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A narrativa denuncia a banalidade e as limi Filhos: afinal, seria melhor não tê-los? Corin
tações da vida doméstica dos que têm filhos ne Maier, mãe de dois adolescentes, declara:
e os malefícios da “educação” moderna, na “Em certos dias eu me arrependo, e ouso di
qual a criança é o centro da família. Investiga zer isso.” Cansada do pensamento conformista
o consumismo ditado pelas crianças, a indife que conclama mulheres e homens às alegrias
rença dos adolescentes e as inevitáveis decep da maternidade ou da paternidade, essa en
ções dos pais com suas crias. saísta rebelde revela aqui boas razões para não
sucumbir à tentação e enfrentar as conseqüên-
Além disso, Sem filhos relembra as custosas cias e os sacrifícios que essa escolha pelos be
privações objetivas e subjetivas que uma crian bês pode representar.
ça representa: “Lazer, vida conjugal, amigos,
sexo. E isso durante vinte anos, até que a A autora analisa a onda de idealização e gla-
criança se transforme em um jovem sem fu mourização da maternidade, onipresente na
turo.” Este livro mostra como a sociedade que mídia contemporânea, com um discurso heré
privilegia as crianças na verdade penaliza os tico, sincero e politicamente incorreto. Assim,
adultos, instaurando o que os especialistas já põe em xeque um dos tabus mais intocáveis da
caracterizam como a era do “filiarcado”. sociedade: a necessidade de ter filhos. Mesmo
entre os homens, para quem a opção por não
ter filhos é mais aceita, assumir que não se de
seja crianças resulta em reprovação imediata.
Para as mulheres, essa escolha é acompanhada
por uma condenação: é impossível alcançar a
plenitude sem filhos.
Sem Filhos
40 razões para você não ter
I
Copyright © 2007 Éditions Michalon, Paris
TÍTULO ORIGINAL
No kid, quarante raisons de ne pas avoir d’enfant
REVISÃO
Janir Hollanda
Antonio dos Prazeres
DIAGRAMAÇÃO
Ilustrarte Design e Produção Editorial
IMAGEM DA CAPA
Norbert Schaefer/zefa/Corbis/LatinStock
[2008]
PRÓLOGO, 11
INTRODUÇÃO, 13
8 CORINNE MAIER
jo. “Criar” um filho: Mas em qual direção?, ng
31. Fuja da neutralidade bem-comportada, 123
32. A paternidade infelizmente é uma doce cantilena, 127
33. A maternidade é uma armadilha para as mulheres, 131
34. Ser mãe ou ter sucesso: E preciso escolher, 133
35. Quando 0 filho aparece, o pai desaparece, 137
36. A criança de hoje é uma criança perfeita: Bem-vindo
ao melhor dos mundos, 139
37. Cuidado, criança: Perigo, 143
38. Por que se sacrificar tanto por um futuro excluído?, 147
39. Crianças demais na Terra, 151
40. Vire as costas aos ridículos dez mandamentos do
“bom” pai, 153
BIBLIOGRAFIA, 157
SEM FILHOS 9
PROLOGO
12 CORINNE MAIER
INTRODUÇÃO
O culto da criança
14 CORINNE MAIER
fecundidade inspira. Ter filhos, então, tinha a ver com fatalidade.
Depois surgiu o desejo por crianças: uma idéia nova na Europa.
Desde a pílula e o aborto, a criança se tornou desejada. Não é
mais a conseqüência de um ato sexual, mas o produto de uma
vontade controlada pela ciência. O imprevisto foi banido. Viva a
programação: o primeiro filho aos 30 anos, quando eu tiver um
emprego estável; o segundo depois de ter comprado uma casa, o
terceiro para deduzir do imposto de renda.
O “desejo por crianças” dá asas a adultos com poucas perspectivas
próprias (eles são muitos). A missão dos pais consiste em se concen
trar de corpo e alma no desabrochar desses pequenos seres maravi
lhosos. Tornada totalmente sagrada, a criança representa, para mui
tos tolos ou ingênuos, o elo que faltava entre o humano e o infinito.
Não se trata mais de Demain les chiens [Amanhã, os cães], como se
traduziu na França o romance de ficção científica de Clifford D. Si-
mak, mas sim Aujourd’hui les enfants [Hoje, as crianças]. Enquanto
isso, Malthus, que já no final do século XVIII fez o elogio do controle
da natalidade, tem seu nome raramente citado nos dias de hoje: os
malthusianos, cada vez menos numerosos, são considerados uns an-
tipatriotas cínicos ou até mesmo anarquistas perigosos.
1 Em 2006, com uma taxa de fecundidade ligeiramente superior a dois filhos por
mulher, a França se tornou, com a Irlanda, o país mais fértil da Europa. A Bélgi
ca apresentou 1,6 filho por mulher, e os vizinhos italianos, alemães e espanhóis
tiveram taxas que não chegaram a 1,4. Já os países do Leste estão enfrentando
uma crise profunda em relação à natalidade. As taxas de fecundidade nos Es
tados Unidos são mais elevadas do que na Europa, com 2,1 filhos por mulher.
Por quê? Porque demonstram maior “otimismo” e patriotismo, além de crenças
religiosas mais fortes.
SEM FILHOS
prensa em tom de triunfo. Por que os jornalistas se interessam por
isso? A maternidade tem ações cotadas na Bolsa? Por que seria
uma vitória? Talvez por ser só o que resta à França para subir
em algum pódio? Com a natalidade e o familiarismo em gloriosa
ascensão, teria assumido o poder o candidato da direita naciona
lista, Philippe de Villiers?
Na França é “normal” querer filhos. Mas nem sempre foi assim.
Durante muito tempo os franceses reclamavam muito da obriga
ção de se reproduzir. Do século XVIII até a década de 1970, eles
mantiveram distância das alegrias da paternidade: a natalidade
francesa era bem baixa. A ponto de muitos se preocuparem com
o futuro da identidade nacional (ainda não se chamava assim).
Hoje em dia, eles parecem tomados por uma estranha febre. Todo
mundo fala de desejo por crianças como de uma pulsão vital sur
gida do fundo das entranhas, irresistível, ardente, inexplicável e
totalmente legítima. Muitos pais estão convencidos de cumprir
uma missão de interesse nacional, um sacerdócio que vai às raias
do sagrado e da transcendência: a criança representa um além
que se pode improvisar com meios próprios.
Todo mundo sonha ter um filho. Casais gays querem adotar
crianças, e lésbicas gostariam de carregar o seu próprio fruto de
carne, osso e gritaria — apesar de, por enquanto, o Código Civil
não concordar com isso, pois o Direito gosta de se remeter ao “na
tural” e considera que a “verdadeira” filiação deve se vincular ao
corpo. Mas o direito ao filho já mostra a ponta do nariz no hori
zonte, assim como, no sentido oposto, o direito à moradia, o direito
à felicidade, o direito à saúde, o direito à magreza. Quando virá o
direito à infância, que vai permitir que não se saia mais do país das
maravilhas?
Na França, quando alguém se casa, os colegas de trabalho não
deixam de perguntar: “E então, como foi? Já está a caminho?”
Certas mulheres, ao que dizem, inventam no escritório ter um
filho para que as deixem em paz, de tal forma é rara a dissidência.
16 CORINNE MAIER
Pois é na França que a imposição da maternidade é mais forte, in
centivada por vigorosa política familiar (abonos, creches, escolas
maternais etc.). Com relação às mulheres que atualmente deixam
a idade fértil, apenas uma entre dez francesas não teve filho; na
Itália e na Espanha, as mulheres sem filho somam 14 por cento,
na Grã-Bretanha, 20 por cento, na Alemanha, 30 por cento (45
por cento entre as que têm educação superior). Cada vez mais, a
França é considerada um exemplo por outros países da Europa,
tanto que a Alemanha acaba de estabelecer, para os pais, uma
licença remunerada de um ano. Europeus, direto aos seus berços
— a única imagem que se quer ver é a dos seus bebês.
sem filhos 17
procurem, com um tom sabido, explicar que as crianças de hoje
são o “crescimento” de amanhã: Que crescimento? Para quê? O
crescimento econômico é, por si só, um objetivo digno de uma
sociedade que se pretende democrática? Sonha-se apenas com a
compra de televisores, máquinas de lavar, telefones celulares? E
isso gera empregos cuja total estupidez não devia deixar contentes
os que os oferecem nem os que os aceitam? Os discursos ultra-
repetidos dos economistas (são, no mais das vezes, uns senhores
maduros, falastrões e pretensiosos) sobre esse assunto só me fazem
rir. A economia, que se pretende um metadiscurso sobre uma
realidade bem difícil de ser pega numa rede de caçar borboletas,
nunca me impressionou. Ainda mais porque eu mesma me auto-
proclamei economista durante anos e, por isso, conheço todos os
meandros dessa não-profissão.
Há, felizmente, “opositores conscientes” da fertilidade. Refiro-
me àquelas e àqueles que não querem filhos. Eles são discretos,
em geral, por evidentes razões de prudência. As mulheres têm até
o direito de adiar a idade da maternidade, mas negá-la, nunca. Os
homens, de algum tempo para cá, flagram-se dizendo que a vida
é um fracasso quando não se tem filhos. Cresce a tolerância com
relação às diversas formas de vida privada, mas explicar serena
mente que não se quer ter filhos suscita reprovação. Os que têm
essa coragem são vistos pelas pessoas ao redor como desviantes
da norma, de tal modo se considera a família um valor universal.
Na França, ser “sem-filho” é uma anomalia. Permanentemente
censurados, os que se atrevem a não tê-los causam dó: “A pobrezi
nha provavelmente não pôde ter”; “Ele estragou sua vida”. Esses
“egoístas”, “imaturos”, “pessimistas”, “instáveis” são esmagados
por impostos num sistema fiscal injusto que favorece as famílias.
São também deixados à margem num mundo em que tudo é feito
para o modelo dominante. Alguns têm outras ambições? Todo
18 CORINNE MAIER
mundo lhes dirá que elas têm pouca importância, comparadas às
“alegrias" de engendrar, de “sentir-se realizado", prometidas pelo
ato de gerar filhos.
Veio do exterior uma saudável contra-ofensiva. Nos Estados
Unidos e no Canadá, na Austrália e na Inglaterra, associações de
“não-pais" foram criadas, já no meio da década de 1980. Tornan
do-se verdadeiros grupos de pressão, essas associações impuseram
o uso da palavra childfree [livre de filho] no lugar de childless
[sem-filho]. Não ter filho é uma escolha, e não um defeito. Os
que a assumem não têm nenhum tipo de carência; sentem-se bem
satisfeitos, obrigado. Além disso, certas associações dizem em voz
alta o que muitos pensam baixinho: crianças são um transtorno
horrível. A respeito delas, o ator Hugh Grant declarou, impassí
vel: “Não suporto desordem nem feiúra." Não se pode imaginar,
na França, Christian Clavier ou Jean Dujardin dando esse tipo
de declaração... Na Flórida, existem zonas childfree, condomínios
com entrada proibida aos menores de 13 anos, destinados a trin-
tões que não suportam os inconvenientes ligados às crianças. Nos
Estados Unidos e, mais recentemente, na Escócia, surgiram con
domínios sem crianças, destinados aos aposentados: a demanda é
bastante promissora. O “conceito", tudo indica, agrada. Até agora,
porém, não chegou à França. Os que o promovem têm medo de
ser recebidos a pedradas.
SEM FILHOS 19
com intenção inversa. Há, pelo menos, quarenta delas, que serão
detalhadamente descritas mais adiante.
Chega de discursos melosos sobre a felicidade da profissão pai-
mãe. Diante de tanto entusiasmo e de bons sentimentos obriga
tórios, dizer “argh” a essa nurseryland é algo urgente e necessário.
E sei do que estou falando. Filhos? Eu mesma tenho. Há coisas
de que só uma mãe de família pode falar, se tiver coragem de
fazer seu coming out. Se assinasse este livro sem ter filhos, todo
mundo acharia se tratar de alguma solteirona amarga e invejosa.
Nesse caso, talvez me acusem de ser uma mãe indigna. Assumo
o risco. Tendo traído a empresa onde trabalhava ao escrever meu
livro Bom-dia, preguiça, denuncio aqui um clichê da família que
só existe nas revistas. Aproveito para fazer pouco de uma certa
França pró-natalidade e auto-satisfeita, cujas únicas metas são o
trabalho e a reprodução. E é exatamente o sinal de uma incô
moda regressão: o que pode ser mais deprimente do que um país
dobrado à reprodução da mesmice, sendo essa “mesmice” sem
graça e prosaica?
20 CORINNE MAIER
40 RAZÕES PARA
VOCÊ NÃO TER FILHOS
1.
24 CORINNE MAIER
e os antropólogos, que tudo sabem sobre o Homem. Os políticos
são os primeiros a se servirem das crianças para uma normaliza
ção da população (nada de inseminação artificial para mulheres
sozinhas, nem acesso aos métodos de fecundação com reconhe
cimento de paternidade para casais homossexuais, embora tudo
isso seja possível em vários outros países europeus). Resumindo,
como cantava Patrick Bruel, “Qui a le droit?” [Quem tem direi
to?]. O que é o direito ao filho e quem tem direito de nos dizer o
que fazer?
sem filhos
2.
28 CORINNE MAIER
gerontofobia? Provavelmente. Viva a juventude, abaixo a velhice
e, sobretudo, a morte, que não tem mais valor algum para nós. E,
no entanto, no século XIX, quem gostava de moribundos fazia
a festa: adorava-se pintar, esculpir e fotografar os mortos. Hoje
em dia, somente os defuntos célebres nos interessam, sobretudo
o ex-presidente da França François Mitterrand, talvez porque o
considerassem “Deus"...
sem filhos 29
3-
Evite se tornar uma
mamadeira ambulante
32 CORINNE MAIER
escravizável à vontade, não tem sequer direito a uma cerveja ou
a um aperitivo, pois é proibida qualquer absorção alcoólica, que
passa para o leite... Perguntei a uma amiga por que ela amamenta
va e ela respondeu, com um seco tom de crítica: “E uma escolha
pessoal.” Mas não é mesmo; trata-se cada vez mais de uma obri
gação coletiva.
SEM filhos
33
4-
Continue a se divertir
36 CORINNE MAIER
5-
Condução, trabalho, filharada:
Não, obrigada!
A vida com filhos é uma vida banal: você acorda todos os dias na
mesma hora para levá-los à creche, à babá ou à escola. Depois vai
para o trabalho e, em seguida, à tardinha, volta para casa e vai se
ocupar do banho, dos deveres de casa, de preparar a comida e a
cama das crianças. E é como se passam todos os dias.2
Os prisioneiros são deixados em liberdade condicional com uma
pulseira de segurança que permite seguir todos os seus movimen
tos. Já você nem precisa disso. O filho é a sua corrente nos pés. As
suas “pistas” estão garantidas. Na ex-União Soviética, o regime dei
xava alguns privilegiados viajarem para o Ocidente, mas os filhos
ficavam em segurança, atrás da cortina de ferro; era um bom meio
de se evitarem deserções. Procure o filho e encontrará os pais. Está
38 CORINNE MAIER
Algum ingênuo pode me dizer: “Ah, mas cuidar de criança não
é trabalho.” E sim: criar filhos significa respeitar horários, assumir
trabalheiras inadiáveis; comporta suor, lágrimas e chateações ga
rantidas. Aliás, na Áustria, as mulheres podem agora contabilizar
o tempo dedicado aos filhos na soma dos anos para a aposentado
ria. Se cuidar de crianças fosse tarefa agradável e gratificante, as
pessoas fariam isso gratuitamente, mas não é o caso. Ninguém vai
querer cuidar dos seus filhos sem uma contrapartida financeira
(exceto seus próprios pais, que querem outro tipo de pagamento:
falaremos disso mais adiante): a puericultora, a professora, a babá
são remuneradas. Mal remuneradas, pois todas as profissões liga
das à infância são desvalorizadas — os “profissionais da infância”
ganham menos do que os que cuidam de adultos. Os psicólogos
infantis não gozam de menor consideração do que os psicanalistas
para adultos, assim como os professores primários com relação aos
universitários? E por quê? Porque assumem uma tarefa incômoda
e ingrata. Criança, triste paraíso.
sem filhos
39
6.
42 CORINNE MAIER
hora, os fins de semana de namoro, as manhãs longas e pregui
çosas e as noitadas com amigos; à direita, a catapora de Oscar, as
aulas de violoncelo de Leo, a baby-sitter que não veio, a creche
em greve, os deveres de casa de Max. Acham tratar-se de um jogo
equilibrado? Cabe ao leitor julgar.
Você já visitou pais recentes, com sua prole em casa? E incrí
vel. Chega-se por volta das oito da noite e as crianças, é claro, ain
da não estão deitadas, pulando por todo lado, aos berros. Impos
sível qualquer conversa tranqüila entre amigos, pois os diabinhos
correm sem parar, urram, fazem todas as besteiras do mundo para
chamar atenção, jogam os brinquedos nos pratos de salgadinhos.
Os pais tentam acalmá-los com longas explicações que não con
vencem ninguém — “Filhinha, são dez horas e seria bom que
fosse dormir, pois o sono é necessário". E os convidados devem
manter as aparências, sem demonstrar irritação. No fim de uma
hora de pandemônio, o convidado se controla para não dizer “Se
não se acalmarem, vou embora". Mas em seguida vem o ritual
de se deitar, levando cerca de uma hora até que os monstrinhos
finalmente durmam. Os pais se sentem obrigados a fazer com que
a criança se sinta amada, apesar de já terem dito isso o dia inteiro.
Durante todo esse tempo, o convidado se controla, perguntando-
se por que não preferiu ir ao cinema... Quando, graças a Deus, a
visita termina, ele dá um suspiro de alívio e (enfim) acende um
cigarro na rua, para relaxar: é claro, não pôde fumar a noite intei
ra, pois isso é péssimo para as crianças.
Imaginemos que o convidado, que acaba de sair fumegando
de irritação, tivesse aceito passar um fim de semana em família. E
quando as coisas se tornam francamente insuportáveis. Bramidos
à mesa, gritos à noite, pais irritados, respeito religioso pelas horas
da sesta: são coisas que estragam qualquer fim de semana. Mas
o pior é que o convidado passa sempre para segundo plano, em
comparação às crianças. Seu bem-estar, fica claro, não tem tanta
SEM FILHOS 43
importância. Ele, então, terá que suportar uma série de coisinhas
desagradáveis e aborrecimentos, como a porta do quarto do bebê
aberta, pois o queridinho suporta mal o calor, e a impossibilidade
de se fazer isso ou aquilo, que “pode irritar as crianças" etc. Um
dia, com os filhos crescidos, o casal aqui descrito (qualquer se
melhança com pessoas reais não é mera ficção) vai se encontrar
sozinho e sem amigos, numa casa de subúrbio, contando o tempo
que falta para a aposentadoria. E assim que vivem os homens (e as
mulheres)... quando têm filhos? E de estremecer de medo.
44 CORINNE MAIER
7-
Não aprenda a língua idiota
usada para se dirigir às crianças
46 CORINNE MAIER
contra isso. Não se pode mais dizer a uma criança: “Cale a boca,
estou pensando em coisas importantes.” Então, é simples, a gente
não escuta: meus filhos sempre me acharam distraída. Na verda
de, quando eles falam comigo, muitas vezes penso em coisas agra
dáveis, livros a escrever, férias sozinha com um belo desconheci
do numa ilha de sonho, ou em uma simples noitada beaujolais
rtouveau com as amigas. Ou seja, momentos sem eles.
Quando crescem, as coisas pioram. O vocabulário que usam é
terrivelmente reduzido, o discurso é entrecortado, e cada frase en
tremeada com uns “puta merda” bem sinceros. O uso compulsivo
de “tipo isso, tipo aquilo” traduz a incredulidade diante da reali
dade que têm em volta: “Tipo, eu berrava no telefone...”; “Tipo,
estou me lixando, não está vendo?”; “Ela disse, vou me matar e eu
disse, espera até amanhã, que hoje estou exausta”; “Sinistro, eu vi
e foi um auê, viu só?”; “E como, nem sei, tipo quando te colocam
com um cara, você tenta se adaptar, nem sei”. Se encontrasse
alguém se exprimindo assim, num jantar ou num bar, francamen
te, teria vontade de manter uma conversa? Com certeza não. O
diálogo pais-filhos faz com que a gente se sinta como se estivesse
o tempo todo num jantar com um bando de idiotas.
sem filhos 47
8.
O quarto de brinquedos
é o fim da brincadeira
5° CORINNE MAIER
dosamente controlada. No fundo, fazia-se justiça. Um toma-lá-
dá-cá: “Você me impede de viver minha vida e eu ponho sérios
limites à sua liberdade.” Uma batalha.
E a repressão sexual não era motivada apenas pelo medo de
uma gravidez indesejada. Pois durante quase um século, o XIX,
pais e educadores uniram forças para lutar contra uma terrível
ameaça, a masturbação dos filhos, que se supunha prejudicar a
saúde da juventude, roubando-lhe as forças. Hoje em dia, não
se entende muito bem por que a punheta atemorizava tanto a
sociedade da época. Vamos arriscar uma explicação. Ela parte de
uma constatação lapidar e forte: um só não é bom, dois é melhor.
Seguindo a mesma ordem de raciocínio, a clonagem, tão malfa-
lada, está para a reprodução como a masturbação para a sexuali
dade. Ter um prazer solitário, fazer um filho com os seus próprios
genes apenas, é o mesmo combate — e o mesmo escândalo. Por
quê? Porque não é aconselhável fazer sozinho o que se pode (e
deve) fazer a dois. E uma bela maneira de diluir no casal a indi
vidualidade que, deixada por sua conta, pode levar a não mais se
aderir aos fundamentos da sociedade, a ponto até — que horror!
— de cessar a reprodução. Que relação tem isso com a criança?
O discurso meloso e protetor da sociedade em relação a ela mal
esconde a imposição “trate de andar direito”.
Assim que foi anunciado um certo bebê clonado pela seita dos
raelianos,
* a imprensa se referiu a “transgressões de todas as leis
relativas à experimentação humana”, a “algo irreversível que se
produziu”, à “abominação, monstruosidade, a um atentado contra
a ética”. Por que tanta celeuma por um bebê clonado da própria
mãe? Falando sério, de qualquer maneira somos todos clones, não
sem filhos
51
dos nossos pais, mas de algum vizinho ou colega. As palavras de or
dem não são mais “amem-se uns aos outros", mas “pareçam-se uns
com os outros". Assim como os tomates, as ervilhas ou as batatas:
tudo precisa ter a mesma dimensão para caber em caixinhas.
CORINNE MAIER
9-
O filho: Um estraga-prazeres
O filho nem sempre acaba com o amor, mas muitas vezes acaba
com o desejo. O atentado estético contra o corpo da mulher a faz,
durante vários meses, parecer um bicho grande, disforme e engor
dado à força. Por tudo isso, ela fica obrigada a se vestir como um
saco. Por mais que nos repitam que mulher grávida é maravilhosa
e exuberante, pessoalmente tenho muitas dúvidas: grávida, não
era bem como eu me sentia com aquele tonel crescendo abai
xo dos meus seios. Muitos depoimentos obtidos de amigas, entre
a sobremesa e o cafezinho, me convenceram de algo raramente
enfocado pelas revistas “pais e filhos”: muitos homens até acham
bonitas suas namoradas ou esposas esperando filho, mas nem por
isso têm tanta vontade assim de fazer amor com elas.
Muitas vezes, então, é na gravidez que começa um longo in
verno sexual. Uma notícia ruim que não vem seguida por uma
boa, como nos seriados americanos. Não, essa privação não vai
acabar quando a criança nascer. Ninguém tem vontade de fazer
amor após uma episiotomia, e mesmo que tenha, isso dói duran
te várias semanas. Não sabe o que é uma episiotomia? Trata-se,
diz o dicionário, de “uma incisão do períneo, partindo da vulva,
praticada por ocasião do parto". Ou seja, minhas senhoras, mal
trata-se ferozmente a parte mais íntima do seu ser, aquela que,
em geral, lhes permite gozar, mesmo que — e felizmente — haja
outras. Segundo os médicos, a episiotomia é uma intervenção be
nigna; ela é freqüente pelo menos para quem escapa dos estragos
da cesariana, que, esta sim, é uma verdadeira operação. Seria a
episiotomia um mal menor, mais ou menos como ter votado em
Jacques Chirac para não ter Le Pen como presidente da Repúbli
ca? Mas isso é motivo para festejar?
Não se tem vontade de fazer amor entre duas fraldas a trocar,
depois de uma mamadeira a ser dada em plena noite, tendo pas
sado por três horas de trabalho em casa após um expediente no
escritório. Não se tem vontade de fazer amor tendo em volta o al
voroço de pirralhos brigando. Isso se agrava quando se mora num
apartamento apertado, com as crianças aprisionadas num mesmo
quarto, que não fica longe do dos pais. Podem imaginar um filme
como Nove semanas e meia de amor com crianças no quarto ao
lado? A temperatura abaixa imediatamente nove graus e meio,
mesmo com atores supersensuais. Adeus, erotismo.
54 CORINNE MAIER
IO.
Bom-dia, filho, adeus, sexo, adeus, casal. Este último não é solúvel
na família. O desejo, que tem a ver com a surpresa, o imprevisto,
a capacidade inventiva dos parceiros, vai se reduzir muito quando
tiverem um filho ou, mais ainda, dois. Com crianças a tiracolo,
você se torna, antes de tudo, um “papai” ou uma “mamãe”. Você
deixa de existir na primeira pessoa. Ao se dirigir ao filho, você mes
ma diz: “Mamãe não concorda que você ponha suas melecas no
quadro, Ulisses.” No final de alguns anos, vão ver, serão unica
mente “papai” e “mamãe” e, vinte ou trinta anos depois, já avós,
“Jacques” e “Eveline”.
A prioridade dada à criança é o que faz dobrarem os sinos para
o casal? Muitas vezes, sim. Quando se tem filhos, deixa-se de ser a
jovem um tanto volúvel que se divertia com as amigas e provocava
0 namorado; deixa-se de ser o rapaz impetuoso que levava vida
boêmia e nem sabia a quantas andava, no final do mês, sua conta
no banco. Jacques e Eveline serão avós, mas não obrigatoriamen
te estarão juntos. Estatisticamente, têm pouca probabilidade de
envelhecerem um ao lado do outro: a criação dos filhos os esgo
tou. Não souberam guardar recursos suficientes para si mesmos.
Ele só enxerga nela a matrona que cuida da casa, do controle do
dinheiro e das crianças. Ela só enxerga nele o bonachão que tem
às vezes alguns casos bem sem graça, faz uns consertos na casa no
fim de semana e gosta de cozinhar de vez em quando. Cinderela
se transformou numa barrica e o príncipe encantado em sapo.
Ao observar outros casais se tornarem pais e afundarem total
mente em seus papéis, eu ingenuamente acreditei que eles ti
nham caído na armadilha, mas que isso não aconteceria comigo.
Erro: aconteceu comigo também. Quase não me olho mais no
espelho, uso sapatos baixos, deixo de lado minhas lentes de con
tato (que ressecam no estojo) e só compro roupas uma vez por
ano. Meu companheiro, para começar, é o pai dos meus filhos e
uma boa parte das nossas conversas gira em torno deles. Quando
um homem me dirige a palavra, num jantar, nunca me passa pela
cabeça que esteja me paquerando. E quando é o caso, levo meses
para me dar conta.
Conseqüência: em cada dois casais, nas cidades grandes, um se
divorcia ou se separa. Esses rompimentos acontecem, sobretudo,
entre os casais mais jovens. Um número cada vez maior deles se
separa com os filhos ainda bem pequenos: estatisticamente, é por
volta do quarto ano depois do nascimento do primeiro, ou pouco
tempo depois do segundo que tudo desanda. Desejar ou conceber;
muitas vezes, é preciso escolher...
56 CORINNE MAIER
11.
58 CORINNE MAIER
12.
6o CORINNE MAIER
Do mesmo modo, morar perto de uma escola é sinônimo de
chateação. Um pequeno exemplo real, tirado da vida cotidiana,
que é fonte inigualável de informações preciosas. Esse pequeno
fato anódino tem a ver com os transtornos causados pelas crianças
na saída da escola. Pais receberam a seguinte carta: “Há alguns
meses, moradores das imediações da escola reclamam de prejuízos
ocasionados pela incivilidade dos alunos, tanto no espaço público
quanto contra prédios privados. Além disso, constatou-se que o
agrupamento de alunos no fim das aulas causa desordens, e mui
tos deles cometem as tais incivilidades (abandono de detritos e
lixo) e danos em bens públicos e privados.” Um conselho: quando
comprar um apartamento, escolha de preferência a vizinhança
de um asilo de velhos. Mesmo que você tenha filhos, pelo menos
não será incomodado pela filharada dos outros.
SEM filhos 61
B-
Ela é conformista
64 CORINNE MAIER
14-
Crianças custam caro
66 CORINNE MAIER
sobretudo, a profissão de ator, pois o filho constitui o público
ideal para quem quer representar o papel de pai/mãe — pelo
menos até a adolescência. E muito para uma pessoa só. E o mais
impressionante é que as mães de família, no entanto flexíveis e
pluridimensionais, tenham tão pouco valor no mercado de traba
lho... Já viram patrões disputarem mães de mais de 45 anos para
contratá-las? Isso prova que há algo de podre no doce reino dos
recursos humanos.
SEm filhos 67
Um aliado objetivo do capitalismo
7° CORINNE MAIER
um? mesmo que usem pouco, ou apenas para ligar para casa".
Ligar para casa? Filhos e pais já não têm todas as ocasiões que
precisam para... não se falarem? Aliás, as crianças têm um gosto
que é um lixo: sapatos horríveis com cores inspiradas no último
videogame da moda, roupas de séries televisivas imbecis, jogo de
cartas Yu-Gi-Oh! ou Duel Masters, bonecas Diddl. Bem-vindos
ao reino da feiúra.
Para os pais, tudo isso representa dinheiro desperdiçado, tem
po perdido comprando porcarias e milhares de horas passadas no
trabalho para pagar as prestações do apartamento que estoca todas
essas coisas. E não é qualquer um que serve, pois um quarto de
criança é sempre um verdadeiro caos, com brinquedos amontoados
até o teto e uma bagunça incrível de roupas, caixas nunca abertas,
coisas quebradas, fora de moda ou com as quais ela implicou. A
criança está em seu elemento no reino da mercadoria. O que o
capitalismo promove — cada vez mais objetos, mais tralhas difí
ceis de serem reaproveitadas, bens intercambiáveis, rapidamente
obsoletos e renovados sem parar — é exatamente o que ela quer.
Enquanto houver crianças, o mundo absurdo em que vivemos
tem futuro. Não garanto o mesmo com relação à espécie huma
na, mas isso é uma outra história.
SEM FILHOS
71
16.
74 CORINNE MAIER
toine, de 11 anos: segunda-feira, das 17h30 às 18h, violão; ter
ça-feira, handebol das 17hl 5 às 18h3O; quinta-feira, solfejo das
18 às 19h30; sexta-feira, de novo handebol das 17hl 5 às 18h30.
Sábado sim, outro não, ensaio numa orquestra de crianças. Essa
agenda-maratona foi montada para ocupar o menino ou os pais,
que devem acompanhá-los nesses lugares?
As atividades “inteligentes” são aquelas que desenvolvem o
desempenho da criança na escola, sinal de que ela estará, mais
tarde, adaptada ao mercado de trabalho. O jogo de xadrez e o
solfejo se encaixam nessa categoria. Os pais podem também optar
por ocupações criativas como o desenho ou o teatro, ótima ferra
menta para se sentir à vontade em público. Tudo deve servir ao
“desabrochar”, essa palavra o tempo todo relembrada, chave de
um “desenvolvimento pessoal”, cuja receita, garantida, conduz
à felicidade. Quanto ao esporte, ensina o gosto pela competição,
o espírito de equipe, e tudo isso será muito útil quando seu filho
estiver numa empresa.
Cuidado com o perigo do overbooking. Uma agenda digna de
um executivo — que é, aliás, o que os pais esperam que o filho
se torne, se tudo correr bem. Desde a infância deve-se assumir o
hábito: nunca tempo “desperdiçado”, nunca um momento vago,
olhando a chuva cair. E um aperitivo para a vida, a vida de ver
dade, aquela dos vencedores, pois os winrters são uma gente ocu-
padíssima, enquanto os loosers, como se sabe, uns desocupados.
Estes últimos, no entanto, estão na vanguarda da modernidade;
um dia, num mundo sem trabalho e sem muito a fazer, todos
viverão de férias, aproveitando dispensas por horas de trabalho já
efetuadas ou em licença-maternidade. Nesse dia, apenas os pais
estarão trabalhando... na criação dos filhos.
SEM FILHOS 75
!7-
78 CORINNE MAIER
atrapalhado; Harry Potter; Os órfãos Baudelaire; Pocahon-
tas; As tartarugas Ninja III...
SEM FILHOS
79
18.
82 CORINNE MAIER
nove recém-nascidos seus e escondeu os cadáveres em vasos de
plantas. O fascínio mórbido é de praxe, diante dessas Medéias
modernas. A cruel infanticida, o perverso assassino de crianci
nhas: são estes os monstros! Mas em casa tudo vai bem, obrigada;
em casa as crianças estão em “pleno desenvolvimento ” e os pais
são “equilibrados”.
SEM FILHOS 83
*9-
Seu filho obrigatoriamente
o decepcionará
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20.
88 CORINNE MAIER
21.
10 Que gênio da comunicação ele foi! Até me pergunto, às vezes, se aquela morte
espetacular não teve uma direção cinematográfica encomendada por seus con
selheiros. Um ótimo meio de fazer o mundo acreditar tratar-se de um grande es
tadista ameaçado pelas forças do mal, e isso depois do fracasso da baía dos Porcos,
em Cuba, e do engajamento americano no Vietnã.
90 CORINNE MAIER
sável” é algo muito pesado de se carregar. Toda mãezona teme
ser uma madrasta (no pior sentido): nunca faz o bastante; não
cuida direito dos filhos; nunca está suficientemente disponível;
não está “atenta”; não prepara quitutes demorados em casa nem
menus “equilibrados”. Não, nunca o suficiente, ainda mais por
que a sua mãe (e as feministas) tanto lhe encheu os ouvidos pa
ra que fosse trabalhar. Fica então presa entre a marreta do trabalho
doméstico e a bigorna do assalariado. Sente-se culpada. Culpada
de voltar extenuada do trabalho, culpada de não entoar a canção de
ninar à noite, culpada de ter uma crise de nervos após duas horas
de berreiro, culpada de se sentir aliviada ao deixar as crianças na
creche pela manhã, culpada de se sentir feliz quando elas partem
em uma excursão da escola. Falta pouco para que peça desculpas
aos filhos. Desculpas por não saber o que significa ser uma “boa
mãe”, desculpas por parecer, sem querer, a madrasta da Branca
de Neve.
O que significa desejar um filho? Quem sabe o que se deseja
quando se deseja um filho? E o seu bem o que se quer? A psica
nálise ensina que nada é mais destrutivo do que querer o bem de
alguém, pois é o seu próprio bem que se projeta no do outro e,
além disso, um belo dia você vai inevitavelmente querer ser pago
pelo tal bem que quis lhe impor. Ou seja, querer a todo custo o
“bem” do outro é destrutivo, pois pai algum está de fato à altura de
tudo que ele projeta para seus descendentes. Sigmund Freud deu
uma resposta lúcida a Marie Bonaparte, que lhe pedia conselhos
para a criação dos filhos: “Faça como quiser, de qualquer maneira
estará errado.”
Antigamente, isto é, há apenas algumas décadas, aceitavam-se
os filhos como uma fatalidade, o que estava longe de ser uma situa
ção ideal, mas tinha a vantagem de livrar os pais de uma respon
sabilidade pesada demais. Atenção, não se trata de nostalgia de
um tempo que nem conheci, mas é verdade que existe hoje a ten
SEM filhos 91
dência de se preocupar mais e até de superproteger um filho que
se quis ter. A generalização da contracepção teve de fato efeitos
espantosos, como sugeriram os autores do livro Freakonomics: di
minuiu a criminalidade em Nova York. Pois tudo indica que filhos
desejados se integram mais facilmente na sociedade do que os
outros. Daí a se imaginar que a pílula e o diafragma foram patroci
nados pelo grande capital, para dispor de uma mão-de-obra mais
dócil, é apenas um passo...
92 CORINNE MAIER
22.
94 CORINNE MAIER
No pódio desse besteirol, figura entre os primeiros um manual
— 100 receites pour booster rintelligence de votre enfant [100 ma
neiras de impulsionar a inteligência do seu filho]. Por caridade
não revelaremos o nome do autor. Algumas obras são verdadeiros
best-sellers, como as da prolixa Edwige Antier (Attendre mon en
fant aujourd’hui7 Mon bébé dort bien7 Comment aider votre enfant
à sépanouir... [Esperar por um filho hoje, Meu bebê dorme bem,
Como ajudar seu filho a se desenvolver]), que desbancaram os
clássicos de Laurence Pernoud. Tais livros são estudados com mi
núcia pela mãezona desorientada que procura receitas de como
criar “bem” o filho. Quanto à higiene física e mental, ela procura
agir, não segundo seu entendimento e sentimento, mas de acordo
com a imagem (bastante imprecisa) do que deve ser uma boa mãe.
Quando tem a impressão de que todos esses bons conselhos não a
estão levando a parte alguma, ela liga a televisão e assiste à Super
Nanny, no canal M6. Trata-se de uma série vista por 5 milhões de
telespectadores na França, cujo tema, segundo o site do canal na
internet, é: “Uma babá diferente das demais, que põe ordem nas
famílias em que falta autoridade, ameaçadas por terem deixado
tudo correr solto.” Na verdade, são exercícios práticos para domar
os anjinhos que devastam a vida dos seus pais.12
Os “especialistas” em infância, verdadeiros gurus das famílias,
são muito bons em lançar modismos. De onde eles vêm? Ninguém
sabe. Alguns são perfeitamente fantasiosos. Lembro que quando
minha filha nasceu, há cerca de 12 anos, devia-se “diversificar”
a alimentação do bebê. Já tentaram fazer um recém-nascido de
poucas semanas engolir uma colherada de creme de espinafre,
suco de laranja e clara de ovo batida? E impossível, mas lá pelos
idos da década de 1990 era o que se devia tentar, pois o equilí-
12 Serve também como ótimo antídoto para crianças: assiste-se uma vez e questio
na-se seriamente o “desejo por filhos” durante uns seis meses.
SEM FILHOS 95
brio alimentar da criança dependia disso. Confusão certa e crise
de nervos garantida. Alguns anos depois águas rolaram — per
cebeu-se que uma diversificação tão prematura provoca alergias
em nossos queridinhos — e proezas daquele tipo deixaram de ser
exigidas dos pais. Há modas para tudo, desde a maneira como
deitar os bebês até a troca das fraldas, ou qual o tipo de carrinho
utilizar. Não, a ciência da criança não está absolutamente defini
da e nossos especialistas parecem bem perdidos, apesar dos ares
que assumem. Deve-se jogar o bebê fora, junto com a água suja
do banho? Cabe a cada um decidir.
96 CORINNE MAIER
23-
13 É para o que serve a psicanálise: para ajudar os outros a pagarem a conta. Mas
custa caro, é verdade.
98 CORINNE MAIER
de Alexandre (ou o contrário); porque tinha inveja — quando
você mesmo era criança — do irmão asmático, era apaixonado
pela irmã ou colecionava selos.
O discurso psi bateu forte nas famílias, e toda mãezona o uti
liza com patas de elefante, orgulhosa de ter na biblioteca um ou
dois livros (mal digeridos) de Françoise Dolto. A mãezona maneja
um jargão psi simplificado, que é uma espécie de esperanto das
famílias: “Ele está na fase do Edipo” (como quem diz “está trocan
do um dente de leite”) significa que ele é agarrado à mãe, e ela
está amando ter à disposição quem a adore. “Ele tem uma mãe
castradora” aplica-se somente aos outros, que têm mães difíceis,
nunca aos próprios filhos. “Está na fase anal” pode ser traduzido
por “ele brinca com cocô, é nojento, mas normal”.
O pior de tudo, porém, é que você cai numa armadilha. Como
a sua família (ou a do consorte) é uma reserva generosa de baby-
sitting gratuita, você aceita sem reclamar (é isso mesmo, acredite)
seus ditames, fofocas, lições e considerações psicológicas do tipo
“analista de mesa de bar”. A gente se sente menos culpada deixan
do a criança com alguém da família do que com uma babá: a vil
mercenária pode até ajudar, pois quebra um galho, mas não ama
de fato os seus filhos, uma vez que é remunerada. Nos dois casos,
entretanto, livrar-se dos filhos por algumas horas ou dias é uma
alegria que se paga. Mas preste bastante atenção: não é necessa
riamente o pagamento em dinheiro o mais caro.
SEM FILHOS 99
24 .
UO CORINNE MAIER
28.
O filho: Um grude
O que fazer com uma criança? Todo mundo a adula, mas nin
guém a quer. Passar anos inteiros em casa para cuidar dos filhos,
deve-se reconhecer, é um tédio mortal. Ao contrário dos países
escandinavos, nada se faz na França para que a mãezona os leve
com ela ao restaurante ou ao cinema. Fica reduzida, então, a uma
vida monástica, ao ritmo das fraldas, do banho e das mamadeiras.
Bem rapidamente, cuidar do filho revela-se mais cansativo do que
trabalhar. E mais esperto, quando possível, voltar ao emprego bu
rocrático que se abandonou e passar o dia fingindo trabalhar. Pelo
menos pode-se ficar sentada tranqüilamente, ir à academia de gi
nástica entre meio-dia e duas da tarde, relaxar com um cafezinho,
enviar uns e-mails, falar por duas horas ao telefone com os amigos
sem ser incomodada. Acho inclusive que por isso tantas mulheres
voltam a trabalhar depois de ter filhos: a norma, na Europa, é a
mulher que trabalha. Neste ponto estou falando especificamente
no feminino pois, em nossa sociedade, é ainda sempre a mulher
que assume o essencial do trabalho na criação dos filhos. Os ho
mens, mais espertos ou mais preguiçosos, sempre conseguiram
cair fora.
Trabalhar, sim, mas é preciso que alguém fique com as crian
ças. Como encaixá-las na sua agenda? Uma babá fixa em casa sai
muito caro. Começam os problemas. Nada fácil encontrar onde
enfiar o diabinho. Parece que todas as creches e escolas estão sem
vagas no exato momento em que você precisa que outros, isto é,
aqueles que têm isso como profissão, façam o seu trabalho. Pri
meiramente é necessário ter pensado em tudo com antecedência
pois, como vai perceber, há sempre maior demanda do que oferta:
é a impiedosa lei da estrutura de cuidados com as crianças. Já era
assim na minha infância, mas podia-se achar que a culpa era do
baby boom: hoje em dia, é “estrutural". E isso é válido da creche
à Escola de Comércio, passando pelas temporadas em estações
de esqui para adolescentes e pelos comitês de serviços sociais da
empresa onde você trabalha. Mesmo para adultos, não há vaga
em lugar algum (e isso explica por que os que conseguem uma
agarram-na com unhas e dentes). Com os sem-teto aconteceu o
mesmo; todos os bancos foram tirados das ruas, e isso certamente
não foi por acaso. Tratem de circular, vão procurar algo ali na es
quina. Mas, voltando às crianças, 70 por cento das que têm menos
de 3 anos ficam em casa, em geral sob os cuidados da mãe.
Vaga numa creche; como conseguir uma: fazer o cerco na
Prefeitura e responder formulários extremamente detalhados que
podem ser considerados literalmente invasivos. “Quanto você ga
nha? E o seu cônjuge? Não é casada? Diplomas? Profissão? Horá
rios habituais de trabalho? E proprietária da casa onde mora ou in
quilina? Quantos cômodos tem o apartamento? Quantas pessoas
vivem nele? Tem familiares no bairro? Problemas de saúde?" E
estou deixando de lado as questões esotéricas, como “Coeficiente
familiar" e várias siglas a se decifrar. E um verdadeiro interrogató
SEM FILHOS
29.
A paternidade infelizmente
é uma doce cantilena
B4 CORINNE MAIER
as crianças são um acelerador de carreira para um e um peso para
a outra. Prova disso: no governo espanhol de Zapatero havia, no
início de 2007, oito homens e oito mulheres, e o primeiro grupo
tinha ao todo 24 filhos, o segundo somente cinco. (Não, que o
leitor se tranqüilize, não se trata de um problema de matemática
escolar.) Querem a igualdade mulher-homem? Um bom começo
é parar de ter filhos.
SEM FILHOS
35-
Quando o filho aparece,
o pai desaparece
O pai não é mais o que era. Não é mais aquele pai por vontade
divina, que impõe a lei em casa e diante de quem todo mundo
fica manso. Ninguém sabe o que aconteceu com ele, desapare
ceu de fininho, de mãos dadas com o stakhanovismo soviético, do
qual, também, ninguém mais ouviu falar. O pai dos dias de hoje,
na maior parte das vezes, é um cara legal, de uns 40 anos, meio
careca, cheio de amor para dar, razoavelmente desiludido com
o mundo e consigo mesmo. Tem dificuldade de contar, à noite,
como foi seu dia de trabalho, pois as crianças lhe cortam a palavra
o tempo todo e ele mesmo, na verdade, se entedia no emprego.
Inúmeros sociólogos e psis discorrem sobre a morte do pai e o
declínio da autoridade. Entretanto, não foi o pai que morreu; foi
a sua palavra, capaz de afugentar todo mundo, que se mandou. E
nem por isso vivemos numa sociedade permissiva, bem pelo con
trário, só que a obediência nos é imposta por sistemas, e não por
pessoas. Na década de 1970, Christopher Lasch, filósofo america-
no à frente do seu tempo, teorizou sobre a idéia de que o momen
to atual se caracteriza por um “paternalismo sem pai”: ninguém
pode se voltar contra os pais de hoje, pois eles continuam calmos
e abertos, sem assumir uma posição de autoridade e de lei. Ao
lado disso, o paternalismo floresce, ao sabor do Estado-provedor,
de um sistema social protecionista e de uma burocracia que se
pretende benfazeja. Exemplo disso: nas grandes estruturas admi
nistrativas ninguém mais lhe fará críticas diretas, mas espera-se
que você, por si só, se auto-imponha o que a organização deseja.
O poder, dessa forma, se torna totalmente impessoal e não precisa
mais de uma autoridade qualquer para que as pessoas obedeçam.
O rolo compressor funciona sozinho. E esperto, não?
Não há mais pais, há apenas genitores. E olhe lá! Tornar-se
pai, para o homem, é ter seu espaço reduzido ao devido tamanho.
O homem não é mais quem decide a paternidade. Há 50 anos,
eram eles que transformavam as mulheres em mães, às vezes até
contra a vontade delas. A relação de forças, hoje em dia, se inver
teu. Apenas a maternidade é voluntária, não a paternidade. Os
homens são obrigados, para serem pais, a ser aceitos como tal.
As mulheres têm, atualmente, o total controle sobre os filhos: se
devem vir ao mundo ou não, por quem devem ser criados, quais
nomes terão. As mulheres não fisgam mais os homens pela boca,
mas pela barriga — a delas próprias.
Enquanto o pai divorciado, em nome do reconhecimento igua
litário, combate uma Justiça que o priva dos filhos, a mulher reivin
dica o reequilíbrio das tarefas domésticas e parentais nas famílias.
E injusto? Bastante. Mas a verdadeira igualdade entre os sexos é
provavelmente uma quimera. No final das contas, como são as mu
lheres que continuam a assumir o essencial do trabalho escravo em
casa, é bastante lógico que também decidam, não? Quem trabalha
que arbitre: se a mesma lógica se aplicasse ao mundo dos negócios
e da política, as coisas seriam muito diferentes.
CORINNE MAIER
4o.
— Você deve fazer com que ele esteja ocupado o tempo todo,
da maneira mais variada possível. E uma trabalheira enor
me, mas necessária para que ele seja “estimulado” e alcan
ce o “pleno desenvolvimento ”.
“Uma provocação.”
Le Figaro
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