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DISCURSO E RELAÇÕES IDEOLÓGICAS: ANÁLISE DO

PRONUNCIAMENTO DO PRESIDENTE JAIR BOLSONARO SOBRE A


COVID-19

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar o pronunciamento do


presidente Jair Bolsonaro, proferido no dia 24 de março de 2020, e transmitido em rede
nacional de rádio e televisão. O pronunciamento foi alvo de diversas criticas pela
imprensa, por tentar minimizar a crise de saúde pública que assola o mundo, numa
tentativa de banalização da Covid-19, a qual o presidente refere-se como uma
‘gripezinha’ ou um ‘resfriadinho’. A metodologia adotada segue o modelo proposto
pela teoria da análise do discurso, que busca identificar, dentro do texto, os elementos
responsáveis pela historicidade, constituída pelo discurso e as relações sociais dos
sujeitos. O trabalho é de cunho bibliográfico e qualitativo, cujo alguns aportes teóricos
utilizados foram: Pêcheux (1995), Florêncio et al (2009), Orlandi (1999), e outros. A
análise possibilita identificar os traços ideológicos presentes neste discurso e a relação
com o atual momento político, econômico e social, enfrentado nacionalmente e
mundialmente. Elementos como as condições de produção (ampla e restrita), o
intradiscurso e interdiscurso, a formação discursiva e ideológica, o dito, o não-dito e o
silenciado, possibilitam um melhor entendimento do discurso e dos impactos por ele
causados.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Ideologia. Pronunciamento do presidente Jair


Bolsonaro.

INTRODUÇÃO

A análise do discurso (AD) é uma área da linguística que tem como objetivo
estudar o texto como objeto histórico. Nesse campo de estudo, o texto não é entendido,
apenas, como um objeto linguístico, mas sim, como um produto de construção
linguística e sócio-histórica, pois o sujeito transpassa as marcas ideológicas no ato da
produção de sentidos. Sendo assim, ao produzir um texto, o sujeito apresenta ideias que
são provenientes da situação social, política e econômica que vivencia, e se não
considerarmos essas condições de produção, no momento da análise de um texto, não
compreenderemos a visão de mundo e o valor discursivo decorrente.
A análise do discurso vem sendo discutida desde os estudos da retórica grega,
porém só ganhou força em 1970, ainda com algumas restrições quanto ao objeto de
estudo. Tornou-se um marco quando mudou o objeto de estudo de ‘linguística da frase’
para ‘linguística do texto’. O que chamou a atenção de diversas vertentes de estudo, que
começaram a tomar o texto como o objeto de análise, ocupando um dos lugares centrais
dos estudos linguísticos.
Nos últimos anos, muitos autores vêm abordando o texto como objeto de estudo
como, por exemplo, Ingedore Koch, em diversas obras, Orlandi, Florêncio, e Pêcheux,
que se destaca como um dos principais nomes da análise do discurso de linha francesa.
Independente da perspectiva de análise, o estudo do texto está em pauta, e todas as
perspectivas parecem chegar ao mesmo ponto: considerar o texto no sentido da
discursivização (transformação da língua em discurso).
O trabalho em tela tem como objetivo analisar o pronunciamento do presidente
Jair Bolsonaro, proferido no dia 24 de março de 2020, e transmitido em rede nacional de
rádio e televisão. O pronunciamento tinha como foco falar sobre a Covid-19, os
impactos na saúde pública e as medidas restritivas que o país deveria adotar, seguindo
as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e em consonância com
diversos países, cientistas e estudiosos sobre o assunto.
A escolha do texto, para a realização da análise discursiva, ocorreu por ser um
tema atual e de relevância social, no qual o pronunciamento divide opiniões, entre
quebra de expectativas, em que muitos brasileiros esperavam um posicionamento
coerente, por parte do presidente, levando em consideração os dados que até então
teriam sido apresentados sobre a doença, no Brasil e no mundo, o que acarretou em
diversas criticas por meio da imprensa e da população, demonstrando sentimentos de
insatisfação; e opiniões de parte da população, que apoiaram e até certo ponto, viram
neste discurso um meio de refugiu, pois ao minimizar os impactos da doença, poderiam
tranquilizar-se.
A análise desse discurso possibilita uma visão mais clara sobre a ideologia do
sujeito e a importância política, econômica e social do discurso, uma vez que,
observando as condições de produção podemos compreender se o discurso possui
elementos implícitos, como esses elementos podem ser interpretados, e se o discurso foi
coerente em caráter cientifico.
A metodologia adotada segue o modelo proposto pela teoria da análise do
discurso, que busca identificar, dentro do texto, os elementos responsáveis pela
historicidade, constituída pelo discurso e as relações sociais dos sujeitos. Dessa maneira,
foram analisadas as condições de produção do discurso (ampla e restrita), o
interdiscurso e intradiscurso, o dito, o não-dito e o silenciado, e a formação discursiva e
ideológica.
O trabalho é de cunho bibliográfico e qualitativo, cujo alguns aportes teóricos
utilizados foram: Pêcheux (1995), Florêncio et al (2009), Orlandi (1999), e outros. Os
autores selecionados são estudiosos da área da análise do discurso e foram de grande
relevância para o entendimento da teoria e dos três principais eixos da análise:
ideologia, sujeito e discurso.
O artigo está dividido em três seções. A primeira seção apresenta uma breve
discussão sobre a linguística do texto e a análise do discurso; a segunda seção aborda
conceitos fundamentais da teoria de análise do discurso, como ideologia, sujeito e
discurso; e a terceira seção é dedicada à análise do corpus, levando em consideração os
seguintes tópicos: condições de produção do discurso (ampla e restrita), o interdiscurso
e intradiscurso, o dito, o não-dito e o silenciado, e a formação discursiva e ideológica.
Por fim, seguem as conclusões obtidas através desse estudo.

1 Breve percurso sobre a análise do discurso: conceitos e práticas


Segundo Elia (2005), a análise do discurso está organizada em duas vertentes
principais, a AD francesa que se orienta por um viés social, histórico-político e
ideológico, e a norte-americana, que se norteia de forma gramatical, de modo e a-
histórico. A primeira vertente citada é a mais popular atualmente. Muitos estudos estão
centrados nessa perspectiva e consideram o texto e a sua historicidade; a segunda
vertente atenta para as análises gramaticais e não consideram o valor histórico do texto.
A consolidação desse campo de estudo só ocorreu a partir de 1970, embora
muito antes já se discutisse sobre a relação do texto e da ideologia, que perpassam pelos
elementos sociais, políticos e econômicos. Isso se deu por uma supervaloração dos
estudos estruturalistas, que por sua vez, detinham o interesse em diversas esferas de
análise, como fonética e fonológica, sintática, morfológica, e posteriormente,
enfatizando a pragmática e a semântica. Entretanto, esses estudos tinham como ponto de
partida a frase, não o texto, como propõe a análise do discurso.
O texto como objeto de análise tornou a AD um estudo mais complexo, por esse
motivo, o texto passou a ser estudado por perspectivas que seguem pressupostos
teóricos e metodológicos diferentes.

O fato de a AD tomar uma unidade de análise maior do que a frase fez que o
estudo do ‘texto’ passasse a ocupar lugar central nos estudos linguísticos. E,
exatamente por tomar esse objeto complexo, a AD seguiu várias direções,
com diferentes concepções epistemológicas e metodológicas. (GREGOLIN,
1995, p. 14).
O objeto de análise da AD é o texto, mas o que é texto? Certamente, existe uma
série de conceitos para texto, dessa forma, vale destacar a percepção de Orlandi (1999),
que considera o texto como uma peça da linguagem, esta peça representa uma unidade
significativa, pois para ser um texto é necessário ter textualidade. A textualidade é
encarregada pela relação do texto com ele mesmo e com o que é externo a ele. A autora
enfatiza o caráter histórico do texto, mas não no sentido documental, e sim na relação
social que apresenta.
Nesse sentido, a AD busca a “compreensão de como um objeto simbólico
produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos”
(ORLANDI, 1999, p. 26). Quando a historicidade é considerada parte constituinte do
discurso, o texto será tomado como equivalente ao discurso, e o autor ao sujeito,
relacionando linguagem e história.
No século XIX, a história era vista apenas como uma dimensão cronológica da
evolução, e a linguística não poderia ser enquadrada nessa perspectiva. Diante disso,
surgem os estudos voltados a pancronia, que relacionavam a história e o sistema
linguístico no âmbito de causa e efeito. A AD mudou essa perspectiva de análise, e ao
invés de tratar da história, adere o sentido de historicidade, ou seja, considera o texto
uma materialidade histórica e não que a história seja base do texto.
A análise do discurso de linha francesa segue a linha da historicidade do texto,
abordando conceitos essenciais como discurso, sujeito e ideologia. De acordo com
Orlandi (1999, p. 19-20) existem três premissas fundamentais para a AD, a primeira
considera que “a língua tem sua própria ordem”, a segunda que “a história tem seu real
afetado pelo simbólico” e a terceira que “o sujeito da linguagem é descentrado, pois [...]
funciona pelo inconsciente e pela ideologia”. Analisando o texto com base nessas três
premissas, compreenderemos a sua materialidade histórica e discursiva.
É válido destacar que texto e discurso não devem ser entendidos a partir do
mesmo conceito, em sentido amplo. O texto pode apresentar um começo,
desenvolvimento e o desfecho, porém quando considerarmos esse mesmo texto em
caráter discursivo ele estará incompleto, pois ele possui relação com outros fatores, que
são externos ao ambiente textual.

O DISCURSO é um suporte abstrato que sustenta os vários TEXTOS


(concretos) que circulam em uma sociedade. Ele é responsável pela
concretização, em termos de figuras e temas, das estruturas semio-narrativas.
Através da Análise do Discurso é possível realizarmos uma análise interna (o
que este texto diz? como ele diz?) e uma análise externa (por que este texto
diz o que ele diz?). (GREGOLIN, 1995, p.17).

Texto e discurso, relacionados, direcionam a apreensão dos sentidos, em nível


interno e externo à materialidade. O texto, tomado na perspectiva de Koch (1997, p. 22)
“resulta da realização de uma atividade verbal, numa situação dada, com vistas a certos
resultados”, é aproximado à função discursiva que exerce.
Os sentidos serão depreendidos no encontro do acontecimento discursivo com a
estrutura textual, pois os sentidos não estão presentes no texto, eles se constroem a partir
dele. As condições de produção de um texto, o lugar de fala do sujeito e as escolhas
desse sujeito, direcionam os caminhos para a análise, situando-o historicamente.

Para a AD, não há sentido dado, único, verdadeiro, mas sentidos vários que
estão além das evidências. Procura-se compreender como se constituem os
processos de produção de sentidos que se fazem presentes no texto e dão
lugar, ao analista do discurso, a investigar como tal texto produz sentidos.
Isso mostra que os dizeres não podem ser vistos como mensagens que são
transmitidas e compreendidas em sua transparência, mas em seus efeitos de
sentido, produzidos por sujeitos que realizam suas escolhas, em determinadas
situações, que se mostram no modo como dizem. (FLORÊNCIO et al, 2009,
p. 67).

Conhecer as condições de produção do texto é essencial para o analista, pois são


elas que dão força e consistência à AD. Por exemplo, um discurso considerado racista,
proferido no dia da Consciência Negra, terá um impacto maior do que se fosse realizado
em outro dia. Ainda, se o sujeito desse discurso fosse um ministro dos direitos humanos,
certamente, essa condição iria obter mais impacto do que o exemplo anterior. E para
finalizar essa ideia, se pensarmos nesse mesmo discurso, proferido pelo mesmo sujeito e
divulgado na rede aberta de televisão.
Essas situações influenciam diretamente na análise desse texto, além de
denunciar a ideologia do sujeito que o proferiu. Entendendo a importância dos conceitos
de sujeito, ideologia e discurso, para a AD, a próxima seção trata sobre o sujeito do
discurso socialmente situado, e sobre a posição ideológica definida a partir desse lugar
social.
2 Sujeito e ideologia: a construção do discurso
Os conceitos de sujeito e ideologia são fundamentais para a análise e
compreensão do discurso. O autor/sujeito do texto/discurso está localizado em lugar, do
qual parte a sua fala, esse lugar não se refere estritamente ao campo socioeconômico,
mas sim ao imaginário e ideológico.
O sujeito é constituído socialmente e historicamente, porém nem sempre segue
as determinações do lugar socioeconômico ao qual pertence. As falas do sujeito seguem
as formações ideológicas de suas práticas sociais efetivas e daquelas responsáveis pela
sua formação identitária.

O sujeito constituído historicamente, embora assim determinado, tem a


possibilidade de contrariar tais determinações, justamente pelo processo de
produção-transformação das relações de produção existentes, que apontam,
na práxis discursiva, para o equivoco, para a negação da transparência de
sentido. (FLORÊNCIO et al, 2009 p. 70).

A sensação do pertencimento é que constitui o lugar de fala do sujeito, não


necessariamente a situação concreta social, política ou econômica que é enquadrado.
Florêncio et al (2009, p. 71) aponta que “ele (o sujeito) busca respostas, a partir de seu
lugar social, assumindo posições ideológicas que, em suas práticas sociais de relações
de classe, produzem sentidos”. Sendo assim, ‘lugar’ refere-se à identidade do sujeito do
discurso.
Segundo Gregolin (1995, p. 17) “a ‘ideologia’ é um conjunto de representações
dominantes em uma determinada classe dentro da sociedade”. A autora aponta para a
existência de várias classes sociais, que se confrontam e formam diversas ideologias.
Dessa forma, a ideologia deve ser entendida como a visão de mundo de cada classe
social, e a linguagem pode ser determinada pela ideologia.
Existem diversas formações ideológicas, pois elas ocorrem de forma particular
em cada classe social. É necessário que, além do sujeito ser reconhecido e se reconhecer
em uma formação ideológica, ele reconheça, também, a formação discursiva (o que
dizer em determinada época e sociedade).

O discurso é um dos aspectos da materialidade ideológica, por isso, ele só


tem sentido para um sujeito quando este o reconhece como pertencente à
determinada formação discursiva. Os valores ideológicos de uma formação
social estão representados no discurso por uma série de formações
imaginárias, que designam o lugar que o destinador e o destinatário se
atribuem mutuamente (PÊCHUEX, 1995, p.18).

Relacionando o sujeito e as formações ideológicas, compreendemos o discurso,


haja vista que, ele parte dessas formações ideológicas e discursivas. A ideologia do
sujeito transpassa o nível de consciência, fazendo com que ao proferir um discurso, o
sujeito o apresente carregado de marcas ideológicas, que fazem parte da visão de mundo
que possui, podendo ocorrer inconscientemente.
Muitos discursos podem ser ‘maquiados’ pelos sujeitos, mas existem traços que
determinam as formações ideológicas e discursivas. A identificação de elementos como
o não-dito, o silenciado, as condições de produção e uma análise, inclusive, das
formações do discurso, possibilitam identificar qual o lugar de fala e de pertencimento
do sujeito.

As formações ideológicas são representadas pela via de práticas sociais


concretas, no interior das classes de conflito, dando lugar a discursos que
põem à mostra as posições em que os sujeitos se colocam/são colocados. As
formações ideológicas se constituem, por conseguinte, por um conjunto
complexo de atitudes e representações que nem são individuais, nem
universais, mas dizem respeito às posições de classe em conflito.
(HAROCHE,1971, p. 102 apud FLORÊNCIO et al, 2009, p. 71, grifos
meus).

A AD parte dos conceitos de sujeito e ideologia para a compreensão do discurso,


que por sua vez, são caracterizadas pelas formações ideológicas e discursivas. Os
elementos de análise da AD são fundamentais para a construção dos sentidos do
discurso. As condições de produção (ampla e restritas) o dito, o não-dito, o silenciado, o
interdiscurso e o intradiscurso, colaboram para a identificação dos sentidos e para a
compreensão do texto como materialidade histórica.
As condições de produção são elementos essenciais para a análise do discurso,
elas que direcionam o momento político, econômico e social ao qual o discurso se refere
ou é referido. As condições de produção são divididas em duas (amplas e restritas), as
amplas referem-se ao contexto discursivo e ideológico e as restritas “dizem respeito ao
conjunto de contextos sociais que possibilitam a realização do discurso”. (FLORÊNCIO
et al, 2009, p. 64).
O dito é um dos elementos da AD que determina o que foi dito explicitamente
pelo sujeito, e está presente na própria materialidade do texto, no qual não demanda de
uma compreensão ampla da formação ideológica e das condições de produção.
O não-dito é caracterizado como a negação do que está presente no dito, nesse
elemento de análise as afirmações serão negadas. A partir do não-dito, podemos
observar o silenciado, que se trata daquilo que ficou oculto no discurso, nesse caso, o
implícito.
O interdiscurso apresenta-se em nível histórico e relaciona o discurso à
historicidade, à memória discursiva, de outros momentos vivenciados, de outras falas
que podem ser comparadas ao discurso, da relação da materialidade textual com o
mundo externo. Enquanto o intradiscurso trata daquilo que está presente no corpo do
discurso, interno a ele, que seriam as escolhas lexicais e discursivas do momento da
enunciação. Com base nesses elementos de análise, compreendemos melhor as
formações discursivas e ideológicas por trás do discurso.

3 Análise do corpus

O corpus é constituído por um trecho do pronunciamento do presidente Jair


Bolsonaro, realizado no dia 24 de março de 2020. O texto tem como temática central o
posicionamento do presidente, como maior figura política do país, sobre a Covid-19,
abordando aspectos como as medidas restritivas necessárias para o controle da
proliferação da doença no Brasil, além de falar um pouco do que se trata essa doença, e
os impactos que pode causar, pois ainda pouco se sabe sobre ela.

 O discurso e a repercussão:

“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo
vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito acometido de
uma gripezinha ou resfriadinho”, Diz o presidente em um dos trechos do
pronunciamento.

Esse discurso foi transmitido pela maioria dos canais abertos de rádio e
televisão, e repercutiu em diversos jornais. A maioria dos comentários, referentes ao
discurso do presidente, apontam para críticas negativas, alegando falta de empatia com
os cidadãos, falta de conhecimento sobre a doença e irresponsabilidade política. Alguns
dos jornais que repudiaram o discurso foram: Correio do Estado, UOL, NEXO, Poder
360, JC, e outros.
Todos esses jornais destacam a situação de saúde pública que o país e o mundo
vivenciam, desde dezembro de 2019, quando houve o primeiro diagnóstico do vírus, na
cidade de Wuran, na China. Os jornais apontam para a minimização da doença em um
contexto em que já havia morrido milhares de pessoas no mundo, e outros milhares
contaminados com sintomas leves e graves, demandando leitos de enfermaria e UTI nos
hospitais. No Brasil, até o dia 24 de março de 2020, coincidentemente, o dia do
pronunciamento do presidente, o Ministério da Saúde registrou a marca de mais de 2500
casos positivos e 60 mortes.
Entendendo esse contexto do qual parte o pronunciamento, pode-se analisar o
discurso, mais precisamente, seguindo os pressupostos metodológicos da AD.
Primeiramente, reforçando a importância das condições de produção, e como destaca
Florêncio et al (2009, p. 65) “para que possamos entender como essa categoria –
condições de produção -, precisamos concebê-las em seus dois sentidos: amplo e
estrito”. A primeira relaciona o discurso ao contexto sócio-histórico-ideológico,
enquanto a segunda, diz respeito ao contexto imediato da produção do discurso.

 Condições de produção do discurso

Amplas:

Crise mundial de saúde ocasionada pela pandemia de Covid-19. Os impactos


causados pela doença começam aparecer nos países europeus, que tiveram a opção de
escolher entre duas alternativas: ou aderiam o confinamento social, em massa, e como
resultado, eles teriam um rombo na economia; ou continuavam sem restrições, e
presenciavam diariamente, centenas de mortes e superlotação dos hospitais, causando
uma crise de saúde pública.
No Brasil, o primeiro caso testado positivo tinha ocorrido a pouco mais de um
mês, e já era chegada a hora das autoridades políticas tomarem partido sobre quais
medidas tomar. Pesquisadores e cientistas ainda pouco conheciam sobre o vírus, dessa
forma, não se tem uma previsão de quando uma vacina eficiente será fabricada, testada
e distribuída para a população. Sendo assim, aconselham seguir as recomendações da
Organização Mundial da Saúde (OMS).
Além dos problemas relacionados à pandemia, o Brasil registrou queda na
economia, altos índices de desemprego, insatisfação com decisões tomadas por
políticos. Presidentes, senadores e deputados defenderam a redução de gastos sociais, na
saúde e na educação, e recentemente, aprovaram uma série de modificações nas leis
trabalhistas e na previdência social.
Restritas:

Divulgação dos dados da Covid-19, no mundo e no Brasil. O principal ponto de


pauta dos jornais era as notícias sobre a doença e a proliferação. As mídias cobram o
posicionamento do poder publico, e mostra a situação dos países que aderiram as
medidas restritivas propostas pela OMS e a situação dos países que não aderiram, ou
que demoraram muito para tomar essas decisões.
Nesse contexto, os governadores tomam posicionamentos individuais em seus
estados e provocam divergências em relação às medidas defendidas pelo presidente. Os
governadores defendem o isolamento social, começam a decretar o fechamento de
serviços não essenciais, a paralisação das aulas na rede estadual de ensino e nas
universidades, enquanto isso, o presidente defende que não é o momento de parar.
O ministro da saúde recomenda o isolamento social e as medidas de proteção
individual, o que gera uma discordância entre essa autoridade e o presidente, que por
sua vez, apesar dos dados aumentarem no país, ainda defende que as pessoas não podem
seguir a quarentena, pois precisam trabalhar. O que gerou, posteriormente, o pedido de
demissão do ministro.
No pronunciamento do dia 24 de março de 2020, o presidente critica a postura
dos governadores e tenta minimizar os impactos da doença, alegando que tudo isso não
passa de uma histeria e que a doença não é tão grave assim, conforme a mídia está
divulgando.

 O dito/não-dito/silenciado

Segundo Florêncio et al (2009, p. 85), “o dito é a materialidade discursiva que


apresenta uma forma que pretende dizer, um conteúdo”. Assim, o dito trata-se de um
elemento da AD que aborda o que está totalmente explícito no texto, nesse caso, a
materialidade do discurso. No caso do discurso analisado, o dito refere-se ao seguinte
fragmento:

“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo
vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito acometido de
uma gripezinha ou resfriadinho”.
Enquanto o dito trata da parte explicita na materialidade, o não-dito só pode ser
compreendido se tomarmos como base o dito. Pois, o não-dito será a negação da
afirmação dentro do discurso. Dessa forma, tomemos como base as afirmações do
discurso acima e observemos as negações que estão por trás:

Afirmação: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse
contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar.”

Negações:

 Se o caso é particular, não se estende a toda população brasileira, sendo assim,


as pessoas devem continuar se preocupando com o vírus;

 Se o histórico de atleta pode diminuir os efeitos do vírus, todos os atletas


estariam livres de complicações;

 Se o histórico de atleta diminui os efeitos do vírus, todos que não fizessem parte
desse grupo estariam comprometidos;

 Se fosse contaminado pelo vírus não tinha com o que se preocupar, então se
outras pessoas fossem contaminadas elas deveriam se preocupar;

Afirmação: “Nada sentiria ou seria, quando muito acometido de uma gripezinha ou


resfriadinho”.

Negações:

 (ele) nada sentiria se tivesse contato com o vírus, logo, outras pessoas poderiam
sentir;

 No máximo sentiria os sintomas de uma gripe ou de um resfriado, logo, poderia


sequer sentir algo, dessa forma, o vírus não trás problemas graves à saúde;

O não-dito demonstra que o presidente está o tempo todo referindo-se a si


mesmo e a medida que inclui o agente do discurso (o eu), ele exclui outro grupo de
pessoas (todos os outros que não se enquadram nessas características), ou seja, grande
parte da população brasileira.
A análise demonstra que não há inclusão dos brasileiros no discurso, faltando
com o exercício da empatia e de considerar que mesmo estando fora de perigo, outras
pessoas podem estar em perigo. Além de que, se adquirir o vírus, deve sim se
preocupar, uma vez que, a doença é contagiosa e ele poderia transmitir para outras
pessoas.
O silenciado é outro elemento fundamental para a compreensão efetiva do
discurso, ele “só acontece a partir do não-dito, isto é, a partir da captação do
interdiscurso que atravessa a materialidade discursiva, derivado das condensações e
deslocamento” (FLORÊNCIO et al, 2009, p. 87). Portanto, o silenciado, parte dos
elementos que ficaram implícitos na materialidade discursiva e que são significados
pelo leitor. Observemos alguns elementos silenciados no pronunciamento do presidente:

 Os impactos da Covid-19 não podem ser generalizados;


 Nem todos os atletas estão livres do vírus;
 Muitos atletas já contrariam o vírus e tiveram sintomas graves;
 A Covid-19 não é uma gripe ou resfriado, é um vírus descoberto recentemente,
cujos sintomas, em casos mais graves, passam de febre e dor de cabeça, podendo levar à
morte por insuficiência respiratória;
 Não se conhece muito sobre o vírus, não se tem vacina e nem remédio
comprovadamente eficaz, assim, é motivo de preocupação, tanto de quem está doente
como de quem não está;
 A luta dos profissionais da saúde que trabalham incansavelmente para salvar
vidas;
 A quantidade de vidas que foram perdidas em decorrência do vírus;
 A quantidade de pessoas que sofre com os sintomas da doença e longe dos
familiares;
 A necessidade de proteção das pessoas e de quem está ao redor delas;
 A situação de muitas famílias que não tem sequer os produtos de higiene
necessários pra utilizar;

Existe uma grande quantidade de elementos silenciados nesse discurso, além dos
que foram citados, outros podem ser obsevados. Outros elementos, que podem ser
depreendidos na AD, é o interdiscurso e o intradiscurso, além da formação ideológica e
discursiva. A partir da observação desses aspectos observamos quem é o sujeito do
discurso e se ele se mostrou coerente com a ideologia que segue.

 O interdiscurso e o intradiscurso

O interdiscurso relaciona a linguagem à historicidade e retoma a memória


histórica do sujeito do discurso, por situações já vividas anteriormente ou por falas
ressignificadas. Assim, “o interdiscurso se constituí de um discurso já construído,
ressignificando algo dito antes, em outro momento e lugar”. (FLORÊNCIO et al, 2009,
p. 89).
No discurso do presidente Jair Bolsonaro a memória discursiva de que os atletas
são pessoas extremamente saudáveis e que estão isentos de doenças graves é resgatada.
Isso se dá pelo fato das pessoas que pertencem a esse grupo seguirem dietas, praticarem
exercícios, fazerem uso de suplementos vitamínicos que, por consequência, aumentam a
imunidade. Entretanto, isso não significa dizer que essas pessoas não adoecem nunca.
Outro elemento intradiscursivo presente na fala do presidente é a ideia de
histeria social, que as pessoas se preocupam muito com coisas banais e que tomam
decisões precipitadas. Dessa forma, ele minimiza os impactos do vírus para tentar
contradizer o que os dados científicos demonstram.
Essa visão de que a doença não é grave, trás nas entrelinhas que não importa
quantos vão ser contaminados, ou quantos vão morrer, mas sim que a economia não
pode parar. O que importa aqui é a visão capitalista, o aumento da economia é a
principal preocupação do governo, mesmo com muitas mortes, o país estaria fazendo a
economia circular, porém com o isolamento social isso não seria possível.
O intradiscurso refere-se às escolhas lexicais e discursivas em situações e
momentos específicos. Relaciona-se com o interdiscurso, no sentido em que, o contexto
de produção do discurso influencia nas escolhas linguísticas do sujeito. Na análise das
escolhas lexicais e discursivas é observada a retomada do interdiscurso:

“No MEU caso PARTICULAR, pelo MEU histórico de ATLETA, caso fosse
contaminado pelo vírus, NÃO PRECISARIA ME PREOCUPAR. Nada sentiria ou seria,
QUANDO MUITO acometido de uma GRIPEZINHA ou RESFRIADINHO”.
Essas escolhas lexicais e discursivas retomam a ideia de que esse é um caso
particular e que no discurso, o presidente exclui as pessoas que não fazem parte desse
grupo. Retoma a ideia de que os atletas não adoecem e se adoecerem, no máximo
sentirão os sintomas de uma gripe ou resfriado, assim, não precisariam se preocupar.
Nesse caso, ao tempo que o presidente fala sobre a sua condição e diz que não precisa se
preocupar, mostra despreocupação com as outras pessoas.
O léxico utilizado no discurso define a Covid-19 como uma doença de menor
impacto à saúde do que a gripe ou o resfriado, isso pode ser percebido pela utilização do
sufixo (INHO/A), após as palavras gripe e resfriado. Esses sufixos são utilizados como
diminutivos. O discurso mostrou que os sintomas da doença nas pessoas, com histórico
de atleta, seriam menores ainda do que de uma gripe ou resfriado.

 Formação discursiva e formação ideológica

De acordo com Florêncio et al (2009, p. 91), “as formações discursivas são


concebidas como provenientes de uma formação ideológica que lhes dá suporte, como
lugar de articulação entre língua e discurso”. A formação discursiva pode ser entendida
como a materialidade da ideologia, que pode ser modificada conforme o sujeito do
discurso.
No discurso em análise, essa formação se dá por o sujeito ser um político, o
presidente do país, que faz uso de sua autoridade para contrariar os governadores, os
cientistas e a OMS, em relação às medidas sobre a Covid-19. O sujeito do discurso
demonstra, a partir de suas ideologias, o poder de em rede nacional falar sobre um
assunto que apresenta ter pouco conhecimento, criticando a mídia e a ação de
governadores, que de certa forma, são inferiores a ele, nas relações de poder.
A formação do discurso materializa a ideologia. Dessa maneira, entendemos que
a formação ideológica desse discurso está ligada a imposição de quem detém maior
poder nacional, e que todos devem seguir o que ele orienta, mesmo que contrarie outras
orientações nacionais e mundiais.
Ainda é vista uma formação ideológica que parte da sociedade capitalista, em
que o que importa é o lucro, dinheiro, ou aumento da econômica, já que em sua
essência, o discurso do presidente foi contrário às medidas de proteção que os
governadores impuseram em seus estados, por isso, minimizou a doença, conforme
visto no discurso. Concluindo, esse sujeito pode ser enquadrado como pertencente a
uma formação discursiva de classe média alta, político, e que colocou a economia acima
das vidas.

CONCLUSÃO

A metodologia adotada pela AD possibilita identificar aspectos discursivos que


estão presentes na materialidade do texto, através da relação contextual. Os elementos
fundamentais de análise da AD, (dito, não-dito, silenciado, as condições de produção
amplas e restritas, o interdiscurso e o intradiscurso e as formações discursivas e
ideológicas), favorecem à compreensão de qual a relação existente entre a ideologia do
sujeito e o discurso que profere, dessa forma, observando se esta postura segue uma
coerência com seu pertencimento social.
O discurso proferido pelo presidente Jair Bolsonaro apresenta-se coerente
quando relacionado à ideologia que ele segue, entretanto, mostrou-se incoerente,
quando comparada a série de condições sociais e políticas da atualidade. Pelo histórico
de escolhas do sujeito desse discurso, pode ser observado que a priorização da economia
(capital) sempre foi ponto de pauta quando relacionada a outros pilares sociais. Toda
via, o discurso recebeu muitas críticas negativas, pois diante das condições que foi
proferido, a grande expectativa seria que houvesse um reconhecimento do povo
brasileiro e apresentações de possíveis soluções.
O que foi observado a partir da análise é que o sujeito fala apenas sobre um
grupo social, o qual ele está inserido, cujo é reforçado o tempo inteiro, com o uso do
pronome “meu” em: “meu caso particular”, “meu histórico de atleta”, e outras partículas
discursivas, assim, rompendo com o exercício da empatia. Outro aspecto foi à
minimização da doença, comparando-a a uma gripezinha ou resfriadinho, o que mostra
a falta de propriedade para falar desse assunto, pois contraria as observações de
pesquisadores, cientistas e médicos.
A referida pesquisa é relevante, por possibilitar uma análise mais apurada de
discursos que, muitas vezes, consideramos pouco informativos, mas que, na verdade,
apresentam uma série de fatores sociais, políticos, econômicos e ideológicos da
formação discursiva do sujeito.
A leitura deste trabalho é indicada a pessoas que possuem curiosidade sobre o
campo da AD, aos estudantes de Letras que tenham interesse em estudos sobre os
sentidos do discurso e a relação ideológica do sujeito, e para os profissionais da
educação, que podem a partir da AD, favorecer na formação de alunos mais críticos e
observadores.

REFERÊNCIAS

ELIA, L. O sujeito, o real e o social. II SEAD – Seminário de Estudos em Análise do


Discurso. Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 2005.

FLORÊNCIO, A. M. G. et al. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Maceió:


edufal, 2009.

GREGOLIN, M. R. V. A análise do discurso: conceitos e aplicações. Departamento de


Linguística - Faculdade de Ciências e Letras - UNESP. São Paulo: Alfa, 13-21, 1995.

KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. 10 ed. São Paulo: Contexto, 1997.

ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Ed.


Pontes, 1999.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2 ed.


Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.

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