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2018 146
Vsévolod Meyerhold:
a revolução do gesto na cena teatral russa
no início do século XX
1 Doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC/UNIRIO e pesquisadora do teatro de Meyerhold nos segmentos teórico
e artístico, com foco na técnica da biomecânica teatral e na exploração da musicalidade do corpo cênico. E -mail:
morganafmartins@gmail.com
percebe no gesto uma força operante sobre desencadearam uma nova maneira de ex-
ela. Um gesto, sendo assim, pode estar re- pressar o gesto na cena. Ele propôs, desse
pleto de significações e, no âmbito da litera- modo, uma ressignificação do gesto, uma
tura e das artes, ele pode adotar posturas forma de perceber o gesto no teatro como
representativas. É sob esta perspectiva que uma categoria de linguagem. O encenador,
será discutido o que se pode observar como dedicado ao estudo psicofísico do corpo do
uma revolução do gesto no teatro ocidental ator, desenvolveu uma intensa pesquisa
do início do século XX e de que maneira as que, analisada sob os parâmetros do gesto
práticas de Meyerhold foram essenciais pa- enquanto linguagem, se revela como uma
ra este processo. vertente do teatro gestual.
Porém, antes de discutir o gesto na
O teatro gestual e as práticas de Me- cena meyerholdiana, é necessário contextu-
yerhold alizar a noção de gesto na esfera teatral e, a
partir desse ponto, refletir sobre a ideia de
A partir da reflexão realizada sobre um teatro gestual, ou seja, uma linguagem
os estudos de Agamben, destacando deles teatral pautada no gesto. Para embasar este
especialmente dois aspectos – a arte como tópico, tanto as teorias de Patrice Pavis,
reapropriação do gesto e o gesto como lin- como as pesquisas de Bertolt Brecht, serão
guagem de significações não verbais – é analisadas. Ainda nessa etapa, visões de
possível observar a reconstituição do gesto Benjamin e Barthes também contribuirão
no teatro russo do início do século XX e com o conteúdo dos autores referidos.
como as práticas de Meyerhold foram es- Na publicação Dicionário de teatro
senciais neste contexto. (1999), o autor Patrice Pavis dedica um de
Em plenos anos de pré-revolução e seus verbetes ao termo Gesto (p. 184). Neste,
redescobertas estéticas e ideológicas nas Pavis desdobra o termo em subitens, dos
artes e literatura, Meyerhold repensou a quais dois deles dialogam diretamente com
lógica da criação teatral. Influências artísti- o conteúdo discutido nesse estudo: “O ges-
cas, científicas, filosóficas e literárias cerca- to como expressão” (p. 184) e “O gesto co-
vam o universo criativo de Meyerhold. O mo produção” (p. 185).
corpo significativo do teatro japonês e o Em “O gesto como expressão”, Pavis
virtuosismo do ator da Commedia dell’Arte, reflete a questão do gesto como um meio de
além das práticas circenses, despertaram no expressividade do ator: “A natureza ex-
encenador o desenvolvimento de uma lin- pressiva do gesto torna-o particularmente
guagem teatral a partir do gesto. Seu co- apropriado a servir à atuação do ator, o
nhecimento sobre música e estudos de fisio- qual não tem outros meios senão os do seu
logia, psicofísica e reflexologia contribuí- corpo para expressar seus estados aními-
ram para profunda investigação sobre o cos” (1999, p. 184). Nesse sentido, as pala-
corpo do ator, no que corresponde ao ritmo vras de Pavis se aproximam do pensamento
e precisão dos movimentos e à expressivi- de Agamben, como visto anteriormente, no
dade da gestualidade cênica. que se refere ao gesto como uma “mediali-
Por este percurso, Meyerhold desen- dade”. Ao mesmo tempo, o filósofo percebe
volveu práticas de treinamento do ator que no gesto seu poder de significação, e essa
percepção se aproxima, dessa vez, da refle-
zam, e é nessa conjunção que “reside a au- também devia passar por mudanças” (RO-
tenticidade do representado, isto é, a sua PA, 2011, p. 29).
verdade” (2001, p. 6). Essa mudança representava a passa-
O pensamento de Stanislávski condi- gem do realismo para o simbolismo nas
zia com uma expressividade corporal que artes cênicas. O cotidiano na cena, a partir
partia da interiorização e resultava na exte- dessa transformação, já não tinha mais o
riorização do gesto em busca do real na ce- mesmo efeito, e os textos de Maeterlinck
na. Como observou Ropa, os artistas cêni- eram alguns dos indícios que revelavam
cos dessa época procuravam por “interior e que o realismo já não comportava mais os
ação”, “emoção e expressão”, e Stanislávski, anseios exigidos pela arte vanguardista da
dentro desse contexto, dialogava direta- Rússia do início do século XX.
mente com esse pensamento. Stanislávski, que poderia, por sua
Nesse sentido, é possível associar a vez, permanecer no campo seguro de um
pesquisa do diretor do TAM com o estudo teatro produzido para a burguesia, perce-
de Agamben no ponto em que ele observa beu os anseios artísticos da época e decidiu
no indivíduo a busca pela recuperação do se aventurar na estética simbolista. Ciente,
gesto por meio da interiorização: “É nesta porém, das dificuldades em decifrar os có-
fase que a burguesia, que poucos decênios digos que essa nova proposta exigia para a
antes ainda estava solidamente em posse cena, Stanislávski convidou seu ex-ator,
dos seus símbolos, é vitimada pela interio- Meyerhold, para montar encenações tea-
ridade e se consigna à psicologia” (AGAM- trais, seguindo as perspectivas artísticas da
BEN, 2008, p. 11). Vale lembrar que a bur- época.
guesia russa era o principal público das Meyerhold estava atento às ideias de
montagens de Stanislávski e, sendo a inte- um novo teatro quando, em 1902, decidiu
rioridade uma preocupação destacável no sair do Teatro de Arte para explorar, em
espectador, o encenador mostrou que seu uma província próxima a Moscou, as práti-
pensamento dialogava diretamente com ele, cas teatrais experimentais. Em 1905, ele re-
se apropriando da arte para discutir suas tornou ao TAM, sob convite de Stanislávs-
inquietações. ki, e juntos fundaram o Teatro-Estúdio, um
De certa forma, porém, mesmo Sta- laboratório de investigações de novas técni-
nislávski fazendo florescer em sua concep- cas de atuação, sugerindo, assim, uma re-
ção maneiras geniais de pensar o teatro, novação na arte dramática russa.
rompendo com convenções obsoletas e Sob um contexto de propostas aber-
formas ultrapassadas, o diretor, no início do tas, questões emergiam acerca da identida-
século XX, percebeu um impasse em sua de do Teatro-Estúdio: “Não havíamos defi-
criação. Hábil em explorar o realismo histó- nido até então que rosto teria o teatro [Tea-
rico e psicológico nas montagens de Tolstói, tro-Estúdio], ao colocar lado a lado em seu
Tchékhov e Górki, Stanislávski se deparou repertório Maeterlinck e Górki,
com o insuperável desafio imposto pela Przybyszewski e Ibsen, Verhaeren e Polevói
própria época: “A vida da sociedade russa (O heroísmo russo)” (MEYERHOLD, 2012, p.
após a revolução de 1905 mudara e tornara- 29). Destes respectivos autores, textos como
se mais complexa, e a arte, por sua vez, As sete princesas, contos de Górki, Neve, A
comédia do amor, As auroras, dentre outras