Você está na página 1de 21

A influência do contexto familiar na autonomia da criança com Síndrome de Down

Ana Clara Mendes Oliveira1, Anna Clara Custódio de Castro1,


Pedro Henrique Fonseca Oliveira1, Paula Pimenta2

RESUMO:

O artigo tem como objetivo entender o grau de influência da família no processo de


autonomia da criança com Síndrome de Down. Para tanto, o trabalho parte da investigação
sobre o desenvolvimento da criança com Síndrome de Down nos âmbitos orgânico,
cognitivo, psicológico e escolar. A metodologia utilizada foi o levantamento bibliográfico
sobre o tema, configurando-se como uma pesquisa exploratória. O eixo teórico privilegiado
foi o da psicologia cognitivista. Com o intuito de ilustrar e problematizar alguns aspectos da
temática principal, no capítulo destinado à família são apresentados pequenos relatos do
acompanhamento de uma criança com Síndrome de Down na escola, promovidos por um dos
autores do artigo. Concluiu-se que o contexto familiar influencia diretamente a autonomia e o
desenvolvimento da criança, sobretudo nos aspectos psicológicos e comportamentais.

Palavras-chave: Síndrome de Down. Autonomia. Família. Criança.

1
Acadêmico(a) do 10º período do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
2
Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.

1
A influência do contexto familiar na autonomia da criança com Síndrome de Down

Ana Clara Mendes Oliveira3, Anna Clara Custódio de Castro3,


Pedro Henrique Fonseca Oliveira3, Paula Pimenta4

INTRODUÇÃO

Atualmente, muito se discute sobre a influência do contexto social e dos aspectos


individuais no desenvolvimento da personalidade e das habilidades sociais, motoras e
(1)
cognitivas em crianças . O conceito de desenvolvimento a ser considerado neste trabalho
pode ser definido como

um processo de construção contínua que se estende ao longo da vida dos indivíduos,


sendo fruto de uma organização complexa e hierarquizada que envolve desde os
componentes intraorgânicos até as relações sociais e a agência humana. (2)
Estilo parental, condição socioeconômica, temperamento, inteligência, saúde física e
mental dos responsáveis estão entre os aspectos que influenciam o curso do desenvolvimento
(3)
das crianças . A condição socioeconômica é um fator que interfere na possibilidade de
estimulação da criança, enquanto que a saúde física e mental dos pais podem alterar a forma
como o vínculo e os cuidados são constituídos. Muitas vertentes e aspectos precisam ser
analisados quando se fala de desenvolvimento infantil, como por exemplo, características
individuais e contextuais. Dentre os aspectos individuais, existe o desenvolvimento
embrionário e sua implicação nas alterações neurológicas. Tais alterações podem implicar em
desfechos genéticos, como a Síndrome de Down (SD).
A síndrome de Down, também chamada de trissomia 21, é uma condição genética
causada por erro na divisão celular, promovendo a presença de três cromossomos 21, ao invés
de dois, em todas ou na maior parte das células de um indivíduo (4;5). A síndrome está entre as
alterações genéticas mais comuns do mundo, acontecendo em cerca de um a cada 700
nascimentos. Tal condição é considerada inerente à pessoa, portanto não se deve falar em
tratamento ou cura. (6;7)
A síndrome de Down pode ser considerada um transtorno mental do
neurodesenvolvimento, sendo classificada como Deficiência Intelectual pelo Manual de
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e com a notação Q-90 pelo
Código Internacional de Doenças (CID-10). De uma forma global, o quadro clínico se traduz

3
Acadêmico(a) do 10º período do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
4
Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.

2
por atraso mental, morfologia típica, atrasos em diversos planos do desenvolvimento e várias
condições médicas associadas. (8)
Apesar de não existir no país uma estatística específica sobre o número de pessoas
com síndrome de Down, segundo a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de
Down estima-se que no Brasil haja 270 mil pessoas com a síndrome. Um dos fatores de risco
para o desenvolvimento da alteração cromossômica é a idade da mãe, sendo mais comum em
(9)
mães com idade superior a 35 anos . Isso acontece devido ao fato de que os folículos que
darão origem aos óvulos da mulher já nascem com elas, e células mais velhas têm maiores
chances de terem erros durante seu processo de divisão.
Sabe-se que uma criança com desenvolvimento atípico necessita de estimulação
intensiva e específica para desenvolver habilidades que ajudem a promover sua autonomia e
outras capacidades. A estimulação, portanto, está entre os aspectos sociais que auxiliam no
desenvolvimento infantil e depende de fatores externos, como o contexto familiar. A família
pode ser considerada o sistema que mais influencia diretamente o desenvolvimento da criança
(10)
surgindo como o mais poderoso sistema de socialização para o desenvolvimento saudável
da criança e do adolescente (11), Pereira-Silva e Dessen (12) afirmam que

as interações estabelecidas no microssistema familiar são as que trazem implicações


mais significativas para o desenvolvimento da criança, embora outros sistemas
sociais (ex.: escola, local de trabalho dos genitores, clube) também contribuam para
o seu desenvolvimento. (12)
Os responsáveis geralmente atuam como espelhos para as crianças, em que a
interação influencia a autopercepção de maneira positiva ou negativa. Ou seja, a estimulação
precoce e o vínculo parental adequado fazem com que essa criança tenha uma boa autoestima
em sua vida e reconheça sua capacidade. Além disso, acredita-se que o potencial de uma
pessoa com Síndrome de Down é muito maior do que se considerava há alguns anos atrás,
influenciando políticas públicas a incluí-las no meio social. Incluir significa oportunizar e
habilitar essas crianças a realizarem todas as suas potencialidades, minimizando as
inferioridades resultantes de suas dificuldades.
A família precisa trabalhar a aceitação da criança, incentivar sua independência
através de estímulos conscientes e precisos, dando liberdade para que conquistem seu espaço
e o respeito das outras pessoas. É importante reconhecer que a parceria da família com a
escola favorece o crescimento e o desenvolvimento da criança de maneira muito eficiente,
por isso se faz importante compreender a síndrome para obter bons métodos de intervenção,
dentro da escola, em casa e em outros contextos em que estiver inserida.

3
Considerando a importância do contexto social e familiar no desenvolvimento de
crianças, sobretudo daquelas com Síndrome de Down, entende-se que, se a família não
estiver operando adequadamente, as interações serão prejudicadas. Esse resultado ocorre
devido à experiência familiar ser primordial para as primeiras situações de aprendizagem e
(13)
introjeção de padrões, normas e valores . De acordo com Sígolo (14), a família é concebida
como o primeiro sistema no qual um padrão de atividades, papéis e relações interpessoais são
vivenciados pela pessoa em desenvolvimento e cujas trocas dão base para o estudo do
desenvolvimento individual.
Considerando o prejuízo funcional, a angústia de pais e responsáveis, as dificuldades
de interação e de estimulação social e a finalidade de promover melhor desenvolvimento e
sentimentos positivos para todos os envolvidos, percebe-se a necessidade de analisar a
relação entre a postura dos pais de crianças com Síndrome de Down e o exercício de
autonomia por parte do filho. Com isso, o objetivo do presente trabalho é o de identificar o
papel e a influência da família na aquisição da autonomia do filho menor com Síndrome de
Down.

A Síndrome de Down

Atualmente existem testes genéticos que podem identificar a possibilidade de que o


bebê tenha a Síndrome de Down, a partir da nona semana de gravidez. Através da coleta de
uma amostra de sangue materno do qual são retirados fragmentos de DNA fetal, o teste é
capaz de rastrear o DNA do bebê para procurar problemas cromossômicos específicos.
Outros dois testes estão disponíveis, porém ambos geram um risco para o bebê por se tratar
de um procedimento invasivo, como o teste do Vilo Coriônico (CVS) e o teste de
amniocentese. Após o nascimento, o diagnóstico clínico é comprovado pelo exame do
cariótipo (estudo dos cromossomos), que também ajuda a determinar o risco de recorrência
da alteração em futuros filhos do casal.
(15)
Mustacchi destaca os sinais clínicos mais frequentes encontrados nesses
indivíduos: hipotonia muscular (99%), face e nariz achatado, sendo que os olhos são
amendoados com uma prega de pele nos cantos anteriores (90%), mãos largas e dedos curtos
(70%), baixa estatura (60%), orelhas de implantação baixa (50%) e prega única transversal
nas palmas das mãos (40%). Entre outras características, destacam-se o comprometimento
intelectual (100%), o aumento da vascularização retiniana (90%), a hiperextensão articular
(80%) e a microcefalia (85%). As pessoas com Síndrome de Down são também mais

4
vulneráveis a uma maior incidência de algumas doenças, como cardiopatias e problemas
respiratórios. O quadro 1 mostra as condições médicas associadas à síndrome e sua
prevalência.

Ressaltamos que a Síndrome de Down possui a deficiência intelectual como


característica, isto é, pessoas com essa síndrome possuem habilidades cognitivas (capacidade
mental que auxilia o sujeito a cumprir um objetivo) abaixo da média. Segundo o DSM-V, a
deficiência intelectual abrange dificuldades de raciocínio, de planejamento, no pensamento
abstrato, na aprendizagem acadêmica e naquela por experiência. Tais dificuldades perpassam
diversos aspectos da vida do sujeito, como a linguagem e as características psicológicas e
sociais.

Desenvolvimento cognitivo da criança com Síndrome de Down

A Síndrome de Down é uma das causas mais conhecidas da deficiência intelectual e o


baixo funcionamento cognitivo está associado a déficits no comportamento adaptativo.
Ressalta-se que a inteligência pode ser entendida como uma iniciativa do indivíduo de se

5
adaptar às circunstâncias, envolvendo além da habilidade de julgar, compreender e raciocinar
bem, capacidades mentais primárias, tais como, memorização, compreensão verbal, indução,
(16)
dentre outras, que variam de pessoa para pessoa, dependendo das habilidades adquiridas .
A severidade dos sintomas e dos prejuízos cognitivos pode variar consideravelmente entre os
indivíduos (17).
(18)
Um dos primeiros estudos realizado por Meyers mostrou que quando comparados
a um grupo sem a síndrome, crianças com Síndrome de Down apresentaram pior desempenho
em tarefas de velocidade perceptual, inteligência fluida, visuoconstrução, vocabulário
receptivo e memória de trabalho verbal. Tarefas em que há tempo determinado para serem
realizadas ou em que o tempo de reação é um fator relevante não favorecem o desempenho
desta população.
Crianças com Síndrome de Down não desenvolvem estratégias espontâneas e este é
um fator que deve ser considerado em seu processo de aquisição de aprendizagem, já que ela
terá muitas dificuldades em resolver problemas e encontrar soluções sozinha. Contudo, a
criança com Síndrome de Down tem possibilidades de se desenvolver e executar atividades
diárias e até mesmo adquirir formação profissional. No enfoque evolutivo, também a
linguagem e as atividades de leitura e escrita podem ser desenvolvidas a partir das
experiências da própria criança.
A criança com Síndrome de Down precisa ser estimulada a aprender e para isso será
preciso criar táticas e manejos que chamem sua atenção. Elas se cansam com mais facilidade
e se interessam com mais facilidade também. Portanto, os recursos para a aprendizagem
precisam sempre se inovar e serem criativos para que provoquem vontade e ânimo na criança
(19)
com SD. Segundo Piaget, citado por Kammi a finalidade da educação é desenvolver a
autonomia da criança, que é, indissociavelmente, social, moral e intelectual.
Associada à prática educativa, a linguagem constitui um meio importante para a
aprendizagem, para a construção de vínculo e para a forma como o sujeito interage com o
mundo. Apesar dos prejuízos caracterizados pela síndrome, é possível auxiliar a criança a se
desenvolver a partir de intervenções adequadas e intensivas. Com isso, a linguagem é um dos
principais objetivos nas intervenções, podendo se mostrar facilitadora ou prejudicial no
desenvolvimento de outros domínios.

6
A linguagem da criança com Síndrome de Down

(20)
Para Chomsky o desenvolvimento da linguagem é um processo natural que
dispensa o ensino e apenas exige tempo e boas condições neurológicas. Contudo, na
Síndrome de Down, a aquisição da fala e da linguagem pode constituir uma das maiores
dificuldades. Quanto antes for criado um ambiente propício para favorecê-las, melhor será o
desenvolvimento da criança com SD, pois será possível trabalhar a evolução de determinadas
capacidades que nas outras crianças surgiriam normalmente.
É importante que a criança com Síndrome de Down tenha acompanhamento
fonoaudiológico logo após o nascimento, pois a hipotonia muscular (menor rigidez muscular
na face e na boca) pode prejudicar o desenvolvimento da fala.
Para desenvolver habilidades de fala e de linguagem, as crianças em geral precisam de
algumas habilidades sensoriais e perceptivas básicas (ver, ouvir, tocar, provar e cheirar). O
idioma materno é aprendido conectando um nome a um objeto, por emparelhamento. Para
aprender uma palavra, a criança olha para a boca do adulto para saber como é pronunciada.
As crianças com síndrome de Down se apoiam nas pistas que existem no meio ambiente, ou
seja, elas observam o que acontece em torno delas, especialmente através da visão. Isso
significa que um prejuízo na visão, cujo acometimento é comum nesse tipo de acometimento
genético, pode dificultar a aprendizagem e a aquisição da linguagem por essas crianças.
Se a criança não for afetada por algum problema de visão significativo, terá a seu
favor a eficiência da percepção visual e da memória. Ambas são pontos fortes das crianças
(21)
com Síndrome de Down. Por possuírem uma memória visual relativamente operativa,
aprendem bem através do canal visual.
Por outro lado, no campo tátil podem haver dificuldades que venham afetar o
desenvolvimento da fala, seja na consciência sensorial, na hipersensibilidade ao toque ou na
combinação desses dois problemas. (21)
A criança com Síndrome de Down apresenta um atraso na aquisição e no
desenvolvimento da linguagem, o que significa que a linguagem se desenvolve de maneira
mais lenta quando comparada a outra criança com desenvolvimento considerado normal.
(22)
Segundo Andrade , esse atraso pode ser atribuído a características físicas ou ambientais
que influenciam de maneira negativa o processo de desenvolvimento, tais como: problemas
de acuidade e discriminação auditiva, doenças respiratórias, hipotonia da musculatura
orofacial, alteração no alinhamento dos dentes, atraso geral no desenvolvimento motor,
cognitivo e emocional, dentre outras. Contudo, deve-se ressaltar que é de extrema

7
importância a disponibilidade do adulto em ouvir a criança e em se esforçar para
compreendê-la. Uma baixa expectativa em relação às possibilidades de desenvolvimento da
criança a influenciará diretamente, visto que a escassez de situações sociais que a obriguem a
se utilizar da linguagem de forma significativa a fará se desenvolver de forma lenta. O
desenvolvimento da linguagem ocorre através da interação da criança com o meio e isso
também é uma realidade para as crianças com Síndrome de Down.
A linguagem media as atividades sociais, acadêmicas e de aprendizagem que estão na
dependência dos processos receptivos e expressivos linguísticos, bem como as habilidades
psicolinguísticas, que proporcionam a integração do conhecimento e a possibilidade de
interação social. Ou seja, o desenvolvimento da linguagem está intrinsecamente ligado ao
desenvolvimento dos meios de comunicação da criança, do modo como ela se integra no
ambiente social. A construção de uma linguagem voltada a seus interlocutores, em relações
interativas e dialógicas, tem reflexos importantes para seu desenvolvimento global e de
aprendizagem. Tais composições repercutem nas características psicológicas da criança com
Síndrome de Down.

Características psicológicas ligadas à Síndrome de Down

(23)
Um estudo comparativo de Cuskelly e Dadds que utilizou amostra clínica e grupo
controle verificou que as crianças com SD tendem a apresentar mais problemas de
comportamento, como por exemplo, chamadas de atenção e imaturidade. Essas manifestações
estão ligadas ao plano da afetividade. Esta pode ser conceituada como “a maneira de tratar,
falar com carinho, acolher” (24).
(25) (26)
Dois autores importantes da psicologia, Vygotsky e Wallon , descreveram e
investigaram a relação entre afetividade e inteligência, “elemento fundamental para todo o
processo de desenvolvimento do ser humano”. O termo se refere à capacidade do ser humano
de ser afetado positiva ou negativamente tanto por sensações internas como externas. A
afetividade está presente em toda a vida do sujeito, se tornando fundamental para o
crescimento das crianças com deficiência. Pode-se observar a presença da afetividade em
todas as crianças que possuem Síndrome de Down. Tal característica pode ser fator de
proteção para estabelecer um elo entre inteligência, motivação e aprendizado, e a escola pode
se tornar um elemento para sua construção.
(26)
Wallon destaca que a afetividade se expressa de três maneiras: 1) Emoção:
exteriorização da afetividade, aparece desde o início da vida do ser humano e é expressa com

8
movimentos de espasmos e contrações, liberando sensações de mal-estar ou bem-estar; 2)
Sentimento: expressa a afetividade sem arrebatamento, com controle, pela mímica e também
pela linguagem, o que o diferencia da emoção. Possui caráter cognitivo. 3) Paixão: está
presente a partir da fase do personalismo e se caracteriza pelo autocontrole no domínio de
uma situação, exteriorizando-se através de ciúmes e exigência de exclusividade. O
entendimento do que seja a afetividade, sua vivência na família e na escola, pode influenciar
na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo do sujeito, ocupando um lugar de extrema
importância.
As características psicológicas, portanto, se entrelaçam com os vínculos sociais e
afetivos construídos a partir da interação, além de sofrerem influência do temperamento e da
personalidade da criança. Um ambiente comum e importante para a construção desses
vínculos e para o desenvolvimento de aspectos cognitivos e psicológicos do indivíduo é a
escola. Ela possui papel ativo e participativo no crescimento do sujeito, em todos os aspectos,
tanto em pessoas com desenvolvimento típico quanto atípico.

Escola: inclusão e ampliação social da criança com Síndrome de Down

As mudanças nas leis brasileiras, impulsionadas pela Convenção do Direito das


Pessoas com Deficiência contribuíram para a inclusão da pessoa com deficiência de forma
efetiva. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência). (Lei 13.146/2015), criada em julho de 2015 e que entrou em vigor em janeiro de
2016, representou um grande avanço na inclusão de pessoas com deficiência na escola
comum. A lei estabelece que a escola não tem o direito de negar a matrícula nem tampouco
cobrar taxas extras da pessoa com Síndrome de Down, podendo ser decretada a prisão da
pessoa que fizer tal negação. Essa lei assegura os direitos e auxilia as pessoas com deficiência
a estarem cada vez mais incluídas na sociedade. Visando a melhoria do processo de inclusão,
a lei preconiza que é o ambiente que deve modificar sua estrutura para acolher o aluno e suas
necessidades. O enfoque educativo deve ser dado em suas aptidões e habilidades e não em
sua deficiência. Com isso, os docentes têm a possibilidade de adaptar o currículo com o
intuito de promover e/ou facilitar a aprendizagem do aluno (27).
O período de escolarização se constitui como uma fase desafiadora e complexa para
os pais de crianças com Síndrome de Down. A opção pela escola é um momento importante
na vida da família, os pais precisam tomar decisões que muitas vezes podem gerar angústias e
dúvidas; escolher entre a escola especial e a escola comum terá consequências para a rotina

9
da família e para o futuro do filho. No momento dessa escolha deve-se levar em conta que
cada família é singular e traz consigo aspectos culturais, sociais, econômicos e emocionais,
que as diferem das outras, influenciando diretamente na tomada de decisão. Portanto, o
processo de inclusão, além de envolver alterações estruturais e curriculares da escola,
necessita da preparação da família.
A literatura nos mostra que o número de matrículas da escola especial e da escola
comum são próximos, o que revela que a inclusão, apesar de estar progredindo em passos
lentos, tem ganhando força com as políticas públicas, os movimentos sociais e os grupos de
apoio às famílias. F. é um exemplo disso. Trata-se de um menino de 10 anos, com SD,
acompanhado na escola regular por uma das autoras do presente artigo, na função de sua
monitora. Alguns relatos da experiência com F. serão retomados no intuito de ilustrar e
discutir o tema principal do trabalho, a saber, a relação entre a atuação da família e a
aquisição da autonomia pela criança com SD.

F. e o impasse com a autonomia

F., 10 anos, foi assistido em um colégio particular da cidade de Belo Horizonte, entre
fevereiro de 2018 e março de 2019. Frequenta o mesmo colégio desde os 7 anos de idade. Em
2019 estava matriculado no 2º ano do ensino fundamental. A criança reside com a mãe, o pai
e possui dois irmãos mais velhos, sendo um de 13 e outro de 17. Entretanto, a principal
cuidadora é a sua mãe. O pai não participa muito de sua vida. F. é um garoto acima do peso e
geralmente mais agitado do que seus colegas, apresenta comportamento agressivo quando é
contrariado, e se expressa com frequência usando “palavrões”. Agressões físicas a outras
pessoas são comuns durante seus sentimentos de raiva.
No início do ano letivo, F. costumava chegar atrasado. A mãe dizia que era por causa
de problemas de comportamento, como a relutância a sair do carro para ir à escola. O
esgotamento emocional da mãe era nítido. Em uma das primeiras visitas à escola, F. seguia
atrás da mãe, sorridente e muito animado. Costumava carregar um brinquedo muito grande, o
que promovia situações de embate, pois no colégio não poderia entrar com o objeto. Em suas
vivências, F. aparentava gostar de atenção e de receber estímulo e incentivo de outras
pessoas. Seu comportamento opositor para entrar na sala de aula variava de acordo com o dia.
F. possuía amigos na escola, entretanto, alguns comportamentos seus que envolviam
chantagem e agressão física eram presentes. As crises de choro que apresentava poderiam ser

10
questionadas em relação a sua veracidade, pois havia dúvidas se a intenção não era ganhar
benefícios com a demonstração de tristeza.
A professora apresentava dificuldade em lidar com a demanda das outras crianças e
de F., ao mesmo tempo, por isso a escola disponibilizou uma monitora para acompanhá-lo,
exclusivamente. Esse apoio individual era necessário e obrigatório na escola. Para conseguir
que F. realizasse tarefas rotineiras, como subir as escadas, fazer atividades e voltar para a
sala, era preciso utilizar táticas diferenciadas e motivadoras. Em atividades novas, realizadas
com pouca frequência, F. demonstrava disposição e animação. Nas atividades didáticas, que
demandavam maior concentração e raciocínio, não apresentava interesse. Tal aspecto
comportamental pode ser explicado pelas dificuldades inerentes à Síndrome de Down,
descritas acima.
No início do ano, F. fazia xixi na calça todos os dias, a mãe já deixava separados uma
cueca e um short na mochila pois sabia que iria precisar trocar. Chamou a atenção da
monitora de apoio o fato de F. não se interessar em ir ao banheiro e achar comum urinar na
calça. Passou, então, a não trocar mais as roupas de F., avisando-o disso e convocando-o a se
decidir por usar o banheiro para suas necessidades. Até então, tanto em casa quanto na escola
a roupa de F. era trocada sempre que necessário, atrasando, na visão da monitora, o
desenvolvimento de sua independência em relação ao autocuidado. Foi-lhe explicado que
deveria fazer xixi no banheiro, ficando com a roupa molhada caso não seguisse esse
comando. Bastaram dois dias para que F. começasse a pedir para ir ao banheiro, parando de
urinar na calça. F. também precisava de ajuda para se limpar ao defecar, dizia que não sabia.
A monitora propôs-lhe ensinar e ele ficou bastante contente. A mãe ficou surpresa e
impressionada quando soube do controle urinário e mais ainda quando identificou que não
precisava mais ajudá-lo a se limpar. Ela nomeou o aprendizado do filho de “milagre”.
A surpresa da mãe diante do aprendizado da criança evidencia uma subvalorização de
suas capacidades. Essa convicção da mãe poderia estar influenciando negativamente o
desenvolvimento do autocuidado do filho, pois, além de não estimular sua autonomia, não
demonstrava credibilidade em suas possibilidades. Incentivar as pessoas com Síndrome de
Down as beneficia em todos os aspectos de seu desenvolvimento: estimulá-las e mostrar-lhes
que são capazes, enaltecer um desenho, uma observação feita, um comentário, faz com que
elas se sintam capazes e independentes.
A escola costumava chamar a mãe para muitas reuniões devido aos comportamentos
do filho, sobretudo as agressões físicas aos colegas. A monitora passou a corrigir F. em
relação aos comportamentos indesejados, ensinando o que podia e o que não podia fazer, e F.

11
foi evoluindo no convívio social. Os casos de agressões e palavrões passaram a ser raros e F.
já ia ao banheiro e bebia água sozinho, fatos que deixavam a mãe muito contente. A monitora
enfatizava a ela que, antes de aprender conteúdos propriamente escolares, F. precisava
aprender a ter um bom convívio com outras pessoas.
Dessa forma, percebe-se que, apesar dos desafios, quando a criança entende que
precisa cumprir suas tarefas, sendo estimulada corretamente a fazê-las, as dificuldades se
tornam contornáveis, por meio de uma relação carinhosa mas acompanhada de respeito e
disciplina.
Um dos principais problemas comportamentais de F. eram as agressões, advindas de
emoções como raiva e tristeza. Com isso, tornou-se importante ajudá-lo a gerenciá-las.
Algumas pessoas com Síndrome de Down têm grande dificuldade para se comunicar e isso
dificulta a expressão das emoções. Ajudá-las a identificar as emoções, a senti-las e expressá-
las permite que se sintam bem e, consequentemente, há uma melhora em suas relações. Por
outro lado, muitas vezes se tenta poupá-las de sofrer ou os adultos se apresentam sem
paciência e com dificuldade de estabelecer um contato em que as duas pessoas estejam se
entendendo. Isso faz com que a criança se sinta mal e incorra em uma baixa autoestima,
acreditando não ser capaz de realizar o que lhe solicitam. Ensinar a criança a controlar seu
comportamento em situações inesperadas é muito importante, ela deve aprender a esperar e a
expressar a tensão sem agressividade. Essa é uma tarefa que traz seus desafios mas que
provoca grandes conquistas para a obtenção da autonomia.
Os pais devem ensinar a suas crianças que as ações causam efeitos. Para tanto, devem
se questionar sobre quais soluções possuem. “O que posso fazer para mudar isso? Quais são
as consequências do meu ato? Consigo colocar-me no lugar do outro? De que meios disponho
para conseguir alguma coisa?” – são as perguntas a serem ensinadas pelos pais para que a
criança realize a reflexão sobre suas ações. Isso fará com que comece a criar uma autonomia
e uma independência, de maneira a fazer que todas essas questões participem de suas vidas.
No entanto, a pessoa com deficiência intelectual tem dificuldade em desenvolver esse
tipo de pensamento. O apoio a ser dado visa ampliar a capacidade de pensar sobre as
consequências de suas ações diárias. Para tanto, o aprendizado por meio das frustrações
encontradas é necessário. Não deixar a criança se frustrar é atrasá-la em seu crescimento,
mantendo-a presa à infância. Pessoas com Síndrome de Down requerem, como o resto da
população, de um projeto de vida e, para isso, precisam se conhecer, aceitar suas limitações,
perceber seus pontos fortes e suas capacidades, ter confiança em si mesma e metas concretas.

12
O nascimento de um filho constitui um grande acontecimento na vida de uma família,
exigindo mudanças e reestruturação de papéis, especialmente dos pais e mães, para o
recebimento de um novo membro. Tornar-se um progenitor representa uma mudança na
associação e no funcionamento dos membros da família, modificando o equilíbrio entre
(28)
trabalho, amigos, irmãos, pais e mães . Por esse motivo, após o diagnóstico de alguma
síndrome ou etiologia que representam um atraso no desenvolvimento do bebê, os pais e
mães, devido a fatores emocionais, frequentemente enfrentam períodos difíceis,
especialmente relacionados à interação com seus bebês (29).
Diante disso, o nascimento de uma criança com Síndrome de Down vai exigir um
cuidado e um processo de adaptação muito mais intenso por parte dos pais, pois a criança
com possuirá limitações que precisam ser trabalhadas com muita sabedoria. O objetivo é o de
que a criança venha a ter uma vida no nível daquela das crianças que não possuem uma
deficiência, para isso é preciso auxiliá-la na evolução de sua autonomia e independência, tal
como as outras. Cada momento de vida dessa criança trará um impacto diferente para os pais.
Saber lidar com essas particularidades é importante em todo ambiente em que se insira, tanto
escolar quanto social.
Quando uma criança nasce, existe a fantasia dos pais em imaginar e sonhar em como
será esse bebê. Existem, para os pais e mães, três diferentes bebês: o bebê imaginário de seus
sonhos e fantasias; o feto invisível, mas real, com ritmos particulares e personalidade
particular que vão se revelando ao longo da gestação; e o recém-nascido de fato, que pode ser
(30)
visto, ouvido, pego nos braços . Em todo nascimento, de qualquer criança, instaura-se o
conflito da discordância entre o filho sonhado e imaginado e aquele que ali se apresenta. Os
pais têm que assimilar e adotar psiquicamente esse bebê real, que têm diante de si. Esse é um
processo natural e automático para a maioria dos casais, no entanto, quando o bebê possui
uma deficiência identificada ao nascimento, a primeira reação se torna um choque e começam
daí sentimentos negativos que, em alguns casos, incorrem em rejeições por parte dos pais e
da família em geral.
Portanto, no momento da chegada dessa criança, é necessária a criação de uma rede
de apoio que irá atuar tanto no desenvolvimento dela quanto da família. Já no primeiro
momento, do diagnóstico, é de extrema importância que os profissionais envolvidos ofereçam
informações atualizadas sobre a Síndrome de Down, fazendo uso de uma linguagem
compreensível e se fazendo disponíveis para sanar as dúvidas da família. Essas informações
geralmente se baseiam em três tópicos: o que é a Síndrome de Down, qual é sua causa e quais
as expectativas reais para a criança com tal diagnóstico. Muitas vezes, a simples falta de

13
informação faz com que os pais se sintam culpados e se vejam como causadores da síndrome
do filho, por isso o primeiro momento é fundamental para esclarecer dúvidas e pensamentos
do senso comum.
A partir do nascimento, a família inicia uma jornada de acompanhamentos clínicos
com o propósito de minimizar as complicações decorrentes da síndrome (31). Tais dificuldades
interferem diretamente no desenvolvimento neuropsicomotor da criança, sendo indicada a
inserção da família e da criança em programas de intervenção precoce. Para potencializar seu
desenvolvimento, em sintonia com os acompanhamentos multidisciplinares, é apropriado que
ocorra a escolarização da criança, logo em seguida.
No caso de F., era visível a influência que a família, principalmente a mãe, tinha sobre
ele. Na relação de F. com sua mãe, F. a dominava totalmente, ela fazia todas as suas vontades
e ele tinha total controle sobre ela. F. apresentava resistência em amarrar o cadarço, ir ao
banheiro, comer sozinho e sua mãe fazia para ele todas essas coisas. Quando questionada,
dizia que ele não sabia, por isso o ajudava.
A mãe de F., quando soube de sua deficiência, parou de trabalhar e sua vida passou a
girar em torno do filho. Ela passa todo o tempo com ele, exceto quando ele está na escola. Ele
possui a atenção da mãe voltada para si, em todos os sentidos, sobretudo naquele, descrito por
Sígolo (14)
, de “mediadora na relação entre a criança e a sociedade”. Em diversas situações
prenhes de aquisição de autonomia, a mãe se colocava no lugar de F., não lhe permitindo
avançar, aprendendo com suas dificuldades e frustrações. A relação de F. com a mãe impedia
que ele evoluísse, fazendo suas próprias tarefas. Cabe perguntar em que medida faltou à mãe
um apoio, no início dos cuidados com F., que a ajudasse a não enxergar somente as
limitações em seu filho. Esse é um trabalho importante da equipe de intervenção precoce,
como visto.
O comportamento de F. na escola era um espelho da convivência e da relação que
mantinha com a mãe. Se uma criança, sendo ela portadora de Síndrome de Down ou não,
exerce um papel de domínio dentro de sua casa, também vai querer exercer esse papel em
todos os outros lugares, inclusive na escola. Sendo assim, as posturas de F. na escola eram as
mesmas que dentro de casa, para mudá-las era necessário atuar na relação que ele estabelecia
com a mãe. O exemplo mais notável dessa correspondência se mostrava às segundas-feiras:
quando F. retornava para a aula no início da semana, era necessário recomeçar todas as
evoluções que adquirira durante a semana anterior, pois, no fim de semana em casa, ele
retornava a seu modo de relação padrão. Era difícil à mãe de F. aceitar e reconhecer sua

14
própria mudança para F. evoluir. Essa foi uma limitação encontrada no trabalho da monitora,
que se apresentou como um impasse de difícil transposição.
Pode-se afirmar que estava ali presente um “fator de risco para o desenvolvimento
infantil”. Esse conceito pode ser descrito como as características da criança, da família e do
ambiente que diminuem a probabilidade da criança tornar-se competente e ter senso de bem-
(32)
estar . Aumenta, portanto, a probabilidade de ocorrência de resultados negativos e
(33)
indesejáveis . A pergunta que surge, portanto, é: como atuar nesse ponto de dificuldade
familiar, sabendo-se que ele se apresenta como fundamental para invalidar todos os esforços
alheios de construir uma autonomia em F.?

A família da criança com Síndrome de Down: estresse parental e estratégias de


enfrentamento

Independentemente de cultura, composição ou classe social, a família consiste no


primeiro grupo social do qual os seres humanos fazem parte e estabelecem seus contatos. É
através das relações familiares que as crianças começam a compreender o mundo que as
cercam, aspecto que favorece o seu desenvolvimento e a construção de sua identidade. Dessa
forma, destaca-se a importância que as famílias representam no desenvolvimento do ser
humano ao longo da vida, principalmente no que se refere à proporção de cuidados, de
estímulos, de interações e de ensinamentos. As estratégias de enfrentamento criadas e o
estresse são fatores importantes que interferem nas relações familiares, na dinâmica e no
funcionamento de famílias com filhos com deficiência intelectual, como é o caso da SD. A
literatura demonstra que genitores de crianças com necessidades especiais apresentam maior
nível de estresse parental que genitores de criança com desenvolvimento típico, sendo que
uma variedade de estressores é associada à criação dos filhos (34). Dessa maneira, é necessário
que a família encontre um meio de organização para enfrentamento da situação, visto que,
como dito anteriormente, os pais atuam como espelhos para os filhos, especialmente para os
que têm necessidades especiais, que possuem em seus pais uma forte base de apoio.
As estratégias de enfrentamento, ou o chamado coping, são habilidades desenvolvidas
(35)
pela pessoa para o domínio e adaptação em situações estressoras . As estratégias de
enfrentamento/coping são classificadas como: confronto, afastamento, autocontrole, aceitação
da responsabilidade, apoio social, resolução de problemas, reavaliação positiva, fuga e
esquiva. (12) Contudo, não existe na literatura um levantamento sobre qual estratégia os pais e
mães de crianças com necessidades especiais mais utilizam, sendo bem variadas suas opções.

15
(36)
Apesar de ainda não haver consenso entre os estudos, Glidden et al. afirmam que os
genitores que usam estratégias de enfrentamento que têm como foco a resolução de
problemas e o apoio social apresentam resultados mais positivos, ao passo que aqueles que
utilizam estratégias centradas na negação, esquiva e evitação têm demonstrado resultados
menos positivos. No que diz respeito ao estresse, os estudos têm mostrado que mães de
crianças com deficiência intelectual experienciam mais estresse que os pais nesse mesmo
grupo como também em comparação às mães de crianças com desenvolvimento típico (34). Ou
seja, fica bem claro na literatura que as famílias com crianças com necessidades especiais, SD
aí incluída, sofrem com o estresse e têm o funcionamento familiar afetado.
A família da criança com Síndrome de Down é uma família que precisa de apoio e
acompanhamento para aprender a escolher a melhor estratégia para lidar com a criança.
Muitas vezes, os pais e mães não sabem que a estratégia familiar escolhida, na maioria de
maneira inconsciente, está afetando negativamente a criança.
É importante ressaltar que a modo de funcionamento que a família traz para essa
criança, é o modo que ela irá repetir em todos os aspectos da sua vida, em especial na escola,
que é outro grande sistema em que se encontra inserida. Por isso, muitas vezes nos
deparamos com a problemática do aluno com SD regredir no final de semana tudo ou quase
tudo aquilo que havia sido construído durante a semana, com os monitores e professores da
escola.
Se pensarmos do ponto de vista sistêmico, não existe uma família com uma criança
com SD, e sim uma família com a SD, o que implica em um tratamento e um
acompanhamento em conjunto. Pais, mães e irmãos devem pensar em um tratamento para o
coletivo. Na situação de F., a mãe ficou sozinha nos cuidados com o filho e buscou traçar as
estratégias de enfrentamento que lhe foram possíveis. Uma abordagem profissional irá se
voltar para os demais membros da família – pai e irmãos −, a fim de introduzi-los na atuação
direta com F., inserindo, assim, novas formas de coping, ligadas à personalidade de cada um
e não mais exclusivamente à da mãe. Esta, também, teria possibilidades de agir de maneira
diferente, ao sentir-se apoiada e substituída, em vários momentos, pelos demais familiares.

Considerações finais

O artigo discorreu sobre crianças com a Síndrome de Down e a influência direta de


sua família no aspecto da aquisição de sua autonomia. A literatura da área demonstrou que o
ambiente familiar é o primeiro sistema em que a criança está inserida e, portanto, o que mais

16
a influencia; de maneira positiva ou negativa, cabendo à família o processo de construção da
autonomia do sujeito através do incentivo, da aceitação e da compreensão sobre a SD.
Famílias com crianças com necessidades especiais de fato tendem a sofrer alterações
em seu sistema, sendo necessário que encontrem seu modo de funcionamento para que
consigam, através de um trabalho em conjunto com pai, mãe e irmãos, enaltecer
características e pontuar qualidades do membro com SD. Essa é uma via para que se tornem
adultos independentes e se livrem da imagem de eterna criança, que deve ser protegida e
cuidada.
É fundamental que aprendam a tolerar frustrações e que não sejam evitadas situações
em que tenham que fazer escolhas. É necessário que aprendam com as boas e más
experiências, a cometer erros, a suportar aquilo que não gostam e, ao mesmo tempo, devam
ter a possibilidade de gerenciar os aspectos que dizem respeito à sua vida. Se não for
facilitada essa base, não serão auxiliadas a se tornarem seres autônomos.
Ser autônomo não significa ser inteligente, casar e ter filhos. Significa viver de forma
consciente e responsável e ter acesso a alguns dos papéis previstos na sociedade. Se não se
prepara essa base, inserir uma pessoa com deficiência em um contexto adulto, como o do
mundo do trabalho, pode representar um grande risco. Deve-se construir junto com a criança
sua própria autonomia.
Cabe aos profissionais e pais fazer todo o possível para ajudar as pessoas com
deficiência a traçar um projeto de vida. O desafio é o de reconhecer e respeitar o seu tempo
de crescimento, conhecendo e aceitando a condição de adulto, em vez de uma infância eterna.
Se se acredita que as pessoas com deficiência têm possibilidades de crescimento e de
tornarem-se parte ativa da sociedade, elas serão capazes de corresponder a essa expectativa,
no modo próprio de cada uma. Sem um projeto de futuro próprio, crescerão sem esperança,
sem valorizar suas próprias realizações e seguirão na posição de crianças que mantêm há
muitos anos.
Michel Quoist, escritor francês, formulou a respeito da autonomia das pessoas com
deficiência:

Se o homem tem medo de andar, que não solte a mão da mãe. Se tem medo de cair,
que fique sentado. Se tem medo do acidente, que deixe o carro na garagem. Se tem
medo de escalar, que fique no abrigo. Se tem medo de que o paraquedas, não abre,
que não salte. Se tem medo da tempestade, que não saia do porto. Se tem medo de
não saber construir sua casa, que a deixe no projeto. Se tem medo de confundir o
caminho, que fique em casa. Se tem medo de se sacrificar e do futuro, que renuncie
à vida, se tranque e se deixe levar pela preguiça. Então, talvez, sobreviverá, mas não
será mais um homem, já que a natureza do ser humano é querer arriscar, de maneira
razoável, sua vida.

17
Conclui-se que o trabalho alcançou seu objetivo de verificar sobre a importância do
contexto familiar para o desenvolvimento da autonomia da criança com Síndrome de Down.
Os aspectos comportamentais e psicológicos se mostraram como os mais diretamente
influenciados por esse fator. Com isso, é importante que o profissional psicólogo dê a atenção
especializada à família de uma criança nascida com SD, desde o início, para auxiliar seus
membros a aceitar a síndrome e, a partir daí, conseguirem atuar com a criança de maneira a
auxiliá-la na construção autêntica de uma autonomia na vida.

Referências

1. Laplane ALF, Batista CG. Ver, não ver e aprender: a participação de crianças com
baixa visão e cegueira na escola. Cadernos CEDES [Internet] 2008, 28(75), 209-227.
Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S0101-32622008000200005

2. Sifuentes TR, Dessen MA, Oliveira MCSL. Desenvolvimento humano: desafios para a
compreensão das trajetórias probabilísticas. Psicologia: Teoria e Pesquisa [Internet]
2007 [acesso 29 de março de 2019]; 23(4), 379-385. Disponível em:
https://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722007000400003

3. Gallo AE, Williams LCA. Adolescentes em conflito com a lei: Uma revisão dos
fatores de risco para a conduta infracional. Psicologia: Teoria e Prática. 2005; 7(1), 81-
95.

4. Rondal JA. Down’s syndrome. In: Bishop, D. & Mogford, K. (orgs.). Language
development in exceptional circumstances. Hillsdale: Laurence Erlbaum; 1993.

5. Silverman W. Down syndrome: cognitive phenotype. Mental Retardation and


Developmental Disabilities Research Reviews. 2007; 13 (3), 228-236

6. Contestabile A, Benfenati F, Gasparini L. Communication breaks-Down: From


neurodevelopment defects to cognitive disabilities in Down syndrome. Progress in
Neurobiology. 2010; 91 (1), 1–22.

7. Tsao R, Kindelberger, C. Variability of cognitive development in children with Down


syndrome: relevance of good reasons for using the cluster procedure. Research in
Developmental Disabilities. 2009; 30 (3), 426-432.

8. Castro AS, Pimentel SC. Síndrome de Down: desafios e perspectivas na inclusão


escolar. In: DÍAZ, F. et al. (Org.). Educação inclusiva, deficiência e contexto social:
questões contemporâneas. Salvador: EDUFBA. 2009; 14(23) 303-312.

9. Bull M.J. Committee on Genetics. Health supervision for children with Down
Syndrome. Pediatrics. 2011; 128(2):393-406.

18
10. Minuchin P, Colapinto J, Minuchin S. Trabalhando com famílias pobres (M. F. Lopes,
Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas; 1999. (Trabalho original publicado em 1998).

11. Coatsworth, JD, Pantin H, Szapocznik, J. Familias unidas: A family-centered


ecodevelopmental intervention to reduce risk for problem behavior among Hispanic
adolescents. Clinical Child and Family Psychology Review [Internet] 2002 [acesso 02
de abril de 2019]; 5(2), 113-132. Disponível em:
https://doi.org/10.1023/A:1015420503275

12. Pereira-Silva NL, Andrade JCM, Almeida BR. Famílias e síndrome de Down:
Estresse, coping e recursos familiares. Psicologia: Teoria e Pesquisa [Internet] 2018
[acesso 24 de abril de 2019]; 34, e3445. Epub July 16, 2018. Disponível em:
https://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e3445

13. Colnago N A S. Pares “mães-bebês síndrome de Down”: Estudo da estimulação e dos


aspectos qualitativos da interação. Dissertação de Mestrado não-publicada,
Universidade Federal de São Carlos, SP; 1991.

14. Sígolo LM. O boom imobiliário na metrópole paulistana: o avanço do mercado formal
de moradia em direção à periferia e a nova cartografia da segregação socioespacial.
Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo; 2014.

15. Mustacchi Z. Síndrome de Down. In: MUSTACCHI, Z.; PERES, S. (Org.). Genética
baseada em evidências - síndromes e heranças. São Paulo: CID editora, 2000. p. 817-
894.

16. Roazzi A, Souza BC. Repensando a inteligência. Paidéia (Ribeirão Preto) [Internet]
2002 [acesso 7 de maio de 2019]; 12(23), 31-55. Disponível em:
https://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2002000200004

17. Sternberg RJ. Psicologia cognitiva. Porto Alegre: Artmed; 2000.

18. Meyers FL. Using computers to teach children whith Downs syndrome spoken and
written language skills. The Psicobiology of Down syndrome, 1990.

19. Kamii C. A criança e número: Implicações educacionais da teoria de Piaget para a


atuação com escolares de 4 e 6. Tradução A. de Assis. 11ª ed. Campinas: Papirus;
1990.

20. Chomsky HN. Syntatic structures. Haia: Mouton, 1957.

21. Pacanaro SV, Santos AAA, Suehiro, ACB. Avaliação das habilidades cognitiva e viso-
motora em pessoas com Síndrome de Down. Revista Brasileira de Educação Especial
[Internet] 2008 [acesso 20 de maio de 2019]; 14(2), 311-326.
https://dx.doi.org/10.1590/S1413-65382008000200011

22. Andrade MM. Como preparar trabalhos para cursos de pós-graduação: noções práticas.
5º ed. São Paulo: Atlas; 2012.

19
23. Cuskelly M, Dadds M. Behavioural problems in children with Down's syndrome and
their siblings. Journal of Child Psychology and Psychiatry. 1992; 33, 749-761.

24. Almeida ARS, Santos AB; Gama CB. O prazer de aprender: práticas afetivas na sala
de aula. Braz. J. Biol. 2013; 68(2).

25. Vygotsky L. A forma social da mente. São Paulo: Martins Fontes; 2007.

26. Wallon H. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Ed. 70, 2004.

27. Minetto MF, Baril N, Cruz ACB, Pereira PASR, Valle NKS, Carniel TC et al. A
Escolha da escola para filhos com síndrome de Down. Da Investigação às Práticas
[Internet] 2018 [acesso 04 de junho de 2019]; 8(1), 75-97. Disponível em:
https://dx.doi.org/10.25757/invep.v8i1.153

28. Bradt JO. Tornando-se pais: Famílias com filhos pequenos. In: Carter, B. &
McGoldrick, M. (orgs) As mudanças no ciclo de vida familiar. Porto Alegre: Artmed;
1995.

29. Brito AMW, Dessen MA. Crianças surdas e suas famílias: um panorama geral.
Psicologia: Reflexão e Crítica. 1999; v. 12, p. 429-445.

30. Brazelton TB, Cramer B G. As primeiras relações. São Paulo: Martins Fontes; 1992.

31. Novadzki IM, Bermudez BEBV. Saúde integral: serviço público (gestação, período
neonatal, infância, adolescência). In M. F. Minetto & B. E. B. V. Bermudez (Org.)
Bioecologia do desenvolvimento da síndrome de Down: práticas em saúde e educação
baseadas em evidências (pp. 135-156). Curitiba: Íthala; 2017.

32. Erikson MP, Kurz-Riemmer K. Infants, toddlers and families: A framework for
support and intervention. New York: The Guilford; 1999.

33. Reppold CT, Pacheco J, Bardagi M, Hutz CS. Prevenção de problemas de


comportamento e desenvolvimento de competências psicossociais em crianças e
adolescentes: Uma análise das práticas educativas e estilos parentais. Em C. S. Hutz
(Org.), Situações de risco e vulnerabilidade na infância e na adolescência: Aspectos
teóricos e estratégias de intervenção (pp.7-52). São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002.

34. Albuquerque S, Pereira M, Fonseca, A, Canavarro M C. Impacto familiar e


ajustamento de pais de crianças com diagnóstico de anomalia congênita: influência dos
determinantes da criança. Revista de Psiquiatria Clínica. 2012; 39(4), 136-141.

35. Savóia M, Santana P, Mejias N. Adaptação do inventário de Estratégias de Coping¹ de


Folkman e Lazarus para o português. Psicologia USP [Internet] 1996 [acesso 8 de
junho de 2019]; 7(1-2), 183-201. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1678-
51771996000100009

20
36. Glidden LM, Billings FJ, Jobe BM. Personality, coping style and well-being of parents
rearing children with developmental disabilities. Journal of Intellectual Disability
Research. 2006; 50, 949-962.

21

Você também pode gostar