Você está na página 1de 14

Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez.

2018 146

Vsévolod Meyerhold:
a revolução do gesto na cena teatral russa
no início do século XX

Morgana Fernandes Martins1

Resumo: A proposta deste artigo consiste na abordagem e re-


Recebido em 1º de abril de 2018.
Aceito em 5 de julho de 2018. flexão sobre a revolução do gesto na cena teatral russa durante
os primeiros anos do século XX. A perspectiva de análise é
voltada para as investigações e práticas cênicas desenvolvidas
pelo encenador Vsévolod Meyerhold, refletindo de que forma
ele idealizou um gestual para a cena possível de ser observado
como uma proposta revolucionária para o teatro no Ocidente.
O conceito de gesto é fundamentado nos estudos de Giorgio
Agamben, e seu pensamento dialoga com as demais referên-
cias apresentadas ao longo do texto. Na esfera teatral, a dis-
cussão conceitual sobre o gesto se apoia nas perspectivas de
Patrice Pavis e Bertold Brecht. Os estudos de Agamben, abor-
dados neste artigo, refletem sobre uma sociedade que perdeu
o domínio de seus gestos e, obsessivamente, lutou para recu-
perá-los. O filósofo traça paralelos com artistas e escritores que
propuseram, de maneiras diversas, a recuperação da consciên-
cia do gesto. A partir desta perspectiva, este artigo aponta al-
gumas referências artísticas que ressignificaram, cada uma a
seu modo, o gesto e o corpo na arte. No foco central desta dis-
cussão estão Meyerhold e a maneira como ele revolucionou o
gesto na cena teatral.

Palavras-chave: Gesto Teatral; Revolução do Gesto na Cena;


Teatro de Meyerhold; Gesto do Ator Meyerholdiano

1 Doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC/UNIRIO e pesquisadora do teatro de Meyerhold nos segmentos teórico
e artístico, com foco na técnica da biomecânica teatral e na exploração da musicalidade do corpo cênico. E -mail:
morganafmartins@gmail.com

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
147

Os impulsos da ressignificação ges- (2008), é possível refletir de que maneira


tual na cena ocorreu o evento identificado como o de-
sordenamento do gesto e sua recomposição.
Quando tomamos conhecimento e A conscientização do movimento do corpo
refletimos acerca das dedicadas pesquisas pode apontar, inicialmente, para o aspecto
de Vsévolod Meyerhold sobre o corpo do do indivíduo. Por outro lado, é possível
ator, percebemos que, não por acaso, o en- refletir também como a consciência do cor-
cenador se debruçou sobre as peculiarida- po e do gesto pode atingir um campo dila-
des do gesto na cena teatral. O período que tado, envolvendo uma esfera social. O dire-
corresponde ao final do século XIX e início cionamento desta discussão abre um cami-
do XX introduziu na Rússia, embalada pe- nho para a observação sobre as possíveis
las tendências vindas da Europa Ocidental, reflexões de Meyerhold a respeito da cons-
sobretudo Alemanha e França, um apro- cientização do movimento do corpo do
fundamento a respeito dos estudos do mo- ator. Afinal, a técnica da biomecânica tea-
vimento do corpo. Este contexto fez com tral de Meyerhold, maior legado deixado
que a própria Rússia se tornasse uma gran- pelo encenador, é pautada em uma propos-
de potência neste campo de pesquisa. Me- ta de reabilitação do gesto teatral, a partir
yerhold, que sempre se mostrou atento aos de sua consciência e forma de condução no
acontecimentos de sua época – sendo eles teatro de sua época.
artísticos, ou atuantes nas demais áreas de
conhecimento – percebeu a transição que A perda e a reconstituição da cons-
ocorria com relação ao gesto do corpo e cientização do gesto
prontamente a observou e contribuiu de
forma revolucionária com o exercício do Agamben observou que, na virada
gesto na cena teatral. dos séculos XIX e XX, o indivíduo, sobretu-
É interessante, no entanto, para a do no Ocidente, havia perdido a consciên-
composição da linha de pensamento deste cia e, de certa forma, o controle de seus ges-
artigo, discutir em primeiro momento a tos e, ao alcançar a noção desse fato, travou
situação em que se encontrava este corpo uma luta para recuperá-los. Porém, para se
durante o período das investigações de reapropriar do gesto, não bastava que ele
Meyerhold, especialmente voltadas para as reaprendesse sua execução, uma vez que já
duas primeiras décadas do século XX. É obtinha esse domínio. Era necessário, con-
proposta, para este estudo, a reflexão de tudo, retomar a noção do gesto e, conse-
que a transição do corpo do teatro russo quentemente, o controle sobre ele.
naturalista/realista de Stanislávski, para o Agamben observou, a partir de estu-
corpo simbolista/construtivista de Meye- dos científicos realizados durante a transi-
rhold, não foi um fato isolado apenas no ção do século XIX para o XX, a existência do
âmbito teatral e, sim, decorrente de uma que ele nomeou como uma “desordem”
sociedade que repensaria seu corpo nesta (2008, p. 10) nos gestos, que ocorreu, prin-
época, especialmente com relação à ressig- cipalmente, na burguesia ocidental desta
nificação de seus gestos. época. Como se tivesse existido uma perda
Apoiado essencialmente nos estudos do controle dos gestos e, posteriormente,
do filósofo italiano Giorgio Agamben

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
148

uma obsessão em recuperá-los. Essa obser- um destino” (AGAMBEN, 2008, p. 11). E


vação feita pelo filósofo teve como ponto de um apelo à interiorização como caminho
partida as pesquisas realizadas pelo médico dessa busca foi uma marca consequente.
francês Gilles de La Tourette, que, entre O ato de retomar o controle do gesto,
1884 e 1886, desenvolveu e publicou estu- contudo, se deparou diante de uma ineficá-
dos clínicos que abarcaram a esfera do ges- cia: se a retomada do gesto, nesse sentido,
to. A síndrome de La Tourette, como ficou não escapa do caminho da reaprendizagem
conhecida, é um transtorno neuropsiquiá- sobre ele, como então reaprender a cami-
trico que se reflete nos movimentos invo- nhar, por exemplo, uma vez que a execução
luntários e incontroláveis do corpo. desse ato já foi aprendida desde a primeira
Desse modo, as pesquisas de Touret- infância e nunca mais foi abandonada? Ou
te proporcionaram a Agamben uma análise seja, como reaprender algo que nunca fora
que o levou a concluir a desordem dos ges- esquecido?
tos sofrida por um número significativo de A partir desse raciocínio, Agamben
pessoas no final do século XIX. O filósofo observou na literatura e nas artes meios
atentou, ainda, que, curiosamente, durante particulares de discutir a perda do controle
anos após esses estudos, até meados do sé- e a retomada do gesto, uma vez que essas
culo XX, praticamente não houve registros vertentes se destinam à reapropriação esté-
sobre casos de tourettismo. A suspeita de tica do gesto e não à busca e repetição do
Agamben se direciona não ao desapareci- que fora perdido. Agamben aponta que
mento da síndrome, e sim ao fato de que nessas vertentes foram criadas maneiras de
sua recorrência se tornou normalidade. discutir a questão do gesto sobre diferentes
Nesse sentido, é possível compreender o linguagens e referenciou alguns dos artistas
raciocínio de Agamben com relação ao que e escritores que propuseram essa prática:
diz da perda dos gestos, referindo-se não a Nietzsche, Isadora Duncan, Diaghilev,
uma perda literal, e sim à perda do controle Proust, Pascoli e Rilke.
sobre eles: Para o filósofo, seu pensamento a
respeito do gesto se direciona primeiramen-
Uma das hipóteses que se pode te no sentido de que esse age diretamente
sustentar para explicar este de- sobre a linguagem da comunicação. O em-
saparecimento é que, neste meio prego do gesto na comunicação aparece
tempo, ataxia, tiques e distonias quando há a impossibilidade da fala, supe-
haviam se tornado a norma e rando, assim, a falha que deriva da própria
que, a partir de certo momento, palavra. Dentro dessa discussão, é possível
todos tinham perdido o controle sugerir, então, que o gesto se insere na lin-
dos seus gestos (AGAMBEN, guagem para comunicar o que a palavra
2008, p. 10). não alcança, porém, não somente no senti-
do revelador, e sim como outro meio de
A tomada de consciência da perda de tentativa de comunicação.
controle dos gestos, no entanto, resultou, O gesto na reflexão de Agamben é
segundo Agamben, em uma busca obceca- colocado, então, como “pura medialidade”
da por eles: “Para homens, dos quais toda (2008, p. 13), como um meio da comunica-
natureza foi subtraída, cada gesto tornou-se ção, ao mesmo tempo em que o filósofo

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
149

percebe no gesto uma força operante sobre desencadearam uma nova maneira de ex-
ela. Um gesto, sendo assim, pode estar re- pressar o gesto na cena. Ele propôs, desse
pleto de significações e, no âmbito da litera- modo, uma ressignificação do gesto, uma
tura e das artes, ele pode adotar posturas forma de perceber o gesto no teatro como
representativas. É sob esta perspectiva que uma categoria de linguagem. O encenador,
será discutido o que se pode observar como dedicado ao estudo psicofísico do corpo do
uma revolução do gesto no teatro ocidental ator, desenvolveu uma intensa pesquisa
do início do século XX e de que maneira as que, analisada sob os parâmetros do gesto
práticas de Meyerhold foram essenciais pa- enquanto linguagem, se revela como uma
ra este processo. vertente do teatro gestual.
Porém, antes de discutir o gesto na
O teatro gestual e as práticas de Me- cena meyerholdiana, é necessário contextu-
yerhold alizar a noção de gesto na esfera teatral e, a
partir desse ponto, refletir sobre a ideia de
A partir da reflexão realizada sobre um teatro gestual, ou seja, uma linguagem
os estudos de Agamben, destacando deles teatral pautada no gesto. Para embasar este
especialmente dois aspectos – a arte como tópico, tanto as teorias de Patrice Pavis,
reapropriação do gesto e o gesto como lin- como as pesquisas de Bertolt Brecht, serão
guagem de significações não verbais – é analisadas. Ainda nessa etapa, visões de
possível observar a reconstituição do gesto Benjamin e Barthes também contribuirão
no teatro russo do início do século XX e com o conteúdo dos autores referidos.
como as práticas de Meyerhold foram es- Na publicação Dicionário de teatro
senciais neste contexto. (1999), o autor Patrice Pavis dedica um de
Em plenos anos de pré-revolução e seus verbetes ao termo Gesto (p. 184). Neste,
redescobertas estéticas e ideológicas nas Pavis desdobra o termo em subitens, dos
artes e literatura, Meyerhold repensou a quais dois deles dialogam diretamente com
lógica da criação teatral. Influências artísti- o conteúdo discutido nesse estudo: “O ges-
cas, científicas, filosóficas e literárias cerca- to como expressão” (p. 184) e “O gesto co-
vam o universo criativo de Meyerhold. O mo produção” (p. 185).
corpo significativo do teatro japonês e o Em “O gesto como expressão”, Pavis
virtuosismo do ator da Commedia dell’Arte, reflete a questão do gesto como um meio de
além das práticas circenses, despertaram no expressividade do ator: “A natureza ex-
encenador o desenvolvimento de uma lin- pressiva do gesto torna-o particularmente
guagem teatral a partir do gesto. Seu co- apropriado a servir à atuação do ator, o
nhecimento sobre música e estudos de fisio- qual não tem outros meios senão os do seu
logia, psicofísica e reflexologia contribuí- corpo para expressar seus estados aními-
ram para profunda investigação sobre o cos” (1999, p. 184). Nesse sentido, as pala-
corpo do ator, no que corresponde ao ritmo vras de Pavis se aproximam do pensamento
e precisão dos movimentos e à expressivi- de Agamben, como visto anteriormente, no
dade da gestualidade cênica. que se refere ao gesto como uma “mediali-
Por este percurso, Meyerhold desen- dade”. Ao mesmo tempo, o filósofo percebe
volveu práticas de treinamento do ator que no gesto seu poder de significação, e essa
percepção se aproxima, dessa vez, da refle-

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
150

xão de Pavis a respeito d’ “O gesto como individualização do gesto em si. Mesmo o


produção”: teórico não deixando notoriamente explíci-
to, é possível compor o raciocínio – a partir
Superando o dualismo impres- de suas palavras, quando se referem às
são-expressão, essa concepção “maneiras de ser corporais”, como também,
monista considera a gestualidade à “gestualidade (...) como produtora de sig-
do ator (ao menos numa forma nos” – do gesto enquanto uma categoria de
experimental de interpretação e linguagem teatral, sendo assim, possível
improvisação) como produtora pensar em um teatro gestual.
de signos e não como simples O encenador alemão Bertolt Brecht
comunicação de sentidos “colo- produziu extenso material a respeito do
cados em gesto”, gestualizados gesto na cena teatral. Seu pensamento apro-
(PAVIS, 1999, p. 185). funda a reflexão sobre o tema no sentido de
que, para Brecht, o gesto assume uma ati-
O teórico se refere à superação da tude em relação ao outro, isso tira o caráter
impressão-expressão no sentido de que o individualizante do gesto, atribuindo a ele
gesto serviria, inicialmente, como um meio um aspecto social:
para o ator exteriorizar seus estímulos in-
ternos ou externos. Porém, a continuidade Chamamos esfera do gesto aque-
de seu pensamento sugere que o gesto en- la a que se pertencem as atitudes
quanto produção de signos é uma maneira que as personagens assumem em
de explorar a representação dele mesmo. relação às outras. A posição do
Pavis menciona o encenador Jerzy corpo, a entonação e a expressão
Grotowski, e sua noção de gesto, para apro- fisionômica são determinadas
fundar a ideia do gesto como produção de por um gesto social (BRECHT,
signos: “O gesto é, para ele [Grotowski], 2005, p. 155).
objeto de uma pesquisa, de uma produção-
decifração de ideogramas” (1999, p. 184). E, A partir desse pensamento, Brecht si-
relacionada à ideia de decifração de Gro- tua como a exteriorização do gesto pode ser
towski, Pavis cita a visão de Antonin Ar- contraditória e complexa, quando imersa no
taud: “Uma nova linguagem física à base de contexto teatral:
signos e não mais de palavras” (ARTAUD,
2006, p. 56). As visões de Grotowski e Ar- A exteriorização do gesto é, na
taud, levantadas por Pavis, sugerem que maior parte das vezes, verdadei-
ambos pensaram no gesto enquanto seu ramente complexa e contraditó-
potencial significativo. De certa maneira, é ria, de modo que não é possível
proposta, então, a ideia de que esses ence- transmiti-la numa única palavra;
nadores atribuíram ao gesto uma vertente o ator, nesse caso, ao efetuar uma
de produção de linguagem cênica. representação necessariamente
Pavis se refere também à gestualidade reforçada, terá de fazê-lo cuida-
do ator, e define esse termo como “um sis- dosamente, de forma a nada
tema mais ou menos coerente de maneiras perder e a reforçar, pelo contrá-
de ser corporais” (1999, p. 186), opondo-se à

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
151

rio, todo o complexo expressivo discutir, sob o mesmo aspecto, a gestuali-


(2005, p. 155). dade do teatro de Meyerhold em meio ao
contexto teatral produzido na Rússia no
Essa ideia de complexidade relacio- início do século XX. Para isso, é importante
nada ao gesto, para Brecht, envolve tam- abordar conjuntamente algumas esferas que
bém a maneira como ele é colocado em ce- abarcaram o universo de pesquisas do en-
na. Barthes revela que o gesto em Brecht, cenador, para melhor compreender suas
referido por ele como “detalhe”, é um esfa- propostas.
celamento do quadro criado, a fim de rom-
per com sua coerência. Barthes se apoia nos O reencontro do corpo com seus ges-
estudos de Benjamin ao refletir sobre essa tos
questão:
A arte não foi o único campo de co-
O detalhe brechtiano tem como nhecimento que foi atingido pelas renova-
função romper a continuidade, o das ideias a respeito do corpo e dos modos
empastamento do quadro; mas o de vida ocorridos na Rússia entre os séculos
quadro tem exatamente a mesma XIX e XX. Em diferentes âmbitos, o corpo,
função com relação à obra toda: nesse período, passou a ser o centro das
ele a esfacela, quer abertamente reflexões provenientes de diversas áreas. Os
esgotar todas as significações do mais minuciosos dos movimentos corporais
momento. Walter Benjamin ana- (inclusive as relações corpo e mente) passa-
lisou bem o alcance do gesto ci- ram a ser observados e, a partir disso, uma
tacional no teatro épico: o gesto série incontável de pesquisas se originaram
(e por extensão o quadro) é uma sobre o assunto. A historiadora Eugenia
citação, é construído para rom- Casini Ropa, que desenvolveu pesquisas
per uma coerência, um envene- sobre a arte do movimento no início do sé-
namento, para causar admiração, culo XX, aponta alguns dos estudos produ-
para distanciar (BARTHES, 2007, zidos nesta época, a partir da preocupação
p. 284). com o conhecimento e funcionamento de
diferentes setores que operam e compõem o
O gesto como rompimento de uma corpo:
continuidade e enquanto uma atitude social
são duas das visões que compõem o campo Nos anos que marcaram a passa-
complexo do raciocínio de Brecht sobre esse gem dos séculos XIX e XX, uma
tema. Estes apontamentos servem para potente onda de renovação atra-
pensar as diversas articulações do gesto no vessa a Europa, seja no que diz
âmbito teatral. As visões e práticas de Gro- respeito às ideias, seja no que se
towski, Artaud e Brecht, mencionadas nesse refere aos modos de vida. O cor-
estudo, foram empregadas para sugerir al- po, em particular, é colocado no
gumas possibilidades de como pensar o centro de inúmeras reflexões,
gesto enquanto linguagem cênica. concepções e experimentações
A partir desta ideia de investigar que envolvem diferentes âmbi-
uma proposta de teatro gestual, é possível

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
152

tos: científico, filosófico, pedagó- pio das correspondências” (ROPA, 2011, p.


gico e artístico. A anatomia e a 118), correlacionando o movimento do cor-
fisiologia revelam o funciona- po à revelação de seus processos interiores
mento orgânico do corpo; a psi- e de sua alma. Para o mestre de atores, can-
cologia, a psiquiatria e a psicaná- tores e bailarinos, “cada manifestação di-
lise revelam os mistérios da psi- nâmica – voz, gesto, ou movimento – se
que e sua relação íntima com as torna necessariamente expressiva, uma vez
manifestações corpóreas; a filo- que é motivada por impulsos internos que
sofia, e Nietzsche em particular, nela se revelam” (2011, p. 118).
atribui ao ser humano e ao seu Nesse contexto, a ideia de um corpo
corpo-mente funções que até en- libertário se expandiu pela Europa, che-
tão eram associadas com a trans- gando à Rússia, muito em consideração pe-
cendência; o dualismo cartesiano las marcas deixadas pela inovadora bailari-
entre a res cogitans e a res extensa na Isadora Duncan:
é constatado depois de séculos e
suplantado pela visão de um Dançarina singular e instintiva e
homem holístico, global, cujas mulher que vivia fora dos pa-
propriedades físicas, intelectuais drões convencionais, Duncan
e morais estão intrinsecamente atravessará mais tarde a Europa
conectadas e se revelam através – sobretudo a Alemanha e a Rús-
do corpo (ROPA, 2011, p. 117). sia – como um furacão, ilumi-
nando as necessidades reprimi-
A pesquisa de Agamben, abordada das de uma nova corporeidade e
neste estudo, discute também o traço carac- influenciando artistas de várias
terístico de uma época que passou a refletir disciplinas, dançarinos princi-
novos caminhos a respeito de seu corpo. E, palmente (ROPA, 2011, p. 118).
relacionado a esse período, é que Agamben
observa uma busca incessante pelo gesto: Seguindo a trilha de Delsarte, na
“Uma época que perdeu seus gestos, é por Alemanha, Laban e Dalcroze foram pesqui-
isso mesmo obcecada por estes” (2008, p. 9). sadores que também se destacaram na ex-
Nas artes, essa revolução atingiu perimentação da arte do movimento, rela-
inevitavelmente os artistas que tinham co- cionada com as ciências do corpo. Dalcroze,
mo meio de expressão o próprio corpo. musicista, empregou o ritmo musical na
Atores e bailarinos, “estão entre os primei- dinâmica gestual, e Laban defendeu a or-
ros a experimentar uma relação diversa en- ganicidade expressiva do corpo a partir do
tre impulso interior e ação, entre emoção e reconhecimento dos estímulos interiores.
expressão” (ROPA, 2011, p. 117). O teatro russo de vanguarda, por sua
As relações entre ciências e artes do vez, absorveu não apenas os efeitos da re-
corpo irão se intensificar cada vez mais e de volução do corpo, como, ainda, acompa-
formas profundas na virada dos séculos nhava toda a trajetória desse novo período
XIX e XX. Entre os estudiosos é possível político e social que transcorria em seu país.
destacar, em primeiro momento, o francês Não temos dúvidas de que a revolução rus-
François Delsarte, que explorou o “princí- sa, com seus primeiros estopins nos anos

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
153

iniciais do século XX, a qual se debruçou de fábrica, taylorização da atua-


enquanto ato manifesto sobre o corpo do ção ecoando as palavras de or-
operário, influenciou diretamente na re- dem leninistas e a favor do taylo-
composição do gesto de sua sociedade e, rismo que entusiasma os artistas
também, do seu teatro. de vanguarda (2013, p. 73).
Meyerhold, profundamente engaja-
do com a revolução, transferiu para o trei- A partir dos reflexos de uma socie-
namento de seus atores o exercício e a esté- dade em transição, é interessante discutir
tica da Taylorização 2 , devido ao seu interes- também as entranhas do teatro da época, a
se pela máquina, pela fábrica e pelo gesto fim de perceber as relações entre os aconte-
do operário. A própria técnica da biomecâ- cimentos da área externa desta sociedade e
nica teatral expôs reflexos característicos do interior das escolas de teatro.
deste período. O espetáculo O Corno magní- Entre os séculos XIX e XX, o Teatro
fico, que estreou em 1922, apresentou, por de Arte de Moscou, dirigido por Constantin
meio do corpo biomecânico, o gesto inspi- Stanislávski e Vladímir Dântchenko, viven-
rado na prática do corpo/máquina obser- ciava glorioso período de produção teatral,
vado no limiar dos séculos XIX e XX. A a partir da firme estética adotada pela com-
pesquisadora Picon-Vallin nos relata este panhia: “A verdade do Teatro de Arte de-
acontecimento: via acabar com todos os chavões petrifica-
dos das tradições e todas as convenções
A biomecânica, da qual foi feita envelhecidas do teatro” (ROPA, 2011, p.
uma demonstração pública no 28).
dispositivo histórico do Corno Essa verdade cênica foi uma constante
Magnífico, em 1922, é um dos busca de Stanislávski. Para alcançá-la, o
slogans do Outubro Vermelho encenador desenvolveu métodos que sus-
que estigmatiza a herança idea- tentaram o realismo estabelecido no palco.
lista dos teatros russos do século O pesquisador J. Guinsburg esclarece a res-
XIX, Teatro de Arte de Moscou peito do real e da verdade na cena stanis-
incluído, e cristaliza os princí- lavskiana:
pios ideológicos dos vanguardis- Com efeito, um ponto crucial no
tas produtivistas e construtivis- modo como Stanislávski faz e
tas: ator-operário, palco-oficina pensa teatro é a questão da ver-
dade e realidade na arte. Costu-
2 Taylorização ou Taylorismo é um conceito que tem ma-se confundir os dois termos,
origem no sistema organizacional de trabalho proposto
por Frederick Winslow Taylor no final do século XIX. ou seja, o real é o verdadeiro; e
Seu método consiste na divisão das tarefas laborais em uma vez obtido o real, a verdade
diferentes sequências e funções, garantindo maior pro-
artística seria a resultante neces-
dutividade no menor espaço de tempo possível. Este
sistema faz com que um operário de fábrica realize sária (GUINSBURG, 2001, p. 4).
movimentos repetitivos e mecânicos, controlando o
emprego de energia do corpo, a fim de garantir sua
segurança física e a agilidade de sua produção. Este
Se a verdade artística era uma resul-
sistema de Taylorização foi introduzido de forma mar- tante, Stanislávski criou caminhos para se
cante na industrialização da Rússia do período revolu- chegar até ela. A esfera emocional, junto
cionário, chegando a influenciar a cena artística da
época. com a imaginativa e a carnal, se intercru-

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
154

zam, e é nessa conjunção que “reside a au- também devia passar por mudanças” (RO-
tenticidade do representado, isto é, a sua PA, 2011, p. 29).
verdade” (2001, p. 6). Essa mudança representava a passa-
O pensamento de Stanislávski condi- gem do realismo para o simbolismo nas
zia com uma expressividade corporal que artes cênicas. O cotidiano na cena, a partir
partia da interiorização e resultava na exte- dessa transformação, já não tinha mais o
riorização do gesto em busca do real na ce- mesmo efeito, e os textos de Maeterlinck
na. Como observou Ropa, os artistas cêni- eram alguns dos indícios que revelavam
cos dessa época procuravam por “interior e que o realismo já não comportava mais os
ação”, “emoção e expressão”, e Stanislávski, anseios exigidos pela arte vanguardista da
dentro desse contexto, dialogava direta- Rússia do início do século XX.
mente com esse pensamento. Stanislávski, que poderia, por sua
Nesse sentido, é possível associar a vez, permanecer no campo seguro de um
pesquisa do diretor do TAM com o estudo teatro produzido para a burguesia, perce-
de Agamben no ponto em que ele observa beu os anseios artísticos da época e decidiu
no indivíduo a busca pela recuperação do se aventurar na estética simbolista. Ciente,
gesto por meio da interiorização: “É nesta porém, das dificuldades em decifrar os có-
fase que a burguesia, que poucos decênios digos que essa nova proposta exigia para a
antes ainda estava solidamente em posse cena, Stanislávski convidou seu ex-ator,
dos seus símbolos, é vitimada pela interio- Meyerhold, para montar encenações tea-
ridade e se consigna à psicologia” (AGAM- trais, seguindo as perspectivas artísticas da
BEN, 2008, p. 11). Vale lembrar que a bur- época.
guesia russa era o principal público das Meyerhold estava atento às ideias de
montagens de Stanislávski e, sendo a inte- um novo teatro quando, em 1902, decidiu
rioridade uma preocupação destacável no sair do Teatro de Arte para explorar, em
espectador, o encenador mostrou que seu uma província próxima a Moscou, as práti-
pensamento dialogava diretamente com ele, cas teatrais experimentais. Em 1905, ele re-
se apropriando da arte para discutir suas tornou ao TAM, sob convite de Stanislávs-
inquietações. ki, e juntos fundaram o Teatro-Estúdio, um
De certa forma, porém, mesmo Sta- laboratório de investigações de novas técni-
nislávski fazendo florescer em sua concep- cas de atuação, sugerindo, assim, uma re-
ção maneiras geniais de pensar o teatro, novação na arte dramática russa.
rompendo com convenções obsoletas e Sob um contexto de propostas aber-
formas ultrapassadas, o diretor, no início do tas, questões emergiam acerca da identida-
século XX, percebeu um impasse em sua de do Teatro-Estúdio: “Não havíamos defi-
criação. Hábil em explorar o realismo histó- nido até então que rosto teria o teatro [Tea-
rico e psicológico nas montagens de Tolstói, tro-Estúdio], ao colocar lado a lado em seu
Tchékhov e Górki, Stanislávski se deparou repertório Maeterlinck e Górki,
com o insuperável desafio imposto pela Przybyszewski e Ibsen, Verhaeren e Polevói
própria época: “A vida da sociedade russa (O heroísmo russo)” (MEYERHOLD, 2012, p.
após a revolução de 1905 mudara e tornara- 29). Destes respectivos autores, textos como
se mais complexa, e a arte, por sua vez, As sete princesas, contos de Górki, Neve, A
comédia do amor, As auroras, dentre outras

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
155

obras, foram cogitadas como material de cionalização, generalização e


experimentação do laboratório. símbolo. “Estilizar” uma época
Um dos textos trabalhados no Tea- ou um fenômeno significa reve-
tro-Estúdio com a finalidade de montagem lar através de todos os meios de
cênica e que deixou marca na carreira de expressão a síntese interna de
Meyerhold e na historia do teatro russo foi uma determinada época ou fe-
A Morte de Tintagiles de Maeterlinck. A en- nômeno, reproduzir seus traços
cenação, construída até o ensaio geral, não mais escondidos e secretos, que
experimentou o encontro com o grande pú- se encontram apenas no profun-
blico, porém, seu processo foi fundamental do e secreto estilo de alguma
diante do contexto simbolista que se origi- obra de arte (MEYERHOLD,
nava. Foi a partir dessa pesquisa cênica que 2012, p. 33).
Meyerhold abriu caminho para o teatro de
“convenção consciente”, termo divulgado Os caminhos que compuseram o di-
pelo poeta simbolista Valeri Briussov e ad- recionamento da proposta cênica de Meye-
mitido pelo encenador. Por meio dessa rhold deste período dizem respeito, essen-
proposta, Meyerhold passou a investigar cialmente, à quebra da atuação naturalista,
um aspecto que veio a chamar de teatro se dedicando ao ritmo e forma do movi-
estilizado, ou de estilização: mento do ator e à cenografia dessa lingua-
As primeiras tentativas de um tal gem. Sua proposta caminhava por uma
teatro, sugerido por Maeterlinck forma original de trabalhar o corpo e os
e Briussov, foram realizadas no gestos, com uma perspectiva singular em
Teatro-Studio. Acredito que foi a relação às técnicas exploradas no teatro
montagem de A Morte de Tintagi- ocidental até então. O encenador sugeriu
les que este teatro de pesquisa repensar o gesto no teatro, fazendo com que
aproximou-se o máximo do tea- “ele (o ator) explicite com o corpo o que não
tro de convenção consciente ide- consegue dizer com palavras” (PICON-
al (MEYERHOLD, 2012, p. 27). VALLIN, 2013, p. 35).
Meyerhold era um artista complexo,
Ainda a respeito da estilização, Me- no sentido de que absorveu para o seu tra-
yerhold esclarece que a convencionalização balho diferentes fontes de pesquisas. O de-
é um meio de retratar uma época no teatro, senvolvimento de sua prática cênica, relaci-
sem ser, portanto, de maneira exata, e sim onado aos estudos do corpo do ator, apre-
generalizada, simbólica. Em suas palavras é senta influências de linguagens artísticas
possível perceber sua proposta: voltadas, essencialmente, ao poder de signi-
ficação do gesto na cena. Atenta a todas as
Por “estilização” eu presumo referências que envolveram o trabalho do
não a reprodução exata do estilo encenador, Picon-Vallin destaca duas das
de uma determinada época, co- mais importantes:
mo faz um fotografo em seus
filmes. Ao conceito de estiliza- [Meyerhold] tem suas raízes, sua
ção, a meu ver, está intrinsica- fonte viva em suas longas pes-
mente ligada a ideia de conven- quisas sobre a Commedia dell’arte

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
156

(realizadas juntamente com V. alma do personagem (PICON-


Solovióv), e sobre os teatros ori- VALLIN, 2013, p. 19).
entais, onde ele não concebe o
movimento, “o elemento mais Para o revolucionário encenador, o
poderoso da cena”, senão ligado gesto, no “teatro imóvel”, assume o tempo
à música (PICON-VALLIN, 1989, da pausa, mas não uma pausa relacionada
p. 4). ao texto verbal, e sim como um traço repre-
sentativo e significativo desse gesto. Neste
O teatro japonês imprimiu forte in- caso, o gesto supera o alcance da palavra
fluência sobre o trabalho do encenador rus- dita, como sugeriu Agamben. Dentre as
so. Dessa modalidade, Meyerhold observou significações possíveis de uma pausa, para
a expressão do movimento como gestos a Meyerhold, em A Morte de Tintagiles, ela
serem decifrados, onde cada um deles é pôde acarretar um significado que, por
preenchido por um significado. Com rela- meio dela mesma e da potência de sua imo-
ção à Commedia dell’arte, é a habilidade do bilidade, revelou algo extraordinário na
corpo virtuoso do ator e sua destreza na cena.
improvisação que Meyerhold absorve para Ao deixar o Teatro-Estúdio, Meye-
sua pesquisa. rhold cria uma nova versão para A Morte de
Na montagem de A morte de Tintagi- Tintagiles, em 1906. Junto de seus atores da
les, de 1905, o encenador deixa revelar os Confraria Novo Drama, o encenador se
princípios dessas influências como forma permitiu mergulhar ainda mais fundo nas
de romper com a estética que havia sido suas experimentações e compôs uma mon-
produzida pelo TAM. Dessa maneira, Me- tagem totalmente pautada na plasticidade
yerhold começou a construir os pilares de do gestual da cena. Picon-Vallin aponta
sua prática cênica que o acompanhou ao características da linguagem desta segunda
longo de sua carreira: proposta de A Morte de Tintagiles, realizada
Em vez do psicologismo, o prin- por Meyerhold:
cípio diretor da atuação se torna
plástico. Trata-se de trabalhar ên- A encenação de A Morte de Tinta-
fases visuais, não ênfases lógicas; giles [de 1906] é vista pela crítica
de revelar, não de exprimir (...). como um “balé trágico”, no qual
A morte de Tintagiles, de 1905, as palavras desempenham um
postula o princípio de um “teatro papel insignificante (quase não
imóvel” que se apoia nos tempos eram ouvidas). O que é impor-
da pausa. Diametralmente opos- tante, o que está em evidência é o
tas às do Teatro de Arte, essas gestual plástico, os cenários ins-
pausas não são mais reticências pirados pelos quadros de Bocklin
justificadas no diálogo verbal: e a música de Sats que, evocando
elas se tornam o momento essen- a inutilidade dos esforços para
cial no qual se concentra e se pe- encontrar o uníssono, busca
trifica o movimento que, muito apreender a importância dos
mais do que as palavras, revela a homens para salvar a vida da

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
157

morte (PICON-VALLIN, 2013, p. mentos, propondo intensos desafios para


23). seus atores.
É neste contexto desafiador, sob pa-
Desde 1905, ou mesmo três anos an- râmetros espaciais e corpóreos, que Meye-
tes, durante as experiências teatrais com seu rhold, mais uma vez, mergulha em um ges-
grupo na província de Moscou, Meyerhold tual revolucionário para a cena teatral. De-
seguiu incansável nas investigações do ges- dicado à precisão do movimento do ator a
to da cena e da relação entre corpo e ex- respeito de sua fisicalidade, era igualmente
pressividade até o fim de sua carreira. Após equivalente a preocupação do encenador
o período simbolista, em que já vinha estu- com relação à expressividade e intenção do
dando a estética do grotesco, as experimen- gestual na cena. Ainda sobre O Corno Mag-
tações inovadoras de Meyerhold seguiram nífico, além de expor a precisão do movi-
o rumo do construtivismo. Novamente e mento do ator e seu domínio do espaço cê-
constantemente antenado aos acontecimen- nico, Meyerhold explorou a fundo também
tos e transições sociais, científicas e artísti- seu esquema de gestualidade relacionada à
cas de sua época, o encenador mergulhou técnica da transmissão da emoção.
fundo nas formas estruturais da estética Na dramaturgia desta montagem,
construtivista. Um movimento que propôs escrita por Fernand Crommelinck, o motivo
paradoxalmente criar uma arte fugindo de- impulsionador das ações cênicas gira em
la mesma (no sentindo de que abandou torno do sentimento de ciúme, que atinge o
muito daquilo que já havia sido feito nos personagem principal da trama ao descon-
períodos anteriores), o construtivismo nas fiar da fidelidade de sua esposa. Para de-
artes teve relação direta e inseparável com senvolver a expressividade dessas inten-
diferentes campos das ciências exatas. ções dramatúrgicas, Meyerhold se apoiou
No teatro meyerholdiano deste perí- não na interioridade psicológica de seus
odo, se destaca a montagem de O Corno atores e, sim, no estímulo de seus reflexos e
Magnífico, de 1922, mencionada anterior- impulsos musculares.
mente neste artigo como uma referência do Há alguns anos que o encenador es-
movimento teatral russo da época 3 . Além tudava a relação entre sistema nervoso e
de fazer presente a técnica da biomecânica reflexos físicos do corpo. O aprimoramento
teatral nesta montagem, a cenografia da de suas investigações resultou em um es-
artista plástica Liubov Popova seguiu à ris- quema de atuação que fazia com que o ator
ca as exigências construtivistas e inseriu exprimisse seus gestos e ações do exterior
sobre o palco uma máquina funcional utili- para o interior: as intenções, sugeridas do
zada pelos atores durante a cena. Nem exterior (do diretor, do texto, ou do próprio
mesmo o termo cenografia foi adotado à ator), estimulavam suas reações e a excita-
obra de Popova, e sim, dispositivo cênico, bilidade de seus reflexos, que desencadea-
onde, em sua estrutura, Meyerhold pode vam nas suas emoções (interior).
explorar com seu elenco a infinidade de A pesquisadora Yedda Chaves, que
possibilidades de movimentos e desloca- compôs seus estudos sobre a biomecânica e
o teatro de Meyerhold a partir de investiga-
ções teóricas e da observação da técnica na
3 Rever pág. 9, Picon-Vallin, 2013.

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
158

prática, esclarece a relação entre reflexos e Decorrente dos percursos do período


sistema nervoso no treinamento do ator: construtivista – em que a arte se apoiou
fortemente nas ciências exatas e no movi-
O ponto de intervenção do ence- mento do corpo para decifrar sua estética –
nador-(ator), e que vai ser o dife- é possível observar algumas das diversas
rencial de seu trabalho, se refere referências e influências que compuseram o
à observação sobre a excitabili- incessante trabalho de Meyerhold. Essa ca-
dade dos reflexos. Esse aspecto racterística arqueológica do encenador fez
do trabalho ganha uma impor- dele um impulsionador da revolução do
tância no treinamento do ator. gesto no teatro russo do início do século
Não só porque otimiza o tempo XX.
de reação e porque vai incidir Diante das diversas e profundas arti-
nas “particularidades do corpo e culações que Meyerhold realizou com cien-
da mente humanos”, mas porque tistas, filósofos, escritores e artistas de dife-
permite que o ator estude seu rentes áreas, em busca constante por um
sistema nervoso a fim de melhor modo de expressividade cênica totalmente
compreender uma outra dimen- voltada para o ator e a descoberta de seu
são do ofício de ator: a emoção corpo, de que maneira, então, pensar em
(CHAVES, 2011, p. 137). uma limitação formalista, como foi dura-
mente criticado na década de 1930? Os es-
O caminho que conduz à gestualida- tudos sobre o teatro de Meyerhold e sua
de da emoção do ator meyerholdiano trans- técnica de atuação revelam que o encenador
corre a excitabilidade de seus reflexos e, incitava em seus atores a capacidade de
para chegar a este lugar de experimentação composição de seus próprios desempenhos
das técnicas de atuação cênica, Meyerhold artísticos, atribuindo ao ator também a fun-
se apoiou, dentre outras referências, nas ção de autor da obra cênica.
pesquisas de Ivan Pavlov (reflexo condicio- A revolução no teatro de Meyerhold
nal) e de Ivan Sétchenov (Reflexos do Cére- consistiu em fazer do corpo cênico um cor-
bro, 1836). Para Sétchenov4 , “a infinita di- po ativo, no domínio de seus gestos e mani-
versidade das manifestações externas da festações expressivas. Seu grande feito tal-
atividade cerebral se faz em definitivo atra- vez possa ter sido também sua sentença.
vés de um só fenômeno – o movimento Afinal, ele era um corpo capaz de estimular
muscular” (1884, p. 5). Deste raciocínio, é outros corpos ao movimento, ao rompimen-
possível observar o percurso traçado por to com a inércia, à reconstituição da consci-
Meyerhold para alcançar a expressividade ência, ao gesto em busca de seu destino.
do gesto na cena, explorando o único ins-
trumento de domínio do ator: seu próprio Referências
corpo.
AGAMBEN, Giorgio. “Notas sobre o ges-
4 Ivan Mikhailovitch Setchenov, Études psychologiques,
to”. In Artefilosofia. Ouro Preto, n.4, p. 09-
tradução da edição original em russo (1863) de Victor 14, 2008.
Derély com introdução de M. G. Wyrouboff, Paris, G.
Reinwald, Libraite-Éditeur, 1884, p. 5. In CHAVES,
2011, p. 137.

Morgana Fernandes Martins


Slovo – Revista de Estudos em Eslavística, V.1, N.1, Jul. – Dez. 2018
159

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. théâtrales de l'Université de Haute


Trad. Teixeiroa Coelho. São Paulo: Martins Bretagne, 1989.
Fontes, 2006. Disponível em:
<http://www.grupotempo.com.br/tex_mu
BARTHES, Roland. Escritos sobre teatro. smeyer.html>
Trad. Mario Laranjeira. Rio de Janeiro / RJ:
Martins Fontes, 2007. ROPA, Eugênia Casini. “Alemanha-Russa
no início do século XX: a arte do movimen-
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre o teatro. to entre libertação e mecanização do cor-
Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro / po”. In Teatro Russo: Literatura e espetá-
RJ: Nova Fronteira, 2005. culo. Org. Arlete Cavaliere e Elena Vássina.
São Paulo / SP: Ateliê Editorial: 2011.
CHAVES, Yedda Carvalho. “Vsévolod Me-
yerhold: abordagens artísticas do movimen- Abstract: The aim of this article is to analyse
tos expressivo à composição”. In Teatro the revolution of the gesture on the Russian
Russo: Literatura e espetáculo. Org. Arlete theatrical scene during the first years of the 20 th
Cavaliere e Elena Vássina. São Paulo / SP: century. The focus of the analysis is on the ex-
Ateliê Editorial: 2011. amination of the theatrical experiments and
practices developed by the director Vsévolod
GUINSBURG, J.. Stanislávski, Meierhold Meyerhold, analysing the ways in which he ide-
& Cia. São Paulo / SP: Perspectiva, 2001. alised the theatrical gesture as a revolutionary
proposal to the Western theatre. The concept of
MEYERHOLD, Vsévolod. Do Teatro. Tra- gesture is fundamental in the works of Giorgio
dução de Diego Moschkovich. São Paulo / Agamben, whose philosophy dialogues with the
SP: Iluminuras, 2012. other authors discussed in this article. In the
theatre sphere, the discussion about the concept
____. Teoria teatral. Madrid: Editorial Fun- of gesture is based on the perspectives of Patrice
Pavis and Bertold Brecht. Agamben’s works,
damentos, 2008.
discussed in this article, reflect on a society that
lost the power over its gestures and obsessively
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad.
fights to reclaim them. The philosopher draws
J. Guinsburg e Maria Lucia Pereira. São
parallels between artists and writers that pro-
Paulo / SP: Perspectiva, 1999.
posed, in many different ways, the reclamation
of the consciousness of gesture. From this per-
PICON-VALLIN, Béatrice. Meierhold.
spective, this article points at some artistic ref-
Trad. Fátima Saadi, Isa Kopelman, J. erences that redefined, each by its own manner,
Guinsburg e Marcio Honorio de Godoy. the gesture and the body in the art. The main
São Paulo / SP: Perspectiva, 2013. focus of this discussion is Meyerhold and how
he revolutionised the theatrical gesture.
____. “A música no jogo do ator
meyerholdiano”. In Le jeu de l'acteur chez Keywords: Theatrical Gesture; Revolution of
Meyerhold et Vakhtangov. Tradução de Theatrical Gesture; Meyerhold Theatre; The
Roberto Mallet. Paris: Laboratoires d'études Meyerholdian Actor Gesture

Morgana Fernandes Martins

Você também pode gostar