Você está na página 1de 2

Existe uma cena especialmente tocante na Ilíada, onde lemos sobre a guerra de Tróia, que nos

ensina muito sobre a paternidade, valor dos filhos e casamento.

O herói Heitor retorna da batalha e procura sua esposa que, ao vê-lo, suspira de felicidade ao
saber que ele está bem, mas implora para que ele não retorne para a batalha pois teme que ele
possa morrer se for. Heitor diz que também tem esse medo e que no fundo do coração acredita
que a cidade cairá ante o implacável ataque grego, mas que aprendeu a vida toda a ser forte, e
que precisa estar na batalha pois todos esperam que ele esteja para lutarem lado a lado. E
que, acima de tudo, quando todos forem pegos, ele só pode aceitar que levem sua esposa
quando ele estiver morto depois de fazer tudo que poderia para salvá-la. Eles discutem, não
conseguem se entender. Ela não compreende o dever dele, e ele não pode satisfazer a
necessidade dela.

Nisso seu filho, Astyanax, entra no quarto e começa a chorar de medo ao não reconhecer seu
pai, pois Heitor estava com sua armadura, sujo de sangue, com seu intimidador elmo com crina
de cavalo. Em uma análise psicanalítica vemos que os símbolos que valor e honra (armas e
armadura) estava justamente sendo aquilo que separava pai e filho naquele momento. A
lembrança da matança que participará há pouco e a disposição melancólica com que falava
com sua esposa era perigosa para sua relação paterna. Heitor então sorri para sua esposa que
até então chorava, retira sua armadura e pega seu filho em seus braços, levantando-o, fazendo
o menino sorrir.

Vamos analisar essa cena tendo em mente que o símbolo materno que permeia os séculos é a
imagem da mãe amamentando a criança enquanto olham-se de forma tenra. Essa é a
expressão da maternidade reconhecida universalmente. Enquanto o pai tem sua simbologia no
ato inspirado nessa cena de Heitor, herói da guerra de Tróia, e seu filho, quando ele ergue a
criança e diz: "Que Zeus e os demais deuses façam que este meu filho seja forte, e que um dia
ao voltar da batalha possam dizer 'ele é mais forte que seu pai!' " Está é a representação
universal da paternidade.

Poucos sabem, mas a responsabilidade civil de prover os filhos nasceu na Roma do século 2,
em um ritual inspirado nessa passagem, onde o pai erguia o filho e dizia "eu não apenas
concebi esse filho, eu o alimentarei", em alusão à Heitor, tão forte o simbolismo arquetípico.

Aquelas palavras são revolucionárias dentro deste contexto. A oração de Heitor vai contra a
imóvel onipotência do mito, ele está ali transformando a criança em filho e o filho em esperança
para algo melhor do que qualquer coisa oferecida pelo passado mítico imutável, como forma de
conferir potência para um passado que tinha a função de modelo inatingível. Toda a narrativa
dos heróis míticos envolve os modelos perfeitos que poderiam ser alcançados. Nenhum deles
almeja ser mais, pois todos já estão em seu máximo, não existindo caminho para evolução.

E por isso essa passagem é tão magnífica, pois a convenção épica sempre insistiu que os
homens ficam mais fracos com a passagem das gerações, mas Heitor diz que seu filho SERÁ
MELHOR! Notem que eu já trouxe provas científicas que isso é uma verdade, com filhos sendo
MENOS masculinos que seus pais e avôs.

Na história temos o próprio Heitor jogando uma pedra "que dois homens fortes de nossa
própria época mal seriam capazes de levantar", mas aqui vemos Heitor orando aos deuses por
exatamente o oposto: que seu filho se torne mais forte do que ele. É difícil hoje imaginar um pai
igualmente generoso.

A conquista de Astyanax, do ponto de vista complementar, foi algo os gregos acharam quase
impensável: ele fez seu pai ter esperanças no futuro, e por um instante, ele conseguiu ligar seu
pai e sua mãe, unidos por um único sentimento. Dois seres tão diferentes (homem e mulher)
que acham difícil falar um com o outro, que não conseguiam unir obrigações civis (voltar para
guerra), com obrigações maritais (permanecer com a família e abandonar a guerra) são
atraídos e unidos em uma única direção por um filho que ainda não fala.

Os pais ainda hoje criam os filhos pequenos de maneiras diferentes daquelas das mães. Um
estudo psicológico lista os gestos paternais típicos: jogar a criança para o alto; segurar a
criança contra o peito, mas com a criança voltada para a frente; e levantando-o sobre braços
estendidos, enquanto o olha nos olhos (Life Without Father; Popenoe) (Letting dads be dads; J
L Shapiro). Tudo isso faz parte da paternidade e do depósito de esperança para o futuro
melhor. É a afirmação de que enquanto temos filhos, tudo ficará bem.

Nos tempos modernos podemos observar e comprovar aquilo que Homero já nos dizia desde a
antiguidade.

Você também pode gostar