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S o b rree f o r m a r a t o rree s e m P o r t u g a l

A lexandre Calado

Intr odução
Introdução mente a fazer um panorama de algumas possi-

M
bilidades formativas existentes hoje em Portu-
as é preciso ir para o ensino superior para gal, mencionando opções diversificadas de es-
tornar-se ator? Esta é uma questão que tudo, mas não será este o centro da minha
me tem sido colocada, talvez não apenas atenção. Antes desejo convidar-vos a um per-
a mim, por diferentes pessoas, a maioria, curso pelo ensino oferecido atualmente na Es-
creio, incitada por uma genuína dúvida, cola Superior de Teatro e Cinema do Instituto
uma dúvida que reflete quanto o campo dos es- Politécnico de Lisboa (ESTC/IPL), uma das
tudos de teatro permanece algo que resiste a mais antigas, respeitadas e significativas institui-
uma imediata apreensão. Opto por começar o ções de formação teatral no país. Um percurso
texto, que responde ao desafio de contribuir que gostaria de realizar em dois momentos: con-
para um dossiê sobre teatro em Portugal, com siderando, no primeiro, o plano de estudos da
esta pergunta, pois, a possibilidade que ela pres- graduação como um todo e neste destacando o
supõe é relativamente recente na história da modo como se sequencia o ensino-aprendiza-
educação e isso contribui para o adensamento gem da Interpretação, disciplina nuclear para
de suspeitas e incertezas sobre a pertinência da aqueles que desejam compreender o perfil de
presença do teatro no ensino superior e univer- ator que a escola atualmente procura formar;
sitário. Nesta medida, penso pertinente dirigir mergulhando, no segundo momento, numa das
a nossa atenção para o contexto geral desta no- unidades curriculares, por forma a traçar um
vidade, a qual assume feições específicas no caso retrato aproximado da proposta pedagógica do
de Portugal. As linhas que se seguem, portanto, diretor-pedagogo João Brites, destacado profes-
inserem-se no âmbito da reflexão sobre forma- sor desta escola e renomado criador na cena te-
ção superior em teatro, com um enfoque na for- atral contemporânea portuguesa.
mação de atores. Não é esta uma empresa sem dificulda-
Apesar do título, que não esconde certo des e quase que cada palavra da expressão “ensi-
desejo de captação de leitores, os meus objeti- no superior do teatro em Portugal” remete para
vos são neste texto menos ambiciosos e, ao mes- um problema particular. Desde logo, há a con-
mo tempo, mais instigantes. Proponho-me real- siderar o caráter fluído e complexo das situações

Alexandre Calado é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP.

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educativas, que tendem a inscrever os estudos gia, por exemplo. Estes cursos estruturam-se
que sobre elas se dedicam no campo do local e muitas vezes em torno da realização de exercí-
do transitório. Este aspecto é particularmente cios cênicos, os quais são normalmente apre-
problemático no campo do ensino superior, sentados ao público. Algumas escolas profissio-
considerando a autonomia destas instituições, nais hoje existentes e promovendo ativamente
bem como a relativa carência de trabalhos so- a capacitação de jovens artistas da cena são a
bre as suas práticas. Além disso, a entrada do Academia Contemporânea do Espetáculo –
teatro no ensino superior é recente em Portu- Teatro do Bolhão (Porto), Balleteatro Escola
gal, não sendo anterior à década de noventa, o Profissional (Porto), Escola Profissional das Ar-
que naturalmente contribui para que esta esteja tes da Madeira Eng. Luíz Peter Clode (Madei-
ainda envolvida em processos de configuração ra), Escola Profissional Teatro de Cascais (Lis-
e adaptação. Haveria ainda que mencionar a boa), Chapitô Escola Profissional de Artes e
implementação do Processo de Bolonha, ao Ofícios do Espetáculo (Lisboa).
longo da primeira década deste século, proces- Desde cerca da década de noventa, o tea-
so este que obrigou a decisivas reformas curri- tro entrou no ensino superior, o que o levou a
culares com vista a uma certa regularização do enfrentar uma série de novos desafios e lhe abriu
ensino superior no espaço da União Européia. um novo leque de oportunidades. O aumento
Finalmente, haverá que considerar algumas di- da oferta dos novos cursos, bem como da pro-
ficuldades terminológicas, estas, contudo, mais cura destes por parte de candidatos, responde
facilmente ultrapassáveis: quando se ler “licen- em certa medida ao aumento da importância
ciatura em teatro” num documento português, atribuída pela indústria cultural às artes do es-
entenda-se “graduação em teatro”. petáculo, nomeadamente com o crescimento da
produção televisiva e cinematográfica, mas tam-
bém com o desenvolvimento de redes de circu-
Para estudar teatr
teatroo em Portugal lação de espetáculos, o aumento dos festivais e
a relativa regularidade dos apoios financeiros
Antes da implantação e disseminação dos cur- por parte dos órgãos estatais. Atualmente, os
sos de nível superior, os cursos profissionali- cursos superiores subdividem-se em dois tipos,
zantes eram os principais responsáveis pelo en- os universitários e os politécnicos. Ambos ofe-
sino formal do teatro, tendo formado sucessivas recem cursos de três anos (1º ciclo), sendo que
gerações de atores, diretores, cenógrafos e dra- os universitários tendem a privilegiar uma for-
maturgos que muito contribuíram para fazer o mação ligada aos estudos teatrais, com ênfase
teatro português ao longo do século vinte. Hoje na teoria, enquanto os politécnicos são geral-
estas escolas continuam a desempenhar um pa- mente focados na prática artística e pedagógica;
pel muito relevante, oferecendo uma formação há, naturalmente, exceções. São em regra cur-
essencialmente técnica para aqueles que preten- sos diurnos, ora valorizando a aquisição e o de-
dem trabalhar na área das artes da cena, um senvolvimento conceptual por meio de discipli-
pouco por todo o país. A duração destes cursos nas teóricas, ora privilegiando mais o trabalho
tende a ser de três anos, com planos de estudos experiencial e a exploração de processos de cria-
equiparados ao ensino médio e regimes de tem- ção teatral, integrando diferentes campos do fa-
po integral, geralmente em período diurno. zer artístico. Algumas universidades que atual-
Os curricula tendem a enfatizar o treinamento mente conferem graduações em artes cênicas são
do ator, geralmente numa perspectiva eclética, a Universidade de Coimbra – graduação em
sem descuidar uma formação teórica que inclui Estudos Artísticos, a Universidade de Trás-os-
disciplinas como história do teatro e dramatur- Montes e Alto Douro – graduação em Teatro e

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Artes Performativas, a Universidade de Lisboa de Teatro, que incluem as habilitações em In-


– graduação em Estudos Teatrais e a Universi- terpretação, Dramaturgia, Produção e Design
dade de Évora – graduação em Teatro. Já no de cena. A construção de um edifício de raiz
âmbito dos institutos politécnicos encontramos para a ESTC, o primeiro destinado a uma es-
a Escola Superior Artística do Porto – gradua- cola de ensino superior artístico em Portugal,
ção em Interpretação e Encenação, a Escola Su- permitiu a transferência em 1998 das suas ati-
perior de Artes e Design das Caldas da Rainha vidades do antigo edifício do Convento dos
– graduação em Teatro, a Escola Superior de Caetanos, em Lisboa, para umas instalações
Educação de Coimbra – graduação em Teatro e modernas, dotadas de espaços letivos adequa-
Educação, a Escola Superior de Música e das dos, de estúdios, de salas de espetáculos e de
Artes do Espetáculo – graduação em Teatro, e a visionamento, de biblioteca e refeitório que pos-
Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, sibilitam as melhores condições de trabalho para
de que falarei com algum detalhe em seguida. os alunos que a frequentam.
Apesar do aumento considerável do nú-
mero de opções que os interessados em estudar
Cursar TTeatr
eatr
eatroo na ESTC/IPL teatro hoje encontram, a ESTC é uma das ins-
tituições mais procuradas. Cada ano é publica-
A Escola Superior de Teatro e Cinema, integra- do um edital que especifica o período de candi-
da no Instituto Politécnico de Lisboa em 1985, datura, cerca de Maio e Junho, bem como as
descende do Conservatório Geral de Arte Dra- provas a apresentar. As provas de pré-selecção
mática e disso decorre, em certa medida, o de- ocorrem cerca do mês de Julho e incluem Ex-
senho do curso de teatro. O Conservatório foi pressão Corporal, Voz, Imaginação, Improvisa-
criado em 1836, com um projeto educativo de ção e uma Entrevista. A fase de seleção é perto
Almeida Garrett, inspirado em modelos euro- de Setembro e constam de Corpo, Voz, Monó-
peus de Paris, Londres e Milão e logo em 1841 logo de escolhido pelo candidato, Diálogo com
já conta com as Escolas de Declamação, de texto fornecido pela escola. Geralmente, os
Música, de Dança e Mímica. Apenas dois anos ingressantes fazem as suas inscrições ainda em
mais tarde, Almeida Garrett é destituído de to- Setembro, considerando que o ano letivo em
das as funções e o Conservatório é ameaçado Portugal, como no restante da Europa, vai de
de extinção, o que, segundo Eugénia Vasques, Setembro a Julho do ano civil seguinte. Uma
docente da ESTC e alguém que tem estudado vez aceite, o(a) aluno(a) inicia um percurso de
dedicadamente a sua história, dá início ao fim imersão no estudo teórico e prático do teatro,
da “utopia de Garrett” e inaugura “um historial com uma duração prevista de três anos, no qual
de vicissitudes que comprometerá, por muitas irá contatar com diversos modos de pensar e fa-
e muitas décadas, o futuro do ensino artístico zer teatro, no quadro de uma escola marcada-
em Portugal.” (VASQUES, 2005: 3) Em 1914, mente vocacionada para a praxis teatral, em con-
na sequência das reformas introduzidas no en- sonância com a sua história. Apresentarei em
sino com a implantação do regime republicano seguida o plano de estudos do curso de Teatro –
em 1910, foi concedida à Escola de Arte de Re- ramo de Formação de Atores, procurando
presentar autonomia administrativa, o que per- explicitar o desenho espiralar e caleidoscópico
mitiu a criação dos cursos de cenografia e deco- que lhe subjaz, bem como a filosofia que norteia
ração teatral, e de indumentária prática teatral. a organização das disciplinas de Interpretação.
Esta tradição foi sendo mantida e desenvolvida
nas reformas posteriores do ensino e transparece
hoje nos cursos ministrados no Departamento

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Tabela 1 – Unidades Curriculares do 1º ano da Gra- na é reforçado no terceiro ano, como veremos
duação em Teatro – Ramo Actores (ESTC/2007) em seguida, por meio da Oficina de Criação.
Sinto-me forçado a notar que ao propor-me a
1º semestre Horas comentar apenas as disciplinas ligadas à Inter-
Oficina Comum 240 pretação estou a cometer certo desfavor à filo-
Corpo I 96 sofia pedagógica da ESTC, na medida em que
Voz I 96 a lógica da Oficina Comum se prolonga por
Música e Espaço Acústico I 48 todo o curso, havendo uma procura perma-
História do Teatro I 48 nente de interdisciplinaridade. Assim, tanto os
História de Arte I 48 docentes das disciplinas práticas (Movimento,
Met. Tec. de Investigação 48 Voz, Espaço Acústico), quanto os das teóricas
Teorias da Arte Teatral I 96 (História, Literatura, Teoria da Arte Teatral) são
presenças frequentes nas aulas de Interpretação
2º semestre Horas e tendem a articular os seus programas com
Interpretação I 216 o de Interpretação. Além disso, os alunos dos
Corpo II 120 vários ramos têm parte da sua formação articu-
Voz II 120 lada com atividades das oficinas de Interpre-
Música e Espaço Acústico II 48 tação, realizando os cenários e figurinos, pres-
Literatura Dramática I 72 tando apoio dramatúrgico e dinamizando o
História de Arte II 48 processo de produção da montagem teatral de
Teorias da Arte Teatral II 96 cada semestre.
No ramo de formação de atores, é no se-
A Oficina Comum é uma disciplina par- gundo semestre que se inicia um estudo mais
tilhada pelos alunos de todos os ramos e indica focado da interpretação teatral, o qual se estru-
um dos traços característicos da proposta peda- tura em leituras contemporâneas de autores e
gógica da ESTC: estimular a percepção dos pro- períodos do cânone ocidental. Como descreve
cessos implicados em fazer teatro. De acordo Carlos J. Pessoa, figura de proa do teatro portu-
com o programa da disciplina, “A Oficina Co- guês, atual diretor do departamento de teatro e
mum tem como ponto de partida as noções de também docente, numa entrevista realizada em
sensibilização cultural, ética da profissão, jogo e Março de 2007, na ESTC: “Acho uma escolha
criatividade”, e pretende que os alunos enten- feliz terem o Simbolismo e Realismo como pri-
dam o fenômeno teatral como: “Meio de ma- meiro trabalho de abordagem, digamos, da me-
nifestação cultural e civilizacional; Um todo mória cultural do teatro do Ocidente. Porque
composto por várias linguagens: texto, atores, os Simbolismos envolvem o Realismo que é
arquitetura, cenografia, figurinos, adereços, aquilo a que, à partida, os alunos mais estão ha-
música, luz, ambiente sonoro; Arte que pressu- bituados porque vêem na televisão, nos filmes,
põe estéticas e técnicas diversificadas; Trabalho e isso permite ao mesmo tempo fazer uma pon-
de natureza coletiva; Fenômeno de comunica- te para um outro imaginário.” E, referindo-se
ção.” (Programa Oficina Comum, ESTC: aos semestres do segundo ano, continua: “Acho
2007) Esta oficina apresenta duas fases, uma que faz todo o sentido terem o Gil Vicente
enfatizando a dinâmica do grupo, outra envol- como autor canônico, terem Shakespeare como
vendo um processo colaborativo de criação, uti- autor canônico, e depois terem o Barroco en-
lizando materiais textuais da antiguidade clássi- tendido como época trans-histórica, um Barro-
ca, para apresentação em espaços de museus da co que, de certa maneira, faz a ponte entre o
cidade. A valorização de um ator com perfil cria- clássico e o contemporâneo (...) porque nós, se
tivo que se manifesta no desenho desta discipli- calhar, até vivemos numa idade neo-Barroca.”

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Nestes termos, o estudo da Interpretação no se- questão das artes performativas, da articulação
gundo ano revela uma importância particular. com o cinema e o multimedia.” Se entre o final
do primeiro e o segundo ano há uma preocupa-
Tabela 2 – Unidades Curriculares do 2º ano da Gra- ção com a tradição dramática ocidental e portu-
duação em Teatro – Ramo Actores (ESTC/2007) guesa, em particular, já as disciplinas de Inter-
pretação no terceiro ano orientam-se mais cla-
3º semestre Horas ramente para práticas cênicas contemporâneas.
Interpretação II 216
Corpo III 120 Tabela 3 – Unidades Curriculares do 3º ano da Gra-
Voz III 120 duação em Teatro – Ramo Autores (ESTC/2007)
Musica e Espaço Acústico III 48
Literatura Dramática II 48 5º semestre Horas
História de Arte III 72 Interpretação IV 408
Teorias da Arte Teatral III 96 Corpo V 96
Voz V 96
4º semestre Horas Problemas Arte Contemporânea 120
Interpretação III 216
Corpo IV 120 6º semestre Horas
Voz IV 120 Interpretação V 312
Musica e Espaço Acústico IV 48 Corpo VI 96
Literatura Dramática III 72 Voz VI 96
História Teatro II 48 Escrita Relatório 96
Teorias da Arte Teatral IV 96 Escritas Dram. Contemporâneas 120

As disciplinas de Interpretação do segun- O terceiro ano da graduação é entendido


do ano são decisivas, concentradas no desenvol- como um retorno à questão do papel criativo
vimento técnico e no estímulo à exploração do do ator na cena contemporânea e como um ano
jogo de ator, num diálogo estreito com textos de transição para a vida profissional. Tanto a
dramáticos clássicos e distintas modalidades de Oficina Teatral dirigida por João Brites, que es-
teatro da palavra. Nestes semestres, os alunos tudaremos em seguida com mais detalhe, como
expandem a consciência que têm de si, das suas a Oficina de Performance, no primeiro semes-
vontades e desafios pessoais, ao mesmo tempo tre, como a Oficina de Criação, no segundo,
que estabelecem laços com práticas artísticas e significam um certo retorno ao início do per-
materiais de certa tradição teatral. Este ano curso acadêmico e ao desafio de trabalhar cola-
espelha bem um dinamismo entre memória à borativamente em projetos originais. Enquanto
qual a escola está ligada e as modificações sociais na Oficina de Performance, os alunos do ramo
que ocorrem à sua volta e a atravessam. Com de Formação de Autores são levados a respon-
efeito, segundo Carlos J. Pessoa, o desenho do der aos desafios propostos pela linguagem da
curso de teatro corresponde a uma dupla preo- performance art, na Oficina de Criação estes são
cupação: “Por um lado, fornecer aos alunos um reunindo novamente com os dos distintos ra-
confronto com os clássicos, de uma forma não mos para a montagem de um projeto escolhido
canônica e que corresponda às práticas artísti- por eles, entre um leque de possibilidades que
cas e pedagógicas que cada professor desenvol- varia a cada ano e que decorre de propostas de
ve e à sua visão daqueles clássicos (...), e depois docentes da escola, tanto do departamento de
criar um conjunto de aberturas para outras rea- teatro, quanto do departamento de cinema.
lidades mais contemporâneas, nomeadamente a Assim, a sequência das atividades propostas nas

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disciplinas de Interpretação combina um senti- Comendador da Ordem do Mérito. Não tenho


do de progressão visando a autonomia, por pejo em considerá-lo um mestre do teatro por-
meio do desenvolvimento técnico e do enrique- tuguês, já que quarenta anos a criar espetáculos
cimento das experiências vividas, com um mo- instigantes e belos lhe garantem esse estatuto
vimento circular de retorno, que enfatiza um atribuído àqueles que se concentram longamen-
desejo de estimular o amadurecimento dos as- te numa atividade particular. Ao longo do seu
pectos singulares e criativos de cada aluno. Com percurso artístico, João Brites elaborou um dis-
efeito, este desenho espiralar do currículo pos- curso teórico e uma prática pedagógica que con-
sibilita um movimento de auto-reflexividade figuram uma visão pessoal sobre a atividade cria-
por parte do aluno, no qual os desenvolvimen- tiva do ator. Procuro em seguida delinear os
tos pessoais podem ser mais facilmente perce- contornos desta visão, fazendo uso da minha
bidos. Esta tomada de consciência tende a ser experiência pessoal como seu aluno quando da
reforçada pela exigência de articular as experiên- minha graduação, no final de 2004, bem como
cias propostas ao longo da graduação com que do programa do módulo que atualmente lecio-
os alunos se deparam, ao terem que escrever um na, na disciplina de Interpretação IV, do tercei-
relatório de curso. A escola é muito o que se faz ro ano do curso do ramo de Formação de Ato-
efetivamente nesse período de dedicação e de res da ESTC. Creio que o objetivo pedagógico
encontros, pelo que um currículo formal nada explicitado no programa por João Brites, de que
garante, em particular no caso da Interpretação. “os alunos construam o seu percurso criativo
Como sublinha Carlos J. Pessoa, o decisivo é o entendendo o ator, não apenas como intérpre-
que se faz: a paixão, o interesse, a percepção que te, mas como criador e artista”, estabelece o ho-
só se consegue estando envolvido na prática rizonte geral da proposta. Como veremos em
continuada do fazer teatro: “uma definição pro- seguida, esta meta, além de se inscrever na li-
gramática é um mero paliativo.” Nesta medida, nha programática do curso que delineei, confi-
gostaria de aprofundar um pouco a proposta gura um posicionamento singular de João Brites
pedagógica do diretor-pedagogo João Brites, face ao métier do ator. O programa explicita
um dos mais importantes docentes da ESTC, quatro noções capitais, em torno das quais se
oferecida neste último ano. desenvolvem as atividades propostas e que estru-
turarão o meu relato da experiência com João
Brites: “Presença cênica; Personagem intermé-
A Oficina TTeatral
eatral conduzida dia; Três níveis de expressão no trabalho do ator;
por João Brites Construção de um discurso estético e ético.”
(Interpretação IV / ESTC, 2009)
O trabalho de João Brites (1947, Torres Novas Nas primeiras semanas da Oficina, a aten-
/ Portugal) e do grupo O Bando é para mim, ção foi dirigida para a noção de “presença”; e eu
como talvez seja verdade para muitos outros gostaria de começar por fazer presentes algumas
fazedores e estudiosos do teatro, uma das cau- memórias: o Inverno úmido no Grande Audi-
sas primeiras da paixão que me move. Artista tório, enorme palco à italiana cheio de frio e de
plástico, cenógrafo, encenador e dramaturgista, vazio, meia dúzia de aquecedores a gás; sempre
João Brites teve uma formação inicial em Pin- pontual, João Brites, de samarra e boné, saúda-
tura e de Gravura e, a partir de 1971, trabalha nos ao entrar, nós ávidos desta experiência que
como cenógrafo e encenador. Entre muitos tra- sabíamos não iria durar mais que quatro dias
balhos, encenou espetáculos e eventos no âmbi- por semana, parcas seis semanas; algumas expli-
to da Europália e da Lisboa94 e dirigiu a Unida- cações gerais e começamos. A presença, noção
de de Espectáculos da Expo’98, tendo recebido difícil de circunscrever, foi investigada por meio
pela sua importante atividade artística o grau de do exercício d’“o soldadinho” e posteriores va-

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riações: trajando roupas negras, um após outro, sentar diferentes personagens ficcionais: “O ob-
fomos desafiados a entrar no espaço cênico e aí jetivo desta abordagem é dotar o autor de uma
permanecer, produzindo e sustentando a pre- maior consciência sobre as recorrências que
sença, pelo máximo tempo possível, sem apa- pode evitar e sobre as qualidades específicas que
rentar qualquer atividade exterior; como viria a deve preservar.” (Interpretação IV, 2009) Assim
ser regra, quem não estava no palco, estava a tra- entendida, a noção de PI pode ser aproximada
balhar também na plateia, pois em seguida o da filosofia de “via negativa”, explorada por
que se viu e fez foi discutido e elaborado. Além Jerzy Grotowski (GROTOWSKI, 1975). No
disso, esta presença permanente de público ma- entanto, é importante reconhecer quanto a no-
terializava o princípio de que o trabalho do ator ção de PI valoriza também a existência de as-
sempre seria considerado do ponto de vista do pectos positivos entre as referidas recorrências,
espectador. Junto com os companheiros iniciou a tomada de consciência dos quais pode vir a
assim, é o que me lembro, um percurso explo- constituir matéria de desenvolvimento por par-
ratório dos mais elementares recursos do ator te do aluno-ator. Outras singularidades da no-
no espaço cênico, considerando aspectos como ção de PI proposta por João Brites estão associ-
a direção do olhar e o dinamismo interior, cer- adas ao processo pelo qual ela é investigada e
to estado de alerta e de disponibilidade para o que chamarei de “heteroscopia cênica”: diaria-
que acontece. A partir deste modelo básico, mente, a PI de um aluno era escolhida como
voltamos a repetir a experiência do exercício material de improvisação dos companheiros, fi-
integrando progressivamente novos fatores de cando reservado um momento para que este
improvisação: o posicionamento no palco, a possa responder com uma improvisação sua so-
qualidade de entrada e a justeza da saída, a com- bre o que lhe foi dado a ver. Temos, então, ou-
posição em grupos, entre outros, mantendo a tros dois aspectos particulares: é olhar dos com-
premissa básica de que a expressão revelada se panheiros que espelha as recorrências do aluno
deveria cingir a algo próximo do zero. Leio do e não (apenas) o do diretor-pedagogo, contri-
diário que mantive durante a oficina uma frase buindo para uma horizontalidade das relações
antiga: “O ator tem sempre um segredo no pá- de poder; e, esta observação crítica faz-se no
tio”; para João Brites, a “presença cênica” tem campo mesmo da prática cênica, criando, por-
algo de ambíguo e de enigmático, algo que ver tanto, oportunidades no espaço artístico para a
com a fotogenia e pode ser associada à noção transformação dessas condutas. A potência ins-
de “nível pré-expressivo” proposta por Eugénio tigadora do exercício levou-o a assumir feições
Barba (BARBA, 1995). Apesar de difícil de cir- quase míticas entre os alunos, que muitas vezes
cunscrever, paulatinamente, a noção de presen- eram vistos nos corredores ou na cantina fran-
ça passou a integrar um léxico comum e a refe- camente abalados: “Hoje foi o dia do meu PI.”
rir momentos teatrais partilhados, dos quais era Entendo que o “Personagem Intermédio”, rara-
possível destacar aspectos particulares passíveis mente de modo traumático, contribui para con-
de ser repetidos. figurar uma paleta básica de expressão de cada
Nas semanas seguintes e ocupando uma singularidade, ao mesmo tempo que a permite
parte importante da Oficina, a tônica foi colo- questionar no sentido do aumento das possibi-
cada no trabalho sobre a paleta expressiva do lidades de escolha artística de cada um.
ator, considerando as noções de “Personagem A exploração e ampliação do vocabulário
Intermédia (PI)” e de independência dos pla- expressivo dos alunos-atores são empreendidas
nos de expressão do ator. A noção de “Persona- por meio de jogos focados nas relações entre três
gem Intermédia” refere aquele conjunto de ele- planos, considerados individualmente: a “cor-
mentos que um espectador pode reconhecer poralidade (o que um espectador vê)”, a “orali-
como recorrentes num ator quando o vê apre- dade (o que ouve)” e a “interioridade (o que

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pressente)”. Os exercícios orientados para este À medida que nos aproximamos das últi-
fim prolongam a lógica de improvisação, tanto mas semanas da Oficina começamos a explorar
a solo como em dupla e em grupo, sob um olhar fragmentos do texto dramático A Fuga, do au-
analítico e lúdico que considera os referidos pla- tor chinês Gao Xingjian, utilizando o vocabu-
nos expressivos como eixos de experimentação lário de trabalho já experimentado – presença,
e passíveis de distintas relações harmônicas. planos expressivos, binômios e escala de
Auxiliados por uma escala imaginária de inten- explicitação – e introduzindo novas noções par-
sidade e explicitação dos artifícios, convencio- ticularmente operativas na relação do ator com
nada de zero a dez, fomos convidados a impro- a palavra como “subtexto (entendido como o
visar pequenas cenas nas quais, por exemplo, a discurso interior do ator)”, e “duplo texto (jogo
fisicalidade se desenvolvia num tempo-ritmo de explicitação da posição do ator face à situa-
rápido (grau sete), enquanto a oralidade evoluía ção ficcional que interpreta)”. Neste âmbito,
lentamente (grau três). É importante sublinhar aprofundou-se a noção de “comentário” que o
que neste tipo de jogos formais sempre houve programa da disciplina estabelece do seguinte
uma ênfase para que o plano da interioridade se modo: “(...) a capacidade do ator em verbalizar,
desenvolvesse de forma a credibilizar a atuação, explicitando para o espectador em tempo real,
dentro de uma visão do homem que o acredita os mecanismos que utiliza para exprimir os con-
marcado por contradições e inconsistências. teúdos que pretende comunicar. Acentua-se a
Assim, o jogo dos atores foi conduzido por di- dimensão lúdica do ato de representar jogando
ferentes território estilísticos, desenvolvendo com a verdade e a mentira. Pode-se chorar em
destreza e habilidade na articulação dos elemen- cena para aprender mais a propósito da tristeza.
tos expressivos, contribuindo para uma refina- Inventariam-se os pontos de concentração reais
da ludicidade e uma maior versatilidade dos de- e ficcionados pelo ator.” (ESTC/Interpretação
sempenhos. Simultaneamente e contribuindo IV, 2009) Assim, num movimento que pode ser
para o enriquecimento e a clarificação do dina- articulado com as noções de “distanciamento”
mismo interior, foram introduzidos pólos de elaborada por Bertold Brecht (BRECHT,
oscilação imaginária: “Nas improvisações expli- 2005), enfatiza-se mais uma vez a tomada de
citam-se as opções dramatúrgicas a propósito posição do ator sobre o seu trabalho, que, assu-
das noções de vazio e da proliferação de estí- mindo o contexto acadêmico da apresentação
mulos no plano da interioridade. Aplicam-se em vista, torna visíveis e audíveis os proce-
alguns binómios contrastantes como o de deli- dimentos de que se serve para construir o mun-
cado e brusco, o de opressor e oprimido, o de do ficcional da cena no jogo com o concreto.
masculino e feminino, o de sedutor e seduzi- O texto proposto por João Brites foi dividido
do.” (ESTC/Interpretação IV, 2009) Diria que entre os alunos de modo a construir três elen-
se tratou de um trabalho de desconstrução e re- cos que partilhavam as personagens e, em con-
construção da nossa arquitetura expressiva no junto, desenvolviam a narrativa. Foi um perío-
sentido do que Michael Kirby designou por do de confronto com as dificuldades de
“atuação complexa” (KIRBY, 1987), isto é, uma aplicação do vocabulário explorado até então ao
atuação onde diferentes planos expressivos do material dramatúrgico, período também de des-
ator jogam simultaneamente. Não obstante, cobertas inesperadas possibilitadas pelas ferra-
João Brites mantinha que este tipo de virtuosis- mentas desenvolvidas. Um curto estágio de dois
mo não deveria sobrepor-se ao prazer do jogo, dias foi agendado na sede d’O Bando, durante
instigando-nos a procurar fazer desaparecer o o qual pudemos intensificar o trabalho, além de
exercício técnico sob o aspecto lúdico e propria- usufruir das instalações localizadas na área rural
mente teatral. da pequena cidade de Palmela: trabalho ao ar

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livre, castanhas assadas e vinho moscatel a ame- tas vezes um espaço de revelação das singulari-
nizar as agruras dos estudantes, sempre maiores dades dos alunos. Reunidos no Grande Auditó-
em vésperas de fim de semestre. rio, imenso e agora um pouco menos frio dada
Suspendo aqui a linearidade do relato que a presença dos companheiros da escola e ami-
tenho vindo a fazer para destacar dois elemen- gos, por debaixo das mantas cinzentas fomos
tos metodológicos que não mencionei até agora saindo, um a um, soldadinhos de um exército
e que contribuem para o objetivo inicialmente de poesia e jogo. Numa anotação à margem da
apontado de formar atores criadores: o “aqueci- página do diário de viagem, leio: “Os meus de-
mento” e as “cenas individuais”. O aquecimen- sejos. A nossa responsabilidade. Que poética
to feito em grupo, rotativa e diariamente orien- para a poética?”
tado por cada um de nós, não apenas permitiu
o desenvolvimento de uma rotina de diferen-
ças, como estimulou a sistematização pessoal de Ensinar e apr ender teatr
aprender teatroo ,
procedimentos visando a preparação para a ses- pesquisar teatr
teatroo
são de trabalho e o estabelecimento de um esta-
do criativo. Ainda no sentido da responsabili- Ainda o programa elaborado por João Brites:
zação e estímulo ao desenvolvimento de um “Sublinha-se a problemática do ator como in-
projeto artístico pessoal, João Brites propôs que térprete e como artista. Recorda-se que em arte
cada aluno elaborasse ao longo da oficina uma não existem receitas. Defende-se que é indis-
cena individual, construída, por um lado, “em pensável estar com o nosso tempo sob o ponto
torno de uma urgência que implique um envol- de vista estético e político.” (ESTC/Interpreta-
vimento afetivo por parte de cada um, por ou- ção IV, 2009) Gostaria com esta passagem de
tro, [considerando] a aplicação progressiva da reafirmar o caráter tentativo e parcial do retrato
matéria dada nas aulas.” (ESTC/Interpretação que tracei da proposta pedagógica de João
IV, 2009) Estas cenas individuais, apresentadas Brites, que visou antes de qualquer coisa trazer
ao grupo pelo menos duas vezes durante o pro- a estas páginas um pouco do sabor das ativida-
cesso, abriam espaço para a exploração dos de- des propostas na oficina. O sentido do que pro-
sejos pessoais, ao mesmo tempo que estimu- curei descrever consubstancia-se em práticas e
lavam o desenvolvimento de um imaginário o exercício de as transpor em discurso escrito
do coletivo. não deve obscurecer nunca esse fato. Mas esta
Poucos dias antes da data prevista para a observação não deve também desqualificar o
apresentação, foi realizado coletivamente um gesto teorizante, ainda mais pela estreita articu-
inventário das cenas produzidas durante a ofi- lação que este apresenta com a prática criativa
cina e que o grupo desejava apresentar, con- no contexto da qual ele emergiu, resultando de
siderando improvisações e exercícios, bem como um fazer que se pensa a si mesmo. Haverá sem-
as cenas individuais e os materiais textuais. pre o risco, como em toda a sistematização no
Com base nesta listagem, elaborou-se um ro- campo artístico, de reificar o método nesse mo-
teiro que entretecia cenas da peça trabalhada vimento, erguendo barreiras onde se pretendia
com cenas criadas pelos alunos, nas quais o co- construir pontes. Como sublinha Carlos J. Pes-
mentário reflexivo era chamado a desempenhar soa, “(...) nenhuma espécie de autoritarismo fa-
um importante papel. A apresentação pública vorece a criação artística, ela precisa de um es-
ocorreu em clima de alguma ansiedade, tanto paço aberto onde a arte surja de uma forma
por parte dos alunos que participavam da ofici- democrática e plural: a eficácia por vezes está
na, quanto da parte dos restantes colegas da es- associada ao cliché e à fórmula que funciona e
cola, que sempre aguardam este momento com então vamos obrigar toda a gente a fazer daque-
interesse e curiosidade porquanto ele marca tan- la maneira: acho que a arte é negação disso, a

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arte é o diverso (...)”. Um plano de estudos cente, há um equilíbrio que é necessário encon-
como o da ESTC que apresentei tende a redu- trar. Se ainda hoje a teoria do teatro e da atua-
zir este risco, apresentando uma diversidade de ção, particular, parecem carecer da consistência
propostas pedagógicas e de modos de fazer, necessária para se afirmar como legítimos cam-
enfatizando o caráter criativo e propositivo do pos do conhecimento, creio que é na via da ela-
aluno. Num desenho curricular como este, a boração, sempre aproximativa mas não subvalo-
questão de saber se é possível ensinar arte vem a rizada, de conceitos e teorias próprios que esta
exigir dos docentes a maior clareza e investi- fraqueza poderá ser superada. Penso que a in-
mento pessoais, por quanto é limitado o seu tuição se alimenta, se estimula e se desenvolve;
tempo com os alunos. Mas vem ainda mais re- que a construção de referenciais e de cenários
forçar a responsabilidade dos discentes no seu contribui para esse golpe de vista difícil de ex-
papel de organizadores das experiências e de plicar; entendo que uma maiêutica se instiga
orientadores das suas aprendizagens individuais com a colocação de questões e com o debate
– não apenas um discípulo de um mestre cujo animoso, que contribuem para o golpe de asa
saber ele virá a repetir, o aluno tende a ser um desejado. Sinto que este é um desafio incontor-
editor que assume o seu olhar pessoal sobre o nável se pretendemos, mais que treinar artesãos
percurso desenvolvido. habilidosos, formar artistas implicados em rele-
A dado momento, na entrevista que te- vantes processos de criação, nos quais a pesqui-
nho vindo a referir, Carlos J. Pessoa menciona sa possa desempenhar um papel.
que, depois de ter realizado estudos universitá- A cena contemporânea pauta-se por uma
rios na área das ciências aplicadas, se deparou grande diversidade de manifestações espetacu-
com uma teoria do teatro frágil, que o levou a lares, não sendo talvez possível apresentar uma
sentir alguma suspeição face às “tentativas de síntese compreensiva que consiga reduzir esta
cientifização” de algo que sente ser “essencial- pluralidade de práticas a um denominador co-
mente intuitivo e vivencial”, uma atividade que mum. Os próprios modos de produção são hoje
é para ele “uma prática maiêutica.” Julgo que, muito dispares, persistindo formas tradicionais
com a entrada do teatro no ensino superior e de montagem de textos de repertório com o
com as reformas recentes que a formação tea- processo centrado no diretor lado a lado com
tral sofreu, um novo campo de desafios e de projetos de criação colaborativa, nos quais as
oportunidades se depara. O Processo de Bolo- funções dos intervenientes são marcadamente
nha, que levou à reorganização do ensino supe- interdisciplinares. Hoje espera-se que um ator,
rior um pouco por toda a Europa, coloca as ins- além de desenvolver um estilo de certo modo
tituições perante o desafio da transparência e do pessoal, seja também capaz de se assumir como
rigor na elaboração dos seus curricula, ao mes- fazedor de teatro, implicando-se nas diferentes
mo tempo que gerou a ameaça de uma unifor- fases do processo artístico. Retomando a ques-
mização dos cursos e de uma homogeneização tão inicial, gosto de acreditar que o ensino su-
das propostas pedagógicas. Isto sucede no mo- perior pode ser um espaço onde e um tempo
mento histórico em que artistas de gerações an- para e um grupo com quem inventar e descobrir
teriores conseguiram afirmar o seu lugar no es- essa subjetividade singular e ao mesmo tempo
paço institucional, criando uma nova tensão aberta e polimórfica. Talvez não seja necessário
entre os imperativos da praxis artística e os de- frequentar um politécnico ou a universidade
safios da elaboração teórica. Entre a excessivo para se ser intérprete de televisão ou até de ci-
investimento nas componentes teóricas em de- nema ou teatro, mas penso que hoje a acade-
trimento do tempo necessário à prática em ofi- mia se configura como um possível espaço de
cina, e a desvinculação da atividade artística por resistência e de investigação capaz de responder
via de uma profissionalização da atividade do- aos desafios sociais e culturais do nosso tempo.

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A ESTC tem vindo a configurar a sua pro- NES, 2007: 21), pesquisador, dramaturgista e
posta, tanto por via dos seus cursos, como por docente da ESTC, as minhas relações com o tea-
meio de uma estreita relação com a comunida- tro seguramente não podem ser compreendidas
de local e outras instituições de ensino e associa- à revelia de algumas mulheres e alguns homens
ções europeias como o IIT – Instituto Interna- que têm persistido em investir, mais ou menos
cional do Teatro, a UNESCO Chair e a ELIA – frequentemente, nessa atividade obstétrica de
European League of Institutes of Arts. Esta pre- trazer à luz novos fazedores de teatro. Assim,
ocupação pela internacionalização fez também consciente da impossibilidade do completo su-
com que a Escola reforçasse a sua participação cesso deste gesto e solicitando a compreensão
ativa em programas de intercâmbio de discentes daqueles que o espaço me impossibilita de men-
e docentes com Escolas estrangeiras, no âmbito cionar, terminarei mencionando alguns artistas
de programas específicos como o Sócrates/Eras- pedagogos que dinamizam a cena teatral portu-
mus e o Leonardo Da Vinci, bem como através guesa e que recentemente marcaram o ensino da
de programas bi-laterais com Universidades da Interpretação, no que ainda hoje é por vezes cha-
América Latina (Brasil, Argentina, México). mado de Conservatório de Teatro de Lisboa: Ál-
Temo levar a termo estas linhas, onde falei pa- varo Correia (Teatro da Comuna), Bruno Bravo
noramicamente das possibilidades formativas (Primeiros Sintomas), Cucha Carvalheiro,
em Teatro em Portugal, do plano de estudos do Fernanda Lapa, Francisco Salgado, Joana Cra-
curso da ESTC / IPL e do programa do diretor- veiro (Teatro do Vestido), João Mota (Teatro da
pedagogo João Brites. Temo-o por que sinto es- Comuna), Jorge Andrade (Mala Voadora), José
tar a cometer uma injustiça ao ter reduzido a es- Pedro Gomes, José Peixoto (Teatro dos Aloés),
tes pontos a minha aproximação à ambiciosa Luca Aprea, Maria João Vicente (Teatro da Ga-
temática proposta pelo título. Se as nossas rela- ragem), Miguel Pereira, Miguel Seabra (Teatro
ções com a arte podem ser compreendidas por Meridional), Mónica Calle (Casa Conveniente),
analogia com as relações que mantemos com as Natália de Matos, Patrícia Portela, Pedro Matos,
pessoas, como sugere David Antunes (ANTU- Rogério de Carvalho, Silvia Real. Evoé!

Referências bibliográficas

ANTUNES, David, 2007, “Arte & efeitos: sobre a questão de a arte ter efeitos”,comunicação apre-
sentada na ESTC, 26/04/2007, http://www.estc.ipl.pt/teatro/arquivo/comunicacoes/2006_07/
arte_efeitos.pdf , acedido 28/10/2009.
BARBA, Eugenio et SAVARESE, Nicola, 1995, A Arte Secreta do Ator, São Paulo – Campinas:
Editora Hucitec.
BRECHT, Bertold, 2005, Estudos sobre Teatro, trad. Fiama Pais Brandão, Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 2ª.

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GROTOWKI, Jerzy, 1975, Towards a Poor Theatre, London: Methuen.


Interpretação IV / ESTC, 2007, Programa da disciplina de Interpretação IV, 3º ano, 5º semestre,
curso de Teatro – ramo Formação de Actores, http://www.estc.ipl.pt/teatro/documentos/licen-
ciatura/programas/actores/3_ano_1_semestre/interpretacao_iv.pdf , acedido em 28/10/2009.
KIRBY, Michael, 1987, A Formalist Theatre, Pennsylvania: The University of Pennsylvania Press.
Oficina Comum / ESTC, 2007, Programa da disciplina Oficina Comum, 1º ano, 1º semestre,
curso de Teatro – ramo Formação de Actores, http://www.estc.ipl.pt/teatro/documentos/licen-
ciatura/programas/actores/1_ano_1_semestre/oficina_comum.pdf , acedido em 28/10/2009.
VASQUES, Eugénia, 2005, Ensino Superior, revista do Sindicato Nacional do Ensino Superior, nº
19, Dez.05/Jan.06, Lisboa.

RESUMO: Reflexão sobre formação superior em teatro em Portugal, com enfoque específico na
formação de atores. Panorama de algumas possibilidades formativas existentes na atualidade, com
análise do percurso de ensino oferecido na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto
Politécnico de Lisboa (ESTC/IPL) e da proposta pedagógica do diretor-pedagogo João Brites.
PALAVRAS-CHAVE: Formação do ator; ensino do teatro; Escola Superior de Teatro e Cinema do
Instituto Politécnico de Lisboa; João Brites.

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