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^ZÔES PARA VOCÊ NÂq

A narrativa denuncia a banalidade e as limi­ Filhos: afinal, seria melhor não tê-los? Corin­
tações da vida doméstica dos que têm filhos ne Maier, mãe de dois adolescentes, declara:
e os malefícios da “educação” moderna, na “Em certos dias eu me arrependo, e ouso di­
qual a criança é o centro da família. Investiga zer isso.” Cansada do pensamento conformista
o consumismo ditado pelas crianças, a indife­ que conclama mulheres e homens às alegrias
rença dos adolescentes e as inevitáveis decep­ da maternidade ou da paternidade, essa en­
ções dos pais com suas crias. saísta rebelde revela aqui boas razões para não
sucumbir à tentação e enfrentar as conseqüên-
Além disso, Sem filhos relembra as custosas cias e os sacrifícios que essa escolha pelos be­
privações objetivas e subjetivas que uma crian­ bês pode representar.
ça representa: “Lazer, vida conjugal, amigos,
sexo. E isso durante vinte anos, até que a A autora analisa a onda de idealização e gla-
criança se transforme em um jovem sem fu­ mourização da maternidade, onipresente na
turo.” Este livro mostra como a sociedade que mídia contemporânea, com um discurso heré­
privilegia as crianças na verdade penaliza os tico, sincero e politicamente incorreto. Assim,
adultos, instaurando o que os especialistas já põe em xeque um dos tabus mais intocáveis da
caracterizam como a era do “filiarcado”. sociedade: a necessidade de ter filhos. Mesmo
entre os homens, para quem a opção por não
ter filhos é mais aceita, assumir que não se de­
seja crianças resulta em reprovação imediata.
Para as mulheres, essa escolha é acompanhada
por uma condenação: é impossível alcançar a
plenitude sem filhos.

Corinne Maier, psicanalista e economista, Apesar do crescimento do movimento e das as­


nasceu em Genebra, Suíça, em 1963. Forma­ sociações dos que optam por não ter crianças,
da em relações internacionais e economia a recusa em ter filhos não é apenas um tabu,
pelo Institut d'Etudes Politiques de Paris, foi mas uma atitude suspeita. Diante disso, Co­
pesquisadora na área de desenvolvimento da rinne Maier ressalta que quanto mais aumenta
EDF (Companhia de Eletricidade da França), a fertilidade, menos as pessoas se declaram
de onde foi exonerada após o lançamento de felizes. Ela relata as dificuldades das relações
Bom dia, preguiça - ensaio no qual faz uma entre pais e filhos enfatizando que nem tudo
crítica ao trabalho. Membro da Aleph - Asso­ se trata apenas de amor, mas de sentimentos
ciação para o Estudo da Psicanálise e sua His­ ambíguos que envolvem também ódio, culpa,
tória -, publicou, entre outras obras, Le divan ressentimento, ciúme, e outros problemas que
c’est ammusant e Intello Academy. não se enunciam com clareza.
CORINNE MAIER

Sem Filhos
40 razões para você não ter

TRADUÇÃO DE JORGE BASTOS

I
Copyright © 2007 Éditions Michalon, Paris

TÍTULO ORIGINAL
No kid, quarante raisons de ne pas avoir d’enfant

REVISÃO
Janir Hollanda
Antonio dos Prazeres

DIAGRAMAÇÃO
Ilustrarte Design e Produção Editorial

CAPA E PROJETO GRÁFICO


Mariana Newlands

IMAGEM DA CAPA
Norbert Schaefer/zefa/Corbis/LatinStock

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

M19s Maier, Corinne, 1963-


Sem filhos: 40 razões para você não ter / Corinne Maier ; tradução Jorge
Bastos. — Rio de Janeiro : Intrínseca, 2008.
160p.

Tradução de: No kid, quarante raisons de ne pas avoir d’enfant


Inclui bibliografia
ISBN 978-85-98078-32-8

1. Reprodução humana — Aspectos sociais. 2. Anticoncepção — Aspec­


tos sociais. 3. Controle de natalidade — Aspectos sociais. 4. Papel sexual. 5.
Família. I. Título.

08-2465. CDD 306.85


CDU 316.812.5

[2008]

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua dos Oitis, 50
22451-050 - Gávea
Rio de Janeiro - RJ
Telefone: (21) 3874-0914
Fax: (21) 3874-0578
www.intrinseca.com.br
Para Sophie e Sabine.
SUMARIO

PRÓLOGO, 11

INTRODUÇÃO, 13

QUARENTA RAZÕES PARA VOCÊ NÃO TER FILHOS

1. O “desejo por crianças”: Uma aspiração ridícula, 23


2. O parto: Uma tortura, 27
3. Evite se tornar uma mamadeira ambulante, 31
4. Continue a se divertir, 35
5. Condução, trabalho, filharada: Não, obrigada!, 37
6. Saiba manter seus amigos, 41
7. Não aprenda a língua idiota usada para se dirigir às
crianças, 45
8. O quarto de brinquedos é o fim da brincadeira, 49
ç. O filho: Um estraga-prazeres, 53
10. Dobram os sinos para o casal, 55
11. Ser ou fazer: Não se sinta obrigado a escolher, 57
12. “A criança é uma espécie de anão cheio de vícios e
com uma crueldade inata” (Michel Houellebecq), 59
13. Ela é conformista, 63
14. Crianças custam caro, 65
15. Um aliado objetivo do capitalismo, 69
16. Mantê-la ocupada: Um quebra-cabeça, 73
17. As piores tarefas dos pais, 77
18. Não caia na ilusão do filho ideal, 81
19. Seu filho obrigatoriamente o decepcionará, 85
20. Ser uma mãezona, que horror!, 87
21. Ser, antes de tudo, pai (ou mãe)? Não, obrigado, 89
22. Nada de livre trânsito para os profissionais da
infância, 93
23. As famílias são um horror, 97
24. Não volte você a ser criança, 101
25. Insistir em dizer “primeiro eu” é prova de coragem, 105
26. O filho é a despedida dos seus sonhos de juventude, 107
27. Você não pode deixar de querer a felicidade dos
filhos, 109
28. O filho: Um grude, 111
29. Escola: Um campo disciplinar com o qual é preciso
pactuar, 115

8 CORINNE MAIER
jo. “Criar” um filho: Mas em qual direção?, ng
31. Fuja da neutralidade bem-comportada, 123
32. A paternidade infelizmente é uma doce cantilena, 127
33. A maternidade é uma armadilha para as mulheres, 131
34. Ser mãe ou ter sucesso: E preciso escolher, 133
35. Quando 0 filho aparece, o pai desaparece, 137
36. A criança de hoje é uma criança perfeita: Bem-vindo
ao melhor dos mundos, 139
37. Cuidado, criança: Perigo, 143
38. Por que se sacrificar tanto por um futuro excluído?, 147
39. Crianças demais na Terra, 151
40. Vire as costas aos ridículos dez mandamentos do
“bom” pai, 153

conclusão: Criança? Não, muito obrigada, 155

BIBLIOGRAFIA, 157

SEM FILHOS 9
PROLOGO

Uma única solução: A contracepção

Em 2006 a França se tornou campeã européia da fertilidade. O


“milagre francês" foi alardeado com o canto vitorioso do galo, o
símbolo nacional: cocoricó. Assiste-se, nos dias de hoje, a uma
glorificação da maternidade que não teria desagradado ao triste­
mente célebre marechal Pétain. E a face atual do patriotismo:
para encarar uma vida de imbecil é melhor sermos muitos.
Franceses, estão fazendo pouco de vocês. Fazem com que
acreditem que a felicidade está ao alcance de algumas barrigas,
num país tremendamente entediante e moralizador, cujas tetas
são o trabalho e a família. A realidade é que quanto mais cresce a
fertilidade, menos as pessoas se declaram felizes. Abram os olhos,
seus filhos serão baby-loosers, fadados ao desemprego, a bicos
precários ou desprezíveis, à condição de simples recurso huma­
no. Terão uma vida ainda menos divertida do que esta que vocês
têm — e olhe que ela já não é tão engraçada assim. Não, os seus
maravilhosos bebês não têm futuro algum, pois cada criança que
nasce num país do primeiro mundo é um desastre ecológico para
o planeta inteiro.
E vocês vão pastar vinte anos para “criá-los”. A educação dos
filhos se tornou um sacerdócio, já que a sociedade exige dos pais
modernos performances dignas do Super-Homem ou da Mulher-
Maravilha. Estar sempre disponível, sorridente, atento, pedagógi­
co e responsável — o que não se faz para garantir a “felicidade” e
a “plenitude” dos seus pirralhos? Tornar-se pai-mãe significa estar
pronto ao sacrifício de todo o restante. Vida de casal, lazer, vida
sexual, amigos e sucesso social, no caso das mulheres.
E tudo isso, para isso; francamente, acha que vale a pena?
Tomem suas precauções. Nada de filhos, por favor. E tão fácil
acontecer. Uma única solução: a contracepção.

12 CORINNE MAIER
INTRODUÇÃO

Se eu soubesse, não teria tido

Num dia de dezembro, eu me preparava para comemorar meus


40 anos. Estava com uma amiga num bar e, meio desanimada,
“fiz um balanço", depois de ter bebido umas doses:
— Eu me enganei de rumo. Comecei a fazer análise com dez
anos de atraso, não agüento os jantares sociais em meio a todas
aquelas pessoas bem integradas. Não soube agarrar o destino pe­
los cabelos (e sei hoje em dia que ele usa um corte punk...), meus
filhos me enchem a paciência...
— O que é isso? — perguntou-me a amiga. — Pode questio­
nar tudo, mas não está falando sério, não se arrepende de ter tido
filhos.
— Falo sério. Não fossem eles, estaria dando a volta ao mundo
com o dinheiro ganho com os livros. Em vez disso, estou presa em
casa servindo refeições, obrigada a me levantar às sete da manhã
todos os dias da semana, a ajudar em deveres de casa mais do que
idiotas, a botar e tirar roupas da máquina de lavar. E tudo isso para
que as crianças achem que sou sua empregada. As vezes, de fato,
me arrependo e não tenho medo de confessar. Na época em que os
tive, era jovem e apaixonada. Acho que fui manipulada pelos genes.
Se recomeçasse, não tenho tanta certeza de que faria o mesmo.
Ela ficou chocada. Há certas coisas que uma mãe de família
não pode dizer, pois corre o risco de passar por um monstro. O
discurso típico é: “Tenho orgulho dos meus filhos e se tem algo de
que não me arrependo é disso."

O culto da criança

Ter um filho é o que há de mais bonito no mundo, um sonho ao


alcance de todas as bolsas e barrigas. E mostrar para a vizinhança
o sucesso do casal, a comprovação da integração social dos pais,
num mundo em que o maior dos temores é o de ser “excluído".
As crianças estão na moda e é chique carregar um bebê no colo
ou bem bonitinho no carrinho. Quanto às mulheres grávidas, elas
posam nuas nas revistas: não se esconde mais a gravidez. Nunca a
maternidade e a paternidade foram a tal ponto levadas às nuvens.
A grande aventura do século XXI é mesmo a procriação. Uma pro­
va disso? John de Mol, o bilionário inventor de Star Academy
* em
particular e do reality show em geral, teve recentemente a idéia de um
novo “conceito": filmar uma gravidez do início até o parto. Tudo seria
mostrado: enjoos, ultra-sonografias, exames médicos, quilos a mais, es­
tados de espírito... Um suspense insuperável e comovente. Mais forte
do que The Bachelor, Koh Lanta ou Next Top Model juntos.
Pequeno flashback. No início da humanidade, o homem apre­
ciava as colheitas fartas, os seios grandes, os bisões gordos e os fi­
lhos numerosos. Era preciso povoar o mundo, ir à caça e se impor
diante dos vizinhos belicosos. Vem daí o respeito religioso que a

* Reality show musical cujo formato foi reproduzido em diversos países — no


Brasil recebeu o título de Fama. (N. do E.)

14 CORINNE MAIER
fecundidade inspira. Ter filhos, então, tinha a ver com fatalidade.
Depois surgiu o desejo por crianças: uma idéia nova na Europa.
Desde a pílula e o aborto, a criança se tornou desejada. Não é
mais a conseqüência de um ato sexual, mas o produto de uma
vontade controlada pela ciência. O imprevisto foi banido. Viva a
programação: o primeiro filho aos 30 anos, quando eu tiver um
emprego estável; o segundo depois de ter comprado uma casa, o
terceiro para deduzir do imposto de renda.
O “desejo por crianças” dá asas a adultos com poucas perspectivas
próprias (eles são muitos). A missão dos pais consiste em se concen­
trar de corpo e alma no desabrochar desses pequenos seres maravi­
lhosos. Tornada totalmente sagrada, a criança representa, para mui­
tos tolos ou ingênuos, o elo que faltava entre o humano e o infinito.
Não se trata mais de Demain les chiens [Amanhã, os cães], como se
traduziu na França o romance de ficção científica de Clifford D. Si-
mak, mas sim Aujourd’hui les enfants [Hoje, as crianças]. Enquanto
isso, Malthus, que já no final do século XVIII fez o elogio do controle
da natalidade, tem seu nome raramente citado nos dias de hoje: os
malthusianos, cada vez menos numerosos, são considerados uns an-
tipatriotas cínicos ou até mesmo anarquistas perigosos.

A pró-natalidaãe vai acabar com a França!

A França se classificou como o país mais fértil1 da Europa, em


2006, com 830 mil nascimentos; um recorde anunciado na im­

1 Em 2006, com uma taxa de fecundidade ligeiramente superior a dois filhos por
mulher, a França se tornou, com a Irlanda, o país mais fértil da Europa. A Bélgi­
ca apresentou 1,6 filho por mulher, e os vizinhos italianos, alemães e espanhóis
tiveram taxas que não chegaram a 1,4. Já os países do Leste estão enfrentando
uma crise profunda em relação à natalidade. As taxas de fecundidade nos Es­
tados Unidos são mais elevadas do que na Europa, com 2,1 filhos por mulher.
Por quê? Porque demonstram maior “otimismo” e patriotismo, além de crenças
religiosas mais fortes.

SEM FILHOS
prensa em tom de triunfo. Por que os jornalistas se interessam por
isso? A maternidade tem ações cotadas na Bolsa? Por que seria
uma vitória? Talvez por ser só o que resta à França para subir
em algum pódio? Com a natalidade e o familiarismo em gloriosa
ascensão, teria assumido o poder o candidato da direita naciona­
lista, Philippe de Villiers?
Na França é “normal” querer filhos. Mas nem sempre foi assim.
Durante muito tempo os franceses reclamavam muito da obriga­
ção de se reproduzir. Do século XVIII até a década de 1970, eles
mantiveram distância das alegrias da paternidade: a natalidade
francesa era bem baixa. A ponto de muitos se preocuparem com
o futuro da identidade nacional (ainda não se chamava assim).
Hoje em dia, eles parecem tomados por uma estranha febre. Todo
mundo fala de desejo por crianças como de uma pulsão vital sur­
gida do fundo das entranhas, irresistível, ardente, inexplicável e
totalmente legítima. Muitos pais estão convencidos de cumprir
uma missão de interesse nacional, um sacerdócio que vai às raias
do sagrado e da transcendência: a criança representa um além
que se pode improvisar com meios próprios.
Todo mundo sonha ter um filho. Casais gays querem adotar
crianças, e lésbicas gostariam de carregar o seu próprio fruto de
carne, osso e gritaria — apesar de, por enquanto, o Código Civil
não concordar com isso, pois o Direito gosta de se remeter ao “na­
tural” e considera que a “verdadeira” filiação deve se vincular ao
corpo. Mas o direito ao filho já mostra a ponta do nariz no hori­
zonte, assim como, no sentido oposto, o direito à moradia, o direito
à felicidade, o direito à saúde, o direito à magreza. Quando virá o
direito à infância, que vai permitir que não se saia mais do país das
maravilhas?
Na França, quando alguém se casa, os colegas de trabalho não
deixam de perguntar: “E então, como foi? Já está a caminho?”
Certas mulheres, ao que dizem, inventam no escritório ter um
filho para que as deixem em paz, de tal forma é rara a dissidência.

16 CORINNE MAIER
Pois é na França que a imposição da maternidade é mais forte, in­
centivada por vigorosa política familiar (abonos, creches, escolas
maternais etc.). Com relação às mulheres que atualmente deixam
a idade fértil, apenas uma entre dez francesas não teve filho; na
Itália e na Espanha, as mulheres sem filho somam 14 por cento,
na Grã-Bretanha, 20 por cento, na Alemanha, 30 por cento (45
por cento entre as que têm educação superior). Cada vez mais, a
França é considerada um exemplo por outros países da Europa,
tanto que a Alemanha acaba de estabelecer, para os pais, uma
licença remunerada de um ano. Europeus, direto aos seus berços
— a única imagem que se quer ver é a dos seus bebês.

O serviço obrigatório da chupeta

O problema é que, na história da opressão dos povos (que se con­


funde com a simples História), a família com filho(s) foi um im­
perativo categórico que muitas vezes andou no mesmo passo que
o trabalho. Basta lembrar “Trabalho, Família e Pátria”, do sinistro
marechal Pétain. “Vocês, ao trabalho e à reprodução; com isso,
não pensam em fazer nada errado e eu me encarrego de todo o
resto.” Eis a exigência não escrita de qualquer ditador. O Esta­
do tem pleno interesse na procriação: isso não parece estranho?
Já não seria uma boa razão para o questionamento do tal “dever
cívico” de contribuição para a renovação das gerações? Trata-se,
claramente, de uma obsessão demográfica com a intenção de se
preservar uma determinada visão de mundo.
Pois o insistente argumento de que “a Europa está envelhecen­
do, a renovação das gerações não está garantida” não se sustenta
nem por um segundo. Que venham os imigrantes. Eles podem
ocupar os lugares que nossos jovens não querem (pedreiro, gar­
çom, enfermeira) e, por outro lado, financiar nossas aposentado­
rias. Não falta quem se candidate; basta abrir as portas. Mas não

sem filhos 17
procurem, com um tom sabido, explicar que as crianças de hoje
são o “crescimento” de amanhã: Que crescimento? Para quê? O
crescimento econômico é, por si só, um objetivo digno de uma
sociedade que se pretende democrática? Sonha-se apenas com a
compra de televisores, máquinas de lavar, telefones celulares? E
isso gera empregos cuja total estupidez não devia deixar contentes
os que os oferecem nem os que os aceitam? Os discursos ultra-
repetidos dos economistas (são, no mais das vezes, uns senhores
maduros, falastrões e pretensiosos) sobre esse assunto só me fazem
rir. A economia, que se pretende um metadiscurso sobre uma
realidade bem difícil de ser pega numa rede de caçar borboletas,
nunca me impressionou. Ainda mais porque eu mesma me auto-
proclamei economista durante anos e, por isso, conheço todos os
meandros dessa não-profissão.
Há, felizmente, “opositores conscientes” da fertilidade. Refiro-
me àquelas e àqueles que não querem filhos. Eles são discretos,
em geral, por evidentes razões de prudência. As mulheres têm até
o direito de adiar a idade da maternidade, mas negá-la, nunca. Os
homens, de algum tempo para cá, flagram-se dizendo que a vida
é um fracasso quando não se tem filhos. Cresce a tolerância com
relação às diversas formas de vida privada, mas explicar serena­
mente que não se quer ter filhos suscita reprovação. Os que têm
essa coragem são vistos pelas pessoas ao redor como desviantes
da norma, de tal modo se considera a família um valor universal.
Na França, ser “sem-filho” é uma anomalia. Permanentemente
censurados, os que se atrevem a não tê-los causam dó: “A pobrezi­
nha provavelmente não pôde ter”; “Ele estragou sua vida”. Esses
“egoístas”, “imaturos”, “pessimistas”, “instáveis” são esmagados
por impostos num sistema fiscal injusto que favorece as famílias.
São também deixados à margem num mundo em que tudo é feito
para o modelo dominante. Alguns têm outras ambições? Todo

18 CORINNE MAIER
mundo lhes dirá que elas têm pouca importância, comparadas às
“alegrias" de engendrar, de “sentir-se realizado", prometidas pelo
ato de gerar filhos.
Veio do exterior uma saudável contra-ofensiva. Nos Estados
Unidos e no Canadá, na Austrália e na Inglaterra, associações de
“não-pais" foram criadas, já no meio da década de 1980. Tornan­
do-se verdadeiros grupos de pressão, essas associações impuseram
o uso da palavra childfree [livre de filho] no lugar de childless
[sem-filho]. Não ter filho é uma escolha, e não um defeito. Os
que a assumem não têm nenhum tipo de carência; sentem-se bem
satisfeitos, obrigado. Além disso, certas associações dizem em voz
alta o que muitos pensam baixinho: crianças são um transtorno
horrível. A respeito delas, o ator Hugh Grant declarou, impassí­
vel: “Não suporto desordem nem feiúra." Não se pode imaginar,
na França, Christian Clavier ou Jean Dujardin dando esse tipo
de declaração... Na Flórida, existem zonas childfree, condomínios
com entrada proibida aos menores de 13 anos, destinados a trin-
tões que não suportam os inconvenientes ligados às crianças. Nos
Estados Unidos e, mais recentemente, na Escócia, surgiram con­
domínios sem crianças, destinados aos aposentados: a demanda é
bastante promissora. O “conceito", tudo indica, agrada. Até agora,
porém, não chegou à França. Os que o promovem têm medo de
ser recebidos a pedradas.

Desestimular os pais em potencial

Este pequeno livro tem como objetivo desmotivar (no sentido de


tirar a motivação) pais em potencial que ainda se perguntam se
vale a pena ter filhos. Naturalmente, eles não têm a quem con­
fessar suas dúvidas: não é coisa que se pergunte, pois ter filhos é
bom. Existe, no entanto, uma quantidade de razões para se resol­
ver não tê-los — e mais razoáveis do que as normalmente usadas

SEM FILHOS 19
com intenção inversa. Há, pelo menos, quarenta delas, que serão
detalhadamente descritas mais adiante.
Chega de discursos melosos sobre a felicidade da profissão pai-
mãe. Diante de tanto entusiasmo e de bons sentimentos obriga­
tórios, dizer “argh” a essa nurseryland é algo urgente e necessário.
E sei do que estou falando. Filhos? Eu mesma tenho. Há coisas
de que só uma mãe de família pode falar, se tiver coragem de
fazer seu coming out. Se assinasse este livro sem ter filhos, todo
mundo acharia se tratar de alguma solteirona amarga e invejosa.
Nesse caso, talvez me acusem de ser uma mãe indigna. Assumo
o risco. Tendo traído a empresa onde trabalhava ao escrever meu
livro Bom-dia, preguiça, denuncio aqui um clichê da família que
só existe nas revistas. Aproveito para fazer pouco de uma certa
França pró-natalidade e auto-satisfeita, cujas únicas metas são o
trabalho e a reprodução. E é exatamente o sinal de uma incô­
moda regressão: o que pode ser mais deprimente do que um país
dobrado à reprodução da mesmice, sendo essa “mesmice” sem
graça e prosaica?

20 CORINNE MAIER
40 RAZÕES PARA
VOCÊ NÃO TER FILHOS
1.

O “desejo por crianças”:


Uma aspiração ridícula

Querer a todo custo se reproduzir é um objetivo formidavelmen-


te banal. Mas tudo indica que “fazer como todo mundo" e imi­
tar o vizinho tranqüilizam. Estar “inserido" na sociedade, hoje
em dia, significa ter um emprego e/ou um filho. Assumam isto e
não se cansem de confirmá-lo. Para estar nessa, quem não con­
segue ter filho dá mostras de uma perseverança procriadora que
desafia qualquer entendimento. Os obnubilados da reprodução
enfrentam os obstáculos dos que lutam por tratamentos contra
a esterilidade. E com a cumplicidade de médicos um tanto de­
sarmados, como todo mundo, diante de uma ciência que avança
com velocidade.
O “desejo por crianças" é tamanho que elas se tornaram um
negócio dos mais rentáveis e em forte ascensão. Óvulos, esperma
e bebês são vendidos diariamente no mundo inteiro e úteros são
alugados por nove meses. As clínicas especializadas vão de vento
em popa em todo o planeta. Os preços variam de acordo com a
“cotação” do produto: bebês brancos custam mais caro do que
bebês negros. Nos Estados Unidos, os óvulos de uma estudan­
te de Columbia valem menos do que os de uma estudante de
Harvard. O “bebê business” é menos desenvolvido na Europa e,
oficialmente, não existe na França: o Estado, impondo-se como
guardião do “bem” e da ética, vigia.
A idéia de crianças para todos e a qualquer preço gerou uma
quantidade de discursos vulgares e caricaturais. Escolha um cam­
po, camarada; nunca se tem certeza do pior, mas da idiotice, sim.
Na mão esquerda, tenho o fabuloso “direito ao filho”. Reivindi­
cação sagrada, podia-se quase esperar que estivesse inscrita no
preâmbulo da Constituição. O filho é algo tão indispensável e
maravilhoso que todo mundo deveria ter “direito” a isso. Quando
virá o “direito inverso” à criança? Inverso a quem, exatamente,
não se sabe, porém os mais brigões e inclinados a reparações ju­
diciais vão certamente descobrir. Não tendo mais meus pais, pois
os dois já morreram, posso reclamar um “direito a pais”? E fazer
uma greve de fome para que a justiça seja feita e me deleguem...
outros pais, na falta de poderem trazer de volta os verdadeiros,
pelo menos enquanto a ciência não for capaz de ressuscitar os
mortos. Voltemos à vaca-fria: o filho não é um direito nem uma
necessidade. Ele é simplesmente... uma possibilidade.
Mas, à minha direita, o que tenho não é melhor. A criança
motiva, na França, discursos de uma cafonice infame. A família
que garante a felicidade das crianças compõe-se de papai, mamãe
e ponto final. Aceitar que duas pessoas do mesmo sexo adotem e
criem uma criança é impensável, já que é o futuro dessas nossas
queridas cabecinhas louras que está em jogo. Pelo viés do discurso
de oposição à homopaternidade, é evidente que se faz uma cha­
mada geral à ordem, dirigida a todos os “fora da norma”. Uma
chamada à ordem que conta com diversos agentes: os psis, que,
em nome do Edipo, dão sua opinião sobre o que quer que seja,

24 CORINNE MAIER
e os antropólogos, que tudo sabem sobre o Homem. Os políticos
são os primeiros a se servirem das crianças para uma normaliza­
ção da população (nada de inseminação artificial para mulheres
sozinhas, nem acesso aos métodos de fecundação com reconhe­
cimento de paternidade para casais homossexuais, embora tudo
isso seja possível em vários outros países europeus). Resumindo,
como cantava Patrick Bruel, “Qui a le droit?” [Quem tem direi­
to?]. O que é o direito ao filho e quem tem direito de nos dizer o
que fazer?

sem filhos
2.

O parto: Uma tortura

As alegrias do parto são uma propaganda totalmente enganosa.


Exceto para algumas mulheres, cujos corpos provavelmente fo­
ram projetados a partir de um modelo tubiforme, o parto dói.
Aliás, dói muito. E claro, a ajuda da peridural (anestesia local) é
de grande valia, mas, mesmo assim, o parto está longe de ser algo
agradável. Pessoalmente, o parto foi a experiência mais dolorosa
da minha existência — é verdade que bastante privilegiada. As
mulheres que dizem “o parto foi o mais belo momento da mi­
nha vida” parecem-me suspeitas: desde que passei por isso, tenho
certeza de que mentem. Algumas, de forma mais prudente, de­
claram: “Não me lembro de nada”; o que muitas vezes significa:
“Não quero falar disso.”
A realidade é que o parto dura horas, às vezes um dia inteiro.
Fica-se imobilizada como um grande escaravelho, com um tubo
enfiado nas costas. As contrações dão a impressão de que a barri­
ga vai explodir por dentro... Um parto é dor, sangue e cansaço (e
cocô também, ao que dizem, mas isso é um brinde para a partei­
ra ou o médico). Vocês lembram a cena do filme Alien em que
um monstro sai do corpo de um dos personagens, rasgando-lhe
a barriga? Sabem por que essa cena é superconhecida? Simples­
mente porque é muito próxima da realidade da nossa chegada ao
mundo.
Mas é depois do parto que o pior começa. A sensação de es­
gotamento. As dobras na barriga, que nunca vai voltar a ser a de
antes. Enfrentar aquele rascunho de ser humano pelo qual você
passa a ser responsável por anos intermináveis. Michel Houelle-
becq evocou, em A possibilidade de uma ilha, a “legítima repulsa
que invade todo homem, normalmente constituído, ao ver um
bebê”. De fato, um recém-nascido que acaba de vir ao mundo
é tão feio que dá medo: com o rosto avermelhado e molengo,
traços inexistentes e o olhar velado por uma opacidade azulada,
tudo nele deveria inspirar rejeição. Os jovens pais que cada vez
mais freqüentemente enfeitam os cartões de aviso de nascimento
com fotos dos seus rebentos não parecem se dar conta de que
são os únicos (com seus próprios pais) a quem esse tipo de clichê
agrada.
A sociedade, no entanto, adula os bebês, e é de bom-tom se
pôr em adoração diante de toda larva humana de poucos dias.
A mim, fingir cansa cada vez mais e, quando confessei à minha
prima, que acabara de dar à luz, não me interessar por recém-nas­
cidos, ela estampou um ar constrangido diante do flagrante crime
de leso-bebê. Chega de bebês! Na televisão, na publicidade, eles
estão em tudo — “por acaso”, no entanto, não são os recém-nas­
cidos, pois mostram-se bebês de alguns meses, já apresentáveis.
E claro, quanto mais se exibem bebês, mais o envelhecimento
e a morte se ocultam, deixando de suscitar pavor. Haveria uma
ligação de causa e efeito? Dar-se-iam a mão a infantomania e a

28 CORINNE MAIER
gerontofobia? Provavelmente. Viva a juventude, abaixo a velhice
e, sobretudo, a morte, que não tem mais valor algum para nós. E,
no entanto, no século XIX, quem gostava de moribundos fazia
a festa: adorava-se pintar, esculpir e fotografar os mortos. Hoje
em dia, somente os defuntos célebres nos interessam, sobretudo
o ex-presidente da França François Mitterrand, talvez porque o
considerassem “Deus"...

sem filhos 29
3-
Evite se tornar uma
mamadeira ambulante

Os profissionais da infância insistem: amamentar é o máximo.


Breast is best [Peito é melhor], como dizem os britânicos. Como
no tempo das cavernas, da vida natural, ao ar livre, sem pestici­
das nem transgênicos. Se nos anos 1960-70 amamentar tinha saí­
do um pouco de moda, voltou com toda força nos últimos anos.
Nem se contam os artigos enaltecendo as vantagens do seio que
amamenta. O bebê será “menos doente”, “menos alérgico” e,
além disso, “nada substitui a ligação com o filho”. Na França, 60
por cento das mulheres que têm filhos dão o próprio leite — por
apenas algumas semanas, é verdade. E um objetivo do poder pú­
blico chegar à marca de 70 por cento até 2010.
Visto que explicar não basta para convencer as mais teimosas,
consideradas “mal informadas”, ajuda-se com o cofrinho. Em
2003, a Caixa Primária de Seguro-saúde da região de Morbihan
decidiu conceder um “prêmio aleitamento” para quem ama-
mentasse o filho por pelo menos uma semana. Quando virão
as reduções de impostos para a amamentação? E por que não
um prêmio para quem recusar a peridural, já que o parto sem
anestesia é “mais natural" e, provavelmente, “melhor" para o
bebê? Quando expliquei, na maternidade, que para mim estava
fora de questão amamentar, a puericultora me lançou um olhar
cheio de censura, dizendo que não era bom. Um mês depois,
o ginecologista me acusou de estar “negando a ligação" com a
criança.
O círculo se fecha em torno das mulheres indignas que dão a
mamadeira: amanhã vão discriminá-las nas ruas.
Pois alimentar uma criança com mamadeira é um ato marca­
do pela culpa. E um crime contra o natural. Estudos demonstram
que são mulheres sem diploma e que não vivem no espaço urba­
no as mais contrárias à amamentação: o “natural" as atropela o dia
inteiro, vocês então podem imaginar... Mas, afinal, que “natural"
é esse de que nos falam? São naturais a nossa alimentação, as
nossas roupas, o telefone celular, o avião, o bronzeamento com
luz ultravioleta? Que é isso?! Somos bombardeados por produtos
químicos e, quando ouço a palavra “natural", acho graça. Aliás,
admitindo-se que a amamentação seja “melhor" para a criança,
seria uma boa idéia gerar pessoas de 100 anos? A expectativa de
vida, como a que se tem atualmente, nunca foi tão alta; deve-se,
amanhã, ficar mais velho ainda? Lembro-me do total estado de
decrepitude do meu pai aos 90 anos e não tenho certeza de que­
rer viver tanto assim. Aliás, não pretendo parar de fumar, o que já
quer dizer muito.
Amamentar é uma escravidão. Para começar, dói. Além disso,
já viram o peito de uma mulher que amamenta? Não dá mui­
to apetite. Seios feridos por estrias, leite que sempre escorre dos
bicos, argh, argh. Além disso, a mãe está sempre totalmente dis­
ponível para o recém-nascido, presa o tempo todo. Adequável e

32 CORINNE MAIER
escravizável à vontade, não tem sequer direito a uma cerveja ou
a um aperitivo, pois é proibida qualquer absorção alcoólica, que
passa para o leite... Perguntei a uma amiga por que ela amamenta­
va e ela respondeu, com um seco tom de crítica: “E uma escolha
pessoal.” Mas não é mesmo; trata-se cada vez mais de uma obri­
gação coletiva.

SEM filhos
33
4-
Continue a se divertir

Ter filho é um engajamento incondicional e irrevogável. Tomar


essa decisão, então, é a coisa mais ameaçadora para os nervos,
em toda a existência. Conscientizar-se disso ocasiona um grande
choque: a depressão pós-parto e as crises conjugais subseqüen-
tes são doenças particularmente modernas, decorrentes do luto
que se impõe em relação à vida pregressa. Dali para a frente, as
atividades livres e de improviso de que você deverá desistir vão
se multiplicar. Você vai passar a viver no tempo de um outro, no
tempo da criança, recortado em rígidas camadas controladas pela
disponibilidade da babá, pela abertura da creche e pelo calendá­
rio escolar. A seguir, certas coisas que se tornam raras quando se
tem o encargo (a carga) de um filho.

— Dormir uma noite inteira (é pouco freqüente nos primeiros


meses).
— Permanecer na cama pela manhã (é difícil até a idade dos
8 anos, pois a “pulguinha” lhe salta em cima logo aos pri­
meiros raios do dia).

— Resolver ir ao cinema na última hora.

— Ficar na rua após a meia-noite, pois é preciso liberar a baby-


sitter. Quem chega depois da meia-noite está condenado a
levá-la em casa de carro ou lhe pagar o táxi.

— Ir a um museu ou uma exposição, já que as crianças come­


çam a berrar após cinco minutos.

— Viajar para um lugar diferente daqueles mais idiotas, onde


há mar, praia e um clube infantil.

— Partir fora do período das férias escolares (isso concerne a


todos que têm filhos entre 5 e 18 anos).

— Beber antes da hora da última mamadeira, pois acompa­


nhar uma criança à cama em estado de embriaguez é algo
que não se faz.

— Fumar na frente dos filhos, pois hoje em dia é um crime


contra a humanidade.

36 CORINNE MAIER
5-
Condução, trabalho, filharada:
Não, obrigada!

A vida com filhos é uma vida banal: você acorda todos os dias na
mesma hora para levá-los à creche, à babá ou à escola. Depois vai
para o trabalho e, em seguida, à tardinha, volta para casa e vai se
ocupar do banho, dos deveres de casa, de preparar a comida e a
cama das crianças. E é como se passam todos os dias.2
Os prisioneiros são deixados em liberdade condicional com uma
pulseira de segurança que permite seguir todos os seus movimen­
tos. Já você nem precisa disso. O filho é a sua corrente nos pés. As
suas “pistas” estão garantidas. Na ex-União Soviética, o regime dei­
xava alguns privilegiados viajarem para o Ocidente, mas os filhos
ficavam em segurança, atrás da cortina de ferro; era um bom meio
de se evitarem deserções. Procure o filho e encontrará os pais. Está

‘ Eliette Abécassis, em seu romance Un heureux événement [Um acontecimento


feliz], descreveu o inferno da maternidade: as noites em claro, a liberdade que
se vai, a tirania do cotidiano, a prisão domiciliar.
sendo procurado pela polícia na França? Graças ao seu filho, ela o
encontrará sem dificuldade. Em Belleville, bairro popular de Paris,
os sem-documentos eram presos na saída das escolas quando iam
buscar os filhos. Douce France, paraíso da infância.
Há maridos que desaparecem dizendo que vão comprar cigar­
ros, prisioneiros que escapolem da guarda e velhotes que tomam
um chá de sumiço do asilo. Mas pais que pulam fora sem avisar
nada são raros. E uma boa idéia para um filme, mas não creio que
um roteiro com esse argumento consiga apoio do Centro Nacio­
nal do Cinema.3
Devido a essa presença obrigatória, ter filhos é extenuante. Na
época em que eu tinha um emprego em tempo integral e meus
filhos eram pequenos, calculei que trabalhava setenta horas por
semana. Quarenta horas no escritório e mais trinta ocupando-me
das crianças. Três horas todas as noites destinadas a cuidar deles
— e isso, cinco dias da semana, mais sete horas no sábado e o mes­
mo no domingo. E muito. Felizmente embromava no trabalho,
ou não agüentaria tal ritmo.
De alguns anos para cá, os pais, não podendo dar conta disso
tudo, encontraram uma solução: a guarda alternada. O filho passa
uma semana com o pai e depois uma semana com a mãe. E uma
espécie de meio expediente familiar. E verdade, isso pressupõe
que o casal se separe antes, mas este é um detalhe simples, com­
parado àquilo de que se escapa: o inferno das tarefas domésticas
infindáveis, cada uma mais alienante que a outra. Afinal, a igual­
dade tem um preço, e a divisão igualitária das tarefas só acontece
realmente se o casal se separa.

3 E menos ainda da Comunidade Européia. Esta última aprecia, cito de memó­


ria, projetos “de alcance humanista e que dêem uma imagem positiva da huma­
nidade”. Pode-se imaginar: Pasolini ou Fassbinder nunca teriam conseguido um
centavo. E verdade que não faziam filmes para jovens.

38 CORINNE MAIER
Algum ingênuo pode me dizer: “Ah, mas cuidar de criança não
é trabalho.” E sim: criar filhos significa respeitar horários, assumir
trabalheiras inadiáveis; comporta suor, lágrimas e chateações ga­
rantidas. Aliás, na Áustria, as mulheres podem agora contabilizar
o tempo dedicado aos filhos na soma dos anos para a aposentado­
ria. Se cuidar de crianças fosse tarefa agradável e gratificante, as
pessoas fariam isso gratuitamente, mas não é o caso. Ninguém vai
querer cuidar dos seus filhos sem uma contrapartida financeira
(exceto seus próprios pais, que querem outro tipo de pagamento:
falaremos disso mais adiante): a puericultora, a professora, a babá
são remuneradas. Mal remuneradas, pois todas as profissões liga­
das à infância são desvalorizadas — os “profissionais da infância”
ganham menos do que os que cuidam de adultos. Os psicólogos
infantis não gozam de menor consideração do que os psicanalistas
para adultos, assim como os professores primários com relação aos
universitários? E por quê? Porque assumem uma tarefa incômoda
e ingrata. Criança, triste paraíso.

sem filhos
39
6.

Saiba manter seus amigos

Como se sabe, o amor imbeciliza as pessoas. Não há quem agüen-


te o apaixonado que fala de sua Dulcinéia por duas horas a fio,
contando suas qualidades e citando suas graças. O mesmo acon­
tece em relação aos pais maravilhados, admirados com o produto
das suas entranhas e que enchem todos em volta pelo excesso de
devoção parental. O escritor Courteline foi enfático a esse respei­
to: “Um dos mais claros efeitos da presença de um filho num lar
é o de completamente idiotizar alguns pais que, sem isso, seriam
simples imbecis.”
O drama começa na fase dos cartões de nascimento enviados:
não são mais Eveline e Jacques que anunciam a vinda ao mundo
de Antônio, mas Antônio que avisa ter chegado à casa de Eve­
line e Jacques. Os pais, encantados, fazem circular na internet
fotos piegas de família, mostrando a quem quiser (mesmo que não
queira) vídeos do filho tomando banho ou desembrulhando os
presentes de Natal. Colocam no vidro traseiro do carro um piás-
tico “bebê a bordo”: uma espécie de “santinho” dos tempos mo­
dernos, tão útil quanto um amuleto mágico para afastar energias
negativas. Tomam ao pé da letra todo mundo que educadamente
pergunta “como vai o neném?”, assim como se dissesse “bom-
dia”, sem necessariamente esperar resposta. Pois os pais babões
sentem-se obrigados a manter a Terra inteira a par dos progressos
incríveis da prole (“Oscar está fantástico”; “Alice está trocando
a noite pelo dia”; “Noé desenhou um boneco de neve que pare­
cia de verdade”; “Ontem Ulisses disse papai-cocô”; “Malu passou
para o Jardim 2”).
Nada é mais limitado do que a conversa de pais siderados
por terem conseguido fabricar um ser humano. Por isso, quando
surge a criança, os amigos somem. E verdade que muito rapida­
mente é o fofinho que atende o telefone, o que torna difícil falar
com os pais: Júlio (a não ser que tenha sido a irmãzinha Melissa)
organizou uma triagem supereficaz de todas as ligações que não
lhe dizem respeito, desligando assim que ouve uma desconhecida
voz de adulto. Há uma cena muito engraçada em Caro Diário, de
Nanni Moretti: de saco cheio, o personagem principal do filme
acaba desistindo de falar com os amigos. Outro tipo de obstáculo
constrangedor: a voz infantil tatibitateando na secretária eletrô­
nica dos pais, dizendo que eles não estão em casa. Isso significa,
para o amigo childfree: meu filho conta mais, para mim, do que o
restante do mundo.
Não há diálogo possível entre pais recentes e uma pessoa sem
filho, mesmo que uma consideração recíproca os devesse apro­
ximar. O childfree tem uma visão bem lamentável da vida sem
atrativos dos pais (“O coitado, entre berros e fraldas, não tem mais
um minuto próprio”), enquanto os pais lamentam a “solidão” do
outro (“Coitado, na sua idade, não ter filhos, que tristeza”). E um
total mal-entendido, com cada campo achando que o outro perde
as boas coisas da vida. A minha esquerda, estão as saídas de última

42 CORINNE MAIER
hora, os fins de semana de namoro, as manhãs longas e pregui­
çosas e as noitadas com amigos; à direita, a catapora de Oscar, as
aulas de violoncelo de Leo, a baby-sitter que não veio, a creche
em greve, os deveres de casa de Max. Acham tratar-se de um jogo
equilibrado? Cabe ao leitor julgar.
Você já visitou pais recentes, com sua prole em casa? E incrí­
vel. Chega-se por volta das oito da noite e as crianças, é claro, ain­
da não estão deitadas, pulando por todo lado, aos berros. Impos­
sível qualquer conversa tranqüila entre amigos, pois os diabinhos
correm sem parar, urram, fazem todas as besteiras do mundo para
chamar atenção, jogam os brinquedos nos pratos de salgadinhos.
Os pais tentam acalmá-los com longas explicações que não con­
vencem ninguém — “Filhinha, são dez horas e seria bom que
fosse dormir, pois o sono é necessário". E os convidados devem
manter as aparências, sem demonstrar irritação. No fim de uma
hora de pandemônio, o convidado se controla para não dizer “Se
não se acalmarem, vou embora". Mas em seguida vem o ritual
de se deitar, levando cerca de uma hora até que os monstrinhos
finalmente durmam. Os pais se sentem obrigados a fazer com que
a criança se sinta amada, apesar de já terem dito isso o dia inteiro.
Durante todo esse tempo, o convidado se controla, perguntando-
se por que não preferiu ir ao cinema... Quando, graças a Deus, a
visita termina, ele dá um suspiro de alívio e (enfim) acende um
cigarro na rua, para relaxar: é claro, não pôde fumar a noite intei­
ra, pois isso é péssimo para as crianças.
Imaginemos que o convidado, que acaba de sair fumegando
de irritação, tivesse aceito passar um fim de semana em família. E
quando as coisas se tornam francamente insuportáveis. Bramidos
à mesa, gritos à noite, pais irritados, respeito religioso pelas horas
da sesta: são coisas que estragam qualquer fim de semana. Mas
o pior é que o convidado passa sempre para segundo plano, em
comparação às crianças. Seu bem-estar, fica claro, não tem tanta

SEM FILHOS 43
importância. Ele, então, terá que suportar uma série de coisinhas
desagradáveis e aborrecimentos, como a porta do quarto do bebê
aberta, pois o queridinho suporta mal o calor, e a impossibilidade
de se fazer isso ou aquilo, que “pode irritar as crianças" etc. Um
dia, com os filhos crescidos, o casal aqui descrito (qualquer se­
melhança com pessoas reais não é mera ficção) vai se encontrar
sozinho e sem amigos, numa casa de subúrbio, contando o tempo
que falta para a aposentadoria. E assim que vivem os homens (e as
mulheres)... quando têm filhos? E de estremecer de medo.

44 CORINNE MAIER
7-
Não aprenda a língua idiota
usada para se dirigir às crianças

Existe uma língua especial para se comunicar com as crianças. Você


realmente tem vontade de aprendê-la? Vou explicar os rudimentos.
E um idioma que baniu o imperativo, improvisando no lugar ou­
tros modos verbais. Não se diz “Camila, dê boa-noite e vá se deitar”,
e sim “Camila, você diz boa-noite e sobe para se deitar”. O que
mais se usa é: “Você se acalma?” Ou então: “Vamos nos acalmar?”
Repete-se isto como um mantra, mas, em geral, permanece letra
morta. Quando o imperativo é aplicado, faz-se, às vezes, de forma
errada: “Sentado!” (em vez de “sente-se”) tornou-se uma espécie de
refrão. Em geral, fala-se com a criança no presente. E mais simples.
E o futuro se esvai lentamente: “Papai chega daqui a pouquinho”;
“Amanhã você faz seus deveres”. Quanto ao passado, deve se li­
mitar ao bem recente: “Você arrumou seu quarto, Melissa?” Com
crianças, a língua parece uma cançoneta de dois tempos.
Procura-se não imbecilizar mais as crianças. E frases do tipo
meu bebezinho está com o pezinho e os dedinhos frios” foram
banidas. É piegas. Além disso, atrapalha o desenvolvimento da
criança, que deve entrar com tudo na língua de verdade, a de gen­
te grande. Por isso, deve-se falar com elas. De tudo, não importa o
quê. Nada mais ridículo do que certas mães de família que fazem
grandes discursos a pirralhos de duas semanas que nada podem
fazer: “Mamãe vai mudar sua fralda, Kevin, você fez um coco-
zão, mamãe vai mudar a fralda e depois a gente vai ver a vovó,
sabe, a vovó que mora naquela casa grande, aquela casa perto da
estação...” Isso pode durar horas. Algumas falam baboseiras assim,
ridículas, em público. E preciso realmente ter um cocozão na
cabeça, é o caso de se dizer...
Mais tarde, com as crianças um pouco maiores, é possível ou­
vir pais assim dizerem, com toda meiguice: “Cassandra, se você
queimar o pêlo do gatinho, ele vai morrer, e você não quer que
ele morra, não é?” E isso diante de uma criança horrível, ocupada
simplesmente em torturar o gato do vizinho — o qual, felizmen­
te, sabe se defender. Nunca, em todo caso, tabefes nem gritos: é
pela persuasão que se deve agir, “deve-se explicar”. De preferência
ajoelhando-se no chão, para estar na mesma altura da criança,
ou ela pode se sentir inferiorizada. Pais bem-intencionados se
esforçam para inventar formas de autoridade que não existiam
quando eram pequenos, visando convencer, mais do que serem
propriamente obedecidos. Curiosamente, acontece o mesmo no
mundo empresarial, onde a autoridade é substituída pelo diálogo,
e o diálogo pela comunicação.
A criança dá o troco ao adulto na mesma moeda, tomando-o
por imbecil e falando uma língua parecida. A conversa das crian­
ças é cheia de perguntas descabidas, do tipo: “Na piscina, quando
você relaxa, consegue afundar sem se mexer?” Ou: “Queria que
lhe injetassem no coração um negócio superdoído para você se
transformar em árvore?” Precisei de anos para dizer a meus filhos
que não tinha vontade de responder. Na verdade, nossa época é

46 CORINNE MAIER
contra isso. Não se pode mais dizer a uma criança: “Cale a boca,
estou pensando em coisas importantes.” Então, é simples, a gente
não escuta: meus filhos sempre me acharam distraída. Na verda­
de, quando eles falam comigo, muitas vezes penso em coisas agra­
dáveis, livros a escrever, férias sozinha com um belo desconheci­
do numa ilha de sonho, ou em uma simples noitada beaujolais
rtouveau com as amigas. Ou seja, momentos sem eles.
Quando crescem, as coisas pioram. O vocabulário que usam é
terrivelmente reduzido, o discurso é entrecortado, e cada frase en­
tremeada com uns “puta merda” bem sinceros. O uso compulsivo
de “tipo isso, tipo aquilo” traduz a incredulidade diante da reali­
dade que têm em volta: “Tipo, eu berrava no telefone...”; “Tipo,
estou me lixando, não está vendo?”; “Ela disse, vou me matar e eu
disse, espera até amanhã, que hoje estou exausta”; “Sinistro, eu vi
e foi um auê, viu só?”; “E como, nem sei, tipo quando te colocam
com um cara, você tenta se adaptar, nem sei”. Se encontrasse
alguém se exprimindo assim, num jantar ou num bar, francamen­
te, teria vontade de manter uma conversa? Com certeza não. O
diálogo pais-filhos faz com que a gente se sinta como se estivesse
o tempo todo num jantar com um bando de idiotas.

sem filhos 47
8.

O quarto de brinquedos
é o fim da brincadeira

Deixe de lado a visão idílica das crianças: criar um filho é uma


guerra. E isso não é só uma imagem. Cada vez mais as crianças
batem nos pais. Enquanto não têm idade para acertar as contas,
sua “doçura" vai obrigá-lo a repetir sem parar: “Trate de se com­
portar direito"; “Não ponha lenços de papel usados em cima da
mesa"; “Feche a boca quando mastiga"; “Arrume seu quarto"; “Jo­
gue fora os lenços de papel usados"; “Vê se faz o dever de casa".
Para testar o poder sobre você, a criança vai tentar desmoralizá-lo
exatamente no ponto em que você der mostras de desgaste. Lidar
com várias crianças significa o dobro, ou mesmo o triplo do traba­
lho, sobretudo no caso de famílias recompostas que se orgulham
do seu lado “moderno” — na falta de saber como qualificá-las de
forma mais inteligente. A família recomposta quer dizer, para a
mulher, criar seus próprios filhos, além daquele ou daqueles do
outro. Por que não uma colônia de férias inteira a suportar, já que
é assim?
O pior é que a criança sabe como estar presente para lhe im­
pedir qualquer prazer. E a sua face oculta. Acredite, ela se mostra
muito criativa nesse campo. Vai ficar doente quando você (en­
fim) puder sair para se divertir, vai irritá-lo quando for comemorar
seu aniversário com os amigos. Detesta que traga para casa um(a)
desconhecido(a); aliás, você já nem pensava mesmo nisso, com
medo de “traumatizá-la”. Além disso, ela vai conseguir se pôr a
berrar precisamente quando você for se deitar com a tal amiga, ou
amigo. E isso se ela dormir no próprio quarto, pois muitas crian­
ças dormem na cama dos pais: 12 por cento dos pais americanos
confessam que passam a noite com seus bebês.4 Pode-se imaginar
o quão intensa é a sua vida sexual. Adeus carinhos, que tristeza!
O que seria mais insuportável para a criança, sozinha na pró­
pria cama, do que imaginar o pai ou a mãe fazendo amor? E
impensável. Além disso, talvez seja este o sentido do mito inven­
tado por Freud em Totem e tabu:5 os filhos matam o pai porque
o cretino leva uma boa vida, com todo o mulheril que ele tem,
e isso é um escândalo inaceitável. Até a década de 1970, os pais
davam o troco na mesma moeda, fazendo pesar sobre os filhos um
controle sexual injusto, mas firme: nada de relações sexuais antes
do casamento, nada de boogie-woogie antes das orações da noite.
A atividade sexual dos jovens, sobretudo das meninas, era cuida­

4 De acordo com um estudo do Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desen­


volvimento Humano. Isso chega a tal ponto que pais americanos cada vez mais
apelam para sleep consultants que tentam desabituar a criança ao sono em suas
camas.
5 Concordo que a leitura que faço de Totem e tabu é bem pouco ortodoxa. (O
leitor culto está familiarizado com a seguinte análise: em Totem e tabu, Freud
explicou que a morte do pai e o banqueteamento canibal que se seguiu não so­
mente instituíram a proibição do incesto, mas deram origem às relações parenta-
is baseadas nas trocas homem-mulher. Além disso, teriam igualmente lançado os
fundamentos de todas as religiões, uma vez que elas representam e reproduzem
simbolicamente a morte e a devoração do pai.

5° CORINNE MAIER
dosamente controlada. No fundo, fazia-se justiça. Um toma-lá-
dá-cá: “Você me impede de viver minha vida e eu ponho sérios
limites à sua liberdade.” Uma batalha.
E a repressão sexual não era motivada apenas pelo medo de
uma gravidez indesejada. Pois durante quase um século, o XIX,
pais e educadores uniram forças para lutar contra uma terrível
ameaça, a masturbação dos filhos, que se supunha prejudicar a
saúde da juventude, roubando-lhe as forças. Hoje em dia, não
se entende muito bem por que a punheta atemorizava tanto a
sociedade da época. Vamos arriscar uma explicação. Ela parte de
uma constatação lapidar e forte: um só não é bom, dois é melhor.
Seguindo a mesma ordem de raciocínio, a clonagem, tão malfa-
lada, está para a reprodução como a masturbação para a sexuali­
dade. Ter um prazer solitário, fazer um filho com os seus próprios
genes apenas, é o mesmo combate — e o mesmo escândalo. Por
quê? Porque não é aconselhável fazer sozinho o que se pode (e
deve) fazer a dois. E uma bela maneira de diluir no casal a indi­
vidualidade que, deixada por sua conta, pode levar a não mais se
aderir aos fundamentos da sociedade, a ponto até — que horror!
— de cessar a reprodução. Que relação tem isso com a criança?
O discurso meloso e protetor da sociedade em relação a ela mal
esconde a imposição “trate de andar direito”.
Assim que foi anunciado um certo bebê clonado pela seita dos
raelianos,
* a imprensa se referiu a “transgressões de todas as leis
relativas à experimentação humana”, a “algo irreversível que se
produziu”, à “abominação, monstruosidade, a um atentado contra
a ética”. Por que tanta celeuma por um bebê clonado da própria
mãe? Falando sério, de qualquer maneira somos todos clones, não

Seita criada na França pelo ex-cantor e ex-jornalista esportivo Claude Vorilhon


(que mudou o nome para Raèl) após uma abdução que o levou a um planeta
°nde conheceu Buda, Moisés, Jesus, Maomé etc. (N. do T.)

sem filhos
51
dos nossos pais, mas de algum vizinho ou colega. As palavras de or­
dem não são mais “amem-se uns aos outros", mas “pareçam-se uns
com os outros". Assim como os tomates, as ervilhas ou as batatas:
tudo precisa ter a mesma dimensão para caber em caixinhas.

CORINNE MAIER
9-
O filho: Um estraga-prazeres

O filho nem sempre acaba com o amor, mas muitas vezes acaba
com o desejo. O atentado estético contra o corpo da mulher a faz,
durante vários meses, parecer um bicho grande, disforme e engor­
dado à força. Por tudo isso, ela fica obrigada a se vestir como um
saco. Por mais que nos repitam que mulher grávida é maravilhosa
e exuberante, pessoalmente tenho muitas dúvidas: grávida, não
era bem como eu me sentia com aquele tonel crescendo abai­
xo dos meus seios. Muitos depoimentos obtidos de amigas, entre
a sobremesa e o cafezinho, me convenceram de algo raramente
enfocado pelas revistas “pais e filhos”: muitos homens até acham
bonitas suas namoradas ou esposas esperando filho, mas nem por
isso têm tanta vontade assim de fazer amor com elas.
Muitas vezes, então, é na gravidez que começa um longo in­
verno sexual. Uma notícia ruim que não vem seguida por uma
boa, como nos seriados americanos. Não, essa privação não vai
acabar quando a criança nascer. Ninguém tem vontade de fazer
amor após uma episiotomia, e mesmo que tenha, isso dói duran­
te várias semanas. Não sabe o que é uma episiotomia? Trata-se,
diz o dicionário, de “uma incisão do períneo, partindo da vulva,
praticada por ocasião do parto". Ou seja, minhas senhoras, mal­
trata-se ferozmente a parte mais íntima do seu ser, aquela que,
em geral, lhes permite gozar, mesmo que — e felizmente — haja
outras. Segundo os médicos, a episiotomia é uma intervenção be­
nigna; ela é freqüente pelo menos para quem escapa dos estragos
da cesariana, que, esta sim, é uma verdadeira operação. Seria a
episiotomia um mal menor, mais ou menos como ter votado em
Jacques Chirac para não ter Le Pen como presidente da Repúbli­
ca? Mas isso é motivo para festejar?
Não se tem vontade de fazer amor entre duas fraldas a trocar,
depois de uma mamadeira a ser dada em plena noite, tendo pas­
sado por três horas de trabalho em casa após um expediente no
escritório. Não se tem vontade de fazer amor tendo em volta o al­
voroço de pirralhos brigando. Isso se agrava quando se mora num
apartamento apertado, com as crianças aprisionadas num mesmo
quarto, que não fica longe do dos pais. Podem imaginar um filme
como Nove semanas e meia de amor com crianças no quarto ao
lado? A temperatura abaixa imediatamente nove graus e meio,
mesmo com atores supersensuais. Adeus, erotismo.

54 CORINNE MAIER
IO.

Dobram os sinos para o casal

Bom-dia, filho, adeus, sexo, adeus, casal. Este último não é solúvel
na família. O desejo, que tem a ver com a surpresa, o imprevisto,
a capacidade inventiva dos parceiros, vai se reduzir muito quando
tiverem um filho ou, mais ainda, dois. Com crianças a tiracolo,
você se torna, antes de tudo, um “papai” ou uma “mamãe”. Você
deixa de existir na primeira pessoa. Ao se dirigir ao filho, você mes­
ma diz: “Mamãe não concorda que você ponha suas melecas no
quadro, Ulisses.” No final de alguns anos, vão ver, serão unica­
mente “papai” e “mamãe” e, vinte ou trinta anos depois, já avós,
“Jacques” e “Eveline”.
A prioridade dada à criança é o que faz dobrarem os sinos para
o casal? Muitas vezes, sim. Quando se tem filhos, deixa-se de ser a
jovem um tanto volúvel que se divertia com as amigas e provocava
0 namorado; deixa-se de ser o rapaz impetuoso que levava vida
boêmia e nem sabia a quantas andava, no final do mês, sua conta
no banco. Jacques e Eveline serão avós, mas não obrigatoriamen­
te estarão juntos. Estatisticamente, têm pouca probabilidade de
envelhecerem um ao lado do outro: a criação dos filhos os esgo­
tou. Não souberam guardar recursos suficientes para si mesmos.
Ele só enxerga nela a matrona que cuida da casa, do controle do
dinheiro e das crianças. Ela só enxerga nele o bonachão que tem
às vezes alguns casos bem sem graça, faz uns consertos na casa no
fim de semana e gosta de cozinhar de vez em quando. Cinderela
se transformou numa barrica e o príncipe encantado em sapo.
Ao observar outros casais se tornarem pais e afundarem total­
mente em seus papéis, eu ingenuamente acreditei que eles ti­
nham caído na armadilha, mas que isso não aconteceria comigo.
Erro: aconteceu comigo também. Quase não me olho mais no
espelho, uso sapatos baixos, deixo de lado minhas lentes de con­
tato (que ressecam no estojo) e só compro roupas uma vez por
ano. Meu companheiro, para começar, é o pai dos meus filhos e
uma boa parte das nossas conversas gira em torno deles. Quando
um homem me dirige a palavra, num jantar, nunca me passa pela
cabeça que esteja me paquerando. E quando é o caso, levo meses
para me dar conta.
Conseqüência: em cada dois casais, nas cidades grandes, um se
divorcia ou se separa. Esses rompimentos acontecem, sobretudo,
entre os casais mais jovens. Um número cada vez maior deles se
separa com os filhos ainda bem pequenos: estatisticamente, é por
volta do quarto ano depois do nascimento do primeiro, ou pouco
tempo depois do segundo que tudo desanda. Desejar ou conceber;
muitas vezes, é preciso escolher...

56 CORINNE MAIER
11.

Ser ou fazer: Não se sinta


obrigado a escolher

Por muito tempo o recém-nascido foi considerado um simples


tubo digestivo, correspondendo à exclusiva definição que os obs­
tetras do século XX lhe deram: “Objeto necessário e indispensá­
vel na sala de trabalho.” Em menos de trinta anos, porém, ele se
tornou algo precioso, dotado de personalidade própria. Muitos
psicanalistas, inclusive entre os maiores, se esforçaram para expli­
car que os bebês, as crianças, não são simples objetos, mas sujeitos
cuja singularidade deve ser respeitada. Isto é verdade, mas abriu
espaço para um mal-entendido: os pais compreenderam que se
deve valorizar o lado precioso da criança e se puseram a mimá-la
como a menina de seus olhos. Nada, nunca, deve lhes faltar. Eles
se esfalfam para preencher necessidades que ontem mesmo nem
sequer existiam: e é uma felicidade satisfazê-las. Isso mesmo, repi­
tam comigo, é uma felicidade.
Além disso, os pais compensam na prática (cuidando dos fi­
lhos) o que perderam com o ser (o fato de serem pais). À pergunta
“O que é ser pai (ou mãe)?” não há mais resposta clara. Antiga­
mente, os pais eram papai e mamãe. Era bem simples. Hoje em
dia, há cada vez mais crianças que, para nascer, mobilizam um
terceiro: o doador de esperma que substitui o marido infértil, a
doadora de óvulo que substitui a mãe estéril, ou ainda a chamada
barriga de aluguel, que permite a uma outra mulher ter o filho
que se concebeu com o marido ou o companheiro. Passam a ser
necessários três corpos, em vez de dois, para fazer uma criança.
O mesmo se passa com famílias recompostas, só que no campo
social: o homem ou a mulher que convive com os filhos da com­
panheira ou companheiro contribui para a sua “criação”.
Quem é a mãe? A mulher que deu à luz uma criança gerada
pela implantação do óvulo de uma outra mulher fecundada por
seu marido é “inteiramente” mãe? Quem é o pai? O homem que
aceitou a inseminação da companheira com o esperma de um
doador anônimo é “inteiramente ” pai? Tudo isso é extremamente
complicado; o certo é que quanto mais as coordenadas parentais
são imprecisas, mais investimos na missão de ser pai ou mãe, pois
é o filho que serve de point de capition
* para a família. Hoje em
dia, ele é o centro, tudo gira ao seu redor, e os adultos que exage­
ram o valor da criança formam combinações cada vez mais varia­
das. Felizmente, há uma referência: “Ter filhos é dar amor”, como
escreveu um jornalista da revista Parents, uma publicação água-
com-açúcar para pais em crise de identidade. Uamour, toujours
Uamour [O amor, sempre o amor]: é simples e tranqüiliza.

* A expressão, que vem do lacanianismo, é em geral deixada sem tradução nos


textos brasileiros. Em Seminário 3, As psicoses, o psicanalista francês definiu-a
como “ponto de convergência que permite situar retroativa e prospectivamente
tudo o que se passa em determinado discurso” (Rio de Janeiro: Zahar, 1988).
(N. do T.)

58 CORINNE MAIER
12.

“A criança é uma espécie de anão cheio


de vícios e com uma crueldade inata”
(Michel Houellebecq)

Jean-Jacques Rousseau moldou a visão que temos da criança. Esse


autor, que, no entanto, se livrou dos próprios filhos, entregando-os
para adoção, celebrou com sensibilidade a aliança entre a criança
e o selvagem. Tanto um quanto o outro viviam em comunhão
imediata com as coisas, na apreensão da verdade, numa pureza
que a civilização não teria ainda afetado.
Vamos falar sério. A inocência da criança, já dizia Santo Agosti­
nho, vem da fragilidade dos seus membros, e não das intenções. A
criança é como o seu cachorrinho: se fosse duas ou três vezes maior,
seria um animal feroz — seu melhor inimigo. Muitos meninos e me­
ninas entrevistados na televisão confessam ter desejo de ficar grandes
e fortes para poder se vingar de professores e professoras, bater nos
colegas e até mesmo matar figuras de autoridade, pais e dirigentes
da escola. É o tema do filme Querida, estiquei o bebê: um cientis­
ta distraído, após um acidente no laboratório, vê o filho de 2 anos
crescer vários metros e começar a semear o terror na vizinhança.
Lembre-se da sua infância. Colegas que debochavam de você,
roubavam sua merenda e bolinhas de gude, falavam mal das suas
roupas, deixavam claro que você não tinha “estilo". Uma criança
só pensa em roubar o brinquedo da outra, humilhá-la em público,
bater. E vir choramingar em seguida junto aos adultos, contando
maus-tratos, pois a criança adora fazer queixa. Por natureza, ela
sempre se considera vítima, nunca responsável nem culpada. Le­
ram O senhor das moscas? O edificante livro conta a história de
crianças que chegam a uma ilha deserta e acabam matando umas
às outras. Isso acontece no mundo real, com freqüência cada vez
maior, e às vezes perto da sua casa. Em fins de dezembro de 2006,
um aluno de 12 anos foi morto na cidade de Meaux, a pontapés,
por dois colegas de 11 anos. Alguns meses antes, uma espanhola
de 13 anos foi espancada por três meninas da mesma sala de aula,
a ponto de ter a perna direita fraturada em vários lugares. Senhor,
perdoai essa infância.
A criança é um lobo para a criança. Mas também é um mal
maior para os adultos. Viajar de TGV, o trem de alta velocida­
de francês, ao lado de crianças pequenas é uma prova para os
nervos: gritos, espirros de refrigerante nas cortinas, pontapés nas
poltronas. Por um bom tempo, a única maneira de evitar tais in­
cômodos era optar pelo vagão dos fumantes, mas não existe mais.
Sugiro que a companhia de trens, a SNCF, venda passagens Sem
filhos. Passaria por um certo desgaste: seria a garantia de morte do
“politicamente correto", mas um sucesso indiscutível. Pior do que
viajar de trem, morar no apartamento embaixo de uma família
com criança(s), num prédio com péssima acústica, é um calvário:
dêem boas-vindas à gritaria, aos móveis arrastados no chão, aos
brinquedos lançados com violência que o acordam brutalmente
assim que o dia amanhece. Há quem se veja obrigado a mudar de
casa; tenho exemplos disso.

6o CORINNE MAIER
Do mesmo modo, morar perto de uma escola é sinônimo de
chateação. Um pequeno exemplo real, tirado da vida cotidiana,
que é fonte inigualável de informações preciosas. Esse pequeno
fato anódino tem a ver com os transtornos causados pelas crianças
na saída da escola. Pais receberam a seguinte carta: “Há alguns
meses, moradores das imediações da escola reclamam de prejuízos
ocasionados pela incivilidade dos alunos, tanto no espaço público
quanto contra prédios privados. Além disso, constatou-se que o
agrupamento de alunos no fim das aulas causa desordens, e mui­
tos deles cometem as tais incivilidades (abandono de detritos e
lixo) e danos em bens públicos e privados.” Um conselho: quando
comprar um apartamento, escolha de preferência a vizinhança
de um asilo de velhos. Mesmo que você tenha filhos, pelo menos
não será incomodado pela filharada dos outros.

SEM filhos 61
B-
Ela é conformista

Ninguém é mais maria-vai-com-as-outras do que uma criança. É


normal: ela imita os adultos, os garotos um pouco maiores ou
aqueles que têm a idade que elas gostariam de ter. A criança passa
a sua vida de criança querendo ser um outro, com o intuito de ser
“popular”. Quando compreende que crescer não é a finalidade
única, percebe, ao mesmo tempo, que está envelhecendo — e
aí terminou a infância e já é tarde para aproveitá-la. Como quer
sempre ser um outro, a criança nunca está contente consigo mes­
ma. Tem medo de que sejam alvo de zombarias, que a apontem
na rua, que falem do seu pulôver ou da sua mochila. O resultado
é que ela procura fazer tudo como os colegas de escola. Por via
das dúvidas, usa os mesmos sapatos, escreve nos mesmos cader­
nos, adota a mesma maneira de falar. A infância é uma longa
neurose, pois é neurótico viver de acordo com o que se acredita
ser a expectativa dos outros. Muitas vezes, a neurose da infância
não se cura e evolui suavemente para a neurose adulta.
A criança detesta ser diferente e não tolera que os pais se sin-
gularizem. Meus filhos me avisaram que estava fora de questão os
colegas os verem em nosso velho Peugeot 205, todo batido. Não
querem que o pai vá buscá-los na escola com sua bermuda furada.
Não entendem que eu passe boa parte da vida em casa, escreven­
do ou recebendo pacientes. E o mais novo, durante muito tempo,
dizia aos amigos, sem deixar de sentir uma certa vergonha: “A
mamãe não trabalha.” As mães das outras crianças saíam de casa
para ir a algum escritório em horários marcados: para eles, era a
prova de que, de fato, tinham uma profissão, apesar de ninguém
saber muito bem o que fazia a “funcionária”.
Sem ter noção exata do que é o trabalho, muitas crianças
acham que é mais ou menos como a escola, com presença obri­
gatória e professores estúpidos. O trabalho dos pais se tornou uma
entidade totalmente abstrata para a sua prole. Ela estará madura
para ter, quando crescer, empregos inúteis e desinteressantes. A
sociedade espera das crianças, desde pequenas, um respeito cego
pelas regras e pela disciplina: a creche e a escola são apenas elos
do imenso aparelho de controle dos corpos e dos indivíduos que é
o mundo. Do jardim-de-infância à empresa, não há nenhuma di­
ferença essencial. O primeiro “toma conta” da criança e a segun­
da, do adulto. A criança imagina que isso, de repente, é normal.
Um cantinho todo seu, com ar-condicionado, horários a serem
respeitados, um restaurante interno, colegas. Um sonho liliputia-
no bem do seu tamanho.

64 CORINNE MAIER
14-
Crianças custam caro

Um filho custa uma fortuna. Está entre as compras mais caras


que o consumidor médio pode fazer em sua vida. Em matéria de
dinheiro, custa mais caro que um carro de luxo do último tipo,
um cruzeiro ao redor do mundo, um apartamento de quarto e sala
em Paris. Pior ainda, o custo total pode aumentar no correr dos
anos. Na França, é claro, há a ajuda do Estado, que distribui múl­
tiplos subsídios (cuidado, nem todos têm direito a eles) agrupados
sob a égide da instituição PAJE, de auxílio aos pais de crianças
pequenas, assim como há os abonos no início do ano letivo, uma
bolsa para o ensino fundamental, para o médio... Mas tudo isso
representa muito pouco em comparação ao que você vai gastar
com seu filho.
E preciso dar casa, comida, roupas, conseguir quem tome
conta, pagar escola e/ou estudos, e tudo isso durante 18 ou 25
an°s, podendo chegar a trinta. Sabe-se que isso representa, em
rnédia, 20 ou 30 por cento de um salário, mas, curiosamente, não
se conhece exatamente o montante. E olhe que não faltam es­
tatísticas na França, havendo inclusive gente para quem isso é o
próprio emprego, como os funcionários do Alto Conselho da Po­
pulação e da Família. Na prática, é uma conjuração mantida por
gente pró-natalidade, estes ideólogos convencidos de que a Fran­
ça precisa de bebês para fazer perdurar um modelo francês que,
é claro, vai irremediavelmente desandar se não for abastecido
por uma ninhada bem francesa. Joêl-Yves Le Bigot, presidente
do Instituto da Infância, confirma: “Todos os que se preocupam
com a demografia do país concordam que é melhor os franceses
não saberem realmente quanto custa criar uma criança, pois, de
outra forma, se reproduziríam menos.” Ocultam-nos tudo, nada
nos dizem.
O segredo da paternidade feliz é, muito claramente, o dinhei­
ro, que permite escapar da constante servidão inerente à profissão
pai-mãe. Na revista Vbzci, Angelina Jolie, Sharon Stone, Madonna,
Nicole Kidman e Laeticia Hallyday são mães realizadas, não resis­
tem ao prazer de declarar que a maternidade foi o que houve de
mais importante para elas. Quanto aos homens, é o mesmo bor­
dão: a paternidade revelou a Johnny Depp profundezas abissais
e, a vida inteira, Tom Cruise quis ser pai. Ter empregados torna
as coisas bem mais fáceis: uma baby-sitter que passa a noite em
casa quando você sai, uma babá para fazer a comidinha enquanto
você janta com uma amiga, uma estudante para ajudar com os
deveres de casa. E o mínimo que se precisa para tornar suportável
a paternidade.
Mas vamos parar de sonhar, pois você pertence à França de
baixo ou à França média (cada vez mais parecidas) e tem, en­
tão, que fazer tudo você mesmo. Com um filho vai aprender,
queira ou não, um monte de profissões: puericultor, ama-seca,
animador de festa, pedagogo, cozinheiro, mestre-escola, policial,
motorista, enfermeiro, psicólogo e conselheiro escolar. Mas,

66 CORINNE MAIER
sobretudo, a profissão de ator, pois o filho constitui o público
ideal para quem quer representar o papel de pai/mãe — pelo
menos até a adolescência. E muito para uma pessoa só. E o mais
impressionante é que as mães de família, no entanto flexíveis e
pluridimensionais, tenham tão pouco valor no mercado de traba­
lho... Já viram patrões disputarem mães de mais de 45 anos para
contratá-las? Isso prova que há algo de podre no doce reino dos
recursos humanos.

SEm filhos 67
Um aliado objetivo do capitalismo

O consumo é o principal pilar da paternidade. É preciso se munir


de uma lista incrível de objetos para se tornar um pai digno desse
nome. Um berço, um cercado, um moisés, um móvel de canto
com sofá e prateleiras, uma chaisedongue, um carrinho de quatro
rodas, um outro, menor e dobrável, de duas rodas, uma caminha
de dobrar, um porta-bebês do tipo “canguru", fraldas, roupas, es-
quenta-mamadeiras, esterilizador de mamadeira, produtos de hi­
giene, lenços umedecidos, desobstruidor de nariz... Alguns desses
objetos trazem requintes tecnológicos tão impressionantes quanto
inúteis: o carrinho,6 por exemplo. Os modelos “último tipo" se
chamam Vigour, Aéroport, Carrera. Podem ter seis ou até oito ro­
das (até 27,3 centímetros de diâmetro), pneus com câmara, freio

6 Ver o artigo de Catherine Millet, “La poussette surdimensionnée” [O carrinho


superdimensionadol, na revista Le Nouvel Observateur, edição de 15 de março
de 2007.
a disco na dianteira e outro de pedal na roda traseira, guidom
ergonômico etc. Uma pequena maravilha. Com o dobro do peso,
é difícil levá-lo no metrô e impossível numa bicicleta ou mesmo
numa moto. Para transportar todo esse equipamento, um auto­
móvel é indispensável, de preferência grande e com airbags, por
evidentes motivos de segurança. Cada saída de casa se torna uma
mudança completa, um pesadelo de malas e sacolas.
Tudo isso é caro, mas estamos apenas começando, pois a
criança se suja e come. E preciso, então, uma máquina de lavar
roupas e outra de lavar louça. Há também uma orgia de fraldas
descartáveis (seis ou sete por dia, durante dois ou três anos), o
que é um verdadeiro desastre para o meio ambiente, pois não
são recicláveis. Como o danadinho ocupa espaço, compra-se um
apartamento em que ele tenha seu próprio quarto, esperando que
assim ele encha menos a paciência. Além disso, ele tem que se
vestir e existe uma moda infantil que os pais aplicados tentam
seguir, comprando as marcas especializadas. Inúmeros artigos
nas revistas femininas e inclusive uma Vogue crianças (chamada
Milk) ajudam a escolher roupas tão caras quanto as de adultos. O
bonitinho só vai usá-las por três meses, talvez até nenhuma vez,
mas que importância tem isso?
A criança faz os pais consumirem tanto quanto ela própria. E
o alvo favorito da publicidade de produtos eletrônicos. Quanto
mais novo, mais brilhante, mais ela gosta. Pequenininha, já lida
com o gameboy e aos 8 anos ganha seu primeiro computador: a
tecnologia não tem segredos para ela. Aos 12 o MP3 é absoluta­
mente indispensável para causar boa impressão no intervalo das
aulas. Mas não basta. A máquina fotográfica digital multifunções
se impõe. E, depois, um telefone celular. Segundo um estudo
britânico, dois terços das crianças entre 6 e 13 anos têm um. O
que fazem com isso? Diz um especialista em marketing infantil
(profissão apaixonante, tenho certeza) que “as crianças querem

7° CORINNE MAIER
um? mesmo que usem pouco, ou apenas para ligar para casa".
Ligar para casa? Filhos e pais já não têm todas as ocasiões que
precisam para... não se falarem? Aliás, as crianças têm um gosto
que é um lixo: sapatos horríveis com cores inspiradas no último
videogame da moda, roupas de séries televisivas imbecis, jogo de
cartas Yu-Gi-Oh! ou Duel Masters, bonecas Diddl. Bem-vindos
ao reino da feiúra.
Para os pais, tudo isso representa dinheiro desperdiçado, tem­
po perdido comprando porcarias e milhares de horas passadas no
trabalho para pagar as prestações do apartamento que estoca todas
essas coisas. E não é qualquer um que serve, pois um quarto de
criança é sempre um verdadeiro caos, com brinquedos amontoados
até o teto e uma bagunça incrível de roupas, caixas nunca abertas,
coisas quebradas, fora de moda ou com as quais ela implicou. A
criança está em seu elemento no reino da mercadoria. O que o
capitalismo promove — cada vez mais objetos, mais tralhas difí­
ceis de serem reaproveitadas, bens intercambiáveis, rapidamente
obsoletos e renovados sem parar — é exatamente o que ela quer.
Enquanto houver crianças, o mundo absurdo em que vivemos
tem futuro. Não garanto o mesmo com relação à espécie huma­
na, mas isso é uma outra história.

SEM FILHOS
71
16.

Mantê-la ocupada: Um quebra-cabeça

Há alguns anos, os britânicos nos deram uma obra-prima típica


de seu humor particular, enumerando possíveis “ 101 formas de
usar um gato morto”. Cento e uma formas de usar uma crian­
ça viva exigem bem mais imaginação. Antigamente, as crianças
brincavam na ma, nos terrenos baldios e se divertiam umas com
as outras. Hoje em dia, todo lugar está tomado pelos automóveis.
E por seqüestradores de crianças, grande terror atual dos pais, que
os imaginam em cada esquina. Está fora de cogitação dizer “vai
brincar lá fora”, pois isso significa que vão brincar sozinhos num
quintal de subúrbio — e a experiência pessoal me ensinou que
não é uma distração de que gostem muito. A criança fica então
trancada como em UArrache-Coeur [O arranca-corações], de Bo­
ns Vian. No romance, a mãe, obcecada pela idéia de um possível
acidente com os filhos, acaba trancando-os numa jaula.
Com uma das mãos o capitalismo tirou das crianças o espaço
natural que tinham para brincar e experimentar, mas com a outra
deu-lhes objetos em compensação. Um era gratuito e os outros
são pagos, mas isso faz parte, é claro. Primeiro de tudo, a televisão,
à qual a criança pode ficar grudada horas a fio, tendo o cérebro
lavado. Durante esse tempo, ela pelo menos não pensa em se ma­
chucar. Mas as classes média e alta vão com cuidado, pois sabem
que isso idiotiza as crianças (e lobotomiza os adultos, mas, para
eles, em geral, já é tarde demais). Preferem optar por instrumen­
tos cada vez mais aperfeiçoados (Game Boy, PlayStation...), que a
meninada adora. Não são mais inteligentes, mas têm o mérito de
mantê-los ocupados. Viva a babá high-tech.
Porém, o mais gratificante para os pais é quando suam a ca­
misa para que os filhos se ocupem de forma inteligente. Deve-se
começar quando ainda são bem pequenos, com poucos meses.
Os bebês nadadores são uma boa prova disso. O princípio consiste
em mergulhá-los numa água morna (provavelmente cheia de xixi)
a partir dos 4 meses de idade. Está super em voga, tanto que, em
Paris, é preciso se inscrever antes do nascimento do filho. E para
que serve? Não sei, mas cito o que se lê num dos sites da internet
voltados a isto: “A criança aprende a se sentir autônoma e o meio
estimulante favorece o desenvolvimento psicomotor. Para muitas
crianças, a piscina é uma ocasião para que entrem em contato
com a sociedade. Essa socialização precoce vai melhorar a qua­
lidade das suas relações futuras.” Autonomia, desenvolvimento,
socialização: são as palavras-chave para uma educação bem-suce­
dida. Tudo se decide, então, em poucas semanas. Se seus filhos
não nadarem, nada hão de fazer na vida, anote bem isto.
Mais tarde, será necessário inscrever as crianças numa quan­
tidade de atividades extra-escolares, o que, na maioria das vezes,
implica levá-las e buscá-las. Sigam a extenuante agenda7 de An-

7 Jornal Le Monde, edição de 7 de setembro de 2005: “Choisir des activités extra-


scolaires sans surcharger les emplois du temps” [Escolher atividades extra-esco­
lares sem sobrecarregar a agenda], artigo de Sylvie Kerviel.

74 CORINNE MAIER
toine, de 11 anos: segunda-feira, das 17h30 às 18h, violão; ter­
ça-feira, handebol das 17hl 5 às 18h3O; quinta-feira, solfejo das
18 às 19h30; sexta-feira, de novo handebol das 17hl 5 às 18h30.
Sábado sim, outro não, ensaio numa orquestra de crianças. Essa
agenda-maratona foi montada para ocupar o menino ou os pais,
que devem acompanhá-los nesses lugares?
As atividades “inteligentes” são aquelas que desenvolvem o
desempenho da criança na escola, sinal de que ela estará, mais
tarde, adaptada ao mercado de trabalho. O jogo de xadrez e o
solfejo se encaixam nessa categoria. Os pais podem também optar
por ocupações criativas como o desenho ou o teatro, ótima ferra­
menta para se sentir à vontade em público. Tudo deve servir ao
“desabrochar”, essa palavra o tempo todo relembrada, chave de
um “desenvolvimento pessoal”, cuja receita, garantida, conduz
à felicidade. Quanto ao esporte, ensina o gosto pela competição,
o espírito de equipe, e tudo isso será muito útil quando seu filho
estiver numa empresa.
Cuidado com o perigo do overbooking. Uma agenda digna de
um executivo — que é, aliás, o que os pais esperam que o filho
se torne, se tudo correr bem. Desde a infância deve-se assumir o
hábito: nunca tempo “desperdiçado”, nunca um momento vago,
olhando a chuva cair. E um aperitivo para a vida, a vida de ver­
dade, aquela dos vencedores, pois os winrters são uma gente ocu-
padíssima, enquanto os loosers, como se sabe, uns desocupados.
Estes últimos, no entanto, estão na vanguarda da modernidade;
um dia, num mundo sem trabalho e sem muito a fazer, todos
viverão de férias, aproveitando dispensas por horas de trabalho já
efetuadas ou em licença-maternidade. Nesse dia, apenas os pais
estarão trabalhando... na criação dos filhos.

SEM FILHOS 75
!7-

As piores tarefas dos pais

A profissão de pai e mãe é uma via-crúcis com paradas múltiplas.


Ninguém está obrigado a encarar todas, mas saibam que algumas
delas não podem ser dribladas. A seguir, as piores:

— A Eurodisney, um vilarejo com brinquedos idiotas, onde


reinam pessoas sub-remuneradas, vestidas de pato.

— O Marineland d’Antibes, onde peixes que parecem de plás­


tico são ensinados a saltar cadenciadamente em tanques
fedendo a cloro.

— O hipermercado gigante na manhã de sábado, quando se


deve encher a geladeira para a semana (com Rafael que
berra e Leonora querendo comprar todas as bobagens que vê:
o pirulito em forma de coração, a lata de ervilhas com al­
gum brinde dentro, o bolo enfeitado com um urso de pelú­
cia, as batatas fritas megacrocantes etc.).
— A pracinha sórdida com vegetação rarefeita, único espaço
para as crianças brincarem nas cidades. No fim de semana,
é quase inevitável levar os filhos que, como os cachorros,
ficam insuportáveis se não saem. O pai espera que o tempo
passe (mas como demora) e, no inverno, ele congela. Deve
levar um jornal ou um livro8 para evitar o espetáculo à sua
frente: punhados de areia nos olhos, rasteiras, acertos de
contas, flores dos canteiros pisoteadas, xingamentos racis­
tas: uma perfeita demonstração da anunciada falência de
uma sociedade humana digna e justa.

— A casa de subúrbio com um jardinzinho, lugar natural de


retiro e proliferação da família suburbana, descrita pela cé­
lebre feminista americana Betty Friedan como “um campo
de concentração confortável".

— O McDonald^, que serve uma comida imunda e gorduro­


sa, num cenário qualquer nota, em fórmica, com brindes
para atrair. E o Bocuse das crianças, a tortura dos pais. Uma
única vantagem: é rápido.

— O Acquaboulevard, paródia nojenta da praia, onde se fica


preso num negócio superaquecido em concreto, com uma
palmeira kitsch.

— Thoiry, o zoológico dos “animais em liberdade", que ilustra


perfeitamente a fórmula “passa rápido, pois não há muito o
que ver"; o que se vê é o turista preso dentro do próprio carro.

— Os filmes infantis, cada um mais miserável que o outro:


Inspetor Bugiganga; Procurando Nemo; Babe, o porquinho

8 Por exemplo, de David Abiker, Le Musée de l’homme [O museu do homem],


da ed. Michalon (2005): um livro sobre o trabalho escravo dos pais, com obser­
vações muito justas.

78 CORINNE MAIER
atrapalhado; Harry Potter; Os órfãos Baudelaire; Pocahon-
tas; As tartarugas Ninja III...

— As férias de final do verão, cansativas ao extremo: engarrafa­


mentos, estacionamentos lotados, praias idem, “pousadas”
desconfortáveis e alugadas a preço exorbitante com seis
meses de antecedência. Tudo bem se houver um plantão-
babá ou um “espaço criança”. Não sendo assim, é torcer
pelo fim das férias.

— E, sobretudo, o cúmulo da abominação: o Natal. Legiões


de pais se precipitam nas lojas para comprar cada vez mais
brinquedos, sempre os mais novos, mais barulhentos, mais na
moda. Objetivo: provar a si mesmos que são bons pais. Uma
missão impossível, pois é muito caro comprar uma consciên­
cia tranqüila, até porque ocasiões assim, na vida normal,
pouco se apresentam. Deve-se imortalizar o instante com
a câmera digital para captar o momento exato (e raro) em
que a criança desembrulha os presentes junto à árvore e
assume aquele ar encantado e um tanto sonso. Isso exige
perícia, pois, afogada num mar de brinquedos inúteis e ca­
ros, ela logo se cansa (e se divertiría mais, certamente, num
fundo de quintal, arrancando as patas de uma aranha). A
cerimônia do desembrulhar dos presentes, então, deve ser
inteiramente filmada — e todos os anos, sem perder uma
migalha. Assistir aos filmes em seqüência, durante várias
horas, serve como bela metáfora do capitalismo: cada vez
mais bugigangas e nem por isso maior satisfação.

SEM FILHOS
79
18.

Não caia na ilusão do filho ideal

Bela, poética, ideal é a nossa visão do filho. Encarna o sonho de


uma idade de ouro perdida que, como toda idade de ouro, nunca
na verdade existiu. Filmes como A voz do coração (8,5 milhões
de ingressos) ou séries televisivas como Le Pensionnat de Cha-
vagnes [O internato de Chavagnes] (6 milhões de espectado­
res) batem nessa tecla e são duplamente reacionários: exploram
comercialmente a nostalgia de um outro tempo, da infância.
Como a criança atrai o espectador, a televisão faz dela um álibi
para os programas mais rasteiros que se possam imaginar. Entre
eles, o Teleton, destinado à arrecadação de verbas para ajudar
crianças com doenças genéticas, um verdadeiro Yom Kippur
dos bons sentimentos que espetaculariza a generosidade. E um
esforço titânico de coleta de fundos em tempo recorde. O que
não se faz por crianças doentes? O resultado é obsceno e abissal-
niente idiota, mas é em nome da criança, então...
Curiosamente, a criança se tornou um modelo ideal que faz
adultos sem perspectivas próprias sonharem. Não são mais as
crianças que sonham com a liberdade da idade adulta, como
sublinhou Benoit Duteurtre em La petite pile et la cigarette [A
menina e o cigarro], mas os adultos que sonham com a infância
como um lugar ideal que eles nunca mais haverão de ter. Ex­
ceto na televisão, como mostram o reality show Star Academy e
outros do gênero, que exibem adultos participando por vontade
própria de espécies de escolas para aprender a cantar, dançar,
dormir em dormitórios, implicar com os colegas e depois pedir
desculpas ao vivo. A televisão adora crianças, mesmo e princi­
palmente quando são os adultos que escrevem e representam o
seu papel.
Os (assim chamados) informativos jornalísticos também gos­
tam muito de crianças. Têm predileção por acontecimentos sór­
didos. Crianças desaparecidas ou assassinadas em geral abrem o
telejornal da noite. A opinião pública, dizem, é que pede isso.
A França adorou o pequeno Grégory — uma morte nunca elu­
cidada com a qual nos encheram as medidas durante meses, se­
não anos: um suspense emocionante. Pode-se acreditar que entre
1986, quando teve início o “caso”, e 1989, ano da queda do Muro
de Berlim, nada aconteceu. Alguns anos mais tarde, felizmente,
a opinião pública (ou os jornalistas, é difícil distinguir o ovo da
galinha) teve para se satisfazer os assassinatos do imundo belga
Dutroux. Mais recentemente, todo o interesse voltou-se para o
destino dos filhos do doutor Godard, que desapareceram no mar
e dos quais achou-se apenas um crânio. Depois apaixonou-se por
Natascha Kampusch, a austríaca raptada aos 10 anos, que ficou
seqüestrada por oito. Indignou-se com Véronique Courjault,
uma francesa cujos dois filhos foram encontrados congelados
na sua geladeira, em Seul. Estremeceu com a alemã que matou

82 CORINNE MAIER
nove recém-nascidos seus e escondeu os cadáveres em vasos de
plantas. O fascínio mórbido é de praxe, diante dessas Medéias
modernas. A cruel infanticida, o perverso assassino de crianci­
nhas: são estes os monstros! Mas em casa tudo vai bem, obrigada;
em casa as crianças estão em “pleno desenvolvimento ” e os pais
são “equilibrados”.

SEM FILHOS 83
*9-
Seu filho obrigatoriamente
o decepcionará

O filho é a revanche que tarda, mas não falha. Procria-se queren­


do uma revanche contra o destino adverso. Estamos convencidos
de poder preservar o filho do erro de que achamos ter sido vítimas.
E claro, cometem-se outros, talvez mais “graves”. Para evitar isso,
as mães se obrigam a ser melhores, estando “atentas” a seus bebês
performáticos: é uma verdadeira missão. E muito trabalho.
Há uma superabundância de famílias convencidas de que seus
filhos são mais inteligentes do que a média, querendo avaliar-lhes
o QI desde a idade de 4 anos, imbuídas da tarefa de encontrar a
escola especial que facilite ao futuro Einstein o desenvolvimento
das suas aptidões. Como se reconhece a criança “precoce”? E
simples, segundo os genitores: “Ele (ou ela) se entedia na escola.”
Dado o número de crianças que ficam ouvindo as moscas voarem
durante a aula, pode-se achar que a França é o país preferido da
genialidade. Como dão pena os pais envolvidos em idas e vindas
cotidianas, às vezes com longos percursos entre a casa da criança
superdotada e a tal escola. Mas nada é o bastante para ela, não? O
que não se faria para “estimular” uma criança tão viva? O que não
se faria para se ter “sucesso” por procuração?
O pediatra Winnicot, no entanto, já chamara atenção: o que
a criança precisa é de uma mãe “suficientemente boa” — mais
do que isso é um exagero... A boa mãe, então, deve às vezes saber
se desligar, e isso é difícil. Desligar-se um pouco significa aceitar
que o filho não é uma criança ideal. Pois criança alguma é ideal e
não deixará de decepcionar os pais, na medida em que a sonhem
perfeita. Notas baixas na escola? Os pais ficam meio desiludidos e
obrigados a dar um desconto quanto aos talentos do queridinho.
O mais estranho é assistir a pais, antes maravilhados com as “capa­
cidades” do filho, obrigados a confessar (entre os dentes) que ele,
atualmente com 20 anos, passou com dificuldade no vestibular
e segue seu curso “superior” na Faculdade Pagou-Passou ou na
Escola Técnica Rebimboca da Parafuseta... Uma vergonha para
quem, no entanto, tinha tantos atributos geniais.
Mais tarde, se o queridinho da mamãe, em vez de se tornar
independente, flexível e responsável, for um imaturo destram­
belhado, será de fato uma vergonha. Se não trabalhar, se estiver
condenado ao perpétuo tempo livre, que é a maldição dos po­
bres, ninguém mais pedirá notícias suas. Mas imaginemos que
essa criança, criada na modernidade mais cheia de qualidades,
mais divertida, pluralista e generosa, se torne antidemocrata, anti-
União Européia, antiprogressista. E impossível, pois as urnas em
época de eleições são instaladas nos pátios das escolas e, com isso,
fazem já a campanha de um futuro radiante. Mas ainda há piores
alternativas, e ela pode se tornar terrorista. Isso não! E inimagi­
nável; alguém tão bem integrado, num modelo de sociedade tão
bem-sucedido, não pode desejar o seu fim.

86 CORINNE MAIER
20.

Ser uma mãezona, que horrorl

A mãezona é uma mãe de família que antes de tudo... é uma


mãe de família. Ela pode trabalhar, é verdade, mas por razões
econômicas e também porque o modelo mãe-de-família-em-casa
por toda a vida não leva à plenitude. A sua própria mãe é exemplo
disso. A mãe da mãezona foi, a vida inteira, uma dona-de-casa e
dedicou tempo integral à ninhada, repetindo o tempo todo que
fazia grandes sacrifícios por ela, deixando de lado algo essencial
e motivador: o trabalho. Os quarentões da minha geração muito
freqüentemente foram criados por esse tipo de mulher: de corpo
e alma dedicadas às tarefas domésticas e à educação dos filhos,
totalmente frustradas pelo vazio da sua existência. Cansaço crô­
nico, solidão, insatisfação, excessos à mesa e interesse obsessivo
pelos filhos: geralmente gordas e tensas dentro de roupas de baixo
desconfortáveis, nossas mães eram umas harpias. Já a mãezona
jurou se sair melhor nessa tarefa.
No entanto, nada mudou realmente, pois a principal preocu­
pação da mamãezona é a prole. O exemplar típico tem a foto dos
filhos em cima da mesa de trabalho e uma outra na carteira. E
ela não hesita em mostrar. Não trabalha nas quartas-feiras, pois as
crianças não têm aula e é preciso, então, organizar suas múltiplas
atividades, levar uma a algum aniversário, outra ao caratê. Tem
tendência a provar os pratos que lhes prepara, por isso planeja
começar um regime e bebe apenas água mineral. Não tem muito
assunto para conversa, pois passa a maior parte do fim de semana
cuidando de Lea, Mateus e João Batista. Assim que se tenta dirigir
a conversa para assunto que interesse um pouco mais quem não
tem filhos, a mãezona fala do desempenho escolar de um, dos
talentos artísticos da outra e compara o nível das escolas do su­
búrbio a oeste de Paris. Ou seja, ela afugenta muita gente, exceto
outras mãezonas conscientes de que ser mãe é um sacerdócio,
exigindo muitos sacrifícios, uma total entrega.
Ela “tira" férias durante as férias escolares, e estas são muitas:
dez dias no feriado de Todos os Santos, duas semanas no Natal,
duas semanas em fevereiro, duas outras na Páscoa e dois meses no
verão. Quase quatro meses, em que precisa se desdobrar e estar
em casa, ou mandar as crianças para a casa dos avós, ou para co­
lônias de férias. Um pequeno milagre de organização, toda vez.
Felizmente, a semana de trabalho francesa de 35 horas permitiu
que ela se “organizasse" para estar com mais freqüência em casa.
Essa orgia de férias escolares teve conseqüências importantes nos
hábitos trabalhistas franceses e explica por que os estrangeiros
acham que na França trabalha-se muito pouco. E verdade, nas
empresas não há muita “gente de escritório" durante as férias es­
colares. E difícil “marcar uma hora" para uma reunião entre o
Natal e o Ano-novo, durante as férias de fevereiro, de Páscoa, no
mês de agosto e no início de novembro. E daí? A globalização
pode esperar, não pode?

88 CORINNE MAIER
21.

Ser, antes de tudo, pai (ou mãe)?


Não, obrigado

Mesmo que ela dirija uma empresa, venda milhões de discos ou


tenha uma profissão apaixonante, espera-se sempre que a mulher
diga que os filhos vêm antes de tudo. E, cada vez mais, ao homem
também se impõe o parentalmente correto. Como imaginar, por
exemplo, os dois principais candidatos à eleição presidencial de
2007 na França, Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy, confessando
que as atividades políticas vinham em primeiro plano? No en­
tanto, com as agendas que têm, os nossos políticos, homens ou
mulheres, não devem passar muito tempo em casa... E o caso de
François Bayrou, que também foi candidato e cujo modelo fami­
liar foi revelado pelo jornal Le Monde: “Seis filhos e Elizabeth, a
esposa, que os criou muitas vezes sozinha na cidade de Bordères,
enquanto François se dedicava à política em Paris.”9 Nenhuma

9 Jornal Le Monde, edição de 21 de março de 2007: “François Bayrou et son


double” [François Bayrou e seu duplo], artigo de R. Bacqué e P. Ridet.
preocupação, mas uma bela roupagem de pai de família bem ta­
lhada para as eleições; muito bem, François.
Na França, nunca houve um presidente da República sem fi­
lhos. No exterior também não há muitos, e uma childfree como
a chanceler alemã Angela Merkel destoa. Ser pai é certamente
um argumento eleitoral de peso que os candidatos não deixam
de explorar no cenário midiático, sob a forma de edificantes fotos
de família. Na década de 1960, o presidente Kennedy10 dera o
tom. Todos se lembram da imagem dele à mesa, na Casa Branca,
e o filho brincando debaixo da escrivaninha. Criança, simples­
mente, vende. E um cartaz publicitário ambulante que diz: “Meu
pai (ou mãe) é confiável, vote nele sem medo; como ele (ela) tem
filhos, vai compreender seus problemas."
Ninguém pode imaginar alguma personalidade reconhecen­
do: “Meu trabalho vem antes de tudo. Não foi para os cachor­
ros que se inventaram as babás." Seria um erro de comunicação
enorme, passível de arruinar uma carreira. Mãe em primeiro lu­
gar, profissional depois e mulher no final: é a trinca vencedora.
Não procure alterar as prioridades, isso não se faz. As afirmações
francas e cheias de bom senso da top model Adriana Karembeu
valeram-lhe muita chateação, após a sua declaração: “As crianças
me assustam. Tenho medo de não estar à altura ou de repetir os
erros dos meus pais."
E, no entanto, ela estava com a razão. Toda mãezona é uma
péssima mãe em potencial e se sente culpada. O fato de pôr uma
criança no mundo e, sobretudo, quem sabe, por vontade própria,
é uma fonte de culpa terrível. “Criei um ser humano, sou respon­

10 Que gênio da comunicação ele foi! Até me pergunto, às vezes, se aquela morte
espetacular não teve uma direção cinematográfica encomendada por seus con­
selheiros. Um ótimo meio de fazer o mundo acreditar tratar-se de um grande es­
tadista ameaçado pelas forças do mal, e isso depois do fracasso da baía dos Porcos,
em Cuba, e do engajamento americano no Vietnã.

90 CORINNE MAIER
sável” é algo muito pesado de se carregar. Toda mãezona teme
ser uma madrasta (no pior sentido): nunca faz o bastante; não
cuida direito dos filhos; nunca está suficientemente disponível;
não está “atenta”; não prepara quitutes demorados em casa nem
menus “equilibrados”. Não, nunca o suficiente, ainda mais por­
que a sua mãe (e as feministas) tanto lhe encheu os ouvidos pa­
ra que fosse trabalhar. Fica então presa entre a marreta do trabalho
doméstico e a bigorna do assalariado. Sente-se culpada. Culpada
de voltar extenuada do trabalho, culpada de não entoar a canção de
ninar à noite, culpada de ter uma crise de nervos após duas horas
de berreiro, culpada de se sentir aliviada ao deixar as crianças na
creche pela manhã, culpada de se sentir feliz quando elas partem
em uma excursão da escola. Falta pouco para que peça desculpas
aos filhos. Desculpas por não saber o que significa ser uma “boa
mãe”, desculpas por parecer, sem querer, a madrasta da Branca
de Neve.
O que significa desejar um filho? Quem sabe o que se deseja
quando se deseja um filho? E o seu bem o que se quer? A psica­
nálise ensina que nada é mais destrutivo do que querer o bem de
alguém, pois é o seu próprio bem que se projeta no do outro e,
além disso, um belo dia você vai inevitavelmente querer ser pago
pelo tal bem que quis lhe impor. Ou seja, querer a todo custo o
“bem” do outro é destrutivo, pois pai algum está de fato à altura de
tudo que ele projeta para seus descendentes. Sigmund Freud deu
uma resposta lúcida a Marie Bonaparte, que lhe pedia conselhos
para a criação dos filhos: “Faça como quiser, de qualquer maneira
estará errado.”
Antigamente, isto é, há apenas algumas décadas, aceitavam-se
os filhos como uma fatalidade, o que estava longe de ser uma situa­
ção ideal, mas tinha a vantagem de livrar os pais de uma respon­
sabilidade pesada demais. Atenção, não se trata de nostalgia de
um tempo que nem conheci, mas é verdade que existe hoje a ten­

SEM filhos 91
dência de se preocupar mais e até de superproteger um filho que
se quis ter. A generalização da contracepção teve de fato efeitos
espantosos, como sugeriram os autores do livro Freakonomics: di­
minuiu a criminalidade em Nova York. Pois tudo indica que filhos
desejados se integram mais facilmente na sociedade do que os
outros. Daí a se imaginar que a pílula e o diafragma foram patroci­
nados pelo grande capital, para dispor de uma mão-de-obra mais
dócil, é apenas um passo...

92 CORINNE MAIER
22.

Nada de livre trânsito para


os profissionais da infância

Para criar um filho, especialistas são necessários. Assistente social,


pediatra, fonoaudiólogo, psicólogo: uma verdadeira invasão médi­
ca da família. Como faziam nossos avós sem eles? Nosso mundo
é obcecado pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância.
Pequeno parêntese: é interessante observar que a transferência das
competências paternas a outras pessoas é paralela à expropriação
das competências técnicas dos trabalhadores pela direção da em­
presa moderna. Nada a ver? Ledo engano, um dos suportes do
mundo em que vivemos é o seguinte: estamos inundados por co­
nhecimentos esotéricos dos quais os assim chamados especialistas
dizem ter as chaves.
A família se encontra sob a vigilância de um Estado terapêu­
tico que a mantém sob permanente controle. São pessoas que ali
estão para lhe encher o saco, como todos que pretendem ajudar.
Estão lá também para que você saiba o que a sociedade espera de
vocês, pais. E o que ela espera não é pouco. E tanto que em breve
será necessário voltar à escola para aprender a profissão de ser pai.
Não, isso não é uma brincadeira; Ségolène Royal defendeu essa
idéia muito seriamente: “Quando se multiplicam as incivilidades,
é necessário um sistema que obrigue os pais a fazer estágios em
escolas para pais”, declarou a então futura candidata à presidência
da República.11
Enquanto não se cria um estágio para você, vou já enumeran­
do alguns dos deveres paternos. E bom que tenha autoridade, mas
também que “dialogue” com a criança. Ocupe-se dela dezenas de
horas, mas, além disso, os dois membros do casal devem ter um
trabalho remunerado, para que a criança não se sinta “sufocada”
pela solicitude, em geral materna. (E o caso na França, já na Ale­
manha é bastante malvisto que mulheres com filhos trabalhem.)
E importante que você seja uma espécie de alter ego virtuoso, liga­
do ao bem-estar da criança e ao seu respeito pelos valores morais.
Que o casal seja equilibrado e responsável. Calmo e pedagógico.
De espírito aberto e capaz de estimular a curiosidade do filho.
Ou seja, um pouco de tudo e também o seu contrário — todo
tipo de coisa, mas também o seu complemento. Com que fina­
lidade? Uma criança “estruturada”, isto é, bem presa na coleira. O
ideal: uma criança “enquadrada”, que “compreenda seus limites”.
Traduzindo: que os genitores possam amestrá-la suficientemente
para ser manipulada pelos outros.
Todo esse exército de especialistas fala um bocado. A pediatria,
a psicologia, as ciências da educação dedicadas aos problemas da
infância e suas respectivas indicações chegam aos pais por meio de
uma vasta literatura de vulgarização. Esta, que, no entanto, tem
curto alcance intelectual, é aceita de braços abertos pelo mercado
editorial. E verdade que o espaço comercial aberto é tentador.

11 Em 31 de maio de 2006, na cidade de Bondy. Cf. www.lefigaro.fr.

94 CORINNE MAIER
No pódio desse besteirol, figura entre os primeiros um manual
— 100 receites pour booster rintelligence de votre enfant [100 ma­
neiras de impulsionar a inteligência do seu filho]. Por caridade
não revelaremos o nome do autor. Algumas obras são verdadeiros
best-sellers, como as da prolixa Edwige Antier (Attendre mon en­
fant aujourd’hui7 Mon bébé dort bien7 Comment aider votre enfant
à sépanouir... [Esperar por um filho hoje, Meu bebê dorme bem,
Como ajudar seu filho a se desenvolver]), que desbancaram os
clássicos de Laurence Pernoud. Tais livros são estudados com mi­
núcia pela mãezona desorientada que procura receitas de como
criar “bem” o filho. Quanto à higiene física e mental, ela procura
agir, não segundo seu entendimento e sentimento, mas de acordo
com a imagem (bastante imprecisa) do que deve ser uma boa mãe.
Quando tem a impressão de que todos esses bons conselhos não a
estão levando a parte alguma, ela liga a televisão e assiste à Super
Nanny, no canal M6. Trata-se de uma série vista por 5 milhões de
telespectadores na França, cujo tema, segundo o site do canal na
internet, é: “Uma babá diferente das demais, que põe ordem nas
famílias em que falta autoridade, ameaçadas por terem deixado
tudo correr solto.” Na verdade, são exercícios práticos para domar
os anjinhos que devastam a vida dos seus pais.12
Os “especialistas” em infância, verdadeiros gurus das famílias,
são muito bons em lançar modismos. De onde eles vêm? Ninguém
sabe. Alguns são perfeitamente fantasiosos. Lembro que quando
minha filha nasceu, há cerca de 12 anos, devia-se “diversificar”
a alimentação do bebê. Já tentaram fazer um recém-nascido de
poucas semanas engolir uma colherada de creme de espinafre,
suco de laranja e clara de ovo batida? E impossível, mas lá pelos
idos da década de 1990 era o que se devia tentar, pois o equilí-

12 Serve também como ótimo antídoto para crianças: assiste-se uma vez e questio­
na-se seriamente o “desejo por filhos” durante uns seis meses.

SEM FILHOS 95
brio alimentar da criança dependia disso. Confusão certa e crise
de nervos garantida. Alguns anos depois águas rolaram — per­
cebeu-se que uma diversificação tão prematura provoca alergias
em nossos queridinhos — e proezas daquele tipo deixaram de ser
exigidas dos pais. Há modas para tudo, desde a maneira como
deitar os bebês até a troca das fraldas, ou qual o tipo de carrinho
utilizar. Não, a ciência da criança não está absolutamente defini­
da e nossos especialistas parecem bem perdidos, apesar dos ares
que assumem. Deve-se jogar o bebê fora, junto com a água suja
do banho? Cabe a cada um decidir.

96 CORINNE MAIER
23-

As famílias são um horror

Bondade, afeto, espontaneidade: eis o papel-abrigo da família.


Um cantinho garantindo segurança, diante de um espaço público
cada vez mais dominado por mecanismos impessoais de mercado.
A vida familiar idealizada, celebrada — refúgio da autenticida­
de que permitiría a livre expressão da “personalidade" —, é com
certeza uma imagem idílica. E uma idéia fabricada que deve ser
abandonada. Na prática, a família moderna é uma prisão volta­
da para si mesma e centrada na criança. Família significa brigas
junto da árvore de Natal, “instantes-verdade" difíceis com a sogra
(sem que você tivesse absolutamente desejado algo assim), ódios
requentados há várias gerações, segredos familiares vergonhosos
que ninguém se atreve a evocar, mas que pesam sobre todos. A
maioria dos assassínios e dos episódios de pedofilia acontecem no
âmbito familiar; deveriamos nos lembrar mais disso. Toda família
é um ninho de víboras inextricável.
Bom-dia, neurose; alô, psicose. As relações filhos-pais estão
longe de ser uma brincadeira. Não é apenas amor, mas também
ódio, ressentimento, ciúme, ou seja, sentimentos de que não se
fala, pois não fica bem. No entanto, estão ali, não é preciso cavar
muito. A psicanálise foi lúcida nesse ponto. Freud explicou que
o menino quer matar o pai para se deitar com a mãe: o que pode
ser mais simpático e meigo? Winnicot, por sua vez, enumerou
17 motivos para uma mãe detestar o próprio bebê: é um perigo
para o seu corpo, uma interferência em sua vida privada, machu-
ca-lhe os seios, trata-a como uma nulidade, impõe a sua lei e a
deixa frustrada... Estamos longe de uma concepção adocicada da
maternidade. Quem tem filhos precisa “administrar" essas ambi-
valências. Muitos preferem recalcá-las; talvez seja o segredo da
paternidade auto-realizada. As crianças ganham com isso? Não
se pode garantir, pois, seja como for, num momento ou outro da
árvore genealógica, alguém vai ter que pagar a conta?3 E é tão
complicado quanto se vê nos esquetes de Muriel Robin.
Mas voltemos à sua família. Com um filho, você vai ter que
agüentá-la. E paradoxal, pois se você teve um filho, já não pagou
a dívida com os seus genitores, que lhe “deram" a vida? Poderia
achar que, finalmente, está quite. Pois bem, não é o que acontece.
Seria fácil demais. Seus pais e seus sogros vão lhe explicar a arte
de criar um filho e enchê-la de ridículos conselhos que ninguém
pediu. Mas isso não é nada em comparação às críticas disfarçadas,
aos subentendidos e às pequenas lições cuja mensagem é simples:
você, novato, é insatisfatório como pai ou mãe, não sabe fazer
direito, seu filho está longe do “pleno desenvolvimento". Julinho
faz de vez em quando xixi na cama, Alexandre tem eczema e
Isodorina não gosta da professora de matemática? E culpa sua. E
porque você mudou de casa no meio do ano, porque trabalhou
demais ou não o bastante, porque cuida mais de Isodorina do que

13 É para o que serve a psicanálise: para ajudar os outros a pagarem a conta. Mas
custa caro, é verdade.

98 CORINNE MAIER
de Alexandre (ou o contrário); porque tinha inveja — quando
você mesmo era criança — do irmão asmático, era apaixonado
pela irmã ou colecionava selos.
O discurso psi bateu forte nas famílias, e toda mãezona o uti­
liza com patas de elefante, orgulhosa de ter na biblioteca um ou
dois livros (mal digeridos) de Françoise Dolto. A mãezona maneja
um jargão psi simplificado, que é uma espécie de esperanto das
famílias: “Ele está na fase do Edipo” (como quem diz “está trocan­
do um dente de leite”) significa que ele é agarrado à mãe, e ela
está amando ter à disposição quem a adore. “Ele tem uma mãe
castradora” aplica-se somente aos outros, que têm mães difíceis,
nunca aos próprios filhos. “Está na fase anal” pode ser traduzido
por “ele brinca com cocô, é nojento, mas normal”.
O pior de tudo, porém, é que você cai numa armadilha. Como
a sua família (ou a do consorte) é uma reserva generosa de baby-
sitting gratuita, você aceita sem reclamar (é isso mesmo, acredite)
seus ditames, fofocas, lições e considerações psicológicas do tipo
“analista de mesa de bar”. A gente se sente menos culpada deixan­
do a criança com alguém da família do que com uma babá: a vil
mercenária pode até ajudar, pois quebra um galho, mas não ama
de fato os seus filhos, uma vez que é remunerada. Nos dois casos,
entretanto, livrar-se dos filhos por algumas horas ou dias é uma
alegria que se paga. Mas preste bastante atenção: não é necessa­
riamente o pagamento em dinheiro o mais caro.

SEM FILHOS 99
24 .

Não volte você a ser criança

O jovem é o sumo sacerdote do gosto. O look “jovem” é devastador.


Muitas são as mães que tentam se vestir como as filhas adolescentes.
Blusinha curta, umbigo de fora. Os gostos da infância se tornaram os
da maioria das pessoas. Antigamente as meninas imitavam a mãe e se
vestiam como senhoras. Agora as senhoras imitam a filha e se vestem
como meninas. Sai de cena a mulher sexy e misteriosa que as estrelas
de cinema encarnavam nos velhos tempos: podemos nos perguntar
por que os costureiros têm tanto trabalho para vestir uma mulher-
mulher que não quer mais ser isso. Uma prova é que as modelos são
cada vez mais jovens. E verdade que só a infância é sexy, e não a ida­
de adulta. Pode-se achar que as modelos de amanhã serão “pré-ado-
lescentes”, pois com essa nova categoria semântica a infância inteira
encolheu e termina mais cedo, aos 10 anos de idade, mais ou menos.
Depois disso, cuidado, a data de validade fica ameaçada.
Tudo o que se destina à infância tem vocação a se tornar um
culto, como os brindes Kinder Ovo, que se transformaram em ob­
jetos de coleção para adultos e, ouvi dizer, são inclusive expostos
em museus: puzzles, figurinhas, carrinhos ou robôs de montar,
criaturas movidas a mola ou a corda... E isso mesmo, é arte sim;
em todo caso, trata-se de um mercado em torno do qual giram
peritos, colecionadores, donos de galeria, especuladores e até...
falsários.14 O adulto adora produtos destinados às crianças e desvia
alguns para seu próprio uso, como mobiliário infantil e motoci-
cletinhas. E tudo é miniaturizado: aspirador de bolso, minipro-
dutos de beleza, cave de vinhos para bebês, barris de cerveja Hei-
neken tamanho extra-small. Se é pequeno, é bonitinho. O sonho
do adulto? Viver, num quarto de criança, uma vida extra-small.
Única vantagem: quem se acha criança não precisa se preocupar
com as suas próprias, pois não as tem.
O gosto infantil formata todos os demais. E verdade em rela­
ção aos livros. Na França, Les histoires inédites du Petit Nicolas
[As histórias inéditas do pequeno Nicolas] teve um sucesso ful­
gurante, com 650 mil exemplares vendidos do volume 1, publi­
cado em 2004. Entre os livros mais procurados no mundo estão
os Harry Potter, do qual é preciso ter lido o último episódio para
se estar “em dia” e poder, caso necessário, falar disso com conhe­
cimento de causa. Quem não leu é considerado completamente
defasado. Enquanto isso, o que acabou se chamando “fenômeno”
Harry Potter (eruditamente comentado por um monte de psis,
sociólogos e filósofos) pelo menos tem a honestidade de assumir
a sua real vocação, isto é, a de ser leitura juvenil. Como o filão é
promissor, vêem-se nas livrarias seções inteiras de “literatura para
jovens”. Pode-se apostar que ela vai estar presente em quantidade
cada vez maior: para que complicar a vida com livros difíceis?

14 E estranho como profissão, não é? Posso imaginar um cartão de visita com a


menção “falsário de brinquedos Kinder”; é mais engraçado do que piadas com
belgas.

102 CORINNE MAIER


“Literatura para jovens" é um belo exemplo de oximoro, essa fi­
gura de estilo que consiste em associar termos contrários. Não,
Kafka, Shakespeare, Proust, Cervantes não escreveram livros para
menores de 12 anos.
A moda jovem é contagiosa. Cada vez mais há livros de lite­
ratura para adultos que parecem... literatura para jovens. A li-
teratura-para-jovens-destinada-aos-adultos tem, como uma de
suas estrelas, Antéchrista, de Amélie Nothomb, que conta a histó­
ria de duas amigas “bem diferentes", uma das quais hiperinvejosa
da outra. E também Oscar e a Senhora Rosa, de Eric-Emmanuel
Schmitt, cujo tema é o encontro de uma criança muito-muito
doente com uma misteriosa senhora. Ambos são acessíveis a par­
tir dos 10 anos de idade (talvez 8, para o segundo). Utilíssima, a
função social desse tipo de leitura é a de dar, ao adulto que não
lê, a ilusão de pelo menos ter feito a xepa na feira daquilo que
chamam cultura. Alexandre Jardin, com Zebre [Zebra], tinha ido
mais longe: o livro dirigia-se diretamente à criança adormecida no
interior de cada adulto. Mas foi na obra Les coloriés que o autor reve­
lou do que é capaz, alardeando como se fosse uma novidade incrível
a criança-rei, a espontaneidade da juventude, sua desinibição na­
tural e sua inocência. Trata-se de um apelo para despertar “nossa
parte mais autêntica", supostamente esmagada pela “civilização
da gente grande". Que a invasão do pueril seja bem-vinda!

SEM FILHOS 103


25-
Insistir em dizer “primeiro eu”
é prova de coragem

A família é um egoísmo compartilhado. Um egoísmo grupai que


nega o indivíduo. E não é, como às vezes se diz, produto de um
individualismo desenfreado. Muitas vezes se apresentou a evo­
lução dos últimos séculos como o triunfo da liberdade sobre as
obrigações sociais, entre as quais se incluía a família. Onde está o
individualismo, quando toda a energia do casal concentra-se em
favorecer as crianças? A evolução dos hábitos contemporâneos
demonstra, pelo contrário, um prodigioso crescimento do senti­
mento familiar. Foi a família quem mais ganhou, em detrimento
das relações sociais, dos amigos, dos vizinhos... Ela reina, e isso
não é bom sinal, é sinal de “regressão da identidade”, segundo a
mídia. O historiador Philippe Ariès assim formulou essa idéia: “O
sentimento familiar, o sentimento de classe e talvez até o de raça
aparecem como manifestações de uma mesma intolerância com
relação à diversidade, uma mesma preocupação com a uniformi­
dade.” Não é a família a base de movimentos políticos de extrema
direita como o Front National?
Vivemos numa sociedade de formigas em que os atos de tra­
balhar e cuidar das crias modelam as expectativas mais extrema­
das da condição humana. O trabalho é o ópio do povo; seriam as
crianças o seu consolo? Uma sociedade em que a vida se limita
ao ganha-pão de cada dia e à reprodução é uma sociedade sem fu­
turo, pois sem sonhos. Ter um filho é a melhor maneira de evitar
se colocar a questão do sentido da vida, pois tudo gira a seu redor:
é um ótimo tapa-buraco da busca existencial. “Meu filho, minha
batalha”, como cantava Daniel Balavoine; o que é muito bonito,
mas se você não tiver outras batalhas além desta, sua vida se reduz
realmente a muito pouco. O filósofo Kojeve dizia que “o animal
se define por esgotar suas possibilidades existenciais na procria-
ção”. Muitos pais, hoje em dia, não estão longe da animalidade.
Responder à questão do sentido da vida com a reprodução é
transferir a questão para a geração seguinte. Abster-se de respon­
der, ou de pelo menos tentar, não é a pior das covardias? Não é
passar para as crianças uma carga bem pesada? Além disso, adultos
que desistiram de qualquer entusiasmo com relação à própria vida
apresentam um espetáculo pouco edificante para nossas queridas
cabecinhas louras. Um dia, não tão distante, os filhos julgarão seus
pais, e o veredicto virá sem atenuantes, sobretudo se levam uma
vida imbecil. Uma vida imbecil é uma existência de pequeno assa­
lariado servil, cuja grande preocupação, na falta de coisa melhor,
é a de aperfeiçoar o seu psiquismo; sentir e viver plenamente suas
emoções, imergir na sabedoria oriental, dar caminhadas ou correr
para “se sentir bem no seu corpo”, aprender a estabelecer relações
“autênticas” com o outro, “superar o medo de ser feliz”.
Felizmente, cidadãos, vocês podem dormir tranqüilos, pois rei­
na a ordem: os jovens de hoje têm menos “bravura” do que os de
1968. Está fora de cogitação, para eles, ir gritar na rua que lhes
deram um mundo de merda, ou exigir um acerto de contas e deses-
tabilizar a ordem para se vingar. Estão ocupados demais tentando...
integrar-se na sociedade.

106 CORINNE MAIER


2Ó.

O filho é a despedida dos seus


sonhos de juventude

Durante dezenas de séculos, houve uma forte pressão sobre os


casais para que se mantivessem juntos e criassem os filhos que
tinham gerado. Cada um dos membros do casal devia virar as
costas às aspirações próprias, permanecendo unidos em prol da
criação dos filhos. Nos dias de hoje, estando o melodramático “sa-
crifiquei-me tanto por vocês” fora de moda, muitos pais adotaram
uma versão mais atualizada: “Renunciei aos meus desejos mais
íntimos por você. Para que seja feliz. Plenamente desenvolvido.
Para que tenha uma boa educação e possa dar prosseguimento aos
estudos, mais tarde.” Muda o refrão, mas a hipocrisia é a mesma.
Quem não tem filhos às vezes se espanta com tanto sacrifício em
prol de crianças que nada pediram. Nesse caso, recebe como res­
posta: “Você não pode entender, não tem filhos.”
Parafraseando Céline, para quem o amor é um infinito que se
alcança tendo um bichinho de estimação, a criança é a imortali­
dade na altura, mais ou menos, daquela de um carneiro. Não, a
criança não é o futuro do adulto. É mais uma mentira inventada
pela sociedade para nos manter tranqüilos, assim formulada: seus
filhos vão ser bem-sucedidos onde você fracassou, tendo os meios
para isso graças à escola e à ação social; não tem erro. O paraíso
não é imediato, mas virá amanhã. A felicidade é para os seus fi­
lhos, não para vocês. Enquanto esse alegre amanhã da sua prole
não vem, trate de se comportar. Um “meu filho talvez venha a ter
isso” vale mais do que “eu quero isso, aqui e agora”? E discutível.
Por parte dos pais que têm a vida estragada em nome dos filhos,
ouve-se facilmente a frase: “Não posso fazer de outro modo, tenho
filhos para criar.” Não posso largar um trabalho que me chateia,
pois tenho filhos: bela desculpa. “Não pude realizar meus sonhos,
tive filhos para alimentar.” E terrível dizer isso, não acham? Anti­
gamente, no tempo dos nossos pais, minha mãe dizia: “Não posso
deixar o seu pai por causa de você.” Dei-me conta de que não era
bem isso. Ela preferia ficar em casa para azucrinar meu pai, e ele
fazia o mesmo com ela. Há quem prefira ser infeliz a dois a ser
feliz sozinho. E assim que acontece.
Na verdade, as crianças muitas vezes são uma desculpa fácil
para a desistência sem sequer uma tentativa. Moral da história:
quando não se faz o que realmente se tem vontade, não há descul­
pa que valha. Nem o trabalho, nem a família, nem a pátria.

108 CORINNE MAIER


Você não pode deixar de
querer a felicidade dos filhos

A felicidade que se deseja aos filhos, e que se promete, é uma coi­


sa engraçada. Para início de conversa, ninguém sabe exatamente
o que é a felicidade. Seria o bem-estar material? O sucesso social?
Bebedeiras e surubas? Cada um responde à sua maneira, pois
ninguém sabe direito. A felicidade surgiu no período das revolu­
ções francesa e americana, tendo sido inclusive inscrita como um
direito na Constituição do Estados Unidos. “A felicidade é uma
idéia nova na Europa", escreveu Saint-Just. O que se pode dizer é
que é um produto da democracia, da massificação dos modos de
vida, com cada um achando ter direito a uma fatia do bolo. Nes­
se mundo de incertezas, para usar a expressão consagrada pelos
futurólogos, é normal que se viva no presente e se olhe o próprio
umbigo, como Michel Onfray aconselhou a seus muitos leitores.
A difusão dessa idéia por muito tempo se apoiou no progresso,
pois acreditava-se que o amanhã seria mais alegre que o presente.
Nos dias de hoje, porém, prometer felicidade a uma criança é dar
prova de flagrante má-fé. Não pretendo apresentar nenhuma lição
sobre o estado do planeta, mas não há com que se entusiasmar
muito. Buracos na camada de ozônio, aquecimento global, re­
cursos marítimos e florestais exageradamente explorados; é como
estamos. E, sobretudo, como eles, das gerações futuras, vão estar,
pois pagarão a conta de tudo isso. Nessa corrida de revezamento,
hão de receber um bastão bem podre. Virem-se como puderem e
agradeçam: seus pais fizeram tudo para que sejam felizes. E bem
verdade, eles não tentaram mudar o mundo: estavam ocupados
demais trocando as suas fraldas.
Os pais se esforçam pela felicidade dos filhos. Fe-li-zes. Eles não
prometem realmente a felicidade aos filhos, eles cobram. “Seja
feliz” é uma exigência feroz e obscena, à imagem do superego
descrito por Freud e que, ao mesmo tempo, dá ordens e impõe o
gozo. Gozar, já de início, é suspeito: no sistema capitalista, qual­
quer liberdade termina sempre no mesmo ponto, a obrigação
universal do gozo e de se oferecer ao gozo. “Aproveite a vida,
goze, meu filho” é uma injunção perigosa. Pois, ao mesmo tem­
po, os pais estão dizendo: “Não faça isso, não faça aquilo, procure
agradar aos seus pais.” Se alguém lhe disser que quer apenas a
sua felicidade, desconfie, pois a pessoa vai certamente se achar
no direito de lhe passar sermões, dar conselhos e tentar obrigá-lo
a coisas que você não quer. Por isso, aliás, educar é uma missão
sempre destinada ao fracasso, pois querer o bem ou a felicidade
do outro causa devastações. Felicidade? Não, obrigado, não é por
cerimônia não, agradeço.

UO CORINNE MAIER
28.

O filho: Um grude

O que fazer com uma criança? Todo mundo a adula, mas nin­
guém a quer. Passar anos inteiros em casa para cuidar dos filhos,
deve-se reconhecer, é um tédio mortal. Ao contrário dos países
escandinavos, nada se faz na França para que a mãezona os leve
com ela ao restaurante ou ao cinema. Fica reduzida, então, a uma
vida monástica, ao ritmo das fraldas, do banho e das mamadeiras.
Bem rapidamente, cuidar do filho revela-se mais cansativo do que
trabalhar. E mais esperto, quando possível, voltar ao emprego bu­
rocrático que se abandonou e passar o dia fingindo trabalhar. Pelo
menos pode-se ficar sentada tranqüilamente, ir à academia de gi­
nástica entre meio-dia e duas da tarde, relaxar com um cafezinho,
enviar uns e-mails, falar por duas horas ao telefone com os amigos
sem ser incomodada. Acho inclusive que por isso tantas mulheres
voltam a trabalhar depois de ter filhos: a norma, na Europa, é a
mulher que trabalha. Neste ponto estou falando especificamente
no feminino pois, em nossa sociedade, é ainda sempre a mulher
que assume o essencial do trabalho na criação dos filhos. Os ho­
mens, mais espertos ou mais preguiçosos, sempre conseguiram
cair fora.
Trabalhar, sim, mas é preciso que alguém fique com as crian­
ças. Como encaixá-las na sua agenda? Uma babá fixa em casa sai
muito caro. Começam os problemas. Nada fácil encontrar onde
enfiar o diabinho. Parece que todas as creches e escolas estão sem
vagas no exato momento em que você precisa que outros, isto é,
aqueles que têm isso como profissão, façam o seu trabalho. Pri­
meiramente é necessário ter pensado em tudo com antecedência
pois, como vai perceber, há sempre maior demanda do que oferta:
é a impiedosa lei da estrutura de cuidados com as crianças. Já era
assim na minha infância, mas podia-se achar que a culpa era do
baby boom: hoje em dia, é “estrutural". E isso é válido da creche
à Escola de Comércio, passando pelas temporadas em estações
de esqui para adolescentes e pelos comitês de serviços sociais da
empresa onde você trabalha. Mesmo para adultos, não há vaga
em lugar algum (e isso explica por que os que conseguem uma
agarram-na com unhas e dentes). Com os sem-teto aconteceu o
mesmo; todos os bancos foram tirados das ruas, e isso certamente
não foi por acaso. Tratem de circular, vão procurar algo ali na es­
quina. Mas, voltando às crianças, 70 por cento das que têm menos
de 3 anos ficam em casa, em geral sob os cuidados da mãe.
Vaga numa creche; como conseguir uma: fazer o cerco na
Prefeitura e responder formulários extremamente detalhados que
podem ser considerados literalmente invasivos. “Quanto você ga­
nha? E o seu cônjuge? Não é casada? Diplomas? Profissão? Horá­
rios habituais de trabalho? E proprietária da casa onde mora ou in­
quilina? Quantos cômodos tem o apartamento? Quantas pessoas
vivem nele? Tem familiares no bairro? Problemas de saúde?" E
estou deixando de lado as questões esotéricas, como “Coeficiente
familiar" e várias siglas a se decifrar. E um verdadeiro interrogató­

112 CORINNE MAIER


rio policial. O que não fazemos para nos ver livres do nosso fardo,
das 8 às 18 horas?
As dificuldades continuam na etapa seguinte, a da escola. E
obrigatório, mas escolarizar um filho não é algo tão simples. As­
sim como a creche, faltam vagas, pois “estão esgotadas”, “você
será colocado na lista de espera” e “nós o estaríamos favorecendo,
se o aceitássemos”. Sobretudo se a intenção for a de colocar o fi­
lho numa “boa” escola — ou, na melhor das hipóteses, na menos
pior das redondezas. Em certos bairros pudicamente chamados
“misturados” (onde há pobres, prédios de habitação popular ou
zonas carentes denominadas “prioritárias”), os genitores devem
optar entre ser bons pais ou bons cidadãos. Em geral, preferem
a primeira alternativa. Como não se pode, na França, escolher a
escola do filho, as pessoas têm que fazer uma verdadeira ginástica
se tiverem minimamente uma preferência, mas sem darem ban­
deira e sem serem apanhadas em fllagrante. São necessários então
paciência, habilidade, tato, muitas visitas à direção de ensino, às
vezes um endereço falso e uma certa dose de desonestidade para
evitar aquela escola em que nenhum dos seus vizinhos quer colo­
car sua prole. E verdade, a escola é uma máquina de triagem, um
formidável dispositivo de distribuição de privilégios sociais que
reforça as divisões de classe, enquanto hipocritamente promove
a igualdade. Liberdade, Igualdade, Fraternidade — mas que isso
fique entre nós. O elitismo republicano é um outro belo oximoro:
há as escolas elitistas de um lado, e as escolas “republicanas” (que
recebem todo mundo) de outro, e elas não recebem os mesmos
alunos. Um lugar para a criança, mas há lugares e “lugares”.

SEM FILHOS
29.

Escola: Um campo disciplinar


com o qual é preciso pactuar

A criança passa a maior parte do seu tempo na escola. Isso a “so­


cializa”, dizem os pais, o que significa que é bom para ela, pois
mesmo que nada aprenda, pelo menos brinca com os amigui-
nhos. A escola, no entanto, não é o lugar do franco companhei­
rismo ou da livre expressão: pelo contrário, é o reino do controle
social. A partir dos 6 anos, quando termina o maternal e começam
as coisas sérias, a criança de fato não brinca mais. Foi no final do
século XVII que o que se deve chamar “regime disciplinar” se
estabeleceu. Assim como os loucos, os pobres e as prostitutas, as
crianças (que viviam até então no meio dos adultos) passaram por
um processo de confinamento. A quarentena da criança se chama
escola, colégio, liceu.
A escola é um lugar de domesticação e doutrinação. Foi cali­
brada para os franceses médios, não brilhantes, mas também não
estúpidos demais, que se encaixem nesse modelo. São os que se
adaptam bem ao molde, que aprendem a ler no ano em que lhe
dizem para aprender a ler, e não no ano seguinte. Os que aceitam
fazer exercícios idiotas sem perguntar o porquê. A escola é muito
normativa. Serve para adequar as pessoas ao trabalho, a uma roti­
na que não requer competências técnicas nem intelectuais parti­
culares. A sociedade industrial exige uma população estupidifica­
da, resignada a efetuar um trabalho desinteressante e a procurar
realização apenas nas horas previstas para o lazer. A escola é a sua
perfeita antecâmara.
Nesse lugar de obrigações, reina o mestre ou, mais exatamente,
a mestra que, em geral, não gostava da escola quando criança —
do contrário, teria sido mais brilhante nos estudos, conseguindo
uma profissão mais interessante e mais bem-remunerada. A “tia"
básica, então, é freqüentemente uma pessoa amarga, formatada
pelos estereótipos horripilantes dos IUFM franceses, os institutos
universitários de formação de mestres. Uma simples bola de jo­
gar, num IUFM, é denominada “referencial movente", e um aluno,
um “sujeito em aprendizado". E uma gente que utiliza expressões
incompreensíveis, como “triângulo didático". Com toda presteza
podem detectar qualquer desvio e rapidinho encaminham os alu­
nos para um exército de fonoaudiólogos e psicólogos, querendo,
com isso, omitir-se de boa parte do trabalho que têm. E com tais
pessoas que os pais vão ter que assinar um pacto de não-agressão,
que nem sempre é fácil respeitar.
Pode-se imaginar que a criança fique bem perplexa; o funcio­
namento da escola é completamente contraditório ao discurso
familiar, centrado no tal pleno desenvolvimento. Cabe à escola
e à sociedade fazer o trabalho que os pais não fazem. Na escola,
deseja-se ver uma só cabeça; e se por acaso a do seu filho for um
pouco mais alta, os pais serão repreendidos — primeiro estágio
antes da expulsão da criança. Já me aconteceu levar uma “cha­
mada" de um professor, num pátio de escola, entre um busto da
República e um monte de bancos de madeira. Era culpa minha

116 CORINNE MAIER


o meu filho não se interessar pelas aulas, brigar no recreio, esque­
cer suas coisas em casa. Eu executava mal minha função de mãe.
Tive a impressão de estar diante de um juiz. E fiquei ali, muda,
obrigada a assumir um ar contrito, tamanho o medo de meu filho
ser expulso. Seria preciso encontrar, em desespero e no meio do
ano letivo, uma escola privada que o aceitasse... E difícil, muito
difícil ser pai de um estudante. Sobretudo de um estudante “atípi­
co”, tradução para aquele que não se encaixa no lugar previsto: e
parece haver cada vez mais deles.
Se a escola não conseguir fazer a criança andar no passo certo,
a sociedade vai se encarregar. Pela via da repressão. Em 2005,
Nicolas Sarkozy era ainda ministro da Justiça quando incluiu, em
seu anteprojeto de lei para a prevenção da delinqüência, o prin­
cípio de uma “detecção precoce das perturbações do comporta­
mento” na criança pequena, “podendo levar à delinqüência” o
adolescente. Isso significa o quê? Que em toda criança considera­
da não “normal” (associai, agitada...) se esconde um delinqüente
em potencial e que a sociedade tem o dever de erradicar o mal
pela raiz. Que seja bem-vinda a paranóia da segurança... E algo
delirante, mas que se baseia num relatório do Instituto Nacional
da Saúde e da Pesquisa Médica (INSERM) francês. Ou seja: viva
a ciência, o melhor aliado do policiamento generalizado. Graças
a uma petição denominada “Nada de nota zero para crianças de 3
anos” e à condenação pelo Comitê Consultivo Nacional de Ética,
o projeto de lei foi jogado no lixo. Mas o aviso foi dado.
Seria a França laxista? Fala sério. O discurso dos que lamen­
tam o assim chamado “laxismo” e os estragos causados por maio
de 1968 não se sustenta. Pelo contrário, é a falta de jogo de cintu­
ra, de capacidade de adaptação e até de desordem que torna essa
sociedade irrespirável. Aquelas e aqueles que não se encaixam nas
categorias previstas são, primeiramente, postos de lado, depois pu­
nidos e, enfim, pura e simplesmente abandonados à própria sorte.

SEM FILHOS 117


É o que se passa em certos subúrbios: selvagens, caiam fora! Ou
então coloquem uma máscara ninja, como se diz na música do
Fatal Bazooka, e que pelo menos assim a gente não veja mais suas
caras feias. Viva o modelo francês de integração, que consegue
desintegrar todo mundo que não esteja integrado.

118 CORINNE MAIER


3o.

“Criar” um filho: Mas em qual direção?

A partir dos 6 anos, a criança traz da escola seus “deveres”. Deve­


res de casa que ela não tem a menor vontade de fazer, e a gente
se põe no seu lugar. Exercícios de gramática escritos em jargão
pedagógico, “autoditados”, poemas capengas a serem decorados,
tudo para acrescentar mais uma camada de trabalhos forçados
à agenda já repleta... dos pais. Além disso, tudo o que a criança
não entendeu na escola deve ser reexplicado em casa. Dos deve­
res, então, adivinha quem tem a incumbência. Na maioria das
vezes, a mãezona. E de esperar que dormisse no fundo da sua
alma uma vocação frustrada de professora, pois ela vai gastar nisso
muitas horas por semana, até o filho se sentir “independente”, o
que pode demorar muito a acontecer. Muitas vezes a mãezona
fica tão irritada com a má vontade da criança que acaba fazendo,
ela mesma, os deveres, para ir mais rápido.
Já me aconteceu, em certas noites, de perder uma hora e meia
para conseguir dar cabo dos deveres. E olha que meus filhos fo­
ram escolarizados numa ZEP (Zona de Educação Prioritária, que
se traduz como escola para pobres) onde, se minhas informações
estão corretas, a “equipe pedagógica” é menos exigente do que
numa escola seletiva de bairro rico. Ajudar a fazer os deveres de
casa durante anos é um trabalho escravo inominável; devo dizer
que, quando criança, detestava a escola, mas não gosto de explicar
por que e, menos ainda, de ser repetitiva. Com meus filhos, tive a
impressão de repetir todas as séries tão odiadas e isso até o dia em
que, não me agüentando mais, deixei de lado e disse: “Crianças,
virem-se sozinhas e seja o que Deus quiser. Os resultados escola­
res continuaram tão fracos quanto antes, mas pelo menos parei de
lavrar aquele solo árido do saber.
E duplo o escândalo dos deveres de casa: para começar, os de­
veres escritos são teoricamente proibidos no ensino fundamental
francês, mas os professores fingem não lembrar, provavelmente
para manter um ar importante. Em segundo lugar, é evidente
que os deveres são um fator agravante da fratura social e cultural,
pois somente as crianças que têm um dos pais em casa para aju­
dá-las (ou alguém remunerado no lugar) podem dar conta deles.
Por que os pais aceitam tal pesadelo? Porque têm a impressão
de que é “bom” para os filhos, que eles “aprendem coisas” pas­
síveis de lhes proporcionar uma bagagem preciosa no futuro. De
início, ingenuamente acreditei que apenas uma pequena minoria
de revanchistas do saber aceitava, sem resmungar, transformar-
se diariamente em professor(a). No final de alguns anos, dei-me
conta de que a França inteira estava tomada pelo mesmo vírus
dos “bons métodos antigos” do vovô: debates em torno do apren­
dizado silábico,15 volta do uniforme, lengalengas moralizadoras

15 E um método de leitura que parte do “bê-á-bá”, ao contrário do método global,


adotado pelas escolas [francesas] a partir de 1968.

120 CORINNE MAIER


sobre o esforço e o trabalho, requestionamento das escolas mistas.
Quando voltarão a pena de ganso e a palmatória?
Mas a escola não basta para acompanhar a criança na ascensão
às luzes do saber. Todo pai e mãe de classe média que se respeite
acha que a criança deve ler. Coloca-se então a aflitiva e crucial
questão: “Como fazer meu filho ler?” E um verdadeiro desafio,
pois disso dependem o desenvolvimento pessoal do fofinho, o pro­
gresso da sua inteligência, o desabrochar do seu imaginário. Uns
broncos caricaturais e totalmente incultos, que lêem apenas um
livro por ano (e sabe-se lá qual), discursam sobre a importância da
leitura. São os mesmos que requentam para os filhos a frase que
tanto nos encheu os ouvidos — e que deixou de ser verdadeira
neste mundo em que um encanador ganha mais do que um clíni­
co geral mediano ou um advogado: “Se tiver boas notas na escola,
terá um bom emprego mais tarde.”
Na verdade, a leitura é uma grande inimiga do sucesso mate­
rial. O mal-entendido é total: as crianças que realmente gostam
de ler são esquisitas e eu mesma sou uma prova disso. Quando era
criança, nada mais me interessava: escola, música, passeios, nem
mesmo férias. Resultado: sou associai e incapaz de “trabalhar em
equipe”. A real paixão por leitura nos torna inaptos para o servi­
ços rentáveis. Tudo bem, é um certo exagero, mas muitas vezes
crianças que realmente gostam de ler se tornam no máximo bons
assessores, ou vivem das subvenções públicas à cultura, de bicos
no mercado editorial, são bibliotecários ou colaboradores mal re­
munerados e pouco considerados em jornais. De qualquer forma,
são pessoas com instrução demais para os trabalhos disponíveis
no mercado. São uns eternos amargos, para quem qualquer reu­
nião na empresa é um suplício. A simples expressão “fechar um
projeto” é outra tortura e qualquer entrevista de avaliação com
um chefe parece um choque entre dois mundos. Esses desclassi­
ficados ainda são numerosos, mas tendem a desaparecer, pois os

SEM FILHOS 121


jovens lêem cada vez menos, sobretudo os que vêm de formações
“prestigiosas”, de escolas especializadas ou coisas assim. Sejamos
sérios, a elite da nação não tem tempo a perder com livros e com
cultura: vade retro, Satanás.

122 CORINNE MAIER


31-
Fuja da neutralidade bem-comportada

O bebê é uma pessoa, já nos repetiram tanto. Foram os psis que


nos puseram essa idéia na cabeça. Freud foi o primeiro a dar cré­
dito, em seu trabalho, a uma criança (o pequeno Hans), depois
Dolto, Winnicott... O que ouviram, no entanto, não era nenhu­
ma amenidade. Foi à própria custa que deram ouvidos a crianças
pequenas, pois eram pioneiros dispostos a entender uma palavra
que incomodava. Mas muitos educadores de hoje acham que a
comunicação com a criança tem apenas um objetivo: integrá-
la ao mundo, fazer com que “se sinta bem", que se “exprima".
Resumindo, a palavra que utilizam e que suscitam é puramente
decorativa, sem qualquer efeito, nenhuma conseqüência. Tem a
mesma função da comunicação empresarial: troca de conversa
fiada, mas cheia de convicção.
Tem uma função também instrumental. Com que finalidade?
Tentar fazer com que as crianças obedeçam. E difícil, pois os pais
não dão mais ordens aos filhos. Experimentam maneiras mais su-
tis de mantê-las em seus lugares. Não dizem mais “não” a Eliott
nem a Ursula pois, de modo geral, não se pode mais dizer não. Da
mesma maneira, o seu chefe também não lhe diz mais “não”; ele
diz “talvez”. Já o seu gerente de banco assegura que vai “estudar
o seu caso”; se for necessário (lamentando muito, apenas porque
você insistiu numa resposta), ele finalmente pode dizer: “Creio
que não será possível.” Nada mais no mundo diz não. Tudo já
foi visto e explorado, dos planetas mais longínquos às partes mais
recônditas do corpo. Até o processo de reprodução foi esclarecido.
No que se refere aos desejos, ao inconsciente, ainda falta, mas
as neurociências, ao que parece, estão debruçadas no assunto.
Quem pode ainda nos dizer não hoje em dia? O terrorista, talvez.
Ele, aliás, não contente em dizer não, acrescenta um “merda”,
para fazer o serviço completo.
Para ser um “bom” pai, no sentido que a sociedade espera,
deve-se ser neutro. O filho quer decorar o quarto com um cartaz
imundo do Megadeath? A filha coleciona os adesivos Diddl e os
cola em todo lugar? Ele ou ela gosta de comer sempre a mesma
coisa, recusa verduras e o prato preferido é o hambúrguer com fri­
tas do McDonald?s? Sua expressão deve se manter inalterada, sem
demonstrar qualquer julgamento de valor, pois isso pode “trauma­
tizar” a criança. Tudo é admissível. Ela deve poder “encontrar o
seu espaço”. Na sociedade de hoje não fica bem vociferar: “Tire
essa imundice do seu quarto, até nova ordem sou eu que decido
aqui, pois sou eu que pago o aluguel.” Ou ainda: “Que porcarias
são essas? Alguém que se interessa por coisa tão estúpida não pode
ser carne da minha carne, isso é genética em mutação.” Os pais,
como o chefe de empresa, devem se manter calmos em toda cir­
cunstância e demonstrar sua capacidade de ouvir.
Violência, então, nunca! Bater em criança se tornou inconce­
bível. Na Escandinávia, castigos físicos nas famílias foram literal­
mente proibidos. Um livro como Le bébé de Monsieur Laurent

124 CORINNE MAIER


[O bebê do sr. Laurent], em que o fértil e debochado Topor ima­
ginou uma história absurda e cômica de um bebê pregado numa
porta, provavelmente não seria publicado hoje em dia (aliás, não
foi mais reeditado). Quanto a mim, sem aptidão para o uso de
um martelo, confesso que já dei um tapa no meu filho. Bem sei
que essas linhas são passíveis de chocar um leitor sensível e até
valer uma denúncia à liga dos direitos da criança. Mas eis os fatos:
ele corria de um lado para o outro, aos berros, na biblioteca mu­
nicipal, incomodando todo mundo, sem ouvir minhas reclama­
ções. Dei-lhe um tapa. Não ficou nada bem: uma senhora bem-
intencionada me explicou ser monstruoso bater numa criança.
Quando lhe disse que cuidasse da própria vida, ameaçou chamar
a polícia. Ao ter filhos, corre-se muito risco de ter problemas com
as autoridades e com a opinião pública.

SEM FILHOS 125


32 -

A paternidade infelizmente
é uma doce cantilena

Sempre contente, alegre, sorridente. Mesmo que chova, que ve­


nham reclamações do colégio ou que seu tio preferido tenha aca­
bado de morrer. No trabalho, espera-se de quem está em contato
com a clientela que demonstre um permanente entusiasmo (a
França, nesse ponto, ainda tem muito a progredir, e não sei se isso
é ruim).
Em casa, a mesma coisa. Repete-se aos pais que eles devem
“despertar" a criança desde a mais tenra idade. Convém conver­
sar com ela, exclamar “Muito bem!" quando tatibitateia, fazê-
la brincar, ler para ela desde pequenininha, cantar cançonetas
acompanhadas de gestos com as mãos, transformar o momento
das refeições em “momento de convívio, agradável", exprimir ale­
gria e interesse diante da explosão de um arroto ou do conteúdo
de uma fralda. Para conseguir fazer isso diariamente, é preciso ser
idiota de nascença ou se encher de Prozac. Ver seus pais banca­
rem os palhaços o dia inteiro torna as crianças mais inteligentes?
Tenho minhas dúvidas. Talvez as faça ficarem igualmente idiotas.
E uma pista para explicar o famoso e tão insistentemente repe­
tido “baixo nível” dos alunos, que tanto preocupa os pedagogos
desde... a Antiguidade!
Sendo o filho um pouco mais velho, é bom dar o exemplo.
No dia-a-dia, é difícil. Empanturrar-se de torradas com Nutella
no sofá, fumar maconha depois de um dia de trabalho, bebericar
uma boa (ou não) garrafa de vinho na cama não são espetáculos
edificantes para uma criança. Arrastar-se em casa com os cabelos
grudentos e um penhoar sujo também não é um exemplo que a
ajude a se tornar um adulto responsável e positivo. Como, em
tal contexto, ela vai poder “se construir”? Cair no choro na sua
presença porque Josiana lhe aprontou uma boa ou porque você
foi passada para trás numa promoção no trabalho é igualmente
desaconselhado. Isso sem falar do bate-boca com sua cara-meta-
de, acompanhado da respectiva cota de gritos e insultos: são cenas
que condenam um filho a anos de divã, quando não ao alcoolismo
e à delinqüência.
O mais difícil é manter diante da criança um discurso assép­
tico sobre a sociedade em que ela acaba de entrar. Deve-se, no
entanto, tentar. E falar dos “valores” (honestidade, consideração
pelo outro, fidelidade à palavra dada), mesmo sendo coisas que
não devem ser respeitadas para escalar as etapas numa sociedade
de concorrência e competição. Deve-se também explicar a igual­
dade entre homens e mulheres, comprando brinquedos anti-se­
xistas (boneca para os meninos, laboratório de química para as
meninas, livros infantis sem os antigos estereótipos), mesmo que,
em casa, não haja realmente igualdade. Nunca esquecer que os
pais são os enviados especiais do Império do Bem. Os capatazes
da terra-do-sim-sim. Conformismo e julgamento moral são rigo­
rosamente necessários. O desprendimento, o ceticismo são mal­
vistos. Você é naturalmente pessimista, ou até, de vez em quando,

128 CORINNE MAIER


meio depressivo? Questiona o sentido da vida, o peso da palavra
“democracia", “os valores emancipadores da República"? Traba­
lhe-se para banir essa negatividade mortífera. Quando se tem fi­
lho é preciso disfarçar e se esforçar; em toda circunstância, manter
um discurso limpo e amigo, um discurso cidadão. Sem aspereza.
Neutro. Compassivo. Digno de um telejornal. Uma suave melo­
péia enfeitada com palavras positivas, como o discurso político. E
o que a sociedade espera dos pais, apesar de alguns fraquejarem,
pois é dura a tarefa. Se, apesar deste livro, você quer ser pai ou
mãe, comece desde já a treinar na frente do espelho, pois é um
trabalhão. Aconselho que se inscreva em aulas de teatro cuja di­
retriz poderia ser: “Pareça bem para os seus filhos e dê a eles uma
imagem positiva da sociedade em que vivem." Ser pai não é brin­
cadeira de criança, mas é fazer teatro.

SEM FILHOS 129


33-

A maternidade é uma armadilha


para as mulheres

3 culto da criança tem um peso enorme para as mulheres. A


mulher francesa moderna é necessariamente mãe, trabalhado­
ra e companheira. De preferência, magra. Deve-se reconhecer
que é pedir muito. Ainda mais porque as mulheres cumprem 80
por cento das tarefas domésticas. Na saída das escolas vêem-se
sobretudo mulheres e o mesmo se repete nas reuniões de pais de
alunos e no consultório do pediatra, quando um filho tem uma
bronquite ou uma catapora. A maternidade significa, para muitas
mulheres, sair rápido do trabalho para cuidar das crianças, perder
as reuniões estratégicas que acontecem depois das sete da noite
(são sempre depois das sete), recusar (ou nem mesmo postular)
empregos mais interessantes, mas “cronófagos”.
Se até recentemente as mulheres tiveram pouco lugar na his­
tória cultural da humanidade, foi simplesmente por terem lhes
deixado o trabalho sujo: o parto com dor e a criação da filharada.
Até o século XX, poucas mulheres se notabilizaram na literatura,
na pintura, na música, nas ciências. Fazer filhos talvez fosse um
substituto: “criar” um ser humano pôde ser visto como equiva­
lente da criação de uma obra. Um substituto ou um cala-boca?
“Criar uma obra” por meio da maternidade está ao alcance de
todas; é uma verdadeira democracia do útero. Algumas, entre­
tanto, preferiram se exprimir por alternativas mais exigentes — e
Hannah Arendt, Simone Weil, Marguerite Yourcenar e Simone
de Beauvoir não tiveram filhos. Para Beauvoir, foi uma escolha,
pois achava que não se pode ao mesmo tempo ser intelectual e
boa mãe. Em O segundo sexo, ela definiu a maternidade como
um obstáculo à transcendência.
Pede-se imaginar algo novo limpando bumbuns, dando ma-
madeiras e fazendo o filho decorar a tabuada? A questão continua
em aberto. Deve-se reconhecer, no entanto, que as tarefas prosai­
cas e emburrecedoras da maternidade são um tremendo freio para
o desfraldar das asas gigantescas do pensamento. As mulheres são
vítimas de uma ordem injusta imposta pelos homens ou vítimas
dos próprios filhos, que constituem boa desculpa para nada criar,
nada realizar? Não respondo, apenas devaneio no meu canto:
quem sabe o que me tornaria se não tivesse tido filhos, se estivesse
menos atolada na administração doméstica, nas compras a fazer
e nas refeições a servir? Confesso que só espero uma coisa: que
meus filhos passem no vestibular para poder, enfim, dedicar mais
tempo às minhas pequenas atividades criativas. Estarei com 50
anos. Depois, quando eu crescer, a vida para mim vai começar.

132 CORINNE MAIER


34-
Ser mãe ou ter sucesso:
E preciso escolher

Na Europa, as mulheres que trabalham são maioria hoje em dia:


um progresso, talvez, mas certamente não uma promoção, pois
raras são bem-sucedidas profissionalmente, apesar da política so­
cial favorecendo as famílias com crianças. A mulher francesa, com
certeza, é invejada no mundo inteiro (creches, subsídios do Esta­
do, generosas licenças-maternidade...), mas a diferença de salário
entre homens e mulheres permanece por volta dos 27 por cento.
Tornar-se mãe significa perder dinheiro. A mãezona deixa de
trabalhar todo o tempo que dedica aos filhos, prepara as refeições,
passa o aspirador e recita fábulas piegas. Segundo uma economis­
ta, as mulheres perdem, em média, de 100 mil a 150 mil euros, ao
longo da carreira, criando os filhos.
Apesar de 80 por cento das francesas trabalharem, apenas 30
por cento chegam a cargos de responsabilidade. E um pouco me­
lhor do que na Alemanha e, sobretudo, em comparação com a
Itália, mas pior do que no Reino Unido e, principalmente, do
que nos Estados Unidos. Conhecem muitos presidentes de em­
presas, chefões das empresas de comunicações ou deputados do
sexo feminino? O famoso “teto de vidro” as impede de ter acesso
aos cargos de responsabilidade. Estes, apesar de tudo, têm uma
vantagem: quanto mais se sobe na hierarquia, menos há idiotas
acima de nós. Não é de espantar que as biografias de mulhe­
res que “chegaram lá” nunca deixem de assinalar o número de fi­
lhos que tiveram. São obstáculos que precisaram saltar para tornar
a vida interessante: é mais ou menos como correr uma maratona
com pesos de cinco quilos (por filho) nos pés.
A maternidade, por outro lado, é freqüentemente sinônimo de
emprego em horário reduzido, sem perspectiva nem esperança
de promoção: 31 por cento das mulheres trabalham hoje em dia
em meio expediente. Muitas das que trabalham atuam no setor
terciário ou, no máximo, na educação pública, que são atividades
mal remuneradas, mas deixam tempo para o dever materno. Para
as mulheres, a negociação implícita é: “Você tem um trabalho
que não é ótimo, mas reservam tempo para cuidar dos filhos; está
reclamando de quê?” Quanto às menos diplomadas, as ajudas fi­
nanceiras bem-intencionadas literalmente as incentivam a aban­
donar o mercado de trabalho.
Que não me venham falar dos “novos papais”, mais envolvidos
com o lar do que as gerações anteriores de machões. E verdade,
eles sabem trocar uma fralda e dar mamadeira. Mas nem por isso
sacrificam suas carreiras. Prova disso: quando os homens se tor­
nam pais, sua atividade profissional aumenta e eles investem ain­
da mais em seus empregos — ao contrário das mulheres. Estudos
mostram que os homens que fazem brilhantes carreiras muitas
vezes são pais de família cheios de filhos, enquanto as mulheres
com mais sucesso freqüentemente não têm filhos. Não há dúvida,

B4 CORINNE MAIER
as crianças são um acelerador de carreira para um e um peso para
a outra. Prova disso: no governo espanhol de Zapatero havia, no
início de 2007, oito homens e oito mulheres, e o primeiro grupo
tinha ao todo 24 filhos, o segundo somente cinco. (Não, que o
leitor se tranqüilize, não se trata de um problema de matemática
escolar.) Querem a igualdade mulher-homem? Um bom começo
é parar de ter filhos.

SEM FILHOS
35-
Quando o filho aparece,
o pai desaparece

O pai não é mais o que era. Não é mais aquele pai por vontade
divina, que impõe a lei em casa e diante de quem todo mundo
fica manso. Ninguém sabe o que aconteceu com ele, desapare­
ceu de fininho, de mãos dadas com o stakhanovismo soviético, do
qual, também, ninguém mais ouviu falar. O pai dos dias de hoje,
na maior parte das vezes, é um cara legal, de uns 40 anos, meio
careca, cheio de amor para dar, razoavelmente desiludido com
o mundo e consigo mesmo. Tem dificuldade de contar, à noite,
como foi seu dia de trabalho, pois as crianças lhe cortam a palavra
o tempo todo e ele mesmo, na verdade, se entedia no emprego.
Inúmeros sociólogos e psis discorrem sobre a morte do pai e o
declínio da autoridade. Entretanto, não foi o pai que morreu; foi
a sua palavra, capaz de afugentar todo mundo, que se mandou. E
nem por isso vivemos numa sociedade permissiva, bem pelo con­
trário, só que a obediência nos é imposta por sistemas, e não por
pessoas. Na década de 1970, Christopher Lasch, filósofo america-
no à frente do seu tempo, teorizou sobre a idéia de que o momen­
to atual se caracteriza por um “paternalismo sem pai”: ninguém
pode se voltar contra os pais de hoje, pois eles continuam calmos
e abertos, sem assumir uma posição de autoridade e de lei. Ao
lado disso, o paternalismo floresce, ao sabor do Estado-provedor,
de um sistema social protecionista e de uma burocracia que se
pretende benfazeja. Exemplo disso: nas grandes estruturas admi­
nistrativas ninguém mais lhe fará críticas diretas, mas espera-se
que você, por si só, se auto-imponha o que a organização deseja.
O poder, dessa forma, se torna totalmente impessoal e não precisa
mais de uma autoridade qualquer para que as pessoas obedeçam.
O rolo compressor funciona sozinho. E esperto, não?
Não há mais pais, há apenas genitores. E olhe lá! Tornar-se
pai, para o homem, é ter seu espaço reduzido ao devido tamanho.
O homem não é mais quem decide a paternidade. Há 50 anos,
eram eles que transformavam as mulheres em mães, às vezes até
contra a vontade delas. A relação de forças, hoje em dia, se inver­
teu. Apenas a maternidade é voluntária, não a paternidade. Os
homens são obrigados, para serem pais, a ser aceitos como tal.
As mulheres têm, atualmente, o total controle sobre os filhos: se
devem vir ao mundo ou não, por quem devem ser criados, quais
nomes terão. As mulheres não fisgam mais os homens pela boca,
mas pela barriga — a delas próprias.
Enquanto o pai divorciado, em nome do reconhecimento igua­
litário, combate uma Justiça que o priva dos filhos, a mulher reivin­
dica o reequilíbrio das tarefas domésticas e parentais nas famílias.
E injusto? Bastante. Mas a verdadeira igualdade entre os sexos é
provavelmente uma quimera. No final das contas, como são as mu­
lheres que continuam a assumir o essencial do trabalho escravo em
casa, é bastante lógico que também decidam, não? Quem trabalha
que arbitre: se a mesma lógica se aplicasse ao mundo dos negócios
e da política, as coisas seriam muito diferentes.

138 CORINNE MAIER


A criança de hoje é uma criança perfeita:
Bem-vindo ao melhor dos mundos

Ser pai ou mãe é vigiar de perto a saúde dos queridos rebentos.


As crianças gozam de ótima saúde, talvez graças à constante vigi­
lância de que são objeto. Nada mais de tuberculose nem cólera.
A mortalidade infantil nunca foi tão baixa. No entanto, nunca se
temeu tanto por suas vidas. Muitos pais se precipitam e os levam
ao pediatra ou lotam as emergências dos hospitais ao menor res­
friado. Os grandes males foram erradicados, mas outros surgiram.
Nos últimos vinte anos multiplicaram-se as doenças novas, que
vão desde as perturbações do sono aos problemas de desenvolvi­
mento afetivo, passando por alergias, atrasos de linguagem, obesi­
dade, fobia escolar...
A maldição dos pais é a criança hiperativa, uma doença in­
ventada recentemente. Há poucos anos, era considerada apenas
como um fio desencapado: a campainha do seu relógio biológico
toca ao amanhecer e, durante o dia, encadeia besteira atrás de
besteira, fala sem parar e berra à menor contrariedade. A criança
hiperativa preocupa ainda mais... por ser difícil diferenciá-la de
outra qualquer. E exatamente como a criança contemporânea,
mas piorada. Apenas pior. E esse “apenas" que torna a situação in­
suportável. Algumas crianças acumulam senões: no grande sorteio
dos gametas, você corre o risco de ganhar um obeso hiperativo.
Para evitar doenças, é preciso defender a criança de si mesma.
Explicar tudo sobre todo tipo de coisa, com um tom calmo e res­
ponsável. Convencê-la pela força dos argumentos a comer vagens,
tomates, e não apenas pizzas cheias de ketchup e hambúrgueres.
Já vi pais arrancarem os cabelos porque o filho “não come" (e, no
entanto, está vivo; como consegue?). Como não se pode forçá-lo
— isso não se faz mais —, é preciso muita diplomacia e paciência
para que engulam uma ou outra colherada de legume ou um
pedaço de fruta.
Normalmente os pais sabem como fazer, tendo em uma das
mãos a ameaça e na outra a persuasão, pois é como muita gen­
te se dirige a eles: os políticos, os diretores da empresa e alguns
médicos. Não é o adulto uma criança irresponsável, cercada de
programas sociais, higienistas, humanistas, protetores? Deve-se
ser maternal com ele, proibindo o fumo, explicando o lado ruim
do álcool... Tudo isso é para o seu próprio bem e para o bem
da coletividade. Para educar o cidadão, precisa-se de pedagogia,
essa palavra repetida o tempo todo: só a pedagogia faz recuar a
demagogia. Acham que somos crianças? Pessoalmente, quando
ouço a palavra pedagogia, saco meu revólver (quer dizer, minha
caneta). A pedagogia é a arte de enganar uma pessoa sem que ela
se dê conta.
A criança deve estar com boa saúde, integrada em grupos,
adaptada à escola. E enorme a pressão que lhe pesa nos ombros.
E preciso haver compensação por tudo o que se dá a ela, todos os
brinquedos, todo o tempo despendido, todas as esperanças depo­
sitadas. Tudo isso se paga, e caro. Para rentabilizar a quantidade

140 CORINNE MAIER


de cuidados e angústias investida nela, a criança deve apresentar
bons resultados (físicos e mentais). Nesse sentido, deve-se con­
sultar um logopedista se ela custa a aprender a ler, um ortodon-
tista para lhe endireitar os dentes, um nutricionista para ajudar a
emagrecer, um psicólogo caso ela não pareça “plenamente de­
senvolvida". Só uma criança da qual não se espera muito (foi o
meu caso, e os meus pais nem por isso eram uns monstros) sabe
e aprecia, já como adulto, a liberdade que isso dá: o que quer que
se faça, não vai decepcionar.
Você quer se assegurar de ter um filho em boa saúde, bem dis­
posto a enfileirar, como se fossem pérolas num colar, os anos de
contribuições que dão direito à única liberdade do assalariado (re­
firo-me à aposentadoria)? Graças aos progressos da genética, você
pode apelar para diagnósticos pré-implantatórios (denominados
em geral DGPI, pois sem o acrônimo que impressiona bem, a pa­
lavra perde sua pose e fica totalmente desamparada). Trata-se de
uma análise genética para permitir que se saiba, antes ou durante
a gravidez, se um embrião sofre de certas doenças ou deforma­
ções hereditárias. Com que finalidade? Ter crianças sadias. Pron­
tas para funcionar por muito tempo, como as pilhas Duracell.
Vêm com garantia de fábrica. Criança defeituosa? Descarta-se.
Anomalia? Mais adiante, não aqui em casa. Mozart, hoje em dia,
como muito provavelmente sofria da síndrome de Gilles de la
Tourette, seria considerado falho e indigno de viver. Até o mo­
mento, apenas 34 crianças nasceram na França tendo passado por
um DGPI, mas é bem provável que futuramente venham mais.
Um dia, todas as crianças nascerão sem deficiência alguma, sem
doença, sem câncer, sem esquizofrenia, sem depressão. A existên­
cia delas, com isso, não apresentará defeitos? E o mundo em que
vão viver será também sem defeito? Tenho sérias dúvidas...

SEM FILHOS 141


31-
Cuidado, criança: Perigo

Filho é perigoso. Pode lhe valer processos judiciais e lhe custar a


liberdade (que já era relativa, convenhamos). Pois o pequeno ser
inocente muito facilmente denuncia os pais e os envia às garras
da Justiça, sem maldade alguma. Lembremos que, nos regimes
totalitários, as crianças são rapidamente cooptadas; o bom comu-
nistazinho que entregava os pais à polícia secreta por se terem
enganado ideologicamente serve de modelo. A França não fica
atrás: Outreau, uma cidade do norte, lúgubre, onde, é preciso re­
conhecer, há pouca distração, serve de exemplo. Em 2001, por
denúncia de várias crianças, 18 pessoas foram presas e passaram
de um a três anos numa cela — uma delas se suicidou. Foi um
erro judiciário: os diabinhos tinham mentido, com o apoio de pe­
ritos superpreparados e levados a sério por juizes incompetentes.
Outreau primeiro ultraja e depois assusta. Podia ser com qual­
quer um de nós, pais. Um calafrio nos passa pela espinha. Aliás,
o mesmo quase aconteceu com um amigo meu: sua filha de 13
anos disse na escola, num dia de mau humor, que o pai a tinha
amarrado na cama. A polícia assumiu o caso e os pais foram
chamados a depor. Foram necessários vários meses para provar
inocência. Aliás, é preciso lembrar a “circular Ségolène Royal”,
de 1997, que obrigava as autoridades escolares francesas a nunca
duvidar da palavra das crianças que dissessem ter sofrido qualquer
tipo de abuso.
Por que a palavra da criança tem mais peso do que a do adul­
to? Porque ela diz a verdade; sendo vítima em potencial, ela é
obrigatoriamente inocente. Não estamos longe do mito da pureza
original. Além disso, como os pais as acham a sétima maravilha
do mundo, estão convencidos de que inúmeros adultos mal-
intencionados as rondam para fazê-las passar por odientos abusos
sexuais. Lolita, o diabólico romance de Nabokov, poderia ser pu­
blicado nos dias de hoje? Não sei não. Nosso mundo está habitado
pelo violador como imagem do mal absoluto, pior do que a antiga
SS. A encarnação do assassino-estuprador de crianças em toda sua
abjeção é Marc Dutroux, um monstro culpado de inúmeros assas­
sínios e estupros. Foi em nome de Dutroux que tivemos Outreau,
isto é, uma espécie de princípio de precaução de amplo espectro:
visto que em todo adulto dorme um Dutroux, vamos trancafiar
todos os adultos.
Não é preciso ser denunciado pelo próprio filho. Fotografá-lo
já basta para que se tenha problemas com a Justiça. Que os ico-
nófilos se cuidem. Em 2005, uma artista holandesa, Kiki Lamers,
foi condenada a oito meses de prisão com sursis e pagou 5 mil
euros de multa por ter feito fotos dos próprios filhos nus, para
usá-las em suas pinturas, como modelos. A proteção da criança
justifica a repressão; parece que estamos sonhando. Mas o pesa­
delo continua e, em 2006, o diretor da Escola de Belas-Artes de
Paris, Henry-Claude Cousseau, foi posto sob observação por ter
organizado, em 2000, uma exposição, Présumés innocents: 1’art

144 CORINNE MAIER


contemporain et 1’enfance [Supostos inocentes: a arte contempo­
rânea e a infância]. O que havia de violento, pornográfico ou con­
trário à dignidade naquela exposição que juntava a nata da arte
contemporânea, Christian Boltanski, Jeff Koons, Cindy Sherman
e outros? Anette Messager desencadeou a fúria dos autoproclama-
dos defensores da infância com uma obra intitulada Les enfants
aux yeux rayés [As crianças de olhos riscados], na qual mostra fo­
tos de crianças publicadas em jornais, cujos olhos foram riscados
com uma caneta esferográfica. E de perder a voz. Isso é grave,
inspetor? Aposto que um dia as ultra-sonografias vão substituir a
imagens pornográficas e vão ser trocadas às escondidas. No fundo,
o princípio é o mesmo: tudo deve ser visto até o osso, estando fora
de questão deixar algum mistério solto em algum canto.

SEM FILHOS 145


38.
Por que se sacrificar tanto
por um futuro excluído?

Você vai carregar o seu filho por décadas. Um verdadeiro peso de


que será difícil se livrar. Um conselho: se é para sustentar um pa­
rasita, que seja um gigolô. E mais agradável e, pelo menos, você
sabe por que paga. Você há de dizer que dentro de vinte anos o
mundo será mais acolhedor para os jovens; mas isso é bem pouco
provável, já que as coisas, desde a última geração, cada vez mais
se degradam.
Tem início aqui um momento cabeça: a criança encarna o que
o psicanalista Jacques Lacan denominou objeto a (objeto pequeno
a\ ou seja, ela ao mesmo tempo é um objeto maravilhoso e um
dejeto. Antigamente era um pouco disso tudo. Por muito tempo
foi vista como um parasita. Nem sempre desejada, longe disso,
sua existência era incerta. A gente se lembra da indiferença com
que Montaigne, em seus Ensaios, considerava os próprios filhos,
quase todos mortos em idade prematura: “Prefiro um bom livro
a um filho”, dizia ele, basicamente. E verdade que todo recém-
nascido brota do desejo dos seus pais, permanecendo, por bastan­
te tempo, um parasita na família ou no seu clã. Hoje em dia, a
criança é exclusivamente um objeto maravilhoso. E isto não é tão
bom assim, pois forçosamente vai se tornar um jovem, mas para
o qual está previsto o papel pouco atraente de dejeto, de outsider.
Está fora de cogitação a introdução de algo novo no mundo e o
jovem tem como tarefa apenas a confirmação da juventude como
mito. Compreende-se que muitas estrelas não queiram crescer,
Michael Jackson em primeiro lugar, mas também os rebeldes,
como Brad Pitt e Johnny Depp.
A tão mimada criança tem pela frente um futuro de jovem
descartável. A sociedade preza sua beleza, sua juventude e seu
frescor. E um objeto de luxo a ser admirado, mas que deve se
manter calado. Refiro-me ao jovem que vive em países ricos, pe­
sados, onde tudo já foi feito e experimentado: ele sente que não
é desejado como tema. Não havendo mais, na Europa, guerras
nem colônias, que eram as tradicionais saídas para a juventude
desocupada, o jovem pode apenas girar os polegares, à espera de
dias melhores. Ele tem, é verdade, direito ao sexo, o que não era
o caso até a década de 1970 — lembrem-se de que Maio de 1968
começou porque os rapazes queriam ter acesso aos dormitórios
das moças. Gozar, tudo bem, mas nem por isso pensem que po­
dem dar palpite sobre o que for, mesmo sem falar em mudar o
que seja.
A França, país criançófilo por excelência, mostra-se bem pou­
co acolhedora com relação a seus jovens, oferecendo uma expec­
tativa de desemprego em massa, contratos de trabalho precários
e moradia exígua até, no mínimo, os 30 anos de idade. Na faixa
etária dos 20-25 anos, apenas um jovem em cada quatro trabalha,
e esses que conseguiram “se inserir” carregam nos ombros toda a
“flexibilidade trabalhista” que a França não quer de jeito algum:
87 por cento dos jovens têm um contrato precário — isto é, um

148 CORINNE MAIER


emprego de merda. Mais pobres do que os pais na mesma idade,
apesar de terem mais diplomas, esses baby-loosers são uns fardos
para o sistema do seguro-desemprego. São delinqüentes em po­
tencial ou, aqueles que se safam um pouco melhor, desclassifica­
dos sociais.
O sistema precisa de indivíduos sem história, sem uma iden­
tidade marcada nem fixa, vivendo num presente em frangalhos.
Seu filhão, futuro “sem-emprego”, vai viver um dia atrás do outro
uma vida sem ideal, sem projeto nem qualquer sonho além da­
quele de “se integrar”. Segurança, certeza, domínio da própria
vida — ele vai esquecer até mesmo o sentido dessas palavras. Não
terá motivo algum para estar ali. Rápido, cada vez mais rápido,
para o lixo. Ele será a imagem do próprio modo de vida, em que
nada foi feito para durar e todos os objetos úteis e indispensáveis
de hoje se tornam os rebotalhos de amanhã. Na incerteza do dia
seguinte, na aflição do futuro, ele vai se ver obrigado a se virar,
sem conhecer as regras imprecisas de uma sociedade que as em­
baralha de propósito. Não há mais “modo de usar” para quem
nela quiser traçar seu caminho: se você tem filhos, nada tem a
lhes transmitir, receita alguma, nenhum know-how que valha.
Não é surpreendente que o número de jovens adultos sofrendo
de depressão tenha dobrado em doze anos.16 De Gaulle dizia que
a velhice era um naufrágio; hoje em dia é a juventude.

16 Segundo a Fundação Joseph Rowntree, citada pelo jornal The Guardian, na


edição de 27 de novembro de 2002: John Carvel, “Depression on the rise among
young” [Depressão em alta entre os jovens].

SEM FILHOS 149


39-
Crianças demais na Terra

Bens em demasia, bares em demasia, lojas em demasia, assim


como um exagero de diferentes tipos de pão integral orgânico.
Gente demais. A população mundial conta 6,5 bilhões de indiví­
duos; em 2030, deveremos estar próximos dos 8 bilhões. São os
pobres que têm mais filhos, com a taxa de fecundidade nos assim
chamados países desenvolvidos tendo caído abaixo do número
mágico de 2,1 filho por mulher, considerado taxa de substituição
(população com crescimento zero).
No entanto, o planeta não está superpovoado. Se as popula­
ções da índia e da China, reunidas, se mudassem para o continen­
te norte-americano, ele não ficaria mais povoado do que a Bél­
gica, a Holanda ou a Inglaterra. O problema é a superpoluição.
A população relativamente insuficiente dos países ricos consome
dois terços da energia total utilizada. Na verdade, não há gente
demais no planeta; há ricos demais.
Nós, bicões planetários, é que consumimos mais e mais. De
fato, é justo ter filhos, crianças que consumirão ainda e cada vez
mais, em prejuízo dos pobres? Ninguém precisa dos nossos filhos,
pois nós e eles somos os filhos mimados de um planeta que está
encurralado. Para quem vive na Europa ou na América, ter filhos
é imoral: são cada vez mais recursos raros desperdiçados por um
modo de vida sempre mais voraz, mais fantasista, mais sedento de
combustíveis, mais destruidor do meio ambiente.
Ter filho num país rico é um ato não-cidadão. São aqueles que
decidem não tê-los que o Estado deveria ajudar. Menos desempre­
go, menos amontoamento, menos guerra. Imaginemos um pouco
a França com vários milhões de habitantes a menos: menos gases
de efeito estufa, filas para alugar apartamentos a preços exorbitan­
tes, engarrafamentos na auto-estrada no fim de semana, menos
confusão diante dos cinemas para ver Borat, prazos de espera me­
nores para uma cirurgia ... Um verdadeiro país dos sonhos.
Outros países da Europa têm a inteligência de ser menos fér­
teis do que a França. Prevêem-se, no horizonte de 2050, uma
Alemanha povoada por somente 73 milhões de habitantes (80,
atualmente), uma Itália com 50 milhões (em vez de 58), a Espa­
nha com 35 (em vez de 40). Você tem vontade de visitar a Grande
Mesquita de Córdoba sem ser tragado por uma horda de turistas,
conhecer a Capela Sistina com toda calma? Amanhã será possí­
vel. E preciso imitá-los. Franceses, esforcem-se mais no caminho
da desnatalidade. Sem filhos é um objetivo que se pode atingir,
havendo solidariedade: se estivermos todos atentos, espermatozói­
de algum chegará ao óvulo.

CORINNE MAIER
4o.

Vire as costas aos ridículos


dez mandamentos do “bom” pai

— O filho é mais importante do que você ou qualquer projeto


seu. Mais importante do que o casal, do que todas as demais
crianças, todos os adultos vivos ou mortos, ou a sociedade
em que se vive.

— Devem-se transmitir valores “frouxos” (tolerância com rela­


ção ao outro, honestidade) que ninguém respeita e que não
ajudam a se inserir socialmente ou ganhar dinheiro — são,
inclusive, empecilhos.

— Deve-se desejar a sua “felicidade”; ninguém sabe o que é


isso, mas ele talvez venha a saber, se você se dedicar mui­
to ao trabalho. Os jovens de hoje não parecem tão felizes
assim? E porque os pais não fizeram o bastante por eles, só
isso.

— Você deve fazer com que ele esteja ocupado o tempo todo,
da maneira mais variada possível. E uma trabalheira enor­
me, mas necessária para que ele seja “estimulado” e alcan­
ce o “pleno desenvolvimento ”.

— Seja um exemplo para ele: nada de fumo, birita nem suru-


ba em casa. Nada de mau gosto nem piadas impróprias. O
ideal é que não haja lágrimas, brigas nem lutos, mas isso é
às vezes inevitável.

— Proteja seu filho dos múltiplos perigos que o espreitam,


pois ele é uma vítima em potencial; o que quer que ele faça,
nunca será culpado nem responsável. A criança sempre diz
a verdade.

— Prepare seu filho para que ele se “adapte”, circule, seja


“flexível” num mundo em transformação. Não esqueça que
um dia ele estará no mundo, antes de mais nada, como um
turista.

— Jamais bata nele. Nunca punição alguma nem esculacho:


a escola e a sociedade farão isso a marretadas, para que ele
entre nos eixos.

— Fale com ele (o mais que puder) e explique (tudo e muito


mais).

— Seja positivo. Fale do mundo em que ele vai viver quando


crescer, um mundo cidadão, plural, globalizado, contrário
às discriminações: ele vai ficar cheio de vontade de crescer.
Mas não tão rápido, pois o único e verdadeiro paraíso, afi­
nal, é a infância...

*54 CORINNE MAIER


CONCLUSÃO

Criança? Não, muito obrigada

Nada de criança, obrigada. Mais vale evitar. A baixa natalidade é


a única esperança. Senhoras, o futuro do país está em suas mãos.
A última liberdade é “preferir não...”. Como Bartleby, o herói sub­
versivo de Hermann Melville, que espalhava desordem no trabalho
com sua pouca vontade e, manifestamente, não tinha filhos.
“Preferir não...” é a fórmula do pensamento negativo, da dúvi­
da desconstrutora. E o refúgio de quem não tem a ingenuidade de
acreditar que tem soluções a propor, ou o cinismo de fazer os ou­
tros acreditarem que tem. E o estandarte daqueles que se pergun­
tam por que devem dizer sim, cheios de entusiasmo e bons senti­
mentos, a esse repeteco do melhor dos mundos que nos vendem
como a meta final de séculos de progresso e de humanismo.
Eu mesma preferiría não ter filhos. Não trabalhar. Não assistir
ao telejornal. Não participar da competição econômica.
Você também pode escolher “preferir não...”. Nãozistas de
todos os países, minhas irmãs e meus irmãos, mantenhamo-nos
desunidos, céticos e, se possível, sem descendência.
BIBLIOGRAFIA

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158 CORINNE MAIER


ALGUMAS DAS 40 RAZOES PARA VOCE
NÃO TER FILHOS

O PARTO É UMA TORTURA

CRIANÇAS CUSTAM CARO

O FILHO É A DESPEDIDA DE SEUS SONHOS DE JUVENTUDE

É UM ALIADO OBJETIVO DO CAPITALISMO

“A CRIANÇA É UMA ESPÉCIE DE ANÃO CHEIO DE VÍCIOS E COM UMA


CRUELDADE INATA” (MlCHEL HOUELI.EBECQ)

“Uma provocação.”
Le Figaro

“Idéias de irresistível irreverência para quem tem ou quem


não tem filhos, para os que querem ter ou não! Um pouco de
impertinência jamais despovoará o mundo!”
Le Magazine des Livres

ISBN 978-85-98078-32-8

9 788598 078328

www.intrinseca.com.br

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