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A INACEITÁVEL

AUSÊNCIA DO PAI
CLAUDIO RI5É

CIDADK
"Esso mensogem fala de um sentimento
difundido: o soudode do olhar paterno.
De um pai que preste otençõo em você,
mesmo de longe, mos que o vejo, sorrio
poro você, e o repreenda, vez por outro.
De um pai, também, 'minficável' [...1. de
um pai de quem se posso captor o gosto
pelo vido e o cansaço, o alegria e o dor.
De um pai mais expressivo que o
impecável, o politicamente correto, mos
também severo, pouco emodonodo e
pouco emodononte: "homem do
orgonizoçõo", com o quol o homem
adulto oadentol dos nossos dias se
identifico. Mas há. sobretudo, o soudode
de um poi mots corajoso do que ele, do
corporare mon, do empresário. Mais
corajoso nos ofetos, pnndpolmente em
reloçõo oos filhos.
Enfim, um poi que nôo tenho medo de

fazer o próprio porre.


Entretanto, esse poi [ 1 está hoje ausente"

(pp. 9-10)

Coleção
FAMÍLIA E SOCIEDADE
A INACEITÁVEL AUSÊNCIA DO PAI

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A INACEITÁVEL
AUSÊNCIA DO PAI

C1O\DEN0VA
— São Paulo, 2007 —

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Título do original:
Il padre, l'assente innacetabile
© San Paolo — Cinisello Balsamo (MI) — 2003
Tradução:
Claudia Scheeren
© Editora Cidade Nova — São Paulo — 2007
Copidesque:
Irami B. Silva
Revisão:
Klaus Brüschke
Rafael Varela
Ignez Maria Bordin
Capa:
Márcio Paulo Soares de Oliveira
Foto:
Joaci Oliveira
Diagramação:
Giceli Valadares da Silva

3* edição - janeiro 2011

ISBN 978-85-89736-56-5
(Original: 88-215-4843-0)

Editora Cidade Nova


Rua José Ernesto Tozzi, 198
Vargem Grande Paulista - SP - Brasil
CEP 06730-000 - Telefax: (11) 4158.2252
www.cidadenova.org.br
editoria@cidadenova.org.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Risé, Cláudio
A inaceitável ausência do pai: paternidade e seus desafios na sociedade
atual / Cláudio Risé ; [tradução Claudia Scheeren]. — Vargem Grande
Paulista, SP: Editora Cidade Nova, 2007.

Título original: II padre: 1'assente inaccettabile.


Bibliografia.
ISBN 978-85-89736-56-5

1. Família - Aspectos psicológicos 2. Pai e filho 3. Pais - Psicologia


I. Título. II. Título: Paternidade e seus desafios na sociedade atual.

07-5966 CDD-155.6462
índices para catálogo sistemático:
1. Pai: Psicologia 155.6462

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Sumário

Ao leitor: Saudade e esperança 9

1. A MARCA DO PAI II
O pai e a ferida 14
A ferida paterna e a separação da mãe 15
Os ritos de iniciação ib
O pai que fere e 0 "complexo de castração” 19
Reluto com 0 pu e renúncia à onipotência 22
A busca de limites e a sindrome do ¡va/h:
Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatnridade 2 3
Enéias, a perda e 0 pai 2;
ícaro, seu pai e a rainha de Crrta 26
II. O pai e Deus 29
O pai como criador 31
O pai e a liberdade 32
Os aparatos terapêuticos hostis ao pai 33
O pai e 0 futuro 34
O guardião 36
O pai e a formação para 0 trabalho y]
Educador e “corretor “ 38

III. O Ocidente se distancia do pai 43


O “processo de secularização" 4}
Lutero, a Reforma e 0 eclipsar-se do pai 44
De testemunha de Deus na femflia a fornecedor de alimentos 46
A pedagogia protestantee 0 desprezo pela simplicidade paterna 50
Desaparecimento da iniciação 52
Iniciação e educação da agressividade 54
Afilha sem pai 55
As Guerras Mundiais e a “fabricação'' do indivíduo 56
A sociedade Grande Mãe 59
IV. A INDÚSTRIA DO DIVÓRCIO EA SUA LUTA CONTRA O PAI 61
Histórias de pais 62
Os pais dilacerados bb
Quem rompe a família ? 67
O caso americano: uma pesquisa de ciências políticas 67
O pai fora-da-lei 70
Apêndice: Breve "idiotiírio" divorcista 73

V. A PATOLOGIA DA SOCIEDADE SEM PAI 77


Uma sociedade que não sabe perder 78
As vinganças contra a sociedade sem pais 81
A regressão da personalidade a níveis infantis 82
A psique adulta, 0 pai e 0 dom 83
A perversão "devoradora" na sociedade sem pai 85
A perversão sádica na sociedade sem pai 86
Hiperconformismo e agressividade sádica 88
A violência suave 92
A neurose fira a liberdade 93
Estratégias de distração: das drogas à pornografia 94

VI. Remoção e uso da morte na sociedade 00 "pai eliminável" 97


A morte: perda e transformação 97
O cientista e a morte: a visão de Luc Montagnier 98
O estilo do biopoder 99
A morte negada toma-se "complexo autônomo" 100
A morte "secularizada" 101
O controle sobre a vida 102
Técnicas de despachar para a morte. O aborto 103
A narração psicológica permitida pelo biopoder 104
Despachar para a morte: outros exemplos dos quais è proibido falar 105
VII. O MUNDO QUE MUDA. Do "PAI ELIMINÁVEL" AO PAI RESPONSÁVEL 107
Casar-se é melhor 108
A revolta dos "filhos do divórcio" 109
As leis de covenantmarriage 111
Restrições acordadas para se recorrer ao aborto? 11}
Pais contra 0 aborto 114
Escócia: ocaso dos "jovens que se tomam pais" 116
Leis para a guarda conjunta ou "compartilhada" dos filhos 117
O próximo passo: assumir a responsabilidade 118
Agradecimentos 121
Referências Bibliográficas 123
A meus filhos,
a todos aqueles de quem
tive a graça de ser pai,
e, com a saudade que somente
a esperança no Pai pode sublimar,
sobretudo àqueles de quem
não pude ser pai
ou nâo o soube ser.
Ao leitor
SAUDADE E ESPERANÇA

"Se fosse possível realizar aquilo que os mortais desejam, queria


primeiro que meu pai voltasse": assim diz Telèmaco, filho de Ulisses,
na Odisséia. Telèmaco è uma das primeiras figuras nas grandes nar­
rativas da humanidade que testemunha a angústia do filho sem pai.
Depois dele, vieram muitos outros. Hoje, formam legiões.
A uma lista de discussão para homens de que participo, na In­
ternet, chegou esta mensagem via e-mail: "Não sei que objetos vocês
têm no criado-mudo, fora o despertador e o abajur. Em casa, temos
porta-retratos com fotos de meu filho aos dois anos deitado numa cama
elástica na praia, outra bem pequena de mim e de minha mulher, em
1987, felizes. E, por fim, a foto de meu pai aos vinte e três unos, em
1952, em pé, jovem e belo, tocando acordeão na Bélgica, vestido num
temo preto e branco maravilhoso, anos 1950, parecendo Camus (cabelos
besuntados de brilhantina, penteados para trás), imagem do homem que
jamais serei. Toda noite, esticando 0 braço para apagar a luz, encontro
0 seu olhar sorridente e cada vez 0 entendo um pouco mais. Por isso,
mesmo que 0 pai de vocês já não viva mais, conservem umafoto dele no
criado-mudo. É bom imaginar que 0 seu filho fará 0 mesmo".
Essa mensagemfala de um sentimento difundido: a saudade do
olhar paterno. De um pai que preste atenção em você, mesmo de longe,
mas que 0 veja, sorria para você, e 0 repreenda, vez por outra. De um
pai, também, "mitificável", como 0 emigrado que toca acordeão na
Bélgica, de um pai de quem se possa captar 0 gosto pela vida e 0 can­
saço, a alegria e a dor. De um pai mais expressivo que 0 impecável, 0
politicamente correto, mas também severo, pouco emocionado e pouco

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A inaceitável ausência do pai
10

emocionante: "homem da organização", com a qual o homem adulto


ocidental dos nossos dias se identifica. Mas há, sobretudo, a saudade de
um pai mais corajoso do que ele, do corporate man, do empresário.
Mais corajoso nos afetos, principalmente em relação aos filhos.
Enfim, um pai que não tenha medo de fazer a própria parte.
Entretanto, esse pai, como veremos no decorrer deste livro,
está hoje ausente. Primeiro, porque, no mais das vezes, não teve um
pai que lhe ensinasse a ser assim. Depois, porque, de alguma forma,
a sociedade secularizada' do divórcio fácil e do aborto praticado sem
nem ao menos consultar o paii) 2 não deixa muito espaço para que ele
se expresse. Aliás, esse pai, em geral inseguro porque ninguém lhe
ensinou como fazer para ser pai, é intensamente cobrado pela cultura
social dominante a nada dizer sobre seus sentimentos e sobre as de­
cisões que são importantes para os filhos. Fale de dinheiro, estruture,
sem dúvida, um bom nível de vida para a família, mas quanto ao
resto, por favor, cale-se.
Por todas essas razões, e outras que tentaremos explicar no de­
correr do livro, o pai é hoje emocionalmente ausente, frequentemente
até relegado a uma terra de ninguém, de onde não pode mais olhar
por seus filhos ou se comunicar com eles, nem eles com o pai.
Mas essa ausência é inaceitável.
De fato, a figura do pai é constitutwa da criação, da vida e do
seu desenvolvimento. Sem uma presença paterna significativa, o orga­
nismo vital tende a enfraquecer-se e a perder o interesse pela própria
existência. Toda pessoa assume uma forma definitiva e adquire seu
dinamismo na figura do pai que o gera. Do mesmo modo que adquire
tranqüilidade e segurança afetiva na experiência positiva da mãe
positiva que o acolhe. É por isso que hoje sentimos, mais ou menos
conscientemente, saudade dessa presença.
Estas páginas querem acompanhar essa saudade, fornecendo no
decorrer do texto informações e razões do seu porquê.
A intenção é contribuir para uma esperança: que o pai volte.

i) Que, por ver o mundo como "coisas" sem alma, produz uma "perda de rele­
vância da lei natural", a qual, como observou dom Tarcísio Bertone (atual secretário
de Estado da Santa Sé), gera, por sua vez, aquela "lacuna de paternidade, que é uma
das causas principais da perda de identidade e da neurose que atinge os nossos dias"
(cit. em Awenire, yj de maio de 2002, p.ió).
2) Como a legislação de muitos países permite. [N.d.E.]

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L A MARCA DO PAI

Qual é a marca do pai?


O que falta ao filho que não viveu a presença do pai, o que
falta àquele que não exibe (como o autor do e-mail citado no
prólogo) a foto do pai no criado-mudo ou na mesa do escritório?
Ou que talvez exponha a foto justamente para substituir uma
relação esmaecida demais?
Afinal, o que torna profundamente diferente aquele filho
que recebeu essa marca, que a teve impressa em si, daquele
que não viveu uma experiência de tal natureza?
A marca do pai é a marca da ferida. A dor, o golpe, produto
da perda3.
O cenário que exprime isso totalmente para cada indivíduo,
em qualquer tempo, é o acontecimento que se deu no Gólgota:
o filho que é ferido em nome do pai. O pai o conduz ao feri­
mento, o introduz no sentido da dor. Como escreve Paul Josef
Cordes: "Na ação salvífíca de Jesus, transparece o mesmo Pai
que tanto amou o mundo a ponto de dar seu próprio Filho [...]
e justamente para a nossa salvação" (2002, p. 169).
O pai ensina, testemunha, que a vida não é apenas sa­
tisfação, confirmação, garantia, mas é também perda, falta,
cansaço. As experiências mais profundas, a começar pelo
amor, têm origem e forma naquela perda. Na vida do homem,

3) Esse é também o significado profundo da "castração" de que a psicanálise freu­


diana fala, para além da hipervalorização que ela deu à sexualidade na vida psíquica
do ser humano.

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A inaceitável ausência do pai
12

o pai transmite o ensinamento da ferida, porque a sua primeira


função psicológica e simbólica é organizar, dar um objetivo, à
matéria na qual o filho ficou imerso durante a relação primária
com a mãe, e que por si só tenderia simplesmente à continuação
da existência. Por isso, o pai inflige a primeira ferida, afetiva
e psicológica, interrompendo a simbiose com a mãe (na qual
a criança permanece até o momento em que a intervenção
paterna se torna de vital importância) e propondo, a partir
daquele momento, uma direção, um télos, uma perspectiva ao
desenvolvimento da criança (cf. Fierz, 1991).
Contudo, cada perspectiva focaliza o olhar nalgumas
direções e exclui outras, valoriza alguns comportamentos em
detrimento de outros. Portanto, numa primeira fase, a inter­
venção do pai limita a vida do jovem. Ele o "fere" para tomá-lo
mais forte.
E na dura, difícil e emocionante fase da educação que a
criança aprende a renunciar. O conto dos irmãos Grimm João de
Ferro enuncia nesta fase a perda da "bola de ouro" com a qual a
criança costumava brincar. Trata-se, naturalmente, do símbolo da
"totalidade" psíquica da criança, antes que o processo educacio­
nal venha fatalmente a limitá-lo, a dar-lhe uma forma humana
e, portanto, uma direção4. Quem recebeu a marca do pai traz no
próprio organismo psicofísico o sinal da perda, como uma ferida
profunda, bem visível, embora cicatrizada. Este golpe doloroso
fortalece aquele que o recebe: quando a perda advier, experiên­
cia inevitável na vida humana, ela não o destruirá psicológica
e espiritualmente5. Aliás, ele saberá extrair disso o néctar mais
precioso: o amor. Amor a si mesmo e amor ao próximo, ambos
forjados na experiência da perda, não na vaidade do sucesso e
nem mesmo na ilusória segurança da posse.

4) Na fábula, a bola acaba na gaiola onde os pais mantêm prisioneiro o selvagem,


que mais tarde a devolverá ao menino, com a condição de ser libertado. Interpreto esta
fábula no meu livro // maschio selvático (O homem selvagem, 2002a). O livro de R. Bly, Iron
John (João de Ferro, 1990a), também é dedicado a este conto e é um livro determinante
no nascimento do "movimento dos homens" nos eua.
5) Sobre o reforço que a ferida provoca no organismo psicofísico e sobre a abertura
que ela fornece para o mundo espiritual, há um texto muito interessante do fundador
da medicina antroposófica, Rudolf Steiner. Trata-se de O mistério da ferida (1998).

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A marca do pai
13

A marca do pai é também um sinal de iniciação. E como


todas as iniciações da historia do homem, como a Crisma no
rito cristão, ela deixa quem a recebe mais forte, mais plenamente
humano, mais capaz de viver positivamente a vida dos seres
humanos.
Num diálogo profundo entre o escritor Giovanni Testori
e padre Luigi Giussani (retomaremos esse texto mais adiante;
cf. Testori, 1989), aquele lembra que o homem deve reconhecer
"a dor do próprio mal, do próprio mal como dignidade" e que
esse reconhecimento está ligado à relação com o pai. E Giussani
reforça que "sem a experiência da dor não existe a experiência
do humano, ou seja, uma urgência perseguida, contestada,
fracassada".
Com o passar do tempo, a marca do pai assinala6 e diferencia
a fisionomia do indivíduo que a leva de quem não a recebeu. Para
este último, a perda não se tomou ferida nem cicatriz profunda.
Ficou somente a injúria (inexplicável pela consciência racional),
uma ofensa contra a qual protesta em diversas instâncias, das
judiciárias às civis, às sanitárias ou às políticas. Não conquistou
a dignidade da dor proposta por Giovanni Testori na frase acima
referida.
Entretanto, para poder transmitir a ferida sem se tomar
simplesmente sádico, o pai deve tê-la recebido também. Deve
ter sido iniciado por um pai que lhe tenha transmitido o sentido
profundo da paternidade.
Portanto, o pai é, antes de tudo, em primeira pessoa, um
"portador da ferida". Por isso, pode transmitir ao filho a sensi­
bilidade e o sentimento dela. E também a riqueza: a capacidade
de suportar a dor dessa ferida e de captar o seu significado.
Como narra Elias Canetti com grande perspicácia, nesta lenda
bosquímana (cf.1997, pp. 407SS7):

6) Do mesmo jeito que, numa situação mais banal, os cortes que os jovens estu­
dantes alemães faziam uns nos outros nas primeiras lições de espada ou de cutelo.
7) Essas páginas de Canetti foram amplamente aprofundadas em um trabalho de
seminário, em Milão, na Scuola di Foriuaziotie Lísta (Libera Scuola di Terapia Analítica)
pela doutora Lucia Sansonetti, psicoterapeuta, a quem agradeço por me ter ajudado
a compreender melhor a profundidade disso tudo.
A inaceitável ausencia dopai
14

0 pai e a ferida

Um homem disse a seus filhos que ficassem atentos para ver


se o avô estava chegando. "Olhem ao redor, parece que o vovô
se aproxima. Vejo em seu corpo marcas de velhas feridas". As
crianças ficaram atentas e viram um homem no horizonte. Então,
disseram ao pai: "Vem vindo um homem". O pai disse-lhes: "E o
vovô de vocês que vem para cá. Eu sabia que era ele. Percebi que
ele vinha por causa das marcas das suas velhas feridas. Queria
que vocês mesmo vissem. Ele vem realmente".

Comenta Canetti:

O velho avô daquelas crianças [...] trazia num determinado


ponto do corpo a marca de uma velha ferida que o seu filho
adulto, pai das crianças, conhecia muito bem. Era uma daque­
las feridas que deixam uma marca visível para sempre [...].
Quando o filho pensa no pai, pensa na sua ferida e no ponto
exato onde ela deixou a marca no corpo do pai. Ele a percebe no
ponto correspondente do próprio corpo [...]. Sente o pai que se
aproxima, porque sente a sua ferida. Diz isso para as crianças
[...] exorta-as a ficarem atentas: e realmente um homem está se
aproximando. Só pode ser o vovô.

O filho sabe que o pai está perto porque sente a sua ferida.
É a ferida testemunha de uma perda (um animal que soube
defender-se durante a caçada, uma grande queda, a marca,
por sua vez, de um exercício de iniciação difícil), o elemento
de comunicação entre pai e filho no curso de várias gerações.
É pela própria ferida que o filho "percebe" o pai, como diz
Canetti. O filho que recebeu o ensinamento paterno sente no
próprio organismo psicofísico a relação com o pai como um
agravar-se da ferida, consciência da necessidade humana da
perda. Aquele que, ao contrário, não recebeu esse ensinamento,
porque, por exemplo, o pai não queria saber das feridas (como
tantos homens de hoje), ou melhor, estava profundamente em­
penhado em não querer saber delas, em banalizá-las, não sente
nada. Jamais se reacende nele a consciência de qualquer dor,

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A marca do pai
15

se por acaso tiver sido substituida por uma depressão surda e,


às vezes, oculta. Esse homem que acredita que não tem feridas,
homem de plástico como um boneco, o homem moderno que
jamais contemplou o mistério da Paixão, não pode, por sua
vez, ser pai profundamente.

A ferida paterna e a separação da mãe

A primeira ferida que o pai traz em si, e provoca no filho, é


a separação da simbiose com a mãe. O filho vive na fusão com
a mãe desde a concepção. Antes do nascimento, a simbiose é
completa: ele está no corpo da mãe e vive por meio dos órgãos
dela. Entretanto, a partir de um determinado ponto, a própria
psique da criança8 começa a sentir essa simbiose total como
sufocante e antivital9. Então, começa o processo de saída do
corpo materno, que culmina com o nascimento. No entanto, os
primeiros vagidos confirmam apenas o fim corpóreo, ademais,
parcial (por exemplo, a criança precisa continuar a se alimentar
do corpo da mãe, com o leite materno) da simbiose mãe-filho.
É necessário que essa união vital continue, ainda por um longo
período, no modo mais completo possível: com plenitude até
os três anos, de modo menos completo até os cinco anos, para
ser posteriormente reduzida até os sete anos. Durante todos
esse tempo, os primeiros sete anos, a contribuição da mãe para
a existência e para a própria formação psicológica da criança é
decisiva. Na relação com a mãe, ela aprende a perceber o pró­
prio corpo e a si mesma como um ser diferenciado. É, portanto,
nessa relação afetiva, mas também sensorial e prática, repleta
de momentos de vida comum, que se desenvolvem não só o
corpo da criança, mas também a sua existência como sujeito e
a capacidade de se perceber como tal. Além disso, o amor que
o filho sentirá por si mesmo, a sua capacidade de se cuidar, de

8) Como demonstram as produções criativas ou oníricas que se referem à vida


pré-natal.
9) Com relação a isso, são interessantes os vários materiais coletados por Stanley
Grof e sua escola.

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A inaceitável ausência do pai
16

"se querer bem", dependerá depois do calor e do afeto que a


mãe experimenta pelo filho, expressos através do olhar e dos
carinhos, além de cada gesto materno. E, conseqüentemente,
também a capacidade de amar os outros de fato, que sempre
se apóia nessa experiência primordial de um amor próprio
tranqüilo. São a simbiose mãe-filho e a sua centralidade na
vida do indivíduo que fazem da presença da mãe nos pri­
meiros anos de vida, presença possivelmente feliz, um porto
seguro da existência individual. Pela mesma razão, a ausência
freqüente ou prolongada da mãe na relação com o filho nesses
anos decisivos, hoje muitas vezes imposta pelas regras e pelos
costumes da sociedade ocidental pós-industrial, produz uma
série de danos que a experiência clínica constantemente levanta.
Passa-se da falta de percepção de si como sujeito autônomo
à falta de amor por si mesmo, à desestima ou, até mesmo, à
aversão por si mesmo, a um enfraquecimento generalizado do
instinto vital, ao desprezo pelo próprio corpo e pelo alimento
destinado a mantê-lo vivo, e assim por diante.
O enorme significado da prolongada simbiose com a mãe
na vida do indivíduo é o que, mais tarde, tomará tão impor­
tante o seu fim e tornará decisivos os modos e os tempos em
que esse fim ocorre. Se a separação não acontece de maneira
correta, o indivíduo corre o risco de continuar a vida inteira
uma criança que chora o objeto amado do qual foi separado e,
numa procura narcisista estéril, busca encontrar nele um olhar
de aprovação (cf. Perman, 1979).
É por isso que, em todas as culturas, separar da mãe 0
filho é um evento central não apenas para a vida do filho, mas
para toda a comunidade.

Os ritos de iniciação

No capítulo ui, veremos a iniciação do Menino Jesus feita


por seu pai José, que o apresenta na Sinagoga. E um momen­
to simbolicamente muito relevante no desenvolvimento da
relação pessoal do menino divino com a comunidade e com
a sua religião e, ao mesmo tempo, de emancipação parcial da

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A marca do pai
17

dependência materna, que assume cada vez mais o aspecto de


uma presença afetiva grande e constante, enquanto o desen­
volvimento individual se desloca para o eixo da relação com o
pai, com a sociedade, com Deus e com o próximo...
Contudo, também fora da tradição judaico-cristã, o rom­
pimento, inclusive simbólico, da ligação "fusionai" da criança
com a mãe sempre foi considerado um momento decisivo. Um
episódio que funda contemporaneamente a "nova" personali­
dade adulta do indivíduo que deixa a infância e "re-funda" a
própria sociedade da qual ele é chamado a participar, graças à
força que o novo membro leva ao grupo.
A literatura etnográfica, antropológica e também de etno-
psicanálise é riquíssima em descrições de tais cerimónias,
que aqui não vamos mencionar. Basta citar uma delas como
exemplo.
Trata-se da cerimônia simples, mas simbolicamente precisa,
que a tribo australiana dos Kumai pratica. Nela, as mulheres
sentam-se atrás dos iniciados. Os homens, avançando alinha­
dos, chegam diante da fila das mães e tomam as crianças nos
braços e as elevam ao céu diversas vezes. As crianças assim
alçadas estendem, por sua vez, os braços ao céu, erguendo-os o
mais alto possível (cf. Eliade, 1959). Como afirma Mircea Eliade,
"o significado desse gesto é óbvio: os iniciados são consagrados
ao deus celestial".
Entretanto, é também interessante o significado psicoló­
gico dessa consagração. Tirar as crianças dos braços das mães,
sentadas, e elevá-las ao céu, ao qual os pequenos se espicham
ainda mais, significa apartar os novos indivíduos da dimen­
são horizontal, característica da matéria e da conservação das
coisas, e colocá-los no eixo vertical da busca de si e do Outro,
daquilo que está além e acima das coisas terrenas. Resumindo,
quer dizer colocar a criança no centro daquela cruz na qual o
homem, voltando-se para Deus, encontra também a si mesmo,
não mais como sujeito de necessidades materiais, satisfeitas
pela mãe, mas como sujeito de uma experiência transcendente,
que remete ao pai divino10.

10) Sobre o símbolo da cruz nas diversas culturas, ver Christinger et alli, 1980.

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A inaceitável ausência do pai
18

Ser arrancado dos braços da mãe, como os povos tra­


dicionais representam em seus ritos de iniciação, já é (antes
de qualquer ferida posterior, que normalmente segue aquele
primeiro gesto) uma dor e uma perda decisiva. Sobre essa dor
e essa perda, durante milênios, construíram-se paralelamente
a personalidade adulta de quem as vivia e a sociedade à qual
aqueles "iniciados" passariam a pertencer a partir de então.
Para esses indivíduos que se encaminhavam para a idade
adulta, a capacidade de suportar toda dor e perda futuras se
apoiava naquela primeira ferida, naquela primeira dor, que os
transformava de filhos em homens e futuros pais (cf. também
Scaparro, 1979).
Pela primeira vez na história do mundo, a sociedade
ocidental decidiu abolir as iniciações. Opta-se por crescer
sem feridas, sem perdas. Acima de tudo, teme-se a dimensão
vertical, a direção para Deus, negado (ou "removido"), como
veremos melhor ao tratarmos do "processo de secularização"
realizado no Ocidente, na era moderna. Certamente não se quer
subir em nenhuma cruz.
É também por causa dessa aversão à cruz que nenhum
homem adulto arranca mais o filho dos braços da mãe e 0 eleva
ao céu. Os filhos permanecem na terra, presas das necessidades
materiais pelo resto da vida. Além disso, influenciada pelo es­
tilo de vida ocidental, a mãe não está "aos pés da cruz", como
Maria. Não deve nem mesmo pensar na cruz. Ao contrário,
para ser socialmente aceita, é obrigada a aderir às regras do
consumo, ao sucesso no mundo e ao prazer. No entanto, 0
preço que a sociedade paga por essa opção não é apenas abo­
lir da comunidade a experiência da cruz, com toda a riqueza
transformadora e de desenvolvimento que ela possui. Aliás, é
uma abolição imaginária, porque a cruz não se evita: ela é a
própria vida humana.
"O símbolo da cruz sugere, de fato" — salienta Bemard,
comentando são Paulo11 (Bemard, 1981, p. 329) —, "a ruptura
e a dilaceração dos laços terrenos". Mas é exatamente essa a11

11) "Os que pertencem a Jesus Cristo crucificaram a carne com suas paixões e seus
desejos" (Cl 5,24).

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A marca do pai
19

característica da vida humana, de seu crescimento e de seu


desenvolvimento, marcado por "rupturas e dilacerações".
Do ponto de vista psicológico, o preço pago por se rejeitar
a separação do filho realizada pelo pai, e a sua elevação ao
céu, passa a ser a renúncia a uma sociedade de adultos. Dessa
forma, homens e mulheres, "eternas crianças" (cf. Bly, 2000),
permanecem a vida inteira no plano horizontal da necessidade,
prisioneiros de uma infância contínua, fatalmente marcada
pela depressão e pela neurose que atinge cada infração às leis
da natureza.

O pai que fere e o "complexo de castração"

A própria psicanálise "clássica", freudiana, percebeu o


caráter iniciático e sacrifical que está no cerne da relação pai-
filho, embora a tenha reduzido unilateralmente ao próprio
código interpretativo totalmente centrado na sexualidade’2. De
fato, não é sem razão que também ela evidencia ser peculiar
da relação pai-filho a transmissão do pai para o filho do saber
de uma ferida que é conseqüência de uma perda. Mas, atada
à escolha de explicar todo evento psíquico com motivações
sexuais, ela transforma a ferida transmitida do pai ao filho em
"castração", que o filho sentiria como imposta a ele pelo pai,
afirmando assim o tabu do incesto com a mãe, objeto incons­
ciente do desejo do jovem12 13. De qualquer forma, a seu modo,
a própria psicanálise freudiana, apesar da sua "fixação" na

12) Igualmente interessante para aprofundar o tema da autonomia em relação à


interpretação psicanalítica clássica, cf. Bettelheim, 1973.
13) "A estrutura e os efeitos do complexo de castração são diferentes no menino e
na menina. O menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna em
resposta às suas atividades sexuais. Disso lhe resulta uma intensa angústia de castração.
Na menina, a ausência do pênis é sentida como um prejuízo imediato que ela tenta
negar, compensar ou reparar. O complexo de castração está em estreita relação com
o complexo de Édipo e, mais particularmente, com a função proibitiva e normativa
deste último. O agente da castração é, para o menino, o pai, autoridade à qual ele
atribui, em última instância, todas as ameaças formuladas por outras pessoas". Como
observam Laplanche & Pontalis: "A situação é menos clara para a menina, que talvez
se sinta mais desprovida do pênis pela mãe do que não efetivamente castrada pelo pai"
(1987, pp. 77SS).

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20 A inaceitável ausência do pai

sexualidade como chave de leitura de todos os acontecimentos


humanos, atrela aquilo que chama de "complexo de castração"
às experiências mais comuns de perda.
De fato, ela inclui "a angústia de castração" numa série
de experiências traumatizantes, nas quais sempre intervém um
elemento de perda, de separação de um objeto: perda do seio
no ritmo do aleitamento, desmame, defecação.
Em todo caso, a posição do fundador da psicanálise, Sig-
mund Freud, quanto a essa ampliação de perspectivas é sempre
um tanto desconfiada. Mesmo quando reconhece que o comple­
xo de castração pode ser alimentado por outras experiências de
separação, ele considera que o termo complexo de castração

seja reservado às excitações e aos efeitos que têm como referên­


cia a perda do pênis [...]. O menino só pode superar o Édipo e
passar à identificação paterna se atravessou a crise de castração,
ou seja, se sentiu rejeitar o uso de seu pênis como instrumento
de seu desejo pela mãe.14

Todavia, também nessa constante defesa do caráter estri­


tamente sexual da experiência de perda e de ferida que está na
base da relação pai-filho, a psicanálise capta outra característica
importante dessa experiência. De fato, Freud reconhece que na
"ameaça de castração", que sanciona a proibição do incesto,
aparece a função da Lei, enquanto instituidora da ordem huma­
na. Enfim, a ferida infligida pelo pai, intrinsecamente necessária
à existência do homem, é também fundadora da sua ordem.

14) Stãrcke foi o primeiro a concentrar a atenção na experiência do aleitamento e da


retirada do seio como protótipo da castração: "... uma parte do corpo análoga a um
pênis é tomada por outra pessoa, dada ao menino como sendo sua (situação à qual
estão associadas sensações de prazer), depois é retirada do menino, causando despra­
zer". Essa castração primária, repetida a cada mamada para culminar no momento
do desmame, seria a única experiência real capaz de explicar a universalidade do
complexo de castração: a retirada do mamilo da mãe seria o significado inconsciente
fundamental que está sempre por trás dos pensamentos, dos temores, dos desejos que
constituem o complexo de castração...
Segundo Otto Rank, "a ferida originária, fundamento do complexo de castração é, por
sua vez, a separação experimentada no trauma do nascimento: a angústia de castração
seria, portanto, o eco da angústia do nascimento" (apud Laplanche & Pontalis, op.cit.).

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A marca do pai
21

Portanto, como a psicanálise intui, essa ferida possui uma


dimensão moral mais ampla. A violação do tabu do incesto,
assim como uma permissividade em trezentos e sessenta graus
que não imponha sanções e não inflija feridas, na realidade,
coincide com o caos.
Observamos hoje que a perturbação de toda ordem pro­
move o mal como "condição desmedida (sem medida), em que
o homem precipita a si mesmo e a dinâmica das suas relações"
(Piazza, 2000, p. 7)15.
Por isso, na visão cristã, o pedido do "livramento do mal"
é dirigido ao Pai: "Pai nosso [...] livrai-nos do mal".
Mas, como observa Piazza, o mal nada mais é do que jus­
tamente "o caos, a desordem, a desmedida" (Ibidem). O pai nos
livra do mal dando-nos a ordem, separando-nos do caos.
Entretanto, aquela separação contém em si uma ferida16.
Uma perda dolorosa que, mesmo saindo da mais restrita visão
freudiana, diz respeito, em boa parte, ao rompimento daquela
perfeita unidade mãe-filho, daquele universo simbiôntico em
que a vida de um coincide com a do outro, a qual deve ser várias
vezes rompida no decurso da existência, sob pena da morte de
ambos. A primeira vez coincide com o que Otto Rank chama o
"trauma do nascimento": a criança nasce e precisa respirar com
seus pulmões, buscar o alimento sozinho. Tudo é tremendamente
mais complicado e doloroso. Outra separação, ainda física, mas
não só, é a que acontece no momento do desmame.
A separação decisiva, dessa vez psicológica, deveria dar-
se exatamente a partir da entrada no oitavo ano de vida, pois,
para que o eu do jovem indivíduo se forme, é necessário que
ele saia psicologicamente do envolvimento protetor materno
e entre simbolicamente no mundo do pai.
A saída da circularidade mãe-filho, daquilo que Eric
Neumann ilustrou com a imagem do Uróboro originário, da

15) Sobre o mal como perturbação da medida, cf. Tomás de Aquino, O mal.
j6) “A figura mítica do genitor que fere ou é ferido torna-se o enunciado psicológico
que o genitor é a ferida. Em termos literais isso significa que consideramos os nossos
genitores responsáveis. Mas o mesmo enunciado visto como metáfora pode significar
que aquele que nos fere também pode ser nosso genitor. As nossas feridas são os pais
e as mães dos nossos destinos" (Hillmann, 1988, p. 21).
22 A inaceitável ausencia do pai

serpente que engole a própria cauda e na qual nenhum de­


senvolvimento é possível (cf. Neumann, 1991a; Idem, 1991b),
coincide, naturalmente, com a renuncia à onipotência.

Relação com 0 pai e renúncia à onipotência

A criança que entra na relação com o pai, com o homem


adulto portador da norma, experimenta não ser onipotente,
experimenta estar vinculada a regras, às vezes penosas, que
deve respeitar. Mas essa aceitação dolorosa liberta da ansieda­
de. Todo psicólogo e todo educador conhece bem a ansiedade
característica da criança mimada, a quem se procura poupar 0
máximo possível a experiência do limite, da proibição, da regra.
A criança se torna cada vez mais irrequieta, a ponto de desafiar
incessantemente o mundo dos adultos e da autoridade. Aparen­
temente, age assim por atrevimento e prepotência, mas, num
plano mais profundo, ela na realidade busca desesperadamente
receber um limite, uma repreensão, uma regra. Tem necessidade
de ouvir que lhe digam: "Você não deve fazer isso". E procura
de qualquer jeito satisfazer sua necessidade de uma Lei.
Uma experiência dessa busca instintiva da criança pela
regra foi feita, amiúde com surpresa dos seus dirigentes, em
muitas "creches anti-autoritárias" que, por volta de 1968,
floresceram como parte da busca política e social da época,
sobretudo nas metrópoles. Partindo da hipótese que toda re­
pressão era "castradora", inútil e danosa, procurou-se deixar
as crianças em condições de liberdade absoluta. Os com­
portamentos que se manifestaram entre os pequenos foram
essencialmente dois. No melhor dos casos, percebeu-se uma
espécie de depressão difusa: sem regras, a criança não sabia
o que fazer; mesmo brincar ficava difícil. As crianças pediam
instruções, impulsos, ordens, proibições. Mas onde o princípio
do "anti-autoritarismo" foi aplicado de forma mais radical e, a
seu modo, coerente, verificou-se freqüentemente nas crianças
(em geral acolhidas após completarem um ano e meio) uma
regressão para uma espécie de marasmo psicótico, um desvio
ao nível de total desorganização psicofísica, convencendo os
A marca do pai
23 ¡

operadores mais responsáveis a abandonarem o método ou a


fecharem a creche. Essa experiência teve ao menos o mérito
de uma experimentação radical, que demonstrou claramente
a impraticabilidade pedagógica do método anti-autoritário.
O princípio da autoridade é constitutivo da personalidade e
condição para seu desenvolvimento.
A sociedade que se seguiu a 1968 é a mesma que o havia
precedido, a cuja hipocrisia tal movimento tentava confusamen­
te reagir17. E a sociedade da ausência do pai, que, ademais, é a
sociedade da ausência da norma moral, substituída progres­
sivamente pela multiplicação dos dispositivos jurídicos e dos
regulamentos burocráticos. Nessa sociedade, a proibição que
a criança espera jamais lhe é ministrada clara e francamente,
pois não há nenhum pai que a imponha. A ansiedade da criança
cresce dessa forma até atingir níveis muito perigosos.

A busca de limites e a síndrome do tda/h:


Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade

Também essa ansiedade, que pode ser atribuída a uma


necessidade não-satisfeita de regras, gera o famoso tda/h, a
síndrome descoberta pelos norte-americanos e chamada de
Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (Attention
Déficit Hyperactivity Disorder), tratada em todo o mundo oci­
dental, especialmente nos eua, com o estimulante Ritalina (um
metilfenidato, que é uma daquelas anfetaminas "proibidas" aos
jovens nas danceterias) e com o antidepressivo Prozac, produ­
zidos por duas das mais poderosas multinacionais do setor18.

17) É a tese que defendo em O narcisismo de massa (2002).


18) Esses psicofármacos podem gerar tolerância. Em 1995, um organismo da Or­
ganização Mundial da Saúde (oms), o International Narcotics Control Board (incb)
lastimou que, "nos Estados Unidos, de dez a doze por cento dos adolescentes entre seis
e catorze anos foram diagnosticados como afetados pelo tda e tratados com Ritalina".
Esta tendência prosseguiu também depois de 1995. Em especial, sempre para as crianças
e os adolescentes para os quais a pré-puberdade toma mais premente a imposição de
normas, foram posteriormente triplicadas as prescrições de estimulantes e mais do
que dobradas as de antidepressivos. Nos Estados Unidos comercializam-se cerca de
noventa por cento da Ritalina vendida no mundo pela Novartis (cf. D'Eramo, 2002).

T>i&i+GlÍ2Gdo com CamScanner


A inaceitável ausencia do pai
24

Até alguns anos atrás, o tda parecia afetar, sobretudo, os norte­


americanos, ao passo que na Europa, para essas manifestações
infantis (o conhecido "azougue"), ainda havia professores à
disposição, prontos a lançar mão dos meios disciplinares tra­
dicionais, fontes de "feridas" narcisistas que, cicatrizando-se,
absorviam as energias excessivas e diminuíam a ansiedade,
mediante a contenção normativa. Entretanto, nos últimos anos,
com o slogan do politicamente correto invadindo também a
pedagogia e o descrédito crescente da intervenção disciplinar
(mais exigente para o educador e também para os pais, que,
aliás, deviam confirmá-la em casa), a síndrome Transtorno do
Déficit de Atenção/Hiperatividade difundiu-se amplamente
também na Europa, bem como o uso das respectivas drogas
químicas para enfrentá-la. Uma boa iniciação àquelas que os
jovens vão procurar mais tarde (estando já habituados) nas
diversões noturnas impostas pela sociedade de consumo e do
espetáculo.
Um aspecto trágico dessa tendência é que em muitos desses
casos, logo classificados como tda, a falta de normas provocou
no indivíduo níveis de ansiedade e de baixa auto-estima tão
elevados (além de déficits culturais muito importantes), a ponto
de não permitir a constituição de um sujeito capaz de suportar
a relação psicoterapêutica e nem mesmo os relacionamentos da
vida diária. Não havendo um sujeito, não é mais possível sequer a
relação, e o recurso aos fármacos para conter os comportamentos
mais destrutivos toma-se, então, gradualmente inevitável. Mas
tais desastres, na grande maioria dos casos, são produzidos pela
falta de limites e direções normativas fundamentais na expe­
riência afetiva e educativa da criança.
De fato, a falta da experiência da perda gera ansiedade.
Ao passo que é justamente o conhecimento, a perda cons­
cientemente vivida que — como observa Cario Ossola nos seus
estudos sobre Virgílio—afasta todo o temor e, finalmente, solvit
metus (dissipa o medo). É justamente a consciência da "perda"
para sempre, que na vida humana é representada pela unidade oni­
potente mãe-filho, que libera de qualquer ansiedade de onipotência.
E, atualmente, também de imortalidade. É o angustiante delírio
da morte adiada para sempre, hoje cada vez mais freqüente e

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A marca do pai
25

afinado com o estilo da cultura dominante, com a sua pretensão


paranóica de decidir sobre a vida e sobre a morte.
A criatividade humana sempre representou o fato da perda
inevitável, do seu papel na consolidação da personalidade, no
pai que a dirige. Assim, pode ser interessante dar uma olhada
em algumas das mais significativas dessas narrações, míticas
ou épicas. Elas possuem uma profundidade psicológica e uma
força expressiva, das quais, infelizmente, carece a maior parte
dos textos de psicologia.

Enéias, a perda e o pai

Enéias, o mítico progenitor de Roma, ilustra perfeitamente a


centralidade da experiência da perda na história do homem e a sua
função estrutural da personalidade. Na Eneida, antes de tudo ele
perde a pátria, Tróia, que cai pela astúcia dos gregos. Além disso,
o herói nem sequer sai de Tróia e perde também a esposa: Dido
se mata. Tudo, em Enéias, é perda, compartilhada com o pai. E é
justamente essa presença paterna, primeiro física, depois procu­
rada até nos Infernos, que dá ao herói a capacidade de imaginar
e, depois, de construir o futuro, a descendência, Roma'9.
A imagem: o pai Anquises reza aos deuses para que salvem
o filho e a estirpe:

Ó pátrios deuses, salvai-me a casa, salvai-me o neto: logo sigo


vosso aceno, Tróia está sob a vossa potestade.1'1

Enquanto isso, já se alastram as chamas sobre Tróia, e o


filho Enéias toma Anquises nos ombros:

Rápido, meu pai, eu te ajudo. Sobe às minhas costas, ó caro; não


me importa o peso: em qualquer circunstância, teremos ambos a
mesma salvação e o comum perigo. E o pequeno lulo me siga.

19) Como observou Cario Ossola num prefácio, tanto no Enéias virgiliano como
para o Dante, personagem da Divina Comédia, "tudo é para ser colhido, tudo para
perder, tudo para recomeçar, na vigília e no abandono: Mnemósine e Gelassenheit".
20) "Dipatri,servatedomum,servatenepotem:Destrumhocauguriumvestroqu£ÍnnumineTroia
est" (Virgílio, Eneida, a, 702. As traduções são adaptadas da versão de Odorico Mendes).

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A inaceitável ausência do pai
26

Aqui está representada a imagem arquetípica da relação


pai-filho. De um lado, a ferida inevitável, a partida, o deixar,
para encontrar o mundo novo. Enquanto isso, o pai confia a
Deus a própria estirpe. Anquises, o pai, permanecerá em toda a
narração a testemunha da perda originária e, ao mesmo tempo,
o fiador da realização do novo projeto, aquele que aponta a di­
reção. É assim que no Livro v, após a morte, Anquises, enviado
por Zeus, aparece em sonho a Enéias a fim de convocá-lo para
um encontro nos Campos Elíseos21. "Aqui conhecerás a tua
descendência, a cidade que te foi reservada". O pai, figura de
companhia no destino e de relação com o mundo religioso no
qual está misteriosamente inscrito, é aquele que, ajudando o
filho a aceitar a perda original, o conduz rumo ao futuro22.
No entanto, os ensinamentos paternos estão sempre im­
pregnados do sentido da perda, da renúncia à onipotência.
Como conta o eloqüente mito de ícaro.

ícaro, seu pai e a rainha de Creta

O mito narra que Dédalo, o sábio ferreiro de Atenas,


havia aceitado trabalhar por dinheiro para Pasífae, rainha de
Creta, país de cultura fortemente matriarcal (a deusa Creta,
ou "senhora das serpentes", é uma das mais marcantes ima­
gens da Grande Mãe), a fim de construir um animal de ferro
para satisfazer seus desejos contra a natureza23. Enclausurado

21) "Filho, que em vida mais amei que a vida, filho, a quem o fado de Ilion molesta,
a ti me expede Júpiter, que do Olimpo condoeu-se e salvou a armada do incêndio.
Segue de Nautes o maduro conselho: vais debelar gente áspera indomada; dos teus
conduz ao Lacio a flor guerreira. Antes, porém, baixa a Dite e ao centro escuro; pelo
alto Averno, ó filho, vem falar-me: não moro no ímpio Tártaro, entre as sombras tristes,
e sim, entre os bons, no Elíseo ameno. Muita vítima negra fere, e a mim te guie Casta
Sibila" (Eneida v, 723SS.).
22) E, no encontro nos Campos Elíseos, ele mostrará a Enéias as almas dos descen­
dentes: "As almas ricas de glória, que virão em nosso nome, eu te direi, quero que tu
conheças o teu fado". (Ibidem, vi, 758SS.).
23) Tratava-se de uma vaca de ferro na qual ela pudesse se esconder para copular
com um belíssimo touro branco. Na verdade, o animal deveria ser sacrificado pelo
marido de Pasífae, Minos, ao rei do mar, o deus Posêidon, mas Pasífae, tomada por
avidez, convenceu-o a não fazer isso. Assim, Dédalo, como o próprio Minos, foi vítima

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A marca do pai
27

pelo rei Minos, esposo de Pasífae, na prisão-labirinto, Dédalo


constrói asas com penas de pássaro e cera, para fugir de Creta
com o filho ícaro. E transmite e este o ensinamento paterno,
com o seu conteúdo de renuncia necessário para continuar a
vida. "Meu filho, fique atento! Jamais voe muito alto, porque
o Sol pode derreter a cera, nem muito baixo, porque o mar
pode molhar as penas". Enfim, abandona tuas aspirações de
grandeza, bem como tuas tentações de baixeza, o "excesso"
sempre ligado às fantasias onipotentes da adolescência, e isso
te salvará a vida. ícaro, porém, inebriado pela velocidade que
as grandes asas imprimem ao seu corpo, não se conforma de
não poder dirigir-se exageradamente para o alto, rumo ao Sol.
Em pouco tempo, Dédalo verá de seu filho somente algumas
penas espalhadas flutuando no mar.
ícaro é um dos muitos filhos que recusam o ensinamento do
pai, que busca libertá-lo da prisão da Grande Mãe, o Arquétipo
do inconsciente coletivo (particularmente forte na psique do
adolescente) recusando todos os limites, ilustrado pelo mito da
rainha de Creta, Pasífae. Sai-se da onipotência infantil por meio
do exercício da perícia e da medida, portanto, da renúncia.
No mito de Dédalo e ícaro ainda há outro elemento. A
estrada mestra para fugir da dimensão horizontal da matéria,
que dominou a infância, é o ar, a verticalidade, o céu. Enfim,
a direção transcendente, a relação com Deus24. Também aqui é
necessário comedimento, renúncia aos ares de grandeza nar­
cisista, à fantasia de onipotência, sempre de tocaia, enquanto a
condição psicologicamente adulta não for realmente conquis­
tada. E preciso, portanto, estar bem atento para não se elevar
demais, para evitar que a cera das asas derreta e que se caia.
No entanto, sem também voar muito baixo, para não molhar as

do arquétipo da Grande Mãe devoradora, a Senhora da civilização cretense, e tomou-se


seu escravo. A fuga é uma tentativa de libertar-se a si e ao filho da dimensão horizon­
tal e perversa simbolizada pelo labirinto. No centro deste, é colocado o Minotauro, o
monstro nascido da união da Grande Mãe Pasífae com o touro branco que deveria ter
sido originariamente sacrificado ao deus. O sacrifício do touro, como na Tauromancia,
representa o sacrifício necessário da parte mais primitiva da sexualidade pulsional.
Exatamente aquela à qual Pasífae não sabe renunciar e que acaba por aprisionar
também Dédalo.
24) Sobre esses aspectos, confrontar o atento trabalho de Ferliga (2001).
A inaceitável ausencia do pai
28

penas e se afogar. A posição intermediária, entre o céu e a terra,


à qual a vitalidade do ser humano está ligada, é a do máximo
poder sobre si, pois nela o individuo está em contato seja com as
forças elevadas, espirituais, seja com as forças materiais, da tena.
O pai Dédalo propõe exatamente esta direção: elevada, mas
mediana, de não confusão nem com o plano horizontal, nem
com o plano divino. Tende-se a ele, mas sem poder identificar­
se com ele, senão passando por aquele despojamento integral,
representado pela Cruz cristã, que realiza a transformação.
Mas, ícaro, eterna criança, não pode aceitar o sacrifício da
mediação e morre.
II. O PAI E DEUS

Com a intervenção do pai, a situação de que fala Paul Ri-


coeur — "O olhar é dirigido para o porvir, pela idéia de uma
tarefa a ser perseguida" (1993, p. 49) — se concretiza.
A figura paterna dá à vida do homem uma direção, reali­
zada mediante a renúncia ao caos, à "desmedida", ao mal. Essa
ação liga a relação com o pai indissoluvelmente à experiência
espiritual, à saída de uma dimensão exclusivamente horizontal,
dominada pela matéria. Como escreveu Cordes: "A essência e
a ação de Deus são paternidade"25.
Pela experiência do espírito, o pai reconcilia o indivíduo
com o mundo, indivíduo que, na relação com o genitor, provou
o sentido da perda, reconhecendo nisso a riqueza da experiência
de todo homem.
Giovanni Testori exprime isso bem no diálogo com Gius-
sani, já citado no capítulo 1:

A dor deve levar-nos a nos sentir filhos do pai que é Deus e filhos
do pai terreno, que é o pai carnal de cada um de nós. Então a
dor não é mais isoladora; ela já é uma dor participada. Nesse
ponto é que se nota que a dor se torna libertação; libertação e
esperança. (1989, pp. i8ss.)

No entanto, a relação entre paternidade e experiência


religiosa, da qual decorrem a própria função e a eficácia da

25) Gxruipnjva "Oa<dit%.úiu5itudo bÜK>, que chanui LVusde 'seu Pai'" (Cunlcí, axu).
A inaceitável ausência do pai
30

figura paterna, faz com que o eclipse do pai terreno, a sua perda
de sentido socialmente reconhecido, se junte a um enfraque­
cimento correspondente da figura do Pai divino na experiência
do homem. Realiza-se assim a derrocada do homem numa
matéria aviltada, desanimada, profanada e, ao mesmo tempo,
um empalidecimento da experiência religiosa.
A relação entre pai e relacionamento com Deus é um dado
confirmado também por pesquisas específicas nesse tema. Uma
entre as mais recentes foi publicada pelo vigário anglicano Robbie
Low na revista inglesa New Directions (abril de 2002)26. De
acordo com os dados obtidos nos recenseamentos do governo
suíço da população da Confederação, o fator decisivo para
determinar a transmissão da religião à geração sucessiva é a
prática religiosa do pai de família. Depende dela, de modo
quase total, se os filhos freqüentarão ou não a igreja. Se o pai
não vai à igreja, apenas uma criança em cinqüenta a freqüentará
quando adulto, independentemente de quanto a mãe participe.
Se o pai freqüenta a igreja regularmente, de dois terços a três
quartos dos filhos irão regularmente à igreja, independente­
mente de quanto vá a mãe. As mesmas observações referem-se
a pais que não vão à igreja regularmente.
Os efeitos do enfraquecimento na participação religiosa,
ligado também ao eclipse do pai, são muito conhecidos: sen­
sação de perda de "sentido" da vida, solidão, sentimento de
abandono, temor de "não conseguir" agüentar o peso da existên­
cia. Como observa o psicólogo Cari Gustav Jung, fundador da
psicologia analítica: à abolição da imagem de Deus segue-se ins­
tantaneamente a anulação da personalidade humana (1982).
Mas, como a relação com o pai é passagem obrigatória para
a relação com a Divindade, quais são os traços psicológicos que
fazem da relação com o pai o reflexo da relação com o mundo
transcendente na vida cotidiana?

26) Robbie Low é vigário da St. Peters Church, de Bushy Heath, no Reino Unido.
New Directions (abril de 2002) pode ser pedida à Faith House, 7 Tufton Street swip 3QN
UK. O material do qual foram retiradas as conclusões foi coletado em Haug & Warner,
2000a e Idem, 2000b.

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O pai e Deus
31

O pai como criador

A primeira qualidade que, num nível mais profundo, toda


pessoa sente no pai é a de alguém que lhe deu a vida, que o
gerou.
Na experiência religiosa, essa mesma qualidade é sentida
como própria de Deus.
É o sentimento perfeitamente descrito no Salmo 139:

Pois tu formaste meus rins,


tu me teceste no seio materno.
Eu te celebro por tanto prodígio,
e me maravilho com as tuas maravilhas!

Essa qualidade de genitor, de criador original, provoca um


sentimento de companhia, de proximidade. O homem não está
só, irreconhecível até para si mesmo, porque existe um pai que
o concebeu. O pai "criador" conhece-o profundamente, segue-o
na sua jornada e acompanha-o no seu destino.
É ainda o Salmo 139, tendo reconhecido o Senhor como
criador, que recorda:

Senhor, tu me sondas e conheces:


conheces meu sentar e meu levantar,
de longe penetras o meu pensamento;
examinas meu andar e meu deitar,
meus caminhos todos são familiares a ti...
Conhecias até o fundo de minha alma.

A solidão do homem é assim desfeita: o pai, que o gerou,


0 conhece. Esse conhecimento decorre de um ato criador ori­
ginário que o homem misteriosamente compartilha com todas
as outras criaturas:

Conhecias até o fundo do meu ser,


meus ossos não te foram escondidos
quando eu era formado, em segredo,
tecido na terra mais profunda.

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A inaceitável ausencia do pai
32

A prática clínica constata diariamente que a angústia hu­


mana afunda suas raízes na falta de uma relação primária forte,
de uma “companhia originária". Essa ausência se tomará, mais
tarde, falta de sentido de urna vida da qual não se reconhece a
proveniência e a destinação. Portanto, uma vida à qual não é pos­
sível abandonar-se confiante. Entretanto, a obstruir o caminho da
angústia está a presença tranquilizante (embora, como veremos,
exigente) do pai, criador da vida, e, por isso, conhecedor também
da sua direção (de sua "tarefa", diria Ricoeur), do seu sentido.
Sem uma experiência significativa de pai não seria possível
experimentar aquele sentimento de confiança tranquila na vida,
como manifestação de Deus, presente, por exemplo, na poesia
Meu Pai, de Charles de Foucauld:

Uma exigência de amor


é para mim doar-me,
em tuas mãos, sem restrições, alojar-me
com confiança infinita,
porque meu Pai Tu és.

Contudo, sem essa segurança, o que vem a faltar é a própria


confiança na vida. Então (como veremos melhor no capítulo v),
o seu lugar é preenchido por aquela mania de controle sobre
a existência, preocupada e ansiosa, característica da neurose
obsessiva e senhora do nosso tempo pós-modemo.

O pai e a liberdade

A qualidade de criador, que se reflete no pai natural,


tornando-o representação e figura do Pai divino, garante ao
filho a liberdade, além da confiança em suas origens.
Do ponto de vista psicológico, isso acontece—entre outras
coisas — porque o pai criador livra o homem da inevitabilidade
dos condicionamentos biográficos, das neuroses recolhidas na
história familiar.
A aliança com o pai pode fazer do homem "uma pessoa
diferente" da soma de tipologias e patologias familiares e

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0 pai e Deus
33

ambientais, também elas um aspecto (secularizado e positivista


tardio) do "labirinto”, da falta de liberdade, dos dispositivos
de controle burocrático. Coisas todas que o Pai exclui por inter­
médio do Filho: Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher,
para resgatar os que estavam sujeitos à lei, para que recebessem
a adoção como filhos (cf. Gl 4,4-5).
Ser filho do Pai equivale, portanto, a ser potencialmente
livre. O filho é responsável pelo que fará da sua condição: se
realizará o projeto de liberdade que o pai tem para ele ou se
escolherá os condicionamentos e as patologias oferecidas pelo
plano "horizontal" da matéria, utilizando-as como refúgio
aparente e sujeitando-se a elas como uma prisão segura.
Assim compreende-se a desconfiança das diversas psico­
logias ante a figura paterna. E também porque todas as psicolo­
gias do profundo (e, naturalmente, ainda mais as da superfície)
são direcionadas, umas mais, outras menos, à figura matema
como centro fatal da vida psíquica do indivíduo.

Os aparatos terapêuticos hostis ao pai

Se, de fato, a relação com o pai faz de cada homem um


homem livre, enquanto "consagrado", enquanto indivíduo que
participa da experiência do sagrado e do projeto de liberdade
que Deus tem para todos, então a sua energia será mais forte;
seu olhar, mais elevado; e menor será a sua dependência das
patologias de origem ambiental (a grande maioria das dificul­
dades psicológicas o é) e das terapias destinadas a curá-las. Ao
reforço do indivíduo corresponderá, porém, um menor poder
do aparato terapêutico.
Por exemplo, será bem mais frágil a angústia decorrente
da separação da mãe, que, para a psicanálise clássica, é con­
siderada um luto tão incurável que a sociedade é constituída
pelo homem exatamente para tentar consolar-se disso (Risé,
1997a).
É contra essa possibilidade de liberdade, contra essa pers­
pectiva de esperança, que se desenvolve o processo de tomar
a figura paterna vã e de fazer desvanecer a relação com o pai,

l^igit&lizGclo com C-c^rnSccnner


A inaceitável ausência dopai
34

posto em prática pelo modelo socioeconómico atual, como


veremos com mais atenção nos capítulos a seguir.
No entanto, a ausência do pai transforma cada homem de
ser participante do mundo vivente criado pelo Pai num indiví­
duo solitário e, depois de ser impedido de continuar a relação
simbiótica com a mãe, desorientado. Sem ter nem ao menos
uma verdadeira relação, uma relação de fraternidade, com o
mundo das outras criaturas, porque desprovido de relação com
seu Pai. Portanto, isolado, sem defesa contra as patologias do
mundo da matéria, enfraquecido, prisioneiro dos erros e das
doenças que fatalmente a história biopsicológica de cada famí­
lia e de cada grupo transpira. Esse indivíduo solitário é cada
vez mais propenso a desbotar-se na "massa", que o priva de
qualquer autonomia, assumindo de modo totalitário o lugar
de guia que o pai de amor deixou vago. Como observa C. G.
Jung: "O materialismo materialista, com suas quimeras, forma a
religião daquele movimento racionalista que confía a liberdade
da pessoa às massas e, com isso mesmo, anula-a" (Aion, cit.).

O pai e o futuro

Sem o pai, figura da origem e também do futuro, perde-se a


novidade irrenunciável de cada indivíduo, destinado, cada um
a seu modo, a transformar o mundo. Como veremos, trata-se
da fixação conservadora de Herodes: que nada mude.
Perde-se, assim, a exortação do Pai:

Não fiqueis a lembrar as coisas passadas,


não vos preocupeis com acontecimentos antigos!
Eis que vou fazer uma coisa nova:
Ela já vem despontando: não a percebeis?
(Is 43,18-19)

Não, sem a relação com o pai, fica muito difícil para cada
um dar-se conta do mundo novo que impetuosamente empurra
em direção ao futuro a partir de dentro de si. No fundo, 0 olhar
continua voltado ao passado, ao Éden perdido, à relação sem

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A marca do pai
35

problemas, para sempre satisfatória, que se teria desejado com


a mãe. Continua-se a olhar para trás. Com a anulação do pai
simbólico e a perda daquela ''novidade" da qual ele é criador,
cada indivíduo perde sua particularíssima especificidade na
história humana. De um lado, ele é posto para fora da totali­
dade dotada de sentido, que poderia vivenciar na experiência
religiosa; de outro, ele é fatalmente entregue às variadas formas
de mal-estar do presente que qualquer manual conceituado de
psicopatologia permite identificar com relativa facilidade, para
depois ser finalmente "assumido" por mil terapias e técnicas
de consolo: as "ortopedias da alma".
O fato é que não há caminho, não há Êxodo que arranque
da escravidão do sofrimento e do mal, se não existe um Pai
que conduza essa viagem e a consinta. Não é por acaso que na
visão judaico-cristã, onde tudo procede do Pai, o enfoque no
"caminho" é tão constante. "Eu sou o Caminho", disse Jesus.
Mas, também Nicolau de Cusa, no Idiota, diz: "Assim, a estrada
infinita pode chamar-se o lugar do peregrino, e ela é Deus". Por
isso, do ponto de vista psicológico, o pai traz à vida humana a
experiência dinâmica do mover-se, do andar. E, com ela, uma
liberdade do apego, do reter e reter-se egoístico, freio de qual­
quer busca e vir-a-ser.
Portanto, o pai conduz a viagem, o movimento, a trans­
formação da consciência, da qual é promotor.
Como Deus faz com Israel, quando está perdido no
deserto:

Cercou-o, cuidou dele e guardou-o com carinho, como se fosse a


menina dos seus olhos. Como uma águia que vela por seu ninho
e revoa por cima dos filhotes, ele o tomou, estendendo as suas
asas, e o carregou em cima de suas penas. (Dt 32,101-11)

No inconsciente coletivo, a águia é a figura do pai espiri­


tual que desempenha três ações específicas: eleva o indivíduo
ou 0 grupo da matéria em que se perdeu, vê o destino final com
seu olhar que enxerga longe e transporta-o com a sua força.

Sem o pai-águia, não se sai do deserto.

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36 A inaceitável ausencia do pai

O guardião

O pai é também guardião do filho. Esse é o seu papel na


realidade do dia-a-dia, e é justamente assim que a psique o
percebe, despreocupada com as modificações que acontecem na
superfície, nas superestruturas socioeconómicas ou legislativas.
Também aqui, nada ilustra melhor essa condição psicológica do
que a experiência cristã, na qual a relação Pai-Filho é origem e
instrumento da salvação do mundo.
Como diz João Paulo n na Exortação apostólica Redemptoris
Custos sobre a figura e a missão de são José na vida de Cristo e da
Igreja:

Foi para garantir a proteção paterna a Jesus que Deus escolheu


José como esposo de Maria. [...] Maria é a humilde serva do
Senhor, preparada desde toda a eternidade para a missão de
ser Mãe de Deus; e José é aquele que Deus escolheu para ser o
"coordenador do nascimento do Senhor" (Orígenes, Hom. xm),
aquele que tem o encargo de prover à inserção "ordenada" do
Filho de Deus no mundo, mantendo o respeito pelas disposições
divinas e pelas leis humanas. Toda a chamada vida "privada"
ou "oculta" de Jesus foi confiada à sua guarda (nn. 7-8),

que se revela determinante desde o início.


De fato, é justamente a José, na qualidade de guardião do
menino, que o anjo do Senhor aparece em sonho para avisá-lo:

Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para 0 Egito. Fica


lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar 0 menino
para matar. (Mt 2,13)

Do ponto de vista simbólico e, portanto, também psicoló­


gico, Herodes, aspecto negativo do arquétipo do Sene.x-Velho
Rei, é o representante da velha ordem, que não quer reconhecer
a nova e abrir-lhe espaço, além de estar decidido a destruí-la,
a matá-la. O pai, não apenas José, mas todo pai, é responsável
pela possibilidade da regeneração, pela transformação do mun­
do da qual o filho é portador. De fato, é a José, ao pai terreno,
que o anjo se dirige informando-o do perigo.

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O pai e Deus
37

O papel de guardião do pai José também é ilustrado pela


apresentação de Jesus ao Templo, rito referido por Lucas (2,22ss),
que inclui o resgate do primogênito. "No primogênito [simbo­
licamente resgatado no Templo] estava representado o povo
da Aliança, resgatado da escravidão para passar a pertencer a
Deus" (Redeniptoris Custos, n. 13)27. Aqui o pai, depois de salvar
0 filho da morte, exerce seu papel de guardião, resgatando-o da
escravidão do mal, que o teria privado da liberdade.

0 pai e a formação para o trabalho

A parte central na tarefa de "criar" Jesus foi ensinar-lhe uma


profissão, foi ensiná-lo a trabalhar. E isso continua sendo um dos
aspectos mais importantes das funções paternas. O trabalho,
com que José procurava garantir a manutenção da Família, era
0 de carpinteiro. O Evangelista narra que, após o episódio do
Templo, Jesus "desceu, então, com seus pais para Nazaré, e era
obediente a eles" (Lc 2,51). Explica João Paulo 11:

Esta "submissão", ou seja, a obediência de Jesus na casa de Nazaré


é entendida também como participação no trabalho de José. Aquele
que era designado como o "filho do carpinteiro" tinha aprendido
o ofício de seu "pai" putativo. (Ibidem, n. 22)

Essa experiência de Jesus sacraliza a atividade do trabalho,


como observa a Redemptoris Custos:

Graças ao seu banco de trabalho, junto do qual exercitava o


próprio ofício juntamente com Jesus, José aproximou o trabalho
humano do mistério da Redenção. (Ibidem)

Mas isso se dá quando cada pai transmite sua ocupação ao


filho. É verdade, é uma possibilidade cada vez mais reduzida
no curso da modernidade, com o deslocamento do trabalho

27) "joeé, depositário e cooperador do mistério providencial de Deus, também no exílio


vda por Aquele que vai tomar realidade a Nova Aliança" (Ibidem, n. 14).

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A inaceitável ausência do pai
38

das oficinas de artes e ofícios para as grandes organizações


burocráticas impessoais, como as empresas multinacionais. A
atual situação de crise delas poderia ceder espaços (e, em parte,
já cederam) a novos desenvolvimentos diferentes, com a redes-
coberta de meios de produção de menores dimensões e mais
ligados a estruturas familiares. Por exemplo, o desenvolvimento
industrial de certas regiões do Planeta segue essa tendência;
estruturas de produção menos impessoais e mais participativas
garantem motivações para o trabalho e rendimentos muito mais
elevados do que os das grandes corporações despersonalizadas,
protagonistas da crise econômica do início deste milênio.
Como já mencionado, o filho, enquanto novo ser, é re­
conhecido pelo inconsciente individual e coletivo como o
transformador do mundo, o redemptor. No mundo cristão, essa
potencialidade do filho é realizada por Jesus. Mas também no
inconsciente coletivo de todos os tempos é ativa a figura do
puer, da criança, com esse mesmo papel transformador. Um
dos instrumentos principais com que o pai protege, e cria, e faz
crescer essa potencialidade do filho é exatamente a educação
para o trabalho, na qual é possível transmitir toda uma série de
ensinamentos decisivos para o pleno desenvolvimento huma­
no: a consideração por excelência, pela qualidade do trabalho
realizado; a sinceridade e o empenho na relação com os outros,
que solicitam ou usufruem do seu trabalho; a capacidade de
gerenciar o esforço, não só intelectual, como no estudo, mas
também manual e psicofísico, pela concentração no trabalho
aplicado às coisas; o respeito pelos materiais trabalhados, no
caso aqui, a madeira, parte preciosa da criação. E, ainda, muitos
outros: a comunhão de vida e trabalho entre José e Jesus é a
representação profunda de um aspecto essencial, e hoje bastante
disperso, da relação pai-filho.

Educador e "corretor"

Também a função de "corretor" que o pai desempenha,


na qualidade de alguém que contém os impulsos e as pulsões
indiscriminadas e os organiza, dirigindo-os para um objetivo

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0 pai e Deus
39

de crescimento humano, remete à percepção que o homem


sempre teve da relação com Deus.
Como diz o Deuteronômio:

Reconhece, pois em teu coração que, como um homem corrige o


seu filho, assim o Senhor teu Deus te corrige, para que guardes
os mandamentos do Senhor teu Deus, andes em seus caminhos
e o temas. Pois o Senhor teu Deus vai introduzir-te numa terra
boa. (Dt 8,5-6)

Israel, o país fértil, é também para nós, cada um de nós, a


nossa verdadeira personalidade, o nosso eu, ao qual chegamos
com a orientação de um pai atento e amoroso. Como observa
Giovanni Ventimiglia, a quem agradeço aqui pelo seu primoroso
trabalho sobre o tema:

Multiplicam-se em nossos dias os livros sobre 0 lado materno de


Deus28 e as experiências eclesiais de forte conotação matriarcal, em
que a comunidade é constituída por filhos-servos de uma mesma
Mãe. No entanto, na Bíblia, o aspecto paterno de Deus significa, em
grande parte, amor no modo do rigor, do julgamento e da correção:
"Meu filho, não rejeites a disciplina do Senhor nem a desprezes
quando ele te corrige, pois o Senhor corrige os que ele ama, como
um pai ao filho preferido" (Pr 3,11-12). (Ventimiglia, 2002)

No texto bíblico e na experiência psicológica, o resultado


desse tipo de amor é a fertilidade de Israel, o eu ao qual se chega
aceitando a orientação e a correção.

De fato, somente o filho, cujo pai cortou o cordão umbilical que


ainda o mantinha ligado à mãe, pode se tornar um homem,
fértil, capaz de gerar outra vida e, por sua vez, tomar-se pai.
(Ibidein)

A correção paterna transforma o modo de ser dominante


na criança logo após o nascimento e nos primeiros anos de vida,

28) Por exemplo, Orsatti, 1998. Cf. também Hauke, 1993.

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40 A inaceitável ausência do pai

que é ainda o modo da "fusionalidade", da não-distinção. A


criança é fundida com o mundo das suas necessidades, que são
também os seus afetos: desde a mãe até as pulsões elementares,
até os desejos dominados pela dimensão do imediatismo: eu
quero isso e preciso obtê-lo. É o papel de correção, persona­
lizado a duras penas pelo pai, que afasta o filho da confusão
com o mundo da matéria, o mundo das coisas. Esse papel é
desempenhado pelo exercício de um julgamento amoroso,
mas claro e não-ambíguo, "que corta a relação simbiótica com
a mãe e nos faz sentir filhos de um pai" (Ibidem). Esse fato de
nos sentirmos filhos de um pai, cujo papel vital já experimen­
tamos, é, por outro lado, indispensável para interiorizarmos
sua figura, ou seja, para construirmos uma imagem simbólica
de pai positivo dentro de nós, à qual recorreremos muitas ve­
zes nos momentos mais difíceis da vida, para dela recebermos
orientação e força e para sermos, nós mesmos, pais.
Do ponto de vista clínico, é evidente a relação entre a função
psicológica "corretiva" do pai e o desenvolvimento da vontade
do filho. Mas o é igualmente do ponto de vista do conhecimento
religioso, tanto que o místico alemão Jakob Boeme, no início
do século xvii, dava a seguinte definição: "O Pai é o fogo da
vontade" (1980, p. 59).
No Novo Testamento, esse papel corretivo do amor pa­
terno é cuidadosamente reforçado. Como lembra a Carta aos
Hebreus:

E já esquecestes as palavras de encorajamento que vos foram


dirigidas como a filhos: "Meu filho, não desprezes a correção
do Senhor, não te desanimes quando ele te repreende; pois 0
Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como
filho." [...] É como filhos que Deus vos trata. Pois, qual é 0 filho
a quem o pai não corrige? (Hb 12,5-y)29

29) Continuação: "Ademais, tivemos os nossos pais humanos como educadores,


aos quais respeitávamos. Será que não devemos submeter-nos muito mais ao Pai dos
espíritos, para termos a vida? Nossos pais nos corrigiam como melhor lhes pareaa,
por um tempo passageiro;. Deus, porém, nos corrige em vista do nosso bem, a fim de
partilharmos a sua própria santidade".

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0 pai e Deus
41

Naturalmente a "correção", enquanto intervenção que


modifica a orientação automática da psique, representa um
esforço para quem a recebe (mas também para quem a concede),
e a mesma Carta aos Hebreus não esconde isso:

Na realidade, na hora em que é feita, nenhuma correção parece


alegrar, mas causa dor. Depois, porém, produz um fruto de paz
e de justiça para aqueles que nela foram exercitados. Portanto,
firmai as mãos enfraquecidas e os joelhos vacilantes; tomai retas
as trilhas para os vossos pés, para que não se destronque o que
é manco, mas antes seja curado. (Hb 12,11-13)30

Na Sagrada Escritura, extraordinária narração das vicissi­


tudes psicológicas (além de espirituais) do homem, também
no Apocalipse o amor de Deus assume um rosto paterno, com­
prometido com a correção dos filhos:

Ao Anjo da igreja que está em Laodicéia, escreve: Assim fala o


Amém, a testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de
Deus: Conheço a tua conduta. Não és frio, nem quente. Oxalá fos­
ses frio ou quente! Mas, porque és morno, nem frio nem quente,
estou para vomitar-te de minha boca [...). Eu repreendo e educo
os que amo. Esforça-te, pois, e converte-te. (Ap 3,14.19)

Portanto, o amor paterno é também reprovação e correção,


no amor. Por isso, foi depreciado no tempo da modernidade, no
qual a reprovação e a correção — como recorda grande parte
da obra de Michel Foucault — tomaram-se prerrogativas dos
Estados. Sem terem por fim o amor, mas o aumento do poder
dos aparatos burocráticos que os exercem.
Hoje, no fim da modernidade, na época em que muitos
chamam de modernidade tardia ou pós-modemidade, o ser
humano, meticulosamente administrado pelos poderes bu­
rocráticos, mas não mais amado, corrigido quando já é tarde
demais e cuja vida não é mais uma terra fértil, à qual nenhum
pai o conduziu, clama pelo Pai. No Céu e na terra.

30) Cf. também 7 Cor 11,32 e iPtl 4,17.

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III. 0 OCIDENTE
SE DISTANCIA DO PAI

Quando os revolucionários franceses, depois de terem


decapitado as estátuas dos reis de Judá e de Israel na catedral
de Notre-Dame e violado as tumbas da abadia de Saint-Dénis
para arrancar o ouro dos dentes e dos anéis dos reis e dos bispos,
cortaram a cabeça e queimaram a estátua milagrosa de Nossa
Senhora de sob a Terra, na catedral de Chartres (um dos maiores
símbolos da espiritualidade cristã), já estava adiantado o que se
denominou processo de secularização, ou seja, a exclusão da ex­
periência religiosa e do sagrado da vida diária na Europa. Todos
os sinos da abadia de Mont-Saint-Michel haviam sido derretidos,
e o bronze, entregue ao exército revolucionário para que fizesse
armas contra os países que ainda se declaravam católicos.

0 "processo de secularização"

O "sagrado", a experiência religiosa cristã e seus símbolos,


que haviam marcado a civilização européia, já estavam "fora de
combate"— ao menos assim acreditavam jacobinos, socialistas e
liberais. A vida do homem finalmente se desenrolaria no âmbito
"secular", mundano, das coisas e da matéria, sem ser obstruída
por crenças transcendentes. A essa altura, o mundo pertencia
"àqueles que preferem o artificial ao natural em quase todas
as coisas, e julgam que a mente humana é onipotente", como
um pensador da época descreve o filósofo utilitarista britânico

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A inaceitável ausência dopai
44

Jeremy Bentham, que, de fato, queria transformar a ética em


"aritmética moral" (Hazlitt, 1825).
Ainda que as estátuas despedaçadas e substituídas por
imagens da Deusa Razão fossem mais freqüentemente dedi­
cadas à Virgem do que ao Pai Eterno, a Jesus ou aos santos, a
secularização (da qual a destruição de estátuas não passou de
uma etapa, embora vistosa) tem um papel central no enfraqueci­
mento que minou a figura paterna, e não por acaso, justamente
no Ocidente, onde o processo de secularização se realizou.
Entretanto, para ambos os fenômenos — o declínio do pai e
a separação de Deus (secularização) —, o abatimento revolucio­
nário das imagens sagradas dos reis de Judá e Israel apenas deu
seqüência a um processo iniciado muito tempo antes, embora
acelerando-o perigosamente.

Lutero, a Reforma e 0 eclipsar-se do pai

A Reforma Protestante desempenhou, de fato, um papel


determinante em promover a ambos. Lutero, ao cindir a unidade
da experiência humana em Reino de Cristo e Reino do mundo
e, depois, deslocar para esse segundo campo a experiência do
matrimônio — instituição que ele julgava pertencer à ordem
terrena31 —, acabou "secularizando" o matrimônio e a família32.
Como nota o antropólogo Dieter Lenzen, "pode-se afirmar
que a doutrina de Lutero sobre o matrimônio abriu as portas
para a posterior estatização da paternidade" (Lenzen, 1991,
pp. 205SS.). E, assim, retirou da figura paterna aquele reflexo
de figura do Pai Divino que lhe conferia enormes responsabi­
lidades, mas da qual decorria o seu significado específico na

31) Para Lutero, o matrimônio "sai do âmbito jurídico do reino espiritual e entra
no reino do mundo, tomando-se parte integrante da sua ordenação jurídica" (Heckel,
1953)-
32) De qualquer modo, é interessante que esse evento, tão determinante para a
história do mundo, tenha sido realizado por meio de uma transgressão à lei do papa-
pai espiritual, com a ruptura do compromisso assumido, o celibato, para satisfazer
pulsões pessoais. Para além das motivações teológicas, o quadro psicológico já é aquele
característico da "revolta contra o pai".

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0 Ocidente se distancia do pai
45

ordern simbólica, devastado exatamente pela secularização11.


Apolítica, em todas as suas circunstâncias, não diz respeito em
nada à Igreja3334, insiste Lutero em suas Conversas à mesa. Mas,
como observa Lenzen, a conseqüência dessa afirmação é que,
a partir de então, o divórcio passou a não mais dizer respeito
à Igreja, e sim ao Estado. De fato, afirma o Reformador:

... as questões relativas ao matrimônio e ao divórcio serão con­


fiadas aos juristas e colocadas numa ordem mundana. Visto que
o matrimônio é uma coisa mundana, exterior, assim como são
mundanos a mulher, os filhos, a casa, a corte e as outras coisas,
ele pertence à ordem das autoridades seculares, é submetido à
razão. (Luther, 1883, pp. 376SS.)

Conforme observa oportunamente Lenzen:

As conseqüências da doutrina matrimonial de Lutero no plano


jurídico, variadamente diferenciadas em nível regional, em alguns
casos só foram identificadas depois de duzentos e cinqüenta anos
ou mais. (op. cit., p. 209)

Contudo, é com Lutero e, mais em geral, com a Reforma


que, dois séculos antes das crises de raiva das Revoluções bur­
guesas contra o sagrado (descritas no início do capítulo), começa
a secularização da família. É ainda com Lutero (que conferiu à
sua mulher o título de "doutora Käte") que começa o processo
de transferência das responsabilidades da educação do pai (que
pouco depois se tomaria uma figura de relevo essencialmente
econômico) para a mulher màe e para a educadora35.
A respeito desse tema, a reconstrução do antropólogo Dieter
Lenzen é muito precisa:

33) Também esse é profundamente alterado pela secularização em que a Reforma


põe a mão.
34) "Res política, cum ómnibus suis circumstantiis, nihil pertinet ad acclesiam" (Lutero,
Conversas à mesa, 4,4068).
35) Enquanto que, por volta dessa mesma época, Erasmo de Roterdam, por um pe­
ríodo próximo das posições de Lutero, escrevia: "É contra a natureza que uma mulher
tenha autoridade sobre os seres humanos" (Declamatio de pueris. Opera, 1,504c).

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A inaceitável ausência Jo pai
46

A doutrina pedagógica de Lu tero contém muito mais do que


uma simples transferência das competências paternas para a
mãe [...]. Dado que essa doutrina não permaneceu mera teima,
mas escapou muito cedo das casas dos pastores e se tomou o
modelo normal de educação, o início da Reforma assinala, assim,
irrevogável mente o fim de uma época naquilo que diz respeito ã
concepção da paternidade, seja no plano prático, seja no teórico.
Poucas gerações depois, ninguém sabia mais qual o significado
da paternidade, pelo menos na tradição protestante.

Quatro séculos depois, em meados do século xx, sob o


impulso das sociedades protestantes, a quase totalidade dos
papéis educacionais e decisorios em questões matrimoniais e
familiares seria confiada às mulheres, e a figura do pai já estaria
fisicamente ausente do lar num enorme número de casos. Então
fica visível que, à perda da noção de paternidade no Ocidente,
seguiu-se a perda da transmissão da identidade masculina e,
portanto, da mesma masculinidade nas esferas psicológica e
simbólica'6.

De testemunha de Deus na família


a fornecedor de alimentos

Portanto, já com a Reforma, o pai deixa de ser aquela teste­


munha humana da norma do Pai criador, de Deus, apresentada
no capítulo anterior, que José ilustra de modo tão profundo.
E justamente do dever de realizar aquela norma na família e
na sociedade é que decorria para o pai a autoridade paterna
específica. Seu próprio ser "o portador da ferida" na vida dos
filhos sob a forma, por exemplo, de regras, de orientações, de
limites, tem sentido enquanto a ferida é uma passagem num
caminho de crescimento, num processo transformador dotado
de objetivos. A expulsão do Éden, o Êxodo, a própria Paixão,
são todas feridas e separações que o Pai promove, conduz ou,
de qualquer forma, não evita; são etapas no crescimento da36

36) Sobre o assunto, ver Risé, 1991 e Idem, 2000.

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criatura, do filho, rumo à plena participação, como sujeito, da
vida do Pai.
Por sua vez, como disse Gilbert Durand, o processo de
secularização

rompe a imagem tradicional do homem — em quem realidade


humana e mundo religioso estavam unidos — para depois se
dirigir ao mundo das coisas [...] e restringir-se e reduzir-se ao
universo dos fenômenos. ’7

A historiadora das religiões Mircea Eliade afirma:

Todas as experiências vitais, da sexualidade à alimentação, do


trabalho ao lazer, foram dessacralizadas. Em outras palavras,
cada um desses atos fisiológicos foi despido de qualquer sig­
nificado espiritual e, portanto, da dimensão verdadeiramente
humana. (1973)

As vicissitudes humanas e as relações familiares, já com a


Reforma, foram circunscritas àquele "Reino do mundo", como
0 chama Lu tero, onde a Igreja não tem nada para dizer. A "fe­
rida" de que o pai "secularizado", prisioneiro daquele mesmo
Reino do mundo, é portador e promotor junto aos filhos, muda
seu sentido. De experiência de transformação, fundadora da
futura personalidade adulta, ela regride à manifestação sádica
de uma autoridade persecutoria.
Dali em diante, e com a brusca aceleração posterior às
Revoluções burguesas e à revolução industrial, o pai da moder­
nidade ocidental não é mais o guardião familiar por conta da
ordem natural e simbólica divina, nem é sequer o representante
social da lei do Pai.37

37) Naturalmente, a secularização imposta politicamente pelas revoluções burgue­


sas já estava preparada, como nota, entre outros, Gilbert Durand, pela "corrente de
pensamento objetivante, fruto dos movimentos de reforma que, de Galileu a Descartes,
oficializa o dualismo e a separação entre sagrado e profano, res cogitans e res extensa".
"Os seus êxitos até o momento" — salienta Durand — "foram os imperialismos, as
guerras dos Estados-Nações surgidos daquelas revoluções, depois as guerras mundiais.
Manifestações todas caracterizadas pelo desprezo pelo homem, pela intolerância e
pelas perseguições" (Durand, 1996).

Dicntalizadt
com CGmScGnner
A inaceitável ausencia do pai
48

Como observou o arcebispo de Milão, Dionigi Tettamanzi,


nos tempos modernos a cultura dominante

visa a subtrair da familia seu valor fundamental, aliás, fundador:


o valor religioso da relação com Deus. Difamada pelo secu-
larismo e pelo laicismo, a familia interpreta a si mesma como
uma realidade exclusivamente humana e totalmente autónoma:
a família, no seu próprio ser e viver, prescinde de Deus. (2000)

Mas o que o pai pode ser numa família assim? Era ine­
vitável que, àquela altura, ele se tomasse simplesmente um
administrador, um gerador de renda, um provedor para 0 nú­
cleo daquela família "restrita" ou "pequena" que, aos poucos,
tomou o lugar da família "grande" (compreendendo também
todos aqueles que poderiam ter necessidade da família e de
seus bens), da qual o pai se encarregava antes dessa redução
(cf. Trumbach, 1982). O fim da família "patriarcal" e a seculari-
zação do pai coincidem, de fato, com a afirmação do modelo
de "intimidade doméstica" que leva à família nuclear atual.
Desde então, por exemplo, os criados dos ricos não deveriam
mais distribuir comida aos pobres da cidade: "A família estava
fechada em si mesma, e a caridade do patrão se tomara uma
ação individual, em vez de patriarcal" (Ibidemy*. É no interior
desse processo da família de fechar-se em si mesma e do incre­
mento em seu interior dos diversos egoísmos que o feminismo,
o divórcio estabelecido pela lei do parlamento e o processo por
adultério tomam forma ao mesmo tempo, mais precisamente
na Inglaterra de 1690.
Aliviados das elevadas responsabilidades da paternidade
não-secularizada, os homens são os primeiros a quererem apro­
veitar a possibilidade de se divorciarem, pelas mesmas razões
que as mulheres hoje pedem o divórcio, como veremos. Um
homem deveria ser livre para se divorciar de uma mulher

38) O enfraqueci mento do papel social do pai também estava em pé de igualdade


com a intervenção do Estado: "Os pobres errantes eram ajudados pelas leis para os
pobres" (Ibideni). O Estado assistencial protestante tomou o lugar do pai que tinha
acabado de liquidar.

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0 Ocidente se distancia do pai
49

que não o satisfizesse scxualmente ou que, sobretudo por causa


de uma mentalidade limitada ou de uma natureza litigiosa, não
contribuísse para a paz e o conforto da mente do marido. Em
resumo, o divórcio deveria ser concedido toda vez que fosse
impossível satisfazer os fins do matrimônio por amor. (íbidem)

A partir da Reforma, e durante toda a modernidade, assi­


nalada pela época das duas revoluções de que fala Hobsbawm
(1999) — a francesa e a industrial39—, o pai torna-se cada vez
mais urna figura dominada por motivações egoístas e hedonis­
tas. As suas finalidades são essencialmente prático-económicas
ou, no melhor dos casos, de gratificação sexual-sentimental. É,
pois, um personagem que "secularmente" foi auto-reduzido
ao mundo das coisas: do dinheiro, do sexo e de uma afetivi­
dade "contratada", medida pelos objetos ou pelo dinheiro, e
não por outros critérios. É famosa e eloqüente a admoestação
de Benjamín Franklin, citada também em A ética protestante e
0 espírito do capitalismo, de Max Weber (1995): "Quem suprime
uma soma de cinco xelins mata(!) tudo aquilo que se poderia
construir com ela: enormes pilhas de libras esterlinas"40.0 frágil
caráter sagrado residual tende a transferir-se ao dinheiro, às
"pilhas de libras esterlinas".
Portanto, não é de estranhar que hoje, no final desse pro­
cesso, o marido-pai se mostre um tanto em mau estado. Ele se
auto-enclausurou na sua família nuclear, "íntima", freqüente-
mente um casal que não quer colocar em risco o próprio bem-
estar tranqüilo abrindo a própria vida aos filhos. Liquidou, por
hedonismo e miopia, as próprias responsabilidades familiares
e sociais e o prestígio que correspondiam a ela, e agora precisa
angariar o afeto da companheira com sua valentia sexual ou
financeira. Ou, então, atrair para si o amor da prole com a con­
descendência e a doçura que cada criança requer (mesmo quan­
do sua necessidade primária é habituar-se à disciplina). Dessa
necessidade de afirmação, em vez do simples cumprimento

39) Sobre o papel que a teoria da sociedade industrial desempenha em ambas, cf.
também Risé, s.d.
40) Sobre as conseqüências desse modo de pensar sobre a vida e a família de hoje,
ver Bly, 1990b, pp. 189SS.

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do próprio dever, nasce também a obsessão masculina pela
performance, de que tanto falam os meios de comunicação,
certamente exagerando-a de forma grotesca. Todavia, é neces­
sário lembrar que, como veremos, quando hoje a performance
diminui, toda a condição de vida do marido-pai sofre realmente
uma brusca deterioração, de onde provém também a ânsia de
valorização do pai na modernidade.
Pelo rompimento com aquele outro Pai, consumada du­
rante o processo de secularização, o papel específico do pai,
com efeito, se esgota. E quando, em fase de industrialização
já madura, alguns séculos após as sagradas decapitações que
aconteceram em Paris ou em Chartres, o pai descobriu que
não estava em condições de gerar renda suficiente, de ofere­
cer férias prestigiosas e os favores sexuais dos manuais, ele se
viu bruscamente jogado para fora de casa, como veremos no
capítulo iv.
Porém, não corramos demais.
A decadência do pai no Ocidente, fortemente apoiada
no processo de secularização-descristianização verificado no
decorrer das duas revoluções — a política, contra as monar­
quias católicas, e a industrial, que realiza a visão do mundo
da primeira — passa, no entanto, por outras articulações que
vale a pena recordar.
A primeira toma forma no auge da Revolução Industrial
e é bem descrita na cena seguinte, que aparece em diversos
textos do escritor inglês David H. Lawrence.

A pedagogia protestante
e o desprezo pela simplicidade paterna

A cena é esta: o pai volta para casa à noite, após um dia de


trabalho nas minas galesas. Despe-se e se lava numa grande
tina de água quente, na cozinha. O filho está cheio de admi­
ração pela figura do homem que traz alegremente os sinais
do cansaço em seu corpo robusto. A mãe adverte o pai: "Você
não haverá de ser assim. Deve ser um homem rico, limpo, um
burguês, um intelectual".

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0 Ocidente se distancia do pai
51

Assim tomavam forma no Ocidente, ao lado do processo de


industrialização, a separação entre o filho e o pai e a desvalori­
zação da figura paterna por uma "pedagogia do sucesso" — a
mãe de Lawrence era professora —, toda focalizada nas posses
materiais e na promoção social, unidas às "boas maneiras" e
também ao saber intelectual, necessários para obtê-las. A força,
a habilidade manual, a coragem física, os dotes generosos do
mineiro ou do artesão, começavam a não ser mais apreciados.
A aritmética moral de Bentham os havia condenado por serem
menos rendosos do que outros trabalhos, que sujavam menos,
mas, em compensação, faziam com que se ganhasse mais.
Do ponto de vista religioso, é durante esse processo que
se abandonou o "amor a si" da moral cristã, que atribuía um
sentido preciso tanto ao gesto do dom (para ajudar os outros),
quanto à humildade, quando nos contentamos com aquilo que é
necessário para viver, agradecendo a Deus, que nos consente isso.
Do ponto de vista sociológico, essa evolução trouxe o abandono
daquele comportamento (que Max Weber chama de "tradicio­
nalista") que preza "o que é justo" e o estilo de vida simples que o
acompanha (cf. Weber, 1995, pp. 70SS.). Essas orientações morais
e comportamentais foram deixadas de lado para darem espaço
ao egoísmo, voltado, sobretudo, à conservação de si, ao ganho
teorizado pelos utilitaristas e, mais em geral, pelo pensamento
econômico e moral do capitalismo (cf. Latouche, 2001).
Tal passagem deslocava fatalmente o centro da família do
pai, testemunha do Pai e, portanto, do doar-se conforme um
princípio de amor não-egoísta, do doar-se, sem segurança nem
garantias, à mãe, representante indispensável do princípio de
conservação em cada um de nós4*.
O distanciamento entre filho e pai, figura do amor a si
(enquanto destinatário dos dons transcendentes) e da doação
de si, já substituída por uma pedagogia utilitarista e voltada
ao sucesso econômico, vai se cumprir mais tarde, de modo
definitivo, durante e após a Segunda Guerra Mundial.

41) Enquanto agia fortemente em ambos o impulso da cultura dominante para


dissociar-se das bases "fortes" das respectivas identidades (o dom transpessoal para
0 pai e a sabedoria conservadora para a mãe), a fim de perseguir modelos abstratos
de "realização individual", de natureza exterior, materialista.

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52 A inaceitável ausência do pai

Desaparecimento da iniciação

O fim do papel do pai na organização e canalização das


energias do filho e na iniciação dele na sociedade, já decretado
há pelo menos meio século, marca uma ruptura antropológica
entre o homem e a cultura machista anterior.
Desde então, pela primeira vez na história masculina, o
homem não é mais iniciado no convívio social e introduzido na
sociedade dos adultos pelo pai ou por figuras masculinas que
o acompanham ou substituem, mas pela mãe e por uma série
de figuras femininas de ajuda e de direção. Não existem mais
traços da "ferida" paterna que era infligida, entre outras coisas,
justamente pela separação da mãe do filho (falamos disso no
capítulo i). Cada rito que poderia lembrá-la foi cuidadosamente
abolido na sociedade ocidental. Desaparecido o pai iniciador,
as mulheres hoje prevalecem em todo o sistema educacional
ocidental, nas profissões de ajuda, na educação, na assistência
psicológica e assim por diante.
Por exemplo, na escola de todos os países da ocde (Orga­
nização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico),
os professores do ensino fundamental e do ensino médio são
na maioria mulheres, com uma média de 94%. No ciclo da es­
cola secundária, a média das professoras mulheres é de 62,7%.
Na escola superior, o percentual feminino médio é de 48,9%.
Numa projeção futura, o que é mais interessante é o percentual
feminino por grupos de idade42. Na escola superior, as profes­
soras mulheres são quase 60% entre trinta e sessenta anos. A
tendência à feminilização do corpo docente é irreversível em
todos os países examinados.
No campo masculino, o desaparecimento do pai e de figuras
masculinas das posições de formação e iniciação social produziu
uma interrupção na transmissão da cultura material e instrutiva
do homem, que a mãe não possui por pertencer a outro gênero

42) Na escola fundamental, a média ocde referente aos grupos de idade abaixo dos
trinta anos e abaixo dos quarente apresenta, respectivamente, 85% e 804%. Na escola
média, diante dos dados médios da ocde (abaixo de trinta, quarenta e dnqüenta anos),
71,8%, 66,1% e 62%.

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0Ocidente se distancia do pai
53

e, portanto, não pode comunicar, nem que queira. Os aspectos


instintivos, materiais e espirituais da cultura não podem ser
aprendidos nos livros: são transmitidos pela vivência, freqüen-
temente compartilhada silenciosamente, individualmente e no
grupo.
A "irresponsabilidade" ou "o pouco interesse", que muitas
vezes criticamos hoje do homem ao desempenhar as suas funções
paternas restantes, possuem, do ponto de vista antropológico,
exatamente essa origem. Por sua vez, o pai "irresponsável", ou
narcisista, é, do ponto de vista psicológico, na grande maioria dos
casos, um "órfão de pai". Nenhum pai, com sua presença e atenção
silenciosas, ensinou-o a se tomar homem e pai depois dos primei­
ros sete anos. Não o ensinou, não porque estivesse bebendo no bar
com os amigos, mas porque da manhã à noite estava no escritório,
onde passou, em média, vinte por cento mais tempo do que seu
pai teria passado nos anos 1930. Não tinha mais disponibilidade
para os filhos. Podia dar -lhes dinheiro, mas certamente não um
saber instintivo, uma cultura de gênero.
A necessidade da transmissão do saber instintivo (incluin­
do seus aspectos de responsabilidade, dedicação, proteção) no
entanto, é muito conhecida da antropologia, das sociobiologias,
bem como da história das religiões. Todas essas disciplinas sa­
bem que a bagagem humana instintiva é, em princípio, frágil. O
homem (não somente o macho, naturalmente) não "é", mas "se
toma"43. Por isso, a transmissão "de gênero" é tão importante. O
ser humano, diferentemente dos animais, nasce sem saber "por
instinto" como amar, como exprimir a própria sexualidade, como
se defender e como organizar os próprios afetos e as próprias
relações. O psicanalista e antropólogo Alexander Mitscherlich
(1993) lembra que o homem "não possui um modelo de compor­
tamento hereditário nem para cortejar, nem para unir-se com o
sexo oposto, e a sua capacidade de reconhecer os inimigos não é
inata". Quem sempre ensinou o homem-macho a tomar-se assim
foram o pai e uma série de figuras que o ajudavam: o mestre
de artes e ofícios, o professor, o instrutor militar, o treinador

43) Repleto de dados interessantes, mesmo se nao compartilho o enfoque evolucio­


nista "a la antiga", ver Rancourt-Laferriere, 1992.

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A inaceitável ausencia do paí
54

(sobrevivente, embora na versão banalizada, no personal trainer,


mas que não é suficiente). Sem essa iniciação, o homem não se
sente como tal num plano profundo.
Por outro lado, esse desaparecimento dos pais tem conse-
qüências fortemente negativas inclusive no desenvolvimento
das moças. Falta-lhes aquele olhar incisivo e amoroso do ser
paterno, do adulto que, da sua posição de diversidade, tem
apreço por elas e lhes dá uma base indispensável para a sua
auto-estima (como veremos).

Iniciação e educação da agressividade

Do ponto de vista social, um dos danos mais evidentes


causados pelo abandono das práticas de iniciação, no campo
masculino, é a perda progressiva nos rapazes da capacidade
de controlar e utilizar positivamente a própria agressividade.
De fato, justamente a aprendizagem desse controle era um dos
aspectos centrais dessas práticas. Os resultados desse afasta­
mento são patentes.

Alguns anos atrás, o governo do Quênia ordenou a extinção de


todas as práticas de iniciação masculina nas aldeias, insistindo
em que, no lugar delas, todos os jovens deveriam ir para a escola.
Dois anos depois, num episódio sem precedentes que comoveu
o país, um grupo de rapazes invadiu um dormitório e estuprou
todas as jovens que se estavam ali.

É provavelmente ao o próprio desaparecimento dos ritos de


passagem e de aprendizagem do controle da agressividade que se
atrela o fato de, no Ocidente, serem homens com menos de vinte
e quatro anos de idade que cometem a maior parte dos delitos44.
Como qualquer trabalho com o inconsciente demonstra (se rea­
lizado sem preconceitos), a utilização e o treinamento da agres­
sividade são atividades que dizem respeito ao desenvolvimento
espiritual. Como já vimos, todo jovem é o redentor, alguém que

44) Dados de Bly, 2000.

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0Ocidente se distancia do pai
551

nasceu para transformar o mundo e a si mesmo. Esse trabalho de


transformação, justamente enquanto "transforma o mundo”, nao
o deixa como era antes, mas e também uma ação extraordinaria­
mente agressiva e muda os traços da realidade. Entretanto, para
ser um filho que transforma o mundo, é necessário um pai, nm
José, consciente de que aquele é o seu destino e que o confirme
nesta direção. O desaparecimento do pai, eliminando qualquer
iniciação-transmissão paterna, faz do filho um dado sociológico,
um número do censo, e não mais um agente transformador. Um
número do censo, porem, não sabe mais o que fazer de toda a
energia que sente dentro de si, destinada a mudar o mundo.
Então, depressivo, arrisca orienta-la não em sentido trans­
formador, mas sim destruidor, contra si ou contra os outros.
Também esse é um aspecto da perda de identidade mas­
culina, conseqüéncia da desvalorização e da ausencia do pai.
Robert Bly, no seu livro lrt>n /vhn (livro de referencia do Mo-
vimentodüü humens americano), conta o sonho de um jovem criado
pela mâe, uma mulher inteligente, lésbica, cercada por um grupo
de amigas de personalidades interessantes e empreendedoras. ()
homem sonhou correr ã noite, à luz da lua, com uma matilha de
lobos. Chegando a um rio, as lobas se detiveram e, inclinando-se
sobre a água, cada uma via a própria imagem. O sonhador tam­
bém se inclinou sobre a água para olhar, mas não viu nada. Não
podia se ver como loba, porque loba não era. Mas tampouco como
lobo, ou como homem, porque a sua identidade instintiva, sexual,
não se havia constituído. Nenhum pai lha havia transmitido. O
jovem sem pai, que não é "iniciado" ao masculino, não tem rosto,
não tem gênero: é portador de uma identidade incerta, ambígua
e, assim, tem medo. O homem "matrizado", iniciado pela mãe, é
como um cão sem faro: não possui instintivamente uma direção,
ignora em quais territórios, em quais formas a sua identidade
masculina o levaria a encontrar alegria e realização.

A filha sem pai

No campo a mulher que experimenta um déficit


paterno solte ifr pwhSiãAi insegurança ao dar início ao seu

Di9Í+alÍ2Gdo com CarnSccnner


A inaceitável ausência do pai
56

relacionamento com a sociedade. Toda a psicologia clínica


demonstra que esse aspecto, atribuído freqüentemente a uma
baixa auto-estima, pode manifestar-se em comportamentos
de renúncia ou de autolesão, ou ainda, como acontece muitas
vezes hoje, numa competitividade exacerbada, pela qual a
mulher busca mascarar a própria insegurança, substituindo
a aprovação pessoal, do pai, pela impessoal, da sociedade, da
empresa, do grupo político, e assim por diante. Mesmo quando
advêm o sucesso e o reconhecimento público, ela não consegue
substituir a segurança tranqüila dada por um relacionamento
positivo com o pai. A mulher paga, assim, essa fragilidade
psicológica, mascarada (e, portanto, colocada ainda mais em
risco) pelas fortes ambições, com patologias até graves, das
quais a mais difundida é a anorexia.
Como diz com perspicácia e precisão a psicoterapeuta
milanesa Laura Girelli:

É o olhar do pai (ou melhor, a troca de olhares entre pai e filha),


ao mesmo tempo amoroso, desejoso e orgulhoso, que lança as
bases e faz crescer o projeto pessoal, criativo e autônomo da
filha como pessoa.45

As Guerras Mundiais e a "fabricação" do indivíduo

A ausência paterna na família foi também acelerada pelos


conflitos mundiais, que mantiveram os maridos-pais por mui­
tos anos nos palcos da guerra, distantes da família e do resto
da sociedade. Muitos daqueles pais não retomaram vivos para

45) "Ou seja, é nesta troca de olhares que a filha projeta e prepara a primeira imagem
de Animus (a parte masculina da psique feminina), extraindo dessa primeira relação
com o masculino — quando o pai é psicologicamente saudável — os fundamentos
interpsíquicos inconscientes para a definição do projeto pessoal, qualquer que ele
seja. Ao contrário, a ausência ou a mistificação do olhar do pai no desenvolvimento
da filha e, portanto, a ausência de um espelho projetivo positivo para ver refletidas
a própria força e agressividade sadia, condena a mulher — entre outras coisas — a
uma relação de dependência prolongada e conflitante com figuras de apoio (os pais,
o companheiro, o coletivo, a empresa) e a uma substancial desconfiança no próprio
potencial criativo" (Girelli, 2001-2002).

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0Ocidente se distancia do pai
57

casa, e as mulheres tiveram de providenciar a educação dos


filhos e a sua inserção na sociedade.
Entretanto, a transformação mais difundida e sutil decor­
re, mais urna vez, dos desenvolvimentos que se seguiram ao
processo de secularização, à separação cada vez mais profunda
da vida diaria do homem da experiência religiosa.
De fato, urna vez rompida a relação entre o homem e Deus,
o seu criador, e reduzido o horizonte humano ao das coisas,
afirmou-se urna nova tendência (durante os conflitos mundiais
e, sobretudo, após o segundo) que, na seqüência, se aprofunda­
ria mais e mais. Trata-se de um processo não só econômico, mas
também cultural e espiritual, que tende cada vez mais a "fabricar"
o homem, o seu corpo, as suas idéias e os seus comportamentos,
como se se tratasse exatamente de uma coisa, de um produto
qualquer46. A tendência evoluiu tanto, a ponto de induzir um
pensador, um cientista político laico como Francis Fukuyama,
professor da Universidade de Harvard, a avisar: "Alterar os genes
das plantas contamina aquilo que comemos e cultivamos; alterar
os nossos próprios genes contamina o que somos" (2002, p. 1).
Não é por acaso que o século xx, no qual se dá esse pro­
cesso de manipulação do homem, é a época dos grandes tota­
litarismos, mais ou menos explícitamente ateus, que buscam
formar um homem-padrão, devotado ao regime, construído
como um robô, um objeto fabricado. Após a Segunda Guerra
Mundial, tal tendência se conclui com a estruturação da que foi
chamada "sociedade de consumo", que faz de cada indivíduo
um perfeito consumidor (figura receptivo-passiva), removendo
tudo aquilo que existe de ativo no sujeito humano em sentido
criativo, de gosto pela originalidade, de singularidade, dom,
risco, fantasia e ideal.
O indivíduo da modernidade ocidental passa, assim, do
estado de sujeito adulto, identificado por uma ordem simbólica à
qual ele mesmo pertence (como é no mundo não-secularizado),
ao estado infantil, de objeto destinatário de outros objetos, os
bens de consumo, que definem apenas provisoriamente suas

46) É o processo perfeitamente analisado em grande parte da obra de Michel Foucault e


que entrou posteriormente na dinâmica da vida social pelas análises de Antony Giddens.
58 A inaceitável ausência do pai

pertinências e características. É o consumo que hoje determi­


na a identidade, e não vice-versa. Nós "somos" o casaco que
trajamos, os sapatos que calçamos, o carro que dirigimos, o
endereço de onde moramos.
Cumpriu-se, assim, pouco depois do fim do último con­
flito mundial, o afastamento do pai e de seu mundo cultural-
simbólico masculino, ligado ao princípio da ação e à invenção,
como observava o poeta Ezra Pound. Isso se deu paralelamente
à profunda mutação sócio-econòmica, iniciada já no princípio
do século xx, levando ao abandono definitivo da transmissão
da arte e do ofício de pai para filho. Em substituição à socie­
dade familiar, consolidou-se o modelo da grande corporação
(indiferente, aliás, hostil a relacionamentos de transmissão por
parentesco entre seus empregados), que absorve todas as ener­
gias dos machos-pais, deixando as incumbências educativas a
estruturas públicas ou privadas, dirigidas por mulheres.
A grande empresa, apresentada injustamente como ex­
pressão da psicologia masculina, é geralmente uma tradução
organizativa da figura arquetípica da Grande Mãe, aquela que
satisfaz as necessidades, por meio da qual estende seu grande
poder. Ela não cria solidariedade entre seus homens (como,
ao contrário, faziam o exército, a companhia militar, a ordem
religiosa ou a corporação de artes e ofícios), mas coloca-os em
concorrência entre si. Não hesita, enfim, em romper o campo da
comunidade dos empegados, suscitando neles a competição a
fim de obter os favores da mãe-empresa. Mas, sobretudo, aper­
feiçoa e completa para ambos os gêneros aquela substituição
do amor a si (orientação ética considerada de maior valor, até
a afirmação deis revoluções modernas) pelo cuidado do pró­
prio interesse egoísta. Uma substituição que mina as próprias
bases da ética paterna e coloca o pai diante do dilema de ou
ele mesmo destruir os próprios valores de referência, ou ele se
tomar um transgressor das orientações dominantes.
Como o filho sem pai, também esse pai, não mais solicitado
a desempenhar o seu tradicional papel de ponte entre o jovem e
a sociedade, se vê (num plano profundo) numa situação de grave
privação de identidade. De fato, ele não pode ensina? arpióte amnr-
próprio que se expressa, antes de tudo, na responsabilidade e no

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0 Ocidente se distancia do pai
59

cuidado com os outros, aos quais a sua organização psíquica o


predispõe. Ao contrário, deveria ensinar o egoísmo, o cálculo e
o interesse. Mas isso é profundamente contrário ao "programa"
paterno, intrinsecamente comunitário (justamente por ser reflexo
de uma visão transcendente).
Se, de um lado, o pai ainda não se adaptou à a usência, que a
sociedade-Estado exige tomando o seu lugar, de outro, ele expe­
rimenta uma privação de identidade que provoca uma posição
depressiva e a tendência a regredir a níveis afetivos, ideativos e
comportamentais infantis. Enfim, o pai que não consegue ser pai
(normalmente, ele mesmo um filho já matrizado) tende também
ele a tomar-se (como veremos no capítulo v) um eterno ado­
lescente, em busca constante de garantias narcisistas à própria
existência, portanto, falto justamente no plano da posição psico­
lógica específica masculina e paterna. Que, por outro lado, não
lhe é sequer exigida, a não ser para censurar a sua falta quando
os filhos acabam mais tarde em dificuldades, como veremos.
Esse pai, "ausente" também quando ainda fisicamente presente
(e isso é cada vez mais raro), transmite bens, dinheiro, mas não
transmite valores nem uma orientação instintiva.
Às vezes, é também contra esse tipo de pai que o filho de­
cepcionado, perdido (como narram as notícias atuais), toma
uma arma e dispara seu desespero.

A sociedade Grande Mãe

Com a centralidade do valor materno da "satisfação das


necessidades" (em grande parte induzidas artificialmente pelo
sistema midiático), que é funcional para a expansão do consumo
e, portanto, para o crescimento da sociedade industrial, toda a
sociedade (e não apenas suas grandes empresas) tornou-se
uma Grande Mãe. O seu primeiro papel é manter o indivíduo
vivo para estimular e satisfazer nele suas exigências de bens, ali­
mentando, assim, o circuito da produção-consumo. Entretanto,
a "satisfação das necessidades" é uma orientação regressiva,
porque remete a uma exigência psicofisiológica da primeira
infância. Portanto, a sociedade ocidental é, como veremos, uma

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A inaceitável ausência do pai
60

sociedade profundamente infantilizada. Somos todos animais


"consumidores", crescidos para adquirirem produtos fabrica­
dos artificialmente. E é sobretudo nesse papel de compradores
que o sistema informativo-midiático, e também político, da
sociedade ocidental se interessa por nós.
Isso gera uma identidade "frágil"47, que vive na angústia
da provisoriedade e numa sensação de vazio, muitas vezes meta­
foricamente "preenchida" com a ingestão de substâncias (álcool
ou drogas). Ou, então, com a ingestão de crenças igualmente
"fabricadas", políticas ou pseudo-religiosas: é o fenômeno das
ideologias da modernidade (do nazismo à globalização), e
também das seitas ou das pseudo-religiões da New Age.
Confusas e perigosas, usurpadoras do lugar que o pai
deixou vazio.

47) Valorizada pelos teóricos do "pensamento frágil", enquanto destituída de


interesses metafísicos.

DigitGlizGdo com C&mScanner


IV. A INDÚSTRIA DO DIVÓRCIO
E A SUA LUTA CONTRA O PAI

"Joguem-no na rua e atirem suas roupas atrás dele... Não se


preocupem com os direitos dele. Não é trabalho de vocês levar
a sério os direitos constitucionais do homem que estão piso­
teando". O indivíduo a ser tratado assim é o pai de familia cuja
mulher pediu o divorcio e a guarda dos filhos. Quem recomenda
isso é Richard Russell, juiz da corte municipal de Nova Jersey,
nas instruções dadas num seminário de formação, em 1994.
No Ocidente atual, a maior ameaça, não tanto para a vida
dos pais, mas para a própria sobrevivência da família, é, de
fato, 0 funcionamento marcadamente antipatemo daquilo que
chamaremos aqui a indústria do divórcio. Um organismo mul­
tiforme dotado de enorme poder e influência, que emprega e
movimenta uma boa fatia da receita nacional para dispersar
as famílias existentes.
Nessa "indústria", que, na realidade, destrói ao invés de
construir, as decisões mais relevantes são tomadas pelos juízes
das Varas da Família ou da Infância e da Juventude, onde as
houver. Mas esses decretos ou sentenças são acompanhados de
uma multiplicidade de outras deliberações. As mais relevantes
são tomadas pelas Comissões de Justiça dos vários parlamentos.
Muitas outras, porém, capazes de decidir a vida de uma família
e dos filhos, estão ligadas a um verdadeiro exército de empre­
gados da indústria do divórcio, à qual pertencem psicólogos,
assistentes sociais, peritos de vários tipos e administradores
de uma enorme quantidade de organizações.

niôitalizGdo com CamSccnner


A inaceitável ausência do pai
62

A sociedade ocidental, as mães preocupadas com o futuro


de seus filhos e os pais que gostariam de continuar a desem­
penhar seu papel olham com crescente preocupação a temível
aliança entre as mulheres divorcistas e um dos mais poderosos
lobbies contemporâneos, essa indústria do divórcio, uma estrutura
especializada em utilizar os aparatos do poder do Estado para
destruir a célula-base da sociedade, a família.

Histórias de pais

Bob Geldof, cidadão inglês, era um pai perfeito: lavava,


cozinhava e provia todas as necessidades de suas três filhas,
Fifi, Peaches e Pixie. Levava-as para a escola, preparava o al­
moço para elas e, à noite, punha-as na cama e contava histórias
até elas adormecerem. Enquanto desempenhava suas funções
paternas, lançou o LiveAid, programa televisivo beneficente de
grande sucesso, foi nomeado cavaleiro por sua atividade em
favor do Live Aid e chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel
da Paz. No entanto, quando se separou da mulher, Paula Yates,
que, desde muito tempo, além de não se interessar pelas filhas,
havia adquirido comportamentos perigosos para o equilíbrio
delas, ostentando de todas as formas seu amante e uma série de
manifestações patológicas, o Tribunal não hesitou um instante
em confiar as filhas a ela; afinal, Geldof nada mais era do que
o pai. Toda a resistência do cantor, que dilapidou uma fortuna
em advogados para recorrer da decisão do Tribunal, foi inútil.
Somente quando a mulher foi internada na Clínica Priory por
ingestão de drogas e álcool, é que sir Bob Geldof conseguiu
obter a guarda das filhas. E depois que a mulher e seu amante
morreram, ele pediu também a guarda da filha destes, Tiger
Lily, de cinco anos.
A história de Bob Geldof toma-se especial apenas por ele
ser um nome proeminente, mas, na realidade, é muito comum
em qualquer país ocidental.
Os EUA talvez sejam, hoje, o país mais consciente desse
risco (cf. Thompson, 2002), provavelmente pela alta taxa de
divórcios: mais de 50% só em 2001. E a tendência é aumentar.

Dic,itGlizGdo com úamScGnner


A imiiisfrifl do divorcio e a sua kita contra o pai
63

Muitas previsões antecipam que dois terços dos atuais matri­


mônios acabarão num divórcio que, normalmente, separa o pai
dos filhos. De acordo com o Census Bureau, em 2000, em oitenta
porcento dos julgamentos, as mães obtiveram a guarda exclu­
siva, privando milhões de pais do seu direito constitucional
de cuidar, proteger e nutrir seus filhos. Entretanto, de acordo
com os procedimentos do nofrult divorce (divórcio amigável),
acordado automaticamente após poucos meses da separação
dos genitores, os pais não eram acusados de ter feito mal algum.
Simplesmente, as mulheres não os queriam mais.
E também por isso que, já em 1996, uma pesquisa Gallup
mostrava que, conforme 79,1% dos norte-americanos, "o maior
problema social que a América do Norte tem de enfrentar é a
ausência física do pai em casa".
Essa situação, porém, diz respeito a todo o Ocidente, civili­
zação na qual a taxa de divórcios continua crescendo a cada ano.
Inclusive na Itália, ainda que alguns jornais declarem, com ar
escandalizado, que "talvez seja por causa das raízes católicas...
mas é 0 país em que as pessoas menos se divorciam na União
Européia" — como se o divórcio fosse um indicador de civilida­
de, e não de um grave mal-estar relacional e social. De qualquer
forma, de 1980 até hoje, também a "virtuosa" Itália mais do que
triplicou o número de divórcios, passando de 11.800 a 37.600 em
2000 (Eurostat, 2002). Nota-se que o aumento de separações e
divórcios tem uma velocidade maior nas regiões em que a renda
é mais elevada, onde o abastecimento de bens materiais e o ele­
vado padrão de vida já é um parâmetro de juízo da idoneidade
do marido-pai de procurar e manter esse padrão.
Em todo o Ocidente, os tribunais (bem como as escolas,
os parlamentos, os meios de comunicação, enfim, a sociedade)
não demonstram boa vontade com relação aos pais. Além disso,
também a magistratura, além da escola, vai rapidamente se
feminizando. O termo patriarcal tornou-se um adjetivo depre­
ciativo, assim como paternalista, patriota e qualquer palavra,
em geral, que contenha "pai" e seus derivados, aos quais se
agrega um significado de "atrasado" e de "injusto". Portanto,
para 0 marido-pai que é deixado pela mulher, nem sempre é
simples continuar a ver os filhos.

DÍ9¡+al¡2Gdo com CamScanner


A inaceitável ausencia do pai
64

Enquanto escrevo (julho/agosto de 2002), os jornais pu­


blicam o apelo de um pai. Ele é professor no Conservatório de
Castelfranco Veneto. Quando foi acometido por uma doença
nos rins, a relação com a mulher, americana e mórmon, piorou.
Afilha mais velha foi matriculada na escola, a mãe a dispensou
das aulas de religião, e o pai a matriculou novamente. Assim,
começou o conflito. A mulher fugiu para os eua com as duas
filhas. Ele a denunciou na polícia por subtração de menores,
e ela respondeu acusando-o — como se costuma fazer nos
eua (e muitas vezes também em outras partes) — de abuso
das meninas. É uma medida que os advogados da indústria do
divórcio aconselham com freqüência, porque deixa 0 pai sem
condições de atacar e o obriga ainda a defender-se para não
ser preso48. Dessa forma, o pai (que já gastara dez mil euros
com advogados) não podia sequer apresentar-se ao Tribunal
nos eua, porque corria o risco de ser preso, o que era a praxe,
mesmo sem provas (V. E, 2002).
Na Inglaterra, em caso de divórcio, somente sete por cento
dos pais conseguem obter a guarda dos filhos, os quais, em
noventa por cento dos casos, os expulsam da própria casa. A
política de hostilidade dos Tribunais ingleses em relação aos
pais é tal que, segundo a associação Families need Fathers,

um número de homens, que varia entre quarenta e cinqüenta por


cento, perde o contato com os filhos no decorrer dos primeiros
dois anos de separação. Por isso, podemos concluir que, num
país onde cinqüenta por cento dos casais vai se separar antes
de os filhos atingirem quinze anos, um quarto desses filhos não
verá o próprio pai. (Stone, 2002)

Além disso, falar de direitos paternos é extremamente


impopular no Ocidente inteiro.

48) Esta é uma regra geral. De acordo com o abalizado jornal The Spectator (24.8.2002):
"A lição número um para qualquer homem que se encontre implicado numa causa que
diz respeito à guarda dos filhos (child care): você é culpado até que a sua inocência seja
provada. Ela [a mulher] pode dizer e fazer qualquer coisa para colocá-lo na defensiva,
e você leni de colocar-se na defensiva" (Stone, 2002).

Digitalizado com CamScanner


\ industria tio divórcio e a sua luta contra o pai 65l

Falar dos direitos dos pais é um fato acolhido normalmente com


escárnio. Nós somos vistos, até mesmo pela magistratura, como
um grupo de fracos obcecados, incapazes de "largar do pé". .4
sociedade está nos dizendo: não se metam! (lindem)

No entanto, as mães não oferecem mais garantias do que


os pais com relação à segurança e o bem-estar dos filhos. Mui­
to pelo contrário. Conforme o Ministério da Justiça dos eua,
setenta por cento dos casos de abuso infantil comprovado e
sessenta e cinco por cento dos homicídios cometidos pelos
genitores contra os filhos são de autoria das mães, e não dos
pais. De acordo com os dados do Ministério da Saúde ameri­
cano (elaborados levando em conta o número mais elevado de
mães "solteiras" em relação aos pais), a mãe responsável pela
guarda da criança tem cinco vezes mais probabilidade de matá-
la do que o pai detentor da guarda. No conjunto, as crianças
possuem oitenta e oito por cento a mais de probabilidade de
serem seriamente prejudicadas por abuso ou abandono das
suas mães do que dos seus pais.
Contudo, na prática da indústria dos divórcios, tudo isso
não tem qualquer importância. Como no caso de Geldof, não
interessa, nos fatos, quem é o "bom genitor", nem com quem as
crianças desejam ficar. Na grande maioria dos casos, os filhos
são confiados às mães que pedem o divórcio, não importando
o estilo de vida que levam nem qual a relação delas com as
crianças.
Após a concessão da guarda, as mães divorciadas dificultam
de todas as formas o encontro dos filhos com seus pais, apesar
de as pesquisas psicológicas demonstrarem que esse compor­
tamento prejudica seriamente os filhos. Por exemplo, nos eua,
para as crianças que permanecem com um só genitor após o
divórcio, cerca de cinqüenta por cento das mães "não atribuem
qualquer valor ao contato continuado do pai com os filhos", es­
creve a pesquisadora Joan Berlin Kelly em seu livro Surviving the
breakup (Sobreviver à ruptura). Esses dados são confirmados pelo
American Journal of Orthopsychiatry, segundo o qual "quarenta
por cento das mães admitem ter interferido nos encontros dos
filhos com o pai a fim de punirem seus ex-maridos". Somente

Digitalizado com úamScanner


66 A inaceitável ausênda do pai

agora começa-se a perceber que essa tendência, além de privar


as crianças de uma orientação afetiva e simbólica fundamen­
tal, provoca a anulação de toda a auto-estima e uma crescente
depressão dos machos-pais em todo o Ocidente, com efeitos
devastadores para toda a sociedade.

Os pais dilacerados

De acordo com o Royal College of Psychiatry inglês, por


exemplo, depois de 1970, o suicídio entre os homens aumentou
setenta e dois por cento, enquanto o das mulheres permaneceu
igual. Foi exatamente em 1970 que a orientação antipatemase
tomou dominante, inclusive por efeito da afirmação do feminis­
mo, cujas palavras de ordem foram em grande parte absorvidas
pela magistratura e pelas demais profissões ativas na indústria
do divórcio: psicólogos, assistentes sociais etc. É claro que dara
guarda às mães não é o único fator que eleva vertiginosamente0
suicídio masculino; o homem está enfraquecido devido a uma sé­
rie de sinais de desfavor social, que em poucos anos transformou
decididamente para pior a sua posição no mundo. A jomada de
trabalho para os homens, que já havia aumentado mais de vinte
por cento desde 1929, está em contínua elevação, e é sobre eles
que recai o maior peso das despesas domésticas e a pressão para
proporcionar à família carros e férias. A condição masculina piora
a passos largos: na Europa, os homens graduados são um terço
a menos em relação às mulheres. Um indicador significativo do
nível de desfavor social para com os homens adultos é que, na
maior parte dos países ocidentais, não existe nenhum programa
de saúde para o diagnóstico precoce do câncer de próstata, que
mata seis vezes mais do que os tumores femininos comuns.
Esse homem não-tutelado, inseguro, com dificuldades no
trabalho, ansioso por não conseguir dar à família o padrão de
vida que gostaria, é freqüentemente expulso da entrada em
cena pela indústria do divórcio.
A mídia, sobre a qual a indústria do divórcio exerce uma
enorme influência (pelo poder político e judiciário), até ago­
ra manteve bem escondida da opinião pública uma notícia
A indústria do divórcio e a sua luta contra o pai
67

fundamental para entender o mal-estar da família ocidental:


quem abre a porta de casa para que o pai saia geralmente é a
mulher (cf. Brinig & Allen, 2000, pp. 126-169).

Quem rompe a família?

No conjunto dos países ocidentais, como nota Sanford


Braver, psicólogo da Universidade Estadual do Arizona, em
tomo de setenta por cento das rupturas matrimoniais acon­
tecem por iniciativa feminina (Family Research Council49).
Muitas vezes é a mãe que é estimulada a romper o matrimônio,
sempre apoiada depois pelo diversificado grupo de operadores
interessados na indústria do divórcio. Não é difícil entender o
fenômeno: a ruptura da família é o instrumento indispensável
para que a atividade daqueles que Michel Foucault chamava
de "ortopedistas da alma", geralmente pagos pela indústria
do divórcio, possa ampliar-se com eficácia e multiplicar-se de
forma rentável.
Só nos Estados Unidos, três em cada cinco separações
familiares envolvem crianças: por ano, mais de um milhão
de crianças americanas são enredadas pelas engrenagens da
indústria do divórcio.
O aspecto da autonomia econômica da mulher, que se se­
para mais facilmente se o marido não tem o seu mesmo padrão
de renda, parece relevante. E maior a percentagem se a mulher
tem um emprego, e menor se ela é dona-de-casa.

0 caso americano: uma pesquisa de ciências políticas

O professor Stephen Baskerville, que leciona Ciências Polí­


ticas na Howard University, Washington, dc, nota que, na atual
legislação do divórcio no fault (amigável), a maior parte das
separações matrimoniais é declarada "por incompatibilidade

49) Que cita uma pesquisa no Arizona, segundo a qual mais de dois terços dos divór-
dos naquele Estado são pedidos pelas mulheres (http://www.frc.org/contactfrc.cftn).

Digitalizado com úamScannçr


A inaceitável ausência do pai
68

de gênio". As causas objetivamente documentáveis, com os


instrumentos judiciários tradicionais, como abandono dolar,
violência ou adultério, já aparecem muito raramente (Basker­
ville, 2002a, pp. 5-7).
Em tudo isso, o Direito, em sentido tradicional, tem muito
pouco a ver. Setecentas mil pessoas por ano se divorciam e têm
suas famílias desfeitas com base em considerações essendal-
mente subjetivas, avaliáveis com base em disciplinas extraju-
rídicas e freqüentemente mais opináveis, como a psicologia.
Como disse Foucault, falando do Direito na modernidade,
"não existe mais a investigação, e sim a patrulha, o exame...*
Esse novo modo de julgar "não se organiza mais em tomo das
perguntas: tal coisa foi feita? quem fez? Mas em tomo da regra,
em tomo do que é correto ou não, em tomo daquilo que se deve
ou não se deve fazer" (Foucault, 1997). O "fato" juridicamente
relevante é substituído pelo politicamente correto, que levaà
dissolução do casamento se a mulher assim 0 exigir.
Além disso, é certamente preocupante o fato de 0 cônjuge
que geralmente toma a iniciativa de acabar com 0 casamento(e
de incrementar assim, o faturamento da indústria do divórcio),
a mãe, receber a priori da instituição divorcista uma espécie
de "prêmio de produção", garantindo, na grande maioria des
casos, justamente a ela a guarda dos filhos. De qualquer modot
Baskerville evidencia que as várias regras da legislação fami­
liar atuai são quaefesempre aprovadas não em seguida a um
mas essencialmente por iniciativa e em
do divórcio, "grupos não-represei
• como escreveu Melanie Phillips
"mas que possuíam programas
seus interesses".
ates públicos, o interesse espedal

ph dos diferentes pedfifetiflA

kdãoéquenã

Digitalizado com ÚGmScGnner


A industria do divórcio c a sua luto contra o pai
69

como justamente observa Baskerville, é notório que qualquer


burocracia tende a perpetuar e a desenvolver os problemas a que
a sua existencia, os seus lucros e o seu poder estão atrelados.
Tanto é que nem sempre são as mães que tomam a iniciati va
da separação; elas são freqüentemente impelidas pela burocra­
cia divorcista. Não são raros casos como o que o Mnssachusett^
News contou na edição de fevereiro de 2002: uma mulher, Heidi
Howard, foi posta pelos Serviços Sociais diante da escolha de
divorciar-se de seu marido ou perder a guarda dos filhos. En­
tretanto, o próprio departamento reconhecia que nenhum dos
dois genitores havia sido violento. /X senhora Howard negou-se,
os assistentes sociais confiscaram as crianças e fizeram de tudo
para rejeitar os direitos dos pais sobre elas. O jornalista Nev
Moore relata centenas de casos como esse de rapto de crianças
da familia legítima pela burocracia do divorcio.
Até mesmo na Itália, onde as leis do divorcio e do aborto
já fazem parte da mitologia política dominante e é, portanto,
politicamente incorreto mostrar suas conseqüencias nefastas,
muitos desses casos já começam a despontar e sao denunciados
por um ou outro jornal. Todavia, qualquer denuncia, embora
respeitável, fatalmente se choca com o bloco do poder da indús­
tria do divorcio, um organismo tão poderoso que chega a pedir à
mãe que se divorcie e, quando ela se recusa, dá as crianças em
adoção a outras famílias, sem que os pais sejam acusados de
qualquer culpa específica, a não ser a de obstaculizar a "cadeia
produtiva'' da atividade destruidora de famílias, negando-se a
se divorciarem. Sem divorcio, nada de crianças. Nem mesmo
para a mãe, habitual beneficiária da infausta empresa.
Nos Estados Unidos — que, na qualidade de líder da so­
ciedade ocidental, até agora mostraram como serão as coisas
para nós, daqui a alguns anos —, Robert Page, presidente da
Vara da Familia da Suprema Corte de Nova Jersey, reconhece
que a Vara da Familia é o ramo mais poderoso do poder ju­
diciário. "O poder desses juízes é quase ilimitado". Mesmo
porque, contrariamente aos princípios gerais do Direito, nos
IUA, as Varas da Família costumam trabalhar a portas fechadas
^raramente verbalizam seus processos. Esse poder ilimitado
^Êggnbém um campo em que se emaranham muitos interesses

te

^'Ôi+Glizftdo com ÚGmSccmner


A inaceitável ausência do pai
70

materiais: interesses dos juízes, das suas carreiras, e interesses


muitas vezes interdependentes dos grupos de profissionais que
colaboram e interferem na indústria do divórcio. É sempre o juiz
Page (relembra o cientista político Baskerville) que alerta para
o desenvolvimento da rede de negócios das Varas de Família:
"Se o Tribunal faz um bom trabalho, muito mais pessoas vão
se interessar em recorrer a ele". O "bom trabalho", nesse caso,
é conseguir aumentar o número de pais que decidam pôr pelos
ares a família, contentando seus pedidos.
O marketing político das Varas dos Tribunais que se ocupam
de divórcios e guardas das crianças até agora tem funcionado
muito bem. Nos eua, mais de um milhão e cem mil casais se
divorciam a cada ano, e a maior parte tem filhos. Ao mesmo
tempo, o país tem de enfrentar um número recorde de crianças
nascidas de mães solteiras: um milhão e trezentas mil, somente
em 1999, em torno de um terço de todos os nascimentos dos
Estados Unidos.
As décadas das "políticas de paternidade descartável",
orgulhosamente autodefinidas "disposable fatherhood policies",
deixaram centenas de milhares de mulheres e crianças mais
pobres e mais em risco do que jamais estiveram antes.
Entretanto, para que os negócios empresariais da burocra­
cia do divórcio se desenvolvam da melhor forma, uma condi­
ção é necessária: tirar da família o pai. Na realidade, sem essa
"remoção" do pai, todo o processo posterior (divórcio, guarda
dos filhos, eventuais abusos nas famílias "de fato", professores
particulares e até mesmo a delinqüência juvenil) nem se inicia,
e a família permanece unida.
E, então, surgem os juízes de família que dão aos seus ho­
mens os ensinamentos adequados. Já lembramos 0 "joguem-no
na rua e atirem suas roupas atrás dele...", que 0 juiz Richard
Russel recomenda aos técnicos que ele forma.

O pai fora-da-lei

Uma vez fora de casa, o pai se torna um potencial fora-da-


lei. Nos eua, ele pode ser preso por ir ao encontro dos filhos

Digitalizado com úamScanner


(sem autorização) em lugares públicos, como o zoológico ou a
igreja, ou por telefonar a eles quando não estava combinado,
ou ainda por enviar-lhes cartões postais. Os pais que caíram na
engrenagem da indústria do divórcio podem ser submetidos a
todo tipo de investigação e perguntas, como qualquer malfeitor.
Suas cartas pessoais, suas transações bancárias e sua casa devem
ser abertas a qualquer solicitação; seus filhos podem ser usados
como informantes; seus hábitos estão sujeitos ao crivo da Corte.
Na Virgínia, um pai teve seus dias de visita aos filhos reduzidos,
porque um juiz sentenciou que uma partida de futebol aos do­
mingos era uma atividade mais importante do que a missa à qual
ele os levava. Outro, no Tennessee, ficou preso por alguns dias,
porque teve a ousadia de mandar cortar os cabelos do filho sem
autorização. Jed H. Abraham, funcionário do Tribunal, descreve
que pais acusados por nenhum crime em particular devem fre-
qüentemente submeter-se à prova do plethysmographs, durante
a qual um feixe eletrônico é colocado sobre o pênis, enquanto o
pai é obrigado a ver filmes pornográficos envolvendo crianças,
registrando automaticamente as suas eventuais reações sexuais.
O objetivo é demonstrar que esse pai, ainda não acusado de
abuso, seja expulso de casa porque pode ser potencialmente
abusivo. O uso do eventual e possível abuso como suporte do
pedido de divórcio é, naturalmente, um absoluto contra-senso
à luz da clínica psicológica, que demonstra à saciedade que os
casos de abuso são maiores nas famílias desfeitas, depois que o
divórcio foi decretado, do que nas famílias íntegras.
Entretanto, o principal instrumento do ataque aos pais em­
pregado pela máquina judiciária, que custa bilhõesde dólares,
são as pensões para os filhos. Na publicação invernal de 2002 do
Journal of the Howard Centerfor Family, Religión, and Society, Bryce
Christensen descreve como funciona a ligação entre as políticas
"antipais" de apoio às crianças e a erosão do vínculo conjugal. De
acordo com Christensen, há uma escalada de meios de controle
e intervenção na vida dos pais a fim de perscrutar suas possi-
^fljdades de desembolsos futuros para as famílias das quais se
■tttttfararn, utilizando investigadores, declarações de terceiros,
que já violaram ao extremo os direitos constitucionais
muitas vezes já profundamente empobrecidos.

OiQitGlizGdo com ÚGmScGnner


A inaceitável ausência do pai
72

As pesquisas que Braver e outros desenvolveram, conside­


radas pelo Front Page Magazine o "trabalho de ciências sociais
mais importante da década", mostram que as estimativas sobre
o rendimento dos pais e sobre as necessidades dos filhos jamais
levam em consideração situações reais, mas são baseadas ex­
clusivamente em estatísticas. E os pedidos para as crianças são
muito menos voltados às necessidades delas do que às pressões
dos grupos de interesse econômico (produtores de bens de
consumo, academias e todo tipo de escolas particulares, orga­
nizações de entretenimento e de tempo livre). Também aqui,
quanto mais onerosos forem os pedidos impostos aos pais,
maior se torna o poder econômico dos Tribunais e dos seus
presidentes e juízes. Os recolhimentos federais (de seis a dez
por cento) dos fundos dos pais são um incentivo posterior para
os Tribunais aumentarem o máximo possível os desembolsos
paternos: quanto mais altos forem, maiores serão os recolhi­
mentos da União versados para a indústria do divórcio. Além
disso, existem os interesses dos órgãos do Estado voltados aos
programas de assistência aos filhos e às mulheres divorciadas,
para cujas caixas convergem os cheques depositados pelos pais
para a manutenção dos filhos. Essa enorme burocracia, que
vive unicamente da separação das famílias, faz com que a mãe
desfrute apenas de uma pequena parte dos capitais amealhados
e administrados pela indústria do divórcio. É bastante freqüente
que, após as agências retirarem seus reembolsos para a lauta
refeição e o pagamento do pessoal e dos consultores, sobre
apenas uma quantia bem modesta para a mãe divorciada.
Afim de romper os mecanismos perversos, inclusive eco­
nomicamente, da indústria do divórcio, um estudo realizado no
ano 2000 pelos economistas Margaret Brinig e Douglas Alien,
analisando quarenta e seis mil casos de crianças dadas em
guarda após o divórcio dos pais, chegou à conclusão de que é
necessário abandonar a norma de que "quem vence — em geral
a mãe — leva tudo" (filhos e cheques), que só fez multiplicar
os divórcios e aumentar o número dos filhos sem pais. Enfim,
é necessário deixar de lado a guarda unilateral dos filhos a um
único cônjuge: a "genitorialidade" deve continuar, para ambos.
De fato, segundo um relatório do Census Burean, de outubro
de 2oooz quando um pai que não tem a guarda dos filhos, mas
tem iguais possibilidades de visitá-los e de estar com eles, o
pagamento das pensões alimentícias aumenta em setenta e
três por cento. Embora, às vezes, geograficamente complicada
(sobretudo nos eua), a guarda compartilhada possibilita que os
filhos tenham, além do acesso mais amplo a ambos os genitores,
um apoio financeiro e emocional maior do que na guarda de
um só dos pais.
Resumindo, o "caso americano" demonstra que é necessá­
rio mudar o caminho. É algo tão evidente que, no Dia dos Pais
de 2002, a pesquisadora feminista Wendy McElroy5'1 dedicou o
dia ao tema "Justiça para os pais", lembrando que

os homens são de tal forma criminalizados nas Varas do Di­


reito da Família dos Tribunais que, recentemente, até mesmo
a Suprema Corte da Geórgia se deu conta de que seu próprio
Manual, contendo instruções às crianças de pais separados sobre
como manter o relacionamento com o pai, era absolutamente
inconstitucional.

Já se começa a entender quão necessário é que o pai volte


para casa.

Apêndice
Breve "idiotário" divorcista

A cultura paterna, fundamentada na responsabilidade in­


dividual, foi liquidada também pela difusão do seu contrário, a
irresponsabilidade coletiva. Esta tem como principal instrumento
núdiático a multiplicação do lugar comum, da conversa fiada ge­
neralizada que, quanto mais difundida, mais inatacável é. Não é
possível comprovar o que afirma, justamente por ser "comum"; é
disseminada na sodedade sem que alguém tenha tomado para si
a responsabilidade de dizer: "É assim, e aqui estão as provas".50

50) Autora de Liberty far Women, Freedom and Feminism in the Twenty-first Century
(Liberdade para a mulher,liberdade e feminismo no século xxi).

Digitalizado com úamScanner


74 A inaceitável ausência do pai

Como contribuição para uma cultura paterna atualizada,


apresentamos aqui um pequeno "idiotário" divorcista, uma
coletânea dos lugares comuns mais propagados para consolidar
a cultura do divórcio e a sua oportunidade. Segue-o a fonte
das pesquisas, todas norte-americanas, efetuadas por amostras
muito amplas que desmentem essas teses5'.

i” lugar-comum: “Para reduzir os riscos de se divorciar, é bom morar


junto antes do casamento".

Demonstrou-se amplamente que aqueles que moram


juntos antes do casamento correm consideravelmente mais
risco de se divorciarem depois. Fica ainda mais evidente que a
experiência da co-habitação em si gera nas pessoas convicções e
atitudes que levam mais facilmente ao divórcio. A começar pela
crença de que relações são experiências passageiras e, por isso,
fadadas a acabar. Isso diminui consideravelmente a determina­
ção e a capacidade de lutar para que continuem (cf. De Maris
& Rao, 1992, pp. 178-190; Smock, 2000). Além disso, do ponto
de vista simbólico, toda a antropologia cultural demonstra que
um compromisso assumido na forma de rito reconhecido pela
sociedade aumenta nos indivíduos e nos grupos a capacidade
de mantê-lo.

2° lugar-comum: “Quando, em determinados momentos do casamento,


se é muito infeliz, é melhor pôr um fim nele com 0 divórcio".

Pesquisas recentes, com uma amostra norte-americana


muito ampla, descobriram que, no final dos anos 1980, oitenta
e seis por cento das pessoas que eram infelizes no casamento
continuaram juntas e, ao serem entrevistadas cinco anos mais
tarde, declararam estarem muito mais felizes. Os três quintos
dos casais que se tinham declarado antes infelizes qualificaram

51) Para estas páginas, foi utilíssimo o trabalho de David Popenoe, professor de
sociologia na Rutgers University, New Brunswick, Nova Jersey, ondeé co-diretor do
National Marriage Project. Devo a Popenoe toda a preciosa bibliografia apresentada
neste apêndice. Um material mais amplo, sempre dele, foi publicado em 8 de maio de
2002 no site http://www.mensnewsdaily.com/stories/popenoeo50802.htm.
seus casamentos como "muito felizes" ou "razoavelmente
felizes" (cf. Waite & Gallagher, 2000).

j1’ lugar comum: "O divórcio serve puni fazer experiência. Apremiemos
com os insucessos, e os segundos casamentos tendem a ser mais bem
sucedidos do que os primeiros".

Na realidade, a taxa de divórcios nos segundos casamentos


é mais elevada do que nos primeiros (cf. Goldstein, 1999, pp.
409-414; Cherlin, 1992).

41’ lugar-comum: "O divórcio pode provocar problemas para as crianças


envolvidas; mas esses problemas não duram muito, e as crianças se
recuperam rapidamente".

O divórcios aumenta a chance de problemas interpessoais


nas crianças. Fica mais do que evidente, tanto nos pequenos
estudos qualitativos quanto nos quantitativos de larga escala e
longa duração, que muitos desses problemas se estendem por
longo tempo (cf. Wallerstein et alii, 2000; Cherlin et alii, 1998,
pp. 239-249; Amato & Booth, 1997).

5° lugar comum: "Quando os pais se desentendem, é melhor para as


crianças eles se divorciarem do que ficarem ¡untos".

De acordo com um estudo recente, feito em larga escala


e por um longo período, a realidade é diferente. A pesquisa
confirma que a infelicidade e as brigas conjugais têm um
efeito grave e negativo em praticamente todos os aspectos do
bem-estar dos filhos; no entanto, a mesma coisa acontece com
0 divórcio. Examinando mais de perto os efeitos negativos do
divórcio, o estudo descobriu que somente a criança que vive
numa família altamente conflituosa pode se beneficiar com a
remoção do conflito que o divórcio pode trazer. Mas, de acordo
com a pesquisa, nos dois terços dos casamentos que terminam
em divórcio, o nível de conflito é médio-baixo. Portanto, pelos
resultados do estudo, na grande maioria dos casos, seria melhor
que os pais continuassem juntos e enfrentassem seus proble­
mas, ao invés de se divorciarem (cf. Amato & Booth, op. cit.).
I

r*Í9ÍtGlizGcl<
com C&nScanner
A inaceitável ausência do pai
76

ò*' lugar-comum: "As crianças crescidas em famílias desfeitas pelo divórcio


tem o mesmo sucesso em seus casamentos do que as que cresceram em
famílias unidas. Isso porque elas são mais cautelosas ao começarem uma
relação matrimonial e também porque possuem uma forte determinação
para evitar a chance de um divórcio".

Os casamentos dos filhos dos divorciados possuem, na


realidade, uma taxa de divórcio nitidamente maior do que os
casamentos dos filhos de famílias unidas. Uma das principais
razões para isto, segundo um estudo recente, é que as crianças
aprendem a manter o vínculo conjugal e a permanecer nele
pela observação e imitação dos pais. Nos filhos do divórcio, a
capacidade de manter um casamento por toda a vida foi lesada
(cf. Ama to, 2001; Wolfinger, 2000, pp. 1061-1086).
V. A PATOLOGIA DA
SOCIEDADE SEM PAI

Que fisionomia assume a sociedade (a personalidade


coletiva) e o indivíduo (a personalidade subjetiva) em tempos
de luta contra o pai (ou Rctvlta ivntni o fxii, como a chamava
Gérard Mendel em 196#)?
A seguir, vamos antecipar algumas conclusões.
Do ponto de vista econômico, trata-se de uma sociedade
pobre. AOhio Psychological Association afirma que as questóes
que se referem à guarda e á manutenção dos filhos dos divor­
ciados provocam uma perda de produtividade superior à que
decorre dos problemas de álcool e drogas juntos.
Mas, acima de tudo, a sociedade sem pais é fortemente
patológica.
Todos os estudos realizados sobre o assunto demonstraram
que as crianças que crescem sem um pai possuem uma vida
muito mais difícil do que as que têm ambos os pais em casa.
Alguns dados fornecidos pelos órgãos do censo norte-
americanos: noventa por cento de todos os sem-teto e dos filhos
fugidos de casa não tinham o pai na família. Setenta por cento
dos jovens delinquientes internados em instituições do Estado
provinham de famílias em que não havia pai (cf. Thompson,
2002). Oitenta e cinco por cento dos jovens que estão presos
cresceram sem pai, e sessenta e três por cento dos jovens que
cometem suicídio tinham pais ausentes.
Para entender melhor como se configura a patologia da
"sociedade sem pais", recordemos brevemente o que dissemos

Di0i+Gli2ftdo com úamScanner


78 A inaceitável ausência do pai

no capítulo ii, quando identificamos "a marca do pai" coma


capacidade de suportar as feridas e as perdas que a vida ine­
xoravelmente inflige, para poder prosseguir o seu percurso.
Pois bem, a "sociedade sem pais", na qual a indústria do divór­
cio reduz frequentemente o genitor homem a indivíduo sem
casa, marginalizado e desviado, é uma agregação de pessoas
incapazes de suportar as feridas da vida52.

Uma sociedade que não sabe perder

Os cidadãos da "sociedade sem pai" encaram a perda


como uma afronta pessoal mais do que como uma provação
da vida, ligada inclusive ao destino espiritual do indivíduo.
Dessas "perdas", incompreensíveis e inaceitáveis, também
faz parte o sacrifício de dever reconhecer o princípio de auto­
ridade, banido com a figura paterna. Se não é mais necessário
obedecer ao pai, porque então fazer o que o guarda sinaliza,
prestar atenção ao bilheteiro ou a quem quer que peça que se
respeite uma regra?
Os exemplos dessa fraqueza e dessa dificuldade de en­
frentar a vida e as suas provações são inúmeros. Muitos foram
aqui resumidos e os completaremos com estatísticas, talvez
enfadonhas à leitura, mas eloqüentes. Por outro lado, o leitor
pode seguir as situações aqui descritas com reportagens de
jornais (todos nós nos lembramos de alguma), que ilustram
esse quadro geral com episódios isolados. Desde os suicídios
"de protesto" contra as notas baixas ou a frustração de não
comprar uma moto, até a enorme dificuldade provocada por
qualquer separação, inclusive a da casa da família de origem,
da qual o jovem sente cada vez mais dificuldade em se afastar,
para investir, penosamente, no próprio futuro pessoal.
O "sacrifício", compreendido não tanto como sacralização,
sacrunifacere, mas simplesmente como renúncia necessária para
obter alguma coisa, mediante o investimento no próprio futuro,

52) "Agregação", porque nem sempre chega ao ponto da coesão de uma *soded*V
e jamais possui o vínculo ideal próprio de uma "comunidade".

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A patologia da sociedade sem pai
79

parece cada vez mais doloroso, impossível de ser suportotado.


Além do mais, a ideologia da vida como espetáculo, em que
o sucesso premiará a exibição narcisista e não o sacrifício, tira
qualquer prestígio social da experiência da privação voltada
para um crescimento futuro.
Uma recente sondagem do Conselho Nacional de Pequisa
italiano (cnr) sobre adolescentes confirma que, atualmente,
falta-lhes a auto-estima necessária para enfrentar a vida (apud
Giornale di Brescia, 2.11.2001, p. 26). A psicóloga Patrizia Ver-
migli, coordenadora da pesquisa, destaca a relação entre baixa
auto-estima e esmorecimento da figura paterna, afirmando:

Nesse último estudo, salientamos que é o pai a figura mais


importante para os adolescentes. É ele, o genitor, que dá
sustento quando se trata de socializar ou de "lançar-se" nas
situações novas, que ajuda o jovem a separar-se do ninho e a
ser mais autônomo, confiando em suas próprias forças. A mãe,
ao contrário, quer mantê-lo perto de si, tem mais dificuldade
í para deixá-lo ir embora. Esse é um comportamento que refreia
o amadurecimento do adolescente e pode provocar também
ir uma baixa auto-estima e a dificuldade de se socializar com as
da mesma idade.

tudo, o estrago causado pela ausência paterna é ain-


g&ave. De fato, a auto-estima (a experiência clínica
todo dia) alimenta o impulso vital e o próprio
conservação. Quanto mais o indivíduo está cons-
>rio valor, mais forte é a sua relação com a vida, e
br isso que os filhos sem pais, lesados na própria
abeçam as estatísticas dos suicídios: setenta e
Ishtain, 1993)53.
^ regra, suportar o confronto do plano de
imo sem um pai que os apresente à

margens menores, as estatísticas das tentativas


p Suicídio em condições sociais, raciais e de renda
¡yn normalmente possui um contato mínimo, ou
A inaceitável ausência do pal
80

Os conceitos-base da ética, indispensáveis para desenvob


ver a vontade, são completamente desativados pela ideología
do "pai eliminável". Assim, o "dever" já é considerado quMI
um palavrão, como tudo o que está vagamente ligado ao
paterno. O "direito", por sua vez, perde seu lado incômodo,
daquilo que devemos aos outros, para se tornar exclusivamente
aquisitivo: aquilo que os outros nos devem.
Esse é o cenário psicológico, simbólico e moral indt
pela expulsão do pai na consciência coletiva dominante, hßfo
é de espantar. De acordo com a psicanálise clássica, no pal’
quismo coletivo infantil, o direito, assim como a "verdadeba
racionalidade, que mostra uma firmeza sempre igual e forjada
pelo amor" (Mendel, 1968), são atributos ligados à imagem
simbólica e também física do pai, ao passo que a simbiose ^fu­
sionai", necessariamente anterior a cada regra e cada direito,
permite o início da vida na relação com a mãe. Como ainda
observa Mendel, isso faz com que, para a psique, "onipotênda
e arbítrio [...] são sempre vividos [...] inconscientemente,como
que provocados pela mãe má"54, figura interior da criança que
consegue se impor na sua psique quando não existe mais uma
figura paterna capaz de contê-la.
É bom lembrar que essa "mãe má" interior pode não tal
nada a ver com a mãe da realidade, que muitas vezes é ótima
e movida pelas melhores intenções. A "bruxa" malvada, como
os contos infantis também ilustram, aparece quando a figmã
paterna falta ou é marginalizada, privada de vontade autônoma
e poder de influir na realidade. Essa situação toma ativai tal
psique da criança a figura da "mãe má", com os atributosq^È
descrevemos e as conseqüências que veremos55.

54) "Encarnação da imago da agressividade arcaica da criança, total e indifaandbta


e tanto mais angustiante pelo risco que traz de destruição do objeto e do
(Mendel, op.cit.).
55) Na psicologia junguiana, essas mesmas valências perigosas que a pefaMl
atribui ao materno negativo, onipotência e arbítrio, são tidas como canKMtaU-^
do arquétipo da Grande Mãe, complexo de forças psíquicas presentesdssdaMH^B*
no inconsciente coletivo, quando este não foi contido e balanceado pOf 108*99*
masculino-paterna igualmente forte. "O princípio materno não é O caos
pode-se chamar de caos o estado que se desenvolve pela perda do pai, quoãBtaftj*
perda de uma perspectiva que organize o desenvolvimento" (Fiera, 199*)*

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\ patologia da sociedade sem pai
81

É a torça psicológica representada, por exemplo, pela


deusa das origens nos mitos de criação babilónicos, Tiamat (cf.
Risé, 1997b). Essa deusa não hesita em desencadear o caos com
uma guerra entre os deuses e contra seu próprio filho Marduk,
contanto que ela não renuncie ao próprio poder sem regras.
0 filho e a filha distanciados do pai são, assim, divididos
pela força arquetípica do pai, que organiza a matéria e o corpo,
impondo-lhes uma perspectiva de desenvolvimento, uma dire­
ção, realizada também mediante a aprendizagem do sacrifício
e da autodisciplina. Destituídos dessa força, indispensável ao
crescimento da vida, os filhos se vingam, em nível inconsciente,
projetando a imagem da "mãe negativa" na sociedade (vista como
prepotente e malvada), que provocou a separação deles do pai.

As vinganças contra a sociedade sem pais

Um exemplo interessante dessa projeção da própria capa­


cidade destrutiva onipotente na sociedade pode ser encontrado
no filme Marcha triunfal, do diretor italiano Marco Bellocchio.
Nele, um recruta inteligente é salvo do passado de depressão
e non-sense do serviço militar graças à intervenção pouco or­
todoxa do comandante do quartel, o qual, para encorajá-lo a
tomar uma posição adulta, obriga-o a duelar com ele. Tendo
reencontrado a auto-estima e a capacidade de influir no am­
biente, 0 soldado confessa à mulher do oficial que encontrou
) capitão "um pai". Bellocchio, porém, queria fazer um
"antimilitar", como evidencia ao apresentar o roteiro, e
ta: "Diz-se que, se não existe disciplina, o exército não
subsistir, morre. Pois bem, que morra!" Foi esse o seu
ao gravar o filme. De fato, também essa figura de pai
ifir, ainda nova, não quer filhos) é levada a naufragar
Utegia da vida cotidiana e, por fim, a ser morta por um

ÍD Sempre, na neurose individual ou coletiva, quem


r|e comporta inconscientemente como uma criança
'¿fíá. projeta essas características nas figuras da
acercam. Portanto, essa sociedade, justamente

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A inaceitável
82

por ser permissiva e desvalorizar o significado cons


experiência da perda (e da autoridade paterna que
seu saber), é vivida pelo inconsciente coletivo com
malvado" que quer punir, explorar e apoderar-se <
Também daqui decorrem as explosões periódicas
patológica, cuja expressão mais evidente hojeéotfll
O cenário psicologicamente inseguro produa
modelo cultural que aboliu o sentimento da figM
faz com que o eu individual, a consciência de cnj
com pavor cada provação da vida, diante da qual
totalmente carente e inadequada. O indivíduo,»
inconsciente, percebe com clareza que evitar as JH
afastar as perdas, como a sociedade sem pais põfl
ele fizesse, tomou-o frágil, inseguro e cheio depm||
não é capaz de satisfazer ou de manter. Isso o HWHÉ
posição de mal-estar e neurose, cujas característion
entender melhor aqui. í
Os traços principais desse mal-estar psíqutofl
vê a sociedade ocidental "sem pai" já foram bem
muitos estudiosos e operadores da psique, entre08m
Mendel, que se expressa a respeito com grande rúW

A regressão da personalidade a níveis infantis 4

Segundo Mendel (intérprete eficaz do filão ctetíj


que vai de Freud a Lacan), jl
ij|
o homem, como nós conhecemos, não pode deixara
como "filho do pai" antes de enfrentar esse paÍM
tificar-se com ele, assumir sua herança e segutltM
vir-a-ser humano jamais completado [..Se falt&qfl
agressivo, mas temperado pelo amor, não havsíM
não ser a violência cega, o suicídio individuai^wB
psicose. (Mendel, 1968)

A esse propósito, já fornecemos algpv&tMH


manifestações suicidas. Mas, no Oddenü>

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A patologia da sociedade sem pai
83

manifesta a queda da vitalidade do ser humano. Demonstram-


no, em nível profundo, os materiais do inconsciente: sonhos,
fantasias, produções criativas. Hoje, essas "produções culturais",
importantíssimas para estabelecer o grau de saúde de uma civili­
zação,são fracas e pouco vitais: pensemos no tédio dos escritores
minimalistas,pulp, nos inconsistentes movimentos literários que
os editores "fabricam". Mas, essa queda de vitalidade é também
objetivamente documentada por uma série de fenômenos sociais
eclínicos. Por exemplo, o contínuo adiamento da idade em que
se deixa a casa dos pais, a perda da relação com os sentimentos
easpaixões (substituídas por "modelos" fabricados pela mídia),
a multiplicação de fobias de toda espécie, o próprio aumento da
esterilidade, que é, de certa forma, a somatização do medo de se
reproduzir—a essa altura, quase quarenta por cento dos homens
brancos, no Ocidente, não são mais capazes de fecundar.
Todos esses fenômenos ilustram a progressiva "passivi­
dade" do estilo de vida no Ocidente, resultado da sua gradual
transferência sob a condução do princípio feminino-materno da
satisfação das necessidades, que, na região do "politicamente
incorreto", portanto, da transgressão, marginaliza o princípio
masculino e paterno da ação.
Esse cenário psicológico, infantil, passivo, de pouca iniciati­
va e grande dependência, é justamente o resultado da demolição
da função paterna, cuja tarefa era exatamente levar os filhos, por
meio daquele trabalho de organização e remate das energias mui­
tas vezes descrito, ao plano mais acabado do desenvolvimento
psicológico, capaz de uma relação criativa com o mundo exterior
e característico da personalidade propriamente adulta56.

A psique adulta, o pai e o dom

O pai personifica e promove na psique dos filhos a situa­


ção psicológica adulta. Não apenas enquanto testemunha
da ferida necessária, como vimos, mas também enquanto
representante do dom transpessoal, sem vantagem egoísta,

L 56) Fase que Fieud chama de "genital".

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A inaceitável
84

que permite o desenvolvimento da existência e das


fato, num plano mais profundo, ferida e dom estãoMI
velmente ligados entre si. Como Cristo demonstra,4
ferido que pode doar. O dom provém da Cruz).
A figura paterna testemunha o dom seja dando*!
o sêmen, seja dando a própria vida diária de tra
para a existência da família e da prole. É através dtl
portamento ativo, de doação de si, que o pai c
ao desenvolvimento psicológico pleno. É uma
afetiva e também espiritual que permite ao sujeftMÍ
penetrar e, assim, acolher plenamente o outro. P
adulto, esse encontro tem a finalidade de dar pr 9
à vida, além e depois da do pai, que, de alguma
sagra a essa continuação e renovação.
Do ponto de vista religioso, o arcebispo de MOta
Tettamanzi, descreve a plena realização da psique htUMI

a possibilidade concreta de viver como patOM,


aberto ao tu, na relação com os outros. Mais
reiacionai idade é um dado essencial e estrutural d*
soa, que se define justamente como estar coiñ OS
os outros. Portanto, a comunhão e a doação são
exigencias fundamentais do homem. (TettamaiuC

Todavia, no desenvolvimento da psique hum


a este estágio de pleno desenvolvimento psi
é fortemente favorecido pela presença do pai dm
como vimos, tanto como figura pessoal, quanto
paterno, cuja importância seja reconhecida
Quando o pai é "removido", como acontece
licamente na sociedade ocidental da pós-
volvimento completo da personalidade só se atingecofl
episodicamente, e o indivíduo jamais consegue sed$
situações psicológicas anteriores,

as atuais manifestações neotênicas (de renovação da espéde&OÈjl


décadas no Ocidente, e a ausência da figura paterna (<£, p

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A patologia da sociedade sem pai 85

Trata-se daqueles estados psicológicos que a psicanálise


clássica faz coincidir com a situação chamada de "perversão",
por ainda estar dirigida à satisfação de pulsões ligadas à busca do
prazer da primeira infância e incapaz de uma relação autêntica
e de doação de si ao outro. O primeiro estágio de pulsão que se
apodera do indivíduo no decorrer da vida é, como se sabe, o
"oral", em que a pessoa vive a relação com o mundo por meio
da sua ingestão ou incorporação, para preencher-se, como faz a
criança na fase da sucção e da amamentação.

A perversão "devoradora" na sociedade sem pai

Na "fase oral", o mundo se torna conhecido sendo comido


e usufruído para obedecer ao princípio do prazer, vivido na
sua modalidade "devorante". Em trabalhos anteriores, insisti
em analogias até evidentes demais entre a atual "sociedade
de consumo", que trata o indivíduo sobretudo como "con­
sumidor", que se satisfaz empanturrando-se de produtos e
deliciando-se com bens "fabricados", e a atividade psicológica
do arquétipo (já encontrado no texto) da Grande MãesS em seu
aspecto devorante, que tende, justamente, a manter o indiví­
duo numa posição "oral", impedindo-o de evoluir até os mais
desenvolvidos níveis da consciência (cf. Risé, 1991; Idem, 1999).
Conserva-se o poder da Grande Mãe mantendo o indivíduo na
dimensão infantil, da imediatez, e poupando a ele a experiência
fortificante da privação.
Um dos efeitos da liquidação da imago paterna, pessoal
e coletiva é, portanto, fazer-nos regredir ao estágio oral, da
primeiríssima infância, com as suas características já conhe­
cidas. Por exemplo, a incapacidade de suportar a tensão da
espera ou da mediação (vive-se entre imediatez e onipotência,
ambas características infantis); a manifestação ostensiva do
sentimento, que é logo espetacularizado e se toma superficial;

58) No seu aspecto negativo, trata-se de uma força operante na psique profunda, desde
sempre representada nas imagens do inconsciente coletivo (mitos, lendas, produções
criativas), pronta para satisfazer rapidamente as necessidades do sujeito, enfraquecendo
assim sua capacidade de resistência, para poder possuí-lo mais completamente.
86

a impossibilidade de introsp
vertido" tende a ser conside
desdém exatamente porque, por instinto, se esquiva
riorização infantil dominante).
A oralidade desse modelo social manifesta-at
tendência de o indivíduo tropeçar em comport
mente devorantes, em que as dificuldades psico
provocadas por nâo saber lidar com a tensão (da
privação) são "compensadas" pela assunção-in
tâncias: alimentos, drogas e álcool.
Os níveis de obesidade, no Ocidente do pai
(e eliminado), são notadamente altíssimos. Só na M
sob esse aspecto não lidera as estatísticas, trata-M
milhões de pessoas, igual a nove por cento da
ao passo que as pessoas acima do peso são outroa
milhões: trinta e seis por cento da população i
demais. Também entre as crianças, os pré-ado
adolescentes, o nível de obesidade é preocupante *
contínua ascensão.
A relação entre esses comportamentos orais»
rindo alimentos ou substâncias, procuram em vão
um vazio mais profundo, e a ausência do pai fica
por dados eloqüentes. Nos eua, trinta e cinco por 01
crianças sem pai usaram drogas, contra dezoitodot
tinham o pai na família (cf. Hewlett, s.d.). Quanto aoft
adolescentes que crescem em casas sem pai têm
por cento a mais de probabilidade de fumar,
aqueles em cuja casa o pai está presente (Stanton ft
Entretanto, a regressão à fase oral não é a única
revolta contra o pai abriu o caminho.

A perversão sádica na sociedade sem pai

temporánea pelos conflitos inconscientes da atafM


pressos por meio da revolta contra o pai, seja,8ét^B
caracterizada pelo entretenimento, avaieza»agpM^H

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comportamentos e fantasias obsessivas ’. I dilu il di/er mtvsm-
o mal-estar psíquico prevalrnlr, dada a evideiu ia im linivedo
clima de "oralidade", que lambem vimos que varai teri/a a < ui
tura ocidental. No entanto, inclusive a pai lir dos resultados d.i
experiência clínica, nao ba díi\ idas sobro a d ilusão dessa outra
posição psicológica, identificada precisamente pela psu anãlm*
e acompanhada comumenle por esses sintomas. Prova disso
ca multiplicação das neuroses obsessivas, < om seu contorno
de manifestações e temores íobicos e as infinitas manifesta­
ções de sadismo, dirigido ao proprio sujeito (masoquismo) ou
aos outros. Notam-se lambem travos lorlcmcnte sadivos nos
comportamentos de expulsão dos pais da família e da socie­
dade, assim como nos comportamentos (que chegam a nneis
impensáveis de crueldade) de \ n »leiu ia < i »otra as crianças e a>
mulheres.
()s noticiários (emb< >ra muitas \ e/cs de modo nu oiis< ientei
já ilustram com muita Irequem ia < is 11.h,» >s s.idicosda sociedade
do pensamento único anhpatctno
Por exemplo, enquanto es» ha o estas linhas, o ( urnenu/õ/j
Sera de 7.8.2002 noticia a entrada em alindado de um banco
de esperma on-line, dedicado espoe ili<.miente as lésbicas que
desejam ter um filho.

A "agência", que é 1 humada do www.mannotiiii hidrd mm, ou


seja, "homem não incluído", j.i tune tona na ( aa Bretanha v, se­
gundeas intenções dos fundadores, projeta logo se».lesem olver
em muitas outras partes do mundo. E permitido aos clientes in­
dicar as próprias preferências sobre grupo étnico, cor dos olhos,
altura e peso do doador (que permanecerá anônimo).

Inseminação artificial, controle das características do nasci­


turo através das do pai on-line, controle artificial num processo
natural, como o do nascimento, apropriação final do nascituro

59) São todas características que, para a psicanálise clássica, detinem o 'estado
U*IM, posterior ao "oral" acima descrito e que, por sua vez, deve ser abandonado
ptn chegar à "posição genital".

k ^'ôitGlizGdo com CamScGnner


88 \ in.»• • il i < | ”i « ii. . । h.

por parte de um casal que o priva da ligiira paterna >„n, t<»l.p,


nianileslaçõescaracteríslií asdo mundoonipolenic, hipen. »nh<>
lador e afetivamente sádico da neurose obsessiva I :m.i liiriiu
patológica oprimida por um sentimento da natiiio/.t (r ,k hb.i
dela, de Deus) na qual não podemos confiar, porque i.ihon.i
experiência da conliança no pai, bom guardiao e < ii.xlor .uno
roso. Por outro lado, no processo de dissolução d.» l.nnili.i,
essa falta foi frequentemente acompanhada pela aiisen» 1.1 <l.i
calorosa afetividade da mãe "boa”.
O sádico-obsessivo não confia na natureza, por Imier
que ela ponha em risco o próprio poder, que desejaria fosse
absoluto. "A natureza é má" — dizia o marquês de Sade a<»
imaginar suas torturas —, "por isso devemos ser piore*, qm*
ela". A sociedade sem pai cerlamente conseguiu ser mais "iná"
do que a natureza.
Mais "má" ainda do que a natureza foi a soúed.ule «*m
outro caso recente, sempre inglês, de duas mulheres, também
lésbicas, deficientes auditivas, que queriam ser fecundadas
para terem um filho que, igual a elas, também não ouvisse. A
perversão sádica, característica da atual sociedade ocidental
destituída do pai, não se contenta em exercer-se entre quem já
compartilha dela, mas quer permear agressivamenle a so< ie-
dade inteira, arrastando cruelmente outros indivíduos (nesse
caso, uma criança ainda não concebida) no próprio drama.

Hiperconformismo e agressividade sádica

Ligada ao lado sádico da sociedade sem pai, faz sempre


parte da neurose obsessiva a sua tendência, no plano coletivo,
de divergir de modo esquizofrênico entre hiperconformismo
(submissão passivo-masoquista) e rebelião terrorista, com
explosões de violência sádicas. Por exemplo, a relativa passi­
vidade, no campo dos comentários e das iniciativas em relação
a episódios como os supracitados, é, na realidade, sintoma de
submissão conformista ao modelo dominante.
Vivemos numa sociedade perversa que multiplica 0 mal-
estar? Pois bem, aceitemos isso sem criar problemas. Por enquanto,

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A patologia da sociedade sem pai
89

essa parece ser a reação da maioria, no seu componente passivo-


conformista.
Por outro lado, nos dias atuais, já aconteceu algumas vezes
de um indivíduo entrar numa escola ou ou tro local públ ico, e, sem
mais nem menos, matar quantas pessoas podia. E a reação rebelde-
sádica a uma situação vivida como sufocante e sem sentido.
Também a agressividade sádica do terrorismo está ligada à
ausência da figura paterna e à sua relação com o Direito, como
o noticiário ilustra com clareza até excessiva. Prova disso, por
exemplo, são as fotos (ilustrativas do arquétipo da Grande Mãe)
das mães dos filhos camicases mostrando orgulhosamente as
fotos de seus filhos homicidas múltiplos, exigindo vinganças
posteriores. Sob esse prisma, a presença masculina do Direito
estatal e o respeito pela pessoa inocente, morta e envolvida no
atentado casual, está totalmente ausente.
Esse quadro confirma, mais uma vez, a análise de Mendel:
"Se não sobrevier uma nova regulamentação dessa situação
primária, o indivíduo corre o risco de não ter outra escolha a
não ser entre submissão total e total agressividade".
A terceira possibilidade, ou seja, a possibilidade de uma
oposição construtiva, foi eliminada, assim como foi suprimida
uma das principais etapas do desenvolvimento da personali­
dade: a fase em que o jovem depara com a proibição, com as
regras paternas. E ali que a nova personalidade treina para o
confronto adulto.
Trata-se de uma experiência que abre duas saídas possí­
veis para a pessoa. Ou ela assume a regra paterna, por meio
de uma reelaboração que, àquela altura, não é mais adequação
conformista e passiva, mas integração individual de um prin­
cípio superpessoal que foi apresentado pelo pai. Ou rejeita a
norma proposta pelo pai, mas numa opção bem diferente do
fatalismo casual desesperado e sádico niilista, mas que tem
em si a força para se tornar trabalho tenaz, para construir, com
estilo diferente, um mundo diferente.
No entanto, a sociedade sem pais aboliu o aprendizado,
que acontece justamente na relação com o pai, sobre como
conter e transformar a própria agressividade em função de um
projeto, de uma visão do mundo.

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A in<h ♦ *iLi\ d .ni m <io p, q
90

A agressividade não-transíormada torna-se, então, uma


espécie de mina flutuante, que continua a vagar, como vimos,
entre a posição sádica e a masoquista.
Quando prevalece a primeira, o sadismo, com as suas
frequentes conotações paranóicas, é desviado para um "bode
expiatório": indivíduos infelizes ou mesmo um grupo íuma
raça, um partido político, uma cultura).
Por outro lado, quando é a conotação masoquista que pre­
valece, temos o desenvolvimento de uma personalidade essen­
cialmente passiva, e o masoquismo se exprime como tendência
à subalternidade aerifica aos outros. Ela pode manifestar-se
como passividade ante os outros indivíduos, com os quais se
instaura uma relação de forte dependência. Essa é, por exemplo,
a situação do homem completamente dependente da mulher
que, abandonado por ela, a assassina, passando assim da depen­
dência masoquista para o outro pólo, o da agressividade sádica.
Mas a passividade dependente, de inspiração masoquista,pode
também manifestar-se diante de formas sociais fortemente tota­
lizantes, desde as ditaduras tradicionais ao atual "pensamento
único" do hedonismo consumista globar1".
Os dados fornecidos pelas pesquisas e pelos censos sobre
distúrbios psicológicos dos filhos que crescem com pais ausen­
tes confirmam com precisão essas análises.
Pelo lado das manifestações sádico-agressivas, os filhos
que crescem sem pai possuem mais do dobro de possibilida­
des de se envolverem em episódios de agressividade criminal.
Segundo dados fornecidos pelo Departamento de Justiça norte-
americano, setenta e dois por cento dos adolescentes homici­
das, sessenta por cento dos estupradores e setenta por cento
dos detentos com longas penas a cumprir cresceram em casas
sem pai6'. Entre os jovens que apresentam comportamentos

6o) De acordo com Mendel, mas não somente ele, entre outras coisis, e isso que toma
"facilmente" compreensível a tendência — observável na multidão em casos de tensão
excepcional—deconfiaro poderá personal idades paranoicas. Simultaneamente a saudade
do pai, a alma coletiva exprime assim a própria impossibilidade temporária de assumir
o próprio desejo, e escolhe uma posição que equivale à aIiança contra o pai com a unago
da mãe "má" (representada pelo ditador caótico e destrutivo; ct. Mendel, op. cit).
61) Fontes: Wiscoitsin Deptirtinciit of'Healthiiiid SocialServices, 1994; US DeptrtMKi
of Justice data, 1988.

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A inaceitável ausencia dopai
90

A agressividade nào-transformada torna-se, então, uma


espécie de mina flutuante, que continua a vagar, como vimos,
entre a posição sádica e a masoquista.
Quando prevalece a primeira, o sadismo, com as suas
frequentes conotações paranóicas, é desviado para um "bode
expiatório": indivíduos infelizes ou mesmo um grupo (uma
raça, um partido político, uma cultura).
Por outro lado, quando é a conotação masoquista que pre­
valece, temos o desenvolvimento de uma personalidade essen­
cialmente passiva, e o masoquismo se exprime como tendência
à subalternidade aerifica aos outros. Ela pode manifestar-se
como passividade ante os outros indivíduos, com os quais se
instaura uma relação de forte dependência. Essa é, por exemplo,
a situação do homem completamente dependente da mulher
que, abandonado por ela, a assassina, passando assim da depen­
dência masoquista para o outro pólo, o da agressividade sádica.
Mas a passividade dependente, de inspiração masoquista, pode
também manifestar-se diante de formas sociais fortemente tota­
lizantes, desde as ditaduras tradicionais ao atual "pensamento
único" do hedonismo consumista global6”.
Os dados fornecidos pelas pesquisas e pelos censos sobre
distúrbios psicológicos dos filhos que crescem com pais ausen­
tes confirmam com precisão essas análises.
Pelo lado das manifestações sádico-agressivas, os filhos
que crescem sem pai possuem mais do dobro de possibilida­
des de se envolverem em episódios de agressividade criminal.
Segundo dados fornecidos pelo Departamento de Justiça norte-
americano, setenta e dois por cento dos adolescentes homici­
das, sessenta por cento dos estupradores e setenta por cento
dos detentos com longas penas a cumprir cresceram em casas
sem pai'* 1. Entre os jovens que apresentam comportamentos

I )e íRordo com Mendel, mas não somente ele, entre outras coisas, é isso que toma
ilin<*1 itr" compreensível a tendência — observável na multidão em casos de tensão
rp< lonal de confiar o poderá personalidades paranóicas. Simultaneamente à saudade
•lo p.H, .1 .dina coletiva exprime assim a própria impossibilidade temporária de assumir
o pioprio drsqn, c esc olhe uma posição que equivale à aliança contra o pai com a imago
d.» ni.i«' iji.r (ri-prrsi‘litada pelo ditador caotico c destrutivo; cf. Mendel, op. cit).
I oiiir , IA//.< 1/1/mu / iqHHtmciit (>/ / Iciillh iiiiil Social Services, 1994,’ US Depiirtnient
' f /li I i t/ilhi, | < jíM.

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violentos na escola, a situação familiar o on/c ve/es mai<>r no
caso da ausencia do pai (el. Sheline el iilii, 1904 )•
Também pelo lado da passividade masoquista, <>s tilín>s
sem pai estão envolvidos em episodios de abuso, como vítima-,
quarenta vezes mais do que os lilhos que vivem com o propii”
pai (cf. Wilson & Da I y, 1987). Naturalmente, isso também con­
sequência da ausencia da função de guardião, que estã entre os
papéis característicos do pai, como vimos no capítulo 11. (. ontn
do, reflete também profundamente <1 tendencia de incorrer en1
passividade nas relações com os outros, consequência de uma
baixa auto-estima e de a figura do pai iniciador não os terem
"colocado no seu lugar no mundo".
A ausência do pai como figura normativa fac ilita um
deslize para fora da regra e introduz naquela passividade in­
diferente que consente e precede com mais facilidade o abuso.
Assim, a gravidez nas jovens, antes ou fora do matrimonio,
juntamente com a ausência dos pais, são os indicadores mais
comuns de futuros abusos contra as crianças (cf. Smith cf alii
1980). Sessenta e nove por cento das crianças vítimas de abux
sexuais vêm de casas em que o pai biológico estava ausente (ct.
Gomes-Schwartz el allí., 1988).
No momento em que escrevo estas linhas, os jornais trazem
notícias da enésima jovem vítima deste quadro familiar e social
(Corriere delia Sera, 6.8.2002).

Menina de quinze anos, parisiense, a caminho da prostituição.


Ajovem havia fugido de casa em junho, após ter brigado com
a mãe, separada, e depois foi seduzida por um albanês que a
havia atacado na calçada. A polícia prendeu três homens.

Histórias como essa não são mais notícia. Mesmo porque,


sendo menores confiados às mães, os jornais não podem gritar
k "paimonstro", como queria o estereótipo cultural dominante
pós últimos trinta anos.
Bk

L Digitalizado com CamScanner


\ ni.i. cil.i' « I .ui • In l i > 1«• p ii

A violência suave

I ntrelanlo, diante de tanta \ iolein ia c solrimciilo, nao se


deve omitir (alias, e preciso tentar compreender o sentido disso)
também um aspectoaparcnlemenle paradoxal: a nossa socieda­
de e marcada pela diversão, pt*l.t alegria (procurada, mas nem
sempre encontrada), por uma "geiilile/a" de traços um tanto
sentimentais, que tomou o lugar de lodo sentido trágico. Mes­
mo que essa alegria deixe perceber, em seu bojo, a imposição
da mídia e da publicidade, lempos atras, as cidades italianas
toram atopetadas por uma gigantesca propaganda de uma ja­
queta mostrando a tolo de um jo\ em sorridente, com o
"Quem não ri não esta na moda".
A característica com que a organizaçao social se apresenta
e de qualquer modo a do riso, ou sorriso. Isso e naturalmente
coerente com o tato de que o doloroso e vilaI confronto com a
norma paterna foi abolido, junto com o p.ii, exatamente para
deixar o papel de protagonista ao "princípio do prazer", sobre
o qual a sociedade do consumo se baseia.
O indivíduo da nossa sociedade, desprovido da sofrida
"marca do pai" é, portanto, um tipo aparentemente gentil e
"adaptável": não derrubaria jamais as bancas dos vendilhões do
Templo, como fez Jesus. No entanto, esse* indi\ íduo, considerado
"submisso" e conforme as regras, oculta em si uma enorme agres­
sividade, exatamente porque "no plano do inconsciente, aquela
submissão é \ i\ ida como uma ferida narcisista intolerável"
(Mendel, iqbS). "Jeff" -—diz, lalandodo filho, o pai do "monstro
de Mihvaukee", que havia matado e esquartejado dezenas de
jovens — "estava além da revolta e não tinha convicções sobre
nada" (Dahmer, 1994). Um perfeito relativista.
Na realidade, o sujeito pós-moderno sente ter fugido
diante da provação da vida que teria feito dele um ser adulto:
o confronto com os valores do mundo paterno. E isso o cobre
de vergonha. Com mais frequência ainda, ele percebe que,
incompreensivelmente, não pôde enfrentar esse conflito, essa
provação (a iniciação que desde sempre vimos presente em toda
a sociedade), porque a própria organização social o impediu,
relegando à "carta fora do baralho" a figura paterna e o seu

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\ patologia da sociedade sem pai
93

prestígio. Essa percepção, muitas vezes inconsciente, enche o


indivíduo da modernidade tardia de ódio para com "os outros",
que ele identifica com o mundo que o privou do pai. Esse homem
"doce", soft, como os norte-americanos o denominam, é a pessoa
típica, conhecidíssima das reportagens, até recentes, criada pela
mãe, tida por todos como um ás da cortesia e da retidão, que,
inesperadamente, esquarteja a namorada ou, se for mulher,
arremessa os filhos pela janela.

A neurose tira a liberdade

Seja como for, a personalidade patológica da modernidade


tardia não é uma pessoa livre, mesmo vivendo numa sociedade
aparentemente permissiva. Ela é "coagida", é obrigada pela pró­
pria estrutura psicológica a agir daquela maneira; não pode fazer
diferentemente. A sociedade do "pai eliminável", em suas duas
versões, oral-devorante ou sádica e onipotente, privou, portanto,
da liberdade o indivíduo, por meio do que Mendel chama de "a
revolta contra o pai". O indivíduo da modernidade ocidental é
um "perverso" (enquanto preso a níveis de desenvolvimento
afetivos infantis), aprisionado na sua perversão.
Somente o contato, causai ou profundo, com algo pro­
fundamente diferente da dimensão material que domina a
sociedade sem pais, somente a experiência de um princípio
espiritual salvífico "paterno" pode libertá-lo da coação.
Isso fica demonstrado não apenas pela eficácia da relação
de transferência na psicanálise (que dá espaço e palavras à
imagem do "pai bom", também quando é interpretado por
uma analista mulher), mas também pelas terapias de recupe­
ração mais eficazes nos casos de toxicodependência, como as
aplicadas em certas comunidades terapêuticas ou entre os Al­
coólicos Anônimos. Em cada uma delas é ativa e manifesta uma
orientação espiritual, é deixado aberto o acesso a um princípio
paterno, capaz de proteger, zelar e, enfim, salvar o filho".

62) Sobre a relação entre espiritualidade e Alcoólatras Anónimo-. u. o inteiessante


texto de Kurtz & Ketchani, 1949.
' *• H I ■ I' » • | I , ) ■ í •í ! • ; v4 .r ,
'*'• Mi

Mas, no pontoem que estamos, segundo Mein lrl,(i oposição


a esse estado de coisas é bastante dilícil. A capacidade de reação
do indivíduo foi minada, desenvolvendo ex< essivamente nele
as patologias e enfraquecendo as suas forças sadias. Além disso,
essas pulsóos infantis e perversas sao, de alguma forma, sugeri­
das e organizadas por uma sociedade que eliminou, junto com
a figura paterna, o principal baluarte contra sua proliferação
caótica, que desde sempre ameaçou a existência dos grupos
humanos. Observa Monde! :

Num certo sentido, o homem contemporáneo pode agir sobre


o poder social tão pouco quanto o homem primitivo podia
agir sobre a mãe-natureza onipotente, entidade sobrenatural
que não deixava outro recurso psíquico a não ser a submissão.
(Mendel, op.cit.)'"

A análise da onipotência da industria do divórcio (explicita­


da no capítulo anterior) e do sistema político-social que a pro­
move, fazendo disso uma engrenagem central da sociedade de
consumo, pareceria confirmar por enquanto a tese de Mendel:
o indivíduo pode se opor, mas aparentemente pode fazer bem
pouco para mudar a situação. Assim, é necessário empenhar-se
para fazer frutificar esta nova c dolorosíssima ferida que o nosso
desejo de paternidade nos inflige, e nos tornarmos mais capazes
de ajudar os outros a mudar e a reencontrar a liberdade.

Estratégias de distração: das drogas à pornografía

A "sociedade sem pai", no entanto, desconhece menos do


que parece a agressividade coletiva e caótica sobre a qual se
assentou. De fato, ela procura desviar essa agressividade com
"técnicas não-limitantes", como as chama Mendel: desinibição
erótica e sádica através do cinema e das publicações; álcool e

63) Todavia, é necessário recordar que a natureza primordial é realmente muito


poderosa, mas dificilmente pode ser qualificada como "perversa", uma vez que as
suas manifestações, incluídos os seus aspectos destrutivos, correspondem, a longo
prazo, a um programa vital de criação.

Digitalizado
A patologia da síKÍedado ■ ■«•rn p.n
95

tabaco, com seus efeitos de atordoamento e/ou excitação; tran­


quilizantes, "que possuem o efeito de anestesiar as forças vivas
do indivíduo"; alucinógenos; televisão, que* tendea buscar um
torpor hipnótico; uso do carro, com as relativas satisfações nar­
cisistas fortemente regressivas ou sádicas; "terapia do sono",
proporcionada pelas organizações de férias em grupo; evasões
de todos os tipos. "O sentido de tais técnicas não-limitantes é
fornecer satisfações narcisistas fortemente regressivas (eu =
tudo) e, por este caminho, atenuar a agressividade reativa de
indivíduos", cuja imagem positiva de si foi destruída.
Mesmo com essas distrações, que utilizam a perversão
como sedativo da sensibilidade da consciência ferida, a alma
coletiva contemporânea não consegue resolver realmente o
problema da agressividade, que não aprendeu a transformar,
por causa do frustrado confronto do pai. Essa energia, que se
tomou destrutiva, não pode ligar-se a imagens ideais positiva»,
a projetos de vida. Como, por exemplo, a chegada ã "Terra pro­
metida" ou ao "Reino do Pai", vistos como realizações positivas
do próprio destino, do futuro individual e coletivo que vimos
(no capítulo n) acompanhar a relação com o pai, mediador
terreno para uma dimensão transcendente.
No entanto, o pai, em toda a história da humanidade, é
o lugar afetivo e simbólico em que o homem aprendeu tanto
a respeitar a norma quanto a transformar a agressividade.
Somente o restabelecimento de uma relação significativa com
a figura paterna pode, portanto, subtrair o indivíduo da so­
ciedade ocidental do labirinto perverso em que foi jogado e
restituir-lhe uma confiante orientação para a vida.
VI. REMOÇÃO E USO DA MORTE
NA SOCIEDADE DO "PAI ELIMINATE!?'

O pai é aquele que ensina o filho a suportar as feridas (sus­


tentamos isso desde o início deste trabalho), organizando as
energias dele num projeto dotado de sentido, em nome de um
Pai superior. Ele realiza tudo isso — constata, do ponto de xis ta
laico, o grande filósofo da ciência Michel Foucault —, separan­
do os filhos da simbiose com a mãe e, portanto, protegendo-os
"quando, pronunciando a Lei, liga numa experiência mais ampla
o espaço, a regra e a linguagem" (Foucault, 1996; Ideiii, 1962).
Assim, o seu desaparecimento torna difícil, se não impos­
sível, suportar as feridas produzidas pelas perdas que acompa­
nham a transformação e o desenvolvimento humano.
Por exemplo, ninguém aceita não ser mais "jovem". A perda
da adolescência se tornou um luto insuportável, inclusive para
os pais, pateticamente dedicados em ser os "amigos", coetâneos
simulados, de seus filhos (cf. Calicetti & Mozzi, 1998). Na ver­
dade, seria necessário reconhecer o sentido dessas perdas a fim
de transformá-las em força para projetos, impulso de individua­
lização, realização de si. Entretanto, tudo isso é terrivelmente
difícil, a ponto de essas perdas não serem sequer aceitas.

A morte: perda e transformação

Entre todas as perdas, a mais inaceitável pela sociedade que


"removeu" o pai e seu sentido é, naturalmente, a morte. Que, por

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A inaceitável ausencia dopai
98

outro lado, é também a mais significativa, a própria imagem da


perda, aquela que dá significado a todas as outras. De fato, é jus­
tamente a morte o símbolo máximo da transformação, a "passa­
gem" que, em todas as culturas, é considerada a mais rica, aqueta
em que se resume o sentido da vida passada e, para quemtemâ|
o da futura. "Rebelar-se contra o próprio fim", afirma o psicólogo
Cari G. Jung, equivale a "não querer viver, já que não querer
e não querer morrer é a mesma coisa" Jung, 1978).
Entretanto, tudo isso não significa mais nada no Oddl
¿i primeira cultura que se empenhou com todas as suaáfSf
em retirar todo o significado da experiência da morte,
enquanto perda das coisas e passagem para uma dim
qual as coisas não mais existem. No Ocidente, a morte I
mais nem transformação, nem passagem, mas apenas ||
experiência agora destituída de sentido, numa soáedta
aquisições que quer somente obter, acrescentar, g
O rosto da morte não é mais sagrado: tomou-se um
ma horrível, que persegue um homem cujo desenvo
pleno se dá no interior do "mundo das coisas", da
que o processo de secularização, de separação da
religiosa, o aprisionou inexoravelmente. Portanto, um
que não consegue ver o aspecto de renovação rep
outra parte do ciclo vital: a doença, a velhice e, depois, aq
nosso mundo, o mundo da sociedade ocidental, removi
a morte, destruidora inquietante de devotos cons
Fala-se ainda da morte, mas sob forma de delírio
de vitória sobre ela. O homem da pós-modemidade
indivíduo cujo desenvolvimento patológico descre
capítulo anterior e que, como afirmou João Paulo n,1
o direito do Criador de interferir no mistério da vida
Quer decidir, mediante manipulações genéticas, a vi
mem e determinar o limite da morte" (2002, p. 2).

0 cientista e a morte: a visão de Luc Montagnier

Esse homem quer vencer a morte. Uma vitória, logicamente,


não-espiritual, mas secular, "coisal", "técnico-científica", como
convém à ideologia dominante.

Digitalizado com úamScarmer


Remoção c uso cia morte na sociedade do "pai-eliminável"
99

O diretor do Instituto Pasteur e co-descobridor do vírus


da Aids, Luc Montagnier, por exemplo, declarou que

a imortalidade é uma hipótese que deve ser levada em conside­


ração [...], a morte do indivíduo nãoé, como frequentemente se
pensa, algo que esteja inscrito na própria vida [...], o indivíduo
morre porque existe a reprodução sexuada. Para adaptar-se
e garantir as mudanças do indivíduo, a reprodução sexuada
é, com efeito, o melhor sistema: alguns indivíduos morrem e
outros "novos" tomam o lugar deles, porque constituem uma
variação genética que facilita a adaptação. Mas, se o ambiente
não muda, não há mais razão alguma de que as coisas devam
acontecer dessa forma. Portanto, é lícito imaginar indivíduos
imortais, que naturalmente não se reproduzem mais com a
reprodução sexuada. (1999)

Num cenário como esse que Montagnier descreve, a visão


científica e secularizada revela completamente a sua face forte­
mente conservadora. A palavra-chave é: Mas, se 0 ambiente não
muda. É o sonho de Herodes: a eliminação da criança concebida,
com todas as infinitas variáveis de renovação que ela traz ao
mundo. É melhor suprimi-la, talvez em favor de uma criança
meticulosamente "fabricada" em laboratório, com base nas
exigências do sistema de produção.

O estilo do biopoder

Como observou um dos maiores pensadores do nosso


tempo, Michel Foucault, "é sobre a vida e ao longo de todo o
seu desenvolvimento que o poder [secularizado] estabelece a
sua presa" (1976). É simbolicamente significativo que, quando
o paciente está para morrer, o médico se ausenta, não fica assis­
tindo à sua derrota, mais cedo ou mais tarde inevitável. Retorna
depois, na qualidade de "fiscal da saúde", para constatar o
óbito e suas causas, com objetivos demográficos e estatísticos.
A modernidade secularizada inaugurou, assim, aquela a que
Foucault chama de era do biopoder. "O antigo poder da morte

Díçjí+gIízgcIo com ÚGmScGnner


A in,i< rit.ivrl Jiisóncia do pat
100

c agora cuidadosamente encoberto pela administração dos


corpos e pela gestão calculista da vida".
Talvez seja justamente por ter removido a morte que a
modernidade organizou massacres, genocídios e extermínios
em numero jamais igualado na história humana precedente.
Sempre justificados, por outro lado, em nome da vida: não
se fazem mais guerras "contra o inimigo", mas "em nome da
existência de todos. Populações inteiras são incitadas a se ma­
tarem mutuamente em nome da própria necessidade de viver.
Os massacres tornaram-se vitais" (Ibideiii).
A força da morte, removida das consciências e da cultura
dominante, como a da agressividade negada (que vimos no
capítulo v), não é, porém, difícil de explicar.

A morte negada torna-se "complexo autônomo"

De fa to, quando aspectos da existência (nesse caso, a morte)


são "deslocados" do consciente para o inconsciente, tomamo-los
primitivos, arcaicos e, portanto, fortíssimos — fortalecidos por
todas as terríveis forças do inconsciente e do remorso coletivos.
Aquilo que antes era um temor pessoal, após a remoção fica
contaminadoe reforçado por todoo terror coletivo que concerniu
à morte no decorrer dos séculos.
Aliãs, assim acontece com cada conteúdo psicológico, re­
presentado pelas grandes formas simbólicas (como justamente
a morte), quando é rejeitado pela consciência. Removido para
o inconsciente, corre-se o risco de a personalidade inteira sub­
mergir dele, justamente pelo fato de o consciente não mais o
controlar.
A morte, de encontro decisivo para a vida, tomou-se, no Oci­
dente, um "complexo autônomo" que, a partir do inconsciente,
domina o homem da pós-modernidade. As vezes, para fazê-lo
'• i'. <■)• no terror e convencê-lo a congelar-se por um preço muito
. ho para esperar acordar para a vida daqui a algumas centenas
de anos. ()ti,as vezes, para dominá-lo como fantasma destruidor,
uh di.uite o < .ir.ítei sádico do qual descrevemos o preocupante
• 1« sem oh imenlo na época do "pai eliminável" (capítulo v).

D¡9Í+gIÍ2gc1o com CamScanner


Ja soberania terrena por outra, muito mais poderosa”(Ibideiii,p.
122) No entanto, com o advento da sociedade secularizada edo
seu biopoder, pelo qual "o homem vive como se Deus não existis­
se e chega a colocar a si mesmo no lugar de Deus" (João PauloII,
cit), "a morte [... ] se torna o ponto mais secreto da existência,
o mais distante do poder público" (Foucauld, Ibidem).
De fato, na visão secularizada, a morte é aquilo que per­
manece irredutivelmentc "outro". Se, por meio de um mons­
truoso processo de reificação e de anulação de seus aspectos
humanos e espirituais, a vida pode aparentemente ser reduzida
a "coisa", na morte permanece o reflexo de um "outro mun­
do", uma irredutível conotação de "passagem", impossível de
fazer desaparecer. Era, então, necessário remover a morte das
consciências, assim como fora necessário eliminar o pai, que
iniciou a perda, e, por conseguinte, a morte em si.
Eliminada a morte e o respeito por seus ritos da consciência
humana, foi mais fácil para a sociedade do biopoder dedicar-se
a administração dos corpos, cujo universo secularizado reduzo
homem à "gestão calculista da vida", que é a verdadeira paixão
de um poder materialista. Os corpos são adaptados ao aparato
de produção (seja como produtores, seja como consumidores),
e os fenômenos de população, adaptados aos processos eco­
nômicos. E é aqui que o biopoder dominante revela sua face
cruel. Dedicando-se à administração acurada da vida que a
visão secularizada lhe concedeu, ele, no entanto, não recusa
restringir ¿i vida, ou até mesmo destruí-la, quando ela não se
encaixa em seus planos de produção.

0 controle sobre a vida

N'is< cm, assim, os programas de controle de natalidade,


‘*ni g< r,il destinados a grupos sociais ou étnicos cuja difusão o
poderse» ularizado mio quer. ( ontrola-se sua reprodução para
o|j<- nao '(M nprni" espaços vitais ou de poder que não lhes
j"' d»atinados. De qualquer forma, as pessoas das categorias
j‘H,ll,|(,,lfes poem também a disposição técnicas e programas
ontmlc natalidade, de modo que possam se dedicar

OigitGlizado com ÚGmScGnher


Kenv\ao e Um' da moi (c na m\ icdade Jo pai Jimiirnd
103

mais à acumulação da rique/a, do sucesso e dos prazeres do


que à reprodução aleli\ ámenle "custosa l Objetivos todos que
são considerados mais taceis de serem atingidlos pek' casal em
sentidlo restrito dk> que o in\ estímenlo dk' recursos tinanceiros,
tempd> e energia em lazer d' criar Iilhos.
I sempre nesse mesmo quadlro que nasce, sobretudo, a
legalizaçãd> dk> aborto. I >e talo, biopoder prevê. como diz bou-
caull.a possibilidade de "dar a vida -- conlrolandocuidadosa-
mente suas modalidades — ou despachar para a morte”.

Técnicas de despachar para a morte. O aborto

No Ocidente da pos-modernidade, matar a criança con­


cebida torna-se lícito, autorizado"’.
Atualmente, somos o oposto do quadro descrito na Rc-
licniptoris Custos. dd> qual talamos no capítulo u. Ninguém tutela
mais a criança, aquela que é destinada a mudar d> mundo. A
sociedade secularizada, d1» mundo que quebrou as pontes com
Deus, não defende a criança do sadismo pedõfobo de Hero-
des, que quer matá-la para manter d> poder. Nesse ínterim, a
separação do sagrado desvencilhou-se dos Magos, que sabiam
ler os sinais do céu, que sabiam interpretar a vontade de Deus
pelos sinais da natureza, e desprezou e enxotou o pai, losé, d'
custos"', que protegia a criança por conta dd' Pai. Na sociedade
ddt biopoder, dd> poder que controla a vida d' os seus desenvol­
vimentos dentna dc' parâmetros calculados com precisão, as
crianças podem ser mortas; e esta matança é autorizada até
mesmo pelas leis votadas pelos parlamentos.
As mulheres que pedirem podem suprimir a criança con­
cebida e atd; deixar-se inseminar por um outro, se quiserem,
escolhendi' as características ddi fornecedor do sêmen, a altura,
a cor dos olhos, o qi, para ter um filho d' mais próximo possível
dd)s critérios sugeridos pelo poder através dd) sistema de mídia.

64) Também no Brasil, onde o aborto é legalmente permitido apenas em situações


restritas, ha movimentos em favor de sua ampla legalização. (N.d.E.)
65) Que protege. |N.d. I.|

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A inaceitável ausência dopai
104

As vidas não-funcionais para as lógicas do princípio do prazer


e da produção-consumo, aquelas que absorveriam o precioso
tempo vendido às empresas como trabalho, ou aplicado na
busca de diversões, são silenciosamente apagadas antes que
possam protestar.
Silenciosamente. Por exemplo, falar disso, como estou fa­
zendo aqui, é "de mau gosto", fere o códigos da "civilização das
boas maneiras" (cf. Elias, 1988), que a secularização, durante seu
desenvolvimento, afirmou gradualmente. Estas páginas que
estão lendo são de péssimo gosto, todo este livro é "de péssimo
gosto", e isso será dito e escrito, ou melhor, será deixado passar,
para que seja comentado o mínimo possível. Para que não se
diga que um psicanalista, alguém que transmite urna ciencia
que nada tem de "piedosa" ou "pudica", aliás, alguém que
escolheu singrar pelas águas turvas do sofrimento, da neurose
e da loucura, contou realmente o que existe ali, naquelas águas.
E tenha, assim, revelado que as águas do inconsciente, aquelas
que banham a psique da pessoa que sofre, consumindo-a com
suas lembranças inquietantes, são rubras do sangue daquelas
crianças, que várias vezes retornam e mancham os sonhos das
mães e também os sonhos dos pais — mas ninguém jamais
diz isso —, que consentiram e, com certa freqüência, traindo
a sua natureza e seu papel de doadores de vida, chegando até
mesmo a promover o assassinato. O analista não deve dizer
essas coisas. Aliás, deve dizer o contrário.

A narração psicológica permitida pelo biopoder

O analista, como todos os operadores da psique e os de­


mais profissionais das chamadas "profissões de ajuda", deveria
de preferência explicar que o aborto certamente é doloroso, mas
as vezes é necessário fazê-lo para salvar a harmonia do casal,
ou a própria, ou a conta no banco. Um elemento, este último,
também dotado de grande relevância psicológica e, portanto,
merecedor do cuidado de todos "os ortopedistas da alma" (a
começar pelo analista) a quem o biopoder confia o próprio
cuidado e manutenção. O analista deve aliviar, tranqüilizar,

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Renu\ãoe uso da morte na sociedade do "pai eliminarei"
105

abafar as feridas. Ele é um dos muitos que, mais ou menos


dignamente, ocupam o lugar deixado vago pelo pai. E que
vivem desse trabalho.
De fato, desde que, heróica e paternalmente, Freud in­
ventou sua figura e obra de "testemunha da ferida e da dor",
o analista mudou muito. Desde então, passaram-se cem anos
de pressões e financiamentos, por parte da pedagogia e da psi­
cologia anglo-saxãs utilitaristas, destinadas mais à anestesia do
que ao reconhecimento da dor; ao "agradável", mais do que ao
prazer (com a sua fatal interface do sofrimento); à cortesia do
"politicamente correto"66, mais do que ao sentimento profundo
(com seu respeito tenaz pela verdade); à comédia cinemato­
gráfica burguesa (ilustrada, brilhantemente, por Woody Alien),
mais do que à épica e à tragédia, na qual irrompe a voz de
Deus. Portanto, hoje, o analista deve abster-se de representar
e defender uma figura desacreditada como o pai; e não deve
ter a ousadia de falar de feridas, deturpando uma cultura dos
corpos (e das almas) brilhantes e coloridos como as páginas de
uma revista ilustrada.
O psicanalista deve ocupar o seu lugar de funcionário
psicológico da sociedade de consumo, deve estar a serviço
do poder de administração daquela vida que ele se permitiu
manifestar e permanecer, sem ser (como disse Foucault) "des­
pachada para a morte". O resto não lhe diz respeito.

Despachar para a morte:


outros exemplos dos quais é proibido falar

O "despacho" para a morte, de resto, não acontece somente


por meio do aborto ou das múltiplas tragédias que a indústria
do divórcio organiza. Acontece também, por exemplo, com as
políticas de liberação das drogas, que, num número de anos
não muito distante, permitirão ao biopoder livrar-se daqueles
sujeitos sem condições de participar de seu desenvolvimento

66) Que tem as suas origens e a sua ideologia exatamente na "civilização das boas
maneiras", cuja afirmação é descrita na obra de lílias, citada pouco acima.
A inaceitável ausência dopai
106

e de suas pompas, se não justamente na qualidade de ótimos


consumidores de droga.
Ou então, aquele "despacho para a morte" se realiza tam­
bém por meio das diversas "indústrias do corpo", cuja interven­
ção de manipulação da vida age em duas direções. Por um lado,
muitas vezes prolonga a vida com toda especie de obstinação
terapêutica, boa para a industria farmacêutica e hospitalar, às
vezes para fazer experiencias, outras vezes, simplesmente para
embolsar pensões e o montante dessas intervenções, cuja inuti­
lidade frequentemente jã se sabe. Por outro lado, por exemplo,
mediante uso de remédios e da cirurgia estética, a indústria do
corpo põe em risco repetidas vezes a própria vida e o equilíbrio
psíquico das pessoas. Pessoas que se apressam, inclusive pelo
condicionamento conjunto dos meios de comunicação e de
curandeiros sem escrúpulos, num delírio onipotente deetema
beleza.
Portanto, não se fala da morte, mas neLi se cai, na angústia
e na ignorância. Cai-se ao longo das pistas que a sociedade
secularizada já preparou: sociedade que controla a vida como
instrumento de poder econômico e político, mas não desdenha
de acabar com ela, ou de não deixá-la começar de modo algum,
pelos mesmos fins.
Então, se for necessário que o pai, de inaceitável ausência,
retorne, como foi defendido nestas páginas, não há dúvidas
de que seu retorno chamará a atenção da consciência e das
sociedades exatamente para a morte. Quer dizer, aquele acon­
tecimento do qual o pai é testemunha e iniciador, que permite
a transformação e a reunificação do homem com o todo, para
além do universo parcial e inanimado das coisas, fora do po­
der, no amor.
VIL 0 MUNDO QUE MUDA.
DO "PAI eliminável" AO PAI RESPONSÁVEL

O coronel e senador Oliver North, soldado destemido no


Vietnã e estrategista conselheiro da administração americana ',
declarou tempos atrás, para grande surpresa dos ouvintes:

O maior problema que vejo neste país não é vencer a guerra u mtra
o terrorismo. O verdadeiro problema diz respeito aos homens qui­
nao têm mais responsabilidade sobre os filhos que geraram. '

Idéias como essa, oficialmente ainda na contracorrente,


estão chamando cada vez mais a atenção no Ocidente dos
nossos dias, sobretudo nos países anglo-saxões, onde os danos
provocados pela expulsão do pai foram certamente maiores.
Tanto que algumas escritoras que exerceram um papel impor­
tante na revolução feminista e no pensamento das mulheres,
como as influentes Doris Lessing'"'eSusan Faludi denunciam
a destrutividade do inale bashin^, da humilhação do homem, e
do pai. A intolerância pelos desastres das gerações da ideologia

67) Um agradável retraio seu está em I lillman, 1997.


68) Cl’, também Baskerville, 2002b, p. 14. No artigo, o autor lembra que "também o
Conselho dos Líderes I )emocrá ticos (Democratic I eader>hip < ouikíI, dia ) rwonhvc eu
que o plano contra a pobreza mais eficaz e uma lamilia intacta
69) Declaraçõesleilasaleiradol ivrode I dinburgoem 1CH 2001 ( t mumdiLiriu
(irônico) de Zoli (2001).
70) Cí. I'tiludi, 2000, muito bem d01 umenlado

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108 A inaceitável ausência do paj

da família "eliminável" também é grande na Itália. Sobretudo


entre os jovens’’.
O poder de fogo do divórcio e do aborto, os dois canhões
que, nestes anos, destruíram no Ocidente a figura do pai e a
sua legitimidade, já está fortemente em discussão.
E o casamento se encaminha para conhecer um novo pres­
tígio, inclusive na base de uma ampla documentação científica
e estatística.

Casar-se é melhor

Acontece, em todo o Ocidente, que a proliferação de livros


(que estariam "fora do mercado" até poucos anos atrás) explican­
do que o casamento é a organização mais saudável para o casal
humano, e que esses livros têm grande sucesso e difusão.
Como, por exemplo (cita o The New Zealand Herald, cf.
George, 2002), The Case for Marriage (Por que se casar), da es­
critora Maggie Gallagher, redigido com base numa grande
quantidade de material jornalístico e estatístico. É interessante
relacionar aqui as nove razões, bastante laicas, segundo Galla­
gher, do porquê é melhor se casar.
1. É mais seguro. O casamento diminui o risco de o ho­
mem ou a mulher se tomarem vítimas de violência, inclusive
da violência doméstica.
2. As pessoas casadas vivem mais tempo e têm vidas
mais saudáveis. Isso é evidente na meia-idade: nove entre dez
homens e mulheres vivos e casados até quarenta e oito anos
chegam aos sessenta e cinco, contra seis entre dez homens não-
casados e oito entre dez mulheres.
3. Salva a vida dos filhos. De fato, se os pais são casados
e assim permanecem, os filhos crescem mais saudáveis, pos­
suem vidas mais longas e tendem a permanecer longe dos
problemas.
4. Ganha-se mais e fica-se mais rico. Hoje, as pessoas ten­
dem a imaginar que o casamento é uma fonte de consumo, mas

f : <• r/iph,, d coleta de testemunhos organizada por Mazzi (2001).

Di9itali2üdo com úamScGnner


11ma v«r.l<t I ifera111ra < ienlííií ,i demonstra <|th*z sobretudo para
os homens, o matrimónio é altamente produtivo. I; tão impor­
tante quanto a ed(K açao para fazer aumentar os ganhos. Além
disso, as pessoas casadas administram melhor o dinheiro e
acumulam mais riqueza do < p k • ac jindas que vivem sozinhas.
5. Tornam-se mais fiéis. ()s homens que vivem com com­
panheiras sao quatro vezes mais infiéis do que os maridos,
e as mulheres companheiras traem oito vezes mais que as
esposas.
6. O casamento faz bem a saúde mental. Homens e
mulheres casados são menos depressivos, menos ansiosos e
menos psicologicamente estressados do que os não-casados,
divorciados ou viúvos.
7. Vive-se melhor. No conjunto, quarenta por cento dos
casais casados se declaram "muito felizes com a vida", contra
vinte e cinco por cento dos não-casados ou que vivem juntos.
8. Os filhos gostam mais dos pais. Os filhos adultos de
casamentos intactos mantém contatos mais regulares com seus
pais do que filhos de di vorciados ou de casais que vivem juntos.
E c mais provável que eles mesmos se mantenham casados por
toda a vida.
9. A sexualidade é melhor e mais frequente. Não obstante
as várias promessas dos mercados metropolitanos do sexo, tan­
to os maridos quanto as mulheres afirmam com mais freqüência
do que os não-casados ou os que vivem juntos que têm vidas
sexuais extremamente satisfatórias.
Em todo o Ocidente, apesar dessas manifestas razões a
favor do casamento, sobretudo os jovens são extremamente
cautelosos em contrair matrimônio. Por quê? Por temerem a
facilidade com que esse bem precioso pode ser destruído.

A revolta dos "filhos do divórcio"

Na Austrália, por exemplo, os filhos da revolução do di­


vórcio, iniciada com a legislação divorcista de 1975, têm plena
consciência de que foram prejudicados pela ruptura de suas
fundias de origem, tanto na esfera social quanto na econômica

^lôitaliz&do com CamScanner


e psicológica (como lodos os tipos de levantamentos tém de­
monstrado). Agora esses jovens, que raramente estão dispostos
a viver juntos, e menos ainda a se casarem, começam a revelaras
pesquisas as razões das suas reticencias. Um estudo da Rutgers
University (s.d.) explica que sexo e divórcio são a origem déos
"filhos do divorcio" se precaverem perante o casamento. A dis­
pon ibiIidade sexual das mulheres desconcerta os homens sobre
a estabilidade de uma possível união e, provavelmente, desativa
urna das motivações do casamento: o impulso de realizar nele
uma atividade sexual que pode ser obtida de qualquer forma.
Maso medo maior é o divorcio. Para que se casar se um em
cada dois casamentos acaba em divórcio? Na Australia, como
em qualquer outra parte do Ocidente, os jovens agora pensam
que se divorciar é muito simples. O estudo da Rutgers Univer­
sity confirma o Relatório 2001 sobre o Estado da União (Australia)
no qual oitenta c oito por cento dos jovens entre vinte e vinte
e nove anos acharam "muito alta" a taxa de divorcios no país.
Outro dado ainda mais interessante: quarenta e três por cento
desse grupo, chamados "conservadores românticos", conside­
ram que o governo deveria intervir para modificar a legislação
em sentido mais restritivo.
A imagem recente mais significativa da revolta dos jovens
contra as legislações que tentaram liquidar a família talvez seja
a do milhão de jovens que, em agosto de 2002, acorreram a To­
ronto, ao lado do papa João Paulo 11 e do seu vigoroso protesto
contra as políticas de destruição da família e da vida.
Contudo, aqueles jovens não estavam sozinhos, isolados
pelos seus coetáneos sem crença religiosa ou com outras crenças.
A exigência para restringir os limites das normas, dos dispositi­
vos jurídico-administrativos e das inúmeras práticas sociais que
hoje privam os homens da "responsabilidade pelas crianças que
geraram", para usar as palavras de Olivier North, diz respeito
também aos jovens sem crença religiosa, laicos, libertários. Entre
<'les, muitíssimos julgam necessário livrar sua vida privada do
monopólio normativo dos países divorcistas e abortistas. Essas
pessoas exigem que seja restaurada a liberdade de regularizar
<1 própria vida familiar e afetiva também de modo diferente
doquea ideologia da familia descartável (disposable) solicita.

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() mundo que muda I Jo mi NimiiMX b 1 r r r—p

Resumindo, eles pedem que possam casar-se mediante leis que


garantam a vida da família, e não a destruição dela.
Nesse comportamento dos jovens, não só os australianos,
em relação ao divórcio e ao aborto, vemos a manifestação
de uma regra constante do inconsciente coletivo. Ou seja, a
intervenção espontânea, não-organi/ada, mas presente sin­
crónicamente em grupos e países diferentes, daquele princípio
vital (presente em cada um de nos, de acordo com o psicólogo
analista Cari Gusta v lung) que tende ao restabelecimento do
indivíduo e da comunidad».' e que recupera as orientações
unilaterais, e, portanto, superficiais e destrutivas, do passado.
Por sorte, tanto o indivíduo quanto a comunidade tendem a
se curar dos males, as \ e/es transmitidos pelas gerações ante­
riores: basta deixar agirem livremente os anticorpos, físic<ss e
psíquicos e as detesas ainda i ta is tios organismos.

As leis de covcnunt marria^e

Faz parte dessa reaçao espontânea da \ ida o fermento pre­


sente no campo ca tólk o, mas nao apenas nele, para uma legislação
matrimonial e familiar diferenciada. (.) pedido, dirigido cada vez
com maior freqüência aos países ocidentais, e que se deixem os
esposos livres, na hora do casamento, para escolher os critérios aos
quais recorrer em sua \ ida conjugal e familiar. Quem preferir as
normas divorcistas que os países propõem, adiram a elas. Quem,
ao contrário, preferir um compromisso de casamento indissolúvel,
tenha a possibilidade de subscrevê-lo. Inclusive por respeito aos
princípios de liberdade mencionados, ao menos formalmente, em
todas as Constituições das democracias liberais.
A exigência é forte, sobretudo onde vigora a lei do divórcio
amigável (no fmilt divorce), como nos Estados Unidos, que é
decretado a pedidos após seis meses de vidas separadas. Mas,
como veremos, também outros países se mostraram interessa­
dos em percorrer esse caminho.
Assim, em muitos países anglo-saxões, está em andamento,
■gan vias de aceleração, uma experiência de grande interesse, que
fflmeça a minar o monopólio da indiístría do divórcio, partindo de

^'9<+alÍ2Gdo com CarnScanner


A inaceitável ausência do pai
112

exigências de liberdade. Grupos de jovens, cada vez mais nume­


rosos e de formação ideológica muito diversificada, pedem aos
vários listados norte-americanos, e muitas vezes conseguem, a
possibilidade de contrair matrimônios indissolúveis, definidos
"casamentos pactuados", ou casamentos compromissados (co-
veiimi/ mnrringc)7*.
Entende-se por covenaiit marriage "o casamento contraído
entre um homem e uma mulher que pretendem e pactuam o
matrimônio entre si como uma relação por toda a vida". Para
os não-católicos, isso reproduz a indissolubilidade própria
do casamento religioso — ao passo que, para os católicos, a
reforça — indissolubilidade, aliás, minada pelas atuais legis­
lações divorcistas71.
Por outro lado, a maioria dos cidadãos (entre os quais a
faixa dos mais idosos, que é até hoje favorável à instituição do
divórcio) poderá naturalmente continuar a assinar um contrato
matrimonial que preveja o divórcio.
O coveiiant inarriage, aprovado pela primeira vez pelos
parlamentares da Louisiana, em 1997, praticamente por
unanimidade, foi depois aprovado no Arizona e está em tra­
mitação (ou já aprovado no decorrer da publicação do livro)
em outros vinte e um Estados da Federação norte-americana,
do Alabama a Washington e à West Virginia. Fora dos eua, 0
covenant marriage até agora despertou a atenção do Chile. Seus
promotores mais convictos são os grupos juvenis libertários,
favoráveis à possibilidade de organizarem a própria esfera
da intimidade segundo os próprios desejos e convicções, e os
grupos católicos. Todos eles veem uma espécie de imposição
totalitária na obrigação, imposta pelas legislações divorcis-
tas, de aderir à "mentalidade difusa" — originada segundo
João Paulo ii pelo niilismo —, "segundo a qual não se deve72 73

72) Sobre este tema, é de grande interesse o texto do jurista A. de Fuenmayor (2001).
73) O matrimônio religioso na Igreja Católica é indissolúvel por natureza, inde­
pendentemente de qualquer pacto entre os contraentes. O convenant marriage, do qual
tratamos aqui, graças à "escolha" da indissolubilidade, não faria outra coisa senão
deixá-lo "blindado" contra qualquer intervenção do juiz civil por causa do pacto
assinado pelos contraentes.

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assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudoé fugaz
e provisório" (199S, n. 46).

Restrições acordadas para se recorrer ao aborto?

No grande debate em andamento sobre como repensar as


duas leis que determinam, unilateralmente, os comportamen­
tos de todos no âmbito do "monopólio divorcista" do contrato
matrimonial e do "monopólio abortista" pela regulação da
procriação, discute-se também se esse contrato de "matrimônio
indissolúvel", já em vigor em diversos países, não poderia en­
globar também cláusulas entre os cônjuges no que diz respeito
à procriação. Tratando-se de um contrato matrimonial livre com
relação ao oferecido/imposto convencionalmente pelo Estado
"leigo" (justamente o divórcio), poderia também prever restri­
ções acordadas sobre a possibilidade de se recorrer ao aborto.
De falo, como para o divórcio, também para o aborto
delineia-se uma mudança precisa e, para muitos, inesperada no
público dos seus defensores. Desde as suas origens, na Ingla­
terra do século xv 111, o divórcio era pedido pelos maridos ricos,
que pretendiam servir-se dele para se unirem a mulheres mais
jovens e mais atraentes. Mais tarde acabou sendo utilizado, em
dois terços dos casos, por mulheres que hoje lançam mão dele
para se desfazerem de maridos prestes a perderem prestígio
social, econômico ou atração sexual.
Uma mudança do mesmo tipo, embora menos vistosa, está
sendo constatada também no caso do aborto. As leis do aborto,
diferentemente das leis do divórcio, já nasceram com uma forte
marca feminina: seja porque nos anos 1970 elas apareceram
quase em todo lugar como principal afirmação institucional74
do movimento feminista, seja porque a pessoa que aborta e
pleiteia a liberdade de abortar é a mulher. Entretanto, como
de resto provam os resultados dos referendos e das votações

74) Junto com a legislação das "oportunidades iguais". Esta última é muito mais
"emancipacionista" do que feminista e acaba colocando as mulheres numa posição
de paridade ~ igualdade com os homens, bem distante de expresar os motivos mais
originais do movimento, que, por acaso, valorizava a "diferença entre os gêneros.

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\ ip i' • 1 r: •♦"V !.i «In p,}
114

legisla l i vas, não h<i dúvidas de que os homens (com exceção de


determinadas minorias religiosas, embora importantes) eram
tudo, menos hostis ao aborto. A bem da verdade, nos anos 1970,
diferentemente de seus ancestrais do século xvin, os homens
começavam a duvidar, no plano pessoal, do divórcio e a serem
axessos a destruir a família. Para muitos deles, o aborto foi,
então, um modo oportunista e cruel de não deixar aumentar
a possibilidade não-desejada de uma nova família por causa
do nascimento de um filho fora do casamento. Enfim, para 0
homem infiel, mas (como a maior parte dos homens) sem qual­
quer intenção de deixar a esposa, o aborto era um modo de se
manter na sua ambigüidade; por isso, era-lhe propício.
Por outro lado, o aborto para os jovens, tanto homem,
como mulher, era o modo de fazer recair sobre o filho "despa­
chado para a morte" a responsabilidade da própria desordem
sentimental, sexual e moral.

Pais contra 0 aborto

Pois bem, nos últimos anos, esse comportamento está


mudando rapidamente, embora em silêncio. Aumenta cada
vez mais o número de homens que se sentem profundamente
incomodados com a decisão de abortar da namorada ou da
esposa.
Muitos se rebelam abertamente, embora o parecer negativo
deles, por enquanto, não tenha qualquer apoio.
Entre as peculiaridades da modernidade industrializada
existe, de fato, a de ser a única sociedade (com exceção de
* uriosidades etnográficas específicias) que expulsou o homem
«»finalmente de toda a decisão acerca da reprodução, por meio
<tis leis sobre o aborto. No entanto, é justamente o homem o
primeiro ator tia reprodução da espécie, mediante a fecundação
d.i mulher.
A mudança em curso se traduz em notícias como a que
publi, amos <1 seguir, que, na realidade, lemos cada vez com
man heqúéin ia. Por tras delas não existem apenas tragédias
p< «>.n >, c.xisle um profundo processo de mudança no modo

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de sentir dos homens e, ao redor deles, de partes cada vez mais
fortes da sociedade. Aqui vai a historia, como o jornal noticiou
(cf. Farkas, 2002). Título: Nos hia, homem apresenta unid petição
para obrigar a namorada a ler o filho. O primeiro magistrado the dá
razão, o segundo uño. Texto (resumo):

Nova York. Pela primeira vez desde 1992, quando a Suprema


Corte dos Estados Unidos legalizou o direito ao aborto, um juiz
norte-americano proibiu uma mulher, ainda por cima maior de
idade, de interromper uma gravidez indesejada. Embora provi­
soria, a determinação (que desencadeou um ardente debate mul­
timídia na America do Norte) foi ¡mediatamente anulada por um
magistrado de um Tribunal superior, cuja decisão surpreendente,
ontem à tarde, ilustra quanto o país permanece dividido em dois
com relação a esse delicado problema. O episódio que apaixona os
EUA em férias não aconteceu numa retrógrada cidadezinha do Sul
ultraconservador, mas no Condado de Luzeme, no democrático
e leigo Estado da Pensilvãnia, onde a jovem de vinte e dois anos
Tanya Meyers, mãe de uma criança de dois anos, havia decidido
abortar o feto que trazia no ventre havia dez semanas, fruto de
uma longa relação com John Stachokus, vinte e sete anos, atón­
dente telefônico do 1 i y \ O motivo? "O fim de nossa relação"
— explicou a mulher ao Tribunal. — "Ele me batia e abusava de
mim". Mas, num gesto surpreendente e sem precedentes, o juiz
Thomas Burke deu razão ao ex-namorado, decidido a todo custo
a ter aquele filho, sobre cuja paternidade nem Tanya levantava
qualquer dúvida. "Tanya foi induzida pela mãe, que a convenceu
a abortar, porque me detesta" — diz o homem com o dedo em
riste, mostrando-se "felicíssimo por prover em tudo e por tudo
a manutenção do nascituro". O céu desabou. Os protestos mais
violentos partem de grupos feministas, que destacam indignados
que a decisão está em visível contraste com a histórica sentença
da Suprema Corte, que em 1922 reconheceu à mulher, e a ela
somente, o direito de interromper uma gravidez. Quem man­
tém acesíi a polêmica são, sobretudo, os grupos antiabortistas,
encorajados com a chegada de George W. Bush, um presidente

75) Número para chamadas de emergências medicas. |N.d.E.|

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1116 A inacrüávrl ausência do pai

abortamento a favor deles. "Normalmente, falamos dos país de


forma muito negativa por não quererem ser responsáveis pelos
filhos" —brada Dianna Thompson, diretora da Coalizão Ameri­
cana de Pais e Filhos, um grupo antiabortista —, "e este homem,
ao contrario, está fazendo de tudo para possibilitar seu filho de
nascer. Quando se trata de direitos reprodutivos" — acrescenta —
"os direitos dos homens são regularmente violados". O clamor
provocado nos jomais e nos talk-shows de televisão é tão grande
que o juiz Michael Conaham, que deveria debater a questão na
quarta-feira, decide de surpresa reduzir os prazos, sancionando
que o direito de uma mulher a abortar "não está sujeito ao veto do
marido ou do companheiro". "Ele já tinha escolhido o padrinho
e o nome para o pequeno" — comenta o advogado do pai, John
P. Williamson, um conhecido antiabortista, anunciando a decisão
de apelar. Exatamente ontem, sempre na Pensilvânia, o presidente
George W. Bush, em visita a Pittsburg, assinou a nova lei para a
tutela dos direitos do feto, a Bom ulive, há muito tempo ardente­
mente desejada pelos antiabortistas para que estenda as garantias
e as tutelas das leis federais também aos fetos sobrevividos a um
procedimento de aborto que não deu certo.
A situação norte-americana, como vimos no decorrer de
todo o livro, é, como sempre, a mais ''avançada", tanto nos
desastres produzidos pelos rumos da sécularizaçâo, quanto nos
modos de remediá-los. A versatilidade americana em mudar
de direção até agora confirmou o ditado: "O Ocidente é capaz
de encontrar antídotos para os próprios erros". Veremos se isso
acontecerá também nesse caso.
Mas o certo é que a mudança na consciência coletiva, que os
pais que reivindicam a responsabilidade sobre os próprios filhos
provocaram, é hoje palpável em todo o mundo ocidental.

Escócia: o caso dos "jovens que se tomam pais"

Um caso interessante, justamente porque aparentemente


marginal e distante do alvoroço dos meios de comunicação, é
o que demonstra o estudo Lads Becoming Dads ("Jovens que se
tornam pais"; cf. Macmillan, 2002), realizado em East Enders,

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uma região da Fscócia onde haviam ocorrido muitos nascimen­
tos apos relações entre adolescentes. Inquanto a expectativa ir
também a pressão) das familias era que os pais solteiros "su­
missem” antes do aborto ou logo apos o nascimento, o estudo
demonstra amplamente as expectativas deles cm relação ao
filho por nascer ou recem-nascido, a disponibilidade deles em
assumir a responsabilidade do nascituro e a frustração diante
das inúmeras pressões para abandonados. O problema vcio a
tona justamente apos os protestos do adolescente Martin Fow-
ler, que toi impedido de tomar parte em qualquer decisão sobre
o próprio filho por Sônia, mãe do pequeno, a qual (também >ob
pressão da família) havia decidido da-lo cm adoção.

Leis para a guarda conjunta ou compartilhada dos filhos

Existe outro ponto importante nessa movimentação de


mudança que poderia transformar o "desencanto ’ atetixo.
espiritual e sexual, que inspirou as atuais legislações sobre a
família, numa visão mais calorosa e mais respeitosa da \ ida
de todos, mãe, pai e, sobretudo, crianças. I rata-se da tendên­
cia, forte em todo o mundo ocidental, de leis para a guarda
conjunta, ou compartilhada, das crianças apos a separação e
o divórcio. Trata-se de um instituto ja propagado cm grande
parteóos Estados Unidos. Na França, toi aprovado cm junho
de ioor''.
Naturalmente, os projetos apresentados são contestados
com ferocidade pelos poderosos grupos que apoiam a mdú^trhi
do divórcio, que veem neles uma perigosa ameaça de redução
do próprio giro de negócios.
Apesar desses difíceis obstáculos, a guarda compartilhada
das crianças das famílias separadas é um passo obrigatório num
Ocidente que queira inverter o processo de dissolução moral
e psicológica que caracterizou sua modernidade. Uma época
em que pensadores laicos, como Horkheimer e Adorno, já na

76) Também no Brasil toi aprovada, em ívS. uma lei que institui a guarda com­
partilhada de filhos de pais separados. [\ d.E ]
A inaceitável ausência do pai
118

primeira metade do século passado, viam como marcada por


um "caráter inferior". Setenta e cinco anos depois, João Paulo
ii denunciava: "O mistério da iniquidade continua a marcara
realidade do mundo" (2002, p.2).
No entanto, a vida, apesar de tudo (como a clínica psico­
lógica demonstra diariamente), é mais forte que os Infernos,
mesmo que tenha de continuar deparando com a iniqüidade e
com o mal. A vida quer se cumprir, quer desfraldar as próprias
finalidades de amor, de crescimento da doação. E alguém (na
realidade, muitos, muitíssimos) já sentiu profundamente o de­
ver, não-evitável, de tornar-se disponível ao impulso da vida, à
sua necessidade. Como diz Testori, no pequeno texto diversas
vezes citado nestas páginas, talvez falando de si:

Alguém já não tão jovem entreviu, deu-se conta, sentiu; foi


atingido, sacudido, foi abalado, descobrindo exatamente esses
jovens na esperança, no ímpeto, na paixão, no amor do Pai e,
portanto, do homem. (1989)

Alguns, muitos, viram. E farão aquilo que devem e podem.


Para que o pai, cuja ausência é inaceitável, como figura do Pai
(sem o qual todo o sentido se perdeu), finalmente volte“.

O próximo passo: assumir a responsabilidade

Entretanto, é difícil dizer se os inúmeros fermentos dos


setores do mundo juvenil dotados de "visão do mundo" e da

77) É também no contexto dessa ação que, nos últimos anos, se multiplicaram os
estudos sobre a função e a condição do pai hoje, muitos dos quais não pudemos citar no
decorrer do texto, eque recordaremos aqui rapidamente. Muito louvável é o estudo de
I Jumesnil (2< x x >). Participação de diversas opiniões em Martignoni & Zois (2001). Estudos
variados sobre a família italiana em Melchiorre(2ooo). Interessantes os estudos coletados
em Martignoni (j 994). Na coletânea de ensaios de Scull (1992), temos participações, entre
outras de Bly, I arrew e I lillman. Entre os estudos junguianos, o cuidadoso A. Colman
I ( olman Í1988). Cf. também Samuéis (1985) e Pirani (1989). Desdramatizante e
idcologk.miente¡xiliihtiiih'iili'toiivh), mas com alguns dados também, Arendeall (1995)
e I lav.l- ins& I Joilaliite (1997). Intuitivo e sensível, Cornean (1989), depois traduzido em
diwisas línguas. Importante Royal (2001, p.2); Saint-Germain <Se Krymko-Bleton (1996,
pp 9*» 109), Zaouclic G.iudron & l.eC.imus (199L pp. 95-110).

D¡9Í+gI¡2gcIo com ÚGmScGnner


vida conseguirão mudar as orientações utilitaristas da legis­
lação familiar da pós-modernidade ocidental. De fato, como
já vimos, elas são o resultado de um processo que se delineou
claramente, pelo menos por três séculos, após o Iluminismo
e as grandes revoluções, e que garante enormes interesses e
outros tantos fortes poderes.
Por outro lado, as novas gerações possuem a arma, não-
irrelevante, da rejeição. O marriage strike, a greve contra o
casamento, na forma com que este foi organizado pelas legis­
lações tão desprovidas do senso de comunidade, liquidando
em poucas décadas a sua célula-base, a família, já é praticado
por grande parte dos jovens no Ocidente. Os políticos tentam
remediá-lo com o reconhecimento das "famílias de fato". Cer­
tamente, é também um "amortecedor social" (categoria sim­
pática aos políticos das sociedades materialistas), mas, como
demonstra o caso da autofecundação das lésbicas inglesas
surdas exigindo um filho surdo, é uma estrada que já costeia
o horror e pode facilmente descambar nele.
De qualquer forma, as milhões de vítimas inocentes pro­
vocadas pelo divórcio e pelo aborto certamente obtiveram um
resultado: o despertar (ou será um verdadeiro nascimento?)
de um forte e estável senso de responsabilidade paterna nos
jovens que se rebelam contríi tanta desagregação.
O pai que voltará a tomar seu lugar na família ocidental
será muito diferente do indivíduo que liquidou suas graves
responsabilidades patriarcais passando as noites a escarafunchar
os registros da indústria nascente, no século xix, e trocando os
próprios filhos por um saco de moedas, como o moleiro que em
muitos contos de fada os vende ao diabo. Entrevêem-se (ainda
confusamente) os traços desse novo pai nos jovens que exigem
um casamento indissolúvel, como nos outros que se opõem
enquanto puderem ao aborto do próprio filho. Trata-se de um
homem que sabe muito bem que não terá nenhum amor, prazer
e segurança, se não for capaz de tomar para si a responsabili­
dade, como homem adulto, desse amor, dos seus prazeres e da
segurança necessária ao seu bem-estar e da sua família.
É como se, saindo dos registros cheios de cifras da socieda­
de industrial antes e depois do consumo (concluída com uma

r>i9i+alizado com CamScGnner


A in.ucit.ivcl auM/nci.i do p.n
120

colossal falência, mais moral do que financeira), o homem-pai


redescobrisse uma verdade muito simples, que conhecia pelo
menos desde que Jesus entrou em Jerusalém, montado num
jumento: sua tarefa é amar e prover aos seus, sem se poupar.
O amor e a honra a ele voltarão. Nas coisas substanciais da
vida, como tão bem havia explicado Simone Weil (que, como
todas as grandes mulheres, era capaz de revelar lucidamente
o que o homem percebe inconscientemente), não há direitos,
mas apenas deveres.
No fundo, no centro da virilidade jamais houve outra coisa
senão essa profunda consciência. O direito protege o fraco. Ao
homem, cabe assumir o dever.
O novo pai, que atravessou a terra queimada da mo­
dernidade, parece ter descoberto isso. E muitos sinais fazem
pensar que se esteja preparando para fazer a própria parte,
indispensável para transformar uma sociedade calculista numa
comunidade viva.
Agradecimentos

Este livro ganhou alimento, paixão e informações de um campo


bem vasto de comunicações, experiências e sofrimentos pela atual
condição do pai no Ocidente e as suas devastadoras conseqüências
para os filhos e para a sociedade.
Agradeço especialmente aos amigos que assinaram na Itália o
manifesto Pelo pai e em seguida iniciaram a preciosa rede Internet
de pesquisa e trabalho sobre o pai, cujos documentos utilizei ampla­
mente aqui.
Meu agradecimento ainda a Giuseppe Sermonti, Cláudio Bon-
vecchio, Giulio Maria Chiodi, Stefano Zecchi, pela proximidade de
coração e de pensamento; a Federico Mediei, pela minuciosa resenha
da imprensa internacional que nos permitiu manter uma atenção
constante sobre os mais atuais desenvolvimentos sobre o tema; a
Giovanni Ventimiglia, por seus trabalhos sobre a paternidade de
Deus, a Massimo Vagnarelli e Massimiliano Fiorin, pelos materiais
oferecidos na Rede, aos colegas e às colegas psicoterapeutas do grupo
"psicomasculino", da Escola de Formação Lísta, por seus primo­
rosos trabalhos presentes no texto, e às intuições sobre o tema. Llm
pensamento muito reconhecido a Antonello Vanni e Paolo Marcon.
preciosos e sensíveis cultores de tão delicada matéria, decisiva para a
sociedade de amanhã.
Referências Bibliográficas

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e impresso em papel P
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Cloudio Risé, psiconolisro italiano, é
membro do Instituto de Estudos Superiores
Gerolomo Cordono (Universidode do
Insubrio), do Conselho Diretor do Ordem
dos Psicólogos do Lombordio e do Comitê
Científico de Fundoçõo Liberol. Autor de
vários livros, já tem publicado no Brasil
Ser homens (Curitiba, Editora Lyro).
O Ocidente pós-moderno é uma "sociedade sem
pai". A mudança dos papéis do homem, absorvido
pelo trabalho e feiro provedor da família, o fim dos
"tiros de passagem" da Infância para a adolescência,
entre outros, produziram uma lacuna paterna com
reflexos na criança. E também na sociedade, em
seus mitos, modelos, anseios e remores.
Em chave pslcanalírica, Risé investiga as raízes desse
processo e suas conseqüências negativas sobre o indi­
víduo e a coletividade: incapacidade de lidar com os
perdas, depressão, violência. Documentado, ele aponta
tendências sociais que se notam também no Brasil. E
conclui: a ausência do pai é inaceitável. Mos vislumbra
saídas de esperança.
Uma perspectiva interessante paro se compreender o
ser humano, suas relações familiares e o mundo em
que vive.

ISDN 97Ô-Ô5-Ô973Ó-56-5

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