente humano

O esteta húngaro ensina que o tráfego do ser humano in-


teiro para o patamar de ser inteiramente humano significa sem-
pre um passo a mais na aproximação à omnilateralidade.
• O ser humano inteiro é aquele que está entregue às
vivências da cotidianidade com toda a sua atenção e
concentração;
• Já o ser inteiramente humano é o estado do sujeito que,
por meio da comoção catártica causada pela obra, fica
sob a experiência receptiva da autenticidade artística.
No processo de crítica à vida posto em andamento pela
arte, a obra “limita-se” a explicitar com intensificação o que já
está presente na correnteza da vida: a arte não inventa. Ela lança
uma luz especial sobre os episódios cotidianos que a história
humana sente necessidade de dar relevância.
É preciso deixar bem-dito que há uma reciprocidade
dialética entre o ser humano inteiro e o ser inteiramente huma-
no. A arte é um dos veículos que condensa e abriga a transição

92
de um momento a outro: o tráfego da condição de ser humano
inteiro a ser inteiramente humano.
Em resumo: a passagem de um estágio a outro é o mo-
mento em que o ser social imerso em sua vida cotidiana (ser hu-
mano inteiro), acessa, ainda que momentaneamente, um mun-
do qualitativamente distinto do da cotidianidade, um mundo
apropriado ao humano, um mundo em que o sujeito possa se
sentir ser inteiramente humano (SANTOS, 2018a).
Há de se advertir que a potência da omnilateralidade se-
guirá sendo sempre inalcançável em sua totalidade, posto que
é uma potencialidade humana. Como o trabalho é a base da
humanidade, o que garante a criação do novo, mulheres e ho-
mens sempre precisarão de um processo formativo voltado para
a novidade. Ou seja, a constante e ineliminával criação do novo
apenas pode ser lograda sob a divisão social e técnica do tra-
balho. Em outros termos, o devir humano, em virtude de sua
própria natureza humano-social, terá que conviver sempre com
o ato de apreender o novo (SANTOS, 2020)4.
O debate precedido possibilita, entre outras coisas, o se-
guinte: a recuperação da problemática da personalidade privada
singular e sua elevação por meio dos reflexos científicos e artísticos.
Em referência à atividade científica, mesmo aquela que se
interessa principalmente pelos louros dos afagos academicistas
(contar pontos para o Currículo Lattes, por exemplo), há uma
instigante contradição. Ao desenvolver sua atividade, o prati-
cante da ciência põe em movimento diversas forças e energias
que, mesmo ligadas íntima e diretamente à sua singularidade
privada e direcionadas a distintas finalidades, criam a possibili-
dade – ainda que somente em potência – de que o agente da ci-
ência se eleve por sobre sua singularidade privada. O fazer cien-
tífico, mesmo que traga como prioridade do interesse subjetivo
4 Para quem tem interesse em aprofundar o entendimento de omnilateralidade
em Lukács, em Santos (2020) indicamos que esse conceito, com base no autor, é
um ideal a ser seguido, uma vez que abre ao humano a possibilidade de soergui-
mento a um patamar superior de convivência.

93
do pesquisador elementos moralmente questionados, como, por
exemplo, ambição, vaidade, inveja, entre outros sentimentos la-
mentavelmente comuns ao meio acadêmico-universitário, pode
despertar aquelas tais forças e energias de modo a estimular a
descoberta científica. O que pode resultar – não necessariamen-
te – em progresso humano.
Mas por que isso acontece?
Essa classe de atividade, para se realizar como ciência, im-
põe ao seu agente constrangimentos que forçam o cientista a se
elevar sobre sua privacidade singular. Como responde Lukács
(1967b, p. 536), porque “todos os caracteres da vida puramente
privada são, na atividade científica, meras fontes de erro que
devem ser eliminadas”.
Os reflexos artísticos e científicos, portanto, cada um
com sua especificidade, buscam eliminar radicalmente a trans-
cendência. Como entende nosso autor, os homens e mulheres
que agem nos sistemas de objetivação superiores, como a arte
e a ciência, concentram esforços para superar as corresponden-
tes limitações objetivo-subjetivas da evolução humana. Isso os
desvia das fantasias transcendentais. O resultado que se colhe
é a elevação a um patamar de soerguimento sobre suas meras
singularidades privadas.
O que importa para a presente problemática é que, por
meio das categorias nodais (antropomorfização, desantropo-
morfização, imanência, transcendência), esclarece-se que, por
mais distintas que sejam entre si a arte e a ciência, as duas guar-
dam a capacidade de alçar o sujeito humano para além da mera
singularidade privada.
Com base nesse panorama, a exposição tem como debater
a importância da catarse para a Grande Estética. Antes de apre-
sentar a categoria geral da estética, porém, impõe-se como um
obstáculo do método de exposição que apresentemos a proble-
mática do Antes e Depois do efeito estético.

94
Capítulo 4)

Função social da arte: catarse e autoconsciência


humana

4.1) O Antes e o Depois do efeito catártico

As categorias do Antes e do Depois são imprescindíveis


para a devida compreensão do efeito catártico-estético, pois
permitem a transição entre a vida e a arte, e desta para aquela.
Isso ocorre, uma vez que dirigem a regulação dos efeitos da vida
sobre a arte, bem como orientam os efeitos retroativos da obra
acabada sobre a vida cotidiana.
• O Antes é composto pela história de cada ser humano
até que ele se depare com a obra que lhe causa como-
ção catártica. Este estado comotivo, por sua força de-
puradora, põe o passado do sujeito humano (o Antes)
em profunda reflexão.
• Já o Depois consiste exatamente no modo como esse su-
jeito receptor, ainda como ser humano inteiro, livra-se
de suas sugestões e, já como ser inteiramente humano,
elabora o adquirido, transformando-o em algo decidida-
mente novo para sua vida desse instante em diante.
A arte possibilita que o ser humano inteiro da cotidia-
nidade, por intermédio do meio homogêneo da arte de que se
trate, receba determinada orientação que guia suas evocações, o
que transforma o sujeito do cotidiano em ser inteiramente hu-
mano tomado pelo efeito catártico da obra acessada.
Quem nos lê até aqui pode observar que a relação entre
o Antes e o Depois do efeito catártico-estético se processa sob
o filtro do meio homogêneo (a “linguagem” específica de cada

95
arte). Também foi possível notar que a mediação do meio ho-
mogêneo, ao filtrar as impurezas do cotidiano, guia a evocação.
Não é demais lembrar que a evocação, por sua vez, desprende-
-se, como visto, da série evolutiva da arte: reflexo da mimese
cotidiana, reflexo da mimese mágica e reflexo evocativo. É,
repetindo, nesta classe de evocação que o elemento agradável se
desprende da utilidade e inclina-se para a estética.
A catarse, é preciso insistir, é um efeito passageiro. É im-
possível viver eternamente dentro do estado de catarse. Mesmo
sendo fruto de um estado transitório, o Depois do efeito estéti-
co compromete o sujeito humano para sempre. Isto é, a pessoa
acometida pelo efeito catártico-estético estará modificada para
sempre. Isso não implica dizer, de modo algum, que a pessoa,
por estar mudada pelo efeito comotivo, depois que retorna da
comoção catártica, transformará a sociedade em sua volta.
O Antes, naturalmente, não há como ser alterado. Isso por-
que, como visto, o Antes é o que o sujeito humano acumulou
como sua história individual em relação dialética com o mundo.
A arte, por meio da catarse, é o elo que condensa e abriga
a transição entre os dois momentos: o Antes e o Depois do efei-
to comotivo-catártico. O tráfego entre o Antes e o Depois, que
soergue o ser humano inteiro imerso no cotidiano à condição de
ser inteiramente humano afetado pelo efeito artístico, quando
termina, faz com que o vivente regresse ao seu cotidiano e à sua
condição de ser humano inteiro. Nesta condição, que é a nor-
malidade do sujeito humano em sua cotidianidade, o vivente,
após a sacudida dada pela comoção catártica, não será o mesmo.
Ele carregará, agora, o Depois modificado pelo efeito catártico.
Importa advertir o seguinte: embora não seja possível ao
sujeito acometido pelo efeito catártico-estético modificar o An-
tes, após a comoção, ele terá de conviver com as contradições
entre o Antes e o Depois.
À arte, contudo, não cabe garantir que o Depois possibi-
lite determinada harmonia entre os desejos do sujeito vivente e

96
a realidade concreta. É missão do efeito artístico criar um âm-
bito de tensão, jogo e ludicidade onde o sujeito humano possa
acessar a humanidade de que ele é partícipe. Em uma expressão,
atingir por meio da catarse, mesmo que momentaneamente, a
condição de ser inteiramente humano.
O efeito causado pela arte, em síntese, é o elemento me-
diante o qual o ser social, imerso em sua vida cotidiana (ser hu-
mano inteiro), acessa, ainda que transitoriamente, um mundo
qualitativamente distinto de seu cotidiano, um mundo apro-
priado à sua humanidade: um mundo onde o sujeito pode vi-
venciar a experiência de se sentir um ser inteiramente humano.

4.2) Catarse: uma racionalidade totalmente sensível

A catarse, para Lukács (1967b), é uma racionalidade total-


mente sensível. Essa categorização desmonta qualquer gnosiolo-
gia idealista que entende a catarse como algo sobrenatural, como
um estado que advém de uma entidade místico-transcendente.
É recorrente, sobretudo depois que a aventura do pensamento
pós-moderno invadiu os corredores universitários, a crença reli-
giosa ou ateia de que a catarse é um estado quase inumano.
Para enfrentar essas fantasias epistemológicas, é necessá-
rio ser dito, com o autor húngaro, que a catarse estética não leva
ninguém a um patamar de embriaguez fora do mundo terreno-
-pedestre. Ao contrário disso, a arte, ao registrar a autoconsci-
ência humana, marca toda a sua estampa de humanidade.
A arte autêntica, é preciso repetir energicamente, não
pode abrir mão de causar catarse nos seus receptores. Essa classe
especial de reflexo, possibilitada por meio da reflexão catártico-
-estética, põe o sujeito humano acima de sua realidade cotidia-
na, mesmo que, após o efeito da obra (catarse), o vivente retorne
ao chão do Depois de sua cotidianidade. Esse regresso, como
debatido, dá-se de modo enriquecido.

97
Desde a Antiguidade, como historia o esteta de Budapes-
te, que a saudável sensibilidade humana reconhece que o efeito
da arte se dá por meio da catarse. Para o caso artístico, trata-se
do efeito evocador que a obra tem sobre o sujeito humano. Tal
efeito funciona como uma purificação, uma purga que desperta
novas experiências no vivente, cuja capacidade “amplia e apro-
funda sua imagem de si mesmo, do mundo no qual tem que ver
no mais amplo sentido da palavra” (LUKÁCS, 1966b, p. 334).
O filósofo magiar considera a catarse, com base em Aris-
tóteles, como uma purificação. Para Lukács (1967b, p. 76), em
sua concepção mais geral, significa “que um fenômeno ou um
grupo de fenômenos refigurados, preservando sua íntima verda-
de vital, cresce por cima do nível alcançável na vida cotidiana”.
Esse soerguimento, com efeito, é facilitado pela mimese
estética, que funciona como elo. A mimese, como exposto, é
o elã que conecta, por meio da ação da particularidade, o real
ao impacto avassalador que chamamos de catarse. Sob essa co-
moção, o sujeito acometido pelo efeito catártico depara-se com
uma ponte espiritual que o alça à condição de acessar um nível
superior de vivência humana.
A catarse, com isso, abre ao sujeito acometido por seu
efeito a possibilidade da realização extrema das potencialidades
humanas. Por isso, para este livro, a mimese é a primeira catego-
ria da estética. É ela que cria o âmbito de jogo e tensa ludicidade
onde a particularidade movimenta sua área de manobra. Desse
tenso e lúdico movimento, a particularidade tem o que tirar
para entregar ao processo catártico.
Essa potência possibilitada pela catarse pode ou não se
realizar. A realização ou sua impossibilidade depende do Antes
que o receptor traz em sua história pessoal. Por sua natureza, a
comoção é determinada sócio-historicamente, a arte é o elemen-
to que dispara, guia e orienta a ação. Por isso, a arte não pode
ser nenhum “jogo charlatanesco de uma ‘salvação’ em qualquer
transcendência” (LUKÁCS, 1967b, p. 76, negritos nossos).

98
Sob esse efeito depurador, homens e mulheres se defron-
tam com vivências que os fazem reprovar/comprovar o seu pas-
sado. O efeito comotivo também exige dos sujeitos acometidos
novas atitudes ao devir. Mesmo que o passado e o futuro se pa-
reçam embaralhados durante a imediatez da vivência comotiva,
o Antes e o Depois constituem, na concepção do esteta magiar,
o conteúdo essencial da “forma maximamente generalizada da
catarse” (LUKÁCS, 1966b, p. 508).
Mas o que sente a pessoa humana durante uma catarse ar-
tística? O autor responde que o resultado da catarse no sujeito
humano é
uma sacudida tal da subjetividade do receptor que suas paixões vital-
mente ativas cobram novos conteúdos, uma nova direção, e, assim
purificadas, convertem-se em embasamento anímico de ‘disposições
virtuosas’ (LUKÁCS, 1966b, p. 508).

A definição que Lukács (1967b, p. 76) apresenta para ca-


tarse, consiste
em que o homem confirme o essencial de sua própria vida, pre-
cisamente pelo fato de vê-la em um espelho que o comove, que o
envergonha por sua grandeza, que mostra a fragmentariedade, a insu-
ficiência, a incapacidade de realização que tem sua própria existência
normal. A catarse é a vivência da realidade própria da vida humana,
cuja comparação com a realidade da cotidianidade no efeito da obra
produz uma purificação das paixões que se transforma em ética já no
Depois da obra.

Mas como se produz esse poderoso efeito?


Mediante essa racionalidade totalmente sensível, mediante esse
ficar posto como um microcosmos que, em combinação analogica-
mente racional com outras mônadas da mesma natureza, constitui o
microcosmos da obra, mediante essa refiguração da realidade subes-
pécie de completitude e totalidade, se produz no receptor a catarse,
cuja comoção lhe faz vidente e sensível em referência àquele “mundo”
cuja entrada em sua alma e cujo enraizamento nela impõe o meio
homogêneo (1966b, p. 530, negritos nossos).

99
Esse milagre mundano proporcionado pela catarse é a ca-
tegoria geral da estética: ela é, como defende o autor húngaro,
“[...] um critério decisivo da perfeição artística de cada obra e, ao
mesmo tempo, o princípio determinante da importante função
social da arte, da natureza do Depois de seu efeito, de sua di-
fusão na vida [...]” (LUKÁCS, 1966b, p. 518, negritos nossos).
Esse processo se conclui quando há a recondução do su-
jeito acometido pelo efeito à sua condição de ser humano intei-
ro da vida cotidiana.
O Depois da catarse é, repetindo, o momento posterior
do desfrute da condição de ser inteiramente humano, propor-
cionado, por sua vez, pelo efeito de uma obra de arte que o
levou à comoção catártica.
• O efeito produzido pela obra sobre o receptor não se
reduz a mostrar novos fatos da vida à pessoa acometida
pela comoção, ou mesmo a iluminar novamente fatos
conhecidos pelo sujeito. A catarse mostra, por meio da
obra, uma novidade qualitativa caracterizada, por seu
turno, por uma racionalidade totalmente sensível.
• O efeito catártico altera e aprofunda a capacidade de
quem a sente. Isso possibilita ao sujeito acometido
pela comoção perceber novas situações.
• Os objetos já habitualmente expostos ao vivente ga-
nham uma nova e poderosa iluminação, pois estão
inseridos em novas conexões e também novas relações
qualitativamente enriquecidas.
• Esse turbilhão de novidades – produzido por uma ra-
cionalidade totalmente sensível – dá-se concomitante
ao ato imediato da comoção.
Poder-se-ia dizer, com base nesse milagre mundano pro-
porcionado por uma racionalidade totalmente sensível, o seguin-
te: a arte é o cume da racionalidade humana! Haja vista que o su-
jeito humano sacudido pela catarse se encontra consigo mesmo,
concomitantemente ao encontro que faz com sua humanidade,
pois tem acesso a uma racionalidade totalmente sensível.

100
A sensibilidade totalmente racional caracteriza-se por visi-
bilizar qualitativamente determinados materiais vitais.
Esse processo proporciona ao vivente perceber as novi-
dades que, por sua natureza, já existem no tecido social, mas
são encobertas pelas contradições da heterogeneidade do pensa-
mento cotidiano.
Por esse conjunto de motivos é que a obra, ao dar ênfase
ao que é mais nucelar ao humano, “aponta diretamente ao des-
pertar da autoconsciência” (LUKÁCS, 1967a, p. 339). Como
insiste o autor, o sentido mais profundo da catarse aristotélica
é a purificação das paixões. Isso “[...] consiste, principalmente,
em referir o elemento consciente e o ‘inconsciente’ [ainda não
consciente: fantasia] delas [as paixões] ao núcleo do sujeito, le-
vantando-as à autoconsciência” (LUKÁCS, 1967a p. 339).
É preciso advertir, mais uma vez, que o vivente momen-
taneamente soerguido do cotidiano, quando volta do efeito co-
motivo, não consegue excluir de sua vida a forma de pensar do
cotidiano. A dialética da contradição social, quando o receptor
retorna ao Depois da comoção, não permite que ele implemen-
te diretamente e sem mediações o que a catarse lhe revelou. A
pessoa humana depara-se com um cotidiano em que a realidade
independe de sua consciência!
Com a categoria geral da estética apresentada como uma
racionalidade totalmente sensível, é-nos possível reforçar alguns
elementos acerca da problemática do agradável. Após essa breve
recuperação, relembrar-se-á que o Antes e o Depois da catarse
não podem ser vistos mecanicamente separados. Com base nes-
sa recuperação, retomar-se-á o debate da tipicidade. Pois, assim,
há melhores condições de enriquecer a relação entre tipicidade
e particularidade.

101
4.3) Agradável e desagradável no sujeito privado singular:
uma conexão com a tipicidade artística

Inicialmente, foi visto que o agradável compõe a série


evolutiva que desemboca nos incipientes passos da arte. Quan-
do esse tema foi debatido, o agradável foi apresentado como um
elo que sai da utilidade e se inclina para as tendências estéticas.
Por isso, não há como imaginar o surgimento da arte sem a par-
ticipação de um elo agradável. O fator artístico, não obstante ter
se desprendido da relação útil-agradável, jamais teria atingido o
patamar de ser algo substantivo para vida humana se fosse resu-
mido ao que é agradável de um lado e útil de outro.
Para a retomada da questão sobre o agradável na arte, im-
porta destacar que na relação entre o Antes e o Depois inexiste
qualquer vestígio de rigidez metafísica:
Pois quando analisamos o Antes e o Depois do comportamento pro-
priamente estético para com a arte, não surpreendemos nenhuma si-
tuação fixa, senão uma corrente que vai da vida ao comportamento
estético, e deste à vida (LUKÁCS, 1967b, p. 217, negritos nossos).

A vida cotidiana, em sua totalidade intensivamente dinâmi-


ca, repete o autor, é um território limite de onde se ergue o com-
portamento estético. A arte, desprendida portanto da vida, quan-
do autêntica, retroage novamente sobre a vida, enriquecendo-a.
Toda obra de autenticidade artística carrega, espontanea-
mente no seu âmago, a vida cotidiana. Porém, toda arte autên-
tica, ao mesmo tempo que carrega a espontaneidade do cotidia-
no, separara-se qualitativamente dela. A complexidade de estar
separada e, concomitantemente, atada à vida cotidiana, somente
pode ser compreendida por meio da análise do típico. Estudar
a tipicidade artística permite avançar sobre a peculiaridade da
superação dessa contradição.
Um obstáculo de parida é que toda tipicidade artística en-
coraja ao seguinte paradoxo: carregar a condição de, ao mesmo
tempo, ser separado e atado à vida cotidiana. Isso se justifica,

102
uma vez que o típico apenas pode existir se permitir que a obra
dê luz à antinomia de separar o sujeito privado de um lado e a
generalidade de outro.
Toda intenção de tipicidade, para que possamos desven-
dar a contradição, funda-se na singularidade privada. Tal inten-
to, para confirmar sua marca de arte, precisa levantar determina-
dos momentos da singularidade privada à altura do típico.
O que ocorre se esse movimento não possibilitar o so-
erguimento?
Ele será “[...] uma mera abstração do humano que he-
sitará entre o inteligível e o experienciável, e será fortemente
impreciso para o primeiro e fortemente indeterminado para o
segundo” (LUKÁCS, 1967b, p. 238).
Quando o artista, por mais esforçado, sincero, bem-inten-
cionado e moralmente avançado que seja, não consegue libertar
a singularidade privada, sua obra, mesmo que atinja a perfeição
técnico-artística, alcança liminarmente um mero naturalismo.
Vai ser a categoria central da estética, a particularidade, a
responsável por resolver o paradoxo entre o singular e o universal,
entre a singularidade privada do sujeito e a generalidade humana.
Por sua função de elo depurador entre o reflexo mimético
e a catarse, bem como por possuir o modo de manifestação sen-
sível por meio do típico, a particularidade inclina sua estrutura
depuradora para a unificação da contradição entre a persona-
lidade privada singular do sujeito que sente e a universalidade
trafegada pela obra.
É assim que a obra de arte, por meio da ação da particu-
laridade que ativa o típico, une vida cotidiana, sujeito singular-
-privado e generalidade humana. É também por intermédio desse
processo que a força da tipicidade incorpora à obra os elementos
agradáveis/desagradáveis vindos, por seu caráter, da vida cotidiana.
A singularidade privada, mesmo depois de superada, preser-
va determinado caráter terreno: mundano. O movimento depura-
dor da particularidade é o responsável por fazer com que o singular,

103
superado esteticamente, faça reaparecer, precisamente por força da
ação do típico, o singular-privado. Essa superação, também por
meio da particularidade, produz a unidade com o humano, “[...]
na qual a singularidade privada se une inseparavelmente com esse
elemento humano específico, e a tensão polar [a contraditoriedade
entre singular e universal] se converte em princípio vivificador do
típico” (LUKÁCS, 1967b, p. 238, negritos nossos).
A obra de arte, é preciso repetir, possui um duplo caráter.
1. Por um lado, a arte carrega uma objetividade que anda
com os pés no chão social dos viventes: é pedestre.
2. Já, por outro lado, a obra não pode ser encarada como
se fosse a realidade concretamente dada. Por isso, a
arte é uma contradição em movimento.
Mas como justificar essa movimentação paradoxal?
A obra de arte, se for possível resumir em uma expressão,
revela um milagre mundano. Nem é coisa transcendente, tam-
pouco é a realidade objetiva. Ela é, com efeito, a refiguração
artística do real.
Com o tratamento adequado dessa contradição, podemos
dilatar ainda mais a distinção entre a arte e o agradável.
O que a autêntica obra carrega é a mundanidade revela-
dora dos processos contraditórios que os diversos viventes expe-
rimentam na vida cotidiana, revelada pela necessidade imposta
pela vida de se refletir o mundanamente humano. Por ser con-
traditória, a profundidade desse processo, ao mesmo tempo que
abarca cada sujeito humano revelando suas mais essenciais po-
tências, também, a depender da personalidade privada singular
de cada vivente, revela o constrangimento com suas atitudes e
com as ações dos demais indivíduos.
A vivência do agradável, diferentemente da estética, pro-
porciona a cada sujeito humano uma satisfação momentânea. A
mundanidade da autenticidade artística é o critério de distinção
entre a estética e o agradável. Enquanto este possibilita uma sa-
tisfação momentânea, aquela cria o espaço de jogo, ludicidade

104
e tensão cujo objetivo é fazer com que o sujeito humano ultra-
passe – conservando dialeticamente – sua singularidade privada.
Entre a arte e o agradável, contudo, existe uma enorme
margem de manobra: uma fronteira. O pseudoestético, que dei-
ta raízes no agradável, trafega com muita desenvoltura por tal
fronteira.
Não há como compreender a dialética existente entre o
agradável e o estético considerando suas aproximações e distin-
ções, como recém-exposto, sem levar em conta os componentes
sociais presentes na subjetividade privada-singular. Por força de
sua dialética própria, impõem-se na gênese e nos efeitos do agra-
dável toda uma complexidade demandada socialmente.
Duas questões precisam ser aclaradas para que tal dialética
não pareça um paradoxo insolúvel.
• O primeiro aspecto refere-se ao salto qualitativo que
separa o estético do agradável. Sem dúvida, é um fato
empiricamente documentado “[...] que as formações
pseudoestéticas penetram frequentemente na coti-
dianidade dos homens [e mulheres] muito mais ve-
emente e extensivamente que as obras de arte mais
importantes” (LUKÁCS, 1967b, p. 253). Visto his-
toricamente, o efeito pseudoestético causado pelo ele-
mento agradável é, porém, efêmero.
• Já o segundo aspecto relaciona-se ao seguinte fato: o
modo de aparição do agradável na imediatez cotidia-
na não tem caráter inequívoco, tampouco se apresen-
ta de maneira simples. Nessa imediaticidade, a apa-
rência fenomênica da agradabilidade a faz coincidir
com algumas exigências da vida. Essa aparência é, em
muitos casos, uma adequação a problemas objetivos
que cobram um efeito agradável do sujeito vivente.
O que conforma de modo duradouro a autoconsciência
da humanidade é, apesar de todas as contradições, o efeito cau-
sado pelas grandes e autênticas obras de arte.

105
Importa destacar que o útil e o agradável nutrem com
o sujeito humano uma relação que lhe possibilita se relacionar
com o mundo externo. Tal relação é o que mais contribui para
que o vivente desperte, afirme e desdobre suas capacidades e
tendências vitais. O agradável, não obstante, por sua essência
subjetiva, é um reflexo privado do mundo externo. Isso tem
como consequência que uma reação análoga ao mundo externo,
precisamente pelo caráter de singularidade privada do agradá-
vel, pode ter, como resultado objetivo da reação, uma amplifica-
ção ou atenuação daquelas tendências e capacidades vitais.
O capitalismo, como entende Lukács, ainda que não se
excluam suas contradições inerentes, valoriza a elaboração de
técnicas que possam dominar, por intermédio da produção em
série do agradável, as formas mais adequadas à difusão em mas-
sa. Isso tem efeito sobre a produção artística de duas maneiras:
1. “por uma parte, a força crescente e cada vez mais au-
tônoma das meras letras (e seus análogos em todas as
artes) tende a eliminar violentamente as fronteiras que
definem o estético [...]”, bem como procuram obscure-
cer a essência própria da arte (LUKÁCS, 1967b, p. 255).
2. já por outra parte, mesmo que imposta pelo movimen-
to da realidade, “[...] a autodefesa da arte ante essas pres-
sões tende a um esoterismo artisticamente insano, [e] a
uma oclusão voluntária [...]” (LUKÁCS, 1967b, p. 255).
Os elementos existentes no âmbito do agradável, por se-
rem fundamentos vitais para a vida, compreendem um campo
bem mais amplo do que o da estética. É, desse modo, que o ele-
mento agradável/desagradável é importante para a arte. É preci-
so advertir, contudo, que a arte não se resume ao que é agradá-
vel/desagradável em uma ponta e ao que é útil/inútil em outra.
Após a retomada, mesmo que de modo sintético, do que o
esteta chama de ciclo problemático do agradável, pode-se entrar
no capítulo que se segue, que é dedicado aos casos de mimese
duplicada, entendidos pelo filósofo húngaro como um dos pro-
blemas limites da estética.

106
Capítulo 5)

Mimese duplicada

5.1) Objetividade indeterminada

A Grande Estética é dividida, conforme informado, em 16


capítulos. Os capítulos 14, 15 e 16, condensados no terceiro
volume da tradução espanhola, são dedicadas às questões limites
da estética. No começo do capítulo 14, o autor inicia seu trata-
mento da mimese duplicada.
A música é a mimese da interioridade humana, sustenta
o autor1. O reflexo mimético musical, como desenvolve Lukács
(1967b), é um dos casos de mimese duplicada. Para que possa-
mos estudar com a devida atenção a duplicação mimética pro-
duzida pelo meio homogêneo musical, contudo, antes é preciso
vencer algumas dificuldades. Um dos mais desafiantes obstácu-
los ocorre quando a pesquisa tenta encaixar a arte dentro de um
conceito metafisicamente rígido. Essas dificuldades relacionam-
-se diretamente com a capacidade que a arte possui de produzir
certa objetividade indeterminada.
Isso se justifica pelo seguinte: como o reflexo artístico, em
sua movimentação estética, tem como solo a imanência concreta
do mundo pedestre, rejeitando ao mesmo tempo qualquer cará-
ter de verificabilidade com a realidade concretamente dada, sua
definição em um conceito rigidamente fechado é muito difícil.
Apenas a obra em sua autenticidade acabada consegue expressar
e, por conseguinte, evocar alegrias, tristezas, esperanças, dores
etc., nos receptores. Isso ocorre porque o ser concreto da obra
1 Ibaney Chasin (2008) chama a duplicação mimético-musical de mimese dos afetos.

107
fechada não é a realidade concreta, senão a refiguração do real:
representa, com base na realidade, o inefável, o que o mundo
pode vir a ser (SANTOS, 2018).
Sem o adequado tratamento da problemática da objeti-
vidade indeterminada, não há como pleitear o modo como a
catarse funciona no edifício categorial de Lukács. Como adian-
tamos em Santos (2020), toda determinação, para garantir a
precisão e a univocidade do que se procura determinar, contém,
dialeticamente, elementos de indeterminação. Determinação e
indeterminação são, portanto, funções da totalidade intensiva
do mundo circundante.
Para o devido tratamento dessa questão, é preciso consi-
derar, com nosso autor, que determinação e indeterminação são
funções da totalidade intensiva concreta do trabalho. Isso impli-
ca dizer que a determinação, para que possa proteger a precisão
e a univocidade do que se procura determinar, necessita conter,
dialeticamente, elementos de indeterminação.
A concreta relação do ser, sua determinação em si mesma,
como Lukács retira de Hegel, necessita de uma porção, o míni-
mo que seja, de quantidade para poder expressar o qualitativo.
Em uma expressão: a fusão dialética da quantidade na qualidade.
Com esse requinte metodológico como luz e com as con-
siderações sobre o desenvolvimento do ritmo em dependência
ontológica e reciprocidade dialética em relação à divisão social e
técnica do trabalho, o esteta húngaro considera-se em condições
de melhor expor o problema da determinação indeterminada,
da indeterminação determinada.
São essas abstrações razoáveis que permitem ao método
onto-histórico superar os limites e as antinomias impostas, epis-
temologicamente, pela teoria do pensamento burguês.
A estética, por seu caráter humano, jamais pode abando-
nar a dialética da realidade concreta. A classe das determinações
estéticas não tem como se desviar dessa incorporação dialética.
O caso artístico mostra alguns princípios que podem ser formu-

108
láveis com precisão, não obstante, desconhece qualquer regra
geral universalmente aplicável que lhe confira caráter formalista.
Quando o escritor, para citar o exemplo da literatura, tenta uma
descrição precisa de suas personagens, inclina-se para a hiper-
determinação e não para a determinação realístico-artística. Se
o hiperdeterminado ganhar a preponderância nas personagens,
o que ocorre na maioria dos casos de descrições hiperdetermi-
nadas, o resultado tende ao supérfluo, distancia-se do realismo.
O estético desdobra-se e desenvolve-se dentro de uma área
de jogo que, por sua natureza, é manobrado por um movimento
de tensa ludicidade colhido, por sua vez, da própria vida cotidiana.
Esse campo de ação já está presente na realidade cotidiana.
A obra acabada busca sua objetividade no conteúdo real, uma vez
que é a realidade a guardiã dos elementos intelecto-emocionais que
devem ganhar conformação no corpo da obra fechada. A busca do
que é essencial no drama humano nunca é um dado fixo, movi-
menta-se entre muitos pontos (relação singularidade e universali-
dade com depuração da particularidade). Por isso, o drama pessoal
da humanidade não pode ser rigidamente determinado. Carregará,
sempre e ineliminavelmente, seu caráter indeterminado.
A dialética da determinação do que é externo à pessoa, em
articulação com o humano-psíquico que ela internaliza, monta
o âmbito do movimento da tensão lúdica que caracteriza a es-
sência do que deve ser buscado pelo efeito estético. A objetivida-
de artística, por ter nascedouro na essência do drama humano,
não é completamente indeterminada, tampouco rigidamente
determinada. Há, no âmago do drama humano, um movimento
entre a determinação e a indeterminação. No campo de movi-
mentação entre o que se pode determinar e o que é de difícil de-
terminação, move-se a esfera estética. O movimento especifica-
mente artístico, sem ser fixamente amarrado, opera nesse campo
de jogo, ou seja, nessa área de tensa e lúdica manobra.
A objetividade indeterminada, como mostrado, é um fe-
nômeno que existe na vida cotidiana, mas na arte, por intermé-

109
dio da movimentação da tipicidade, sua ação ganha lastro de
extrema importância. Isso se justifica, uma vez que, dentro do
campo de tensa ludicidade, o movimento do típico exige conte-
údos concretos que, por força da ação estética, são determinados
de maneira qualitativamente diferente de como a objetividade
se apresenta na vida cotidiana.
Os elementos colhidos desse campo de jogo estético, ao
serem, pela ação do meio homogêneo da arte de que se trate,
captados pela pura visualidade do sujeito receptor, chegam-no
como um mundo objetivo e precisamente determinado: um
mundo para chamar de seu (SANTOS. 2018).
É oportuno destacar que mesmo sendo um mundo es-
truturalmente de conteúdo humano, a conformação visual que
chega ao receptor possibilita a movimentação do debatido espa-
ço de tensão e jogo entre o que se determina e a indeterminação
presente objetivamente. Isto é, o objeto que tem seu conteúdo
determinado por meio de uma dada forma, logra êxito em cone-
xão com certa indeterminação desse mesmo conteúdo.
Isso requer o registro de que tal movimentação, no campo
estético – dada pela particularidade de cada caso –, é distinta
para cada obra e para cada estilo artístico dado. Importa ainda
advertir, sempre com Lukács, que vai depender de cada arte es-
pecífica e de cada estilo de que se trate a qualidade daquilo que
deve permanecer necessariamente indeterminado e o que preci-
sa se inclinar para a determinação formal.
O que pode ser dito, para adiantar a relação entre a ob-
jetividade indeterminada e a catarse é o seguinte: uma inde-
terminação claramente determinada por uma racionalidade
totalmente sensível.
O que queremos realçar, com o adiantamento dessa relação,
é que os conteúdos que se mantêm indeterminados, quando se
trata da esfera artística, contudo, não ficam completamente sem
nenhuma determinação. Isso porque o sujeito humano, imerso em
sua dinâmica cotidiana, não consegue penetrar o conteúdo parti-
cular da vida em sua totalidade. Como se sabe, o faz apenas parcial-

110
mente: sempre lhe escapa algo. A indeterminação artística, antes de
se constituir como tal, ganha, portanto, uma clara determinação.
Pois consegue revelar ao receptor acometido pela catarse algo que,
pela arte, embora não seja claramente determinado no cotidiano,
chega com determinação suficiente para leva-lo à catarse.
Resta responder à seguinte indagação: depende de quais
fatores a possibilidade de nascer no interior da pessoa um conte-
údo que possua uma determinação indeterminada?
Com base na Grande Estética de Lukács, em Santos
(2018), chegamos à seguinte síntese: para que a obra reproduza
a dialética que gera certo conteúdo, precisa que a conformação
tenha força suficiente para se determinar visual-sensitivamente
ao sujeito humano. Para que a obra refigurada atraia a atenção
da pessoa, o conteúdo vital refigurado necessita conter fatos vi-
tais determinados por uma indeterminação.
Se, por um lado, essa exterioridade visual-sensitiva ganhar
tamanha determinação ao ponto de anular a indeterminação, a
refiguração se inclina para as descrições hiperdeterminadas. Se
isso ocorrer, o máximo que a obra pode lograr é algum êxito
naturalista. Se, por outro lado, ela constituir, perante o alcance
visual-sensitivo do receptor, o domínio de uma completa inde-
terminação, há o aniquilamento da esfera da interioridade do
receptor. Em consequência desse aniquilamento, esvazia-se o
conteúdo externo. Se esse segundo caso for exitoso, produz-se
a arbitrariedade subjetivista, pois a capacidade orientadora do
conteúdo se perde, dando luz à incapacidade artística. Isso faz
surgir, no limite, o diletantismo estético.
Mesmo com todos esses elementos aclarados, não se pode
traçar uma fronteira que separe rigorosamente as obras produto-
ras da determinação indeterminada e as criações que não alcan-
çam tal caráter. Existem muitas conexões entre os dois extremos.
A dificuldade de separar mecanicamente um limite entre
as criações que atingem o logro de determinar algo na forma
indeterminada relaciona-se com a qualidade específica da tota-
lidade alcançada pela obra. Como explica as palavras do autor

111
húngaro, nas obras autênticas, a indeterminação ganha uma cla-
ra determinação. O que é determinado na área de manobra do
campo estético, contudo, é sem dúvida diferente de uma deter-
minação desantropomórfica. Ela é, antes de tudo, algo determi-
nado pela essência do conteúdo. O papel do conteúdo, todavia,
vai muito além de uma orientação abstrata.
Isso contribui para a seguinte compreensão: o que deter-
mina o indeterminado em uma paisagem, por exemplo, é distin-
ta do que se observa em uma natureza morta, que, por sua vez, é
diversa do que se pode verificar em uma cena religiosa...
Na relação objetividade determinada-indeterminada, re-
pousa mais uma das muitas dificuldades de se encaixar a arte
dentro de um conceito rigidamente fechado.
Citamos, como ilustração a esse processo, o que Santos
(2018, p. 285, negritos nossos) escreveu:
Quando a representação figurativa do mundo circundante que não
é humano aparece humanizada na arte, essa reprodução vem de um
considerável esforço artístico por reproduzi-la antropomorfizadora-
mente ao sujeito humano em relação ao seu mundo objetivo. No caso
das artes figurativas, tal esforço procura orientar-se de tal modo que
essas relações apareçam puramente como propriedades visuais dos
objetos representados, como suas relações recíprocas visuais. Na vida
concreta, o que aparece isolado e encoberto pelas finalidades ime-
diatas do dia a dia, nas artes figurativas, a partir de um esforço con-
formativo, ao converter-se artisticamente, levanta-se à universalidade
guiado pela representação de um mundo apropriado ao humano
e, por isso, perfeito e fechado em si, em seus elementos estéticos.
É assim que a objetividade indeterminada exige seu ambiente de
brincadeira, jogo e tensão, cujos conteúdos concretos, em virtude do
ambiente criado por essa ludicidade, são determinados de um modo
qualitativamente diverso de como ocorre na vida cotidiana.

Para exemplificar como a arte se utiliza da relação objeti-


vidade determinada-indeterminada, o autor húngaro usa uma
brincadeira feita pelo poeta Reiner Maria Rilke sobre o quadro
Cesta de maçãs do pintor Paul Cézanne2. Acerca da famosa pin-
2 Ver, por exemplo, o quadro Cestas de maçãs, de Paul Cézanne (1895).

112
tura, escreve Lukács (1966b, p. 347) que “[...] a determinação
simples pelo conteúdo da fruteira das maçãs concreta-se em um
preciso valor de sensação e pensamento”. É em relação a tais
sensações que Rilke lembra da impossibilidade de se comer as
frutas. Para o esteta de Budapeste está claro que as considerações
humoradas do poeta se referem, certamente, a uma objetivida-
de indeterminada. Em uma expressão: não se pode comer as
frutas refiguradas por Cézanne.
Depois de adiantada, mesmo que de modo preliminar,
a objetividade indeterminada, citemos o que Lukács retira de
Goethe sobre nossa problemática. Quando o poeta fala de ‘in-
decibilidade’ ou ‘inefabilidade’ da configuração simbólica, quer
ressaltar que é próprio da esfera artística o caráter indecifrável,
impreciso, inefável, entre outras objetividades indeterminadas.
A canção Metáfora de Gilberto Gil serve para ilustrar a
natureza indecifrável, imprecisa e inefável da arte.
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo


Mas quando o poeta diz: “Meta”
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta


Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha a caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta


Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora (GIL, 1982).

113
Precisamos advertir, com apoio no esteta magiar, que não
se pode cair na separação mecânica entre a objetividade inde-
terminada – referente ao mundo externo – e a determinada –
vinculada à interioridade humana. É preciso ter em mente que
a objetividade indeterminada está sempre e em toda parte vin-
culada à determinada. Esse vínculo, do ponto de vista estetica-
mente concreto, apenas escassamente pode ser separado, visto
que somente por meio da determinação interna pode a indeter-
minação objetiva chegar a se manifestar.
Foi preciso adiantar essas palavras sobre a objetividade in-
determinada para que possamos tratar da questão da duplicação
mimética da música.

5.2) Duplicação mimética musical

A música, como indica Santos (2021), chega primeiro.


Para que possamos melhor debater esse caráter musical, é preci-
so considerar a lei básica da refiguração estética lukacsiana para
todas as artes. Ou seja, não se pode avançar sobre o problema
da música sem ter em mente que a arte e a vida partilham um
campo comum de contato, sendo esta a fornecedora do material
vivencial para que aquela possa se alçar ao patamar de provocar
catarse nos viventes.
A peculiaridade específica da mimese musical, além de se
realizar através de uma duplicação mimética, caracteriza-se por
ser produzida diretamente da vida interior da pessoa humana3.
Esse reflexo da interioridade humana distingue, qualitativamen-
te, a música das demais artes.

3 Para o autor húngaro, a música, a arquitetura, o artesanato artístico, a jardina-


gem e o cinema, guardando suas distintas especificidades, partilham da condição
de possuírem em seus meios homogêneos a característica de uma dupla mimese.

114
Mas como se dá a mimese na interioridade da pessoa?
Para nosso autor, a mimese da interioridade humana não é
o mimetismo de “[...] uma interioridade conformada simultanea-
mente com sua ocasião desencadeadora [externa à pessoa], nem me-
nos limitada à conformação do mundo externo para evocar assim o
interior”, ela é o que toca mais direto e profundamente o mais agu-
do da interioridade da pessoa que sente (LUKÁCS, 1967b, p. 10).
A música, contudo, nasce de uma necessidade social geral
que, para ser satisfeita, cria seu peculiar meio homogêneo na
forma de uma dupla mimese, dado que, como já pensavam os
gregos, o objeto mimético da música é o interior do humano.
Com base na cofiliação entre espaço e tempo é que se pode
expor a problemática da dupla mimese musical adequadamente
(LUKÁCS, 1967b). Isso se justifica, dado que a articulação do
espaço e do tempo, determinada na vida cotidiana, exige, por
intermédio do trabalho, uma posterior elaboração. É por meio
do ritmo que essa posterior elaboração se confirma. A música,
ordenada sob a orientação do ritmo, assume sua temporalidade
sem perder de vista os elementos espaciais, denominados por
Lukács (1966b) de quase-espaço4.
O esteta divide as artes em dois grandes grupos.
• No primeiro, o meio homogêneo é predominante-
mente temporal.
• Já no segundo, há o predomínio do meio homogêneo
espacial.
No caso do meio homogêneo com predomínio temporal,
os exemplos utilizados pelo esteta são a música e a literatura. No
meio homogêneo que predomina a espacialidade, o autor cita o
exemplo das artes plásticas.
No caso da estética, portanto, não há divisão entre o tem-
po e o espaço, o que de fato ocorre é o predomínio, em deter-
minadas artes, da temporalidade e, em outras, da espacialidade.

4 Em Santos (2018), debatemos com mais detalhes a problemática do quase-es-


paço e do quase-tempo.

115
Nessa intensificação qualitativa entre o tempo e o espaço,
o mundo das impressões psíquicas humanas, para garantir seu
pleno desenvolvimento, separa-se do mundo externo objetivo
que, por força de sua objetividade, desencadeia tais impressões
(primeira mimese musical).
Dito de outro modo, a primeira mimese se relaciona dire-
tamente com a interioridade humana. Por isso, para alguns auto-
res, a exemplo de Ibaney Chasin (1998), essa mimese é relacio-
nada com o afeto, com o interior da pessoa que sente. Isso a leva
a ser sentida sem freios, pois não encontra, inicialmente, maiores
censuras. Sua principal referência é a interioridade humana.
No entanto, com o movimento dialético próprio ao cam-
po musical, há o predomínio do decurso temporal relacionado
ao espaço. Tal dialética faz com que a internalização subjetiva,
responsável pela primeira mimese, se referencie retroativamen-
te na estrutura objetiva do mundo externo. Agora, a primeira
mimese além de se referenciar no interior da pessoa que sente,
passa a ganhar a interferência do mundo externo. À essa refe-
rência ao mundo concreto, externo à pessoa que sente, Lukács
denomina de segunda mimese musical.
Esse movimento de duplicação mimética, para se processar,
exige a patente de uma interioridade autenticamente humana.
Tal processo, ao transformar as relações humanas num
cosmos de interioridade, filtra para o interior humano o que lhe
dá o selo de autenticidade, deixando de fora o veneno narcisista
de uma existência vã que, por sua debilidade, poderia conquistar
o mundo concreto para si próprio apenas na aparência formal.
Ao transformar o presente, o passado e o futuro conformados na música
– sem destruir sua essência originária – em uma cofiliação vivenciada,
converte-se efetivamente em uma plenitude temporal, em sua própria
superação subjetiva. Porém, como este ato não é mais que um reflexo,
uma realização subjetiva do que se encontra em si na essência do tempo
concreto e objetivo – a saber, uma cofiliação inseparável, entitativa,
com o espaço e com a matéria que se move neste –, tal ato perde todo
rastro de arbitrariedade subjetivista (LUKÁCS, 1967b, p. 33).

116
A característica particular da música está no seguinte fato:
no meio homogêneo musical, a transformação do ser humano
inteiro em ser inteiramente humano é mais enfática do que nas
demais artes. Isso se dá porque o Antes, nascido da vida con-
creta, não consegue inibir o soerguimento que transforma o ser
humano inteiro em ser inteiramente humano tanto quanto nas
outras artes. Pela natureza da refiguração musical, o Depois do
efeito artístico fica bem menos determinado pelo conteúdo. Isto
é, menos orientado a conteúdos determinados externamente.
Todo esse processo ocorre em virtude da radical objetivi-
dade indeterminada, que é o elemento de princípio da música.
Radicalizar a objetividade indeterminada, isto é, diminuir ao
máximo as interferências de objetos externos à interioridade hu-
mana, é uma consequência necessária do meio homogêneo mu-
sical. A produção dessa radicalidade tem por objetivo satisfazer a
essência estético-musical: uma refiguração da totalidade emoti-
vo-interna da pessoa. Esse processo apenas torna-se possível por
meio da mimese de uma mimese: de uma duplicação mimética.
A duplicidade mimética do meio musical, no entanto,
possui uma importante contradição:
• se, por um lado, pode liberar todas as emoções, va-
lorizando a interioridade humana, o que possibilita
uma entrega sem freios à passagem do ser humano
inteiro para o ser inteiramente humano;
• por outro, cria a possibilidade para que se produza a libe-
ração da mera singularidade privada, o que valoriza a auto-
consciência da singularidade do sujeito privado-singular.
No primeiro caso, a catarse tende a levar o indivíduo
acometido às últimas consequências da problemática causado-
ra da comoção. Pela natureza do capitalismo, esse movimento
está cada vez mais tragicamente raro. A inibição e deformação
capitalistas impõem, a produtores e receptores, modismos vin-
culados ao âmbito do agradável que, pela natureza da agradabi-
lidade, confunde e camufla o processo catártico.

117
Mesmo perante as amarras capitalistas, essa classe catártica
pode tornar perceptível a profunda – ainda que oculta – vinculação
entre as emoções isoladas no mundo burguês e a evolução da vida
concreta: suas lutas, esperanças, decepções, desesperos (os dramas
humanos). Quando se logra esse patamar, as mais autênticas e ele-
vadas perspectivas do gênero humano ganham visibilidade. Esse pa-
tamar é conquistado, precisamente, pela homogeneizadora depura-
ção posta em ação pelo meio musical: sua “linguagem” específica.
No segundo caso, enfrentando as mesmas inibições e
modas próprias do modo de produção capitalista, segue-se a
possibilidade completamente contraposta à anteriormente tra-
tada. Em consequência do isolamento individual, causado pela
objetividade radicalmente indeterminada em relação à interio-
ridade humana, a pessoa encontra-se afundada em sua esfera
privada-singular. Esse afundamento possibilita a liberação da
invasão súbita de uma classe de particularidades ligadas direta-
mente à personalidade privada-singular5.
As especificidades musicais, com a concentração do meio
homogêneo em uma intensidade sentida profundamente pela
interioridade humana, podem explicitar também uma liberação
em que se produz o contrário da catarse. Isto é, a objetivida-
de radicalmente indeterminada, vinculada profundamente ao
interior humano, por não possuir os elementos externos como
comparação, pode liberar uma produção que se contraponha à
realização da catarse.
Na esfera da música, ocorre o que dificilmente haverá nas
demais artes: uma reconciliação da individualidade particular
consigo mesma. O fato de ser radicalmente vinculada à interiori-
dade da pessoa, procurando minimizar os efeitos externos, a mú-
sica potencializa certo desenvolvimento da personalidade priva-
da-singular. O problema é que tal desenvolvimento pode ocorrer
sem a dialética da negação, conservação com superação. Segundo
o autor húngaro, esse processo dá-se pelos seguintes passos:
5 Em Santos Neto (2011), encontra-se a ilustração de um exemplo lapidar.

118
[...] por meio da sublimação musical formal – e somente formal – do
emotivo, por intermédio de uma eliminação de todo mundo externo
perturbador, por meio de uma sugestiva fixação e nivelamento das
emoções ao nível de uma baixa particularidade [singularidade priva-
da] e de termo médio (LUKÁCS, 1967b, p. 79-80).

A multiplicidade do meio musical, ou seja, o mundo mu-


sicalmente conformado, entretanto, possibilita uma determina-
da diversidade a seu meio homogêneo. Graças a uma determina-
da diversidade específica, o meio musical faz com que o vivente
usufrua intensa e extensamente esse mundo conformado.
Embora exista uma penetração muito profunda e ainda
que haja a mais enérgica liberação das emoções, graças a essa
mesma diversidade, tal mundo se ergue sempre como diverso do
Eu do receptor, como um mundo distinto dele, mas que lhe é
profundamente significativo. A mundanidade conformada este-
ticamente na música, para formar seu mundo para o interior da
pessoa, recebe seus conteúdos da totalidade social e das emoções
que nela se revelam.
Esse mundo, no entanto, apenas está garantido quando
tais emoções são humanamente essenciais, somente quando elas
são capazes de desdobrar, até as últimas consequências, as emo-
ções que elas mesmas desencadeiam. Apenas desse modo pode
se erguer o mundo em sentido artístico: a mundanidade musi-
calmente conformada.
Dessa dialética não se exclui a subjetividade do criador
artístico. Ao contrário, a ousadia, a originalidade, a habilidade
técnica, a capacidade de dar forma a um conteúdo vital, entre
outros elementos relativos à conformação da obra, nascem da
luta, nada pacífica, do artista para expressar adequadamente essa
ampla ordenação.
Necessário advertir que os modelos musicais que ficam
amarrados na singularidade do sujeito privado, limitados ao co-
tidiano, não têm como produzir um mundo esteticamente con-
formado ao meio homogêneo da música. Esses modelos – atu-

119
almente os predominantes – restringem-se a levar para o sujeito
vivente a interna insuficiência, a interna fragmentariedade, pro-
pondo ao receptor apenas uma conciliação aparente e formal.
A mimese dessa mimese, com efeito, está impedida de
criar um mundo próprio ao humano do sujeito vivente. Ela ape-
nas pode confundir a forma artístico-musical com o agradável,
jamais atingir a autenticidade exigida pela comoção catártica.
Nesse embate entre dar visibilidade ao que é mais pro-
fundo ao humano e/ou revelar a vulgaridade desenfreada que
tem amparo da moda capitalista, em que a música é ligada ex-
clusivamente ao processo do agradável, existem, felizmente, as
contradições das manifestações populares.
Algumas canções e danças populares tradicionais, com to-
das as suas limitações e lacunas, podem fazer florescer a forma
musical autêntica. Ao contrário dos modelos vinculados à moda
e incentivados pela economia capitalista do agradável, mesmo
expressando intensiva e extensivamente um mundo emocional
com decisivas limitações, as manifestações populares, para a ale-
gria da arte, guardam a possibilidade de trafegar o drama auten-
ticamente humano.
Essas manifestações guardam tal potência, visto que a
totalidade da realidade refigurada, apesar dos limites estreitos
impostos a determinadas comunidades pela evolução social –
sempre desigual –, lutam por superar problemas essenciais da
vida humana.
Por captar as tradições mais conservadas e, ao mesmo
tempo, as novidades mais ousadas de sua gente, algumas mani-
festações populares conseguem conformar o mundo apropriado
esteticamente pelo meio musical. Ao não abrir mão do processo
de dar forma ao conteúdo vital genuinamente ligado aos proble-
mas humanos, essa música, por meio da catarse, patenteia a au-
têntica particularidade e despreza, sem remorso, a epidérmica,
vulgar e grosseira singularidade privada que se esconde no juízo
de gosto da subjetividade singular-privada presa ao cotidiano.

120
Parece óbvio, mas vale insistir: a patente de autenticidade
é um problema peculiar a todo o campo estético, não sendo
possível uma linha divisória rigidamente precisa entre o que é
autêntico e o que não é em arte.
O agradável não pode ser desprezado no caso da dupli-
cação musical, não obstante a essa constatação, a música jamais
pode se resumir a entretenimento agradável.
Também resta evidente que, para a Estética de Lukács
(1967b, p. 82), há uma prioridade do conteúdo vital humano
sobre a forma:
[...] essa prioridade do conteúdo humano, essa determinação da
forma como expressão do conteúdo concreto de cada caso e de sua
particularidade, não é exclusiva da música, senão que esta [a música]
a compartilha com todas as demais artes (negrito nosso).

A música, por fim, assim como as outras artes, brota das


necessidades sociais. Para que essa demanda seja adequadamente
atendida, o meio homogêneo musical, por meio da subjetivida-
de artística, cria determinada mediação que possa contemplar
esses anseios.
As características específicas do meio homogêneo musical
não diferem das outras artes, sua função é depurar as impurezas
da cotidianidade e eliminar, o máximo possível, as heterogenei-
dades do pensamento da vida cotidiana.
A música, para se expressar enquanto tal, precisa duplicar
a mimese que recebe da realidade cotidiana. O objeto musical,
como visto, toca inicialmente o mais profundo interior da pes-
soa, mas não despreza a realidade concreta externa ao humano.
Por isso, com intuito de resolver a contradição entre ao interior
do humano e o mundo externo, o meio homogêneo musical
duplica o reflexo mimético:
• a primeira mimese se relaciona com a interioridade
da pessoa e
• a segunda está articulada, dialeticamente, ao mundo
externo.

121
As palavras de Lukács (1966a, p. 263) a seguir, elaboram
uma boa síntese, vamos a elas:
A natureza da objetividade determinada da música consiste precisa-
mente na superação inicial do meramente singular e da nua genera-
lidade; é um autêntico centro da verdadeira interioridade humana,
que abarcando o mundo, o reflete adequadamente e reage a ele de
modo exemplar. A objetividade indeterminada autêntica e realmente
adequada a ela, portanto, tende também a este centro: precisamente
porque a música põe em movimento a mais profunda interioridade
humana e a ordena em harmonia consigo mesma, a interioridade
despertada pelo meio homogêneo deve tender a unificação com a
objetividade externa indeterminada que a complementa, no sentido
daquele mesmo centro.

É essa a exatidão flexível do meio musical que marca sua


peculiaridade mais profunda.
Apesar da exatidão matemática que se verifica no meio
homogêneo musical, sua mimese apanha a substância mais ín-
tima e sutil do humano em uma relação de captação do objeto
especificamente da interioridade humana.
Explicando resumidamente: como a prioridade é do con-
teúdo sobre a forma, a conformação musical, por refigurar a
interioridade da substância humana sob uma objetividade radi-
calmente indeterminada, é dotada de uma especial sensibilidade
acerca do que é ou não autenticamente humano. Isso faz com
que a música reaja hipersensivelmente ao problema da auten-
ticidade. Numa expressão: a música chega primeiro! (SAN-
TOS, 2021).
Mas o que é peculiar à autenticidade artística musical?
A peculiaridade desse cosmos consiste em que se converte em um
‘mundo’ na medida da dissolução do mundo objetivo, ou, por as-
sim dizer: esse mundo objetivo, com todas as suas pegadas – as mais
finas iguais às mais brutas, as mais sublimes iguais às mais deforma-
das – encontra-se presente em todas as partes e em nenhuma. Esta
contradição não é nenhum “mistério” –, senão sempre expressão de
que a música encontrou a si mesma como mimese de uma mimese
(LUKÁCS, 1967b, p. 55).

122
O segundo caso de mimese duplicada tratado pelo autor é
o da arquitetura. Enquanto a música refigura inicialmente o inte-
rior do humano, inclinando-se para os elementos externos apenas
posteriormente, o meio homogêneo arquitetônico, primeiramen-
te, atende às condições objetivas impostas pela natureza, pelos
materiais concretos existentes na materialidade histórica, depois é
que se volta para conformar o espaço adequando-o à pessoa.

5.3) Duplicação mimética arquitetônica

O meio homogêneo da arquitetura necessita, para ter


condições de atender ao estético, adequar-se às condições de-
santropomórficas do desenvolvimento material da sociedade.
Esse atendimento é responsável pela primeira mimese. É desse
primeiro momento que se desprendem os reflexos estéticos, a
segunda mimese propriamente dita. Depois que a primeira mi-
mese, proveniente da classe do reflexo desantropomórfico, for
contemplada, é que se pode pensar na segunda mimese que, por
seu caráter, provem de uma reflexão antropomórfica. A refigura-
ção artística antropomórfica, portanto, ergue-se sobre a mimese
desantropomórfica.
Para se estudar a gênese da arquitetura é preciso atentar
para o fato de que a vivencialidade arquitetônica, como espaço
esteticamente conformado ao humano, apenas pode ser produ-
zida após um lento e contraditório desenvolvimento social.
O problema central para a investigação acerca do surgi-
mento da arquitetura, desse modo, tem que considerar o nasci-
mento relativamente tardio das construções com finalidade de
ordenar o espaço para abrigar pessoas. A existência e a eficácia
dessa classe de arte, incluindo a necessidade que a produz, são
dadas com a natureza social. Isso implica afirmar o seguinte: as
necessidades que dão luz à arquitetura não são ofertadas pela
natureza fisiológica e antropológica do sujeito humano. Elas

123
são, repetindo, exigências do desenvolvimento social que, por
força de sua contradição imanente, realiza-se com saltos, recuos
e avanços.
Para que não haja confusões, é preciso registrar o que
motiva os elementos extra-artísticos da arquitetura: seus fatos
externos.
• Se, por um lado, os motivos externos vêm da neces-
sidade de criação de um espaço de proteção contra as
forças naturais e contra os inimigos;
• Por outro, sua motivação tem raiz no adequado co-
nhecimento que possibilite a construção de uma es-
trutura que se destine a finalidades de segurança, pro-
teção etc.
Esses elementos externos, articulados dialeticamente en-
tre si, surgem antes que se possa erguer uma necessidade arqui-
tetônica com tendência estética. Em primeiro lugar, o sujeito
humano necessita das construções por motivos concretamente
objetivos, em seguida é que surgem as necessidades com tendên-
cia estética.
A arquitetura possui distinções em relação às demais artes.
O campo das construções, nas suas primeiras formações, não
carrega nenhuma evocação mimética com orientação estética.
As outras artes, desde o início, mudando o que tem que ser
mudado entre elas, já guardam, desde o nascimento, algum ele-
mento mimeticamente mágico orientado ao estético.
Como isso se explica?
O cotidiano, solo de onde germinam as objetivações su-
periores, carrega uma orientação antropomórfica: o espaço da
imediatez do pensamento da vida cotidiana orienta-se pela pro-
dução de reflexos antropomórficos. O caráter antropomorfiza-
dor da cotidianidade humana, reprisando, pode ser verificado
no fato de o eixo vertical do sistema de coordenadas de um es-
paço determinado, por meio da força da gravidade, apontar para
o centro da Terra.

124
Tudo isso confirma que a experiência imediata do sujeito
humano no cotidiano tem a tendência geocêntrica. Além disso,
como dito, a marcha ereta é fator decisivo para o processo de
hominização e a consequente humanização do ser social. Essa
conjunção de fatores, mesmo sem que o sujeito humano esteja
munido plena e conscientemente de um sistema de coordena-
das, dota-o das condições, cada vez mais diferenciadas, de lidar
com o mundo circundante. Ao relacionar-se de modo cada vez
mais consciente com o entorno, o ser social adquire garantias
acerca de seu movimento e do que, por exemplo, está à sua fren-
te, ao seu lado, atrás de si etc.
O resultado desse processo é que o ser humano vai conquis-
tando, cada vez mais, as condições de dominar o seu entorno, dado
que se põe como centro de um sistema de coordenadas: “o sistema
se desloca para cada homem com seu movimento local; precisa-
mente por isso, pode construir o fundamento da orientação prática
imediata no espaço circundante” (LUKÁCS, 1967b, p. 91).
Essa posição, incialmente ingênua, espontânea e imedia-
tamente antropomórfica, é ultrapassada por exigências das ne-
cessidades práticas cotidianas, mesmo as mais imediatas.
Para que esse processo tenha êxito, mesmo aparentando
redundância, é necessário repetir que a ação do trabalho tem
papel fundamental. A importância da divisão social e técnica
do trabalho, no desenvolvimento da arquitetura, fica evidente
quando se observa o seguinte: o desenvolvimento da sociedade é
o fator que impõe exigências geométrico-espaciais à pessoa hu-
mana. Quando o sujeito vivente se depara com tais imposições,
sente necessidade de produzir reflexos desantropomórficos
para atender a essas mesmas exigências.
No caso das construções, é importante destacar, mais uma
vez, a relação entre os reflexos antropomórficos e os desantropo-
móficos. Aquela classe de reflexo, como sabido, sai do sujeito e
se dirige ao objeto. Já os reflexos desantropomóficos, saem do
objeto e se direcionam ao sujeito.

125
É importante epigrafar essa relação, uma vez que o desan-
tropomorfismo da geometria se contrapõe à imagem estética-ar-
quitetônica do espaço, que é produzida antropomorficamente
pelo sujeito vivente. A reflexão geométrica, por sua força de inde-
pender da vontade humana, representa o reflexo desantropomór-
fico. Já o reflexo antropomórfico, motivado por sua obstinada for-
ça de comprovar a imanência humana, compõe a representação
consciente de desejar um espaço conformado à pessoa humana.
Independente de toda e qualquer positividade estética,
a conformação espacial da arquitetura é um espaço realmente
existente. Desse modo, ao se analisar a mimese arquitetônica
considerando o caráter real do espaço, torna-se possível obser-
var, assim como se verifica no caso da música, uma dupla mime-
se. Lukács (1967b, p. 112) explica essa duplicidade mimética do
meio arquitetônico do modo como se segue:
No primeiro grupo – e primário – a forma do reflexo, que refigura
leis naturais como as da rigidez e do peso em seu equilíbrio estático,
é por sua essência tão desantropomorfizadora e científica como a
do segundo, a que generaliza conceitualmente a missão social que
vai amadurecendo os indivíduos. Esse sistema duplo de reflexos
desantropomorfizadores da realidade converte-se, então, em obje-
to de uma segunda mimese que é antropomorfizadora e estética,
porém, não elimina a realidade do espaço, já presente objetivamente
ou projetada sobre a base da primeira mimese, senão que “somente”
transforma qualitativamente a conformação concreta desse espaço de
acordo com os princípios do estético (negritos nossos).

Assim, fica apresentada a estrutura específica da dupla


mimese arquitetônica. Mas, o específico do meio homogêneo
arquitetônico, é preciso advertir, distingue-se do meio homogê-
neo das demais artes.
A produção do mundo esteticamente conformado aos
homens e mulheres, nas demais artes, cobra forma por meio
da produção de um específico meio homogêneo. Por sua força
mimética, esse meio homogêneo cria uma refiguração adequada
para cada caso artístico dado. Isso faz com que a conformação
não seja a realidade concreta, e sim “apenas” sua refiguração.

126
A produção do meio homogêneo arquitetônico, para re-
alizar sua conformação, para consignar a refiguração, mantém,
ao contrário das outras artes, o elemento real como ele é concre-
tamente em si. Por isso, a arquitetura não produz negatividades.
Ela somente pode produzir positividades.
Para elaborar um resumo sobre a distinção do meio ho-
mogêneo arquitetônico em relação às demais artes, pode ser es-
crito o seguinte:
• Nas outras artes, o meio homogêneo produz uma re-
alidade apropriada ao humano, ou seja, refigura-se
uma conformação distinta do elemento real, a obra
acabada artisticamente não é a realidade, apenas uma
refiguração dela.
• Já na arquitetura, produz-se o meio homogêneo de
modo que o elemento real subsista, concomitante-
mente, à refiguração estética. Em uma expressão: a
edificação, mesmo que não ordene esteticamente o
espaço, continua sendo um prédio, uma casa, um
monumento etc., isto é, ainda que não traga orde-
namento estético-espacial, a construção arquitetônica
produz já sua utilidade. A arquitetura sempre terá um
caráter utilitário.
As demais artes, ao nascerem, já são conformadas para se
libertarem da utilidade imediata: nascem esteticamente.
Filosoficamente, Lukács (1967b) explica que a estrutu-
ra fundamental da arquitetura tem como princípio de mani-
festação a necessidade de produzir a duplicação mimética. O
reflexo desantropomorfizador é a primeira mimese. O reflexo
antropomórfico, propriamente estético, é a segunda mimese.
Este segundo reflexo mimético jamais pode suprimir o desan-
tropomorfismo das condições materiais. A função dessa segunda
mimese é, “apenas”, transformar as propriedades da experiência
espacial proporcionada pelos elementos desantropomórficos em
vivência espacial antropomorficamente estética.

127
Como se processa essa transformação?
Somente pode ocorrer a mutação da desantropomorfiza-
ção em antropomorfização, como demostrado, sob o efeito da
duplicação mimética. A dialética de tal mutação ocorre com a
articulação de dois fatores:
• primeiro, quando as propriedades materiais do meio
homogêneo arquitetônico se destacam da realidade
concreta e assumem um caráter emotivo e
• segundo, quando desaparecem as tendências inibido-
ras da vivência de que se trate.
Para completar o processo dialético da transformação ar-
tística arquitetônica, é preciso insistir que a realidade da expe-
riência de quem a sente permanece atada à utilidade originária
que deu vida à construção. Ou seja, o novo que surge por meio
do movimento de transformação da dupla mimese conserva a
utilidade espacial, ao mesmo tempo que, pelo processo dialético
de negação, supera (conservando) o útil na conformação de um
espaço ordenado ao humano.
Resta responder os motivos que impedem a arquitetura de
produzir negatividades.
Ao mesmo tempo em que o meio homogêneo arquitetô-
nico é criador de mundo, não se refere diretamente ao conjunto
de homens e mulheres. Explicando de outro modo: mesmo que
crie, para o sujeito humano, um mundo esteticamente apro-
priado ao entorno do vivente e seja adequado espacial e evo-
cadoramente ao convívio das pessoas, o meio homogêneo da
arquitetura não se direciona diretamente ao indivíduo. Como
explica o esteta magiar, o mundo conformado pela arquitetura
não pode, contudo, apresentar-se ao homem mesmo como objeto da
mimese. Precisamente, a produção de um mundo circundante real-
mente espacial e, ao mesmo tempo adequado ao homem, exclui uma
conformação artística desse tipo (LUKÁCS, 1967b, p. 117).

Isso se justifica, pois o sujeito humano real penetra nesse


mundo não com sua mimese, mas como ser real que possui uma
existência concreta.

128
Como exemplo, Lukács (1967b, p. 131) destaca o seguin-
te: “uma sociedade sem pintura ou sem tragédia é perfeitamente
imaginável, e até, várias vezes, existiu”; no entanto, não se pode
dizer, considerando certo nível da evolução social, que tenha
existido uma sociedade sem edificações. “Essa massiva contra-
dição da necessidade social não cristaliza, entretanto, os mo-
mentos da missão social que determina o caráter artístico da
arquitetura para bem e para mal” (p. 131). Essa contradição se
explica e logo se esclarece pelo fato de o caráter afirmativo – a
positividade arquitetônica – ser conseguido sem reservas e dire-
tamente das necessidades sociais.
A evolução social e técnica do trabalho, sob a luta nada
pacifica entre o antropomorfismo e a desantropomorfização,
cria uma antinomia para as formações da arquitetura.
Quando era de se esperar um alvorecer dessa arte, uma vez
que, em virtude da positividade arquitetônica, nunca houve
tanta necessidade de se abrigar pessoas em espaços públicos e/ou
privados, a decadência da missão social da arquitetura desembo-
ca em modismos ecléticos e vazios.
A moda do agradável, incentivada com muito apoio pelo
capitalismo, desemboca em gostos arquitetônicos cuja manifes-
tação principal são os caprichos pessoais. Esse fato, necessaria-
mente, aprisiona a personalidade privada do sujeito singular:
o apogeu do capitalismo não demonstra interesse algum que a
personalidade do sujeito singular seja soerguida. Embotados nas
ondas dos modismos de ocasião, a arquitetura acompanha, com
muita força, a decadência ideológica da burguesia e, mesmo pe-
rante suas contradições específicas, encontra seu beco sem saída.
Somam-se a esse conjunto problemático as construções
que buscam uma orientação acadêmica formal, com requintada
pompa eminentemente mercadológica. Tais criações, para dar
conta das exigências decadentistas do capitalismo, embarcam
no caminho do modismo burguês, alcançando, no máximo, as
modas ligadas ao agradável.

129
Mesmo que hajam contradições e que não se possa meca-
nizar o processo decadente da arquitetura, o fenômeno explica-
do nos parágrafos anteriores indica como a arquitetura da deca-
dência ideológica burguesa se obriga a aceitar, afirmar e afiançar
a desumanidade capitalista.
Resumindo: como o princípio que guia a proposta ar-
quitetônica da decadência precisa refigurar as necessidades do
capitalismo em sua versão desumana, a concepção espacial que
daí surge somente pode produzir a aniquilação da conformação
estético-arquitetônica.
No lugar de uma arquitetura que possa dar vasão aos an-
seios humanos de conformação espacial, lamentavelmente, er-
gue-se um espaço que não consegue sair de seu princípio desan-
tropomorfizador.
As criações arquitetônicas, em síntese, ficam presas na uti-
lidade; procuram, no entanto, atender à personalidade privada
singular do sujeito que pode pagar a construção de um prédio à
imagem e semelhança da moda de ocasião.
A consequência do cenário de decadência é que o pensa-
mento arquitetônico se limita, principalmente e quase que exclu-
sivamente, à parte não artística de seu movimento. Os elementos
científico-desantropomorfizadores existentes no reflexo da realida-
de, com isso, ganham a centralidade nas construções decadentistas.
O máximo que se consegue e em última instância, considerando a
contradição presente na realidade, é um resultado que concentre a
utilização do espaço operado sobre elementos ótimo-tecnológicos.
Como, nesse caso, há uma imediata identificação com o reflexo de-
santropomórfico, cria-se obstáculos à refiguração artística, quan-
do não se aniquila totalmente a conformação visual do espaço.
Na arquitetura contemporânea, sem a exclusão de exce-
ções, é comum a presença de edificações que abusam das formas
circulares, da utilização de vidros e da pomposidade das formas.
Todo um cabedal de novos materiais, usado sob o limite dos
fatores que são otimizados pelo uso de tecnologias, não garante

130
que a vivência humana do espaço proporcione satisfação estéti-
ca; no máximo de suas contradições, cria a possibilidade, quan-
do muito, da satisfação agradável.
O capitalismo imperialista, por sua natureza decadente,
cria muitos obstáculos ao desenvolvimento da conformação es-
pacial. Dentro da moda decadentista, apenas em situações ex-
cepcionais, o que Lukács (2010b) chama de ilhas de salvaguarda
da humanidade, há a possibilidade de que as criações da arqui-
tetura atinjam a refiguração estética.
Nesse cenário, sem excluir as contradições que possibilitam
as excepcionalidades, as habitações privadas erguem-se em aten-
dimento às necessidades tecnológico-comerciais que são guiadas,
por seu turno, pelo agradável gosto definido pela moda capitalista.
Sob essa moldura, os espaços internos das edificações
são projetados para atender finalidades prático-imediatas, cuja
orientação segue a última moda do gosto vigente que, por sua
orientação, subordina-se à ideologia decadente da burguesia.
Naturalmente, mas vale a pena registrar, o juízo de valor
decadente da burguesia de plantão muda na velocidade do gosto
de cada ocasião. Disso se desprende que os espaços externos e
internos, bem como suas mobílias e utensílios, têm muita difi-
culdade de assumir um caráter visual conformado ao humano.
Nessa estrutura decadente, o artesanato artístico, que te-
ria como tarefa a eleição, ordenação e instalação espacial dos
objetos em espaços internos, fica submetido aos gostos dos su-
jeitos privados-singulares. Obstaculizada a dialética de negar
conservando a personalidade privada singular, o desejo privado
de cada sujeito singular pode ser resumido no seguinte: “insta-
lar sua vida privada, individual, tão prática, útil, AGRADÁVEL
e comodamente como lhe seja possível” (LUKÁCS, 1967b, p.
154, caixa alta de nossa autoria)6.
6 Sobre a missão social da jardinagem, por fim, Lukács (1967b) considera o se-
guinte: a missão social da jardinagem se dissolve com muita força, principalmente
quando se considera a eficácia do princípio do estado de ânimo social em relação
à natureza. Após o século XIX, o ânimo social em relação ao meio natural trans-
forma-se completamente; este estado passa a assumir uma posição de passivida-

131
Com essa moldura delineada, resta lamentar que o resul-
tado da luta da arquitetura para se manter como um complexo
substantivo para vida humana, sua vitória ou derrota, não se
inclina para o estético.
• Se, por um lado, a resultante do processo arquitetôni-
co decadentista apresenta-se com finalidades puramen-
te práticas, com base em dados técnico-objetivistas;
• Por outro, a consequência é meramente pessoal-sub-
jetivista.
Mesmo que não se exclua a articulação entre esses dois
resultados, os objetos conseguidos convertem-se, portanto, em
membros de uma totalidade que tem fundamento orientado sob
as condições e costumes de determinada personalidade privada,
orientada, por sua ver, pela ideologia burguesa da decadência.
A unidade emocional que esse processo produz, ou seja,
o conteúdo emocional que assim se desdobra, advém de uma
singularidade pessoal privada que não encontra superação dialé-
tica. Desse modo, há sérios obstáculos para a irradiação da obje-
tivação estética criadora de mundo.
Apenas para relembrar, na conformação espacial estéti-
co-arquitetônica criadora de mundanidade, a missão social se
cumpre em decorrência da legalidade estrutural da mimese gera-
da pelo meio homogêneo da arquitetura. Isso acontece porque,
graças à duplicação mimética do meio homogêneo arquitetô-
nico, os momentos da singularidade privada são superados e
em seu lugar aparece, de modo dialeticamente conservado e em
forma mais pura e concreta possível, o que é comum histórico-
-socialmente ao humano.

de. Quando se põe em plano secundário as determinações objetivas do jardim,


substituindo-a por uma tonalidade direta e puramente subjetiva, força-se que as
categorias estéticas presentes contraditoriamente na jardinagem se autodissolvam,
convertendo-se, por sua vez, em fundamento do estado de ânimo que se erige após
o início da decadência ideológica burguesa. Sobre a decadência ideológica burgue-
sa, consultar LUKÁCS, Georg. Marx e o problema da decadência ideológica. In:
______. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010a.

132
Além da música e da arquitetura (e da jardinagem), o
meio homogêneo do cinema também duplica a mimese. Vamos
ao estudo da duplicação mimética cinemtográfica.

5.4) Duplicação mimética cinematográfica

Para Lukács (1967b), o cinema é uma espécie de atmos-


fera psíquica em movimento. O filme, como a música e a ar-
quitetura (e a jardinagem), é fruto de uma classe de reflexo que
duplica a mimese. Ele possui, contudo, assim como os outros
casos de mimese duplicada, elementos que lhe garantem deter-
minadas particularidades.
Isso impõe à investigação cinematográfica atentar para al-
guns dos principais elementos que conferem ao meio homogê-
neo fílmico suas decisivas especificidades. Para o esteta magiar,
cinco principais pontos devem ser observados no estudo do ci-
nema. São eles:
1) relação com o desenvolvimento da técnica;
2) autenticidade cinematográfica;
3) tendência a minimizar a objetividade indeterminada:
labilidade e elasticidade;
4) atmosfera psíquica; e
5) “linguagem” cinematográfica, seu meio homogêneo.
Para tratar tais elementos, é necessário advertir, primei-
ramente, que a concepção estético-cinematográfica de Lukács
(1966a/b; 1967a/b) não se resume a esses cinco pontos. Em se-
gundo lugar, é preciso considerar que a divisão em cinco princi-
pais pontos não implica dizer que seu tratamento seja mecânico.
É necessário considerar a constante e ineliminável dialética entre
os elementos em análise, dentre outros aqui não destacados.
O tratamento da questão do desenvolvimento da técni-
ca cinematográfica permite relembrar que o filme, como a ar-
quitetura, depende, sobremaneira, do desenvolvimento social e

133
técnico do trabalho. Impossível pensar em arte cinematográfica
e em construções arquitetônicas, cada uma a seu modo, sem o
desenvolvimento das forças produtivas.
Mas há também distanciamentos. A duplicação mimética
da arquitetura, como visto, constrói-se sobre uma realidade con-
creta, cuja passagem ao estético não afeta o ser concreto da cons-
trução real: o efeito evocativo-estético arquitetônico processa-se
na segunda mimese. O produto estético da técnica que possibilita
o desenvolvimento do cinema é, desde o início, uma refiguração
da realidade, nunca o real em sua concretude desantropomórfica.
Nas construções, a duplicação mimética preserva o fato originário,
pois mesmo que o efeito visual possa subsumir o meramente útil,
a utilidade sempre estará em primeiro plano. A duplicação mimé-
tica do meio cinematográfico, por sua vez, reflete um dado unitário
da realidade, cuja refiguração anula qualquer rastro de sua gênese
(SANTOS, 2021, p. 272).

A natureza estética do meio homogêneo cinematográfico


duplica a mimese. Tal duplicação possibilita a superação da de-
santropomorfização presente na fotografia.7
Com a superação do elemento desantropomórfico, há
uma maior proximidade entre o refigurado e a visualidade com-
partilhada pelos viventes na cotidianidade. Os efeitos que daqui
se podem desencadear seriam impossíveis sem um determina-
do desenvolvimento da técnica, cuja altura tecnológica apenas
pode ser alcançada sobre a base de um capitalismo desenvolvido.
No cinema, mais do que em qualquer outra arte – inclusive a
arquitetura –, a influência do desenvolvimento das forças pro-
dutivas sobre a refiguração artística é bem mais patente.
Dessa constatação, desprendem-se diversos desdobramen-
tos para o desenvolvimento do cinema como arte substantiva. O
primeiro e mais importante é que na gênese dessa arte se mani-
festa o seu caráter capitalista, ou seja, o cinema, desde o início,
7 O caso da fotografia artística, por sua força refigurativa, tem por obrigação
estética antropomorfizar. Não há espaço neste livro, lamentavelmente, para debater
a fotografia artística.

134
intelectual e tecnicamente, é um produto do capitalismo e isso
tem como consequência “que toda a produção cinematográfica,
[não sem contradições], está subordinada aos interesses capita-
listas” (LUKÁCS, 2013, p. 85)8.
O mais importante para o caso do cinema é destacar que
a segunda mimese, distinta da primeira, responsabiliza-se por
realizar uma transformação qualitativa9.
Com o aclaramento da dependência da produção cinema-
tográfica em relação ao desenvolvimento da técnica, já podemos
tocar no segundo aspecto listado por Lukács como basilar para
se compreender o filme como arte substantiva: a autenticidade
cinematográfica. Para iniciar o desenvolvimento dessa questão,
é preciso considerar que a autenticidade do filme se relaciona
diretamente com a capacidade de seu meio homogêneo. A classe
de reflexo produzido pelo meio homogêneo fílmico, por refletir
simultaneamente o tempo e o espaço, e por condensar elemen-
tos visuais e sonoros, angaria grande proximidade ao movimen-
to da vida cotidiana. Carrega, para usarmos outros termos, uma
enorme possibilidade de autenticidade.
A proximidade do cinema ao cotidiano, portanto, con-
fere-lhe enorme potência para atingir a autenticidade. Isso nos
impõe a necessidade de diferenciar, com Lukács (1966b), a arte
autêntica do sucedâneo estético. Para o autor, a principal dis-
tinção está na força evocadora presente nas obras que logram
a autenticidade estética. Isso ocorre, como desenvolvido pelo
húngaro, pois a arte autêntica não se compõe na articulação abs-
trata de elementos corretos e indiferentes ao drama humano.
O artisticamente autêntico é
[...] algo que desperta profundas emoções, as quais – mediadas por
essenciais relações entre o homem e a sociedade, a sociedade e a na-
tureza – sacodem e despertam o centro do ser-homem pelos mais
diversos caminhos, de modos infinitamente distintos (LUKÁCS,
1966b, p. 262).
8 Utilizamos a tradução de Lívia Cotrim. In: CHAGAS, Rodrigo (Org.). Cinema,
Educação & Arte. Boa Vista: editora da UFRR, 2013, p. 83- 110.
9 Em Santos (2021), tratamos com mais elementos a questão do cinema em Lukács.

135
O reflexo captado pela fotografia fílmica pertence direta-
mente à realidade. Essa classe de reflexo, por ser a negação que
conserva e supera a reflexão vinda da fotográfica ótico-mecâni-
ca, não é a realidade concretamente dada, senão sua conforma-
ção antropomórfica.
O que o cinema expõe, com efeito, não é o real concreta-
mente, apenas a sua conformação fílmica.
A foto original, captada inicialmente de um modo meca-
nicamente fiel à realidade, é desantropomórfica. A fotografia ci-
nematográfica, sob ação do seu meio homogêneo (“linguagem”
cinematográfica), fixa o fotografado, conserva-o, porém, por
meio da duplicação mimética, submete a foto inicial ao proces-
so antropomórfico de negação e sua consequente conservação
dialética na superação10. O resultado desse processo é a possibili-
dade da autenticidade artística, pois o cinema guarda a potência
de estar bem aproximado à realidade.
Isso implica dizer, como adiantado, que os cinco pontos
pelos quais o esteta estrutura a arte cinematográfica não podem
ser estudados separadamente.
Eles estão articulados em uma constante dialética. Porém,
para que possamos avançar sobre essa articulação dialética, e as-
sim chegar ao que o autor denomina de atmosfera psíquica; re-
lembremos que o meio homogêneo do cinema duplica a mimese.
Em suma: a segunda mimese, por ter caráter antropo-
mórfico, submete o material que recebe do registro mecânico-ó-
tico (primeira mimese) ao processo dialético de negar conser-
vando para superar.
10 O presente livro não se propõe a aprofundar os elementos da dialética hege-
liana. Isso demandaria um caminhar fora dos propósitos aqui traçados. Para não
deixar sem ao menos uma apresentação, ilustramos as palavras de Leandro Konder
(2008) sobre o processo dialético de negação, conservação e superação. Para o au-
tor, tal processo, visto no imediato, parece obscuro; porém, a confusão se desfaz ao
se observar o ato do trabalho humano: “a matéria-prima é ‘negada’ (quer dizer, é
destruída em sua forma natural), mas ao mesmo tempo é ‘conservada’ (quer dizer, é
aproveitada) e assume uma forma nova, modificada, correspondente aos objetivos
humanos (quer dizer, é ‘elevada’ em seu valor). E o que se vê, por exemplo, no uso
do trigo para o fabrico do pão: o trigo é triturado, transformado em pasta, porém
não desaparece de todo, passa a fazer parte do pão, que vai ao forno e - depois de
assado - se torna humanamente comestível.” (KONDER, 2008, p. 25-6).

136
O sujeito receptor, submetido ao efeito proporcionado
pela fotografia fílmica – já antropomorfizada – se vê diante de
algo fiel à realidade. Esse efeito desencadeia emoções de diversas
ordens. Esse fenômeno, possível ao cinema, é denominado por
Lukács de atmosfera psíquica.
O meio homogêneo do cinema, que é a “linguagem” es-
pecificamente cinematográfica, para proporcionar a potência da
autenticidade, precisa, no mesmo movimento, produzir a ten-
dência a minimizar a objetividade indeterminada.
Portanto, ao estudarmos o desenvolvimento da técni-
ca, primeiro elemento pelo qual Lukács constrói a sustentação
estética do filme, acabamos por tocar na autenticidade cine-
matográfica, na atmosfera psíquica e no meio homogêneo: a
“linguagem” específica do cinema.
Agora, para que possamos dar maior clareza a esses con-
ceitos, sobretudo à atmosfera psíquica, que é o ambiente criado
cinematograficamente para o florescimento do filme como arte
substantiva, precisamos estudar a tendência cinematográfica de
minimizar a objetividade indeterminada.
É uma propriedade do cinema a tendência à minimização
da objetividade indeterminada. Como chama a atenção Lukács
(2013, p. 95): “A autenticidade do ser-fotografado [no filme]
cria um meio homogêneo que aproxima o ‘mundo’ configurado
ao do cotidiano muito mais intensamente do que é possível e
admissível nas outras artes”.
A produção de tal tendência apenas é possível por que o
meio homogêneo do cinema é, ao mesmo tempo, lábil e elás-
tico. A fidelidade fílmica, articulada ao acompanhamento do
decurso temporal, é o que produz a tendência de minimização à
objetividade indeterminada.
Mas como o cinema logra esse processo tendencial?
O filme consegue minimizar a objetividade indetermina-
da em decorrências de sua estrutura estético-evocativa. Expli-
cando de outro modo: a visualidade cinematográfica articulada

137
à temporalidade, apoiada, por sua natureza estética, em uma
fotografia manifestadamente próxima à vida real, deixa o meio
homogêneo do cinema em condições de minimizar a objetivi-
dade indeterminada.
Para que possamos entender que a objetividade indeter-
minada é o artifício pelo qual o cinema sacode catarticamente o
receptor, não podemos esquecer o seguinte:
• A objetividade indeterminada é uma característica do
campo artístico, presente, portanto, nas demais artes;
• No cinema, há a necessidade de minimizar seus efeitos.
Resta questionar o que significa a proximidade entre o
cinema e a vida. Como responde Lukács (2013, p. 91):
significa, pois, uma tendência a uma vida dada, tanto quanto possí-
vel, de modo imediatamente transparente e panorâmico, uma exi-
gência sempre presente para o homem do cotidiano em relação ao
seu entorno.

Isso implica na seguinte conclusão: a minimização da


objetividade indeterminada, motivada pela proximidade que o
filme guarda com a vida, determina os elementos decisivos do
meio homogêneo cinematográfico.
A sustentação das questões decisivas, do reflexo fílmico,
como adiantado, são suportadas pela labilidade e pela elastici-
dade. Portanto, necessitamos entende-las melhor. Como ilustra
Lukács (2013, p. 91, negritos nossos):
a elasticidade do meio homogêneo é tão acentuada que muitas vezes
transpassa para uma elevada labilidade, já porque a segunda ime-
diaticidade da configuração artística deve se reaproximar tanto da
imediaticidade da vida. O lado subjetivo dessa constelação correspon-
de exatamente à sua essência objetiva: a transformação do homem
inteiro [ser humano inteiro] do cotidiano no homem inteiramente
[ser inteiramente humano], orientado ao próprio mundo do meio
homogêneo, é aqui muito menos brusca, se mostra menos como um
salto, do que em todas as outras artes.

138
Por ser elástica por um lado e lábil por outro, o reflexo fíl-
mico conquista uma multiplicidade ilimitada de possibilidades.
Exatamente essa peculiaridade, associada a uma sensibilíssima proxi-
midade à vida, confere ao meio do cinema a possibilidade – somente
a possibilidade – de ser uma arte popular autêntica e de grande di-
mensão. Do mesmo modo que possui ilimitadas possibilidades de se
tornar um veículo autenticamente artístico das aspirações das massas
trabalhadoras, essa mesma ilimitada possibilidade condiciona o seu
maior obstáculo (SANTOS, 2021, p. 279).

Mas o que significa um meio homogêneo lábil e elástico?


• Em relação à labilidade, significa dizer que a transi-
ção entre o ser humano inteiro e o ser inteiramente
humano é mais lisa, ou seja, ocorre de modo que a
passagem de um estado a outro é menos perceptível a
quem a sente. No cinema, a passagem do ser humano
inteiro ao ser inteiramente humano dá-se com mais
facilidade que nas outras conformações artísticas.
• Já em referência à elasticidade, pode-se dizer que é
a capacidade de fazer com que o ser humano inteiro
transite, relativamente completo, ao patamar ser in-
teiramente humano.
O abandono da imediaticidade da vida cotidiana pos-
sibilita o salto do ser humano inteiro para o ser inteiramente
humano. Quando há essa ultrapassagem, ainda que momenta-
neamente, a natureza elástica desse tráfego leva consigo a po-
tência de conformar o cotidiano de modo que ele se encha de
sensibilidade poética.
A associação do caráter lábil com a natureza elástica no
cinema, portanto, faz com que o filme tenha a possibilidade de
vir a ser uma arte autêntica e, concomitantemente, de grande
força popular. Isso quer dizer o seguinte: o cinema “[...] pode
se tornar uma expressão arrebatadora e compreensível para as
grandes massas de sentimentos populares profundos e univer-
sais” (LUKÁCS, 2013, p. 96).

139
Mas não sem contradições!
O mesmo caráter que possibilita ao meio homogêneo fíl-
mico trafegar a mais profunda poesia, potencializa também a
conformação de vulgaridades sem freios.
A multiplicidade sem limites do cinema, seu caráter lábil
e elástico, acaba por possibilitar que se satisfaça as necessidades
mais privadas do receptor singular.
Disso se depreende que o cinema tem condições de tra-
fegar o mais poético, engraçado, sensível e triste acontecimento
da vida cotidiana, ao mesmo tempo em que possibilita a refigu-
ração do grotesco, vulgar, cafona, violento, sádico, sangrento,
depressivo, entre outros elementos que conservam o sujeito sin-
gular preso em suas idiossincrasias privadas.
A arte cinematográfica, para realizar seu amplo e ilimita-
do espaço de possibilidades, precisa minimizar a objetividade
indeterminada, ou seja, reduzir, por meio da refiguração, a dis-
tância entre a imagem em movimento e a vida objetiva. Se ela
renunciar à minimização da objetividade indeterminada, não
conseguirá, com a mesma força, caracterizar o sujeito vivente
determinado por uma situação humanamente dada.
O cinema, desse modo, é a expressão sensível que possui o
maior espaço de manobra. E isso se justifica, uma vez que a con-
formação cinematográfica, por ser a arte temporal da visualida-
de, possibilita que haja um acompanhamento móvel de natureza
auditiva: a junção, na atmosfera psíquica, do tempo e do espaço.
Em contrapartida, o filme não consegue, como por exem-
plo a literatura, a música e a pintura, conformar a vida espiritual
do sujeito humano em sua mais profunda interioridade.
Essas artes, cada uma a sua maneira, conformam o mate-
rial vital sob a ordenação da objetividade indeterminada. Não
precisam, necessariamente, minimizá-la. Tal grupo, diferente-
mente do cinema, colhe um dado da realidade e, por intermédio
do meio homogêneo de que se trate, refigura a objetividade real
expondo-a como algo que não é a realidade, senão sua confor-
mação estética.

140
Os argumentos acima são suficientes para que possamos
dar um melhor tratamento ao que o marxista húngaro chama
de veículo capital da receptividade cinematográfica: a tonalidade
anímica, ou atmosfera psíquica.
O que é, então, a atmosférica psíquica?
O esteta de Budapeste responde o seguinte: a tomada cine-
matográfica, por exemplo, grandes planos, enquadramento, luz,
fundo, trabalho de construção de personagem etc, ou seja, o todo
da montagem do filme, apenas alcança o patamar de conforma-
ção estética quando a atmosfera criada logra emocionar os recep-
tores. E tal emoção somente tem êxito quando atinge o âmago
anímico do humano, isto é, quando toca nos meandros do psi-
quismo da pessoa. Por isso, Lukács chama de atmosfera psíquica.
Para Lukács (2013), é por meio da transição de uma at-
mosfera a outra, por intermédio dos contrastes atmosféricos,
que a montagem conduz “[...] os receptores de uma atmosfera
psíquica para outra no interior da atmosfera em última instân-
cia unitária do todo” (LUKÁCS, 2013, p. 103). Não podemos
deixar de considerar que o corte, o ritmo, a velocidade dos mo-
vimentos, entre outros recursos cinematográficos, são composi-
ções da totalidade da atmosfera anímica.
O nexo principal da recepção fílmica, seu veículo de
transporte do movimento cinematográfico, é, para que não pai-
re dúvidas, a totalidade concentrada na atmosférica psíquica.
Essa atmosfera anímica detém o particular caráter de despertar
no receptor uma autêntica representação fotográfica. É aqui que
o cinema encontra suas limitações e, ao mesmo tempo, amplas
possibilidades.
Como anotado, essa área de manobra do meio homogê-
neo fílmico é ausente nas demais artes. Nas outras formas artís-
ticas, a atmosfera produzida é “apenas” um momento, jamais o
posto predominante. No cinema, a atmosfera psíquica, irradia-
da pela autenticidade do ser dos objetos refigurados, satisfaz, em
primeiro termo, o que é exigido esteticamente. Como ilustra o

141
autor: “O receptor vivencia, portanto, o filme como a mediação
de uma realidade que o impressiona como realidade imediata da
vida” (LUKÁCS, 2013, p. 104).
Esse conjunto de argumentos é que garante à atmosfera
psíquica o seguinte papel: ser a categoria ativa universal domi-
nante que atua como veículo do meio homogêneo fílmico.
Em Santos (2021, p. 284) escrevemos a seguinte adver-
tência sobre o meio homogêneo cinematográfico:
Ao mesmo tempo que a fotografia, base artística do filme, pode
atingir a evocação estética presente no campo da arte, aproxima-se
perigosamente do naturalismo mais rasteiro e desprovido de força
artística. Isso se justifica, uma vez que o meio imediato em que se
desenvolve o filme é essencialmente uma informação que procura
exatidão em relação à realidade (SANTOS, 2021, p. 284).

Pois, como interpreta Lukács (2103, p. 106), no filme,


“de fato, o relato, o documento, o doutrinário, o jornalismo
podem transitar para a configuração artística tão discretamente,
tão imperceptivelmente, que parece impossível identificar uma
fronteira” (LUKÁCS, 2103, p. 106)11.

11 Elandia Duarte (2019) desenvolveu interessante dissertação sobre algumas


das mais importantes categorias utilizadas por Lukács para analisar o cinema.
Recomendamos a leitura.

142
Capítulo 6)

Abreviações sobre ética e vanguarda artística

6.1) Notas acerca da ética na Grande Estética de Lukács

A esfera estética, que abarca a reflexão artística, precisa,


como já indicava o jovem Lukács, diferenciar-se da ética, dado
que o complexo ético possui caráter ontológico distinto do da
estética (VEDDA, 2015).
Miguel Vedda elabora essa reflexão com base no seguinte
fato: o pensamento lógico é distinto da ética bem como da esté-
tica. É o cotidiano que possibilita diferenciar a estética, por um
lado, da ética e, por outro, da reflexão lógica.
Como explica esse autor, nem a ética, tampouco a lógica,
conhecem uma proximidade plena entre o objeto e o sujeito. Na
rigorosa pureza lógica, inexiste a presença de um sujeito, dado
que a contemplação teórica supõe que haja a emancipação do
objeto do conhecimento em relação a toda e quaisquer pertur-
bações que possam vir das intervenções de uma dada subjetivi-
dade. O pensamento lógico, para existir como tal em seu rigor
absoluto, necessita livrar-se das interferências subjetivas.
Como adiantam as pesquisas juvenis de Lukács (2015),
o conceito de liberdade, postulado simultâneo e indissociável
da concepção de um sujeito ético, demarca a superação de todo
caráter de objeto na personalidade ética. Em consequência dessa
estrutura da natureza da ética, como conclui o esteta magiar, o
objeto converter-se em personalidade, em sujeito. Como reper-
cussão dessa conversão, o ser social não pode ser tratado como
um simples objeto, pois cada pessoa, a partir do ponto de vista
dos demais e de sua própria perspectiva, tem a possibilidade e o

143
dever de incorporar a máxima da ética em seus desejos e vonta-
des. A esfera ética, portanto, motivada por sua natureza, procu-
ra produzir a “anulação do objeto” (VEDDA, 2015).
A estética busca estabelecer o equilíbrio entre o objeto e
o sujeito. Esta é sua peculiaridade. A esfera do estético procura
salvar o ser social do abismo existente entre a ideia e a existência.
1. Por uma parte, na lógica, o conhecimento correto do
objeto pressupõe a eliminação do infinito e contínuo
processo de aproximação ao objeto.
2. Na ética, por outra parte, é necessário que o ser social
incorpore uma série também infinita de ações isoladas
que, em cada uma delas, está obrigado a incorporar a
máxima ética na sua vontade individual.
Esse hiato sem fim, entre cada ação pessoal e o ideal má-
ximo da ética, torna-se infinito (VEDDA, 2015).
Não se pode deixar de registrar, com esse autor, que tanto a
lógica como a ética exigem que cada ato individual se insira den-
tro da amplitude do conhecimento científico. Haja vista que todo
juízo verdadeiro, implicitamente, carrega a exigência da inclusão
do objeto na totalidade infinita. O objeto alcançado pelo sujeito,
ao orientar o comportamento cognoscitivo de quem o alcança,
para ser verdadeiro, precisa ser a soma de todas as declarações
verídicas, se não fica fora do alcance do sujeito (VEDDA, 2015).
O comportamento estético é distinto, pois nessa esfera
não pode existir nenhum abismo entre o objeto e o sujeito: entre
a ideia e sua realização.
Na experiência estética, o sujeito encontra sua humanida-
de orientada diretamente à experiência da sua autêntica vivência,
dado que o objeto é constituído em conformidade com o sujeito.
O objeto e seu sujeito, construídos um para o outro – ain-
da que distinto da identidade hegeliana Sujeito-Objeto –, guar-
dam uma especial classe de identidade. Enquanto este se entrega
completamente à contemplação daquele, o sujeito contempla-
dor se fecha sobre si mesmo registrando sua autoconsciência.

144
E como isso pode ser demostrado?
Respondemos com uma palavra: catarse.
Pela catarse, o sujeito tem a prova e a contraprova do po-
der arrebatador da arte.
O momento catártico, ainda que possua a infinidade de
alguns instantes, permite ao vivente fechar-se em si internamen-
te, alçar-se ao posto de ser inteiramente humano. Nessa oclusão,
o sujeito humano vai até seu núcleo: acessa sua mais íntima nu-
clearidade.
Como interpreta Vedda (2015), esse fechamento concebe
à obra de arte seu caráter insular. Ou seja, permite que o produ-
to artístico, frente à realidade vivencial, adquira uma determina-
da autonomia, ainda que relativa em relação ao mundo.
É desse modo que a independência relativa da arte, sem-
pre aproximada à vida cotidiana, permite que a criação artística
apresente ao sujeito humano, por meio da catarse, uma alterna-
tiva perante os acontecimentos do mundo concreto.
Apresentar alternativa não é a mesma coisa que garantir
que haverá transformação no Depois do efeito catártico. Isto
é, a revelação artística não garante que o sujeito, ao voltar do
patamar de ser inteiramente humano à condição de ser humano
inteiro, terá os elementos para mudar a realidade que o cerca.
Como já sabemos, o cotidiano é o começo e o fim das
aspirações humanas superiores. Isso ajuda a explicar que é sobre
a necessidade de superação da aparência fenomênica da vida co-
tidiana que se cria um sujeito estético. Por sobre a divisão social
e técnica do trabalho, vale relembrar, produz-se um objeto este-
ticamente apropriado à necessidade humana.
Para eliminar de vez as dúvidas entre a vivência estética e
a reflexão lógica, usemos novamente as experiências cotidianas
como balizamento para distanciar a estética do pensamento lógico.
Essa baliza, segundo a interpretação de Miguel Vedda
(2015), possibilita aclarar dois importantes pontos:

145
1. a estética, em relação à esfera cotidiana, produz um
sujeito que, garantindo sua integralidade, encontra-se
liberado da dispersão característica da forma de pen-
sar e agir da cotidianidade, grávida, por sua natureza,
de heterogeneidades.
2. já em referência ao pensamento lógico, o ser estético
inclina-se à sua própria integralidade, pois se afasta
do rigor abstrato-teórico. Haja vista que, para o rigor
do pensamento lógico, o sujeito não pode permitir
que suas vontades e desejos interfiram no que se busca
compreender logicamente.
Como nosso interesse maior é a vivência estética, a relação
entre ser humano inteiro e ser inteiramente humano é utilizada,
mais uma vez, como aporte do efeito causado pela catarse.
O ser humano inteiro, relembrando, é o estado em que
o sujeito vivente está imerso em sua vida cotidiana. Já o ser in-
teiramente humano, como propriedade do campo estético, é o
estágio em que o vivente se desliga do meramente empírico e
acessa, mesmo que por “infinitos momentos”1, à plenitude hu-
mana. Nesse estágio, como interpreta Vedda (2015), para que
o sujeito atinja a pletora permitida pela altura da obra de arte,
precisa realizar um ato de despojamento: separar de si tudo que
não corresponde às exigências relativas às experiências estéticas.
Com o aclaramento da distância que separa a reflexão ló-
gica da vivência estética, demonstrado por meio da relação ser
humano inteiro-ser inteiramente humano, sob a baliza do pen-
samento cotidiano, podemos voltar à questão da ética.
Para que possamos agora melhor problematizar a ética em
relação a seus distanciamentos e aproximações à esfera estética,
precisamos antes definir como se apresenta o embaralhamento
das duas esferas.
A confusão que cria identidade entre a ética e a estética
dá-se motivada pela opção idealista que supervaloriza a forma
1 Lembrar do “infinito enquanto dure” de Vinicius de Moraes (1960).

146
em detrimento do conteúdo. Isso produz dois problemas distin-
tos, mas que se abraçam:
1. por um lado, há a separação rígida e sem mediações
entre forma e conteúdo, ou seja, a relação é vista como
se houvesse dois polos distintos; e
2. por outro, a relação forma-conteúdo é entendida
como se funcionasse em uma completa identidade.
É como, amiudando, se luz e sombras, espírito e matéria,
bem e mal, beleza e feiura, entre outros pares, fossem analisados
metafisicamente separados e, também por isso, acabassem idea-
listicamente atados sem mediação alguma.
O que se vê na realidade concreta é um certo parentesco
estrutural entre a ética e a estética. Se a estética cria uma forma
para um conteúdo determinado, a ética, por sua estruturação
interna, assume a tendência de convergir a forma do conteúdo.2
Mas isso não quer dizer que ética e estética sejam iguais!
Há de se investigar, com cuidado, como cada esfera fun-
ciona em relação ao par relacional forma-conteúdo. Porém, há
de se averiguar também como cada complexo funciona em refe-
rência ao par essência-aparência.
Essa problemática tem raízes históricas na Antiguidade
Clássica. Sob o modo de produção escravista, o idealismo antigo
– sobretudo em Platão – considerava que beleza e bondade an-
davam de mãos dadas. Isso, entretanto, não pode ser recortado e
colado mecanicamente ao contexto dos modos de produção que
sucederam o escravismo. Nem mesmo na Antiguidade Clássi-
ca esse casamento viveu sem contestação. Aristóteles, como co-
menta Lukács (1966a/b; 1967a/b), foi o primeiro a perceber
que eventos causadores de tristeza existentes na vida prática,
presentes na comedia, por exemplo, podem despertar riso.
2 Não há como aprofundar a relação entre a ética e a estética na presente
exposição. A relação apresenta contornos, pela natureza dos dois complexos, que,
por um lado há aproximação e por outro, distanciamentos. Indicamos, para os
estudantes que necessitarem de maiores aprofundamentos, o livro de Santos Neto
(2013). Verificar também o que publicamos em Santos (2021).

147
Usemos o exemplo da beleza como demonstração do me-
canicismo vulgar e idealista aplicado corriqueiramente à análise
dos pares relacionais forma-conteúdo e essência-aparência.
Para que possamos nos desligar do conceito idealista e
mecânico de belo, podemos afiançar a existência da beleza fora
da arte. Isso se justifica, pois há diferença entre o belo artístico e
a beleza que se manifesta além da esfera estética. Uma fotografia
familiar, por exemplo, pode não atender a nenhuma exigência
artística, senão registrar o afeto de um momento que a família
considere pleno de beleza.
O problema, insistimos, está na rigidez metafísica com que
a problemática é analisada. Isso traz como consequência o em-
pobrecimento da análise sobre a relação entre a ética e a estética.
Enquanto todo conteúdo ético tem que pretender uma
positividade, a refiguração estética, por sua natureza de refletir
o cotidiano, oscila entre o bem e o mal. Ou seja, a ética não
admite conciliação com a maldade humana; já a estética, por ne-
cessidade de conformar o drama humano, precisa refigurar tam-
bém o que se convencionou chamar historicamente de maldade.
Ética e estética, portanto, separam-se em relação à questão
do bem e do mal. Aquela não pode aspirar uma negatividade,
esta, por seu caráter de dar vasão ao drama da vida, não pode
deixar de refigurar a maldade do mundo. As duas, no entanto,
não apresentam apenas desencontros.
Em relação ao par forma-conteúdo, a ética é orientada
para a essência de conteúdo, o que secundariza a aparência da
forma. A estética, para lograr a condição de conformar realisti-
camente seu material vital, manifesta-se na coincidência entre
essência e aparência. Na arte, relembrando, a forma segue um
conteúdo determinado. Na ética, repetindo, há a convergência
tendencial entre forma e conteúdo.
Além do parentesco estrutural em relação ao par forma-con-
teúdo, uma outra aproximação entre os dois complexos pode ser
exposta em referência à experiência cotidiana dos sujeitos pedestres.

148
Os viventes que agem na imersão da práxis cotidiana mos-
tram sempre um determinado esforço para superar as corres-
pondentes limitações objetivo-subjetivas da evolução e da au-
toconsumação humana. Isso ocorre especialmente nas formas
superiores de consciência, e com mais frequência na ética do
que na estética.
Na realidade objetiva, explicando melhor, tais limites apa-
recem na forma absoluta de fantasias transcendentais – ainda
não conscientes – e na limitação da mera privacidade do subje-
tivo singular. Isto é, o que ainda não é conhecido pelo mundo
desperta certa fantasia que tem o humano como centro. A ética
e a estética, cada uma à sua maneira, produzem a tendência de
que os seres humanos pedestres, com os pés no chão, esforçam-
-se para que a humanidade ultrapasse tais limites, descubra o
ainda não descoberto, ainda não conhecido.
Essa convergência ao humano, aos problemas da huma-
nidade, é mais um ponto de coincidência entre ética e estética.
Haja vista que ambas aspiram à mundanidade.
O trabalho não deixa dúvidas que o decisivo campo de
combate entre a cismundanidade e a transmundanidade é a éti-
ca. Apenas aqui o ser social tem a possibilidade plena de conec-
tar o seu individual ao genérico.
Quem trabalha pode dizer qualquer coisa sobre o fruto de
seu trabalho, pode sentir isto ou aquilo sobre o que faz em sua
atividade laborativa. A dialética objetiva do processo de traba-
lho, não obstante aos pensamentos e sentimentos do produ-
tor, inevitavelmente, submete os resultados do trabalho a uma
conexão imanentemente fechada e puramente cismundana e,
portanto, dependente concretamente do mundo pedestre.
Essa conexão, tomada em sentido mais amplo, junto com
seus pressupostos e suas consequências, em princípio, não co-
nhece qualquer transcendência definitiva. Não reconhece, com
efeito, qualquer ainda não consciente. Isso se justifica, uma vez
que a conexão é um elo fechado entre relações humanas. Esse

149
nexo tem como base o mundo externo que, por sua vez, apenas
pode ser conhecido e apropriado humanamente com base em
coisas reais.
A ética, por esse motivo, é realmente o decisivo campo de
combate entre a cismundanidade e a transmundanidade.
E por que a ética é o verdadeiro campo de batalha onde
se confirma a mundanidade?
• é na ética que se cria o espaço de manobra por exce-
lência da transformação real do sujeito humano;
• onde ele se preserva, ao mesmo tempo em que supera
a mera singularidade da personalidade privada.
Somente a ética, portanto, pode apresentar uma resposta
definitiva para todas as questões referentes à personalidade sin-
gular do sujeito privado.
A ética capitalista, por sua natureza exploradora, deixa de
fora tal possibilidade de plenitude humana.
Sobre os distanciamentos e aproximações entre a ética e
a estética, é preciso escrever o seguinte: ao refigurar um mundo
apropriando esteticamente ao humano, adequando à cismun-
danidade, a estética conforma a peculiaridade de sua imediatez.
Em uma expressão: a arte registra, por captar o hic et nunc histó-
rico, a autoconsciência humana.
É a estética que, na imediatez do cotidiano, tem a capaci-
dade de, na negação, superar conservando. Essa dialética produz
uma nova e requintada reflexão que, por seu caráter imediato,
não se encontra em nenhum outro terreno da vida social, nem
mesmo no ético.
O sujeito receptor, nesse novo e refigurado “mundo”, en-
contra sua mais profunda humanidade.
Essa requintada cismundanidade apresenta ao sujeito hu-
mano, na imediatez cotidiana, um novo “mundo”; ela tem como
função praticar, no mundo concreto e imediato, uma determi-
nada reagrupação: uma específica transformação funcional.

150
É por meio de um duplo caráter que a cismundanidade
da obra consumada logra determinada reagrupação, criando a
área de manobra para a transformação catártica:
1. por uma parte, sua forma fenomênica é diversa da re-
alidade existente em si, apresentando, como elemento
principal, determinada diversidade qualitativa;
2. por outra, porém, conserva a estrutura essencial do
mundo concreto e real em si.
O processo de reagrurpação cria, por sua dialética de ten-
sa e lúdica área de jogo, a adequada capacidade receptora da
humanidade. Haja vista que dota o vivente das condições de se
adaptar e, também por esse motivo, enfrentar as necessidades
das vivências e experiências humano-sociais.
Por isso, é impossível ao reflexo estético converter-se em
base da atividade social. A estética não pode assumir, pela essên-
cia de sua natureza, a função de base da conduta social, mesmo
que ela seja ética.

6.2) Vanguarda artística: um divertimento melancólico

A compreensão lukacsiana sobre a chamada arte contem-


porânea causa muita polêmica. Isso porque o autor considera,
com base em uma análise histórica, que a arte moderna se desvia
do autêntico realismo. Para chegar a essa constatação, que cau-
sa muito desconforto em artistas, críticos e até em intelectuais
marxistas, Lukács (1967b) investiga a aparição da alegoria bar-
roca e a relaciona ao modo como a alegoria decorativa adentra à
arte contemporânea.
Com base, portanto, em tal relação, o esteta aponta o se-
guinte: pelo fato de a alegoria decorativa produzir uma dada
fragmentação decompositiva nas criações contemporâneas, con-
sequentemente, processa-se certo afastamento da obra em rela-
ção ao que o sujeito real e concreto experimenta no cotidiano.

151
O que se entende por arte de vanguarda, para o autor
húngaro, é um exemplo dessa fragmentação. As criações enqua-
dradas, de modo geral, na chamada arte contemporânea, op-
tam por refigurar uma individualidade autônoma e vazia.
Em consequência de um determinado vazio individualis-
ta, o Nada é chamado a ocupar a lacuna aberta subjetivamente.
Assim, o sem significado para a humanidade assume o papel
principal da obra. O resultado é que quanto mais resolutamente
se remove das obras a sua relação com a realidade concreta, mais
nitidamente se manifesta a natureza vazia das composições con-
temporâneas, a exemplo da dita arte de vanguarda.
Mas quais os pressupostos desse vazio que põe o Nada
como personagem principal?
Para o autor, contemporaneamente, há um perigoso acor-
do entre a conceituada arte de vanguarda e a religiosidade. As
criações modernas têm muito pouco ou nada que ver com a reli-
gião no sentido das correntes que atuavam no período medieval.
Atualmente, “[...] não se pode falar em sujeição do conteúdo
artístico, do refinamento artístico, ao sistema de dogmas de uma
igreja específica” (LUKÁCS, 1967b, p. 457).
Como entende Lukács (1967b, p. 457), as obras contem-
porâneas, de modo geral e não sem contradições, negam o drama
humano, por isso, elas são “[...] antes uma expressão artística de um
individualismo anarquista e niilista”. As criações do contexto medie-
val, por exemplo, mesmo em diálogo com as exigências religiosas do
período, tinham como referência refletir o drama humano-terrenal.
Lukács (1967b) busca nas elaborações de Walter Benja-
min (1984) compreender o núcleo da alegoria barroca. Assim,
ele tem um parâmetro para entender a alegoria decorativa con-
temporânea. Isto é, as pesquisas benjaminianas acerca do Barro-
co dotam o esteta húngaro dos elementos necessários para tratar
da questão da influência da alegoria na arte contemporânea. Em
consequência desse tratamento, colhe-se os elementos necessá-
rios para criticar a dita vanguarda artística.

152
A interpretação do Barroco empreendida pelo filósofo ale-
mão, para Lukács, vai além de um contraste com o Classicismo.
Essa constatação é muito importante, dado que Lukács é acu-
sado de apreciar apenas as criações clássicas e neoclássicas. O
entendimento do autor húngaro indica que a problemática da
arte contemporânea, especialmente as denominadas vanguardas
artísticas, não pode ser simplesmente equacionada na esfera do
contraste em relação ao período clássico ou renascentista.
O que é produzido contemporaneamente, de modo geral
e com variações entre os diversos tipos de meio homogêneo,
concentra no seu modo de manifestação elementos característi-
cos de uma dada natureza individualista. O caráter desse indivi-
dualismo, por seu resultado conformista, é muito bem incenti-
vado pelo capitalismo decadente.
A natureza vazia, lacunar e individualista das produções
contemporâneas, ainda que hajam louváveis exceções, não po-
dem escamotear o seguinte fato básico: as experiências subjacen-
tes à maioria “[...] dos grandes e característicos produtos da arte
de vanguarda provêm de necessidades religiosas, de modo que
a sua configuração formal é determinada pelo conteúdo dessas
experiências” (LUKÁCS 1967b, p. 457).
Mas de onde sopram os ventos que alimentam os moi-
nhos da entendida arte de vanguarda?
Do modo como compreende o autor, esse esvaziamento
das expectativas humanas com base no mundo pedestre tem ra-
ízes nas teorias de Berkeley.
Sobre a origem teórica que alimenta esse vazio niilista,
para Lukács (1967b), há de se considerar o seguinte: a concep-
ção de mundo que abraça o que se convencionou chamar arte de
vanguarda não constitui nenhuma novidade no debate filosófico
ocidental. Desde Berkeley que esse idealismo fragmentador do
sujeito, que o solta ao Nada, domina a forma de pensar, tornan-
do-se o pensamento oficial do capitalismo imperialista.

153
As consequências que são inferidas com base nessa corren-
te epistemológica é o que constitui a inovação contemporânea.
Antes, essa doutrina epistêmica não alcançava grande influência
sobre a reflexão científica, tampouco sobre os reflexos que se
desenvolvem na arte.
Para o esteta magiar, um exemplo lapidar de como esse
idealismo subjetivista e vazio encontra a arte moderna é a atitu-
de do poeta alemão Gottfried Benn. A afirmação de Lukács tem
por base o fato de que o poeta, ao dissolver a unidade material
do mundo, negar completamente a realidade. O escritor alemão
toca diretamente no núcleo da problemática, pois ao declarar
que nunca abandona o “transe de que a realidade não existe”,
aponta para a base ideológica imediata de como a chamada arte
de vanguarda lida com o mundo real.
Lukács (1967b) entende que as declarações de Benn são
cinicamente sinceras:
Hoje e aqui nenhuma generalidade ou desejos siderais, isso é uma boa
base para uma vida dupla, e a minha própria vida dupla sempre não
me foi somente muito agradável, inclusive cultivei conscientemente
em toda a minha vida (BENN, 1972, p. 122).

A cínica sinceridade de Benn exemplifica, de modo agu-


do, o conforto privativo que o sujeito despedaçado pensa pos-
suir quando valoriza a fragmentação de sua personalidade priva-
da. Como conclui Lukács (1967b, p. 470): “Com tudo isso, o
caminho da alegoria hoje tem uma direção diferente da que era
dominada pelas formas religiosas da vida [medieval]”.
Isso tudo é muito bem demonstrado por meio das since-
ras palavras de Benn (1972, p. 26), dado que a atitude do poeta
deixa clara a decomposição, em fragmentos heterogêneos, da
vida humana interior.
Na guerra e na paz, na frente e na retaguarda, como oficial, assim
como médico, entre acumuladores e as excelências, diante de células
de borracha e da prisão, junto de camas e caixões, no triunfo e na
decadência, nunca abandonei o transe de que a realidade não existe.

154
O pensamento, a obra e a atitude de Benn servem de sín-
tese, portanto, para o “divertimento melancólico” que se tor-
nou a arte contemporânea.
Para deixar clara a distinção de como funciona a alegoria
no renascimento e na arte contemporânea, o filósofo húngaro
relembra a articulação entre a alegoria e a religião nos dois pe-
ríodos históricos.
• Na primeira, domina uma transcendência univer-
salmente considerada, existente na sua verdade, que
produz a degradação da independência dos objetos
cismundanos até que se tornem meros emblemas (de-
corativos) de um sentido alegórico.
• Na arte contemporânea, por sua fragmentação de-
compositiva, esse processo de degradação parte cons-
ciente e imediatamente do sujeito individual, “[...] o
qual coloca individualmente, autonomamente, essa
‘transcendência vazia’, o Nada como um cumprimen-
to paradoxal do vácuo assim produzido, como a glo-
rificação paradoxal do campo de ruínas alcançado”
(LUKÁCS, 1967b, p. 470).
Como aclara a sinceridade cínica do poeta Benn (1970), a
arte contemporânea, nunca de forma linear, vincula-se indisso-
luvelmente e ao mesmo tempo a duas tendências aparentemente
contrapostas.
• Por um lado, a hostilidade acompanhada da estra-
nheza em relação ao mundo concreto, morada dos
sujeitos humanos;
• Por outro, pretende a maior adaptação possível, arti-
culando-a, por sua vez, ao desejo de viver bem nesse
mesmo mundo.
Ao contrário dessa fragmentação vazia, na Antiguidade e
no Renascimento, cada um a seu modo especificamente históri-
co, a arte articulava-se de modo distinto à vida humana.
Nas duas grandes evoluções da arte, a saber, a ocorrida

155
na Antiguidade e a que se desenvolveu no Renascimento, como
enumera Lukács (1967b), não há separação entre a vida e a arte.
Os mais profundos motivos artísticos estão atados aos seus tra-
tamentos ideológicos. Por isso, ficam condicionados aos proble-
mas mais importantes de cada época.
Na Antiguidade e no Renascimento, o descontentamen-
to com a vida pedestre produz a disposição para transformar o
mundo. A arte conforma tal descontentamento.
Na arte contemporânea, o descontentamento é decadente!
A conformação artística moderna produz um inconfor-
mismo formal e expositivo-intelectual, mas que é indiferente às
questões vitais da prática humana. Por isso mesmo as produções
da dita arte de vanguarda conduzem, por fim, ao conformismo
melancólico.
Esse descontentamento decadente, conformista e melan-
cólico, somente pode oferecer um cuidadoso conforto, como
no caso de Benn, a determinada expressão intelectual que seja
desprovida de conteúdo universalmente humano.
Insistimos, ao longo do livro e especialmente nas últimas
páginas, que não se pode considerar a crítica lukasciana à cha-
mada arte de vanguarda indistintamente para toda a produção
contemporânea. É necessário advertir, com rigor, o que, embora
seja muito importante, é muitas vezes esquecido ou proposital-
mente mal interpretado sobre a crítica do autor húngaro.
Decididamente, para Lukács (1967b), toda sua análise
não esgota a produção estética contemporânea. Vale relembrar
que o projeto da Grande Estética previa a escrita de três livros.
Mas apenas o primeiro foi concluído. Na nossa interpretação,
possivelmente, nos livros posteriores, o autor magiar iria expor
mais elementos sobre a crítica ao dito vanguardismo artístico.
Para nosso autor, existem algumas produções que, par-
tindo de adaptações do realismo tradicional, logram obras con-
temporâneas de destacado realismo. Mesmo dentro da arte mo-
derna essas produções podem ser encontradas. Os exemplos que

156
o esteta de Budapeste enumera no campo da literatura são: Jo-
seph Conrad e Roger Martin du Gard, Sinclair Lewis e Arnold
Zweig, entre outras produções.
Thomas Mann, para o autor húngaro, é quem “[...] con-
seguiu reconstruir em uma grande entidade total realista todos
os elementos da vanguarda que são realmente reflexos do atual
modo de aparecer a essência, liberta das deformações daqueles
equilibristas experimentais” (LUKÁCS, 1967b, p. 472).
Como é sabido pela própria história biográfica de marxis-
ta húngaro, o escritor alemão ganhou umas das predileções do
leitor magiar. Inclusive, Mann (2000) cria a personagem Nafta,
no romance A montanha mágica, inspirando-se justamente em
Lukács. Sobre a relação entre o romancista alemão e o crítico
húngaro, pensamos que não se pode excluir o juízo de gosto do
ser humano inteiro chamado Georg Lukács, que lia por prazer.
Mas não é somente na literatura que Lukács localiza ar-
tistas contemporâneos de porte realista. O teatro de Bertolt
Brecht, segundo o esteta marxista, não pode ser comparado à
estranheza do descontentamento decadente, conformista e me-
lancólico que se considera vanguardista. Como pensa Lukács
(1967b, p. 472), a intenção do dramaturgo alemão, “[...] em-
barca precisamente num caminho oposto ao da chamada van-
guarda”.3
Como adiantado, somente por meio de uma investigação
histórico-materialista específica seria possível aprofundar tais
motivos, mas, lamentavelmente, o autor húngaro, dos três livros
projetados, publicou apenas o primeiro. Em uma dada pesqui-
sa histórico-materialista, provavelmente seria possível aclarar os
motivos pelos quais o realismo foi quase que totalmente aban-
donado após as geniais criações de artistas como, por exemplo,
Cézanne e Van Gogh. Para Lukács (1967b, p. 472), é preciso
responder, em uma provável investigação desse porte, os moti-

3 As poucas reações que alguns artistas manifestam à melancolia vanguardista,


como sustenta o autor, são mais raras nas artes plásticas.

157
vos que levaram “[...] talentos tão grandes como Matisse, ou
criadores tão poderosos quanto Picasso, ficaram tão frequente-
mente presos em uma experimentação problemática”.
Existem algumas especificidades nas artes plásticas con-
temporâneas que justificam o seu esvaziamento. Para Lukács,
quando a arte que se diz de vanguarda se limita à bidimensiona-
lidade pura, ainda que elimine toda a aspereza concreta através
do desenho geométrico, mesmo assim, a obra acabada não pode
ser considerada um retorno ao antigo ornamento geométrico.
Desse modo, impõe-se, inequivocamente, um princípio
decorativo de especificidade moderna. Quanto mais vigorosa-
mente esse princípio é imposto, quanto mais resolutamente ele
remove das obras os objetos reais concretos, mais claramente se
manifesta a natureza do significado desse princípio decorativo.
O resultado disso é que, mais facilmente, o princípio de-
corativo moderno consegue se destacar das alegorias e se trans-
formar em uma entidade vivamente independente.
A vida cotidiana contemporânea abriga, irradia e desen-
volve o princípio decorativo. O problema é que tal princípio,
por seguir a moda decadente, utiliza a alegoria apenas como de-
coração. As consequências da incorporação moderna da alegoria
pela decoração é que esse princípio consegue amparo na opinião
cotidiana, bem como no senso comum que habita os corredores
acadêmicos. A forma como a moda da decoração alegórica alas-
tra-se pela arte contemporânea impõe aos criadores obstáculos
que dificultam a produção de obras realistas no cubismo, dada-
ísmo, futurismo, surrealismo, ou em alguma corrente aparenta-
da à dita arte de vanguarda.
Excluindo-se as sempre bem-vindas, honrosas e raras ten-
tativas, a arte contemporânea, em sua vertente dita de vanguar-
da, consegue se fazer um atraente e confortável bibelô para a
sociedade capitalista que se enfrenta com uma crise estrutural4.
4 Sobre a crise atual da sociedade capitalista, consultar o que Mészáros (2009) de-
nomina de crise estrutural do capital. Essa crise invade todas as esferas da vida social;
o campo da arte, com efeito, não se isenta dos seus desdobramentos devastadores.

158
Ou seja, com o apoio inestimável da moda decadente do capi-
talismo em crise crônica, a decoração alegórica ganha fórum de
destaque na arte contemporânea que se diz de vanguarda, sobre-
tudo nas artes plásticas.
A chamada arte de vanguarda, para que possamos fazer
um breve fechamento, a despeito de que os seus produtores te-
nham ou não consciência disso, acaba por alimentar a publici-
dade mercantil, o comércio destrutivo de produtos artísticos e
o terrorismo jornalístico apoiado, requintadamente, pelo capi-
talismo contemporâneo em crise profunda. Os produtores, la-
mentavelmente, acreditam que atendem à demanda do drama
humano com esse esoterismo pedante. Por isso, o máximo que
se vê é uma reação oclusivo-depressiva de produtores em oposi-
ção ao ente concreto.
O resultado dessa conjunção de fatores caminha de mãos
dadas com o sucesso do princípio decorativo que, de um lado,
possui essência conformista e, de outro, tem enfrentamento ir-
racional.
A arte, como complexo humano responsável pela auto-
consciência humana, no cenário de decadência capitalista, re-
clusa-se nas ilhas de excelência, onde poucos artistas autênticos
produzem suas obras. As criações realizadas por esses paladinos
da vida humana, sob imensa hostilidade do capitalismo deca-
dente em crise profunda, logram, ainda que raramente, alçar a
pessoa da condição de ser humano inteiro ao patamar de ser
inteiramente humano.

159
Considerações finais:
portas a serem abertas, lacunas a serem fechadas

Às pessoas que acompanham a leitura do livro, necessita-


mos dizer algumas palavras sobre o seu fechamento.
Algumas portas acerca da estética do filósofo magiar foram,
certamente, abertas. Muitas outras, contudo, precisam ainda de
certo esforço para serem exploradas. Não temos dúvidas de que
a sala de entrada da estética marxista foi aberta e seus cômodos
principais foram iluminados. Do mesmo modo, é certo que pela
importância e fundamentação filosófica do construto do autor
húngaro, muitas lacunas permanecem necessitando de aprofun-
damento. Elas não poderiam ser tocadas em um livro com as
pretensões da presente exposição, necessariamente sintéticas.
Isso se justifica, como reconhece o próprio Lukács
(2010c), pelo caráter humanista inerente ao socialismo. O hu-
manismo socialista presente na estética marxista possibilita que
sua edificação unifique o conhecimento histórico ao conheci-
mento puramente estético e crie, por força de sua dialética, a
contínua convergência do juízo histórico ao estético. Com base
na unificação entre o conhecimento histórico e o estético,
[...] a estética marxista resolve precisamente a questão que mais ator-
mentara os seus predecessores, quando eram realmente grandes, e que
foi sempre deixada de lado pelos menores: a da unidade entre o valor
estético permanente da obra de arte e o processo histórico do qual
ela – exatamente na sua perfeição, no seu valor estético – não pode
ser desvinculada (LUKÁCS, 2010c, p. 39).

O nosso livro que fecha suas páginas no presente capí-


tulo, mesmo que fosse uma odisseia literária, não teria como
abarcar uma empreitada da envergadura da estética histórica de
Marx e Engels.

161
Mikhail Lifschitz, ao concluir o Prólogo dos textos esco-
lhidos sobre Cultura, arte e literatura de Marx e Engels, sem
menosprezo à coletânea que acabara de organizar ao lado de
Lukács, admite que expôs os elementos principais da estética
marxista, mas o fez do modo mais sucinto possível. Para Lifs-
chitz (2010, p. 61), foi preciso omitir
[...] riquíssimos detalhes dos seus diversos estágios e desenvolvimento
e de suas profundas observações sobre diversas formas de arte, bem
como caracterizações de figuras destacadas e secundárias vinculadas à
história da literatura.

O revolucionário russo e parceiro de Lukács no Instituto


Marx Engels de Moscou fecha seu Prólogo enfatizando que “[...]
o mais importante a sublinhar era exatamente tal ideia diretriz
– ideia que é, simultaneamente, a bandeira do comunismo e o
fundamento da sua estética” (LIFSCHITZ, 2010c, p. 61).
Pois bem, nosso sucinto livro não teve como detalhar
todo o rico e diverso desenvolvimento da estética marxista, não
conseguiu abarcar as profundíssimas observações acerca das dis-
tintas formas e formações artísticas, tampouco logrou êxito em
caracterizar devidamente as figuras principais vinculadas ao mo-
vimento histórico da arte.
O livro, de outro modo, para fazer jus à tradição aberta
pelo marxismo clássico, procurou sublinhar os elementos mais
importantes pelos quais Lukács monta o seu monumental edi-
fício estético. Como epigrafou Lifschitz (2010c), destacar tais
fatores é oxigenar a ideia diretriz de que, por sua natureza his-
tórica, é ao mesmo tempo a bandeira-guia do comunismo e de
uma estética que possa se fundamentar sob uma sociedade regi-
da pela divisão social e técnica do trabalho associado.
Com respaldo na perspectiva de uma sociedade realmente
emancipada, o livro fecha suas páginas apresentando algumas
indicações que podem, para quem se interessar, apontar raízes
mais arraigadas sobre os muitos, densos e profundas frutos da
estética marxista delineada por Lukács.

162
Iniciamos relembrando que publicamos uma trilogia so-
bre a Grande Estética do autor húngaro. Em verdade, os três
livros procuram cobrir Uma introdução a uma estética marxista,
conhecida como Pequena Estética e o livro Estética: la peculiari-
dade de lo estético, lembrado como Grande Estética.
O primeiro livro dessa trilogia, A particularidade na esté-
tica de Lukács, foi publicado em 2017 pelo Instituto Lukács; no
ano seguinte, expomos a público o título Estética em Lukács: um
mundo para chamar de seu, com edição também desse Institu-
to. O primeiro livro, como demonstra o título, dedica atenção
especial à categoria da particularidade, apresentada pelo esteta
magiar, relembrando-a como central para a estética.
Na segunda publicação, nosso interesse recaiu sobre a
Grande Estética. Os capítulos finais, no entanto, ficaram de fora
da exposição. Motivados pela questão da organização do livro,
que ficaria com muitas páginas, optamos por tratar das questões
limites da estética em um livro separado.
Assim, em 2021, no cinquentenário de falecimento do
autor, a editora Lutas AntiCapital lançou A ética na estética de
Lukács: a arte como uma unanimidade anônima. Nesse livro,
atendemos às questões limites da estética, incluindo a duplica-
ção mimética, a relação ética-estética e a polêmica sobre a dita
arte de vanguarda.
A escrita dos três livros objetivava apresentar ao público os
fundamentos centrais da estética de Lukács. Esse objetivo, pe-
rante o crivo do autor, foi atingido. Pela natureza dessas publi-
cações, ficou fora de seu horizonte, lamentavelmente, a concre-
tização de uma exposição com caráter sintético. De todo modo,
a publicização da trilogia possibilitou ao seu autor angariar ele-
mentos que o trouxe ao presente livro. Uma comunicação que
apresenta uma síntese.
Importa destacar, também como forma de indicar futuros
aprofundamentos, que, até o lançamento de nossa trilogia, existia
apenas um único livro dedicado exclusivamente à Estética de Luká-

163
cs. É documentado por Celso Frederico (2005) que Béla Király-
falvi publicou The aesthetics of Gyorgy Lukács, produzido pela Prin-
ceton University, em 1975. O livro de Kirâlyfalvi foi escrito em
inglês e até este momento não possui tradução para outro idioma.
Não podemos concluir a exposição que, como anunciado,
pretendeu ser sintética, sem declarar que existem algumas publica-
ções potencializadas da investigação sobre a estética marxista. Mes-
mo que os estudos sobre a estética do autor húngaro sejam ainda em
pequeno número, é impossível abarcar toda a sua dimensão aqui.
Em tempo, é imperioso reconhecer que, para a alegria da
ciência e de suas contraditórias possiblidades revolucionárias, os
canais de publicação são muitos e de diversas fontes, o que di-
ficulta ainda mais conhecer tudo o que se produz sobre o tema.
Para não correr o perigo do esquecimento, uma vez que não
existe a menor possibilidade de abarcarmos toda a gama do que
se produziu sobre a estética de Lukács neste pequeno e introdu-
tório livro, optamos por indicar a leitura do que revelamos nas
referências, ao final do livro.
Com essas palavras adiantadas e prestes a concluir uma
produção que já figurou na ideia desta autoria como um sonho
distante, entendemos ser necessário, ainda que para alguns seja
ocioso, repetir certos debates apreendidos ao longo da exposição.
Em primeiro termo, é imperioso observar que, para o mar-
xismo clássico, categoria é expressão da realidade. Com essa obser-
vação em claro, Lukács toma como pressuposto onto-metodológi-
co que o cotidiano, a ciência e a arte refletem a mesma realidade.
Calçado em um pressuposto materialista e, portanto, con-
cretamente vivo, o autor de Budapeste parte para aproximar e dis-
tanciar a arte da ciência, mas também da religião e até da ética. Para
que isso seja possível, o filósofo utiliza o cotidiano como baliza.
Um obstáculo de partida salta aos olhos: é muito difícil
conceituar arte. Pô-la em um conceito rigidamente fechado é
impossível. Sua multiplicidade impede que o idealismo se apro-
xime de uma definição conceitual precisa.

164
Para se desviar dessa dificuldade, o esteta marxista utiliza
o que denominei em Santos (2018) de categorias nodais. Ou
seja, um grupo de pares relacionais que possibilita ao autor ven-
cer a inércia de partida sobre o conceito de arte.
Os pares relacionais que compõem as categorias nodais
são: antropomorfização-desantropomorfização e imanência-
-transcendência. Ao utilizar esses pares, o marxista húngaro per-
cebe que a arte tem uma proximidade com a ciência, ambas
são imanentes, mas também se distanciam, visto que aquela é
antropomórfica e esta é desantropomórfica.
Do mesmo modo, com o auxílio das categorias nodais, o
filósofo de Budapeste entende que há um parentesco estrutural
entre a arte e a religião. O complexo artístico e o religioso parti-
lham da condição de serem antropomórficos. Porém, enquanto
a arte é imanente, a religião, diferentemente, é transcendente.
Para diferenciar a proximidade estrutural entre arte e reli-
gião, Lukács lança mão de outro par relacional: cismundanida-
de-transmundanidade. Com esse par, o esteta magiar demostra
que embora haja o parentesco estrutural, a arte, distintamente da
religião, é cismundana, ou seja, tem seus objetos e sujeitos com
vivências cotidiano-terrestres. Em uma expressão: a arte é pedes-
tre. Já a religião, embora seja, como a arte, antropomórfica, en-
trega suas decisões a algo transcendente, que vive no além-mun-
do, portanto, fora da mundanidade terrena; isto é, que promete
uma recompensa transmundana, além da vida na terra.
Na sequência da exposição, sempre com base no desen-
volvimento social e técnico do trabalho, que ocorre, vele repetir,
de forma desigual e contraditória, com recuos, saltos e retroces-
sos, relacionamos as objetividades simples, a exemplo da lingua-
gem e do próprio trabalho, às objetividades superiores, como a
ciência, a arte, a religião e até a ética.
Para adentrar ao nascimento, desdobramento e desenvolvi-
mento da arte, tratamos da importância do reflexo para a vida hu-
mana. Sob a teoria do reflexo, expomos os sistemas de mediação

165
(principalmente analogia e inferência analógica) e sua relevância
para a estética. Sob esse recorte, destacamos a mimese como a
primeira categoria estética. É a mimese, como um reflexo enrique-
cido, que possibilita a série evolutiva da arte: reflexo da mimese
cotidiana, reflexo da mimese mágica, reflexo evocativo.
A série evolutiva da arte apenas toma o caminho estético,
inclina-se tendencialmente ao estético, graças à relação que a
vida humana guarda com o agradável. É a relação ritmo, uti-
lidade, agradabilidade que permite entender como o elemento
agradável prende o sujeito privado singular em sua condição de
ser humano inteiro, com a vivência própria do cotidiano. Vão
ser as objetivações superiores, destacadamente a arte, que, dife-
rentemente de algo apenas agradável, libertam o ser humano
inteiro preso à sua personalidade privada singular, e o alça à
condição de ser inteiramente humano. Ao tronar-se usufrui-
dor das aspirações superiores do espírito humano, a pessoa, ao
retornar ao plano da cotidianidade como ser humano inteiro,
estará modificada para sempre.
A relação entre ser humano inteiro e ser inteiramente hu-
mano dota a comunicação da condição de tratar de outra rela-
ção: o Antes e o Depois do efeito artístico. Essa relação é a res-
ponsável por deixar aclaradas as possibilidades humanas perante
a comoção catártica causada pela obra de arte.
O Antes e o Depois abrem as veredas para a apresenta-
ção da conexão da particularidade com a tipicidade artística.
Se, como enfatizamos, entendemos a mimese como a categoria
primeira do complexo estético, para o autor húngaro, a particu-
laridade é a categoria central. A catarse, por sua importância e
destaque, insiste Lukács, é a categoria geral da estética.
Sendo assim, a mimese fornece à particularidade, que
elege do material vital colhido da vida cotidiana, aquilo que
tipifica a vida das pessoas. A particularidade, por ser um elo
de conexão entre a vida concreta e o efeito artístico, depois
da eleição do que é tipicamente essencial ao drama humano,

166
entrega à catarse os elementos pelos quais a obra logra sacudir
o âmago das pessoas: suas alegrias, tristezas, esperanças, cons-
trangimentos, perspectivas, entre outros fatores que compõem
o drama humano.
A demonstração de como a arte logra o êxito de causar
comoção catártica nos sujeitos, soerguendo o ser humano intei-
ro para o patamar de ser inteiramente humano, é realizada por
intermédio do meio homogêneo de cada arte: sua “linguagem”.
O meio homogêneo, como “linguagem” específica da arte,
apenas pode ser compreendido, como enfatiza nosso autor, pela en-
trada em cena do terceiro nível de sinalização: sistema de sinaliza-
ção de terceira ordem ou simplesmente sistema de sinalização S1’.
A relação que se estabelece entre o meio homogêneo e o
sistema de sinalização S1’ explica como a fantasia do movimento
desloca-se do solo do dia a dia e caminha, por meio da catarse,
para alçar o sujeito humano ao patamar de ser inteiramente hu-
mano. Não podemos esquecer que o terceiro nível de sinalização
está presente, com muita força, na espontaneidade do materia-
lismo da forma de pensar da vida cotidiana.
Assim, fica claro como a arte registra a autoconsciência da
humanidade. Ou seja, é por meio da catarse que o complexo ar-
tístico conquista a patente de registro da autoconsciência humana.
Não é foco principal do presente livro debater o fator edu-
cativo da arte. Tratamos dessa questão em no livro Arte-educa-
ção, estética e formação humana, publicado em 2020 pelo Coleti-
vo Veredas. A oportunidade, no entanto, leva-nos a incluir aqui
uma pequena digressão.
Lembramos, para reforçar, que o fator educativo da arte
é exatamente a catarse. É por intermédio do efeito catártico que
ela, por registrar a autoconsciência humana, educa os indivíduos
de uma forma impossível a outros complexos sociais, a exemplo
do científico e do educativo. Esses dois complexos, por suas na-
turezas específicas, apenas podem atingir êxito se educarem de-
santropomorficamente, se comunicarem o em si concreto dos

167
objetos. É da função social destes complexos, é de seu caráter on-
tológico, registrar a consciência social da humanidade.
Por isso, a formação estética dos sentidos humanos é
função, principalmente, da arte: ela apenas pode ocorrer pela
presença da catarse. Isto é, abrir mão da catarse é dispensar, em
primeiro termo, o que caracteriza a arte. Lembremos, para con-
cluir esta digressão, que a catarse, não por simples acaso, é de-
signada pelo esteta magiar como a categoria geral da estética.
Com esses elementos relembrados, caminhamos para o
fechamento do presente livro com o tratamento, sempre resu-
mido, das questões limites do estético. Nossos capítulos finais
dedicaram-se ao seguinte: sintetizar os casos de duplicação da
mimese, sumariar a relação entre ética e estética e tocar na ques-
tão da chamada vanguarda artística.
Os casos de mimese duplicada são, como se sabe, música, ar-
quitetura (mas também jardinagem e artesanato artístico) e cinema.
A ética guarda com a estética muitas proximidades e al-
gumas distinções. Foi importante mostrar, sempre seguindo a
pena de Lukács, que a arte tem como compromisso refletir o
drama humano, refigurar o que o cotidiano clama, conformar
as necessidades das pessoas, suas aspirações e seus sofrimentos/
alegrias. Não obstante a esse fato, a estética não pode resumir
as contradições humanas ao conflito idealista que divide rigida-
mente, ou une mecanicamente, bem e mal, luz e trevas, beleza
e feiura, entre outras considerações mecanizadas mentalmente.
A estética, com efeito, tem como função social registrar a
autoconsciência humana. Seu compromisso, naturalmente, é
também com o processo ético, já que ele compõe o drama coti-
diano das pessoas. A conformação artística, contudo, não pode
se resumir aos preceitos éticos. A obra de arte tem compromisso,
em última instância, com a revelação do que se encontra escon-
dido no subsolo do tecido social, com o que é inefável. Em uma
expressão: seu compromisso é com o que, embora seja concre-
tamente real, torna-se invisível à heterogeneidade do cotidiano.

168
As palavras derradeiras do livro são derramadas sobre as
polêmicas do que se intitula arte de vanguarda. Sintetizamos o
que o autor marxista, em sua Grande Estética, apresenta sobre a
problemática.
Lukács não nutre, a priori, nenhum preconceito sobre
este ou aquele criador vinculado a tal movimento artístico. Ao
contrário, lamenta-se dos motivos que levam alguns potentes
criadores a serem absorvidos pelo movimento que se auto deno-
mina de vanguarda.
Para o esteta magiar, um dos mais graves problemas do
movimento é abandonar a perspectiva – o que ainda não é rea-
lidade, mas pode vir a ser – de que a vida existe em sua materia-
lidade concreta. Disso decorre que o artista dito de vanguarda,
não sem contradições, abandona a perspectiva de uma vida ple-
na de sentido, o que fica evidente, sobretudo, em grande parte
das obras plásticas da arte moderna.
A arte plástica, produzida dentro do chamado vanguardis-
mo artístico, abraça a alegoria como elemento decorativo, aban-
donando a possibilidade de a alegoria se unir ao drama concreto
da vida. Consequentemente, afasta-se da possibilidade de regis-
trar a autoconsciência humana.
Muito mais deveria ser dito sobre a monumental Estética
escrita pelo autor húngaro. Mas chegamos, alegremente, ao final
do livro que sintetiza a Grande Estética de Lukács!
Minhas aguardadas palavras finais começam lembrando
do escritor José Lins do Rego. O renomado escritor foi convi-
dado para prefaciar o livro Brasil Caboclo do poeta Zé da Luz.
Rego (1979, p. 09), assim se pronuncia:
Pediu-me Zé da Luz um prefácio para o seu livro de versos. E eu lhe
disse: Meu caro poeta, você não precisa de prefácios, porque a sua
poesia fala com mais autoridade que qualquer palavra de apresenta-
ção. Que autoridade terei para dar carta de fiança a quem possui os
melhores tesouros deste mundo? Ora, Zé da Luz, você vale pelo que
é, e não pelo que se possa dizer de você (REGO, 1979, p. 09).

169
Sobre Lukács e sua Estética muito deveria ser escrito, deba-
tido, estudado, entendido, implementado... Como disse o pró-
prio autor, com refino preciso de seu parceiro Mikhail Lifschitz,
o mais importante, todavia, é demarcar o seguinte: o estudo da
estética sempre sofrerá de insuficiência se a análise teórica se
enfronhar idealisticamente nas asas dos modismos que invadem,
desgraçadamente, os corredores acadêmicos contemporâneos.
A investigação estética, para atingir importância social,
tem que seguir, como perspectiva, a emancipação humana. Para
isso, como fez Lukács ao descrever os sustentáculos da estética
marxista, é necessário articular dialeticamente a pesquisa estéti-
ca ao processo histórico-materialista da sociedade.
E aqui, para finalmente concluir, como fez Zé Lins do
Rego ao declarar que o poeta Zé da Luz deve falar por si, pois
sua poesia vale pelo que é, reclusos nas palavras do autor da
Grande Estética, encerramos nossas linhas.
Em intervenção efetuada no IV Congresso dos Escritores
Alemãs, ocorrido em 11 de janeiro de 1956 na cidade de Berlin,
Lukács (2010c, p. 290) declarou: “Possuímos, por certo, uma
concepção otimista de mundo, e estamos profundamente con-
vencidos de que os grandes conflitos no plano da história uni-
versal podem ser corretamente resolvidos por nós”. A advertên-
cia do autor é apropriada para concluirmos estas páginas, uma
vez que o otimismo histórico-universal, além de não excluir as
tragédias individuais, precisa ser alinhado ao projeto de eman-
cipação plena do sujeito humano. E isso implica, em primeira
ordem, na superação da propriedade privada e do modo de pro-
dução capitalista.

170
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TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács: etapas de seu pensamento es-
tético. São Paulo: Editora da UNESP, 2008.
VEDDA, Miguel. Prefácio. In: Estética em Lukács: a criação de um
mundo para chamar de seu. São Paulo: Instituto Lukács, 2018.
VEDDA, Miguel. Introdução. In: LUKÁCS, György, Acerca de la
pobreza de espíritu y otros escritos de juventud. Buenos Aires:
Gorla, 2015.

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Este livro teve a conclusão de sua primeira
redação às 09:16 da manhã, no feriado de
Tiradentes de 2022.

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