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ÉDIPO REI

TRADUÇÃO
TRANSMISSÃO
RECEPÇÃO
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Hozanete Lima
(Orgs.)
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Hozanete Lima
Organizadores

ÉDIPO REI
transmissão, tradução, recepção

Natal, 2022
Reitor
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Vice-Reitor
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Publicação digital financiada com recursos do fundo de Pós-graduação (PPg-UFRN). A


seleção da obra foi realizada pela comissão de Pós-graduação, com decisão homologada
pelo Conselho Editorial da EDUFRN, conforme Edital nº 2/2019 - PPG/EDUFRN/SEDIS
para a linha editorial Técnico-científica.

Catalogação da publicação na fonte


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Secretaria de Educação a Distância

Édipo Rei : tradução, transmissão, recepção [recurso eletrônico] /


Organizado por Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Hozanete Lima.
– Natal: EDUFRN, 2022.
2700kb.; 1 PDF.

ISBN 978-65-5569-179-5

1. Sofocles. 2. Teatro grego (Tragédia). 3. Literatura grega. I. Albuquerque


Júnior, Durval Muniz de. II. Lima, Hozanete.

CDU 81-14.2
E23

Elaborada por Edineide da Silva Marques CRB-15/488.


Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN
Av. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário
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e-mail: contato@editora.ufrn.br | www.editora.ufrn.br
Telefone: 84 3342 2221
APRESENTAÇÃO
A tragédia grega Édipo Rei, escrita por Sófocles, em torno dos anos
427 a.C., promoveu, ainda no mundo clássico, por intermédio de
Aristóteles, Platão e Plutarco, efeitos os mais imediatos. É certo que
essa narrativa, escrita em versos, também mobilizou, na modernidade,
conceitos fundantes em diferentes campos de saber.
O presente livro é composto de textos que foram, original-
mente, apresentados em conferências no ciclo de debate Édipo Rei
– Transmissão, Tradução, Recepção, realizado na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, nos dias 03 e 04 de dezembro de 2018. Nesse
evento, estudiosos de áreas diversas (re)apresentaram o texto de Sófocles
sob trajetos os mais variados, reencontrando neles as vozes de grandes
pensadores, a exemplo de Aristóteles, Friedrich Nietzsche, Sigmund
Freud, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Claude Lévi-
Strauss, Friedrich Hölderlin, Michel Bréal e José Saramago. Todos eles
acolheram Édipo Rei, tomando-o como cena enunciativa fundante de
discursividades sobre a linguagem e a subjetividade.
Este livro é, portanto, desenhado pelo olhar da interdiscipli-
naridade e, sobretudo, pelos efeitos que a obra clássica produziu e
ainda produz no mundo contemporâneo. Esperamos que cada leitor,
de modo particular, encontre, aqui, um espaço para considerar não
apenas possibilidades de ler o próprio texto de Sófocles sob um ponto
de vista acadêmico e científico, mas como um acontecimento que
celebra, acima de tudo, Édipo rei como obra de arte que é contempo-
rânea a cada vez que a relemos, pois, como afirma Foucault, “ ‘Édipo
rei’ trata, antes de tudo, do ‘ser humano’ ”.

Os organizadores
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Hozanete Lima
SUMÁRIO
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI:
Notas para uma aproximação ........................................................... 9
Fabiano Incerti

FOUCAULT E ÉDIPO REI:


Um evento de leitura dramática ........................................................ 26
Pedro de Souza

ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD ................................ 42


Kathrin Rosenfield

ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES:


Formas do pensamento e figuras do desejo
no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari ......................... 59
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ANTES DAS TRAGÉDIAS:


Figurações do mito de Édipo ............................................................ 83
Guilherme Gontijo Flores

CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS


DE UM MITO: Édipo em Colono e a mácula
da cegueira individual e coletiva em tempos crise .......................... 106
Alex Beigui

ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN ............................ 125


Kathrin Rosenfield
O MITO DE ÉDIPO ........................................................................ 163
Autor: Michel Bréal
Tradução: Ana Luisa Carmino/Hozanete Lima

SOBRE OS AUTORES E TRADUTORES ............................. 182


Ducunt volentem fata, nolentem trahunt.
(Sêneca)
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI
Notas para uma aproximação
Fabiano Incerti

Leituras de Foucault sobre Édipo-Rei

Com as páginas que seguem, nosso objetivo é percorrer, ainda que


com um modo de sobrevoo, as leituras que Foucault realizou acerca
do Édipo-Rei e, delas, destacar alguns elementos que podem nos
aproximar desse material rico e provocador, deixado por ele sobre
a mais famosa tragédia grega. O que se sabe atualmente, diante da
publicação da totalidade de seus cursos no Collège de France, entre os
anos de 1970 e 1984, e de conferências realizadas em diferentes partes
do mundo, no mesmo período, é que o pensador francês dedicou mais
tempo do que se imaginava ao texto sofocliano. Isso porque, até 2008,
com o lançamento de O governo de si e dos outros, proferido entre 1982
e 1983, por vários anos, praticamente o único material conhecido e
amplamente estudado sobre o assunto foi a compilação de conferências
realizadas por ele no Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 25 de maio de
1973, publicadas no ano seguinte pelos cadernos da PUC-Rio, sob o
título A verdade e as formas jurídicas.
Juntamente com esses dois textos já citados, destacam-se, ainda,
o curso de 1970-1971, Aulas sobre a vontade de saber, que contém a
classe de 17 de março de 1971 e que traz consigo também um dos mais
notáveis estudos edipianos de Foucault, chamado O saber de Édipo,
proferido em março de 1972, na State University of New York e, em
outubro do mesmo ano, na Cornell University. Há, além disso, as
aulas de 16 e 23 de janeiro de 1981, do curso Do governo dos vivos e, por

9
Fabiano Incerti

fim, a conferência de 28 de abril de 1981, editada pela Universidade


de Louvain, na Bélgica sob o título Malfazer, dizer verdadeiro: funções
da confissão na justiça.
Iniciando no período denominado como genealógico e
estendendo até os seus últimos escritos, que investigam as questões
concernentes à constituição do sujeito ético, Foucault mostra que suas
análises sobre Édipo podem ser divididas claramente em dois momentos:
um, na década de 1970; e outro, na década de 1980. Enquanto este
último momento se detém nos problemas do dizer-a-verdade, da
confissão e da parresía, o primeiro tem seu foco na multiplicidade de
saberes e poderes e nas práticas judiciárias gregas. Contudo, o problema
da descoberta progressiva da verdade, a partir do que ele denomina de
“lei das metades”, se mostra o eixo que atravessa todas as suas interpre-
tações da peça de Sófocles.

Os interlocutores helenistas de Foucault

Na situação do Curso de 1970-1971, Daniel Defert afirma


que os estudos de Foucault sobre a Grécia arcaica estão submetidos
“à prova do saber” (FOUCAULT, 2014a, p. 256), ou seja, são docu-
mentados e fundamentados numa série de trabalhos de importantes
especialistas sobre o assunto. Isso se torna notório, por exemplo,
quando percorremos as análises do pensador francês sobre Édipo.
Imediatamente, identificamos influências como as de Louis Gernet,
Gustav Glotz, Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, Marcel
Detienne e mesmo, mais tardiamente, de Bernard Knox. Para essas
breves notas de aproximação, nos deteremos em dois deles: Jean-Pierre
Vernant e Marcel Detienne.
Entre uma série de aspectos sobre os quais se é possível constatar
a importância de Vernant, certamente, um dos mais significativos é o

10
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

que podemos entender como a “desmistificação” de Édipo. Embora


Foucault tenha mantido uma relação complexa e ambígua com a psica-
nálise, alternando momentos de elogios e de críticas, nas três análises
que ele realiza na década de 1970, fica claro seu tom de discordância,
principalmente da interpretação dada por Freud à história do herói
de Sófocles. Na aula de 17 de março de 1971, ele fala, inclusive, do
“engano de Freud” (FOUCAULT, 2014a, p. 177), que se exprime na
ideia de que, se há um complexo de Édipo, este não diz respeito ao
destino universal de nossos desejos, mas sim aos sistemas ocidentais de
verdade, em especial à coerção histórica e política que pesa sobre eles.
Nesse sentido, é quase impossível não conjecturarmos que
Foucault tenha conhecido o importante artigo de Vernant, intitulado
Édipo sem complexo, publicado em 1967, na revista Raison Présente.
Nele, o helenista francês já mostra como Freud dá um valor universal
ao drama edípico: por um lado, vinculando o efeito trágico a um
complexo afetivo contido em cada pessoa; e, por outro, ignorando
todo o caráter histórico da tragédia. Por isso, ele afirma que a teoria
freudiana em nada impressionou helenistas e historiadores, pois estes:

[...] continuaram suas pesquisas como se Freud nada tivesse


dito. Ocupados com as suas obras, eles tiveram, sem dúvida,
a impressão de que Freud falava ‘ao lado’, de que tinha ficado
fora das verdadeiras questões, as que o texto impõe, quando
se visa à sua plena e precisa compreensão (VERNANT;
VIDAL-NAQUET, 1999, p. 58).

Mas, há ainda um segundo aspecto significativo sobre a influ-


ência de Vernant que devemos considerar. Em seu artigo publicado
na Echanges et Communications, em 1970, sob o título Ambiguidade e
Reviravolta: sobre a estrutura enigmática de Édipo-Rei, ele mostra como
a questão da ambiguidade refere-se menos a uma função quantitativa

11
Fabiano Incerti

na estrutura na tragédia – mesmo que expressões de duplo sentido,


por exemplo, sejam comuns entre todos os poetas trágicos e se dupli-
quem em Édipo-Rei –, e mais a um “meio de expressão e um modo de
pensamento” (1999, p. 73). Junto com a ambiguidade léxica, em que “o
dramaturgo joga com ela para traduzir sua visão trágica de um mundo
contra si mesmo, dilacerado pelas contradições” (1999, p. 73-74), em
Édipo, soma-se o fato de que é a própria vítima que conduz o jogo
de seu destino. Como recorda o helenista, “a ambiguidade de suas
palavras não traduz a duplicidade de seu caráter, que é feito de uma só
peça, mas mais profundamente, a dualidade do seu ser” (1999, p. 77).
Em Foucault, tais elementos do pensamento de Vernant
são evidentes. Na conferência de 1972, ele recorda que as metades
excessivamente duplicadas de Édipo multiplicam um conjunto de
ambiguidades e repetições. Num primeiro aspecto, com algo que
é recorrente no texto de Sófocles e que se refere a uma inversão do
sentido ativo para o sentido passivo de certas expressões, como quando
o herói passa de caçador (229)1 para a própria caça (230) ou de desco-
bridor (εὺρετής) (233) para o objeto da descoberta (εὺρίσκομαι) (234).
Noutro aspecto, com frases que, ditas por ele ou a propósito dele,
aparecem como duplas. Chorando sobre a cidade, enquanto é sobre
si mesmo que ele geme (237), promete o banimento do assassino, no
entanto, este vive sob seu próprio teto (238).
Marcel Detienne, com sua principal obra Os mestres da verdade
na Grécia antiga, é, sem dúvida, outra significativa influência para
as interpretações de Foucault sobre a antiguidade grega, em especial,
de Édipo-Rei. Mesmo nunca tendo sido citado diretamente, são as
anotações à margem das páginas do livro do helenista belga, que,
de acordo com Daniel Defert, atestam seu uso e sua importância

1
Para citações diretas e indiretas do texto de Sófocles, utilizaremos, entre parên-
teses, os números dos versos compatíveis com a obra contida nas referências
bibliográficas deste trabalho.

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FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

(FOUCAULT, 2014a). O que parece interessar ao pensador francês é


a leitura estrutural na análise da vida social e espiritual dos gregos, que,
partindo da noção de Alétheia, desvela uma pré-história da verdade.
Retomando três figuras centrais do período grego arcaico – o Poeta,
o Ancião do Mar e o Rei de Justiça –, Detienne mostra como se esta-
beleceu, no Ocidente, a passagem da palavra-mágico-religiosa para
a palavra-diálogo, como consequência, sobretudo, da decadência do
poder advindo da mântica oracular e da instauração de um processo
de laicização social. Ademais, para a leitura dos gregos, ele permite
que Foucault “contorne” a influência heideggeriana e se aproxime
de Nietzsche nas questões capitais para o final da década de 60 na
França: “Quem fala? Quem de direito? De acordo com quais rituais?”
(FOUCAULT, 2014a, p. 249).
A justiça arcaica, para Detienne, se relaciona com determinadas
formas de mântica, articulando, a todo o momento, a linguagem
mágico-religiosa e a linguagem gesticular. O corpo confere potência à
palavra, na medida em que a voz encontra sua força no gesto. A palavra
religiosa é eficaz e intemporal, inseparável dos comportamentos e dos
valores simbólicos e torna-se privilégio do homem excepcional. A
palavra-diálogo, por sua vez, é laicizada, complementar à ação, inscrita
no tempo, provida de uma autonomia própria e ampliada às dimensões
do grupo social. Como “instrumento político por excelência” e como
“um privilegiado mecanismo de relações sociais” (DETIENNE, 1988,
p. 54), por meio dela os homens têm a possibilidade de atuar nas
assembleias e de exercer sua dominação sobre os outros. Já autônoma
da religião, a palavra-diálogo se define noutro espaço, este onde se
enfrentam e se constroem os discursos políticos e jurídicos.
Será exatamente esse “tempo dos homens” (DETIENNE,
1988, p. 51), ou seja, a passagem do mundo mágico-religioso para a
laicização social, que permitirá, para Foucault, a eclosão da tragédia
de Édipo. À guisa de Detienne, o pensador francês nos demonstra

13
Fabiano Incerti

que a mais famosa tragédia grega é “fundamentalmente o primeiro


testemunho que temos das práticas judiciárias gregas”, sendo “um
procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às
práticas judiciárias gregas dessa época” (FOUCAULT, 2002, p. 51).

A lei das metades

Se pudéssemos nos arriscar em dizer que há, nas interpretações


que Foucault realiza de Édipo-Rei, alguma “chave de leitura” – com
todas as aspas que esta expressão pode merecer em seu pensamento–,
essa seria, sem dúvida nenhuma, o que se pode denominar de lei das
metades (loi des moitiés). Para ele, como num jogo, cada fragmento
de verdade pertence a um dos personagens, que, na medida em que
são reunidos, selam definitivamente o destino do herói sofocliano.
Para tanto, o pensador francês toma como ponto de partida a noção
grega de σύμβολον, que representa o sinal de reconhecimento entre
os possuidores de cada uma das metades de um objeto partido em
dois (FOUCAULT, 2014a, p. 237), onde as partes quebradas são
novamente reunidas para se verificar a identidade do portador.
É importante considerarmos que, para Foucault, o mecanismo
da lei das metades não consiste num simples efeito de retórica, mas,
antes, é algo vinculado ao caráter jurídico próprio do século V e que,
por isso mesmo, permeia toda a tragédia. Ele sustenta tal hipótese, na
medida em que relaciona a expressão σύμβολον com a noção de indício2,
encontrada tanto em algumas traduções francesas3, como em traduções

2
Édipo, diante do clamor do coro por uma solução definitiva para a peste que
aflige a cidade, responde: Ᾱ
̓ γὼ ξένοϛ μὲν τοῦ λόγον τοῦδ’ ἐξερῶ, ξένος δὲ τοῦ
πρᾶχθέντοϛ οὐ γὰρ ἀν μακρἆν ἷχνευοναὐτοϛ μὴ οὐκ ἔχων τι σύμβολον.
3
“Je parle ici en homme étranger au rapport qu’il vient d’entendre, étranger au
crime lui-même, dont l’ênquete n’irait pas loin, s’il prétendait la mener seul,

14
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

para o português4. Quando colocada em tal contexto, ela se refere a um


termo técnico-legal, que abrange o sentido de sinal ou prova aparente
de algo que realmente existe: “As metades que vêm completar-se são
como os fragmentos de um símbolo cuja totalidade reunida tem valor
de prova e de atestação” (FOUCAULT, 2014a, p. 215).
Nas três análises da década de 1970, o debate foucaultiano acerca
do procedimento do σύμβολον acontece em torno dos problemas do
saber e do poder. Ainda que brevemente trabalhada na aula de 1971,
na qual o esforço do pensador francês parece estar em desmitificar
a tragédia sofocliana da interpretação universalista da psicanálise,
a primeira e ampla leitura, a partir das leis das metades, aconteceu
somente um ano mais tarde, na conferência de 1972. Nela, Foucault vê
Édipo como uma história de saberes que se justapõem e que evidenciam
tanto a procura, como o reconhecimento que o herói faz de si mesmo. A
transição que se opera entre um saber e outro, dos deuses aos escravos,
da predição ao testemunho, do palácio à montanha, passa necessaria-
mente pelos fragmentos que se completam e que obedece assim a um
tipo de lei das metades (FOUCAULT, 2014a).
Já em A verdade e as formas jurídicas, o σύμβολον é um modo
visível de exercício de poder, que, configurando-se como “um instru-
mento” (FOUCAULT, 2002, p. 31), diz respeito ao procedimento
pelo qual o ajustamento de seus diversos fragmentos e a unidade de
cada uma de suas pequenas partes num único objeto autenticam e
alimentam a continuidade do poder que se exerce. No decorrer de toda
a trama, o esforço de Édipo está em reunir as partes divididas, que, ao
fim, quando novamente ligadas, configuram-se como sua verdadeira

sans posséder le moindre indice [...]. SOPHOCLE. Œdipe Roi. Paris: Les Belles
Lettres, 2007. p. 19.
4
“Hei de seguir, inda que só, o rumo certo; o indício mais sutil será o suficiente”.
SÓFOCLES. A trilogia tebana. Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, p. 30.

15
Fabiano Incerti

história. Por isso, na perspectiva foucaultiana, a trama de Édipo


trata-se, sobretudo, de um “determinado tipo de relação entre poder
e saber, entre poder político e conhecimento, de que nossa civilização
ainda não se libertou” (2002, p. 31).
Enquanto, nas conferências da década de 1970, Foucault enfatiza
o afrontamento entre o saber profético-oracular dos deuses e o saber
jurídico-científico dos homens, nas três análises da década de 1980, o
problema se desloca para os modos de veridicção, compreendidos como
a relação entre a manifestação da verdade e a arte de governar. Partindo
da noção de aleturgia, que significa o “conjunto de procedimentos
possíveis, verbais ou não, pelos quais se revela o que é dado como
verdadeiro em oposição ao falso, ao oculto, ao invisível, ao imprevisível,
ao esquecimento [...]” (FOUCAULT, 2014b, p. 8), ele mostra como a
história de Édipo se desdobra a partir de processos de veridicção, nos
quais as partes faltantes se juntam, as metades se acoplam.
No curso O governo dos vivos de 1979-1980, identificamos
duas aleturgias complementares e simultâneas que envolvem o perso-
nagem Édipo. Por um lado, as velhas formas de consulta oracular e,
por outro, as novas regras jurídicas de convocação de testemunhas.
Dessa forma, a verdade é sempre produzida por um casal de perso-
nagens que falam complementarmente um em relação ao outro.
Se compararmos com as leituras de 1972, nas quais as análises de
Foucault se concentram nos rituais e procedimentos de saber-poder.
Em 1980, há um novo objeto que passa a compor o ciclo aletúrgico,
ou seja, o ponto de subjetivação (FOUCAULT, 2014b, p. 77), que
se expressa na inserção do “elemento do ‘eu’, o elemento do ‘autós’,
do ‘eu mesmo’” (FOUCAULT, 2014b, p. 46).
No ano seguinte, na importante conferência Malfazer, dizer
verdadeiro, Foucault relaciona a lei das metades com o problema da
confissão, e demonstra como, no interior do direito ateniense do
século V, o primeiro é imprescindível para se compreender o papel do

16
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

segundo. O conjunto de verdades legítima e juridicamente aceitas pelo


coro se desenvolve a partir dos fragmentos que se juntam. Entretanto,
tais verdades não são aquelas produzidas sob a forma da profecia,
resultante tanto do deus, como do adivinho, mas aquela que surge
do interrogatório das testemunhas. Interrogatório de pessoas que
terminam por ser obrigadas, pela extorsão e pela tortura, a confessar
o que elas viram, disseram e fizeram.
Por fim, em seu penúltimo curso no Collège de France, O
governo de si e dos outros, Foucault retorna à lei das metades, relacio-
nando-a com a noção grega de parresía5. Nesse sentido, ele compara
a tragédia de Édipo com outra importante tragédia ática, o Íon de
Eurípides, e mostra como em ambas há uma simetria direta, seja no
desvelamento da verdade, que se dá por meio do dizer verdadeiro
(parrêsia), seja pela própria forma de evolução da busca da verdade, que
em ambos os casos acontece “metades por metades” (FOUCAULT,
2010, p. 76) ou, se quisermos, com o jogo de “meias mentiras, meias
verdades” (2010, p. 91).

5
“A parresía – e aqui eu sintetizo, pedindo que me perdoem por ter sido tão
arrastado e ter me detido tanto – é, portanto, uma certa maneira de falar. Mais
precisamente, é uma maneira de dizer a verdade. Em terceiro lugar, é uma maneira
de dizer a verdade, tal que abrimos para nós mesmos um risco pelo próprio fato
de dizer a verdade. Em quarto lugar, a parresía é uma maneira de abrir esse risco
vinculado ao dizer-a-verdade constituindo-nos de certo modo como parceiro
de nós mesmos quando falamos, vinculando-nos ao enunciado da verdade e
vinculando-nos à enunciação da verdade. Enfim, a parresía é uma maneira de se
vincular a si mesmo no enunciado da verdade, de vincular livremente a si mesmo
e na forma de um ato corajoso” (FOUCAULT, 2010, p. 63-64).

17
Fabiano Incerti

Uma leitura jurídica

Um dos esforços de Foucault está em situar a tragédia edípica


no tempo e no espaço. Para ele, o texto sofocliano trata-se de uma
dramaturgia datada, ou seja, o século V, e que leva em conta, no bojo
de sua trama, o cenário jurídico, social, político e religioso de sua
época. Não temos dúvida que tal opção se relaciona diretamente com
a pretensão do pensador francês em retirar dela qualquer possibilidade
de interpretação universalista ou totalizante. Mas, seus textos nos
mostram também que a tragédia, como gênero literário novo, ques-
tiona os antigos valores tradicionais, juntamente com seus heróis líricos
e anuncia no palco do teatro grego, que cumpre o papel de assembleia
ou tribunal popular, uma mudança de época, com a chegada do direito
e das instituições de caráter político.
Nesse aspecto, é quase impossível não estabelecermos uma
relação entre o pensamento de Foucault e o do helenista inglês Bernard
Knox. Para este último, a Atenas de Sófocles estava “inseparavelmente
associada às instituições legais e à litigiosidade, pela qual a cidade
era famosa” (KNOX, 2002, p. 67). Os estrangeiros a reconheciam
como a cidade dos tribunais; já para o cidadão ateniense, os processos
judiciários compunham sua vida quotidiana de uma forma que, para
nós, hoje, é “difícil de imaginar” (2002, p. 67). Uma série de motivos,
tais como os grandes júris, a multiplicidade de ações legais, públicas
e privadas e principalmente a ausência de “advogados”, como hoje
conhecemos, tornou cada cidadão responsável direto pela própria
defesa, garantiu que os atenienses experimentassem os procedimentos
legais como parte integrante de sua vida. O direito estava naturalmente
no vocabulário doméstico, na mesma medida em que, pelo menos
uma vez na vida, cada ateniense faria parte de um júri ou teria que se
defender diante de um, sem ninguém que o representasse.

18
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

Tal contexto da época será fundamental para Foucault mostrar


como Édipo é representativo de um novo modelo judiciário, que, por
um lado, questiona as antigas formas de mântica e, por outro, torna-se
determinante para o nascimento de saberes como os filosóficos, os
retóricos e os empíricos. O que temos, com isso, é a peça edípica no
limiar entre o pré-direito e o direito. A verdade-ordálica, própria do
período arcaico, que tem sua base no juramento e se utiliza do juízo
divino para determinar a culpa ou a inocência do acusado, com a
utilização de elementos da natureza, é substituída pela verdade-saber,
que toma novos instrumentos jurídicos como fundamento, tais como
a investigação, o inquérito e a testemunha.
Com esses instrumentos, nasce igualmente um novo modo de
pesquisa e produção da verdade, em que é necessário a presença de
alguém que tenha visto “com seus próprios olhos” e possa confirmar,
a partir de sua própria memória, a verdade. O texto profético e pres-
critivo cede lugar agora à enunciação retrospectiva, que avança tanto
na ordem da lembrança, como na necessidade do relato completo e
exaustivo do que realmente aconteceu. Mas, também, o que se coloca
em jogo é o novo funcionamento da cidade, que a partir da exigência
política, jurídica e religiosa passa a converter o acontecimento num
fato conservado definitivamente por meio da comprovação das teste-
munhas, seguindo rigorosamente às leis áticas da época.

Multiplicidade e confronto de saberes

Na aula de 9 de dezembro de 1970, ou seja, alguns meses antes


de sua primeira leitura mais elaborada acerca de Édipo-Rei, Foucault
confronta a ideia aristotélica de conaturalidade e de desejo pelo conhe-
cimento com o saber “transgressivo, proibido, temível” (FOUCAULT,
2014a, p. 14) que, segundo ele, o trágico representa. Por isso, se, em

19
Fabiano Incerti

algum momento, o herói deseja conhecer, não é pela razão que propõe
Aristóteles, ou seja, “por um movimento natural inserido em sua natu-
reza a partir da sensação” (2014a, p. 14), mas, exatamente, por aquilo
que é diametralmente oposto a isso: o trágico é um saber obscuro e
promissor. Trata-se, dessa forma, de “fala enigmática, de duplo sentido,
que ele compreende e não compreende, com a qual se tranquiliza e
que, no entanto, o inquieta” (2014a, p. 14). Tais características serão
determinantes para a ideia foucaultiana de que a peça de Édipo-Rei
“faz-se pelo confronto de diferentes tipos de saberes” (2014a, p. 212),
que operam ora por sobreposição, ora por deslocamentos.
Por todo enredo, os saberes se movem entre o palácio e as
montanhas. O primeiro tenta, de todas as formas e com premência,
escapar do jugo dos deuses, enquanto o segundo, com a mesma força,
tenta se esconder no fundo das cabanas. Não obstante, para que a
verdade venha à tona e a cidade seja libertada do mal que a aflige,
o saber presente e o saber longínquo precisam se cruzar. E é Édipo,
e somente ele, quem conhece esses dois lugares; esses dois saberes.
Foi príncipe, depois criança abandonada na floresta, depois rei, até
finalmente tornar-se o mendigo cego e errante. Seu próprio nome
sugere que ele é, ao mesmo tempo, oἶδα, ou seja, o conhecimento quase
divino e tirânico e oἰδί, que quer dizer inchado, traço presente em seus
pés (Πους) e que o rememora de seu destino de excluído, arremessado
para longe de sua terra.
A cabana desafia o palácio e com seu ritmo bucólico e sazonal
inverte a ordem e o poder outrora estabelecido. A verdade, que está na
boca dos mais simples do reino, sela definitivamente o que o oráculo
havia prenunciado, mostrando que “[...] o inquérito leva às coisas que a
mântica previra” (2014a, p. 235). Contudo, o faz por modos diferentes.
Foucault recorda que Édipo reconhece a limitação humana diante dos
poderes divinos, pois compreende que os deuses revelam os desígnios a
seu próprio tempo. Não é possível forçá-los a falar. É o tempo do saber

20
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

da predição. Já o saber humano é extraído com força, sob a tortura


e o medo. Isso se vê, por exemplo, quando ao vidente cego, por sua
condição divina, se dá a possibilidade de não obedecer e, por isso
mesmo, negar-se a responder às perguntas, enquanto o pastor vê-se
obrigado a dar satisfações. Como se mostra resistente em falar, Édipo
o ameaça: “Por bem não falas? Falarás chorando!” (1152). Apavorado e
assimilando a mensagem, o velho homem clama por piedade: “Invoco
os numes: poupa um homem velho!” (1153). Mesmo assim, alguns
breves diálogos mais tarde, o rei impõe a punição: “Por que a demora
em lhe amarrar as mãos”? (1154). Já vítima de tortura preliminar, o
velho homem decide responder às questões feitas por Édipo.
Saberes cruzados e ao mesmo tempo complementares, que
assinalam que “há uma correspondência entre os pastores e os deuses”
(FOUCAULT, 2002, p. 40). Por isso, Foucault acredita que a história
de Édipo é um deslocamento da

enunciação da verdade do profético para o retrospectivo, na


mesma medida em que é o deslocamento do brilho ou a luz
da verdade do brilho profético e divino para o olhar, de certa
forma empírico e cotidiano, dos pastores (2002, p. 40).

E, entre o olhar divino e o olhar testemunhal, está o saber


edípico; saber a meio caminho, que, no limiar entre o conhecimento
e a ignorância, é capaz de salvar a cidade, mas, incapaz de compreender
o oráculo e salvar a si mesmo.
Evidentemente, é em torno do que o oráculo de Delfos diz, e
diz obscuramente, que a trama se desenrola e circunscreve o destino de
cada personagem. Por isso, fugir de seu próprio desígnio e encontrar
terra segura é uma ação comum daqueles que são admoestados pela
voz apolínea. Mas, em realidade, sem o saber, seguem na exata direção
daquilo que já está preparado. Às perguntas sempre claras daqueles

21
Fabiano Incerti

que vão buscar entender os propósitos divinos e decifrar as regras que


governam o porvir, as respostas do deus são continuamente ambíguas,
exigindo um exercício de interpretação. Há, então, uma incompatibi-
lidade da linguagem divina com a linguagem humana, naquilo que
Betinne e Guidorizzi designam como uma “assimetria comunicativa”
(BETTINE; GUIDORIZZI, 2008, p. 139).
Mas, Édipo não é somente aquele que tem dificuldade para
interpretar os enigmas oraculares, ele também é aquele que se nega
a escutar o que dizem os deuses. Tal negação se dá em pelo menos
três níveis na peça. O primeiro deles está no nível jurídico. O profeta
e o pastor são chamados para “depor” e ambos revelam a verdade de
que Édipo é a mancha que precisa ser expurgada da cidade. O que se
tem, então, são duas partes opostas da hierarquia, que fazem a difícil
e dolorosa acomodação dos fragmentos da verdade dos quais são
detentores, e que o herói primeiramente se recusa a ouvir do profeta
para depois ser obrigado a fazê-lo, pela boca de um escravo. O segundo
sentido da negação da escuta oracular está no nível do poder. Édipo
é um τύραννος e, certamente, sua posição social permite que ele faça
ouvidos moucos para a mântica. Por fim, no nível do que podemos
chamar de afetivo-familiar, está Jocasta, que opta pela mesma recusa
da escuta-submissão dos deuses, em defesa de seu marido-filho. Ela
abdica das afirmações do adivinho e vai mais longe em sua descrença
do que o próprio Édipo: “A arte da profecia — deves sabê-lo — não
interfere nas questões humanas” (708-709).
Édipo que quis ver, mas que nem sempre soube ouvir, ao fim
da peça, é aquele que é visto, sem nunca mais poder ver. Entretanto,
antes de cegar-se, está frente a frente com aqueles que o viram criança
abandonada por Jocasta e criança perdida por Políbio (FOUCAULT,
2014a, p. 235). Seu olhar soberano e tirânico, que precisava “ver com
seus próprios olhos”, deve ser agora banido da cidade. E quando as
portas do palácio novamente se abrem, depois da terrível visão de sua

22
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

esposa-mãe morta, é que ele fura seus próprios olhos. A cena seguinte,
que o coloca diante dos olhares misturados dos deuses, dos persona-
gens e do público, nos oferece o inverso do espetáculo: do topo de sua
autocracia, Édipo é aquele que tudo viu, e tudo ouviu, e que tudo
sabe, e tudo pode, contudo, está obrigado, nesse momento, a retirar-se,
andando a esmo pelo mundo na noite de sua cegueira. Em virtude do
desvelamento da verdade, posto em marcha por ele mesmo, cegou seus
próprios olhos e, para sempre, abriu os seus ouvidos. O saber da visão
cede lugar ao saber da escuta: Édipo está condenado a ouvir!

23
Fabiano Incerti

Referências

BETTINE, M.; GUIDORIZZI, G. El mito de Édipo: imágenes y


relatos de Grecia a nuestros dias. Madrid: Ediciones Akai, 2008.

DETIENNE, M. Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro:


Nau, 2002.

FOUCAULT, M. A Vontade de Saber. São Paulo: Martins


Fontes, 2014a.

FOUCAULT, M. Do Governo dos Vivos. São Paulo: Martins


Fontes, 2014b.

FOUCAULT, M. Malfazer, dizer verdadeiro. São Paulo: Martins


Fontes, 2018.

FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros. São Paulo:


Martins Fontes, 2010.

INCERTI. F. M. O visível e o sonoro em Édipo-Rei: uma análise


foucaultiana. 2013. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de
Pós-Graduação em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2013.

KNOX, B. Édipo em Tebas. São Paulo: Perspectiva, 2002.

24
FOUCAULT E O ÉDIPO-REI: Notas para uma aproximação

SÓFOCLES. Édipo-Rei de Sófocles. São Paulo: Perspectiva, 2012.


(Edição bilíngue Grego-Português).

VERNANT, J-P; VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na


Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999.

25
FOUCAULT E ÉDIPO REI
Um evento de leitura dramática
Pedro de Souza

Ao apresentar Édipo Rei, a tragédia escrita por Sófocles, na aula


de 16 de janeiro de 1980 – aula que tem como tema a relação entre
governo e verdade –, Michel Foucault procede como quem realiza, em
cena aberta, o que se chama, em teoria do teatro, leitura dramática.
Não pretendo que o filósofo tivesse querido adotar uma postura de
ator dramático, ou seja, lendo as falas das personagens sem realizar
propriamente ações fisicamente situadas em alguma sala de espetáculo.
Não obstante, pretendo aqui expor que o uso do texto trágico
Édipo rei, na aula em foco, aparece ao modo da realização de uma
leitura dramática. Contudo, uso esta expressão – leitura dramática –,
tendo como referencial não o teatro, e, sim, a teatralidade como recurso
cênico, a que recorre Foucault, para atingir seu propósito. Este se define
pela leitura da peça como o correlato especular de um acontecimento:
a aleturgia ou manifestação da verdade no domínio da história da
filosofia. Volto a esta dimensão da teatralidade mais adiante.
No momento do desenvolvimento da aula, não é que Foucault
faça a audiência acompanhar encenação das peripécias de Édipo,
envolvido com a investigação de um crime no qual ele próprio está
implicado. Nesses termos, é que quero, servindo-me da transcrição
da aula que focalizo, mostrar o quanto o filósofo transita da cena
da tragédia para a cena de sua atividade de reflexão, fazendo com
que algo crucial, na cena da peça, coincida com o que se passa em
seu pensamento. Tudo se passa como se acontecesse, o tempo todo,
o trânsito do ato do narrador – Sófocles – para o pensador em cena.

26
Pedro de Souza

Tal movimento descreve como se faz o deslocamento daquele que


narra encadeando episódios de uma história trágica, para aquele
que figura o pensador escancarando a maneira pela qual uma
verdade se realiza no interior de seu processo de realização. Daí, é
que o recurso da exposição oral de cada episódio da peça, ao modo
de leitura dramática, serve a imbricar o narrador pressuposto na
cena da tragédia e o filósofo francês, enquanto ostenta o modo de
instauração da verdade na cena filosófica. Fica, assim, possível fazer
cada momento da peça de Sófocles, dramaticamente lida em aula,
reinstaurar cenicamente o filósofo, não detendo a verdade, mas,
encenando a maneira de manifestá-la.
Em síntese, na vizinhança do que seria da ordem da encenação,
o autor de Vigiar e Punir, para colocar em ato a cena do seu pensa-
mento, atua, ao longo das passagens contidas no texto sofocleteano,
como quem lê textos ou falas, rubricando-os. O fito, enquanto
dura sua aula, é o de atentar para o movimento dramatúrgico de sua
atuação. Trata-se de ostentar o modo pelo que a verdade se manifesta,
como efeito do ato no tempo em que acontece.
Portanto, o procedimento que o filósofo se põe a descrever
no interior da peça deve corresponder ao processo que ele intenciona
desenvolver ao longo de sua aula. Assim fazendo, Foucault se expõe,
enquanto aponta para o seu gesto de leitura, em lugar de simplesmente
atentar para o que diz. Importa mais que o conteúdo, a gestualidade
que o conduz, não a falar sobre, mas a realizar alerturgia, ou o ritual
da verdade, valendo-se de certa modalidade de exposição do processo
narrativo que estrutura a peça Édipo rei.
De modo que as citações de cenas de Édipo funcionam bem
mais que a ilustração ou a exemplificação de uma ideia. Nesse sentido,
é que as passagens são proferidas em voz alta com a força de uma leitura
dramática. Tudo isso na justa medida em que Michel Foucault exerce
a sua vontade de fazer ouvir aparecer o pensamento. O pensamento

27
FOUCAULT E ÉDIPO REI: Um evento de leitura dramática

de que se trata na aula que focalizo aqui é aquele de que, de acordo


com o filósofo francês, a peça de Sófocles é a manifestação em toda
relação entre governo e verdade.
Dessa forma, ao colocar Édipo Rei no centro de sua preleção,
proponho que Foucault promove uma certa modalidade de leitura
dramática. Só que não simplesmente ao modo da leitura que fazem os
atores no intuito de prever como seria a apresentação do texto drama-
túrgico no palco. A citação literal em voz alta de cada cena da tragédia
tem, na aula de Foucault, um propósito. O propósito era provocar e
atrair audiência para a história narrada, como se estivesse no tempo e
no espaço da narrativa trágica.
Entre muitos outros, destaco o trecho em que Foucault narra
o encontro de Apolo e o adivinho, Tirésias.

Tirésias, que por um lado é o mais próximo de Apolo, que


recebeu do próprio Apolo o direito de dizer a verdade,
Tirésias a propósito, do qual o texto diz, bem precisamente,
que é tão rei quanto Apolo (o texto justapõe os dois perso-
nagens – enfim Febo e Tirésias … o rei em face do rei). Rei,
portanto, como Febo, como Apolo, vendo, diz sempre o
texto, as mesmas coisas que ele, tendo portanto o mesmo
olhar e o mesmo saber. É, de certo modo, o irmão, o irmão de
Apolo. Ele é assim seu complemento, já que é cego e, através
da noite dos seus olhos que não veem, e pode saber o que deus
Apolo sabe, ou antes o que a luz do deus que vê tudo esconde
(FOUCAULT, 2014, p. 27).

Foucault ressalta o movimento do texto dramtúrgico, notada-


mente, realça, em sua leitura, o que o texto faz: «o texto justapõe os
dois personagens»; «diz sempre o texto…». O que o texto justapõe,
o que diz sempre equivale ao que o gesto cênico de sua exposição oral

28
Pedro de Souza

em cena, portanto, com valor de rubrica inserida no roteiro teatral. Ao


modo de glosas que se interpõem ao fluxo de sua leitura, as indicações
que esse filósofo produz, para desenrolar dramaticamente sua própria
leitura, terminam por chamar a atenção de sua audiência para o jogo
de cena aproximando o espaço da narrativa dramática e o espaço do
desenvolvimento da aula.
É preciso que os diálogos, desde que lidos em voz alta, envolvam
todos no intuito do filósofo repetir, muita vezes, ao longo da aula, isto
é, o de expor a alerturgia, a maneira com que a verdade se manifesta,
não em seu conteúdo, mas no passo a passo de sua construção. Na
sequência, Foucault recita o trecho do diálogo entre Apolo e Tirésias,
ressaltando a relação entre a duplicidade do adivinho e do deus e a
própria manifestação da metade que falta ao oráculo de Apolo:

Tir.: É de um assassinato que se trata, e do assassinato de Laio.


MF: (Tirésias acrescenta, dirigindo-se a Édipo:)
Tir.: És tu o assassino.
MF: (E, assim, completa a outra metade. É preciso dizer que
também acresenta uma metade suplementar, uma metade a
mais... Ele diz:)
Tir.: E, aliás, fizeste outras pequenas coisas e descobrirás, um
dia, as impurezas que te ligam à tua família.
MF: (Mas, isso é de certo modo uma metade suplementar.
Quando Tirésias disse:)
Tir.: Eis quem matou, tu.
MF: (...vocês veem que o conjunto do que há a saber está sabido.
Os dois juntos, Apolo e Tirésias, disseram tudo, não falta nada.
Não falta nada a essas duas metades que se completam, e, no
entanto, é insuficiente) (FOUCAULT, 2014, p. 27).

29
FOUCAULT E ÉDIPO REI: Um evento de leitura dramática

Eis, nesse fragmento da aula de 16 de janeiro de Do Governo dos


vivos, o gesto enunciativo do filósofo – que noto entre parêntesis na
transcrição acima –, apontando para o seu próprio ato de pensamento.
Este consiste em ressaltar o gesto de leitura materializado na voz que
ora soa como a sua, ora como a do personagem citado. O procedimento
funciona de tal forma a propor-se como rubrica, ressaltando pontos
em que o que está em jogo é o modo de investigar a verdade.
No centro do cenário alocado na grande sala do Collège de
France, que só tem o filósofo e os textos que ele lê, há uma voz, a
dele mesmo, transitando da posição de narrador para o lugar das duas
personagens narradas, tornadas presentes, como encenação figurada,
ao gesto típico de leitura dramática.
Aí se emenda toda uma maneira de ler oralmente a peça que
rompe a barreira entre o limite da tragédia e o espaço, em que o
pensador francês a coloca em leitura e discussão. O que ele diz da
«mecânica da aleturgia e da descoberta da verdade» equivale ao que
se passa no modo de apresentar a cena em foco, ou seja, a aventura de
tecer outra forma de discurso filosófico. Do mesmo modo com que
Édipo é confrontado como sujeito que só acede à verdade na medida
em que este é afetado, Foucault experimenta a mesma potência do
trágico para pôr em ato a própria verdade em seu modo de se constituir
na história da filosofia.
Por isso mesmo, é fundamental que se escute a aula de Foucault
observando que ele não apenas cita as cenas, mas, sobretudo, procede
à leitura da tragedia Édipo Rei, nos detalhes cênicos de cada episódio,
como fazem os profissionais de teatro realizando uma leitura
dramática. Ariana Sforzini (2015) é a primeira a nos esclarecer sobre
o funcionamento do teatro e da teatralidade trágica nas aulas de
Michel Foucault. Vale destacar aqui três aspectos retirados do estudo
de Sforzini e que servem a descrever a presença da tragédia nas aulas
do filósofo: o trágico, como forma de questionar as evidências do

30
Pedro de Souza

seu tempo; o trágico, como potência não representativa do teatro; e


o trágico como inovação do discurso filosófico (SFORZINI, 2015).
Foucault, ao “explorar a potência não representativa do trágico
no teatro” (SFORZINI, 2015, p. 10), não se limita a narrar e comentar,
mas a criar um espetáculo aletúrgico – um rito, cujo resultado consiste
na maneira com que ostenta os detalhes de seu fazer. Isto, de tal
maneira que o texto de Sófocles apareça na sua propriedade primeira
de não simplesmente contar a tragédia de um herói, mas de propor
nela e por ela a maneira de fazer a verdade aparecer.
Nesse sentido, o pensador francês quer trabalhar no mesmo
nível em que Sófocles escreve sua narrativa, isto é, agindo de modo
a fazer seus ouvintes participarem da maneira como os fatos são
narrados. Na leitura dramática exercida por Foucault, o foco deve
recair sobre pensamento no instante em que é construído. Para isso,
ele adota a atitude paciente de expor os acontecimentos da peça. Ele
tem de, empregando uma só voz, que é a sua, fazer ouvir diferentes
personagens, cada uma inserida em sua própria instância dramatúr-
gica: a esfera dos deuses (Apolo e Tirésias), dos soberanos (Édipo e
Jocasta) e dos servidores.
Aí, é que a leitura ponto a ponto de Édipo rei soa como se
todos os protagonistas da tragédia se fizessem presentes na expla-
nação vocal do expositor. O procedimento de busca da verdade deve
fazer corresponder não ao verdadeiro como saber ou conhecimento
pressuposto, mas como verdade–acontecimento1. Por isso mesmo, o
eixo axial das enunciações orais de Foucault situa-se no seu propósito
de fazer ver e ouvir a alerturgia dos servidores, dos escravos. Trata-se

1
A verdade-conhecimento também pretende libertar, curar, “salvar” o sujeito,
e é justamente a partir do momento em que se o compreende que ela não pode
existir, que ela não pode se impor, senão afirmando ser capaz de produzir esses
efeitos sobre os sujeitos, que se percebe que ela nada mais é que uma verdade-a-
contecimento (LORENZINI, 2014, p. 385).

31
FOUCAULT E ÉDIPO REI: Um evento de leitura dramática

de mostrar a deposição de cada testemunha na narrativa, não pelo


conteúdo de seu saber, mas, pela maneira como sabiam, ou seja, não
porque ouviram dizer, mas, porque viram com os próprios olhos,
tocaram com as próprias mãos.
Atuando como filósofo, o objetivo de Foucault, a cada vez que
recorre a esse texto de Édipo, realiza o que chama “a cena filosófica”,
a que expõe o teatro de produção da verdade em filosofia. De modo
que, em suas aulas, ele é, ao mesmo tempo, o encenador que dirige e
é dirigido ao modo de uma leitura dramática que tem o fim, reitero,
não de contar uma história, e, sim, de mostrar a maneira com que
é dramaturgicamente procedida, ponto por ponto, a construção da
verdade. Para tanto, é preciso que o ouvinte acompanhe, com os olhos
e com as orelhas, os gestos de leitura dramática do professor, agindo
sentado no púlpito de uma grande sala de conferências do Collège
de France. Os olhos do leitor, em sua maioria de texto, em mãos,
percorrem as mesmas páginas de escrita dramatúrgica. Só que, para
seguir os gestos de leitura dramática, é necessário que a audiência abra
as orelhas para a voz do professor, dando concretude às peripécias de
cada personagem-tipo. É dessa maneira que o ouvinte pode se engajar
naquela leitura dramática proposta pelo professor. Já não é mais o texto
que é seguido linha a linha, mas sua encenação, iluminando o modo
de fabricar a verdade mais que seu conteúdo.
De modo que, ao colocar o texto diante de si e de sua audiência,
Foucault procede por montagens discursivas, segundo os critérios
teóricos conceituais pré-assumidos para a marcação dos atos e gestos
de leitura em cena. O filósofo quer mostrar como a estrutura narrativa
adotada por Sófocles funciona, ao encenar maneiras de investigar a
verdade, seja ela qual for. É preciso aí que ele faça o ouvinte ver e ouvir,
a cada etapa da leitura dramática, os modos de dizer que não podem
ser formulados de outro modo que aquele que ali se apresenta. Por isso,
ele começa por expor a cena que apresenta uma crise como um grande

32
Pedro de Souza

problema, para o qual há que se encontrar uma solução: a notícia de


uma peste atingindo toda a cidade de Tebas.
O caminho, então, para realizar a leitura dramática de um
texto como esse de Sófocles, não passa pela discussão da obra em
sua textualidade. O que importa não é o texto, mas os atos de
encenação que lhe dão forma. Contudo, Foucault não ignora que o
texto pertence ao gênero tragédia. Lembra sua plateia que essa obra
se desenvolve dentro de uma estrutura típica de tragédia, a saber, nos
termos definidos por Aristóteles.
Também não desconsidera que o texto se situa historicamente
em torno do século V. Lembrar as características de textualização e
de historicidade equivale a realçar detalhes de uma narrativa, mas,
não é o essencial do que Foucault quer demonstrar em sua aula. A
atenção sobre os elementos do gênero tragédia não passa de uma
estratégia voltada para a experiência de leitura que o filosofo tenciona
empreender em sua aula. Por isso, o professor-filósofo não se limita
a simplesmente apresentar os traços peculiares de um texto trágico
inseridos em uma situação previamente definida. Foucault sempre
situa Édipo Rei pelo seu funcionamento discursivo, o que consiste em
mostrar a maneira, intrínseca a essa tragédia, de produzir a verdade.
Foucault começa por lembrar conceitualmente as caraterís-
ticas da tragédia, segundo a proposição de Aristóteles. Com isso,
introduz a diferença entre Édipo rei e outras tragédias (Electra, por
exemplo). Não é o caso de exibir erudição no campo da literatura
grega, nem de repetir o que todos conhecem acerca da estrutura
típica da tragédia grega, notadamente de Édipo rei. Trata-se, antes de
tudo, por meio da indicação do que é próprio ao texto de Sófocles, de
exibir o que o filósofo está fazendo em sua aula quando um exemplar
da literatura clássica grega.
Para apontar o que estrutura tipicamente uma tragédia,
Foucault parte do traço do reconhecimento, isto é, a descoberta

33
FOUCAULT E ÉDIPO REI: Um evento de leitura dramática

a que se chega, mediante uma série de peripécias, e que muda


abruptamente o destino da personagem. Mas, em Édipo rei, o
reconhecimento se processa de outro modo, adverte o ministrante
dessa aula de 16 de janeiro, do curso Do governo dos vivos: “é o próprio
mecanismo do reconhecimento, é o caminho e o trabalho da verdade
que vão, em si, acarretar reviravoltas no destino das personagens”
(FOUCAULT, 2014, p.25).
Nesse ponto, o pensador francês introduz, a modo de rubrica
inserida em trechos de um roteiro dramatúrgico, a nota que lhe servirá
de base para sua leitura dramática de Édipo Rei. A que o filósofo quer
propor para essa aula deve se realizar como forma de envolvimento
de sua audiência com a teatralidade, a que corresponde à peça de
Sófocles, isto é, a aleturgia, o ritual de manifestação da verdade.
Nesse sentido, a dramatização que atribuo a Foucault não é tanto a
que visa a aproximar o leitor da tragédia, no intuito de transformá-lo
num espectador apaixonado pela peça. O filósofo conduz a leitura,
no sentido de demonstrar de que modo a tragédia nada mais faz que
expor a maneira inventada pelo povo grego de estabelecer, instaurar
procedimentos públicos e coletivos de busca da verdade.
Para tanto, importa mobilizar o pensamento da audiência,
fazendo-a aproximar-se do modo como o destino da personagem
modifica-se a cada etapa da narração encenada pelo gesto vocal de
leitura que Foucault propõe. Realizada, ao modo dramatizado, a
leitura deve chamar a atenção, ao mesmo tempo, para a maneira com
que narrador conduz a história de Édipo e para o que faz o filósofo
atuando como leitor, ator e pensador. Assim, Foucault acaba por
acrescentar uma outra camada dramática a Édipo Rei. Ou seja, conco-
mitantemente à manifestação da verdade, no interior da tragédia, o
filósofo faz ver e ouvir, no palco de sua aula, cenas de um modo outro
de pensar a tragédia escrita por Sófocles. Isto é, o que faz o professor
no momento em que diz:

34
Pedro de Souza

Portanto, Édipo rei é como toda tragédia, uma dramaturgia


do reconhecimento, uma dramaturgia da verdade, uma
aleturgia, mas, uma aleturgia particularmente intensa e
fundamental, já que é o próprio motor da tragédia. Tudo isso
é bem conhecido (FOUCAULT, 2014, p. 26).

Afinal, por que, conforme observei antes, mencionar, repetir,


se “tudo isso é bem conhecido”? Foucault reproduz o que entende ser
bem conhecido justamente para exibir dramaticamente o que do texto
é necessário ressaltar na leitura oral de Édipo Rei. Não esqueçamos:
importa que sua exposição – aqui, abordada como ato de leitura
dramática – se realize como encenação de um certo modo de tornar a
verdade reconhecida. É a atenção sobre essa cena, a cena da proposição
do procedimento, que me conduz a afirmar que Foucault desvia o
olhar do espectador do texto para ele mesmo, enquanto pensa. Em
síntese, da mesma forma que Foucault salienta em Édipo o envol-
vimento de si próprio ao determinar um método de investigação, o
filósofo leva para sua aula um modo de leitura dramática na qual ele
mesmo fica implicado na maneira com que a propõe e a dirige2 .
A certa altura de sua aula, para responder porque Édipo não
conseguia ver o que tinha diante dos olhos, Foucault desenvolve, de
forma mais explícita, sua maneira própria de colocar o texto em cena.
O que ele expõe não é apenas uma resposta entre outras já dadas,
mas o jeito de encenar como condição da resposta. Que importa o
que Édipo devia saber ouvindo o que lhes diziam? Interessa, antes,
observar “quais eram os procedimentos, como as coisas eram ditas…”:

2
Isto diz respeito “ao outro aspecto da mecânica do reconhecimento… O problema
da técnica, do procedimento e dos rituais pelos quais se dá efetivamente o
reconhecimento nessa tragédia, os procedimentos de manifestação da verdade
” (Do governo dos vivos, p. 25).

35
FOUCAULT E ÉDIPO REI: Um evento de leitura dramática

Mas, creio eu, também se deve colocar o problema: quais os


procedimentos, como as coisas eram ditas, qual a veridicção,
ou quais as veridicções que caminhavam assim através da
tragédia de Édipo e que talvez expliquem as relações estra-
nhas que há, no próprio personagem de Édipo, no discurso
de Édipo, entre o exercício de seu poder e a manifestação
da verdade ou as relações que ele mantinha com a verdade?
(FOUCAULT, 2014, p.26).

Desse ponto de vista, fica imprescindível que a encenação da


personagem, enredada em sua tragédia, não a mostre como quem
devia deter um certo saber, mas, sim, como aquele que se encontra
no dilema de compreender em que posição se expor perante a notícia
da peste em seu reino. Eis a indicação do lugar de enunciação em que
deve se colocar a personagem. Em vez de perguntar o que tinha de
saber, que verdade tinha de reconhecer, Édipo tinha de se indagar em
que instância de discurso se dava sua relação com a manifestação da
verdade na posição de Tirano, o de filho, ou de assassino?
Nesse ponto, chega a hora de o filósofo abrir para a plateia
certo extrato da peça, no intuito de evidenciar a percepção do texto a
transmitir para a audiência. Agora, o momento é de elucidar a estru-
tura da escrita, a que se opera por jogo de metades no sentido de fazer
ouvir o encadeamento narrativo, consistindo na maneira de investigar
a verdade. A essa altura de sua aula, Foucault começa a sair da etapa
das indicações para as realizações procedimentais efetivas.
Foucault segue obsessivamente seu intuito. De agora em diante,
ele precisa fazer observar as cenas de Édipo rei em seu desenrolar, numa
leitura dramática em que a cena muda segundo a sequências dos diálogos
e não pelo movimento de entradas e saídas das personagens. Vê-se como
Foucault desenha um roteiro de leitura dramática de maneira a ressaltar
o teatro da fala, independentemente da mudança de locação cênica.

36
Pedro de Souza

Em verdade, as indicações de mudança de locação cênica são


sempre dadas pelo estatuto enunciativo de quem fala – os deuses, os
servos, o soberano –, constituindo instâncias enunciativas estruturadas
em metades. Em outras palavras, só há mudança de local no interior
das séries de enunciações que compõem a narrativa; enunciações que
têm sempre lugar em um mesmo espaço de alocução: aquele onde as
testemunhas intimidadas pelo rei vêm prestar seu depoimento.
Tudo isso conduz a escutar, na estrutura da aula que o filósofo
desenvolve, um uso do texto de Sófocles, embora não anunciado, não
explicitado por ele, mas que aqui tomo como hipótese de um roteiro
de leitura dramática. Justamente, porque para expor a maneira com
que se procede a busca da verdade na Grécia Antiga, Foucault não
pode prescindir de uma exposição do texto ressaltando sua estrutura
dramatúrgica, a que dramatiza simultaneamente o modus operandi
na posição do narrador e na posição do pensador preocupado em
discorrer sobre a relação entre o poder e manifestação da verdade ao
longo da história ocidental.
Isso é o que põe em relevo certo estilo de dramatização do
texto de Sófocles. Só que, em vez de expor o ator procedendo a
encenação das personagens, como fazia em suas conferências radio-
fônicas, Michel Foucault apresenta-se agindo de forma a ritualizar
a manifestação da verdade.
Cena por cena, desde a primeira que anuncia a peste em Tebas,
caminhando pelos meandros das falas, Foucault pode descrever minu-
ciosamente a maneira deflagrada pelo rei Édipo para revelar a verdade
sobre o assassinato. Enquanto o coro se inquieta, demandando que
o crime e o criminoso sejam desvendados, o protagonista apresenta
o seu modo próprio de investigar. Obviamente, o procedimento de
leitura dramática do filósofo, para surtir seu efeito, não pode seguir
simplesmente a dramatização das falas tal como escrita em versos
por Sófocles. Essas devem se misturar ao ato de fala diretamente

37
FOUCAULT E ÉDIPO REI: Um evento de leitura dramática

dramatizado por Foucault, mediante o uso que faz do texto de Édipo


rei. Trata-se de retomar o modo com que os dizeres se encadeiam na
cena primeira. É preciso levar a audiência perceber, não somente os
enunciados assertivos acarretados pelo oráculo, mas, sobretudo, as
perguntas que suscitam.
O professor situa a cena com precisão no início da peça. Ouçamos
Foucault nesses atos emblemáticos em que a enunciação narrativa se
imbrica a sua própria maneira de proceder a leitura dramática:

No início, como vocês sabem muito bem, tendo a peste se


alastrado em Tebas, mandaram Creonte consultar o oráculo
de Delfos. A face ou, se preferirem, a metade peste, o oráculo
de Delfos responde pelo elemento correspondente, que deve
anular a peste: o ritual da purificação. Peste, purificação.
Mas a purificação de que? De uma nódoa. Que nódoa? Um
assassinato. Que assassinato? O assassinato do velho rei Laio
(FOUCAULT, 2014, p.26).

Estivesse Foucault numa de suas emissões, como a que realizou


nos anos de 1960 – Usos da linguagem, Heterotopias, O corpo utópico3–,
contaria com a voz de atores de teatro para colocar sob a cena de sua
fala. A cena do texto dramático que lhe serviria de via, a conduzir a
cena de seu pensamento enquanto essa se desenrola.

3
Refiro-me, sobretudo, às conferências Heterotopias e O corpo utópico produzidas
por Michel Foucault para compor uma série de emissões radiofônicas dedicadas
ao tema da utopia e da literatura pela Rádio France-Culture, respectivamente em
7 e 21 de dezembro de 1966. Na apresentação de O corpo utópico, por exemplo,
cada sequência falada, à viva voz, pelo próprio Foucault, ia ao ar sendo antecedida
por outras vozes recitando trechos de Proust, («Du côté de chez Swann»); Le
Clézio («Le Jour où Beaumont fit connaissance avec sa douleur»); Swift (Les
Voyages de Gulliver); Tanizaki («Le Tatouage»), Boré («Les Stigmatisés du
Tyrol, ou l’Extatique de Karldern et la patiente de Capriana»).

38
Pedro de Souza

Nem por isso, o filósofo deixa de fazer uso de um tipo de


contação de história para mostrar dramaticamente o que, por duas
vezes, afirmou ser “ tudo isso bem conhecido”. Por isso mesmo, ao
mesclar o tom assertivo e professoral com o ritmo de uma leitura
dramática, Foucault estrategicamente narra Édipo rei ao modo de um
ensaio aberto, ressaltando o esquema narrativo da tragédia e as regras
de montagem que descreve especificamente a narração adotada por
Sófocles para contar a tragédia de Édipo. O oráculo deu uma metade
de resposta. Falta a outra. Aí, o filósofo salienta o seu procedimento
de leitura, ao evocar, na cena, em lugar do dilema de quem teria sido
o assassino de Laio, o problema de como descobrir esse criminoso. O
que o filósofo põe em primeiro plano é a discussão entre Édipo e o
coro, a fim de decidir a respeito do melhor caminho para descobrir
a verdade. Foucault lê o diálogo, deixando que sua voz intervenha, a
modo de comentário incidental, entre um fragmento e outro da fala de
Édipo. A interposição do comentário funciona, no trajeto da leitura,
como rubrica da dramatização: faz ouvir o Édipo que, por sua própria
conta e risco, decide sobre o método de inquérito que vai responder
quem matou Laios.

É simples: “vou proclamar” e ele de fato proclama – “que


toda pessoa que tiver qualquer informação a propósito do
assassino de Laio deve relatá-las para que a verdade, enfim,
seja descoberta e para que a outra metade do oráculo, a
metade oculta do que disse o oráculo, seja enfim revelada”
(FOUCAULT, 2014, p. 26).

Explanar o procedimento das metades na textualidade


dramatúrgica de Édipo Rei, de modo a reger “o encadeamento pelo
qual se faz a descoberta progressiva da verdade”, não seria uma outra
maneira de narrar? É o que se pode constatar, quando Foucault

39
FOUCAULT E ÉDIPO REI: Um evento de leitura dramática

ressalta a lei das metades condicionando o desenrolar da peça. Aí,


se destaca pontualmente o procedimento motor da leitura dramática
foucaultiana. É o momento em que ele arrasta seus ouvintes para
onde, no interior da peça, se verifica o artifício de investigação do
crime e de seu suposto criminoso.
Na posição de condutor de uma leitura dramática, interessa a
Foucault colocar em relevo a maneira como uma série de enunciações
encena maneiras de investigar a verdade. Esta vai tomando corpo na
fala de cada personagem – os deuses, os soberanos, os servidores –,
segundo seu estatuto no ato de prestar, profere seu testemunho no
decorrer da narrativa trágica. Se acontece, na dramatização proposta
pelo filósofo de descrever o processo narrativo de um autor dramático,
nunca é no intuito de super-interpretar o texto, mas, de devolvê-lo ao
ato que lhe deu origem. Importa, então, converter as personagens em
locus de enunciação interagindo entre si. Para tanto, a estratégia de
dramatização foucaultiana de um texto clássico da literatura grega
opera na linha de fazer escutar vozes que soam e ressoam de dentro e de
fora da cena. Nessa medida, Édipo Rei é um recurso pelo qual Foucault
pode compor a cena da aleturgia ou da manifestação da verdade e fazer
de sua aula um evento de leitura dramática.

40
Pedro de Souza

Referências

FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Curso no Collège de


France, 1979-1980. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

FOUCAULT, M. O corpo utópico, As heterotopias /Le corps


utopique, Les hétérotopies. Edição bilíngue. Tradução de Salma
Tannus Muchail. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros. São Paulo:


Martins Fontes, 2010.

JONZE, S. Her. Estados Unidos: Warner Bros. Pictures, 2014.

LORENZINI, D. La politique desconduites. Pour une histoire


du rapport entre subjectivation éthique et subjectivité
politique. 2014. Tese (Doutorado) – Universidade Paris-Est Créteil,
Paris, 2014.

SFORZINI, Arianna. Scènes de lavérité - Michel Foucault et le


théâtre. 2015. Tese (Doutorado) – l’Université Paris-Est Créteil,
Paris, 2015.

41
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD
Kathrin Rosenfield

Queria partir de um fato: a leitura popular da tragédia de Sófocles,


Édipo Rei, está, hoje, sob a sombra da narrativa freudiana do complexo
de Édipo e de sua teoria do trauma decorrente da censura da sexua-
lidade infantil. O êxito da teoria freudiana criou um elo indissolúvel
e duradouro entre o mito antigo de Édipo e a concepção freudiana
da sexualidade que faz da história do herói grego uma ilustração das
vicissitudes produzidas pelo tabu do incesto, o trauma da transgressão
(fantasmático ou simbólica) desse tabu, o inconsciente e o retorno do
recalcado. Esse elo tornou-se um primado ao longo do último século,
abafando as peculiaridades dramáticas da peça de Sófocles – ao ponto
que um dos grandes conhecedores da literatura grega, Frederic Ahl
(2008, p. 30), sintetiza o fenômeno da seguinte maneira:

A sinopse mais popular e canônica de Édipo Rei permanece,


mais ou menos, inalterada desde os tempos de Freud: Édipo
descobre que, sem intenção, de fato, matou o pai e casou com
a mãe, e ele se pune por esses atos tal como o deus ordenou.
Que lástima ver um texto tão rico ficar espremido em um
corpete tão apertado.

Deixando a abordagem da densidade literária dessa peça para


um outro capítulo, gostaria de explorar aqui apenas as razões pelas
quais Freud aprisiona esse mito – que tem uma riqueza literária e
dramática muito maior que deixa entrever a leitura freudiana – no
seu “corpete apertado”. Assim, exporei algumas das razões pelas quais

42
Kathrin Rosenfield

Freud recorre com tanta insistência ao mito de Édipo e investigarei o


ângulo específico a partir do qual o pai da psicanálise explora esse
mito grego – sempre tirando vantagem do prestígio que os autores
gregos exercem sobre o público da classe média culta do final do
século XIX; a fama da cultura grega predispunha mais favoravelmente
os intelectuais e acadêmicos a aceitar a narrativa freudiana sobre a
sexualidade, de forma que o mito grego permite a Freud legitimar
sua teoria numa época que não dispunha de uma linguagem que
permitisse falar do corpo e do sexo.
Como se sabe, o interesse de Freud pela teoria sexual começa
com seu estágio junto a Jean Martin Charcot1, em Paris. O médico
psiquiatra francês fez, desde 1885, experiência clínicas com histéricas,
apresentando-as em agremiações de especialistas. Durante uma dessas
sessões, Freud teria ouvido um à parte de Charcot, que confessou –
porém, apenas a um de seus colegas – sua certeza de que os casos de
histeria sempre estariam ligados a um “segredo de alcova”, ou seja,
a alguma história envolvendo a sexualidade que as pacientes não
conseguem expressar abertamente.
Essa observação despertou o interesse de Freud pelo vínculo
entre sexo, tabu e as deformações da linguagem cotidiana sob o
impacto do não dito e dos conteúdos suprimidos por uma censura
social. Começa aí, entre 1887 e 1900, a investigação científica da sexua-
lidade e a reflexão freudiana sobre o tabu do incesto e a origem, o papel
e a finalidade da proibição da endogamia. O interesse pelo “horror
ao incesto” é documentado em inúmeros escritos, por exemplo, no
Rascunho N de 31 de maio de 1897, que já assinala a relação entre o
desenvolvimento da civilização e a repressão dos instintos, assunto
ao qual retornou na Interpretação dos Sonhos, 1900, no artigo Die

1
Jean-Martin Charcot (1825 - 1893), médico-cientista francês e o fundador da
neurologia moderna (com Guillaume Duchenne). Promoveu estudos da histeria
e da afasia, descobriu o aneurisma cerebral e as causas de hemorragia cerebral.

43
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

Kulturelle Sexualmoral und Die Moderne Nervositat (1908) e em O


Mal-estar na civilização (1930), entre outros2 .
No entanto, Freud não é o primeiro a falar de sexualidade e
incesto, embora tenha fornecido inúmeros novos dados empíricos a
respeito do corpo e do sexo, tornando possível falar dos tabus que o
puritanismo e a hipocrisia recalcaram – e isso, de modo diferenciado e
aberto, com refinamento e sutileza. Queria mencionar apenas algumas
das teorias dessa época que Freud estudou, ora aprovando e integran-
do-as na sua própria teorização, ora rejeitando ou silenciando-as. Duas
delas são as de Frazer3 e de Westermarck4.
Sir James George Frazer publicou O Ramo de ouro em 1890,
iluminando as relações violentas entre gerações5, e, em particular,
as relações de hostilidade entre a figura patriarcal do soberano nas
sociedades primitivas e os jovens pretendentes que cobiçam esse poder
(sobre os bens materiais e simbólicos e as mulheres). Freud menciona
Frazer explicitamente desde os seus primeiros escritos. Mas, há um
outro teórico que formula, em 1891, uma teoria diametralmente
oposta à de Freud sobre o tabu do incesto (abordagem essa que Freud
refuta GS IX, 74-8, 148 s.). Trata-se de Edvard Westermarck. Em sua
História do casamento humano, Westermarck explica o tabu do incesto
como um processo de dessensualização gradativa e natural ligada à

2
Usamos o PDF disponível online da Obra Completa de Freud: http://lelivros.
love/book/download-a-interpretacao-dos-sonhos-sigmun-freud/.
3
Sir James George Frazer (1854-1941), antropólogo escocês, cuja obra O Ramo
de Ouro (1890) compara as crenças na magia com as crenças religiosas e resume
suas descobertas na teoria dos três estágios culturais que progridem da magia
primitiva para a religião e a ciência.
4
Edvard Alexander Westermarck (1862-1939), filósofo e sociólogo finlandês
conhecido pelos seus estudos sobre exogamia e o tabu do incesto.
5
The Golden Bough: A Study in Magic and Religion = comparative study of
mythology.

44
Kathrin Rosenfield

convivência contínua. Ou seja, diferentemente da teoria freudiana


posterior, que vê o tabu do incesto como sequela angustiosa de relações
violentas análogas ao mito de Édipo, Westermarck esclarece que a
sociabilidade muito próxima dessensualiza e dessexualiza as relações,
de forma que o tabu do incesto seria um comportamento de costume.
Antes e em paralelo com a Escola de Freud, já gozavam de grande
renome os casos clínicos e as teorias de William James6 (que inspiraram
as ficções do irmão Henry James), a psiquiatria de Kretschmer7 e a
psicologia da Escola de Stumpf8 em Berlim, entre outros.
Em Totem e Tabu, Freud adapta, de modo psicanalítico, a teoria
especulativa de Charles Darwin9 e a teoria do sacrifício ritual de
William Robertson Smith10. Para esse último, o totemismo origina-se
da morte do pai abatido pelo bando de irmãos que temiam e cobiçavam
o poder do pai. A posterior culpa é expiada sob a forma do respeito que
sacraliza a figura paterna introjetada. O mecanismo perpetua-se na
forma do complexo (que Freud batizará mais tarde como o complexo

6
William James (1842-1910), filósofo e psicólogo americano e “pai da psicologia
americana”. É o irmão de Henry James, cujas ficções como The Turn of the Screw
(A volta do Parafuso) transformam os casos clínicos de alucinações histéricas em
sugestivas histórias de fantasmas.
7
Ernst Kretschmer (1888-1964), psiquiatra que pesquisou a constituição humana
e estabeleceu uma tipologia.
8
Carl Stumpf (1848-1936), filosofo e psicólogo alemão na cátedra berlinense de
psicologia experimental. Stumpf teve considerável influência sobre os teóricos
da Gestalt, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka.
9
Charles Robert Darwin (1809-1882), naturalista britânico que explicou a
evolução das espécies por meio da seleção natural dos mais fortes e adaptados.
O macho alfa detém o poder sobre as fêmeas do bando, suscitando, na leitura
de Freud, a cobiça e hostilidade dos demais machos.
10
William Robertson Smith (1846-1894), estudioso do Antigo Testamento,
professor de teologia escocês. Smith estudou o sacrifício e foi também um dos
editores da Encyclopædia Britannica. Segundo Smith, o totemismo origina-se
do sacrifício violento do pai abatido pelo bando de irmãos.

45
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

de Édipo) que fornece o molde efetivo do pecado original e dá origem


à sociedade humana. Nesse sentido, Freud compreende a religião como
forma coletiva de culpa e a uma elaboração ambivalente do remorso.
Em outras palavras: rearticulando uma série de pesquisas
conhecidas, Freud teve a coragem de explicitar o papel da sexualidade
e a detalhar os fatores desse domínio sobre o qual pesou um tabu
social e religioso que tornou “inominável” o assunto do corpo e do
sexo. A hipótese de trabalho é um vínculo obscuro entre os desejos
e necessidades infantis por afeto e contato corporal com os estigmas
e a culpa que pesa sobre esses desejos devido à inibição do incesto.
Esses estigmas encontram inúmeras formulações narrativas em teorias
médicas, em dogmas religiosos e em preceitos educativos e morais.
Freud é o primeiro que articula toda a sua experiência clínica com uma
crítica consistente das articulações (sociais, médicas e religiosas) desse
tabu cultural que se cristalizou na repressão do desejo sexual infantil
e de suas expressões verbais ou corporais.
Recebe particular atenção o papel traumático da repressão
que intensifica, segundo Freud, a inevitável rivalidade latente entre
gerações, envenenando as relações entre pais e filhos em decorrência
do uso “educativo” da ameaça e da punição violenta. A violência dessa
educação tradicional se mascarava em preceitos morais, revelando sua
agressividade apenas de modo camuflado: em atos falhos, no sonho,
no mito e na literatura11. Para romper o véu de dignidade dos preceitos
morais da atualidade, Freud recorre às imagens míticas gregas das
relações da violência arcaica entre gerações. Essas não desapareceram,
segundo Freud, do imaginário, nem das práticas modernas, mas,
apenas se tornaram mais sutis e encobertas por eufemismos culturais.

11
Freud fala dessa sua tese na Carta a Wilhelm Fliess, em 1897; três anos depois,
apresenta A Interpretação dos Sonhos, 1900; Steven Pinker pondera que, à luz
das experiências contemporâneas, Westermarck teria se revelado mais atual que
Freud.

46
Kathrin Rosenfield

Com élan iluminista, Freud desmistifica assim as narrativas que


sacralizam essa violência desmedida e terminam por legitimar os tabus
sexuais com inúmeros dogmas religiosos e morais, ou com conceitos
intelectuais – todo um aparato de ícones da cultura e do sagrado.
Freud os chama de “mitos endopsíquicos” na Carta 78 a Wilhelm
Fliess (12 de dezembro de 1897):

Pode imaginar o que são ‘mitos endopsíquicos’? São o


fruto mais recente de meus trabalhos mentais. A obscura
percepção interior de nosso próprio mecanismo psíquico
estimula ilusões de pensamento, que são naturalmente
projetadas para o exterior e, de modo característico, para o
futuro e o além-mundo.
Imortalidade, castigo, vida após a morte, todos consti-
tuem ref lexos de nossa própria psique mais profunda
(…) psicomitologia.

Freud ressalta repetidamente nos seus textos que a pulsão e as


violências, os desejos e até as perversões sexuais aflorando de modo
enigmático nos sintomas dos pacientes, não estavam reservados ao
âmbito dos casos patológicos; são parte da constituição humana
“normal” – e são intensificados pela repressão cultural. Em outras
palavras, Freud inaugura uma nova visão antropológica que altera
desfavoravelmente a autoimagem que a humanidade fazia de si mesma.
Como justificar esse escândalo? Como torná-lo palatável para o
público reprimido da época?

47
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

A obra admirada de Sófocles sem dúvida


facilitava a comunicação da má notícia

Freud começara suas análises de pacientes histéricas instigado


pelo colega, o médico Breuer, e publicou seus Estudos de histeria, em
1892; ao longo desses anos, Freud se submete a uma autoanálise e busca
por confirmação de suas hipóteses por meio da análise e interpretação
dos próprios sonhos (1886-97). Os documentos a respeito dessa
experiência revelam as dificuldades que a teoria nascente enfrenta.
Na Carta a Fliess, de 15 de outubro 1897, Freud relata os bloqueios
da autoanálise que correspondem em importância às resistências na
terapia das histéricas. Freud experimenta com diversas chaves de leitura
para explicar os sintomas patológicos alheios e os próprios sonhos;
ele emite hipóteses sobre o desejo oculto-inconsciente; queixa-se da
insegurança e da complexidade da empreitada analítica; e expressa o
desejo de que o trabalho analítico permita uma síntese que confirme
a hipótese inicial. Nesse intuito, ele escreve ao amigo W. Fliess:

Se a análise cumprir o que eu espero que ela cumpra, trans-


creverei de modo sistemático o processo e o apresentarei. Por
enquanto, não encontrei nada muito novo. A coisa não é fácil.
Ser honesto consigo mesmo é um bom exercício. [Assim]
Uma única ideia válida emergiu na minha cabeça: ….
Descobri, também no meu próprio caso [como nos das
minhas pacientes], o amor e o desejo sexual pela mãe acom-
panhados pelo ciúme do pai; e agora considero esse fenômeno
como um fato universal da vida infantil.
[...]
Se isso (o Complexo de Édipo) se comprovar, podemos
compreender o efeito impactante de Édipo Rei, apesar de
todas as objeções que se levantou contra a superstição do

48
Kathrin Rosenfield

destino. Édipo Rei não nos mostra uma compulsão arbitrária


(como muitos dramas do destino), mas a pulsão universal que
todos reconhecem, pois a sentem dentro de si.
[...]
Todos que olham o espetáculo já foram potenciais Édipos na
sua fantasia, e cada um recua horrorizado da realização do
sonho que é aqui deslocado para a realidade vivida; o horror
corresponde ao recalque quantitativo que separa seu estado
infantil do presente (Carta a Fliess, 15 Out. de 1897).

A tragédia cumpre, para o pai da psicanálise, um papel análogo


de apoio transferencial na difícil elaboração da primeira teoria psicanalí-
tica. Ela é, em primeiro lugar, um espelho para a tese dos desejos infantis
das histéricas (dois sonhos típicos) e do próprio Freud e confirmação da
validade da teoria. Em segundo lugar, a obra e o prestígio de Sófocles
legitimam a escandalosa teoria e sua antiguidade admirada torna
aceitável a tese da sexualidade precoce e do aspecto dramático que ela
acrescenta à gênese da ordem familiar-social e dos valores morais.
Vejamos mais em detalhe como Freud trata a tragédia e o mito
na sua Interpretação dos Sonhos:

Em minha experiência, que já é extensa, o papel principal na


vida mental de todas as crianças, que depois se tornam psico-
neuróticas, é desempenhado por seus pais. Apaixonar-se por
um dos pais e odiar, o outro figuram entre os componentes
essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam
nessa época e que é tão importante na determinação dos
sintomas da neurose posterior. Não é minha crença, todavia,
que os psiconeuróticos difiram acentuadamente, nesses
aspectos, dos outros seres humanos que permanecem normais
— isto é, que eles sejam capazes de criar algo absolutamente

49
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável — e isto


é confirmado por observações ocasionais de crianças normais
—, que eles se diferenciem apenas por exibirem, numa escala
ampliada, sentimentos de amor e ódio pelos pais, os quais
ocorrem de maneira a menos óbvia e intensa nas mentes da
maioria das crianças.

Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade


clássica que chegou até nós: uma lenda cujo poder profundo e
universal de comover só pode ser compreendido se a hipótese
que propus com respeito à psicologia infantil tiver validade
igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do
Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome (A
Interpretação dos Sonhos I, 223).

Freud lê e compreende o mito de Édipo como um análogo da


sua própria história e, num segundo momento, busca a confirmação
dessa hipótese baseada na autoanálise e nas análises clínicas de suas
pacientes, projetando as estruturas literárias sobre dois sonhos típicos
que observa no trabalho clínico: o sonho da morte do pai e o da união
com a mãe (no caso da menina, esses sonhos edipianos invertem os
objetos12). Seguindo seu método, o pai da psicanálise encontra no
recorte que faz da lenda todos os elementos que o interessam no seu
trabalho clínico: o enigma da própria origem e que engaja a criança em
ruminações vinculadas com a sexualidade; as informações enigmáticas
ou evasivas que se costuma dar às crianças, atiçando a investigação
infantil, é poeticamente elaborada e enaltecida pelo episódio heroico

12
Outro ensaio sobre o assunto é o trabalho de 1910 Über einen besonderen Typus
der Objektwahl beim Manne, GWVIII, 73. Ele retoma as experiências de 15
anos ao longo dos quais Freud analisou suas pacientes histéricas e perseguiu
sua autoanálise.

50
Kathrin Rosenfield

da solução dada ao enigma da Esfinge. E contra esse pano de fundo


mítico desenham-se então as grandes linhas da tragédia de Sófocles:

Édipo, filho de Laio, Rei de Tebas, e de Jocasta, foi enjeitado


quando criança porque um oráculo advertira Laio de que a
criança ainda por nascer seria o assassino de seu pai. A criança
foi salva e cresceu como príncipe numa corte estrangeira, até
que, em dúvida quanto a sua origem, também ele interrogou
o oráculo e foi alertado para evitar sua cidade, já que estava
predestinado a assassinar seu pai e receber sua mãe em
casamento. Na estrada que o levava para longe do local que
ele acreditara ser seu lar, encontrou-se com o Rei Laio e o
matou numa súbita rixa. Em seguida, dirigiu-se a Tebas e
decifrou o enigma apresentado pela Esfinge que lhe barrava o
caminho. Por gratidão, os tebanos fizeram-no rei e lhe deram
a mão de Jocasta em casamento. Ele reinou por muito tempo
com paz e honra, e aquela que, sem que ele o soubesse, era
sua mãe, deu-lhe dois filhos e duas filhas. Por fim, então,
irrompeu uma peste e os tebanos mais uma vez consultaram
o oráculo. É nesse ponto que se inicia a tragédia de Sófocles.
(Interpretação dos Sonhos, 224)

- Os mensageiros trazem de volta a resposta de que a peste


cessará quando o assassino de Laio tiver sido expulso do país.
- Mas ele, onde está ele? Onde se há de ler agora o desbo-
tado registro dessa culpa de outrora? (A Interpretação dos
Sonhos I, 224).

Os enigmas poéticos suscitam no interior da peça dramática


uma anamnese análoga àquela que Freud costumava fazer para chegar
a soluções para os problemas dos seus pacientes:

51
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

A ação da peça não consiste em nada além do processo de


revelação, com engenhosos adiamentos e sensação sempre
crescente — um processo que pode ser comparado ao
trabalho de uma psicanálise — de que o próprio Édipo é o
assassino de Laio, mas também de que é o filho do homem
assassinado e de Jocasta. Estarrecido ante o ato abominável
que inadvertidamente perpetrara, Édipo cega a si próprio
e abandona o lar. A predição do oráculo fora cumprida (A
Interpretação dos Sonhos I, 224).

Num primeiro momento, Freud traz à tona a leitura conven-


cional da tragédia clássica, que vê nessa peça a representação do
destino inelutável:

Oedipus Rex é o que se conhece como uma tragédia do


destino. Diz-se que seu efeito trágico reside no contraste
entre a suprema vontade dos deuses e as vãs tentativas da
humanidade de escapar ao mal que a ameaça. A lição que,
segundo se afirma, o espectador profundamente comovido
deve extrair da tragédia é a submissão à vontade divina e
o reconhecimento de sua própria impotência. Os drama-
turgos modernos, por conseguinte, tentaram alcançar um
efeito trágico semelhante, tecendo o mesmo contraste num
enredo inventado por eles mesmos. Mas os espectadores
ficaram a contemplar, impassíveis, enquanto uma praga
ou um vaticínio oracular se realizava apesar de todos os
esforços de algum homem inocente: as tragédias do destino
posteriores falharam em seu efeito. Se Oedipus Rex comove
tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega
da época, a explicação só pode ser que seu efeito não está no
contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve ser

52
Kathrin Rosenfield

procurado na natureza específica do material com que esse


contraste é exemplificado.
Deve haver algo que faz uma voz dentro de nós ficar pronta
a reconhecer a força compulsiva do destino no Oedipus, ao
passo que podemos descartar como meramente arbitrários
os desígnios em die Ahnfrau [de Grillparzer] ou em outras
modernas tragédias do destino (A Interpretação dos
Sonhos I, 225 s.).

Mas, Freud opera uma guinada significativa nessa inter-


pretação: comparando diversas tragédias do destino, ele salienta o
que acredita ser o impacto emocional bem mais forte de Édipo Rei.
Essa afirmação constitui um ponto questionável do ponto de vista
crítico-literário – mas ela é uma operação retórica bem-sucedida, cujo
élan convenceu a maioria dos leitores. A partir desse raciocínio, Freud
começa a investigar a causa e o motor dessa emoção poética:

E há realmente um fator dessa natureza envolvido na história


do Rei Édipo. Seu destino comove-nos apenas porque
poderia ter sido o nosso — porque o oráculo lançou sobre
nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre
ele. É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro
impulso sexual para nossa mãe, e nosso primeiro ódio e
primeiro desejo assassino, para nosso pai. Nossos sonhos
nos convencem de que é isso o que se verifica. O Rei Édipo,
que assassinou Laio, seu pai, e se casou com Jocasta, sua
mãe, simplesmente nos mostra a realização de nossos
próprios desejos infantis. Contudo, mais afortunados que
ele, entrementes conseguimos, na medida em que não nos
tenhamos tornado psiconeuróticos, desprender nossos
impulsos sexuais de nossas mães e esquecer nosso ciúme de

53
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

nossos pais. Ali está alguém em quem esses desejos primevos


de nossa infância foram realizados, e dele recuamos com
toda a força do recalcamento pelo qual esses desejos, desde
aquela época, foram contidos dentro de nós. Enquanto traz
à luz, à medida que desvenda o passado, a culpa de Édipo,
o poeta nos compele, ao mesmo tempo, a reconhecer nossa
própria alma secreta, onde esses mesmos impulsos, embora
suprimidos, ainda podem ser encontrados. O contraste com
que nos confronta o coro final —
Fitai de Édipo o horror! Dele que o obscuro enigma
desvendou, mais nobre e sapiente vencedor. Alto no céu sua
‘estrela se acendeu, ansiada e irradiante de esplendor: Ei-lo
que em mar de angústia submergiu, calcado sob a vaga em
seu furor (A Interpretação dos Sonhos I –226 s.).

Freud cita essas palavras finais do coro e as interpreta como


uma transposição poética do trauma que o desejo do incesto deixa no
imaginário humano. Como psicanalista engajado na investigação dos
próprios desejos e dos tormentos dos seus pacientes, ele as toma como
advertência do dever da ética médica de prosseguir no esclarecimento
dos nexos entre as pulsões reprimidas e os sintomas e comportamentos
estranhos das pessoas doentes, evidentemente na esperança de poder
influenciar esses elos nefastos por meio de formas educativas mais
esclarecidas e hábeis.
Freud orgulhou-se de ter provocado a revolução copernicana
na visão da natureza humana: a humanidade como vítima do próprio
inconsciente, não como ser racional, sujeito que domina seu mundo e
a si mesmo graças ao intelecto. Ele apoiou a amarga mensagem, ferida
narcísica, na história de Édipo... Antes dele, Nietzsche já demolira o
verniz racional que o século XIX projetava sobre os gregos e mostrou

54
Kathrin Rosenfield

a vitalidade perigosa de Dionísio pulsando por baixo da superfície13.


Freud sabe que sua visão esboça uma imagem assombrosa da sociedade
e da família, e que esse pessimismo cultural encontrará resistências
entre seus contemporâneos. Assim, ele escreve:

Nossos mais sagrados princípios éticos escondem uma reali-


dade muito crua – o quinto mandamento e o imperativo de
amar os pais não vale para o inconsciente.
Os horrores míticos não foram superados (A Interpretação
dos Sonhos I, 219-220).

No intuito de superar essas resistências, Freud usa o prestígio


da tragédia Édipo e de seu ilustre autor como escudo contra a indig-
nação que os primeiros conhecimentos da psicanálise provocaram
entre médicos incrédulos e uma opinião pública muito inibida por
tabus religiosos e morais. No comentário sobre o texto de Sófocles,
ele explicita sua teoria – então inaudita e chocante – da sexualidade
infantil e dos seus desejos normais “impostos pela Natureza”. O
sentido profundo da história de Édipo Rei, segundo Freud:

(...) tem o impacto de uma advertência a nós mesmos e a


nosso orgulho, nós que, desde nossa infância, tornamo-nos
tão sábios e tão poderosos ante nossos próprios olhos. Como
Édipo, vivemos na ignorância desses desejos repugnantes à
moral, que nos foram impostos pela Natureza; e após sua
revelação, é bem possível que todos busquemos fechar os
olhos às cenas de nossa infância.

13
Encontramos essa lúcida visão da outra Grécia e de uma humanidade menos
racional e menos perfeita do ponto de vista moral também no século anterior,
nas traduções e nos comentários de Hölderlin.

55
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

Há uma indicação inconfundível no texto da própria tragédia


de Sofocles, de que a lenda de Édipo brotou de algum material
onírico primitivo que tinha como conteúdo a aflitiva pertur-
bação da relação deuma criança com seus pais, em virtude
dos primeiros sobressaltos da sexualidade (A Interpretação
dos Sonhos I, 125).

A continuação da leitura freudiana mostra a cautela com a qual


Freud ataca a autoconsciência hipócrita dos seus contemporâneos,
que se orgulham com o suposto progresso moral da humanidade,
desconsiderando o peso das pulsões atávicas reprimidas por costumes
autoritários e dogmas religiosos. Essas pulsões se manifestam, tanto
na tragédia de Sófocles, como na realidade clínica de Freud, com o
sintoma da ansiedade, da inquietação com presságios sombrios. Freud
assinala esse ponto ao comentar a reação defensiva de Jocasta que
procura soterrar as preocupações morais de Édipo:

Num ponto em que Édipo, embora não tenha sido ainda


esclarecido, começa a se sentir perturbado por sua recordação
do oráculo, Jocasta o consola, fazendo referência a um sonho
que muitas pessoas têm, ainda que, na opinião dela, não tenha
nenhuma sentido:
Muito homem, desde outrora, em sonhos, tem deitado
com aquela que o gerou. Menos se aborrece quem com
tais presságios sua alma não perturba (A Interpretação dos
Sonhos I,225).

A tragédia permite a Freud abordar de modo implícito os


mecanismos de defesa que, também na atualidade contemporânea,
favorecem a denegação dos conteúdos estigmatizados e, consequen-
temente, traumáticos. A censura social interiorizada no processo do

56
Kathrin Rosenfield

recalque procura excluí-los do campo da consciência, ou as máscaras


do recalque e da autocensura barram seu reconhecimento com mentira
e hipocrisia artificiosas:

Hoje, tal como outrora, muitos homens sonham ter relações


sexuais com suas mães, e mencionam esse fato com indig-
nação e assombro. Essa é claramente a chave da tragédia e o
complemento do sonho de o pai do sonhador estar morto. A
história de Édipo é a reação da imaginação a esses dois sonhos
típicos (A Interpretação dos Sonhos I, 226).

57
ÉDIPO REI, NA LEITURA DE FREUD

Referências

AHL, F. Two faces of Oedipus: Sophocles’ Oedipus tyranus and


Seneca’s Oedipus. New York: Cornell University Press, 2008.

FRAZER, J. G. The golden bough: A study in magic and religion.


[S.l.: s.n.], 1890.

FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Disponível em: http://


lelivros.love/book/download-a-interpretacao-dos-sonhos-sigmun-
freud/. Acesso em: 9 maio 2021.

WESTERMARCK, E. A. The history of human marriage. 5th ed.


London: Macmillan, 1921. (Trabalho original publicado em 1891).

58
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES
Formas do pensamento e figuras
do desejo no Anti-Édipo de Gilles
Deleuze e Félix Guattari
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Para o filósofo Michel Foucault, podia se avaliar um pensamento


pelo seu desenho, por sua forma, pelas figuras que produzia. Como o
pensamento é constituído por conceitos e os conceitos são agregados
sensíveis, são nebulosas de imagens, há em todo pensamento uma
dada figurabilidade. O pensamento configura uma dada geografia,
uma dada paisagem conceitual e imagética. Todo pensamento se
esforça para dar a ver, para iluminar, para trazer a luz, para mostrar e
demonstrar aquilo que pensa. O ato de pensar é um ato figurativo, um
ato formativo, configurador daquilo mesmo que pensa. Para Foucault,
se poderia fazer uma história das formas de pensamento, levando em
conta as rupturas entre as variadas formas de configuração do pensa-
mento e as descontinuidades entre os estilos do pensar. Assim, como se
pode realizar uma história da pintura, das transformações nas formas
e nos estilos do pictórico, o mesmo se poderia fazer com os modos de
se produzir pensamentos, reflexões e suas distintas maneiras de eluci-
dação, de apresentação, de materialização, na escritura, do pensado.1
O filósofo brasileiro, Roberto Machado, ao escrever um
livro sobre Gilles Deleuze, nomeou o capítulo introdutório de

1
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2012.

59
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

“Uma geografia do pensamento”.2 É notório ao lermos as obras de


Deleuze, e isso se mantém nas obras em que divide a autoria com
Félix Guattari, a prevalência da dimensão espacial em detrimento da
dimensão temporal em sua forma de pensar. Michel Foucault afirma,
no pequeno texto intitulado “Outros Espaços”, que o espaço havia
substituído e prevalecido sobre o tempo quando se trata das formas
de pensamento que emergiram no século XX.3 O pensamento de
Gilles Deleuze, e também o de Félix Guattari, poderia ser considerado
um exemplo dessa prevalência da dimensão espacial em detrimento
da dimensão temporal nas formas de pensar, das derradeiras décadas
do século passado. Se vemos no início do século XX, as filosofias de
Henri Bergson e Martin Heidegger,4 tomar o tempo como categoria
central em suas reflexões, com o filósofo francês discrepando da teoria
da relatividade e da física contemporânea por espacializarem o tempo,
por fazerem do tempo apenas uma quarta dimensão do espaço, o que
para ele significava minorar a importância que ele dava a duração como
categoria central na definição da vida e do próprio ser do Homem,
após a emergência dos pensamentos formalistas e estruturalistas,
até como consequência das descobertas no campo das ciências da
natureza, as filosofias adquirem acentuado caráter espacial.5 A crise
do historicismo e da metafísica, com sua ênfase na dimensão temporal
da existência das coisas e dos homens, faz emergir formas de pensar

2
MACHADO, Roberto. “Uma geografia do pensamento”. In: MACHADO,
Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
3
FOUCAULT, Michel. “Outros espaços”. In: FOUCAULT, Michel. Estética:
literatura, pintura, música e cinema. Ditos & Escritos III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. p. 411-422.
4
Ver: BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo
com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2010; HEIDEGGER, Martin. Ser
e tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.
5
WAHL, François. Estruturalismo e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1970.

60
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

em que as figuras espaciais, as imagens espacializantes, os conceitos


espacializados, prevalecem sobre as figuras, imagens e conceitos que
remetem ao tempo.
Creio que o livro O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia6 ,
lançado em 1972, primeiro fruto da parceria intelectual entre o
filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista e filósofo Félix Guattari, se
constitui num exemplo dessa outra forma de pensar, dessa outra
geografia do pensamento. O distanciamento que ele significa da teoria
freudiana do desejo, a contestação que faz a instituição psicanalítica
na França, representada sobretudo pela figura de Jacques Lacan, que
coloca o seu pensamento e sua obra como continuidade e desdobra-
mento do pensamento freudiano, nasce, sobretudo, de uma maneira
diversa de pensar, de uma forma distinta de pensamento e de uma
maneira diversa de figurar o desejo, de imaginá-lo e dar-lhe forma. O
pensamento de Sigmund Freud se orientava fundamentalmente por
meio da temporalidade. A exploração do inconsciente, a anamnese
que sua prática terapêutica propunha, se voltava para a exploração
das camadas e sedimentos de temporalidades que aí se alojavam. A
memória, o inconsciente, a formação da psiquê, a produção da subje-
tividade, se dirigiam fundamentalmente para um eixo temporal, para
a acumulação de camadas de tempo, que se alojavam no corpo e na
subjetividade de seus pacientes. A análise dos sonhos se inscrevia nessa
busca por explorar o inconsciente, eles seriam, juntos com os chistes,
os atos falhos, os sintomas, fragmentos de passado que vinham à tona
em dadas situações e contextos de vivência. Embora assomassem à
consciência, quase sempre, deformados, contraídos, aglutinados,
acoplados a vivências presentes, era no eixo do tempo que se devia

6
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. São Paulo: Editora 34, 2011.

61
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

praticar as interrogações, interpretações e práticas psicanalíticas7.


Como nos lembra Jacques Derrida, a instituição psicanalítica sempre
foi uma prática de arquivo, de leitura e remanejamento do arquivo, de
recorte e significação do arquivado8.
O recurso aos mitos gregos, muitas vezes utilizado por Freud
para nomear ou figurar as suas descobertas em torno do funciona-
mento da vida psíquica, não me parece aleatório. Os mitos gregos
possuíam uma forma de figurar e organizar a narrativa da vida
humana, de narrar e de dar sentido aos eventos humanos e divinos,
que guarda aproximações com a maneira freudiana de dar forma a
seu pensamento9. A escolha da peça de teatro, Édipo Rei, escrita pelo
dramaturgo Sóflocles10, por volta do ano 427 a. C., que atualizava
um mito que circulava na tradição oral, para nomear o que seria o
complexo nuclear na constituição da sexualidade infantil e, por
extensão, nuclear na organização da vida sexual adulta, se deve ao
fato de que ela oferece uma forma de pensar, uma forma de narrar os
percalços dos desejos humanos, que se articulava com a maneira de
pensar freudiana. Assim como na obra freudiana, em Édipo Rei é um
passado encoberto, são acontecimentos ocorridos em outros tempos
que vêm interferir e decidir o que se passa no presente. É a cegueira
sobre seu passado, é o desconhecimento sobre seu nascimento, sobre
sua infância, que leva Édipo a ter um destino trágico. Na tragédia

7
Ver, por exemplo, as obras freudianas: O chiste e sua relação com o inconsciente, A
interpretação dos sonhos, Fundamentos da clínica psicanalítica e Sobre a psicopa-
tologia da vida cotidiana.
8
DERRIDA, Jaques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
9
VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na
Grécia antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1977; RUDNYSTKY, Peter L. Freud
e Édipo. São Paulo: Perspectiva, 2002.
10
SÓFOCLES. Édipo-rei. Porto Alegre: L&PM, 1998.

62
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

grega, é o oráculo ou o vidente, aqueles capazes de enunciar e anunciar


o futuro, aqueles que possuem o segredo e o domínio sobre a imprevi-
sibilidade do tempo, que devem ser ouvidos e obedecidos. Eles emitem
as vozes dos deuses, eles são os mensageiros do divino, que enunciam
o que se vai passar no tempo. Os sacerdotes e emissários dos deuses
lembram todo tempo aos humanos que eles estão submetidos às leis
divinas, aos desígnios e desejos caprichosos e insondáveis dos deuses,
que as grandezas humanas, conquistadas no e com o tempo, podem ser
nele perdidas. O tempo a tudo consome, a toda glória e a toda fama. De
nada serviu a Édipo ter decifrado o enigma da Esfinge, ter sido coroado
rei em sua terra, em que julgava ser um estrangeiro: toda sua glória,
todos seus feitos constituíram, por fim, o caminho de sua desgraça.
Toda a estrutura narrativa da tragédia Édipo Rei remete a
uma escavação, a uma busca por verdades que ficaram enterradas no
tempo. A dimensão reitora da narrativa é o tempo, não o espaço. No
entanto, em vários momentos da peça, a trama se refere ou constitui
figuras triangulares, portanto, espacializantes. O número três aparece
referido ou estrutura a articulação entre as personagens e os próprios
eventos da trama, dando a ela uma configuração espacial específica.
A primeira vez que o número três aparece explicitamente enunciado,
é logo na cena de abertura, quando o coro situa no tempo e no espaço
o episódio que irá se encenar, ele canta: “A ação passa-se em Tebas
(Cadméia), diante do palácio do rei Édipo. Junto a cada porta há um
altar, a que se sobe por três degraus”11. A cena em torno da qual gira
toda a trama: o assassinato de Laio, rei de Tebas, por seu filho, Édipo,
que desconhece essa paternidade, se passa numa encruzilhada de
três caminhos12 . Mais tarde, Jocasta, mãe de Édipo e viúva de Laio,

11
Ver em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf,
p. 1. Acesso em: 25 nov. 2018.
12
Idem, p. 35.

63
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

precisa essa informação: Laio foi morto na Fócida, no lugar exato em


que o caminho se bifurcava nas estradas que iam para Delfos e para
Dáulis13. Se tomamos o ponto em que Laio foi morto e as duas estradas
que daí partiam para outros destinos, vemos se desenhar uma figura
triangular, sendo o ponto do assassínio o vértice da figura. Mas o
desenho triangular também aparece em outra cena decisiva do enredo:
Laio, ao saber por um oráculo que seria morto pelo próprio filho,
resolve matá-lo. Ele leva-o até um monte, perfura os seus dois pés, passa
uma corda pelas junturas dos seus tornozelos e amarra-o a uma árvore.
Podemos visualizar a corda esticada entre os dois pés do menino e sua
amarração na árvore como dando origem a uma figura triangular14.
O número três retorna a surgir quando o mensageiro que vem trazer,
desde Corinto, a notícia da morte de Políbio, que Édipo pensava ser
seu pai, é inquirido por ele sobre seu passado. Ele termina por revelar
que Édipo era filho adotivo de Políbio, que ele mesmo o recebera ainda
criança das mãos de um servo de Laio, que salvara a criança da morte
e a levara para o estrangeiro. Ao tentar fazer o servo relembrar quem
ele era, o mensageiro se refere ao fato de que ambos, na época, eram
pastores, pastorearam lado a lado, em espaços contíguos, por cerca de
três semestres, ele, o mensageiro, levando dois rebanhos e o servo de
Laio levando um rebanho15. Em dado momento, ao tentar consolar
Jocasta, que se inquieta com a revelação iminente de seus segredos,
Édipo afirma: “Mesmo que eu tivesse sido escravo desde três gerações,
tu não serás humilhada por isso!”16.

13
Idem, p. 36.
14
Idem, p. 36.
15
Idem, p. 57.
16
Ver em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf,
p. 53. Acesso em: 25 nov. 2018.

64
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

Mas, o que levou Freud a tomar esse mito para figurar o


complexo, as relações desejantes que estruturariam a vida psíquica de
cada ser humano, que seriam o núcleo de constituição da sexualidade,
foi o triângulo incestuoso constituído por Laio, Jocasta e Édipo. Como
sabemos, em Totem e Tabu, Freud advoga que um parricídio estaria na
origem da constituição da vida social e civilizada17. A disputa em torno
da fêmea e mãe teria levado a uma horda de irmãos a matar o pai que
lhes interditava o acesso ao ato sexual. A culpa gerada por esse parricídio
original teria instituído a proibição do incesto. Lei, interdição, limite
inicial, codificação primeira que teria feito os homens abandonar o
estado de horda primitiva para adentrar no mundo social. Na verdade, a
narrativa do mito de Édipo Rei dá origem a várias triangulações paren-
tais, todas elas interditas. Ao triângulo pai, mãe e filho, vêm se juntar
os triângulos mãe, filho e esposo; marido, esposa e mãe, constituídos
por Édipo e Jocasta e pai, irmão e filhos, constituído por Édipo e os
filhos que nasceram de seu casamento incestuoso com a mãe. Ainda
há o triângulo constituído por Édipo, a mãe Jocasta e o tio Creonte,
a quem Édipo julga, erroneamente, ser seu inimigo e aspirar ao seu
lugar de poder, a seu posto de rei. Todos eles são triângulos parentais
endogâmicos que, como sabemos, a partir das pesquisas etnográficas,
era a forma de descendência que tinha como personagens nucleares a
figura da mãe e do tio materno18. A dominação patriarcal, a lei do pai,
para ser instituída, teve que interditar a descendência endogâmica e
instituir a exogamia. O trágico enforcamento final de Jocasta figura a
punição por ter violado a lei paterna, por ter violado a lei da proibição
do incesto, por ter, mesmo sem querer, reinstituído a endogamia e a lei
materna. Mesmo sendo vítima do fado, do destino, Jocasta termina por

17
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. São Paulo: Penguin, 2013.
18
Ver: LEVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares de parentesco.
Petrópolis: Vozes, 2012.

65
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

contribuir, involuntariamente, para o assassinato do pai e para a reinsta-


lação de códigos mais antigos, que tinham ficado sepultados em tempos
míticos19. Édipo figura o retorno do recalcado, o retorno de uma lei
extinta e superada, de um passado que deveria permanecer esquecido.
No pensamento freudiano, Édipo figura o recalque de nossos primeiros
desejos, que se voltam para a própria mãe. Primeiro objeto de desejo
e de prazer, o corpo materno, a presença e a figura materna devem ser
recalcadas, devem ser sublimadas, direcionando-se o desejo para outros
objetos. Esse interdito, essa proibição estruturaria nosso próprio Eu, ele
seria nuclear na constituição do sujeito, da subjetividade. A lei do pai,
o superego, as normas sociais, reprimindo e redirecionando as pulsões
edipianas, o id, conformaria, daria forma ao ego20.
Mas, o que representava essa presença reiterada das figuras
trípticas, triangulares, na estrutura narrativa da tragédia grega? Para
os gregos, o triângulo era a figura que representava a perfeição e a
harmonia. Os três ângulos do triângulo eram associados ao início,
meio e fim da existência, figuravam também a tríade corpo, alma
e espírito. O triângulo equilátero representava o equilíbrio e a
própria divindade, por figurar uma totalidade integrada, um espaço
perfeitamente delineado e delimitado21. Por representar o embate, o
agon entre a lei e a transgressão, entre a ordem e a desordem, entre o
limite e a desmesura, entre a contenção e o deslimite, o enredo trágico
estrutura-se por meio de triangulações de personagens e situações22 .

19
LACAN, Jacques. Nomes-do-pai. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
20
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros
textos (1901-1905). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
21
Ver: https://www.dicionariodesimbolos.com.br/triangulo/. Acesso em: 25 nov.
2018.
22
ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Lisboa: Edições 70, 2008; LESKY,
Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 2015.

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ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

À totalidade perfeita e harmônica que deve ser o cosmos, a cidade e a


vida social, figuradas pelo triângulo, surgem as ameaças da abertura,
do rompimento, sempre que um dos personagens teimam em violar o
equilíbrio e estabelecer o reinado da hubris, da desmesura, do caos. O
triângulo representava a vitória da racionalidade geométrica diante da
caoticidade do cosmos. As forças demoníacas são aquelas que levam
à divisão, à diferenciação, à segmentação. No pensamento cristão, a
Santíssima Trindade vai figurar essa vitória da ordem divina sobre
a desordem demoníaca23. A trindade também representa o humano
sempre colocado na encruzilhada dos caminhos que levam ao bem
ou ao mal. Édipo escolhe o caminho errado ao assassinar seu pai, na
encruzilhada em que o destino lhe colocou. Ele poderia ter escolhido
outro caminho, mas preferiu, impelido pelo destino, a trilhar o
caminho que lhe levou à perdição e ao infortúnio. A Fortuna, que
está em questão na narrativa de Édipo Rei, já que as artes divinatórias
e os oráculos estão sendo questionados pela prevalência da ciência,
da sabedoria e da razão humanas, naquela Grécia que dava origem
à filosofia e à historiografia, e começava a questionar seus mitos e
deuses, termina por se impor, por decidir, por meio de seus jogos e
artimanhas, o destino de Édipo24. O triângulo, e isso é significativo,
também remetia ao órgão sexual feminino. As triangulações em que
se desencaminha e se perde Édipo tem como centro a disputa e a
rivalidade em torno da vagina de Jocasta, de onde ele nasceu e onde
ele, assumindo e tomando o lugar do pai, vai gerar uma descendência
maldita, que macula a própria vida da cidade e provoca a ira de Apolo,
deus que representava a própria lei divina, que tinha a tarefa de tornar

23
POITIERS, Santo Hilário de. Tratado sobre a Santíssima Trindade
(Patrística 22). João Pessoa: Paulus, 2014.
24
DETIENE, Marcel. Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia
antiga. São Paulo: Loyola, 2008; DETIENE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre.
Métis: as astúcias da inteligência. São Paulo: Odysseus, 2008.

67
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

os homens conscientes de seus erros e puni-los quando transgrediam


essas leis. A letra grega delta era figurada por um triângulo e remetia
ao encontro de dois braços de rio com o mar, geografia tão significativa
para os gregos.
A crítica de Deleuze e Guattari ao pensamento freudiano parte,
justamente, da contradição e da antinomia que localizam entre um
pensamento dominado pelas imagens temporais e a presença desse
cerne, desse centro do pensamento, que é espacializado. Na forma
de figurar o desejo, Sigmund Freud, e mesmo Lacan, não conseguem
escapar das dicotomias instituintes da metafísica ocidental. No
alvorecer da modernidade, o Iluminismo já tivera que conviver com a
contradição entre um mundo e um Homem que se pensam e se dizem
como existências históricas, como seres que se formam e se dizem no
tempo, e um Ser, uma essência que escapa da historicidade, que escapa
do devir25. Em Freud, observarão criticamente Deleuze e Guattari,
Édipo é atemporal, Édipo é uma estrutura, um complexo, um conjunto
de relações que atravessam o tempo, que escapam da mudança26. Para
eles, Freud eterniza, na verdade, a família nuclear burguesa. A tragédia
Édipo Rei, com suas triangulações parentais, caiu como uma luva para
figurar essa tríade papai-mamãe-filhinho, que Freud quis universalizar
a partir de uma realidade histórica especifica27.O triângulo edípico,
como núcleo de significação da vida subjetiva, esse significante
despótico que se impõe como resultado prévio de qualquer esforço
de análise e interpretação, apontaria para um estilo de pensamento,

25
CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Campinas: UNICAMP, 1997.
26
Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O imperialismo de Édipo. In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. São Paulo: Editora 34, 2011.
27
Ver Psicanálise e familismo: a santa família. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011.

68
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

para uma forma de pensar que tem no fechamento, na limitação, na


delimitação, na contenção seus procedimentos básicos28. Pensar o
desejo como resultado de uma falta, como produto de uma ausência
denunciaria uma forma de figurar o desejo que o toma como uma
força, uma energia, um impulso na direção de um dado objeto que o
completaria29. O mito do andrógino, do ser redondo e completo, que
se vê cindido pela espada de Zeus e condenado a errar em busca de sua
outra metade, um ser incompleto, que é constantemente impelido pela
ausência, pela falta da parte que o complementaria, parece assombrar
a forma como Freud figura o desejo30.
Podemos dizer, portanto, que há uma diferença definidora
entre a forma como Deleuze e Guattari pensa e figura o desejo e a
forma como Freud pensou e figurou o desejo. Para Deleuze e Guattari,
o desejo não triangula, o desejo não busca a completude, o fecha-
mento, a perfeição e a harmonia do redondo ou do triangular31. Chama
atenção o fato de que a construção de tríadestambém define o estilo de
pensar e de filosofar deleuziano. Gilles Deleuze vai valorizar o terceiro
termo, quase sempre excluído pelas dicotomias, pelos dualismos,
pelos maniqueísmos presentes no pensamento Ocidental32 . Deleuze
denuncia o que chama de exclusão do terceiro termo e sua filosofia se
esforça para integrar esse termo terceiro. Ele seria a própria diferença,
ele possibilitaria o primado ontológico da diferença, em detrimento

28
Ver Repressão e recalcamento. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O
anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011.
29
Ver As máquinas desejantes. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O
anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011.
30
LIBIS, Jean. El mito del andrógino. Madrid: Siruela, 2001.
31
Ver O todo e as partes. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-É-
dipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011.
32
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

69
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

de uma ontologia que valoriza a semelhança, a identidade, a conti-


nuidade, prevalecente no pensamento ocidental. Se a trindade cristã
termina por se revelar uma unidade, se a três pessoas da Santíssima
Trindade se dissolvem e se fundem em uma só – o próprio Deus, o
Uno, a Unidade, a Verdade, o Todo –, a filosofia deleuziana vai fazer
da diferença, do disparate, da dispersão, da bifurcação, do simulacro,
da invenção de um terceiro termo, os procedimentos prevalecentes em
sua maneira de pensar e filosofar33. Enrabar o pensamento, tomar por
trás os pensadores e fazê-los parir filhos bastardos, filhos não previstos
em seu pensamento, definia um estilo de pensar e de dar forma ao
pensamento34 . Édipo enrabando Laio, ao invés de copular com
Jocasta, e fazendo-o parir filhos mais monstruosos e malditos que sua
prole incestuosa. Para Deleuze, o desejo é da ordem da maquinação,
o desejo não é, não possui ser, o desejo se faz, o desejo se produz no
encontro dos corpos, nas relações entre os corpos, sejam humanos
ou não. O desejo é fluxo, o desejo se constitui de linhas virtuais que
se atualizam em dada configuração concreta do real. O desejo não se
aloja na interioridade de um inconsciente ou de um corpo, de uma
natureza, o desejo só existe na superfície, ele desenha planos, ele
produz agenciamentos e só existe agenciado35.
O desejo não possui forma, ele é informe, mas virtualmente
pode se atualizar em inúmeras formas, daí porque ele não pode

33
No livro O anti-Édipo podemos encontrar as seguintes tríades: a síntese conectiva
de produção, a síntese disjuntiva de registro e a síntese conjuntiva de consumo;
a máquina territorial primitiva, a máquina despótica bárbara e a máquina capi-
talista civilizada. Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo,
p. 95-104, 104-116, 116-145; 194-205, 255-265 e 295-318.
34
O abecedário Gilles Deleuze. Entrevista concedida a Claire Parnet, novembro
de 1995.
35
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “As máquinas desejantes”. In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-71.

70
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

ser figurado por triângulos, uma figura fechada e delimitada, mas


sim por linhas que são o princípio básico de qualquer forma36. O
desejo percorreria três linhas: a primeira linha, a linha de fuga ou de
desterritorialização, já que o desejo tem a potência de caotização, de
desmanchamento de territórios, ele, em seu constante movimento,
assume formas para depois dissolvê-las, para levá-las à ruína. Enquanto
o pensamento freudiano, por meio do mito edipiano, procura domes-
ticar e domar a potência dissolvente do desejo, procura afirmar que
o desejo sem limites inviabiliza a vida social e civilizada, Deleuze e
Guattari enfatizam a potência criativa e produtiva do desejo, exata-
mente pela sua potência transgressiva e deformadora. O desejo por
intermédio da segunda linha, a linha de simulação, produziria territó-
rios para serem habitados pelos sujeitos, cujos lugares esses territórios
designariam. Linha caracterizada pela criação, pela capacidade de
diferir, de bifurcar, de criar o diferente a partir do uno, de fazer o
todo se multiplicar, se atualizar em distintas formas. Na terceira linha,
o desejo se territorializa, passa de virtual a atual, ganha em realidade
e materialidade37. Deleuze vai buscar em Bergson a diferença entre
possibilidade e virtualidade para realizar a crítica ao pensamento
freudiano. Chamamos de possibilidade aquilo que estaria destinado
a se tornar real, mas ainda não o é. Para Deleuze, Bergson vê aí um
falso problema e uma falsa divisão, pois só tendemos a dizer que algo
era uma possibilidade quando ela se torna real, não havendo entre eles
diferença de natureza. Para Bergson, o virtual não se contrapõe a real,
mas ao atual, o virtual possui a potência de se atualizar, sem que para

36
ROLNIK, Suely. Linhas de vida. In: ROLNIK, Suely. Cartografia senti-
mental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação
Liberdade, 1989.
37
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “As máquinas desejantes”. In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-71.

71
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

isso necessariamente se torne real. O virtual está sempre se atualizando


por meio de formas de realidade diversas38. O mesmo aconteceria com
o desejo, não há uma forma, uma figura fixa para o desejo, pois ele é
movente, é movimento, é maquinação incessante, ele adquire formas
as mais diversas. O desejo é do plano do energético, é o impulso vital,
ele é fluxo e corte, ele é acoplamentos e desacoplamentos entre os mais
diversos corpos39.
O pensamento de Freud toma forma numa escrita que busca a
clareza, a imagem precisa, o polimento racional de cada formulação,
de cada argumento. Seu pensamento nos remete para a forma clássica,
para o estilo clássico, em que a limpidez e precisão de cada imagem
utilizada é uma homenagem a uma racionalidade que se esmera em
pôr tudo em ordem, em esclarecer e dar a todas as coisas a forma mais
elaborada. Um pensamento que investe no desfazimento de todos os
mistos, de todas as misturas, de todas as confusões. Um pensamento
no qual cada conceito brilha por sua limpidez, por sua elaboração
trabalhada, como se possuíssem uma superfície reluzente e brilhante40.
Um pensamento que investe nas definições, na hierarquização, na
classificação, no deslindamento das dúvidas e vacilações, como se seu
pensar fosse como a faca só lâmina cabraliana41. O pensamento de

38
DELEUZE, Gilles. O impulso vital como movimento da diferenciação (Vida,
inteligência e sociedade). In: DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo:
Editora 34, 2012. p. 79-99.
39
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. “As máquinas desejantes”. In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-71.
40
GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
41
MELO NETO, João Cabral de. “Uma faca só lâmina ou serventia das ideias
fixas”. In: MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. Rio de Janeiro:
Sabiá, 1968. p. 185-199.

72
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

Gilles Deleuze e Félix Guattari ganha forma numa escrita barroca, na


qual se homenageia e se pratica a arte da dobradura, do plissado, da
mistura. Um pensamento que se dispõem em volutas, em volteios, em
filigranas. Um pensamento que conecta e justapõe os mais diversos
materiais, os mais distintos conceitos, vindos de saberes e disciplinas
as mais diferentes42 . Se em Freud trata-se de a tudo dar a sua devida
definição, a sua devida identidade, investindo na separação e disjunção
de todos os conceitos, em Deleuze e Guattari as aproximações, as
coalescências, as confusões proliferam. A um pensamento da ordem
e do discernimento, se contrapõe um pensamento turbilhonante e
proliferante. Um pensamento de formas acabadas é colocado diante
de um pensamento do devir, da metamorfose, da diferença.
Nesses dois estilos de pensamento, o desejo só poderia passar
por figurações diversas. O desejo como produto de uma história,
de uma formação, de uma constituição, de acontecimentos que se
organizam numa linha temporal, dá lugar a um desejo que é puro
presente, maquinação contínua e constante, que configura linhas e
planos de consistência, que agencia matérias e formas de expressão,
que se articula num reticulado, em redes que o espacializa. Se há
no pensamento freudiano uma geografia vertical do desejo, há em
Deleuze e Guattari uma geografia horizontal do desejo. A escavação
freudiana é substituída pela proliferação deleuzo-guattariana. Não é
que a categoria tempo não emerja na análise do desejo feita por Deleuze
e Guattari, o desejo é da ordem da historicidade, mas a historicidade
não mais é pensada na visão historicista de acúmulo e desdobramento
num eixo vertical do tempo. A historicidade do desejo surge do fato
de que ele é inseparável de sua produção no sócius, na vida social. O
desejo é da ordem da produção e não se separa dos modos de produção
prevalecentes em uma dada sociedade. O desejo não é da ordem da

42
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991.

73
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

interioridade, da intimidade, da privacidade, não é da ordem da


personalidade, do caráter ou da individualidade, esse é o modo de
representação burguês do desejo. É a forma burguesa de captura
do desejo e de sua colocação à serviço da produção da sociedade
capitalista. Em Deleuze e Guattari, o desejo é uma categoria central
da história à medida que ele participa da produção e reprodução da
própria ordem social43.
Daí a crítica feita em O Anti-Édipo, as imagens papai-mamãe
do desejo, ao seu aprisionamento à família burguesa, ao seu caráter
personalista e individualista. Para Deleuze e Guattari o desejo é da
ordem do político, da micropolítica, já que o desejo media todas as
relações sociais, o desejo é relacional, é agônico, é diferencial44. O desejo
se faz e se passa entre os corpos, ele produz corpos que são inseparáveis
de seus agenciamentos sociais, econômicos, políticos, éticos, estéticos.
Fazemos corpo com toda e qualquer matéria ou forma de expressão,
fazemos corpo com todas as matérias que nos rodeiam e nos chegam
até os sentidos, até a percepção. O pensamento é também da ordem do
desejo, o conceito é matéria com que também se faz corpo45. A micro-
política indaga das formas que o desejo adquire em dados contextos
sociais e históricos. O desejo não se reduz ao drama ou a tragédia
passada no leito ou na cama, como é o caso de Édipo Rei. Sendo um
dos primeiros produtos intelectuais nascidos dos impulsos libertários
trazidos pelo maio de 1968, sendo, como aquele movimento, uma

43
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução à esquizoanálise”. In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 361-534.
44
GUATTARI, Félix. “Desejo e História”. In: GUATTARI, Félix. Micropolítica:
cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 239-329.
45
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Os personagens conceituais”. In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? São Paulo: Editora
34, 1992. p. 81-109.

74
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

recusa em separar o corpo e a política, o sexo e a revolução, o desejo e o


modo de produção, O Anti-Édipo era também, a seu modo, um ataque
ao mandarinato, aos poderes e censores que procuravam controlar o
pensamento e a revolta, dentro e fora da universidade. Fazendo uma
leitura propositadamente provocativa tanto de Marx, quanto de Freud,
o livro pode ser visto como um revide tardio ao livro que se tornou a
Bíblia da juventude de maio de 1968, Eros e Civilização, de Herbert
Marcuse46. Enrabando tanto o guru dos revolucionários, como o guru
dos saberes psi, atingindo por tabela as figuras tutelares de Jean-Paul
Sartre e Jacques Lacan, os mandarins de cada área, O Anti-Édipo, como
vai definir Michel Foucault, na apresentação que para ele escreve, seria
um manual para uma vida não fascista, por retirar o desejo de todos
os seus aprisionamentos personológicos e individualistas, por fazer
do desejo uma força social, por levá-lo para longe de suas figurações
burguesas e capitalistas, mostrando ser estas apenas uma das várias e
possíveis formas de sua encarnação47.
Se a teoria freudiana tem na forma neurose o cerne de suas
reflexões sobre o desejo e a vida sexual humana, as definindo como
as tentativas de lidar com traumas e dramas inconscientes, Deleuze
e Guattari irão privilegiar a forma psicose, mas especificamente a
esquizofrenia. Retirando desse conceito qualquer sentido clínico
ou patológico, eles valorizarão a atitude esquizo por se pautar pelo
princípio da divisão e da diferenciação. Enquanto Freud valorizava nas
neuroses o funcionamento da repetição dos sintomas, que permitia
a identificação e a personificação do desejo individual do paciente,
por meio de sua história de vida, da busca da origem do trauma que a

46
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
47
FOUCAULT, Michel. “Introdução à vida não-fascista” (Prefácio). In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Anti-Oedipus: capitalismo and
schizophrenia. New York: Viking Press, 1977. p. XI-XIV.

75
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

provocava, Deleuze e Guattari valorizam na esquizofrenia, justamente,


a impossibilidade do retorno à identidade e a prevalência da diferença.
Para Deleuze e Guattari, o desejo é da ordem do esquizo, o desejo
opera diferenciando, criando, inventando outros possíveis. A repetição
esquizo é a repetição da diferença, não a repetição do mesmo, da seme-
lhança. Enquanto a anamnese da neurose permitia o funcionamento
historicista do pensamento freudiano, da sua metafísica das origens,
a esquizofrenia serve como uma figura para dar forma ao pensamento
espacializante, ao pensamento da diferença de Deleuze e Guattari.
Enquanto na neurose parecia operar um princípio de acumulação,
de justaposição, na esquizofrenia operaria um princípio de cisão, de
fragmentação, de diferenciação, de multiplicidade. Para Deleuze e
Guattari, a imagem da neurose não era uma boa imagem para figurar o
funcionamento do desejo. A esquizofrenia era uma imagem adequada
para figurar o desejo em seu funcionamento conectivo e proliferante.
Não se trata nunca de se perguntar pelo ser do desejo, pelo o que ele
é, mas sim de se interrogar como ele funciona, em dada contexto, em
dadas relações, em dadas situações históricas48.
Se o triângulo edipiano, se as triangulações do desejo presentes
no texto de Édipo Rei, representavam bem o estilo de pensamento
racionalista clássico, do qual Freud era um herdeiro, por sua imagem de
perfeição, completude e totalidade, podemos dizer que o pensamento
deleuzo-guattariano provoca um rompimento, um arrombamento
dessa figuração triangular e triádica para o desejo, à medida que em seu
barroquismo aposta nas misturas, nas imperfeições, na fragmentação,
na disjunção, na dispersão. Utilizando categorias que são centrais
no pensamento dos dois filósofos franceses, podemos dizer que
enquanto o pensamento freudiano, que o Édipo freudiano remete

48
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução à esquizoanálise”. In:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizo-
frenia. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 361-534.

76
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
e figuras do desejo no Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari

para um pensamento arborecente, um pensamento que busca raízes,


que procura pivôs ou eixos verticais de sustentação, em que todas as
variações e ramificações saem e estão presas a um mesmo vetor central,
em que nada escapa ou foge de uma dada direção ou orientação, de
uma dada teleologia do pensamento, o pensamento de Deleuze e
Guattari, o pensamento de O Anti-Édipo, remete para um pensamento
rizomático, um pensamento descentrado, um pensamento cuja forma,
cuja figura se prolonga na horizontalidade ao invés de radicar-se e
buscar a verticalidade, o alto49. Ele opera por ramificações constantes,
por derivações, por saltos, por enervações. Um pensamento aéreo,
volutuoso, ondulante, serpenteante, que opera por dobradura e
espaçamento. Um pensamento do qual ideias, enunciados, conceitos
escapam, se esquivam, se renovam por repetição diferenciadora. Nessa
forma de pensamento, o desejo é tomado como linhas e fluxos que
se conectam e se cortam, que se interceptam e formam redes, que
constroem planos deimanência e de multiplicidades. Nessa forma
de pensar, não há fechamento, limitação, contenção possível para o
desejo, ele está sempre agenciando, produzindo conexões aberrantes,
maquinando, esquizofrenizando. Não há triângulo que encerre,
contenha e totalize o desejo. O desejo opera na transversalidade,
na transumância. O desejo é o errante e o exiliado por definição, os
grandes temores de Édipo, como de qualquer cidadão grego. O desejo
nada tem haver com a dicotomia trevas e luz, sombras e iluminações.
O desejo não é cego, nem faz cegar, pois ele nada tem que ver com
um regime de visualidade. O olho ou a luz não são boas imagens para
figurar o desejo. O desejo passa, circula, é da ordem do movimento,
do deslocamento, da bifurcação, é da ordem dos encontros, das rela-
ções, das afecções, dos afetos. Édipo, após descobrir os seus crimes,

49
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução: rizoma”. Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 11-37.

77
Durval Muniz de Albuquerque Júnior

perfura os seus próprios olhos que já estariam cegos pelos seus desejos
de glória e poder. Ele suplica a Creonte que o expulse da cidade, que
o faça errar, que o mande para o exílio onde ele encontraria a morte.
Mas, Creonte prefere encerrar e ocultar Édipo entre as muralhas
do palácio50. Aprisionado, encarcerado, fechado, o desejo edipiano
rodopia em torno das mesmas figuras, gira em torno do papai-mamãe,
da cama nupcial, do falo ausente de Laio, do poder onipresente de
Apolo. Deleuze e Guattari se propuseram a nos libertar de Édipo e de
suas figuras do mesmo, do trágico, da repetição, rompendo com toda e
qualquer fechação, abrindo nosso desejo para a alegria dos encontros,
das tramas, das maquinações, das traquinagens.

50
Ver em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.pdf,
p. 65, 71-72. Acesso em: 25 nov. 2018.

78
ROMPENDO COM AS FECHAÇÕES: Formas do pensamento
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82
ANTES DAS TRAGÉDIAS
FIGURAÇÕES DO MITO DE ÉDIPO1
Guilherme Gontijo Flores

Do boi só se perde o berro


E é justamente o que eu vim apresentar
(Ednardo)

O mito grego de Édipo e de sua família começa muito antes de Sófocles


e termina, se é que um mito de fato termina fora do humano, muitís-
simo depois, o que poderia se confirmar com a famosa afirmação de
Wittgenstein de que Freud não teria interpretado o mito de Édipo, mas
criado um mito de Édipo. Suas torções podem, no entanto, ser encon-
tradas em momentos singulares, com a força ambígua de supressão
do tempo e de exposição ao enraizamento social, como elaborava
teoricamente Claude Lévi-Strauss já na primeira de suas Mitológicas
(2004). Mas, aqui, não quero, como o antropólogo francês, entender
de que maneira “os mitos pensam entre si” (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.
31), nem estabelecer uma lógica subjacente a essas torções; quero, pelo
contrário, contrastar algumas de suas relações históricas e literárias
para pensar o que sabe de si, quem sabe de si; por isso, também me
distancio da Análise estrutural do mito do próprio Lévi-Strauss, em
que ele se detinha precisamente na figura de Édipo para formular
seu pensamento; nem buscarei aqui uma etiologia clara entre mito e
rito nas origens do mundo grego, ou uma cena diacrônica da história

1
O presente artigo é extraído de um pequeno livro que venho escrevendo, com
o nome atual de Q que sabe de si: Édipo entre o saber do desespero, a memória e
a Fúria, que foi iniciado a partir dos debates no evento sobre as recepções de
Édipo, realizado em 2018, na UFRN.

83
Guilherme Gontijo Flores

das religiões, ao modo de Mircea Eliade, muito embora todos esses


pontos tenham importância real para um conhecimento amplo do
que está em jogo nas relações entre culto, mito e literatura. Assim,
mais do que extrair qualquer estrutura na história de Édipo, pretendo
apenas mostrar algumas torções de sua aparição no fundo de suas
potencialidades políticas, mas retorcendo ainda mais seu ciclo infernal
entre saber e agir. Entendo, como Paul Veyne ao tratar de Píndaro, que
o mito “não cumpre uma função social, não tem uma mensagem como
conteúdo; ele faz o que a semiótica passou a chamar recentemente de
papel pragmático: ele estabelece certa relação entre os ouvintes e o
próprio poeta” (VEYNE, 2014, p. 41); ao que eu acrescentaria: entre
os ouvintes, na medida em que partilham uma comunidade, entre
pessoas que se encontram num mundo partilhável; ou seja, o mito, a
cada nova execução, performa as relações e funda verdades que, por sua
vez, estabelecem as relações de um convívio possível. Por isso, como
a vida, o mito não estanca, porque, mesmo que reproduzido mate-
rialmente com toda minúcia, ele se dá na trama de relações de cada
contexto, ele conclama a pervivência, que se dá em qualquer estudo,
paráfrase, tradução, pensamento que o ponha de novo em movimento.
Diante disso, ainda que brevemente, procuro aqui ver essas torções
do mito de Édipo como modos possíveis de estabelecer relações num
auditório e numa vida privada. Para tanto, seguirei em muitas partes
os trabalhos anteriores que já fizeram boa parte do caminho, como
é o caso do esclarecedor artigo de Maria Christina de Caldas Freire
Rocha, “O mito de Édipo” (1997), ainda que por vezes ingênuo e
estrutural demais, do belo livrinho Oedipus, de Lowell Edmunds
(2006) e do monumental O reinado de Édipo, de Ordep Serra (2007),
três textos tirados de um sem número de livros e artigos voltados ao
tema; faço e anuncio sem qualquer pretensão de comentar a fundo as
interpretações de cada obra estudada, ou de apresentar uma exegese
detalhada que esgotasse ao menos um de seus aspectos. E a partir desse

84
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

limite, ou fracasso autoimposto, que parto, ao modo de um exílio. Do


mesmo modo, neste espaço que busco e tateio, deixo de lado as obras
visuais, que compõem um legado paralelo em diálogo constante com
a poesia e a prosa. Por ora, a escuridão visível.
Segundo Patricia D’Andrea (2005), é provável que a figura
de Édipo tenha sido, no início, apenas um δαίμων (daimon) relacio-
nado ao ritmo anual da vegetação, portanto, um ser que morreria
e renasceria segundo as estações; sua morte teria algum caráter de
infâmia ou desonra, que, por um ciclo de purificação ou expiação,
traria o retorno dos frutos; ou seja, o culto se estabelecia segundo
um paradoxo de impureza purificadora, com morte e renascimento,
que aparece também em outros mitos gregos, tais como o de Baco ou
de Perséfone. Tudo indica que é apenas num estágio posterior que
Édipo passa a ser apresentado como parricida, e que o incesto é um
acréscimo ainda mais tardio, talvez por algum procedimento sincrético
que hoje permanece pouco claro, como já não seria mais rastreável
para os gregos do período clássico. Com isso, é difícil definir em que
momento Édipo passa a receber propriamente o culto típico dos
heróis em algumas pólis, tais como Tebas, Esparta e, posteriormente,
Atenas, por vezes junto com Laio, por vezes junto com algum filho;
mas é provável que seja pelo menos de origem micênica, como atenta
Maria Helena da Rocha Pereira (1970). Seja como for, é de primeira
importância lembrar que Édipo não era apenas uma história ficcional,
mas um mito (no que o termo μῦθος tem de ambíguo entre história e
estória), na medida mesma que estabelece um vínculo com o tempo
imemorial da narrativa e a sua força etiológica que regula o presente
humano e demanda no rito sua reinstaurarão regular. Se pudermos
acreditar por exemplo em Lisímaco (FHG 3, 6), historiador helenís-
tico do século III a.C., temos a seguinte narrativa sobre a origem de
um culto: Édipo, depois de morto, não podendo ser enterrado em
Tebas como ímpio, teria sido levado para Ceos; no entanto, quando

85
Guilherme Gontijo Flores

infortúnios aconteceram na região, o povo julgou que a culpa era do


cadáver poluto, então ele foi exumado e levado até Etéonos, onde, por
graça de Apolo, pôde ser enterrado junto a um santuário de Deméter
(deusa significativamente ligada à agricultura), que passou a se chamar
Edipodeu (Oidipodeion). Androcião (FHG 1, 31), escritor do século
IV a.C., narra algo muito similar: Édipo, banido em vida por Creonte,
foi buscar abrigo em Colono, onde também se vinculou ao santuário
de Deméter e de Atena Poliuco, pedindo a Teseu que seu jazigo
fosse secreto, para que o cadáver não fosse maltratado pelos tebanos.
Mesmo que os relatos de Lisímaco e de Androcião sejam posteriores
às tragédias atenienses que tratam de Édipo, eles nos oferecem uma
visão sobre sua vida ritual, que é importantíssima para compreender
os movimentos do mito (sobretudo no caso de Édipo em Colono) numa
sociedade complexa. Edmunds (2006), no que é secundado por Serra
(2007), ainda mostra os vínculos do culto a Édipo com as Erínias, em
seguida, associa, um tanto livremente os cultos de Deméter com os
das Erínias, para chegar à conclusão interessantíssima de que Édipo,
Erínias e Deméter formariam um tipo de trindade. Pode ser precisa-
mente isso que esteja em jogo no testemunho de Heródoto (História,
4.149.2) a respeito de Esparta sobre os descendentes de Egeu:

Τοῖσι δὲ ἐν τῇ φυλῇ ταύτῃ ἀνδράσι οὐ γὰρ ὑπέμειναν τὰ τέκνα,


ἱδρύσαντο ἐκ θεοπροπίου Ἐρινύων τῶνΛαΐου τε καὶ Οἰδιπόδεω
ἱρόν· καὶ μετὰ τοῦτο ὑπέμειναν.<Συνέβη δὲ>τὠυτὸ τοῦτο καὶ
ἐν Θήρῃ […]

Os homens da tribo, sem conseguir manter os filhos, a partir


de uma profecia erigiram um templo às Erínias de Laio e de
Édipo, e a partir de então mantiveram os filhos. Fato similar
se deu na ilha de Teras […] (tradução nossa)

86
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

Não vou discutir os espinhosos caminhos dos cultos arcaicos,


mas é o ponto de partida fundamental para o percurso. É a partir desse
ponto que podemos passar a suas aparições na poesia e na literatura
grega do período arcaico e clássico.
Como o que nos interessa agora é sobretudo sua formulação
literária, começo com sua primeira aparição textual mais significativa,
em dez versos da Odisseia (11.271-280), quando Odisseu relata o que
viu no mundo dos mortos, citando algumas figuras:

μητέρα τ’ Οἰδιπόδαο ἴδον, καλὴν Ἐπικάστην,


ἣ μέγα ἔργον ἔρεξεν ἀϊδρείῃσι νόοιο
γημαμένη ᾧ υἷϊ· ὁ δ’ ὃν πατέρ’ ἐξεναρίξας
γῆμεν· ἄφαρ δ’ ἀνάπυστα θεοὶ θέσαν ἀνθρώποισιν.
ἀλλ’ ὁ μὲν ἐν Θήβῃ πολυηράτῳ ἄλγεα πάσχων
Καδμείων ἤνασσε θεῶν ὀλοὰς διὰ βουλάς·
ἡ δ’ ἔβη εἰς Ἀΐδαο πυλάρταο κρατεροῖο,
ἁψαμένη βρόχον αἰπὺν ἀφ’ ὑψηλοῖο μελάθρου
ᾧ ἄχεϊ σχομένη· τῷ δ’ ἄλγεα κάλλιπ’ ὀπίσσω
πολλὰ μάλ’, ὅσσα τε μητρὸς ἐρινύες ἐκτελέουσι.

Vi, depois dela, a mãe de Édipo, a bela rainha Epicasta,


a quem o filho, assassino do pai, por esposa tomara.
Nesse atrocíssimo crime a mãe dele insciente foi cúmplice.
Em breve os deuses, porém, aos mortais o ocorrido contaram.
Ele, trabalhos bastantes em Tebas sofreu primorosa,
quando dominava os Cadmeios, pelos desígnios dos deuses.
Ela, tomada de dor indizível, em trave elevada
corda sinistra passou e desceu para o do Hades palácio
de solidíssimas portas. Ao filho legou sofrimentos
inumeráveis, que Erínias maternas a ponto executam.
(tradução de Carlos Alberto Nunes)

87
Guilherme Gontijo Flores

Aqui, nós já temos, em forma concisa, tanto o parricídio, quanto


o incesto com a mãe2 , que se chama Epicasta, um nome comum parti-
lhado por outras figuras míticas e aparentemente históricas; temos já
uma informação vaga de que os crimes foram de algum modo revelados
pelos deuses (não sabemos se antes, na forma oracular, ou depois), que
Édipo teve trabalhos entre os descendentes de Cadmo (os tebanos) e
que Epicasta teria se suicidado por enforcamento, deixando a Édipo
o sofrimento causado pelas Erínias, deusas encarregadas de punir os
crimes familiares, numa possível sugestão de herança do crime e de
sua punição. Aqui, portanto, uma certa ideia de miasma familiar, um
crime que precisa ser expurgado, já toma discreta forma, bem como um
possível vínculo etimológico entre Édipo e a visão/saber (Οἰδιπόδαο/
ἴδον, com oσ verbos εἴδω e οἶδα) que ainda será desenvolvido em algumas
obras. O nome Epicasta poderia ser traduzido como “a sobressalente”,
“a destacadíssima”; por isso é interessante contrastar como, nas versões
posteriores, Epicasta passa a aparecer como Jocasta, que poderíamos
traduzir como “a sobressalente/destacada por causa do filho” (ὑιός), o
que parecer ser um elemento a mais para centrar sua figura em torno
dos crimes familiares. Em Homero, no entanto, a presença de Epicasta
na lista de punidos no Hades, indicaria mais uma atenção reverente ao
ouvinte da épica, para pensar sobre as punições contra os crimes exem-
plares: nesse sentido, o ciclo tebano aqui indicado de viés pressupõe
certa difusão do mito de Édipo e Epicasta, ao mesmo tempo em que
faz dele um exemplo de conduta moral invertida, com os dois tabus
por excelência. O resultado é uma mãe suicida e um filho atormentado
por Erínias, o que é reforçado pela repetição do termo ἄλγεα (“sofri-
mentos”), e pelo termo ἄχεϊ (“tormento”), infelizmente não mantidos
na tradução citada. No entanto, um ponto é fundamentalmente diverso

2
Num escoliasta das Fenícias de Eurípides, lemos que Corina teria escrito uma
versão em que Édipo mata a própria mãe (Corina, frag. 672 Campbell)

88
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

das narrativas posteriores e mais conhecidas: Édipo permanece sendo


rei de Tebas, sem sofrer a cegueira ou o exílio; sua punição resta vaga,
porém exclusivamente divina, fora do campo humano. Na Ilíada
(23.679-80), em que é mencionado apenas de passagem, ele teria sido
morto (δεδουπότος . . . ες τάφον3); um escoliasta da passagem comenta
que Édipo, segundo Hesíodo, no Catálogo das mulheres [frag. 24], teria
morrido em Tebas, e não no exílio; e noutro fragmento do Catálogo
hesiódico, Édipo aparece descrito como πολυκηδής (“o de muitos
lamentos”); faria todo o sentido então seu culto como herói, já que
nessas variantes ele teria morrido em batalha, como seria esperado das
figuras cultuais do período. Nesses quatro casos, temos, ao que tudo
indica, uma concentração da poesia épica na dor e no clima fúnebre
do mito, aspecto que é reforçado posteriormente por Íbico (frag. S282
Campbell), onde o penar humano é comparado a quem esteja “vestido
com negros sofrimentos de Édipo ou de Ino” (Οἰδιπόδα καταεσσάμενος
δνοφέοις ἀχέεσσιν Ἰνοῦς), novamente com ênfase no termo ἀχέεσσιν, tal
como na Odisseia; porém, o escoliasta de Íbico comenta exatamente
que os negros sofrimentos estariam ligados aos crimes (πανουργίας) de
Édipo. Em todos esses casos, apesar das lacunas e da brevidade, há clara-
mente a potencialidade da transmissão do sofrimento como uma tópica
central do mito edipiano como o ponto de partilha (EDMUNDS,
2006)4; deles, o trecho mais longo, como eu disse, parece estabelecer
um exemplo moral invertido.

3
O termo poderia ser lido, com certa liberdade, como “morto em batalha”, mas
prefiro ao menos neste momento evitar qualquer acréscimo diante das lacunas
que a tradição nos revela.
4
Essa é provavelmente a tópica arcaica que é retomada já na primeira fala da
Antígone de Sófocles, quando a heroína lamenta nos vv. 4-6: Οὐδὲν γὰρ οὔτ’
ἀλγεινὸν οὔτ’ ἄτης ἄτερ / οὔτ’ αἰσχρὸν οὔτ’ ἄτιμόν ἐσθ’ ὁποῖον οὐ / τῶν σῶν τε
κἀμῶν οὐκ ὄπωπ’ ἐγὼ κακῶν. “Não existe dor, maldição, ignomínia, / ou desonra,
que eu não tenha visto ainda / figurar no rol dos teus e dos meus males” (trad.
Guilherme de Almeida.)

89
Guilherme Gontijo Flores

Apesar de escrever muito depois (séc. II d.C.), Pausânias


comenta o que seria o conteúdo de uma Edipodia, de uma Tebaida e
da série dos Epígonos, todas peças da épica arcaica, portanto contem-
porâneas do corpus homérico, e, depois de comentar a mesma passagem
da Odisseia, nos diz o seguinte (Descrição da Grécia, 9.5.11):

πῶς οὖν ἐποίησαν ἀνάπυστα ἄφαρ, εἰ δὴ τέσσαρες[γενεαὶ] ἐκ


τῆς Ἐπικάστης ἐγένοντο παῖδες τῷ Οἰδίποδι; ἐξ Εὐρυγανείας
δὲ τῆς Ὑπέρφαντος ἐγεγόνεσαν.δηλοῖ δὲ καὶ ὁ τὰ ἔπη ποιήσας
ἃ Οἰδιπόδια ὀνομάζουσι·καὶ <Ὀνασίας>Πλαταιᾶσιν
ἔγραψε κατηφῆ τὴν Εὐρυγάνειαν ἐπὶ τῇ μάχῃ τῶν παίδων.
Πολυνείκης δὲπεριόντος μὲν καὶ ἄρχοντος Οἰδίποδος
ὑπεξῆλθεν ἐκΘηβῶν δέει μὴ τελεσθεῖεν ἐπὶ σφίσιν αἱ κατᾶραι
τοῦπατρός· ἀφικόμενος δὲ ἐς Ἄργος καὶ θυγατέρα Ἀδράστου
λαβὼν κατῆλθεν ἐς Θήβας μετάπεμπτος ὑπὸ Ἐτεοκλέους
μετὰ τὴν τελευτὴν Οἰδίποδος. κατελθὼν δὲ ἐςδιαφορὰν
προήχθη τῷ Ἐτεοκλεῖ, καὶ οὕτω τὸ δεύτερονἔφυγε·

Mas como poderiam “em breve” os deuses contarem, se


nasceram quatro filhos de Epicasta com Édipo? Foi de
Eurigania, filha de Hiperfante, que eles nasceram. É o que
deixa claro o poeta da Edipodia; e também Onásias pintou
em Plateia um retrato de Eurigania chorando pela batalha
entre os filhos. Polinices partiu de Tebas enquanto Édipo
vivia e reinava, por medo de que caísse também sobre eles a
maldição paterna. Depois de ir para Argos e se casar com a
filha de Adrasto, retornou a Tebas, buscado por Etéocles após
a morte de Édipo. (tradução nossa)

Se pudermos confiar na antiguidade da Edipodia atribuída a


Cineto de Esparta (séc. VIII a.C.?) e mencionada por Pausânias, temos

90
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

aqui uma versão arcaica em que Édipo talvez cometesse o parricídio,


mas não o incesto, já que os filhos viriam de Eurigania (“a de queixo
largo” ou, mais provavelmente “a de ampla estirpe”)5. Para além disso,
ainda segundo Pausânias, a obra, ou outro epos da Tebaida, já desdo-
braria o crime de Édipo no fratricídio simultâneo dos irmãos Etéocles
e Polinices, em disputa pelo reino, após a morte do pai; tal como os
Epígonos narrariam ainda mais um combate da geração subsequente.
Pouco ou nada sabemos da Edipodia, exceto por um escólio do v. 1760
das Fenícias de Eurípides, porque o escoliasta retoma o sumário de
Pisandro. Nada nos garante sobre a integridade desse sumário, nem
sobre o fato de que ele resumiria de fato a Edipodia, mesmo assim
transcrevo abaixo o sumário já compilado e traduzido por Ordep
Serra (2007, p. 568):

Pisandro conta que a Esfinge foi enviada dos confins da


Etiópia aos tebanos pela ira de Hera, porque eles não casti-
garam a impiedade de Laio, de seu amor anormal por Crísipo,
a quem raptara em Pisa. Laio, na verdade, foi o primeiro que
concebeu este amor ilegítimo. Mas Crísipo, de vergonha, se
matou com sua espada. Então Tirésias, percebendo, como
adivinho, que Laio era odioso aos deuses, recomendou-lhe
desviar-se do caminho conducente a Apolo e, antes de mais
nada, sacrificar a Hera Prônuba; mas Laio fez pouco caso
dele. Laio partiu, portanto — e foi morto na encruzilhada,
ele e seu cocheiro também, depois que golpeou Édipo com o

5
O escólio ao v. 13 das Fenícias de Eurípides conta que Epimênides (frag. 15 Diels-
Kranz) narraria como Laio teria se casado com Euricleia e que desse casamento
nasceu Édipo. Ao que o escoliasta lembra que os nomes das mulheres de Laio
variam entre Epicasta e Euricleia; e que o das mulheres de Édipo variam entre
Epicasta e Erigane. Se considerarmos o que não está dito, seria possível pensar
em Euricleia (“a de ampla glória”) como uma variante do incesto matrifilial.

91
Guilherme Gontijo Flores

chicote. Após matá-los, [Édipo] enterrou-os com suas vestes,


mas tirou de Laio o boldrié e a espada, que passou a usar;
a carruagem, porém, fez retornar, para dá-la a Pólibo. Em
seguida, tendo resolvido o enigma, casou-se com sua mãe.
Depois, como se havia preparado para oferecer sacrifícios no
Citerão, partiu levando Jocasta; e passando por aquele sítio,
na encruzilhada, a lembrança lhe veio, e ele indicou o lugar
a Jocasta, contou-lhe o caso e mostrou-lhe o boldrié. Ela se
sentiu muito abalada, porém, guardou silêncio, pois não sabia
que ele era seu filho. Apareceu em seguida, vindo de Sicione,
um vaqueiro tocador de cavalos que contou a Édipo tudo:
como o achara, pegara e dera a Mérope; mostrou-lhe então
suas fraldas e alfinetes, e por fim reclamou-lhe o prêmio pelo
resgate de sua vida. E assim tudo veio a ser conhecido.

Como indica Serra, nada impede que o sumário de Pisandro


tivesse origem épica; se for esse o caso, a principal obra indicada seria
provavelmente a Edipodia, e assim teríamos uma visão mais ampla
de uma obra arcaica; porém, como já disse, o que temos na verdade é
um escoliasta resumindo Pisandro (sem nos esclarecer de todo se está
misturando outras fontes), que poderia, por sua vez, estar resumindo
uma obra épica. Apesar de tentadora, a proposta é muito hipotética;
por isso apenas deixo o texto, sem maior leitura. Infelizmente, sem
certezas acerca do contexto da Edipodia e das outras obras e sem
maiores detalhes sobre suas narrativas, é impossível aqui fazer qualquer
reflexão para além de constatar que, no mundo homérico, o mito já
era narrado de modos bastante diversos, podendo, portanto, assumir
funções e relações radicalmente diferentes.
Temos ainda um fragmento importante citado por Ateneu
(Banquete dos sofistas,11.465e) atribuído à Tebaida arcaica, que muitos
gregos consideravam ser de lavra homérica. Ateneu primeiro comenta

92
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

que Édipo lançara a praga porque os filhos o tinham apresentado


uma traça proibida:

αὐτὰρ ὁ διογενὴς ἥρως ξανθὸς Πολυνείκης


πρῶτα μὲν Οἰδιπόδῃ καλὴν παρέθηκε τράπεζαν
ἀργυρέην Κάδμοιο θεόφρονος αὐτὰρ ἔπειτα
χρύσεον ἔμπλησεν καλὸν δέπας ἡδέος οἴνου,
αὐτὰρ ὅ γ᾽ ὡς φράσθη παρακείμενα πατρὸς ἑοῖο
τιμήεντα γέρα, μέγα οἱ κακὸν ἔμπεσε θυμῷ,
αἶψα δὲ παισὶν ἑοῖσι μετ᾽ ἀμφοτέροισιν ἐπαρὰς
ἀργαλέας ἠρᾶτο θεῶν δ᾽ οὐ λάνθαν᾽ Ἐρινύν,
ὡς οὒ οἱ πατρώι᾽ ἐνηέι ἐν φιλότητι
δάσσαιντ᾽, ἀμφοτέροισι δ᾽ αἰεὶ πόλεμοί τε μάχαι τε.

Logo o natidivino e loiro herói Polinices


pôs primeiro a mesa por Édipo, linda repleta
toda de prata do divo Cadmo, mas em seguida
quis encher de vinho doce a taça dourada,
logo que este percebe que servem tesouro paterno
diante de si, um mal terrível toma-lhe o peito,
nisso lança a praga funesta em ambos os filhos
(e ela de pronto foi ouvida por deusas Erínias)
para disputarem toda herança paterna,
sempre competindo, em guerras, armas, batalhas.
(tradução nossa)

Nessa imagem, a causa da praga ou maldição (ἐπαρὰς) de Édipo,


que retornará em muitas obras, está ligada a um erro dos filhos em
lembrar a figura paterna (Laio, não nomeado) e provocar a fúria de
Édipo, que recai num exagero verbal que, por sua força, se cumprirá.
Sem contexto (já que, pelo trecho, não é possível saber nem mesmo

93
Guilherme Gontijo Flores

se Édipo está cego ou não), também é difícil decidir sobre como


interpretar a passagem, seja como desmedida censurável de Édipo, seja
como falha imperdoável de Polinices em relação ao respeito paterno6.
O único trecho ou excerto similar a comentar tal questão está em
Eustácio (comentário a Odisseia, 1796.3), que confirma a origem da
maldição de Édipo sobre os filhos na apresentação de taças interditas,
que estariam vinculadas a Laio; Eustácio interpreta então que há uma
dupla ofensa filial em desobedecer às ordens do pai e ainda evocar o
parricídio de Édipo. Eustácio (ibid. 1684.9) dá ainda outra origem
para a maldição, dessa vez por causa de alimentos. Essa versão remete
ao conhecido fragmento 3 da Tebaida cíclica, conhecido por causa de
um escólio ao v. 1375 de Édipo em Colono:

ἰσχίον ὡς ἐνόησε χαμαὶ βάλεν, εἶπέ τε μῦθον·


ὤ μοι ἐγώ, παῖδες μὲν ὀνειδείοντες ἔπεμψαν·
εὖκτο δὲ Δὶ βασιλῆι καὶ ἄλλοις ἀθανάτοισι
χερσὶν ὑπ’ ἀλλήλων καταβήμεναι Ἄιδος εἴσω.

Soube que era uma coxa e jogou-a por terra, dizendo:


‘Ai de mim, os filhos me ofendem mandando essa coisa!
Rogo ao régio Zeus e aos outros deuses eternos
que ambos desçam ao Hades pelas mãos um do outro
(tradução nossa)’.

Zenóbio (Centúria V, 43c) nos conta que os filhos mandavam a


Édipo sempre uma espádua de animal sacrificado e que, dessa vez, por
esquecimento, haviam mandado uma coxa, o que o teria enfurecido; a
passagem sugere que o erro não foi intencional, mas não temos citação

6
Seja como for, o ponto mais próximo pode estar no início da Tebaida latina de
Estácio, escrita praticamente um milênio depois, em Roma, em que lemos com
detalhes a maldição de Édipo que dará origem à batalha entre irmãos.

94
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

direta que o comprove. Um outro escólio (A da Ilíada, 4.376) nos


diz que a causa da maldição se deu porque os filhos de Édipo teriam
tentado seduzir sua nova esposa, Astimedusa (quarto nome diverso);
porém, nada no escólio sugere que essa variante fizesse parte da
Tebaida, embora a hipótese seja tentadora. Seja como for, seria possível
supor então que na Tebaida os filhos fariam pelo menos duas ofensas
a Édipo e receberiam duas maldições, que passam a se cumprir com a
guerra fratricida. Há ainda uma cena próxima num fragmento lírico
de uma Tebaida de Estesícoro (frag. 222A, vv. 201-234), porém, nesse
caso, quem fala é Jocasta/Epicasta para Tirésias, talvez depois de ouvir
uma profecia nefasta sobre o destino da prole após a morte de Édipo:

“ἐπ᾽ἄλγεσι μὴ χαλεπὰς ποίει μερίμνας


μηδέ μοι ἐχοπίσω
πρόφανε ἐλπίδας βαρείας.

οὔτε γὰρ αἰὲν ὁμῶς


θεοὶ θέσαν ἀθάνατοι κατ’ αἶαν ἱράν
νεῖκος ἔμπεδον βροτοῖσιν
οὐδέ γα μὰν φιλότατ’, ἐπὶ δ’ ἀ. . . .αννόον ἀνδρῶν
θεοὶ τιθεῖσι.
μαντοσύνας δὲ τεὰς ἄναξ ἑκάεργος Ἀπόλλων
μὴ πάσας τελέσσαι.

αἰ δέ με παίδας ἰδέσθαι ὑπ’ ἀλλάλοισι δαμέντας


μόρσιμόν ἐστιν, ἐπεκλώσαν δὲ Μοίρα[ι,
αὐτίκα μοι θανάτου τέλος στυγερο[ῖο] γέν[οιτο,
πρὶν πόκα ταῦτ’ ἐσιδεῖν
ἄλγεσ‹σ›ι πολύστονα δακρυόεντα[ˉ ˉ,
παίδας ἐνὶ μεγάροις
θανόντας ἢ πόλιν ἁλοίσαν.

95
Guilherme Gontijo Flores

ἀλλ’ ἄγε παίδες ἐμοῖς μύθοις, φίλα [ˉ ˘ ˘ ˉ


τᾷδε γὰρ ὑμὶν ἐγὼν τέλος προφα[ίνω·
τὸν μὲν ἔχοντα δόμους ναίειν πα[ρὰ νάμασι Δίρκας,
τὸν δ’ ἀπίμεν κτεάνη
καὶ χρυσὸν ἔχοντα φίλου σύμπαντα [πατρός,
κλαροπαληδὸν ὃς ἂν
πρᾶτος λάχῃ ἕκατι Μοιρᾶν.

τοῦτο γὰρ ἂν δοκέω


λυτήριον ὔμμι κακοῦ γένοιτο πότμο[υ,
μάντιος φραδαῖσι θείου,
αἴ γ’ ἐτεὸν Κρονίδας γένος τε καὶ ἄστυ [˘ ˉ ˉ
Κάδμου ἄνακτος,
ἀμβάλλων κακότατα πολὺν χρόνον [ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ
πέπρωται γενέ[θ]λᾳ.”

ὣς φάτ[ο] δῖα γυνὰ μύθοις ἀγ[α]νοῖς ἐνέποισα,


νείκεος ἐν μεγάροις [. . .]ισα παίδας,
σὺν δ’ ἅμα Τειρ[ε]σίας τ[ερασπό]λος· οἱ δ’ [ἐ]πίθο[ντο

‘… às nossas dores não juntes duros anseios,


e nem, para o futuro me mostres
graves expectações.

Pois os deuses imortais nem sempre


fixaram similarmente, sobre a terra negra,
guerra contínua aos mortais,
não! Nem tampouco amizade, mas sobre… mente… dos homens
os deuses fixam.
Tuas profecias — que o senhor longifrecheiro, Apolo,
não as perfaça todas!

96
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

Mas se me é destinado ver meus filhos


domando uns aos outros, e as Moiras isso fiaram,
que de pronto o fim da morte odiosa se realize para mim,
antes de um dia eu ver estas multidoridas
coisas lacrimosas sobre (minhas dores)…
os filhos mortos
no palácio ou a cidade capturada.

Mas vinde, filhos, às minhas palavras, querida (prole?)


pois com elas eu vos revelo o final:
um (de vós), tendo o palácio, habita próximo à fonte Dirceia,
mas o outro parte, tendo rebanho
e todo ouro do caro pai —
o filho que primeiro, extraído da sorte,
obtiver seu lote, graças à Moira.

Pois penso que isto


seria vossa libertação do mau destino,
nos conselhos do vate divino,
se o Cronida… a prole e também a cidadela
do soberano Cadmo,
lançando para longe, por muito tempo, os piores males…
destinados à linhagem’.

Assim disse a esplêndida mulher, falando com palavras gentis


da guerra no palácio… os filhos,
e, junto, Tirésias, intérprete de portentos; e eles obedeceram….
(tradução de Giuliana Ragusa)

É aqui que vemos uma tentativa de divisão do reino entre


os filhos, um exilado e outro reinante, para evitar um confronto;

97
Guilherme Gontijo Flores

contudo, como nos outros casos, é muito difícil inferir qualquer uso
mais específico do mito pela passagem, por não conseguirmos nem
sequer preencher alguns dados do entorno discursivo do diálogo entre
Jocasta/Epicasta e Tirésias. Mais digno de nota é o fato de que esse
é o mais antigo texto em que Apolo aparece com sua função central
na trama; já que, nas obras arcaicas, Delfos não poderia realmente
ter primazia literária, uma vez que, até então, o culto e o oráculo de
seu santuário ainda não tinham quase nenhuma projeção na Grécia
(talvez isso explique mesmo a presença de Tirésias como uma espécie
de mediador no vaticínio e que perdurará em outras versões). Apesar
de no tempo de Estesícoro as coisas já terem mudado, permitindo
a aparição de Apolo, ainda, por sua brevidade e lacunas, não temos
como de fato extrair qualquer conclusão mais aprofundada: no mundo
arcaico e no início da era clássica, as lacunas parecem proliferar mais do
que as respostas. Por isso, a partir de agora, apresentarei obras em que o
mito assume posição central um pouco mais detalhada. Começo com
um trecho importante da segunda Olímpica de Píndaro, vv. 35-47:

οὕτω δὲ Μοῖρ’, ἅ τε πατ’ρώϊον


τῶνδ’ ἔχει τὸν εὔφρονα πότμον, θεόρτῳ σὺν ὄλβῳ
ἐπί τι καὶ πῆμ’ ἄγει,
παλιντράπελον ἄλλῳ χρόνῳ·
ἐξ οὗπερ ἔκτεινε Λᾷον μόριμος υἱός
συναντόμενος, ἐν δὲ Πυθῶνι χρησθέν
παλαίφατον τέλεσσεν.

ἰδοῖσα δ’ ὀξεῖ’ Ἐρινύς


ἔπεφνέ οἱ σὺν ἀλλαλοφονίᾳ γένος ἀρήϊον·
λείφθη δὲ Θέρσανδρος ἐριπέντι Πολυ-
νείκει, νέοις ἐν ἀέθλοις
ἐν μάχαις τε πολέμου

98
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

τιμώμενος, Ἀδραστιδᾶν θάλος ἀρωγὸν δόμοις·


ὅθεν σπέρματος ἔχοντα ῥίζαν πρέπει
τὸν Αἰνησιδάμου
ἐγκωμίων τε μελέων λυρᾶν τε τυγχανέμεν.

Assim a Moira, que tem


o paterno propício destino destes, com a deinascida ventura
uma pena também sobreleva,
cambiante com outro tempo
desde quando matou Laio o fadado filho
quando o encontrou e em Pito o oráculo
no passado pronunciado cumpriu.

Depois de vê-lo a aguda Erínia


matou sua raça guerreira com mútua matança.
Mas restou Tersandro do abatido
Polinices, em novos jogos
e nas batalhas da guerra
estimado, dos Adrástidas rebento salvador da casa.
Daí é justo que quem tem da semente a raiz,
o filho de Enesidamo,
os cantos dos encômios e das liras receba.
(tradução de Roosevelt Rocha)

Nesse trecho, Píndaro retoma uma breve lista de infortúnios


tebanos como exemplo de que os humanos não detêm controle sobre
seus destinos, nem mesmo aqueles que pareciam felizes numa posição
de nobreza; é aí que se desenrola o parricídio de Édipo contra Laio
(aqui finalmente nomeado, num jogo possível com a etimologia em
λαιός, “canhoto”, “sinistro”, “estranho”), bem como a função orga-
nizadora do oráculo — de origem não especificada —, para então

99
Guilherme Gontijo Flores

se desdobrar na punição do fratricídio. Tudo isso, apesar de nefasto,


serve como exemplo da sujeição humana aos desígnios divinos e como
origem de Terão, tirano de Agrigento, a quem a Olímpica é destinada,
porque Terão fazia parte da linhagem dos Emênidas, que alegavam
descender diretamente de Tersandro, filho de Polinices que organizou
o novo exército dos Epígonos para tomar Tebas de assalto e reavê-la.
Assim, o mito de horror tebano, ao longo de várias gerações, é revertido
pelo fim do miasma e a purga do mal familiar, com o restabelecimento
do bem-estar por meio de um antepassado que reencena bravamente os
feitos da geração precedente, ao mesmo tempo em que mostra que nem
todos os descendentes precisam ser punidos ininterruptamente: afinal,
alguns podem prosperar, por mérito. Nesse movimento, o mito deixa
de lado a ameaça dos crimes, como víamos em Homero, e estabelece
um vínculo de nobreza com o presente, porque tudo decorre dos
planos divinos; nesse sentido, mesmo os crimes passados enobrecem
Terão, que se alça ao mundo do mito.
Depois de Píndaro, não temos mais nenhum exemplar digno
de nota na lírica, na elegia ou no iambo gregos sobre Édipo. Antímaco
de Colofão escreveu uma Tebaida; porém, dos poucos fragmentos que
nos chegaram, nenhum trata especificamente o que aqui nos interessa;
por outro lado, em sua Lide (frag. 70), temos um dístico com a breve
fala de Édipo a Pólibo, dando a entender que está entregando as éguas
de Laio, depois de tê-lo matado, sem saber que era seu pai:

εἶπε δὲ φωνήσας· Πόλυβε, θρεπτήρια τάσδε


ἵππους τοι δώσω δυσμενέων ἐλάσας.

Logo falou: “Ó Pólibo dou-te como presente


estas éguas aqui que do inimigo eu tomei.”
(tradução nossa)

100
ANTES DAS TRAGÉDIAS: Figurações do mito de Édipo

Essa fala, posteriormente ecoada no monólogo de Jocasta


que abre as Fenícias de Eurípides, vv. 44-45, é o último rastro de
Édipo, vaguíssimo, porém importante por criar uma cena de pathos
profundo na entrega dos cavalos do pai verdadeiro ao pai adotivo,
sem saber o que está fazendo. Assim, perdida na épica e nos outros
gêneros poéticos, é na tragédia, afinal, que o mito receberá mais
atenção e terá o mote principal de sua sobrevivência. Além das obras
conhecidas que pretendi comentar, sabemos de pelo menos quatro
nomes que escreveram sobre o assunto, sem que nada nos chegasse:
Aqueu, Fílocles, Xénocles e Nicômaco. A descoberta de um novo
papiro pode mudar muito as nossas ideias sobre o assunto, porém
por ora resta a resignação.

101
Guilherme Gontijo Flores

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105
CORRENTES E ESCRITAS
MIGRATÓRIAS DE UM MITO
Édipo em Colono e a mácula da cegueira
individual e coletiva em tempos crise1
Alex Beigui

Assim, a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concida-


dãos foi o exílio…. Sim, era realmente o sentimento do exílio
esse vazio que trazíamos constantemente em nós, essa emoção
precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário,
de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da
memória.2 (CAMUS, 1978, p. 52).

Roger Chartier (2007), em pesquisas que desafiam a perspectiva


da influência do texto dramático sobre a cena teatral, instaura
problemática decisiva no campo da crítica e da literatura comparada.
Para o autor, a cena também alterou e altera, ao longo da história,
as diferentes molduras do texto escrito, a saber: autorais, leitorais
e editoriais. Exemplo inconteste de seu argumento é a influência

1
Este capítulo foi escrito a convite e a partir de minha palestra no evento Édipo
Rei: transmissão, tradução e recepção. Na ocasião, ao término de minha fala e
como parte integrante dela, o ator com cegueira, Thales Lopes, orientando de
Iniciação Científica, apresentou um esquete para os convidados e participantes
do evento intitulado À deriva. As imagens que encerram esse capítulo corres-
pondem ao registro fotográfico de Maria de Lurdes Barros da Paixão. Em breve,
e por fazer parte de uma pesquisa mais ampla sobre o campo estético e político
da cegueira, o vídeo da cena, na íntegra, estará disponibilizado no youTube.
2
CAMUS, Albert. A peste. Tradução de Vlerie Rumjanek Chaves. Rio de
Janeiro: Record, 1978.

106
Alex Beigui

que os textos de Racine sofreram a partir de sua estreia nos palcos.


A audição, a escuta e os comentários advindos de uma plateia
diversificada contribuíram para o fenômeno da reescrita do suposto
“original”, pelo próprio autor do texto que assistia atento e anotava as
mais diversas reações dos espectadores. Movimento que aponta para
uma obra sempre em rascunho, garatuja e sempre viva em sua escala
receptiva. Um clássico, nesse sentido, quando retomado dentro e fora
de seu contexto de enunciação, performatiza sua própria história ao
longo do tempo. A partir dos estudos de Roger Chartier (2007), no
campo da Literatura Comparada, e de Jean Austin (1990), no campo
da Linguística, é possível pensar e olhar em diagonal e na contramão
para a real eficiência do postulado pela crítica da influência sobre o
mito e o viés comparatista.
Constatamos em Roger Chartier (2007) um efetivo esforço de
observação analítica sobre a forma como um texto é alterado à ótica
de sua encenação. O palco deixa de ser o fim do texto dramático,
passando a atuar como agente de sua transformação, por meio dos
leitores e espectadores. O retorno ao texto como ato de sucessivas e
inacabadas versões e molduras. Nesse sentido, o mesmo ocorre com o
mito que se desdobra e se desloca incansavelmente, ora regenerando-se
ora degenerando-se, servindo de ímã de todos os tempos.
O autor chama atenção para o caráter caleidoscópico dos
textos de Jean Racine, ao mesmo tempo em que aponta as alterações
aferidas na e pela recepção. Assim, ele comprova que, a partir das
encenações dos textos de Racine, o dramaturgo retorna ao texto,
incansavelmente, dessa vez como um autor avisado e munido dos
comentários do público, dos críticos, alterando o “original”. O
procedimento revela que, nesse caso, não só a cena obedece ao texto,
mas o próprio texto é alterado a partir da montagem da escrita. Ou
seja, o texto também sofre interferências, criando com a cena uma
relação de troca e não de subordinação.

107
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

Pode-se dizer que o processo com o mito, seja religioso e/ou


literário, obedece à mesma lógica. É preciso levar em consideração que
o estudo sobre uma obra clássica é sempre um “polvo” de inúmeros
tentáculos, o fato de ser datada envolve uma consciência temporal
entre o passado e o presente, em efeito quase sempre retrátil. Idas e
voltas, integralidade e fragmentação, torções e distorções fazem parte
de interminável retorno/superação do ouruboros.
O confronto entre dois tempos que coloca em tensão as forças
contraditórias da própria história e não somente da obra. Nesse sentido,
as obras de Bertolt Brecht (2012) despontam como exemplo ímpar na
modernidade. Passado e presente atuam como modos de compreensão
e de atualização das forças que compõem o jogo histórico. A visão que
compõe uma tragédia se assemelha ao campo filosófico exatamente
porque ambas, tragédia e filosofia, buscam uma verdade. Esse é o
lugar do filósofo por excelência e do tragediógrafo, a compreensão de
uma verdade que muitas vezes escapa à realidade. Característica que,
como bem compreendeu Eric Bentley (1991), traduz-se na figura do
“dramaturgo como pensador”, título de seu livro sobre o assunto3. O
pensamento intelectual contido na obra seria o próprio movimento
dessa verdade in nilo tempore.
A questão da verdade (axioma) se apresenta de modo ainda mais
complexo quando traz para a discussão o artista como Ser (ontologia),
como um visionário, ou seja, o próprio ato de criação como sendo
capaz de criar a verdade mediada por uma ética. Logo, se a verdade
pode ser criada, manipulada, é a própria ideia de uma verdade que
entra, para nunca mais sair, de uma crise no seio da própria herme-
nêutica e de seus diferentes modos de ver a verdade como mito e o
mito como verdade.

3
BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.

108
Alex Beigui

Se o pensamento intelectivo faz ver, ele traz em sua ontogênese


uma cegueira. A experiência do olhar, nesse sentido, constitui o ver
como uma forma de existir limitada, sobretudo, do ponto de vista da
aisthesis (sentir/compreensão pelos sentidos). O filósofo, dessa maneira,
estaria ausente da experiência comunitária e partilhada dos sentidos,
ele compreende, mas não necessariamente participa da experiência.
Na tragédia isso é impossível, pois só há aprendizado a partir da
experiência. No sentido grego, ele (o filósofo) não convive com a pólis,
instalando-se um abismo entre a teoria e o fazer, separação já bastante
clara em A ética à Nicômaco (1992) de Aristóteles. Para o estagirita,
há uma ética da teoria e uma ética da práxis que permanecem como
campos indubitavelmente separados.
É interessante pensar que é justamente essa cisão anunciada que
separou por milênios o campo da filosofia do campo das artes; estas
só vindo vislumbrar um reencontro no Séc. XVIII com a criação da
Estética como disciplina destinada a pensar o campo artístico dentro
do campo filosófico; acontecimento que tornará possível a análise da
obra de arte como objeto apartado de sua tradição religiosa e mística.
Pela primeira vez, o objeto de arte pode ser compreendido em sua
historicidade e em sua estrutura.
A modernidade inaugurada no Séc. XVIII possibilitou
compreender os aspectos fenomenológicos da obra de arte, situando-a
socialmente em um campo da razão, contudo ainda distante, cega de
seus aspectos irracionais e criacionais. Só no século XIX, foi possível
perceber a loucura e o inconsciente como campo de investigação; o
irracional como modo de um fazer, de uma práxis legítima. Isso permi-
te-nos pensar também uma ideia de cegueira sobre a história da razão
e da loucura. A cegueira que atravessa o mito de Édipo Rei perpassa,
cruza e intercala a razão e a irracionalidade como partes intrínsecas
da existência. A cegueira familiar dos labdácidas atravessará o tempo
em outras formas de representação para além do acontecimento

109
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

pessoal. Tenho sempre afirmado, não sem resistência e críticas por


parte de alguns interlocutores, a ambivalência trágica como elemento
estruturante do trágico. O entrelaçamento do pessoal e do social como
aspecto indissociável do mito trágico.
O pessoal e o social conduzem a outros binarismos próprios do
trágico. O excesso de razão revela, assim, o banimento do irracional
e do criativo. Não demora para a racionalidade, a clareza, o limpo, o
branco ser localizado na alma, na mente e o irracional no corpo, na
cegueira, na escuridão, na obscuridade e na marginalização. Édipo
demonstra justamente essa cisão: parricídio e incesto constituem
o limite transgredido entre o desejo e a lei. Aquilo que fere a lei é
ilegítimo, ilegal e imoral, portanto, passível de punição. A noção de
sujeira e de contaminação pelo corpo representa também o banimento
da diferença e do diferente, do monstruoso. Tal condição é ratificada
na fala de Édipo a Creonte:

ÉDIPO - No passado, quando, fora de mi por causa das


desgraças que sem querer eu mesmo me causei, ansiava por
me ver exilado, não te dispuseste a conceder-me o benefício
desejado; contrariando-me reiteradamente, logo que viste o
fim de minhas aflições e que já me agradava estar em minha
casa, então quiseste repelir-me e me expulsaste. Não tinhas
interesse algum naquela época pelos laços de parentesco de
que falas…. Agora em face da acolhida generosa que esta
cidade e todos os seus habitantes me dispensaram, tentas
tirar-me daqui, dissimulando tuas intenções brutais com
palavras cobertas de suavidade (SÓFOCLES, 1998, p. 144)4.

4
SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Todas as citações da obra utilizadas neste texto foram
retiradas dessa tradução.

110
Alex Beigui

Édipo em Colono (1998), de Sófocles, configura a máxima dessa


situação, cujo afastamento do convívio social representa a punição
sobre aquele que não se iguala, que pelas forças das circunstâncias não
pode ser mais colocado em um padrão possível de existência coletiva.
A consequência dessa cegueira que separa a racionalidade da irracio-
nalidade instaura o que é da ordem do feio, do belo, do inferior, do
superior e de todas as binaridades que constituem a relação bárbarie/
civilização. Daí, provavelmente, o interesse de Lévi-Strauss acerca do
mito5. O binarismo não é próprio apenas à tragédia Édipo Rei, mas
estende-se também à Antígona.
Tanto para Bertolt Brecht (1948) como para Jean Anouilh
(1944), em suas respectivas reescritas da Ἀντιγόνη de Sófocles, por
exemplo, o que se deflagra é o problema da binaridade que legitima a
hierarquia e autoriza o absurdo. A separação dos doentes dos saudá-
veis, dos negros dos brancos, dos ricos dos pobres configuram-se,
em grande parte, como consequência desse binarismo. A ilusão da
supremacia do pensamento racional possibilitou o escrutínio da huma-
nidade em limites tênues entre barbárie e civilização. Ao longo do
tempo, podemos afirmar com alguma segurança, sobretudo a partir
dos estudos de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet (1986), que
é cada vez mais difícil definir o que seria da natureza própria do mito
e o que seria da natureza própria da tragédia.
É interessante pensar que a filosofia não nasce só de uma
prática sobre a escrita, mas de um esforço de separação, enquanto a
arte é o caos do inconsciente antes de se tornar “razoável”. O filósofo
funda o exercício de um afastamento e de um isolamento, enquanto
o artista pensa na forma como o domínio da matéria. É seu temor
pelo ordinário que individualiza sua função no mundo. O artista

5
Ver: LÉVI-STRAUSS, Claude. Estruturas elementares de parentesco.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1976.

111
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

seria aquele que se contamina com o mundo, misturando e criando a


diferença6. Contudo, há um momento em que o próprio intelectual,
difundido na figura do filósofo ou daquele que pensa o seu tempo,
desconfia da atividade reflexiva como busca de uma verdade a partir
de um isolamento ou afastamento da realidade. Hanah Arendt (2009),
ao refletir sobre o lugar do intelectual para o povo, atenta que ele é
visto, quando é visto, como demente, aquele destituído do princípio
de real ou de realidade. A dificuldade de cisão entre binarismos tanto
no campo da filosofia quanto no campo da arte revela uma tradição
milenar, totalmente ancorada no mito. O mito funda sempre uma
binaridade estrutural e estruturante.
O limite entre a racionalidade e a irracionalidade foi ao longo
do tempo exacerbado para garantir uma certa normalidade em
função do poder hegemônico. No entanto, tal limite nunca foi real do
ponto de vista de uma delimitação precisa nem no campo ficcional,
nem no campo existencial. Em verdade, em casos de esforço para se
viver totalmente na racionalidade, verificamos estados patológicos
caracterizados por comportamentos normódicos, cujo excesso ou
obsessão pela normalidade dita “racional” gera estados neuróticos
obsessivos e patológicos7.
A visão binária advinda por esse falso antagonismo revelou
a cultura de mundos divididos e polarizações sustentadas sempre
em função do poder de uma civilização sobre a outra. O mito em
sua natureza trans e migratória inclui a alteração desses binarismos,
impondo diferentes molduras e agenciamentos históricos, frente à
compreensão também de realidades cada vez mais díspares.

6
Sobre isso, ver a Teoria da performatividade de Luigi Pareyson, especificamente
em Os problemas da estética (1984).
7
O Nazismo poderia ser um exemplo desse padrão extremo racionalista, em que
o biologicismo é utilizado como prova cabal como parâmetro para definir a
supremacia de uma etnia sobre outra; espécie de cegueira social.

112
Alex Beigui

O sério e o cômico, o princípio dionisíaco e o princípio apolíneo


se instauram na história do ocidente como modos de sociabilidade,
modos de conhecer pelo refletir e pelo sentir; modos de conhecer pela
dor e pelo prazer.
Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet (1986) assim como
Claude Calame (1988), pensam o mito não como de ordem do fabu-
loso, mas como uma forma de construção existencial. O mito como
um discurso, por meio do qual pode ser não apenas explicada uma
realidade, mas contrastada, questionada, problematizada. O mito
como um modo de agrupamento e reagrupamento de possibilidades
interpretativas do real. Ele não se relacionaria mais a uma categorial
binária universal, mas a uma urgência por respostas diante da história
dos fatos e dos acontecimentos.

Correntes migratórias

Parece-me mais claro hoje e mais inquestionável a relação de troca


de “padrões” míticos entre povos distintos, o que nos faz refletir a partir
das variantes e diferenças e não da noção de “origem”. Um estudo sobre
a arqueologia dessas trocas de padrões contribuiria em muito para o
melhor entendimento desses “padrões” e dos motivos que o sustentam.
A formação da cultura ocidental parece ter sido erguida por inequívoco
sistema de trocas entre Sapiens e Neandertais que, em algum momento
da história da civilização, fizeram encontrar clãs entre a África e à Europa
e que possuíam, contrário do que se pensa, uma natureza complexa em
seus modos de cultura. Para Silvana Condemi e François Savatier:

…. Os Neandertais tardios usavam ornamentos complexos


e, se o faziam, é porque provavelmente tinham desenvolvido
todo um vocabulário de outros símbolos ostentatórios antes

113
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

mesmo de seus primeiros contatos com o Sapiens. Poderíamos


com toda lógica deduzir daí que essa linguagem simbólica
emergiu espontaneamente, mas sem dúvida essa seria uma
interpretação imprudente. Afinal, somos obrigados a cons-
tatar a simultaneidade entre a invenção de novas culturas
materiais pelos Neandertais depois de 200.000 anos da esta-
bilidade e da irrupção dos Sapiens na Europa. A coincidência
é contundente demais para ser fortuita. Essas novas culturas
podem ter se desenvolvido sob a pressão competitiva dos
Sapiens. Sim, as últimas culturas neandertais revelam uma
complexidade comparável às dos Sapiens da mesma época!
Porém, não se deve perder de vista que elas podem ter se
desenvolvido por aculturação, no contato com os Sapiens,
mas também por transculturação, isto é por propagação
cultural a partir de um Oriente Próximo já então inteiramente
Sapiens (CONDEMI; SAVATIER, 2018, p. 148).

O processo de transculturação interessa mais de perto ao tema


aqui desenvolvido. Principalmente, se tomamos como ponto de
indagação uma perspectiva migratória do mito. Nesse sentido, há
uma menção interessante ao Egito, em Édipo em Colono, país que
os gregos pareciam conhecer em profundidade8. Outra dimensão
importante do mito é a ritualística. Nela, podemos, em muitas partes
da obra, associar o mito literário de Édipo ao mito cristão do sacrifício,
presente também no Cristo que, não por coincidência, comunga de
três elementos com o mito trágico, a saber: o nomadismo, o aprendi-
zado e a redenção (reconhecimento). Abre-se um campo indefinido de

8
Dentro da questão mítica ou de formação dos mitos, interessa-nos em nossa
pesquisa mais ampla refletir sobre a relação sistêmica entre o panthon grego e
o pantheon iorubá, sua dimensão politeísta, assim como as trocas simbólicas e
contextuais na cultura.

114
Alex Beigui

projeções que empurram o mito para além de seu campo de atuação,


conduzindo-o ao campo de traduzibilidades não apenas do herói, mas
do que o acomete: a cegueira e o que ela significa como aniquilamento.
Por essa perspectiva, a cegueira de Édipo é um campo desa-
fiador no que diz respeito à percepção. Em um primeiro momento,
é atribuído à cegueira um poder místico. Isso é claro em Tirésias e
na própria visão que Sófocles lhe atribui. Há uma passagem, uma
transição, um estado de consciência que se altera. Ao perder a visão,
adquire-se outro tipo de consciência. Paralelo que pode ser facilmente
atribuído também à percepção da realidade alterada pela ausência e
pela falta da visão. Dessa forma, a consciência de ser e estar no mundo
edipiana advém da supressão de um dos sentidos e de uma certa cruel-
dade: crueldade como consciência que se dá no corpo e por meio dele9.

ÉDIPO - Ah! Luz que meus olhos não podem ver! Há muito
tempo foste minha e pela derradeira vez meu pobre corpo está
sentindo-te presente (SÓFOCLES, 1998, p.180).

Em Édipo em Colono, principalmente no texto das didascálias,


você tem um Édipo menos racional. Um Édipo mais corporal, mais
sinestésico, mais voltado para a aisthesis. Há um esforço em colocar
em evidência o flagelo e as condições físicas de Édipo. Condições que
não aparecem em Édipo Rei e nem em Édipo Tirano.
A partir da cegueira, Édipo é banido do mundo da racionali-
dade, percurso que pode ser inventariado não como a queda do herói

9
A cegueira começa a ganhar, ao longo da história, outra conotação da corrente
mística que perdura até a Idade Média; a conotação mística diminui considera-
velmente. Ela irá, paulatinamente, na modernidade, perdendo o caráter divino,
mágico, espiritual e se tornando um defeito, uma deficiência, uma doença. No
cientificismo, por exemplo, ela passa a ser investigada no campo da acuidade
visual, começando a ganhar formulações clínicas.

115
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

em Tebas, mas, sobretudo, como o exílio dele em Colono. É no exílio


que ele se depara com a materialidade da verdade sentida no corpo. O
corpo como o único saber, a síntese do visível e do invisível.

ÉDIPO – Venho para ofertar-te meu sofrido corpo; ele é desa-


gradável para quem o vê, mas o proveito que te poderá trazer
torna-o mais valioso que o corpo mais belo (SÓFOCLES,
1988, p. 134-135).

Pensar o mito como uma fábula, uma ficção, uma mentira não
correspondem a sua potência, revelando tão somente a necessidade de
um revisionismo histórico que lança olhares para o mito como dispo-
sitivo dinâmico. A sensação de afastamento da realidade pode levar o
intelectual a se sentir um estranho no mundo. “Estranho” no sentido
de desconforto consigo mesmo10. O sábio, ao romper com essa ilusão
de isolamento, estaria disponível para o mundo, em se contaminar
com seus lugares intransitáveis do ponto de vista da racionalidade.
Daí, resultou uma série de preconceitos localizando o artista
como sendo aquele preso à práxis, ao irracional, à loucura e à margina-
lidade. Ele cria, mas é incapaz de refletir ou de produzir conhecimento

10
Das unheimiliche em Freud traduz a ideia de “estranho inquietante”. Para melhor
entendimento do termo ver o excelente artigo de Lenice Alves Soares: Das unhei-
miliche ou O Estranho de Freud. Disponível em: https://www.e-publicacoes.
uerj.br/index.php/abusoes/article/view/42193. Acessado em 02/05/2020. A
condição de Édipo é duplamente monstruosa porque ele é simultaneamente o
estranho e o banido. Em Totem e tabu (o horror ao incesto), Freud afirma “todos
que descendem do mesmo totem são parentes sanguíneos, são uma família, e
nessa família os mais remotos graus de parentesco são vistos como obstáculo
absoluto à união sexual” (FREUD, S. Obras completas. V. 11 (1912-1919). Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 25. Com base
em versão voltada inteiramente para a leitura psicanalítica do mito, destaca-se
a obra de H. Haydt de S. Mello, intitulada: Édipo Rei: tragédia em quatro atos
baseada na versão mítica, Oidipous, publicada em 1988.

116
Alex Beigui

sobre a realidade. A cegueira de Édipo não é congênita, ela é adqui-


rida, adevística, punitiva, fator importante porque abre um leque de
possibilidades para pensarmos o mito pela via de uma dinamicidade
e adaptabilidade à realidade histórica ou trans histórica. A cegueira
torna-se um signo, adquirindo uma dimensão semiótica e estruturante.
Esse caminho que envolve a cegueira (irracionalidade) e a visão
(racionalidade) constitui um significado importante a partir do qual
poderíamos dizer que o limite da racionalidade, da objetividade e da
subjetividade, se restringiu há séculos, milênios talvez, ao binarismo
luz/escuridão. A polarização entre essência e superfície parece ter
sido desmontada primeiramente por Hegel, a quem devemos, em
sua leitura sobre a tragédia, a afirmativa de que a essência inexiste
fora da superfície. Ele nos coloca diante de um outro paradigma: o da
materialidade da verdade11.
A tradição e o senso comum colocam o mito, consequente-
mente e geralmente, como sinônimo de mentira, “estória”, narrativa,
fábula apartada da verdade. As obras filosóficas contemporâneas e
os estudos mais recentes no campo da mitocrítica apontam para a
urgência de um revisionismo histórico do pensamento binário em
todas as escalas ontológicas do mito. Tais abordagens visam, sobre-
tudo, romper com a ilusão de dois mundos, separados, a partir dos
quais se faz necessário uma escolha: o mudo da prática e o mundo
da episteme. Razão pela qual o intelectual, muitas vezes, sente-se um
estranho. Um ser que vive inevitavelmente entre dois mundos.

11
Para Roland Corbisier, em Hegel “a realidade é, pois, contraditória, ou dialética,
em si mesma e não apenas em nosso pensamento. A essência é o que, por hipó-
tese, permanece idêntico e invariável no curso das mudanças ou metamorfoses,
meras aparências perceptíveis pelos sentidos. Tal distinção cinde o ser em duas
faces, na realidade inseparáveis. A coisa nada é sem as suas propriedades, a
força sem suas manifestações. O interior não se distingue do exterior porque,
como diz Hegel, ‘a aparência é a própria essência… um momento da essência’”.
(CORBISIER,1981, p. 28).

117
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

Desse modo, fácil se chega à ideia de rotular o artista como um


ser para/da prática e o filósofo como um ser para/do pensamento. Esse
ponto, também grego em sua essência, traz o conhecido problema,
e uma das principais divergências entre Platão e Aristóteles, o da
valoração do artista.
A cegueira de Édipo, como já assinalada, não é congênita, o
que faz ela ocupar um espaço fundante tanto em relação ao passado
da personagem quanto ao futuro da personagem. A cegueira abre em
Édipo a potencialidade de se ver e de se tornar um outro, de se pensar
como diferença. Édipo em Colono se apresenta desnudo, abandonado
à própria sorte, sem o amparo da realeza e sem a proteção de sua
linhagem nobre. Espécie de Eremita; símbolo maior do desapego, que
enxerga por meio dos outros sentidos; nômade que peregrina com
a marca mística da cegueira em seu próprio corpo/destino, Édipo
necessita se reorganizar, definir seu próprio caminho sem a faculdade
da visão. A beleza e riqueza do texto sofocliano reside justamente nessa
transição que marca uma epifania no seio mesmo da tragédia. Aqui,
é importante registrar o próprio percurso de Édipo como metáfora
possível de uma sociedade que só passa a ver após uma catástrofe.
Da cegueira individual brota inevitavelmente a metáfora de uma
consciência coletiva advinda da peste que assola Tebas.
O Édipo cego ganha uma força espiritual excepcional à medida
que se despede do Édipo social, representando uma libertação. Ela,
a cegueira, deixa de ser mácula para tornar-se aisthesis, experiência
concreta do vivido. Aqui, o par de signos é invertido de forma formi-
dável: a cegueira torna-se luz/saber; o rei infinitamente mais humano.
Isso só acontece quando o herói perde algo irrecuperável. Então, é
necessário quando se perde a crença na razão absoluta voltar-se aquilo
que é a base da própria existência: o corpo, seja ele individual ou social,
e a sua condição humana, perecível, vulnerável, crísica, susceptível.

118
Alex Beigui

ÉDIPO - Sofre cada um de vós somente a própria dor; minha


alma todavia chora ao mesmo tempo, pela cidade, por mim
mesmo e por vós todos. (SÓFOCLES, 1988, p. 23).

Ou, de maneira ainda mais assertiva e convincente:

ÉDIPO - Não vou dar os passos iniciais; faltam-me as forças


e a visão, duplo mal, uma das filhas agirá por mim. Em se
tratando de cumprir a obrigação, penso que uma pessoa só
pode falar por muitos outros se o fizer piedosamente. Andai
depressa, filhas, mas não me deixais aqui sozinho, pois meu
corpo não teria forças para mover-se sem ajuda ou guia
(SÓFOCLES, 1988, p. 129).

O lado humano desperto em Édipo sugere o reconhecimento


de seu limite. Nesse sentido, lembra-nos também o conto de Hans
Christian Andersen (1837), no qual o público se reúne para ver a roupa
nova do Rei enquanto o Rei está nu12. Os larápios afirmam que apenas
os sábios conseguem vê-la. Todos para se mostrarem sábios apressam-se
e dizem vê-la, mas o Rei está nu, pois o objetivo não é a verdade, mas
que eles querem se passar por sábios. No fundo elas têm medo de
dizer que não veem a nova roupa, pelo simples fato dela não estar lá.
Há um pacto do não ver. É a cegueira social que acomete o público do
Rei. Nem sempre a autoridade permite que seja visto aquilo que ela
não quer que seja visto. A alegoria da cegueira quer sempre nos dizer
dos caminhos da humanidade, demonstrando como ela, em alguns
momentos, parece andar à deriva, praticamente sem rumo, exatamente
como Édipo em Colono.

12
No original Kejserens nye Klæder (1837), sendo traduzido geralmente em
português por A roupa nova do rei.

119
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

As múltiplas formas de ver e de não ver também envolvem


procedimentos de estar dentro ou fora; a caverna pode parecer acolhe-
dora, pois desde Platão ela é mais familiar, conhecida, ao passo que o
mudo de fora envolve o desconhecido. Esse aprendizado em Édipo é
muito doloroso. Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira (1995) parece
dirigir-se a Édipo:

Tinha estado com os olhos abertos sempre, como se por


eles é que a visão tivesse de entrar, e não renascer de dentro,
de repente disse, parece-me que estou a ver, era melhor ser
prudente, nem todos os casos são iguais, costuma-se até dizer
que não há cegueiras, mas cegos, quando a experiência dos
tempos não tem feito outras coisas que dizer-nos que não há
cegos, mas cegueiras (SARAMAGO, 1995, p. 182).

Outro mito importante, fora do contexto da tragédia, mas não


do trágico, é Orion, que prediz a ida do caçador à ilha de Lemos, onde
fica a oficina do Deus Hefesto. Com muita dificuldade, o caçador
busca ajuda do Deus da forja e o questiona sobre a possibilidade de
o Deus ajudá-lo com a sua recém-adquirida cegueira, mas tudo que
recebe de Hefesto é o servente da oficina Sedarião para lhe servir
de guia e ajudante. No entanto, a deficiência que deveria ser a sua
punição acaba se tornado dádiva, pois o caçador foi capaz de desen-
volver os outros sentidos. Orion agora era capaz de caçar apenas com
o tato, paladar, olfato e audição. Era necessário pensar por meio do
corpo, em sua totalidade. Ora, com as duas passagens ficcionais acima
não seria também irracional o olhar de racionalidade que petrifica
os sentidos e o corpo?
O olhar que, assim como a Medusa, representa o ciclo do
arcaico/primitivo para o moderno/civilizado; processo que, como
bem definiu Raymond William (2011), revela o campo e a cidade.

120
Alex Beigui

A petrificação do mundo por meio da força que, como diz Caetano,


é capaz de “… erguer e de destruir coisa belas...”13. O agir sobre a
petrificação do ser diante do fechamento de horizonte que a cidade
oferece e a metrópole interdita mostram-nos que a existência depende
inevitavelmente de um reconhecimento de si no outro e do outro em
nós. Sem essa relação pontual em tempos de crise, o que a cidade
oferece como múltiplas possibilidades também, contraditoriamente,
se traduz em fechamento, em campo limitado de visão. A cegueira dos
grandes centros. Das grandes aglomerações!
A cegueira de Édipo ajuda-nos a ser menos reativo e a se perceber
com um ser de atravessamentos entre o passado, o presente e o futuro.
Sua experiência une três cartografias geográficas espaciotemporais
distintas, formando uma tríade citadina: a adoção em Corinto; o
retorno triunfante a Tebas e o declínio em Colono14. Ele é sempre o
afastado da cidade, o estranho banido, quando nasce e no fim da vida.
Contudo, a lição que nos salta aos olhos e aos outros sentidos é a de
que sua trajetória demonstra dois importantes certames: o da visão
que ignora e o da cegueira que conhece.

13
VELOSO, Caetano. Sampa (1978).
14
Ou ainda como tão bem expressou, retomando um dos princípios trágicos,
Albert Camus em seu extraordinário A peste: “… a primeira metade da vida de
um homem era uma ascensão e a outra um declínio; que no declínio, os dias
do homem já não lhe pertenciam, que lhe podiam ser arrebatados a qualquer
momento, que ele nada poderia fazer deles, e que o melhor, justamente, era não
fazer nada” (CAMUS, 1978, p. 83-84).

121
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da


Gama Kury. Brasília: UnB, 1992.

AUSTIN, Jean. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto


Alegre: Artes Médicas, 1990.

BERTOLT, Brecht. Teatro Completo – Fundamental. São Paulo:


Paz e terra, 2012.

BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1991.

CALAME, Claude. Métamorphoses du mythe en Grèce


antique. Genève: Labor et Fides, 1988.

CAMUS, Albert. A peste. Tradução de Vlerie Rumjanek Chaves.


Rio de Janeiro: Record, 1978.

CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler


romances na época moderna – séculos XVII-XVIII. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2007.

CONDEMI, Silvana; SAVATIER, François. Neandertal, nosso


irmão: uma breve história do homem. Tradução de Fernando
Scheibe. São Paulo: Vestígio, 2018.

CORBISIER, Roland. Hegel: textos escolhidos. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1981.

122
Alex Beigui

FREUD, S. Obras completas. V. 11 (1912-1919). Tradução de


Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

HANNAH, Arendt. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2009.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Estruturas elementares de


parentesco. Petrópolis/RJ: Vozes, 1976.

MELLO, H haydt de S. Édipo Rei: tragédia em quatro atos


baseada na versão mítica sobre Oidipous. Brasília: Linha Gráfica e
Editora, 1988.

PAREUSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo:


Martins Fontes, 1984.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. Lisboa: Editorial


Caminhos, 2004.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Lisboa: Editorial


Caminho, 1995.

SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução de Mário da Gama


Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

STEIN, George. A morte da tragédia. Tradução de Isa Kopelman.


São Paulo: Perspectiva, 2006.

VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mythe et


tragédie en Grèce ancienne. La Découverte I, 1972, II, 1986.

123
CORRENTES E ESCRITAS MIGRATÓRIAS DE UM MITO: Édipo em Colono
e a mácula da cegueira individual e coletiva em tempos crise

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e


na literatura. Tradução de Paulo Henrique Britto. São Paulo:
companhia das Letras, 2011.

ANEXO

Imagens 1, 2, e 3: sequência da cena “À deriva”, apresentada


como parte integrante da palestra proferida. Atuação do ator multi-
mídia, com cegueira Thales Lopes. Registro: Maria de Lurdes Barros
da Paixão. Direção e Edição: Alex Beigui.

Imagem 1 Imagem 2 Imagem 3

124
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN
Kathrin Rosenfield

Se ao menos os críticos perguntassem: “que tipo de pessoas


são estas?” (Robert Musil)

Há várias décadas, agora, desde que Hölderlin foi considerado um


tradutor “genial”; um tradutor, porém, que teria traído a essência de
Sófocles e cuja oficina tradutória praticaria “pensamentos em excesso
e exigências reflexivas e filosóficas exageradas” (SCHADEWALDT,
1960, p. 274)1. Este veredito levou a uma pletora de comentários
sobre as teorias estéticas e filosóficas de Hölderlin e a um interesse
relativamente fraco pelo seu trabalho concreto de poeta-tradutor, pela
artesania de sua oficina tradutória. Gostaria de argumentar aqui que
um maior cuidado crítico-literário poderia nos ensinar mais sobre a
leitura original desse poeta-pensador e sua compreensão inovadora
do mundo grego e de Sófocles. Um exame mais meticuloso das
traduções hölderlinianas mostra que as articulações tradutórias não
seguem ideias teóricas, mas captam os pontos de fuga das constelações
metafóricas, para a compreensão das quais as Observações de Hölderlin
fornecem algumas chaves de leitura.
Nessa perspectiva, nossa abordagem de Hölderlin introduz
apenas como contraste heurístico a longa linhagem de pensadores que
teceram uma densa rede de conceitos em torno das traduções hölder-
linianas. Deslocaremos a ênfase para um close reading que valorizaria
a particularidade poética e suas sugestões antropológicas, históricas

1
SCHADEWALDT, Wolfgang. “Sophokles und das Leid” (1941/1948). In:
SCHADEWALDT, Wolfgang. Hellas und Hesperien. Zürich, 1960, p. 274.

125
Kathrin Rosenfield

e filosófica do poeta que Nicole Loraux não hesitou em chamar “o


maior de todos os leitores de Sófocles”. (LORAUX,1997, p. VII)
Schadewaldt e Karl Reinhardt, Beissner e Binder observam,
por exemplo, que Hölderlin “penetrou, séria e exultantemente como
ninguém, na essência de Sófocles”. (SCHADEWALDT, 1960, p.
274). O elogio, porém, é logo seguido por uma ressalva, por exemplo,
quando o mesmo autor escreve: “No entanto, o simples sentimento
de alguém que está realmente tocado por Sófocles irá nos mostrar
imediatamente que Hölderlin pensa demais e acrescenta excessivos
refinamentos intelectuais e filosóficos” (SCHADEWALDT, 1960,
p. 274). Reinhardt atribui a ele “o mais profundo entendimento do
espírito de Sófocles”. No entanto, Binder critica-o por uma espiritu-
alização e uma interiorização (Interiorisiertheit) que “não têm nada,
ou muito pouco, a ver com Sófocles” (BINDER, 1992, p. 159).
Lacoue-Labarthe observa que Hölderlin procede a “transformações
tão radicais que todo o sentido da tragédia é modificado” (LACOUE-
LABARTHE, 1978/98, v. 466) – mas sua tradução francesa da versão
de Hölderlin negligencia detalhes significantes que iluminariam a
tradução de Hölderlin2 . Quase todas essas abordagens ignoram as
observações de Hölderlin sobre o ritmo dos sentimentos, represen-
tações e pensamentos, ou seja, sua compreensão não conceitual da

2
As referências para esse problema da crítica são: LORAUX, Nicole.
“Introduction” et “La main d’Antigone”, In: Sophocle, Antigone, Paris, 1997,
p. VII – XIV. BAUDRILLARD, Jean. The Conspiracy of Art, (ed. Sylvère
Lotringer), New York, Semiotexte, 2007, p. 230. SCHADEWALDT, Wolfgang.
“Hölderlins Übersetzung des Sophokles”. In: Über Hölderlin, Aufsätze von
Th. v. Adorno, F. Beissner, etc., Frankfurt, Insel Verlag, 1970, p. 247 e p. 275.
BEISSNER, Friedrich. Hölderlins Übersetzungen aus dem Griechischen, Stuttgart,
1961. BINDER, Wolfgang. Hölderlin und Sophokles, Tübingen (Turm-Vorträge),
1992, p. 159 s. LACOUE-LABARTHE, P. Sophocle –Hölderlin. Antigone, Paris,
1978/1998, observation at v. 466 of Hölderlin’s translation. Para uma longa
versão sobre esse debate, cf. ROSENFIELD, K. “Hölderlins Antigone und
Sophokles Paradoxon”. Poetica, München, v. 3-4, 2001p. 465-502.

126
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

trama e da ação como constelações de gestos e discursos nos quais o


timbre, o tom e o ritmo são tão significativos quanto a acepção de
cada palavra tomada individualmente.
Antes de nos aprofundarmos na leitura incomum, viva e
penetrante de Hölderlin de quatro cenas de Édipo Rei, exporei rapi-
damente as principais diferenças entre as abordagens convencionais
e a leitura de Hölderlin.
Estamos todos acostumados a um determinado foco pelo qual
vemos Édipo sozinho. A maioria dos críticos interpreta o personagem
como se ele fosse [todo] o espetáculo. Alguns veem Édipo como um
emblema da humanidade e do desamparo humano; outros, por
exemplo, como exemplo de uma esperança falaciosa no conhecimento
humano. Freud fez dele a imagem da pulsão incestuosa universal e da
busca incansável pela verdade. Knox (1971) o vê como um típico tirano
ateniense, colocado no palco para dar o exemplo de um cidadão dema-
siadamente orgulhoso. Finalmente, a antropologia histórica/estrutural
(preeminentemente Vernant, MT 1989, p. 99 ss.) tomou Édipo como
o modelo da ambiguidade – poluidor e purificador que se torna bode
expiatório ou pharmakós. Essas quatro abordagens têm em comum
a ideia de que haveria um oráculo verdadeiro e fiel, anunciado por
Apolo, e que a sabedoria divina de Tirésias contrastaria com a igno-
rância de Édipo limitado ao conhecimento humano. Quanto a Jocasta,
Creonte e o Coro, essas interpretações não lhes dão muito espaço como
agentes plenos no drama de saber, lembrar e esquecer (voluntaria ou
involuntariamente). Eles se tornam personagens menores, impotentes,
figurantes passivos em um drama vivido e representado somente por
Édipo. Hölderlin mostra que isso não é o caso em absoluto.

127
Kathrin Rosenfield

O entendimento rítmico de Hölderlin


e os pequenos detalhes que mudam
o sentido da teoantropologia do poeta
Para Hölderlin, pelo contrário, Édipo é um homem enre-
dado, desde o início, em uma profusão de incertezas que surgem
da constante produção de oráculos brotando das mentes humanas,
produções que hoje a linguística chamaria de “performativas”, isto é,
versões possíveis, probabilidades que se encaixam nas circunstâncias e
visões do momento. Esta visão hölderliniana é ao mesmo tempo mais
moderna e próxima de nós (uma verdadeira teoantropologia), mas
também muito próxima do iluminismo ateniense, como veremos ao
reler atentamente o original grego.
A visão hölderliniana apoia-se em uma escuta meticulosa
e abrangente que ouve os refrãos rítmicos e melodiosos do texto
grego e que atenta para os pequenos detalhes, como os modos de
enunciação, por exemplo, que podem se tornar tão significativos
quanto o conteúdo do que foi anunciado ou indagado. Para ele, isto é
o “ritmo” – a constelação peculiar e o “estilo” do que é dito no palco
(a ardilosa destreza terá de ser lida entre as linhas do texto de Sófocles);
eis o que torna o espetáculo interessante, excitante e emocionante3,

3
A noção de Hölderlin de ritmo é muito próxima da noção pré-socrática e
clássica, como Émile Benveniste analisa em seu ensaio The Notion of Rhythm:
“[rhythm] designates the form in the instant that it is assumed by what is
moving, mobile and f luid, the form of that which does not have organic
consistency; it fits the pattern of a fluid element, […] of a peculiar stat of
character or mood. It is the form as improvised, momentary, changeable”
(BENVENISTE, p. 1966, p. 285). Ele conclui que o ritmo significa “literally
‘the particular manner of flowing,’ […] dispositions” or “configurations”
without fixity or natural necessity and arising from an arrangement which
is always subject to change.” (idem). Aqui também devo agradecer a Pascal
Michon por seu inovador site Rhuthmos, que aborda dos mais diversos
ângulos a padronização significativa das funções do ritmo.

128
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

muito mais do que o conhecimento do enredo mítico que qualquer


leitor já conhece de antemão. Hölderlin percebeu, com seu “radar
poético”, que pequenas alterações no modo de produzir determinados
conteúdos podem sugerir pensamentos não ditos, sentimentos ou
conjeturas que ressoam em torno das palavras pronunciadas, dando-
-lhes volume, densidade, ambiguidade e ironia. É por essa razão que
Hölderlin deu menos atenção ao oráculo per se do que à maneira como
certas manipulações humanas das palavras (oraculares) podem alterar
o significado de uma profecia.
Em seu texto Observações sobre Édipo, Hölderlin destaca uma
atitude peculiar do protagonista. Desde o início, Édipo parece
sentir que algo obscuro está acontecendo no Palácio e que seus mais
próximos estão tentando silenciar ou encobrir algo. Por meio da leitura
de Hölderlin, descobrimos uma série de meias-verdades, silêncios,
informações desconexas– uma estratégia que compõe um duplo
enredo surpreendente. Nessa perspectiva, a desconfiança que carac-
teriza Édipo nas primeiras cenas é algo muito diferente da paranoia
que Knox lhe atribui: ela é uma “visão todo-abrangente”. A concepção
incomum de Hölderlin se torna clara nessas observações, quando ele
elogia a “suspeita rebelde decorrente dos segredos melancólicos que
pesam sobre seu pensamento onisciente” (HÖLDERLIN; KA, 1994,
p. 852). Isso pouco tem a ver com a tara inconsciente da leitura freu-
diana, o saber (recalcado) de que ele matara seu pai4; pelo contrário,
aponta para uma percepção sutil de algo que está acontecendo entre
as personagens menores, que o enredam numa trama que eu chamaria
de intriga palaciana. O que Édipo interpreta como uma conspiração

4
Ou, talvez eu devesse dizer melhor: essas desconfianças diferem do conflito
inconsciente analisado por Freud – elas corresponderiam ao que se chama
Realangst em linguagem freudiana; mas essa angústia evidentemente pode
acrescentar-se ao conflito envolvendo a incerteza da origem e das corretas
relações de parentesco que caracteriza as angústias edipianas.

129
Kathrin Rosenfield

contra si mesmo, o salvador e rei de Tebas, é, de fato, o eco de uma


conspiração que ocorrera décadas antes, um atentado que de fato visou
ele mesmo, o infante filho e herdeiro de Laio – um crime recalcado
da memória pelos outros habitantes do Palácio e que agora pesa na
consciência de todos.
Hölderlin marca a organização rítmica da suspeita intuitiva
de Édipo – mais do que seu conteúdo – no modo de falar: se há algo
verdadeiramente moderno na abordagem de Hölderlin, é aqui que
isso aparece. O modo como Édipo indaga ao ouvir o oráculo rompe
violentamente com a visão piedosa convencional da profecia; enfatiza
a produção do conteúdo da verdade “sagrada” por meio de interações
humanas: são tanto mecanismos intuitivos, como silogismos racionais
e reações ou associações psicológicas que produzem o(s) oráculo(s)
em Édipo Rei. Primeiramente, Hölderlin traça uma linha entre o
oráculo (pronunciado pela Pitonisa) e as interpretações que Édipo
força Creonte a produzir. Quando Hölderlin lê:

A sentença do oráculo diz:


Mandou-nos Febo, ô Rei, claramente,
A perseguir a ignomínia do país, nutrida nesta terra,
E de não nutrir o que não é salutar. (HÖLDERLIN, KA,
1994, p. 851).

Ele escreve:

Isto podia significar: julguem, de modo universal, [mantendo]


um tribunal rigoroso e puro, mantenham uma boa ordem
cívica. Édipo, porém, logo fala, de modo sacerdotal:
Por meio de que purificação (...)
E [Édipo] visa o particular:
E a que homem ele designa este destino?

130
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

E deste modo desvia os pensamentos de Creonte para a


palavra terrível:
Outrora, ô Rei, Laios era senhor
Neste país, antes de tu dirigires esta cidade.
Essa é a maneira como o oráculo liga-se à história da morte
de Laio, que não necessariamente se encaixa no oráculo de
Delfos (HÖLDERLIN, 1994, p. 851).

Hölderlin entende que os contemporâneos de Sófocles


tinham diferentes opiniões sobre os oráculos. Profecias poderiam
não ser interpretadas de uma maneira religiosa ou piedosa, como
um mandamento de um deus, mas, ao contrário, na forma prática
performativa de um brainstorming, uma combinação de reflexão
com livre associação, graças à qual analisamos nossa experiência,
combinando conhecimento e memória, intuição e imaginação, a fim
de captar ideias e sugestões valiosas para a solução de um problema
particular. Hölderlin situa Édipo distintamente na segunda opção,
aproximando-o de Temístocles e Péricles, que são famosos por terem
se arriscado na manipulação de oráculos durante as crises atenienses.
As observações de Hölderlin fizeram-me ficar atenta para o fato
de que, mesmo antes da chegada de Creonte, Édipo está visivelmente
impaciente, alerta e potencialmente desconfiado. Ele teve o cuidado de
perguntar aos suplicantes o que eles temiam, como se houvesse intuído
algo além da praga, um problema que se camufla nas consciências e nos
medos que os tebanos silenciam. Ele reclama que Creonte já deveria
ter retornado. Quando este enfim aparece no horizonte, o sinal de
sucesso de Creonte – uma coroa de louros –, que Édipo vê de longe,
deixa-o indiferente, praticamente frio. Quando Creonte anuncia: “se
a adversidade acaso / corrige o passo, em bem resulta o acaso” (v. 87),
ele irrompe abruptamente:

131
Kathrin Rosenfield

Éd.: Atém-te ao tema, pois o teu dizer


nem tranquiliza nem atemoriza (TV/ER, 89 s.)5

Os desvios estratégicos de Creonte

A suspeita6 é o motor que guia esta cena, e Creonte sente isso.


Mesmo com a ordem urgente para revelar o oráculo imediatamente,
Creonte encontra ainda uma maneira de protelar: ele pergunta se deveria
falar ali mesmo, a céu aberto, em frente a todos, ou na íntima privacidade
do Palácio. Apenas quando Édipo o exorta mais uma vez a falar aberta-
mente – “Diga-a diante de todos, pois para eles carrego / Um fardo mais
pesado do que aquele que tenho na minha alma” (SÓFOCLES, 2001,
p. 91). Creonte começa a falar – mas, ainda, com relutância.
Os críticos não têm, em geral, levado Creonte a sério o suficiente
para atribuir pensamentos estratégicos a ele. Em vez disso, entenderam
sua proposta para falar dentro do Palácio – e a recusa de Édipo – como
apenas mais uma questão de interesse histórico, um sinal do esforço
de Édipo em apresentar-se como um líder democrático, um tirano do
iluminismo clássico grego, que compartilha seu poder com o demos7.
Não aceitam tampouco a perspectiva de Hölderlin que interpreta a

5
Sófocles. Édipo Rei. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2001.
Quando se trata dessa edição de Sófocles, traduzida por Trajano Vieira, faremos
uso, também, da sigla “TV/ER” para fazer referência a ela.
6
Ahl (2008, p. 81) observa que Édipo é receoso desde muito cedo no espetáculo,
mas Ahl não consegue reconhecer até que ponto a sua suspeita é lúcida e baseada
em fatos sutis. Ahl interpreta isso como uma ansiedade quase patológica que
retorna à noção do “medo mítico” do parricídio e incesto.
7
Knox (1971, p 56) também observa que Édipo é “half-envious recital of Laius
‘royal genealogy emphasizes Oedipus’ deep-seated feeling of inadequacy in the
matter of birth”, que também pode funcionar como um estímulo para legitimar
seu governo a partir de uma escrupulosa observação das leis (democráticas).

132
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

suspeita como uma acuidade mais ampla; veem, portanto, a atitude


de Édipo como infundada e irracional – e assim ignoram o segundo
enredo envolvendo os personagens “menores” (Creonte, Jocasta,
Tirésias e o Coro) que conferem à peça uma tensão dramática ímpar
e quase hitchcockiana. Knox chega bem perto de perceber a estrutura
do duplo enredo, mas sua teoria é muito estreita, o que faz com que ele
ignore as manobras secretas do segundo enredo. Consequentemente,
ele abandona, sem qualquer comentário, sua altamente sugestiva
descrição da diplomacia estranhamente cautelosa de Creonte e de suas
palavras cuidadosamente evasivas:

Quando Creonte retorna de Delfos para informar Édipo,


ele encontra o tyrannos do lado de fora do Palácio cercado
por suplicantes. Quando Édipo pergunta pela profecia, ele
responde em termos vagos, calculados para produzir uma
sensação de alívio nas mentes do povo sem revelar a natureza
da mensagem oracular (KNOX, 1971, p. 24).

Édipo percebe quão calculado é, de fato, o oráculo de Creonte:


esse é o tipo de mensagem que personagens históricos como Temístocles
ou Antífono teriam manipulado para sua própria vantagem; Creonte
parece esperar precisamente isso: que Édipo se aproveite da situação
à moda de Temístocles, interpretando-a de acordo com seus obje-
tivos. Porém, em vez de oferecer um plano milagroso, Édipo “vira o
jogo” e coloca a responsabilidade da interpretação sobre os ombros
de Creonte. Sempre que Creonte faz uma pausa após dizer alguma
trivialidade, Édipo o pressiona com perguntas mais específicas. Ele
deseja ouvir o que Creonte pensa, do que se lembra, o que lhe vem à
mente, e de que maneira Creonte descreve essas coisas. É essa pressão
que provoca em Creonte a súbita lembrança, ou a convicção secreta e

133
Kathrin Rosenfield

recalcada, de que a causa da praga é o derramamento de sangue que


não foi despoluído:

É: Que tipo de purificação seria? A que infortúnio se refere?


C: Temos que banir um/qualquer homem, ou pagar morte
violenta com morte violenta.
Contra o sangue que assalta a cidade (HÖLDERLIN,
1988, p. 98-100).

O texto grego diz algo mais genérico: “Banindo ou matando


quem cometeu matança, / E assim causou, para a cidade, esta tara de
sangue/poluição” (SÓFOCLES, OER, V. 100 s.). A formulação vaga
parece sugerir que Édipo deva procurar por um bode expiatório, um
pharmakós, cuja expulsão da cidade despurificaria o velho mal. Mas,
Édipo se recusa de interpretar as palavras vagas e sugestivas e continua,
implacável, a interrogação:

É: Quem é o homem cuja sorte [o deus] assim define? (102 v.)


Esta questão coloca um fim nos desvios estratégicos de
Creonte. Lentamente, ele começa a revelar o que tem em
mente (e o que provavelmente pesava em sua consciência há
muito tempo):
C: [Outrora], o Rei! Tivemos Laio como guia e senhor
(hegemon)
Neste país, antes de tu guiares a cidade para rumos certeiros.
É: Sei disto, por ouvir dizer, mas não o vi [eu mesmo]
(HÖLDERLIN, 1988, v. 102s).

O estilo narrativo-conversacional dessa troca de palavras é


muito diferente das máximas solenes contidas na mensagem inicial
de Delfos. Com estudada indiferença, Creonte conta que Laio morreu

134
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

e abruptamente apresenta a versão oficial da morte de Laio pelas mãos


de salteadores desconhecidos:

C: Já que [Laio] morreu, exige o deus com clareza,


Que se puna agora aqueles assassinos (HÖLDERLIN,
v. 105 s).

C.: Assassinado. O deus profere claro:/ punir – não importa


a quem! – os matadores (TV/ER v. 106 s.).

Há uma sugestiva ambiguidade na palavra grega thanontos;


ela significa “ele morreu, faleceu8”, deixando em aberto se essa morte
foi violenta e natural. Em outras palavras, percebemos uma retórica
estudada de Creonte – uma estratégia que consiste em cortar a infor-
mação sobre o assassinato não vingado (no passado) do mandamento
do oráculo prescrito no presente. Para focar na ação que Creonte
tem em mente: para o irmão de Jocasta e corregente (no passado e no
presente) convém não enfatizar a morte violenta de Laio, e considerar
apenas o mandamento de Apolo no presente: “Ele morreu. Agora
Apollo manda (...)”. Assim, a morte de Laio (aparentemente causada
por agentes e causas desconhecidas) quase desaparece atrás da urgência
da ordem atual de Apolo que prescreve um rito de purificação; essa
estratégia visa atenuar a vergonha de Creonte pela falta de honras
fúnebres e vingança, e o desconhecimento das causas deixa quase só

8
Kitto: “His death...”; Mazon: “Il est mort”. No entanto, a maioria dos tradutores
se deixam seduzir pela ideia do parricídio e traduzem o termo mais neutro e
ambíguo neste sentido. Cf., por exemplo, Albert Cook: Since he was slain,
the god now plainly bids us / To punish his murderers, whoever they may be.
Ou ainda Dudley Fitts and Robert Fitzgerald: He was murdered; and Apollo
commands us now / To take revenge upon whoever killed him.

135
Kathrin Rosenfield

uma única saída – o dispositivo do bode expiatório, o pharmakos. Mas,


Édipo não se deixa enrolar nessa estratégia retórica:

É: Em que país estão ? Onde achar


O rastro sem indícios da velha culpa?
C: O deus disse9, aqui. Achado é o que
Se procura. Foge o que não é cuidado (HÖLDERLIN,
v. 107-110).

Éd.: Oriundos de onde? Onde buscaremos / pegadas foscas


de um delito antigo? - C.: Aqui, falou. Só se acha o que se
caça; / o que negligenciamos nos escapa (TV/ER, v. 108-112).

A máxima hipócrita de Creonte é projetada para encobrir


o embaraço que ele não pode deixar de sentir. Em vez de fornecer
informações simples, sua sentença gnômica (fórmula de sabedoria
consagrada) prescreve uma prudência proverbial e adia as respostas ao
interrogatório de Édipo. Somente mais e mais perguntas irão obrigá-lo
a falar sobre o crime (não apenas a morte) que nunca foi vingado ou
esclarecido. Sua pequena máxima é estranha: “Só se acha o que se
caça” e expressa precisamente as emoções de um homem que se sente
perseguido. Ele deve sentir-se envergonhado pela maneira como Édipo
o obriga a explicar onde, como e por que Laio foi morto:

Foi Laio ceifado aqui no palácio, ou nos campos afora?

9
Ephasein, dizer é um verbo derivado de phatis (rumor, fala, palavra oracular). O
verbo e o substantivo oscilam, no uso trágico de Sófocles, entre a verdade divina
e o vulgar boato espalhado por imprecisas formulações humanas. Veremos o
uso estratégico dessa ambiguidade já no próximo verso - HE 113. Creonte borra
todas as especificações da viagem de Laio (qual santuário, qual objetivo, tempo
da viagem, e de quem são as informações que ele revela agora; etc.).

136
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

Ou ceifou-se-lhe a vida num país estranho? (HÖLDERLIN,


v. 111 s.).

Éd.: No Palácio, no campo, no estrangeiro,/ em que local


eliminaram Laio? (TV/ER, v. 111).

Não há pergunta mais precisa (Édipo mapeia três alternativas),


mas precisão é o que Creonte tenta evitar. Sua resposta reintroduz uma
indefinição geral de tempo e espaço, que torna impossível saber onde
Laio foi assassinado, onde foi enterrado e se sequer foi encontrado:

C: Um deus consultar, ele partiu, disse(ram) (so hiess es),


Nunca retornou ao palácio depois dessa missão (wie er
gesandt war) (HÖLDERLIN, v. 113 s.)10.

C.: Indagaria – nos disse – o deus em Delfos, / e desde que


partiu não retornou (HÖLDERLIN, v. 114-5).

Édipo faz mais um esforço para reconstituir a cena e corrigir a


imprecisão do relato de Creonte. Pergunta se não haveria testemunhas
que pudessem fornecer detalhes:

Não havia arauto ou acompanhante que visse,


De quem alguém ouvisse algo pra investigar? (HÖLDERLIN,
v. 114 s.).

Éd.: Ninguém viu nada, anúncio algum, factótum, / que nos


tivesse alguma utilidade? (HÖLDERLIN, v. 116).

10
A tradução “So hiess es...”acentua a vagueza, pois ela pode tanto significar que a
mais alta autoridade do palácio fez saber assim ou que assim disseram os rumores
imprecisos na cidade. O texto grego diz: ôs ephasken (Iunt. 114).

137
Kathrin Rosenfield

As perguntas espantadas de Édipo mostram o que as respostas


provocativas de Creonte sugeriram: Laio parece ter desaparecido
completamente, sem vestígios e – o mais importante – sem uma investi-
gação. Creonte flerta com a tentação de inventar uma versão que deveria
dissolver o desconhecimento geral dos fatos vergonhosos do passado e
a culpa que Jocasta e Creonte carregam por não vingar o assassinato:

C: Todos estão mortos. Apenas um, ele fugiu apavorado,


Soube dizer apenas uma coisinha daquilo que sabia
(HÖLDERLIN, v. 117 s.).

A imprecisão e vagueza dessa resposta obriga Édipo a pressio-


ná-lo com outra série de questões:

É: E qual [coisinha]? Pois uma leva a saber muitas,


Quando recebe um pequeno início da esperança.
C: Ladrões teriam-no assaltado, ele disse (ephaske),
Não a força de um, para matar, mas muitas mãos
(HÖLDERLIN, v. 119 s.).

Creonte usa o verbo (teriam-no assaltado) na sua forma hipoté-


tica, para sublinhar que tudo o que diz é especulação, não fatos sólidos.

É: Como ousaria, se não fosse por dinheiro,


O ladrão um ato tão escandaloso e arriscado?
C: Pois sim [houve suspeita de complô], no entanto, com
Laio morto,
Não houve um sequer, a nos auxiliar com nossos males.
É: Que mal pudesse impedir, depois do reino
Ter assim caído, a busca pelas causas? (HÖLDERLIN,
v. 123 – 128).

138
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

Éd.: Diz qual fato! O um será matriz do múltiplo,


Se tiver algo de Élpis, a Esperança.
C.: Agiu de assalto o bando marginal,
não só uma, mas muitas mãos o mataram.
Éd.: E esse ladrão, se não o corrompessem
com a prata, teria tamanha audácia?
C.: Também pensamos; mas, depois que Laio
morreu não houve quem o defendesse.
Éd.: Derruído o rei, que mal, travando o pé,
impede assim a solução do caso?
C.: A Esfinge, canto-enigma:
aos pés, olhar; deixar velado o opaco11 (TV/ER, v. 127 s.).

A suspeita de Édipo precede a chegada de Creonte e é reforçada


pela retórica excessivamente diplomática deste: suas “boas notícias”
(87s) resumem-se a nada, ou seja, a fatos conhecidos, mas velados no
Palácio. Pressionando a memória de Creonte (e não o oráculo), Édipo
entende o que Creonte pensa ser a causa da polução: instado a falar por
três vezes, Creonte tenta retirar-se para o Palácio e esquivar-se com um
oráculo vago e geral (v. 96s.) que Édipo pôde facilmente interpretar
– particularmente por Creonte repeti-lo de maneiras ligeiramente
diferentes (v.100s.). Quando Édipo se recusa a dar sua própria inter-
pretação, Creonte hesita, dificulta e retarda o anúncio constrangedor
da morte não vingada de Laio. Apesar das três exortações, seguidas por
seis perguntas precisas, Édipo recebe apenas versões obscuras vindas
de boatos: as respostas vagas de Creonte parecem tornar deliberada-
mente impossível, para Édipo, descobrir quando e onde o assassinato
ocorreu, como a morte de Laio foi revelada, se o corpo foi encontrado

11
As duas últimas linhas dizem literalmente: “As canções cintilantes da Esfinge nos
obrigaram a não saber o que estava diante de nossos pés e deixar de lado o Invisível”.

139
Kathrin Rosenfield

e se/quando ele foi enterrado (v.110-131). Ficamos, então, com a nítida


impressão de que Creonte ofereceu as duas versões vagas do oráculo
a fim de conduzir Édipo às suas próprias conclusões, o que o teria
poupado de sua confissão.
O Coro é igualmente evasivo: não tendo aprendido com o
oráculo nada que eles não saibam há décadas, os anciãos se recusam a
lembrar os detalhes precisos do que é sabido, e piedosamente fingem
confiar em Apolo e na sabedoria de Tirésias, embora a única estratégia
da cidade, nesse momento difícil, tenha sido a de enviar as crianças
como suplicantes para o Palácio de Édipo. É por isso que este responde
com um lembrete irônico: “Concordo. Mas humano algum consegue
/ impor aos deuses o que não desejam” (v. 280s.).
Após essas palavras céticas, Tirésias deve ser visto menos como
uma fonte de verdade sagrada do que como Hölderlin o chama: “o
guardião dos poderes da Natureza”. Devemos nos perguntar se, na
visão de Hölderlin, Tirésias representa mais a destruição de Ares e o
Dragão do que a visão esclarecedora de Apolo (e/ou do iluminismo
grego). É interessante que Hölderlin não considera Tirésias como um
“profeta” (no sentido bíblico-cristão), mas como um aliado dos poderes
sagrados mas ainda assim sub-humanos. Temos de ver Tirésias não
como um profeta inspirado, mas como um conselheiro relutante que
fala com uma espécie de cumplicidade, sempre estabelecendo algum
paralelismo obscuro entre si e Édipo. O texto grego, e Hölderlin,
marcam de modo bem claro o paralelismo: “Me deixe voltar. É melhor
tu cuidares da tua, eu de minha [sorte]; siga este meu [conselho].” E:
“Vejo que tuas palavras não te favorecem, / e não quero sofrer de um
reverso igual ao teu” (HÖLDERLIN, v. 324 - 328).

T.: Deixa que eu volte. Cada qual sopese / o próprio fardo.


Crê: será melhor (TV/ER, v. 320-1).

140
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

T.: Os sons que emites são inoportunos; / não quero padecer


da mesma sorte (TV/ER, v. 324-5).

Certamente, isso é uma maneira estranha de falar com um


rei. Suas palavras contêm, também, uma ameaça velada. Elas soam
como um desprezível pacto de silêncio. Quando Édipo e os Anciões
imploram para que Tirésias fale, sua ira explode: acusa os tebanos de
terem afundado no esquecimento (aludindo com sarcasmo à igno-
rância dos que não lembram o peso vergonhoso que todos carregam
pela malsucedida supressão de Édipo e a morte não vingada de Laio).
Hölderlin traduz a primeira exclamação “Pois nenhum de vocês
consegue fazer sentido!?”, fórmula essa que tem muito mais ênfase e
cor: “Denn alle seid ihr sinnlos.” T.: Pois todos ignorais! O meu pesar
/ não apresentarei, [não] expondo o teu (TV/ ER, v. 328-9).
Tirésias se irrita com a falta de inteligência e a miopia ingênua
dos que procuram salvar sua inocência pelo esquecimento e a igno-
rância (deliberada). E a maneira como ele se refere à verdade oculta
claramente revela o cinismo de Tirésias:
T. “Mesmo que eu silencie, os fatos falam. (TV/ ER, v. 341) /
Sim, pois me nutre o vero, a própria Aletheia (v. 356) / Se houver no
vero um mínimo de força (v. 369)”.
A “verdade” de Tirésias começa a ficar clara a partir da
etimologia da palavra aletheia – o não esquecido. O profeta usa a
verdade com sarcasmo cínico: ele se lembra de todos os detalhes do
passado e... isso lhe dá poder para encobri-los como paliativo para
o presente. Tirésias fala – porém apenas para que a pletora retórica
encubar a verdade e para poder permanecer em silêncio12 , antecipando
o paradoxo do mentiroso de Hípias. Isso se torna óbvio quando Édipo

12
Seu raciocínio implícito antecipa a lógica do paradoxo do mentiroso. Assim
como Hípias argumenta que uma mentira é superior porque pressupõe um
conhecimento preciso sobre a verdade e a falsidade, Tirésias se orgulha em

141
Kathrin Rosenfield

começa a pressionar Tirésias. Em vez de revelar o que sabe há anos,


pela simples observação de fatos empíricos pela experiência vivida (já
que há tempos não recebe vaticínios divinos), o vate confunde seu
adversário, fixando sua atenção em premissas erradas: Tirésias acusa
Édipo de ser o responsável pelo miasma da cidade (v. 350-3) e também
de ser o assassino que ele mesmo busca (v. 362). Tirésias sabe que todos
associam suas palavras apenas com o regicídio, sem pensar na compli-
cação que remonta ao passado longínquo – a coincidência do regicida
ser o filho morto-exposto que sobreviveu e voltou como parricida.
O discurso enigmático do profeta é um ardil retórico
deliberado e pouco tem a ver com os oráculos divinos. Ele tenta
desestabilizar e confundir Édipo (e esquecer seu próprio fracasso
como um miserável profeta e ainda mais miserável conselheiro); e
quando ele diz “Vives em vergonha com os teus mais próximos”13, isso
pode significar somente – no contexto do regicídio – que o assassino
contamina a mulher e os parentes da vítima, com os quais o assassino
não deveria ter relações de amizade14.A manobra retórica de Tirésias
torna impossível, também para os velhos tebanos, de compreender a
face oculta da verdade: “você está dormindo com sua mãe”. Tirésias

anunciar que o valor de seu silêncio repousa sobre a memória, o raciocínio e o


discernimento [insight].
13
Trajano Viera traduz: “Te uniu aos teus, inadvertidamente” (v. 366 s.). No
original grego prevalece certa ambiguidade, sugerindo que o vate procura
confundir Édipo com um “oráculo” formulado de modo incompreensível.
14
Trajano Viera traduz: “Te uniu aos teus, inadvertidamente” (v. 366 s.), e
homogeneíza esse verso com a “verdade” supostamente unívoca do oráculo. Na
perspectiva da maioria dos leitores, não parece haver problema na eliminação
de um termo ambígua do original em favor de uma expressão que explicite
o que os leitores esperam (a revelação de que Édipo é o filho incestuoso de
Jocasta). Hölderlin sublinha a estratégia retórica do vate cujas palavras são
escolhidas precisamente para confundir Édipo com um “oráculo” incompre-
ensível, que impede o herói e o Coro a ver e a lembrar (aletheia significa, muito
à propósito, o não esquecido).

142
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

escolhe suas palavras e distorce as conexões entre os fatos – que é


maneira mais sutil de mentir. Uma forma muito astuta, humana e
demagógica de aletheia, de “coisas não-esquecidas”. O comporta-
mento de Tirésias é realmente suspeito e inspira temor. Depois de
observar o estranho embaraço de Creonte e as insinuações de Tirésias,
Édipo possui todos os motivos para temer uma conspiração.

A sintomática mudança de humor


de Creonte e seu pânico obscuro
que provocam um incoerente non sequitur
Na cena seguinte, quando Creonte retorna indignado com
a notícia das acusações e ameaças que Édipo teria feito contra ele,
Creonte mostra no meio da altercação dos cunhados uma mudança
estranha, sintomática de seu comportamento. Essa sutil dissonância
do tom é um bom exemplo do estilo “formidável” de Sófocles: ele
nos faz sentir algo não dito (e mais do que isto: algo silenciado) que se
passa nas mentes das outras personagens e que deve despertar nossa
curiosidade e o suspense de peça15. Trata-se da cena na qual Creonte
se defende, indignado, com uma retórica moral que desqualifica a
arrogância prepotente do cunhado (authadia):

C.: Se pensas que é um bem tua enervada / Obstinação, então


estás errado (HÖLDERLIN, v. 556 s).

Se crês que a audácia destituída de / razão é um bem, incorres


em equívoco (TV/ER v. 548-9).

15
O estilo de Demétrio é deinos (formidável) no discurso: “asking questions of
one’s listeners without revealing one’s own position on the issue, driving them
to perplexity by what amounts to cross-examination” (AHL, 1991, p. 260).

143
Kathrin Rosenfield

A resposta de Édipo parodia essa crítica que desqualifica o


governante como tirano que não respeita o diálogo democrático. Édipo
retruca com uma fórmula análoga alegando que se defende da intenção
maldosa de quem procura “prejudicar um parente” (não o rei!).

É.: Se pensas que é lícito ferir o parente / Sem retaliação, então


[tu] estás errado (HÖLDERLIN, v. 558 s).

Éd.: Se crês que podes fazer mal contra um parente, / e ficar


impune, incorres em equívoco (TV/ER, v. 551-2).

Em seguida, o argumento das maldades entre parentes retorna


em mais duas formulações (cf. 551 et seq., 556 et seq. e 611) e produzirá
um efeito de repentina inquietude que abala a autoconfiança de
Creonte. É como se Creonte lembrasse que essas acusações – falsas
no presente momento – são inteiramente verdadeiras e justificadas
em relação ao passado remoto, quando Creonte contribuiu com seu
conselho para suprimir o bebê amaldiçoado que um dia se tornaria
Édipo (no passado, como no presente ele fazia parte da tríade reinante,
em posição de igualdade com Laio e Jocasta).
Sófocles mostra no tom da conversa o retorno do reprimido na
mente de Creonte e o efeito se tornará mais explosivo nas próximas
linhas do diálogo. Elas mostram o peso da culpa que oprime a consci-
ência de Creonte: a expressão de Édipo “para prejudicar um parente”
levou Creonte de volta ao tempo em que concordou com Tirésias e
Jocasta com a decisão de eliminar o herdeiro legítimo do trono. Essa
inquietude desvia Creonte de sua retórica moralizante e indignada, ele
começa a se sentir sob acusação e comete um non sequitur que evidencia
seus pensamentos ocultos e culpados. Com consciência pesada ele
pergunta: “mas podes me explicar que mal te fiz?” (554 s.), e Édipo
responde com mais duas perguntas – a primeira Creonte responde

144
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

com a maior tranquilidade. Mas, na segunda, as ideias do filicídio do


qual participou no passado fazem Creonte suspirar e hesitar:

É.: Fostes tu, ou não, a alvitrar a urgência / De mandar um


homem buscar o vidente sagrado?
C.: Também agora tenho o mesmo conselho.
É.: Quanto tempo já faz , desde que Laio –
C.: Fez qual obra? Não sei de nada!?
É.: Partiu , encontrando a morte violenta:
C.: Oh, essa medida do tempo já é ampla e longa
(HÖLDERLIN, v. 562-568).

Éd.: Me persuadiste – sim ou não? – da urgência


de aqui trazer o vate?
C. [kaí nin] Meu parecer, agora o ratifico.
Éd.: Pois bem; e Laio, há quanto tempo é que...
C.: Que? Laio fez o quê? Não te compreendo.
Éd.: Que esvaneceu, golpeado mortalmente.
C.: Só usando a macromedição de Cronos16 (TV/ER, v.
555-561).

É surpreendente que Creonte, cujo discurso foi tão longe retórica


e moralmente, agora adote um estilo evasivo e defensivo, que em breve
terminará em um pedido de desculpas quase grotesco. Mais impressio-
nante, porém, é o temor súbito de Creonte depois de Édipo mencionar:
1) o medo de ser vítima nas mãos de um parente; 2) sua suspeita sobre
Tirésias; e 3) sua vontade de saber mais a respeito do (remoto) passado
de Laio. Essa sequência parece fazer a mente de Creonte voltar, não para

16
Bollack (1990, 1) coloca ainda mais pressão sobre a evasiva falta de precisão na
resposta de Creonte: “Une éternité. Depuis un temps immemorial, si l’on se
mettait à compter”.

145
Kathrin Rosenfield

o passado do assassinato de Laio, mas para o passado remoto, quando


ele e Jocasta, junto de Laio, decidiram matar o bebê. Isso explica a
interrupção ansiosa de Creonte durante o discurso de Édipo com um
non sequitur “Que Laio fez o quê?”. Seria estranho usar um verbo ativo
como “fez” para descrever a passividade suprema de morrer. Além disso,
não havia necessidade alguma, por parte de Creonte, de interromper
Édipo. Sua interrupção soa como o discurso culpado de alguém que
acha que está sendo pego na mentira. Quando Édipo continua a
perguntar “e Laio, há quanto tempo é que...”, é bastante óbvio que
a pergunta visa saber há quanto tempo Laio morreu. Mas, Creonte
entende: “Há quanto tempo Laio fez algo [terrível, inominável]?”, e o
contexto sugere que sua mente associa inconscientemente o “conselho
para chamar o profeta” com algum terrível ato realizado por Laio.
Parece haver uma teia de associações secretas que faz voltar à mente
de Creonte uma série de memórias reprimidas de maldades. É por isso
que ele explode e interrompe a questão aparentemente trivial de Édipo
com um non sequitur alarmado e totalmente irracional: “Que Laio fez
o quê? Não te compreendo”. A melhor explicação para sua interrupção
sem razão seria a memória de Laio mutilando seu filho (e, portanto,
“fazendo mal a um parente” (v. 551 s.)17) e ordenando à sua esposa que
cuidasse da supressão da criança18 (cf. v. 611).

17
Para um homem, fazer o trabalho sujo de uma mulher era condenável aos olhos
do público ateniense, como testemunha o horror dos Anciães em Agamêmnon,
de Ésquilo, quando Egisto é covarde o suficiente para deixar que Clitemnestra
assassine o rei.
18
Também é possível, é claro, que de fato Creonte tenha tramado contra Laio.
Se esse fosse o caso, ele iria sentir culpa; se o oráculo de Delfo disse algo sobre a
morte de Laio, ele estaria relutante para denunciá-lo, e Édipo teria de arrancar a
verdade dele. Se Creonte não sabe quem matou Laio, é possível que ele ache que
seu plano tenha funcionado. Isso daria conta, também, de explicar o envio tão
repentino do pastor para longe, desde que Creonte (e, talvez, Jocasta) temesse
reconhecer o assassino designado.

146
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

Embora não possamos dizer exatamente o que Creonte está


pensando, ele claramente caiu em uma profusão obscura de pensa-
mentos e associações. Depois dessa inquietante agitação de memórias,
seu comportamento mudou19. Torna-se distraído, e agora está ansioso
para garantir a Édipo que ninguém, nem mesmo o profeta, jamais
mencionou seu nome como suspeito do assassinato de Laio no passado
(v. 565 s.). Édipo revela-se um investigador eficaz quando se aproveita
do tema trazido ao diálogo por Creonte. Ele rapidamente repete a
pergunta se a morte de Laio não foi investigada (HÖLDERLIN,
v. 565) – uma pergunta que já havia feito a Creonte no Prólogo,
recebendo então a resposta que o caos da Esfinge não teria permitido
investigação. Agora, entretanto, Creonte responde afirmativamente,
dizendo que a cidade toda teria se empenhado, porém sem sucesso:

É.: Pois não foi feita uma investigação da morte [de Laio]?
C.: Investigamos, sim. Como não? Mas não apuramos nada
(HÖLDERLIN, v. 575 s).

Éd.: A polis não investigou o crime? (TV/ER, v 129 s).

A resposta de Creonte é diferente do que ele disse em seu


primeiro encontro com Édipo, no qual ele alegou que havia sido
impossível buscar os assassinos porque a Esfinge estava a assolar a
cidade20. Em sua confusão, tudo o que Creonte pôde fazer foi alegar
ignorância e inocência:

19
Cf. Segal, 2001, 84, aponta que a atitude de Creonte é cautelosa “and even a
little pedantic”.
20
E a contradição de sua segunda resposta em breve será contradita mais uma
vez pela versão de Jocasta do que acontecera depois da morte de Laio (ou seu
desaparecimento).

147
Kathrin Rosenfield

Éd: E por que o sábio profeta não falou nada nesse então?
C.: Não sei. Quando não entendo, calo (HÖLDERLIN, v. 575).

Éd.: E como o sábio nada proferiu? /


C.: Não sei. Me calo quando faltam dados (HÖLDERLIN,
v. 568-9).

Quando Édipo o acusa mais uma vez de manter uma estranha


aliança com Tirésias, Creonte, de repente, torna-se um homem diferente,
totalmente dócil. Mais do que isso, procura atenuar as acusações de
Tirésias e concorda que Édipo “jamais será reconhecido como assassino”
(HÖLDERLIN, v. 583). Creonte não perde a oportunidade de passar
da apologia de Édipo para a sua própria. Como se Édipo não tivesse ao
par das práticas tebanas, ele se alonga sobre o poder compartilhado pela
tríade do rei, da rainha e do irmão da rainha, o conselheiro do trono:

É.: Escute-me, jamais serei reconhecido como assassino.


C.: E como seria possível? Não és casado com minha irmã?
[...]
E não reinas, tal como ela, sobre esse país?
[...]
E não sou eu o terceiro a compartilhar o poder com ambos?
(HÖLDERLIN, v. 583-588).

C.: Entre os dois, no reinado, há isonomia?


Éd.: O que ela quis, jamais lhe foi negado.
C.: Como terceiro, eu não me igualo aos dois?
Éd.: Eis onde te mostraste um mau amigo21 (HÖLDERLIN,
v. 579-82).

21
O texto grego diz, literalmente: “In this precisely you showed yourself a bad
friend, a treacherous relative (kakos phainê philos)”.

148
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

O espectador aprende aqui que Creonte sempre foi integrante


ativo do governo de Tebas, entrevendo na desajeito esforço de autoapo-
logia que ele se contentou em compartilhar os benefícios do poder22
sem ter de arcar com as responsabilidades.
A ironia dessa conversa é dupla e inversa. Creonte mostra que
sua amizade é baseada nas areias movediças do interesse e do lucro,
deixando claro que o aliado “fiel” pode mudar sua atitude de acordo
com as circunstâncias. Além disto há mais uma ironia sarcástica no
gran finale de Creonte: suas desculpas como um “amigo leal” e parente
fiel terminam com os seguintes clichés. Primeiro, uma exortação
de que Édipo deveria respeitar homens honrados e jamais julgar
com base em obscuras opiniões ou conclusões (Meinung, gnôme)
(HÖLDERLIN, v. 616-8); depois, um apelo sentimental à honra
dos sagrados laços de família, ao dever de acalentar os parentes mais
próximos, defendendo e protegendo sua vida (HÖLDERLIN, v. 614).
Esse cuidado, segundo Creonte, seria tão ou mais precioso quanto a
própria vida (HÖLDERLIN, v. 619)23.
Para os leitores inclinados a simpatizar com Creonte, gostaria
de salientar que foi precisamente a intervenção de Tirésias e sua
“sábia” interpretação do oráculo que levaram Laio, Creonte e Jocasta
a desmentir todos esses bons preceitos, pois tiveram no passado o mau
juízo de suprimir o mais próximo parente, o único filho e herdeiro. O
que paira no ar, graças ao repetido contraste que Sófocles estabelece
entre os pais tebanos e os pais adotivos de Corinto, é que essa criança
poderia ter se revelado como filho e parente “leal”: à imagem e seme-
lhança de Édipo-filho dos seus pais adotivos, Políbio e Mérope, que

22
De acordo com Vian (1963, p. 189), o poder da rainha nessa peça é uma remi-
niscência da sucessão matrilinear comum nas sociedades arcaicas e nos mitos.
23
C.: Se é grave de antemão tomar o mau / por bom, do mesmo modo o inverso
é grave. / um amigo honesto é igual / a desprezar o bem maior: a vida (TV/
ER, v. 609-12).

149
Kathrin Rosenfield

o trataram com bondade. O julgamento do vate foi manifestamente


aleatório e errado. Isso mostra que Tirésias é um profeta arruinado,
Creonte o pior dos parentes e conselheiros, Laio um tirano impiedoso
e sedento de poder e Jocasta uma mãe desnaturada.
Isso nos leva à precipitação de Jocasta, seus atos falhos freu-
dianos e seus argumentos obsessivos e incoerentes.

As incoerências de Jocasta

A entrada imperiosa de Jocasta e suas ordens severas fazem-na


parecer mais uma rainha micênica do que a esposa de um rei da idade
clássica, e seu empenho imediato e automático em favor do irmão,
antes que ela tenha sequer ouvido falar o que Édipo tem a dizer contra
ele, mostra que há pouco espaço para a troca democrática de bons
argumentos – em outras palavras: Édipo de fato tem boas razões para
estar preocupado:

É.: [...] Hediondos atentados, ô esposa!


Descobri nas artimanhas dele contra meu corpo.
C.: Sem querer tirar vantagem, prefiro ser
Amaldiçoado e sucumbir, do que agir
Do modo em que me acusas.
J.: Pelos deuses! Acredite, Édipo!
E honre o sacro juramento prestado [por Creonte] diante
de todos,
Diante mim e aqueles aqui presentes (HÖLDERLIN, v.
653-660).

Éd.: Exatamente, esposa, pois flagrei-o / armando contra


mim o esquema sórdido.

150
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

C.: Sem mais vantagens, morra amaldiçoado, / se uma parcela


eu fiz do que imputas. /.: Ele é merecedor de crédito, Édipo!
/ o sacro juramento impõe respeito, /minha presença e a dos
demais também (HÖLDERLIN, v. 642-648).

Ao que parece, Jocasta já sabe e decidiu de antemão, ela não


escuta o que o marido tem a dizer. O Coro imediatamente toma
vantagem da autoridade da rainha para fazer um apelo formal:

Confie, pondere
Te peço ô rei!
[...]
Deves honrar [o próximo parente] com sagrada amizade
Não rejeitá-lo como culpado
Devido a falas incertas
Nem expulsá-lo sem honra (HÖLDERLIN, v. 661- 673).

Coro: Respeita um homem que jamais foi néscio; / Seu


juramento agora o engrandece. / [...] o amigo que jurou jamais
condenes, / Fundamentado em boatos, à desonra (TV/ER,
v. 652 -656).

A tradução de Trajano Viera usa um termo moral abstrato


(condenar) no lugar do termo grego mais concreto “não expulse o
amigo (ou próximo parente)” (enagéphilon...mé... ekbaleu). No entanto,
é a concretude do termo usado em grego “jogar fora” (ekbalein) que
desperta a lembrança do crime recalcado dos tebanos que procuram
esquecer a exposição do pequeno filho de Laio, ainda mais que o
coro junta ao substantivo “amigo/parente” o adjetivo enagé, “que
carrega uma maldição ou um juramento sagrado” e evoca claramente
a maldição do sangue vertido. Na tradução de Kitto:

151
Kathrin Rosenfield

Coro: Confie, pondere


Te peço ô rei!
[...]
Deves honrar [o próximo parente] com sagrada amizade
Não rejeitá-lo como culpado
Devido a falas incertas
Nem expulsá-lo sem honra (HÖLDERLIN, v. 661-673, Oe
v. 650-57)24

Coro: [Imploramos:] Não rejeite e não expulse do nosso meio


um amigo, / Ignorando um juramento sagrado em nome de
uma opinião incerta (Oe, v. 656-7)25.

As palavras do herói retomam o tema inicial de Creonte sobre


o “parente fiel e amigo dedicado”. Mas, Sófocles implanta reviravoltas
irônicas na fala do Coro para trazer à tona a falta de “simpatia” de
Creonte no passado. A tradução literal da frase grega pode referir-se
igualmente à situação atual ou à exposição de Édipo quando criança:
“O amigo / parente sobre quem pesa uma maldição / [Você] Nunca
[deve] acusar / Com uma palavra obscura / Nem privá-lo de sua honra
nem mandá-lo embora”.
Não admira que o Coro, em seguida, tente afastar essas
lembranças ruins como “palavras equívocas, suspeitas, injustas” (cf.
681 v.) e, assim como a rainha insiste, recusa-se a responder:

24
Quando se tratar da tradução de Kitto (1962), faremos uso da sigla “Oe” (Oedipo
Rex).
25
Jebb 656 s.: “Thou shouldest never lay under an accusation (en aitia balein) so
as to dishonor him (atimon = cast dishonoring charge on him) with the help of
an unproved story (syn aphané logô) the friend who is liable to a curse (enagê)”.
Gould: “Never to cast into dishonored guilt, with an unproven assumption, a
kinsman who has bound himself by curse”.

152
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

Coro: Basta pra mim, basta que o país cansou de sofrer,


O que se encerrou deve ficar como está (HÖLDERLIN,
v. 704 s.).

Coro: Essa terra já sofre muito para / ficar repousado nesse


assunto (TV/ER, v. 686).

Todos parecem precipitadamente enfatizar que está tudo bem


e normal (dentro do caos instalado), mas a maneira como eles fazem
isso aponta o que é deixado implícito. Como um mestre na dupla
ironia26 de Demétrio, Sófocles nunca permite que seus leitores saibam
exatamente o que se passa nas mentes de seus personagens, e a irônica
tensão resultante convida o leitor a explorar sua própria imaginação.
Jocasta, em particular, se precipita para acalmar os temores
de Édipo. Ela tem uma estranha certeza de que não pode haver uma
conspiração contra seu marido e se mostra estranhamente triunfante
sobre o suposto fato de que Tirésias está sempre errado. Jocasta tenta
insistentemente convencer Édipo de suas próprias convicções falan-
do-lhe sobre o oráculo de Laio:

Outrora Laio recebeu um ditado profético, não digo


Do próprio Febo Apolo, mas dos servidores divinos,
Que seu destino seria o de morrer27
Da mão do filho que nascesse dele e de mim.

26
Cf. Ahl, 1991 (supra, Introdução).
27
Como salientam os filólogos (Kammerbeek, vv. 713 e 714 Dawe), a moira
(porção, destino) anunciada não tem o sentido de uma predestinação, mas tem
a função de uma enigmática advertência. O homem que a recebe é livre de inter-
pretá-la como bem entende. E Hölderlin assinala com perspicácia a relevância
desse processo interpretativo sobretudo em Sófocles, que removeu os deuses a
uma grande distância.

153
Kathrin Rosenfield

Quem o matou, porém, assim disse o rumor,


Foram assassinos estranhos na tripla encruzilhada
(HÖLDERLIN, v. 730-735; Oe, v. 711-716).

J.: outrora Laio recebeu um oráculo/–senão do próprio


Apolo, de seus próceres –,/segundo o qual a Moira lhe traria/a
morte pelas mãos de um filho nosso./Mas forasteiros –
dizem28 – o mataram, /ladrões na tripla interseção de estradas
(HÖLDERLIN, v. 711-16).

O relato de Jocasta não diz quando o oráculo foi revelado, nem


há nenhuma menção ao incesto ou matricídio anunciada, nem mesmo
a informação de que o oráculo estava envolvido – Tirésias também
pretende servir a Apolo. O que ela sabe sobre a morte de Laio é baseado
em boatos: “Ele foi morto – pelo menos assim disse o boato29” (v. 715).
Também a morte da criança é formulada em sua retórica eufemística:

Mas quando lhe nasceu a criança,


Não durou três dias, e ele atou
Os pés no tornozelo, e com mãos alheias
Lançou-o num penhasco intransitável (HÖLDERLIN, v.
736-739; Oe, v. 717-9).

28
Cf. a tradução de Ahl: There came to Laius once an oracle’s response, /I won’t say
from Phoebus himself, but from his staff, / That doom would visit him as death
at a child’s hand – / Whatever child were born to me and to himself. / Report
[or rumor!] says Laius was at some point killed: waylaid / By foreign robbers at
a place where three roads meet (AHL, 2008, vl. 707-716).
29
A ironia feroz deste verso é que significa também: Ele foi morto tal como
(o oráculo/boato) disse” – isto é: assassinado pelo filho transformado em
“estranho” pelo não-reconhecimento do pai e a expulsão da cidade.

154
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

J.: Quanto ao menino, em seu terceiro dia, / Laio amarrou-lhe


os pés pelos artelhos, / Mandou alguém lançá-lo a um monte
virgem30 (HÖLDERLIN, v. 717-9).

Aqui Jocasta deliberadamente une um eufemismo a uma


mentira. Jocasta começa dizendo que os pés ou pernas do bebê estavam
“atados”, uma maneira muito leve de descrever a perfuração e muti-
lação dolorosa que, como veremos, causou um ferimento tão grave que
o velho Coríntio pode identificar Édipo pelas cicatrizes ainda muitos
anos depois31. E ela omite sua própria participação na exposição mortal
de seu bebê. Laio nunca lançou seu filho sobre um precipício.
Sua versão do oráculo de Laio é tão incompleta que não corres-
ponde inteiramente à profecia de Édipo, que menciona primeiro o
incesto e a prole maldita, depois o parricídio32 .
Contrariando a opinião geral de que a inteligência de Édipo é vã
e de que essa seria a razão para seu reconhecimento tardio, Hölderlin
nos ajuda a ver que as várias versões dos boatos não correspondem
entre elas. Essa é, de fato, a razão da lentidão de Édipo (e do drama).
Apenas o relato do abate na encruzilhada é que tem a semelhança
notável que Édipo agora teme e quer afastar, apegando-se ao detalhe
dos vários bandidos. Mas Jocasta está totalmente fora de sintonia
com as preocupações de seu marido. Ela está tão ansiosa para provar
que os oráculos são falsos que revela os segredos sobre o assassinato

30
Gould e Bollack estão bem próximos da tradução literal das palavras gregas:
“montanha selvagem”: “Et le fit jeter par d’autres mains dans une montagne perdue”.
31
Kamerbeek observa a diferença significativa entre o eufemístico “jugo” e a
crueldade da mutilação (cf. a descrição de Eurípides, Phoen., I 22 s.). Ele explica
a preferência natural da mãe por esconder a crueldade dos atos do marido
contra o seu bebê.
32
Éd.: Faria sexo com minha própria mãe, / gerando prole horrível de se ver; / seria
o algoz do meu progenitor (TV/ER, v. 791-3).

155
Kathrin Rosenfield

nunca purificado e encoberto de Laio – uma verdadeira estratégia


para encobrir o passado, lançando informações que deturpam o olhar
e obstruem substancialmente a investigação de Édipo.
Em uma sequência contraditória, ela menciona que a “procla-
mação” oficial da morte de Laio – presumivelmente por um arauto
– antecedeu “um pouco tua chegada e o teu governo” (HÖLDERLIN,
v.736 s.) e também que houve uma testemunha ocular do crime (v.
757), o escravo que escapou do massacre, mas que chegou depois da
ascensão de Édipo ao trono:

Não! Não está mais! Pois retornando de lá, soube


Que tu detinhas o poder, Laio estando morto,
Ele me implorou, tocando minhas mãos
Que o mandasse para as terras altas, pastos de ovelhas,
Longe da cidade e dos seus olhares.
E bem que o mandei, pois valoroso foi esse homem,
O servo merecia mais favores do que esse (HÖLDERLIN, v.
778-784; Oe, v. 758-64).

J.: O homem, ao retornar a Tebas, quando/viu que reinavas


em lugar do morto,/tocou-me as mãos, veio rogar-me:/deixas-
se-o ir ao pasto, atrás do gado./Tão longe dos demais, queria
estar. /Era o meu melhor escravo, não lhe negaria / graça até
maior. Dei meu sim. Partiu (TV/ER, v. 758-65).

Os últimos dois versos dessa tradução de Trajano divergem


bastante do original grego e da tradução de Hölderlin. Em grego e
em alemão, a ênfase da Rainha está na menção elogiosa desse escravo
(HÖLDERLIN, v. 783 s.).
Apesar do fato de que Édipo já estava governando, o escravo
foi – secretamente – enviado, tanto quanto possível, para longe do

156
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

Palácio e dos olhos vigilantes de Édipo. A ignorância de Édipo mostra


que não havia nenhum relato público sobre a morte de Laio, e que
a investigação foi conduzida de tal maneira que ninguém tivesse
realmente uma visão nítida do acontecido. Além disso, Jocasta ainda
sente tanta gratidão pelo fato que esse escravo a tenha livrado do filho
amaldiçoado que ela sublinha os “méritos” desse servo ao qual teria
concedido “muito mais favores” do que esse afastamento (faceta que
não aparece na tradução de Trajano Vieira).
Essas contradições não são erros de Sófocles. Elas são parte
integrante da estrutura em duplo-enredo da peça. Todos no Palácio de
Tebas – e Jocasta, em particular – estão tentando esquecer o passado.
Descobrir o porquê das estratégias de ocultação é o núcleo do objetivo
de Édipo. Quando Jocasta, depois de muita relutância, concorda em
trazer o escravo (HÖLDERLIN, v. 839 s) “Tão logo chegue, qual
tua expectativa!”, ela percebe quão comprometedora poderia ser sua
presença. Eis a razão pela qual ela logo muda de tom e cai em um
murmúrio obsessivo sobre a veracidade do relato do escravo. Embora
ela afirme com veemência que o homem irá repetir a história que “toda
[a] cidade ouviu” (850 v.), parece temer que ele diga algo a mais:

Saiba, porém, que é tão acertada a palavra [do pastor]


Que esse não pode revogá-la agora.
A cidade o ouviu, não só eu.
Mas mesmo que ele desvie do termo antigo,
Ele não poderá dizer, ô rei! Que Laio morreu
Conforme o anúncio de Loxias, pela mão de meu filho
(HÖLDERLIN, v. 871-877; Oe, v. 848-858).

J.: Eu repeti somente o que era público; / ele não pode,


pois, voltar atrás: / toda cidade ouviu, além de mim (TV/
ER, v. 848-50).

157
Kathrin Rosenfield

J.: Ainda que altere o seu relato prévio, / não provará, nem
mesmo assim o acerto / da profecia. Apolo asseverou /
que Laio morreria às mãos do filho. / Sabemos bem que
o pobre do garoto / já estava morto quando o pai morreu
(TV/ER, v. 851-56).

Como observa Dawe (no comentário ao verso 854)33, “[a]


aceitação complacente de Jocasta da ideia de que seu segundo marido
pode muito bem ter matado seu primeiro” é apavorante. A única preo-
cupação de Jocasta é expulsar e esquecer, de vez por todas, o reinado
condenado de Laio e tudo o que concerne a ele.
Logo após esse diálogo Jocasta, agora seriamente preocupada,
FAZ oferendas a Apolo e dirige-se a ele pelo seu segundo nome, Loxias
(v. 853, torto, sinuoso); isto sugere que sua mente começou a ruminar
sobre os caminhos “oblíquos” desse deus de intricadas e ininteligíveis
palavras (Loxa). Mas essa não é a única ironia desse discurso histérico.
Começamos a perceber que o raciocínio de Jocasta é bloqueado pelo
argumento defensivo de que ela e Laio conseguiram enganar o oráculo,
um triunfo redundante que ela tenta trazer de volta para si e para
Édipo. Apenas o final da peça revelará a razão da obsessão da Rainha
com o oráculo e a tentativa, sempre de novo fracassada, de esquecê-lo
e de enterrar o passado dos tempos de Laio. Pois o Pastor não somente
revelará que a criança foi “Filho do rei, diziam”. Ele evita dizer mais
indicando que a rainha poderia dar mais “explicações”.
Depois de um longo jogo de protelação e recusas de Jocasta e do
pastor, esse revelará – coagido – o que ele, o humilde servo encarregado
de matar Édipo, soube ou lembra do oráculo, ou seja, o anúncio de
uma dupla matança de pai e mãe:

33
DAWE, R. D. Oedipus Rex. Cambridge University Press, 1982.

158
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

P.: Diziam que era filho dele [Laio].


Tua esposa poderá melhor dizê-lo.
É.: Foi ela quem te o dera?
P.: Sim meu Rei.
É.: Para fazer o que?
P.: Para aniquilá-lo.
É.: Pariu tão infeliz [que foi capaz pra tanto]!?
P.: Por medo de rumores assombrosos.
É.: E quais?
P.: O filho mataria seus pais, dizia o rumor (HÖLDERLIN,
v. 1192-1201 s; Oe, v. 1173-1182).

Éd.: Foi ela quem te deu a criança? // P.: Exatamente, rei. /Éd.:
Com que finalidade? // P.: Para dar cabo dele./ Éd.: A própria
mãe? Incrível! // P.: Temia um mau oráculo./ Éd.: Qual? //
P.: Seria o matador dos pais – diziam. / Éd.: Por que motive
então o deste ao velho? / P.: Me condoí. (...) (HÖLDERLIN,
v. 1173-82).

Resumindo, no filigrano da tradução de Hölderlin, encon-


tramos uma dupla trama que brinca com muita ironia com os sentidos
equívocos não só dos oráculos divinos: tanto o texto alemão de
Hölderlin, como o original grego permitam mostrar que os oráculos
“divinos” emergem com modulações e diferenças importantes dos
desejos, medos, fantasmas e esquecimentos (voluntários e involun-
tários) dos seres humanos. A tragédia da cegueira de Édipo é apenas
uma parte da peça de Sófocles que desenvolve ardilosamente outras
formas de cegueira: mentiras e silêncios que encobrem velhos males e
vergonhas que os personagens procuram denegar ou esconder.

159
Kathrin Rosenfield

Referências

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and Seneca’s Oedipus. New York: Cornell University Press, 2008.

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160
ÉDIPO REI NA VISÃO DE HÖLDERLIN

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162
O MITO DE ÉDIPO*
Michel Bréal1

“Quanto mais entrarmos na natureza íntima dos mitos primitivos,


mais nos convenceremos de que eles se relacionam, em sua grande
maioria, com o sol”. Esta opinião do Sr. Max Müller, que pode parecer
singular e paradoxal, decorre de um sentimento verdadeiro sobre as
condições em que se encontrava a humanidade em sua infância. O
espetáculo que, na verdade, primeiro impressionou o espírito do
homem foi o corpo luminoso que ascendia e descia do céu em virtude
de uma força que lhe parecia própria, que distribuía a todos os seres o
calor e a vida, e parecia pairar como um ser superior sobre o mundo,
do qual ele era o habitante mais poderoso e o mais belo. Os primeiros
assuntos de conversa, os primeiros temas poéticos da humanidade
devem ter sido sobre o nascimento do astro, sempre saudado por
novos gritos de alegria, seus combates contra a escuridão, sua união
com as nuvens, seu poder, o mais frequentemente salutar, mas às
vezes avassalador e mortal, seu desaparecimento sob o horizonte que
se assemelhava a um fim precoce. Para entender o encanto singular
e o interesse inesgotável que se ligava a esse tema, não é necessário

* Texto traduzido por Hozanete Lima (UFRN/DLET) e Ana Luisa Carmino


(UFRN/DLET). O original em francês se encontra em BRÉAL, Michel. “Le
mythe d’Oedipe”. In: BRÉAL. Mélanges de mythologie et de linguistique. 2. ed.
Paris: Librairie Hachette et Cie, 1882. p. 163-185. Deixamos aqui uma nota
de agradecimento a Renan Marques Liparotti (Centro de Estudos Clássicos
e Humanísticos da Universidade de Coimbra/Universidade de Salerno) pela
preciosa ajuda na transcrição e revisão dos termos e enunciados em língua grega.
1
Uma primeira versão deste texto foi apresentada por Michel Bréal na Revue
archéologique, 1863.

163
Michel Bréal

retornar a esses tempos remotos. Basta sair por alguns dias dos hábitos
da vida moderna. Uma estada nos campos, uma travessia no mar e
uma viagem a pé são suficientes para tornar presente o poder desse
senhor, alternadamente suave ou terrível, a quem às vezes esquecemos
em nossas cidades. Lembro-me de que, iniciando uma excursão para
as montanhas com um amigo, em uma manhã cinzenta que poderia
tanto anunciar a chuva e o frio quanto dar lugar ao dia mais lindo, foi
o sol, e o que ele prometia ou fazia temer, que primeiro tomou lugar em
nossas conversações. Em vão tocávamos em outros pontos: voltávamos
a esse assunto, que ultrapassava, em interesse, todos os outros. O que
não deveria ser o sol para um povo nômade sem meios assegurados de
subsistência, sem conhecimento das regiões que ele percorria, entregue
aos perigos que cada noite trazia consigo, desprotegido diante do
inverno e do calor do verão? A necessidade de adoração natural do
homem, assim como seu gosto pelo maravilhoso e a consciência de sua
fraqueza, levou-o a fazer, do ser incompreensível cuja natureza ele não
conhecia e cujo poder ele sentia a cada momento, um deus.
A história mais antiga que os homens se contaram foi então a
desse herói resplandecente em força e brilho desde as primeiras horas
de sua existência, generoso e grande durante sua vida, mas atingido,
ao fim de seu curso, por um golpe que ele não podia evitar. Antes de
pensar em olhar para si mesmos, nossos ancestrais já conheciam as
aventuras do soberano celeste. É apenas gradualmente que o homem se
interessa pela história de seus próprios destinos. A ordem genealógica
imaginada pelos mitólogos responde bem ao progresso do pensamento
humano: é Júpiter o começo de tudo; depois dele vêm os outros deuses,
que por sua vez dão nascimento aos heróis e aos reis da terra; os simples
mortais são os últimos a entrar na história, assim como formam na
fábula o último elo da cadeia das criaturas. As narrativas sobre as quais
falamos não têm, aliás, nenhuma pretensão astronômica: elas não nos
ensinam nem a medida do tempo nem o conhecimento dos eclipses.

164
O MITO DE ÉDIPO

Quando elas falam sobre o Sol, é para mostrá-lo deixando o a Aurora


em seu leito no oriente e reencontrando-a à noite no outro lado do
horizonte, ou conduzindo seus cavalos em um caminho íngreme onde
ninguém mais saberia contê-los, ou consumindo-se no final do dia no
meio do incêndio que ele provocou.
O grande número dessas narrativas não deve nos surpreender.
Aqueles que censuram os intérpretes de mitologia de adaptar a mesma
explicação a uma multidão de fábulas, e de encontrar o mesmo ser sob
as mais diversas máscaras, sequer imaginam que a mitologia grega não
constituiu no princípio a narrativa [...]2 e bem encadeada que temos
hoje, mas é o produto de uma compilação em que a mesma fábula
pôde se infiltrar mais de uma vez, graças às variantes da narrativa,
com a diferença dos nomes dos personagens e a mudança de lugar
onde se supõe realizar-se a ação mítica. Se algo pode nos fazer entender
esse tipo de emprego duplo são as recolhas que a Alemanha organiza
nesse momento dos contos e lendas populares das suas províncias. As
mesmas histórias retornam perpetuamente, coletadas na Suábia, na
Silésia, na Turíngia, em Holstein; mas nenhuma dessas narrativas é
exatamente idêntica à outra: elas diferem uma da outra pelos nomes dos
personagens, pelo lugar da cena, pelos incidentes, pelo aspecto geral.
Cada região modificou o tema original e marcou sua originalidade.
Muitas vezes observou-se a quantidade de sinônimos que
o grego possui para designar o mar, e se diz com razão que essa
riqueza de termos convém bem a um povo de marinheiros. Ainda
hoje, se olharmos para os nomes dados pelos nossos camponeses aos
fenômenos naturais, nós ficaremos surpresos com a variedade de
palavras que eles usam. Para muitas variedades de um mesmo fato,
que nós entendemos sob o mesmo nome, o camponês tem designações

2
O termo está truncado no texto. Na versão de 1877 lê-se: “le récit suivi et bien
enchaîné que nous possédons aujourd’hui” (“a narrativa fluida e bem concate-
nada que temos hoje”) (N. das T.).

165
Michel Bréal

especiais das quais ele se serve com justeza: esse tipo de vocabulário é
o produto de uma longa série de observações e constitui uma ciência
que é transmitida entre os agricultores e os pastores. O espírito de
observação dos gregos, servido por um idioma flexível, multiplicou os
cognomes dados aos fenômenos da natureza. O sol, por exemplo, (para
voltar ao nosso ponto de partida) não apareceu sob o mesmo aspecto
aos pastores da montanha ou aos agricultores da planície; o insular
deu-lhe nomes diferentes dos dados pelo morador da terra firme. Caso
se queira considerar que todas essas designações assumiram um caráter
sagrado, uma vez que se aplicavam a um ser divino, entender-se-á que
um mesmo personagem possa estar na mitologia grega sob um grande
número de nomes diferentes.
A esses nomes ligavam-se locuções proverbiais que resumiam de
forma pitoresca os vários episódios da vida do deus. Basta-nos escutar
o povo para ouvir, ainda nos dias de hoje, essas formas de falar, em que
um fato da natureza é apresentado sob uma forma viva e breve. Às vezes,
essas palavras são a súbita inspiração daquele que fala: na maioria das
vezes, são locuções consagradas, que se repetem desde tempos imemo-
riais. Quem não ouviu nossos camponeses dizerem que “a lua vermelha
queima os brotos”3? Certamente não há nada aí de mítico: é um jargão,
ao qual aquele que o emprega dá um sentido mais ou menos literal.
Mas, vamos supor que o nome da lua vermelha forme em francês, como
aconteceria em grego ou sânscrito, uma única palavra: admitamos que
esse termo tenha surgido do uso cotidiano. A frase que acabamos de
citar poderá se tornar, para um tempo que já não compreenderá o seu
sentido, a afirmação de um evento histórico. Por pouco que haja outras
proposições do mesmo gênero relativas ao mesmo assunto, o fato em
questão virá tomar seu lugar em uma narrativa mítica.

3
No original, lune rousse: lunação que se segue à Páscoa e à qual se atribuem geadas
danosas aos brotos (N. das T.).

166
O MITO DE ÉDIPO

A história dos deuses não formava, no princípio, uma narrativa:


eram enunciados incoerentes, embora muito definidos em seu teor.
As transições, o encadeamento, a ordem e a lógica foram introduzidos
posteriormente pelos contadores de histórias que, tendo reunido essas
frases cujo sentido eles procuravam, acreditaram reconhecer ali os
restos de antigas tradições ou os oráculos mal preservados da sabedoria
antiga. Para encontrar o significado de um mito, é necessário primeiro
tentar reduzi-lo a seus elementos primitivos: nem todas as partes da
narrativa têm a mesma antiguidade. Temos de desfazer o trabalho do
narrador, podar tudo o que é de segunda mão e trazer a história de
volta às suas características primordiais. As frases que o povo repetia ao
ver os fenômenos da natureza foram, para a imaginação de uma idade
mais recente, como um resumo a desenvolver, como pensamentos
soltos que o mestre dá ao seu aluno para conectar e explicar.
Tomo como exemplo a história de Íxion. Uma fábula conta que
esse rei dos lápitas ou dos flegeus foi admitido à mesa dos deuses e que
ele ousou planejar seduzir Hera. Zeus, para se convencer de seu sacri-
légio audacioso, fez de uma nuvem uma imagem semelhante a Hera,
ou, de acordo com outras, criou uma ninfa néfele com a qual Íxion
gerou os centauros. Em punição por seu crime, Íxion foi amarrado a
uma roda em chamas que gira eternamente no espaço. Tal é o relato
dos poetas: Píndaro4 vê no suplício de Íxion a punição infligida ao
primeiro ímpio que ousou violar as leis da hospitalidade.
O que era, na origem, esse criminoso Íxion? O traço caracterís-
tico de sua história é o suplício ao qual ele foi condenado. Íxion gira
e girará indefinidamente em uma roda em chamas: este é o ponto de
partida do mito. Se olharmos para o nome do nosso herói, veremos
que ele faz menção a esta roda. Íxion corresponderia em sânscrito a
uma palavra akshivan, que quer dizer aquele que tem uma roda ou

4
Pyth., II, 39.

167
Michel Bréal

aquele que gira sobre uma roda5. Numa época em que a verdadeira
natureza de Íxion tinha deixado de ser compreendida, o povo, que
quer compreender as palavras cuja herança recebe, inventou para
ele esse tipo de suplício. Ele é o pai dos centauros. Adalbert Kuhn6
mostrou a identidade dos centauros e dos gandharvas, esses seres
fantásticos que assumem na mitologia indiana o mesmo papel que os
centauros têm para os gregos, e que representam as nuvens cavalgando
no céu. Íxion nos gregos é o centauro por excelência, já que ele é o
pai dessa família de monstros: ele corresponde ao gandharva védico.
Estamos então muito perto de adivinhar o que é essa roda em chamas
que seu nome nos evoca. Os Vedas frequentemente falam da roda
do sol e da luta que o deus supremo empreende para arrancá-la das
mãos do demônio que personifica a noite e a esterilidade7. Íxion gira
eternamente sua roda: essa não era então, no princípio, a enunciação
de um suplício, mas a expressão de um fato natural. Íxion ama Hera,
a deusa da atmosfera, é uma afirmação que não precisa ser explicada
se nos lembrarmos que Hera é a esposa de Zeus, de quem Íxion é
um desdobramento. Íxion se une à Nuvem é outra forma da mesma
ideia. Esses quatro fatos, que geram um tanto de provérbios, foram
coletados e combinados entre si por uma era que acreditou ter visto
neles os episódios de uma aventura meio esquecida.

5
Akshi, aksha, akshan, três palavras de origem idêntica que querem dizer olho,
eixo, roda, carro; o latino axis e o grego ἄξων são da mesma família. O a inicial
enfraqueceu-se em i, como em ἵππος – açva em sânscrito –, e como em ignis, no
latim – agni, em sânscrito. Essa mudança do α para ι é bastante frequente em
grego, antes de duas consoantes ou de uma letra dobrada (ver Curtius, Journal de
Kuhn, III, p. 412). O alongamento do segundo ι de Íxion parece ter como moti-
vação a supressão do υ ou digama (comp. Ebel, Ibidem, t.VI, p. 211). Encontramos
o mesmo alongamento nos nomes de Oríon, Pandíon, Aríon, Anfíon etc.
6
Gandharven und Centauren. Em seu periódico Philolologie comparée, t. 1, p. 513 ss.
7
A. Kuhn, Die Herabkunft des Feuers, p. 56.

168
O MITO DE ÉDIPO

As fábulas não foram portanto criadas a partir de um jato e


a partir do nada: os eventos essenciais e os nomes dos personagens
pertencem a uma época, a disposição e a moralidade da narrativa
pertencem a outra; chamaremos a primeira época de idade naturalista,
e daremos o nome de idade moralista à segunda. À idade naturalista
remontam concepções que, não sendo mais entendidas, pareceram
mais tarde estranhas ou monstruosas; à idade moralista, as explicações
para dar conta desses fatos, para justificá-los ou atenuá-los.
A poesia popular rejuvenesce constantemente os antigos
heróis e lhes dá a aparência de grandes modelos contemporâneos.
Nas canções de gesta do século XII, Carlos Magno é um cavaleiro
que vai para as Cruzadas. A mesma transformação foi realizada pela
idade moralista: os usos, as instituições que nos revelam as fábulas
são aquelas do tempo em que elas foram organizadas. O historiador
que buscasse em canções de gestas informações sobre Carlos Magno
se exporia aos erros mais singulares; mas esses poemas se tornarão
documentos fiéis caso haja interesse em estudar neles a pintura da
sociedade feudal que os produziu. Os mitólogos que, como Banier,
compõem com os nomes dos deuses a lista das antigas dinastias da
Grécia, desconhecem a natureza dos mitos; mas se nos contentarmos
em procurar nas fábulas a imagem das ideias e das instituições,
obteremos indicações preciosas. O mito de Héracles nos mostra, na
pessoa de Euristeu, a realeza instituída em Tebas; os Argonautas nos
transportam pra uma época de expedições marítimas, e nos fazem
assistir ao estabelecimento das colônias; os sete chefes diante de
Tebas simbolizam para nós um tempo de guerras e de profundas
cisões internas. Mais abundantes e mais interessantes ainda serão as
informações que nos darão as fábulas sobre as morais e os costumes,
sobre o estado das crenças, sobre a organização da família e da cidade.
Por toda essa ordem de fatos, os mitos são história.

169
Michel Bréal

Apliquemos agora essas ideias à fábula de Édipo. Quem é esse


personagem que chama a si próprio, no início da peça de Sófocles, “o
famoso Édipo”8? Esses eventos trágicos que agitaram tão profunda-
mente as entranhas da Grécia e inspiraram Sófocles, o mestre da arte
dramática, quem os imaginou? O que se deve pensar da fatalidade que
impele o herói dessas aventuras ao parricídio e ao incesto? É, como já
foi dito, um lição de moderação oferecida aos homens? Ou a lição veio
depois para se misturar com o relato, dando-lhe um aspecto moral que
ele não tinha no princípio?
A história de Édipo está em todas as memórias. Um oráculo
havia previsto a Laio, rei de Tebas, que seu filho estava condenado
pelo destino a ser parricida e incestuoso. Ele mandou expor o recém-
-nascido sobre o Citéron (outros dizem que foi em Sícion). Um pastor
tomado de piedade recolhe-o e o chama de Édipo, porque ele havia
sido encontrado com os pés perfurados por uma corda e inchados; a
criança cresceu no meio de pastores, ou, segundo outras narrativas, na
corte de Políbio, rei de Corinto, que o adotou como seu filho. Chegado
à idade de homem, quando voltava de Delphos, ele se deparou com
Laios, seu pai, em um caminho onde suas carruagens não podiam
evitar-se. Uma querela se inicia, e Édipo mata Laio sem conhecê-lo.
Ele vem para Tebas, desolada por um monstro que devorava todos
aqueles que não respondiam a suas perguntas. Édipo resolve o enigma
da Esfinge e a obriga a se jogar do topo de sua rocha. Como recom-
pensa, ele recebe o poder real e a mão de Jocasta, viúva de Laio: assim
é cumprida a previsão do oráculo. Mas logo um mal desconhecido
destrói os frutos da terra, a cria dos animais, os filhos dos homens,
é a ira dos deuses que vingam o assassinato de Laio. Édipo procura
o assassino e ele descobre o duplo crime de que é culpado. Em seu

8
αὐτὸς ὧδ’ ἐλήλυθα,
ὁ πᾶσι κλεινὸς Οἰδίπους καλούμενος

170
O MITO DE ÉDIPO

desespero, ele arranca os olhos e abandona a cidade de Tebas. O lugar


de sua sepultura é desconhecido; mas a posse de seus ossos garante
poder para a terra onde eles descansam.
Se nos restasse, de toda a mitologia grega, apenas esse relato,
certamente ficaríamos muito desorientados em dizer o que é Édipo.
Mas estabelecendo uma aproximação entre alguns traços de sua
história e eventos similares que fazem parte da vida de outros heróis,
poderemos, de acordo com essas características comuns, determinar
sua natureza e, de certo modo, classificá-lo. Um primeiro fato da
lenda é o seguinte: Édipo vence sobre a Esfinge. Tentamos em outros
momentos mostrar o que é necessário ver nesses monstros, tão nume-
rosos na mitologia grega, que, sob vários aspectos, sempre representam
o mesmo ser9. A Esfinge é da mesma família que a Quimera e a
Górgona; o combate no qual ela sucumbe é uma das cem formas
tomadas pela luta de Zeus contra Tifão ou aquela de Apolo contra a
serpente de Delfos. Hesíodo, na genealogia que nos dá dessa família de
monstros, faz da Esfinge a filha de Orthos e Quimera, a neta de Tifão
e Equidna. Mas se a Esfinge é apenas uma variedade local da espécie
da qual Tifão é o principal representante, somos levados a pensar
que Édipo é um herói do mesmo caráter que Zeus, Apolo, Héracles,
Belerofonte, isto é, uma personificação da luz. Esta suposição, por mais
estranha que possa parecer à primeira vista, será, esperamos, justificada
na sequência deste trabalho. Contudo, devemos primeiro examinar as
circunstâncias que parecem dar à luta de Édipo um aspecto particular.
O nome “Esfinge”, que levou alguns intérpretes a procurar
no Egito a pátria do nosso mito, é perfeitamente grego: ele assenta
muito bem no ser que enlaça (σφίγγει), e ele corresponde exatamente,
quanto ao sentido, ao Vritra dos Vedas. Se, do nome, passarmos à

9
Ver p. 95 [o autor está remetendo o leitor ao capítulo “Formation de la fable”,
N. das T.].

171
Michel Bréal

forma da Esfinge, veremos bem que ela é testemunha da imaginação


incomum dos gregos, que soube variar ao infinito a aparência desses
seres fantásticos. Porém, vendo mais de perto, a Esfinge não tem nada
em sua estrutura que não encontremos em um ou outro dos membros
da família. Assim como ela, Equidna tem a cabeça de uma jovem;
em comum com Tifão, ela tem o busto e as garras de leão, o rabo de
serpente e as asas de pássaro. Quando os gregos entraram em contato
com o Egito, reconheceram certa analogia entre sua Esfinge e os leões
de cabeça humana sentados em frente aos palácios de Mênfis: eles por
isso deram o nome grego às estátuas egípcias, uma confusão da qual a
história das religiões antigas fornece numerosos exemplos10.
A Esfinge é enviada a Tebas por Hera, a deusa da atmosfera,
exatamente como os monstros que Héracles combate. Atena presta
socorro a Édipo do mesmo modo que fica perto de Héracles em seus
diversos trabalhos e se faz aliada de todos os deuses vencedores nessas
lutas do ar. Vimos, pela comparação de outros mitos, o que representa
a montanha sobre a qual a Esfinge está sentada: precipitando-se de
seu rochedo e despedaçando-se, o monstro simboliza a nuvem que
explode e cai em forma de chuva sobre a terra. A frase proverbial que
dizia “Édipo matou a Esfinge” era a expressão popular e local que
marcava esse evento da atmosfera.
Mas a luta de Édipo contra o monstro tem um caráter distinto: é
um duelo no qual a inteligência substituiu a força11. Por que a Esfinge

10
Um dos exemplos mais notáveis é a mistura do Tifão de Homero e de Hesíodo
com o Tifão egípcio. A confusão da esfinge tebana com a esfinge egípcia já se
encontra em Heródoto, que fala das ἀνδροσφίγγες egípcias. As esfinges egípcias
não têm mamas: eis porque Heródoto as chama de esfinges machas.
11
É mais do que sabido que Édipo era originalmente concebido como um herói
armado de espada ou clava. Sua vida apresenta ainda outra façanha sobrenatural,
que nos é atestada por uma antiga poeta Boécia, a célebre Corina: é a vitória sobre
a raposa de Têumesso. As circunstâncias da luta não chegaram até nós, sabemos
somente, por outras narrativas, que era impossível pegar essa raposa na corrida,

172
O MITO DE ÉDIPO

é representada propondo obscuras questões às suas vítimas? Por que


Édipo, ao invés de segurar a clava como Héracles, ou manejar a espada
como Perseu, é transformado em decifrador de enigmas? Duas circuns-
tâncias contribuíram para dar à fábula esse contorno característico.
A primeira já foi indicada anteriormente12 . Da nuvem, protótipo dos
monstros míticos, ouvem-se surdos estrondos que são tidos como uma
voz profética ou como uma linguagem incompreensível aos homens.
Hesíodo, ao falar de Tifão, diz que ele produz sons que só os deuses
compreendem; Píndaro chama o trovão de voz divina. Não era Apolo
quem primeiro profetizava em Delfos, era a serpente ali submersa.
Uma serpente emite os oráculos no antro de Trofônius; Gerião (outro
monstro de mesma origem) profetiza em Pádua. Deve-se compreender
o que a fábula nos diz da Esfinge no mesmo sentido: Sófocles a chama
de adivinha, poeta de linguagem ambígua13. A Esfinge diz palavras
que os homens não podem compreender. Não foi preciso mais do que
isso para o espírito dos gregos, desejosos de variar e rejuvenescer um
tema uniforme, para dar um novo contorno à derrota do monstro
tebano. Se Édipo conseguiu triunfar sobre a criatura, foi porque
compreendeu sua linguagem.
Uma circunstância completamente acidental contribuiu para
dar à fábula esse aspecto particular. Sabemos a influência que a etimo-
logia popular pode exercer sobre a forma de um mito: um nome que
não é mais compreendido é decomposto de forma arbitrária e explicado

que ela devastava a Beócia e que a fizeram ser perseguida pelo cão de Céfalos,
o qual nunca perdia sua presa. Iniciou-se entre os dois animais uma corrida e
uma perseguição sem fim. Foi essa raposa maravilhosa que, segundo uma muito
antiga tradição, Édipo teria vencido. Podemos inferir dessa narrativa que várias
lendas se ligavam ao nome de Édipo.
12
Ver acima.
13
Oedipe roi, p. 1.199. Τὴν γαμψώνυχα παρθένον χρησμῳδόν. Comparar vv. 36,
130, 391.

173
Michel Bréal

por um conto; foi o que aconteceu com o nome de Édipo (Οἰδίπους).


O povo acreditou reconhecer nele o verbo “saber” (οἶδα): temos ainda
nesse jogo de palavras de Sófocles, “ὁ μηδὲν εἰδὼς Οἰδίπους”, uma alusão
a esse sentido atribuído ao nome de Édipo. Para explicar a segunda parte
da palavra, fez-se entrar na narrativa, pela boca da Esfinge, um enigma
que certamente circulava havia muito tempo entre o povo: “Qual é o
animal que tem quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia, três à noite?”
Édipo tornou-se o homem que conhece a palavra do enigma dos pés, e
as pessoas foram assim levadas a dar uma forma precisa a essa ideia: que
o herói tebano tinha compreendido a linguagem da Esfinge.
Entre os nomes dados nos Vedas ao monstro que combate o
deus solar, há um que encontramos na lenda de Édipo: trata-se de
dasyu, quer dizer, o inimigo. Essa palavra é derivada da mesma raiz
“das” que ainda formou em sânscrito a palavra dâsa, “escravo”. Dâsa
encontra-se no grego sob a forma δάος, que, como atesta Hesíquio,
quer dizer escravo, e que passou da comédia grega à cena latina sob a
forma de Davus14. Assim como na palavra sânscrita dasyu, o sentido
primitivo, “inimigo”, foi conservado no derivado grego δάιος, δήιος,
δᾷος. Pela mudança do d para l, que os dialetos gregos apresentam ainda
em outras palavras15, δάος virou λαός. É verdade que, na língua clássica,
λαός não significa escravo, mas “multidão”, “povo”. Mas, examinando

14
Δάος é a transcrição regular do sânscrito dâsa; o σ devia cair entre as duas
vogais, como no genitivo γένε-ος para γένεσ-ος, gener-is em latim, ou como
em νυός para νυσός (em latim, nurus). Mas tal como ocorreu com ἠFώς, αὔFως
(em sânscrito ush-as, em latim aur-ora), o σ foi substituído por um digama, de
modo que se deve ler δάFος. Prisciano atesta a presença do digama na palavra
λαός, que, como veremos, não passa de uma variante de δàος; ele cita o nome
ΛαFοκόFων, in trípode vetustíssimo (I. 22, VI, 69, ed. Hertz). Encontramos
λαυαγήτα sobre uma inscrição (Corp. Inscr. I, 1466). Foi esse digama que os
escritores latinos conservaram quando tomaram de empréstimo o nome grego
e dele fizeram seu Davus.
15
Por exemplo, em Ὀλυσσεύς (para Ὀδυσσεύς), em λέσκος (para δίσκος), em λάφνη
(para δάφνη), e em λάσιος, “peludo”, ao lado de δασύς.

174
O MITO DE ÉDIPO

o emprego dessa palavra nos textos mais antigos, percebem-se ainda


numerosos traços do sentido primeiro. Quando Homero diz, por
exemplo, ao falar dos guerreiros que cercam Pândaro: “ἀμφὶ δέ μιν
κρατεραὶ ἀσπιστάων λαῶν, οἵ οἱ ἕποντο, ἀπ’Αἰσήποιο ῥοάων16”, ele
toma a palavra λαός no sentido individual, não no sentido coletivo.
É a mesma significação que se deve dar a essa palavra nas expressões
consagradas ποιμὴν λαῶν, ἄναξ λαῶν, κοίρανος λαῶν. A mudança
que levou esse termo, cujo sentido primeiro era escravo, a significar
primeiramente multidão17, e por fim povo, nação, é certamente um
fato notável na história da civilização grega18. Essa transformação é
atestada pelo testemunho explícito de um ancião que, a propósito
da forma ática λεώς, observa que essa palavra não significa mais a
multidão, mas que também pode ser aplicada a um só homem, para
dizer que ele está submetido a outro: ele cita a esse respeito Hécate,
que se serviu desse termo para exprimir que Héracles era submisso a
Euristeu (Εὐρυσθέως λεώς)19.

16
Il., IV, 90. Esse emprego é muito frequente em Homero. Comp., entre outros:
Il., II, 538, IX, 116, XIII, 710 etc.
17
Como nesses versos de Homero:
τοὶ δ’ ἅμ’ ἕποντο
ἠχῇ θεσπεσίῃ, ἐπὶ δ’ἴαχε λαὸς ὄπισθεν.
18
Os dois sentidos ainda se aproximam nesses versos de Ésquilo:
λέλυται γὰρ
λαὸς, ἐλεύθερα βάζειν,
ὡς ἐλύθη ζυγὸν ἀλκᾶς.
(Os persas, v. 592)
É a mesma palavra dâsa, porém mais bem conservada por se encontrar em uma
composição, que ficou na palavra δεσπότης. É notável que a palavra daqyu, que
é a forma zenda [avéstica] de dasyu, tenha passado por uma mudança de sentido
análoga: daqyu não quer dizer inimigo ou escravo, mas “província”.
19
Σημειωτέον δὲ ὅτι οὐχ ἀπλῶς τὸν ὄχλον σημαίνει, ἀλλὰ τὸν ὑποτεταγμένον.
Ἑκαταῖος γὰρ τὸν Ἡρακλέα τοῦ Εὐρυσθέως λεὼν λέγει, καίτοι ἕνα ὄντα (Hipônax,
nas Anecdota de Cramer, t. I, p. 265).

175
Michel Bréal

Assim como δάος virou λαός, δάϊος, por uma mudança idên-
tica, resultou em λάιος, que só se conservou como nome do inimigo
combatido por Édipo. Laio é o equivalente do dasyu védico, de quem
ele tomou o lugar em nossa lenda 20. A luta do deus conservou-se
então sob uma dupla forma na história de Édipo, uma vez que ele é
sucessivamente vencedor de Laio e da Esfinge. Mas desdobramentos
semelhantes não têm nada que deva nos espantar. Sempre que um
repertório de crenças populares é rearranjado por homens de um outro
tempo, ocorrem erros desse tipo, e dois nomes diferentes pertencentes
a um mesmo personagem fazem nascer duas narrativas distintas. A
vida de Héracles é uma série de combates, sempre os mesmos, em que o
lugar da cena e o nome do adversário são os únicos termos que variam;
nos contos bretões encontramos até dez ou doze vezes a narrativa,
quase idêntica, de uma mesma aventura que recomeça perpetuamente.
Um dos incidentes comuns da luta do deus védico contra o
demônio é a libertação de nuvens que são figuradas como moças:
enquanto são cativas, elas se chamam dâsapalnîs, as mulheres
do inimigo; libertas, elas viram devapatnîs, as mulheres do deus.
Compreende-se daí o que significava a linguagem popular quando
falava das mulheres de Laio que Édipo havia desposado. Sabemos,
efetivamente, pelo testemunho de Ferécides21, que, além de Jocasta,
Édipo se casou com várias outras mulheres. Quando o herói solar
foi tomado como personagem humano, procurou-se conciliar

20
Mostrava-se o túmulo de Laio em vários lugares, e esses lugares eram em sua
maioria devotados às divindades infernais (Apoll. III, 15, 7; cf. Schneidewin,
Die Sage vom Oedipus, p. 169, 175, 182).
21
Fragments des historiens grecs, ed. Car. e Théod. Müller, I, p. 85. Ferécides nomeia
duas dessas ninfas: Eurigânia e Astimedusa. Segundo alguns escritores, é uma
irmã de Jocasta. Acrescentemos que Epicasta “a brilhante” também é o nome
de uma esposa de Zeus, e Jocasta “a violeta” o de uma esposa de Apolo. O pai de
Eurigânia se chama Hiperfas.

176
O MITO DE ÉDIPO

essas circunstâncias com os valores e costumes da Grécia, e só se


mencionou uma mulher de Édipo, Jocasta ou Epicasta, ou então se
falou de casamentos sucessivos.
Quando Édipo, diz a fábula, reconheceu o casamento inces-
tuoso que o unia à sua mãe e o encontro fatal que o havia feito matar
seu pai, arrancou os próprios olhos. “Édipo está cego”, dizia efetiva-
mente o povo, em sua linguagem expressiva, quando o sol desaparecia;
pois a mesma palavra que marca o escurecimento serve aos idiomas
primitivos para designar a cegueira 22 . O próprio nome de Édipo,
se não nos enganamos, vem da ideia que um povo em sua infância
tinha do sol poente. Podemos, pois, ver em Οἰδίπους o nome do sol
no momento em que ele vai tocar o horizonte, quando, pelo efeito dos
vapores em suspensão nas camadas inferiores da atmosfera, ele parece
aumentar de volume a cada momento. Talvez até possamos ver nessa
palavra uma alusão à ferida de que fala a história de Aquiles, e que deve
ter sua origem em algum antigo mito solar, pois encontramos a mesma
circunstância nas lendas de Balder e de Sigfried entre os escandinavos,
e nas de Isfendiar e Rustam entre os persas.
Uma vez que a luz do dia é obscurecida, Édipo morre;
ninguém sabe onde repousam seus ossos. Segundo uma tradição,
ele era representado seguindo sua existência no fundo de um
subterrâneo. Diversos povos jactavam-se de possuir seu túmulo,
assim como a ilha de Creta vangloriava-se de ter o túmulo de Zeus.
Colono, pequeno burgo da Ática onde se rendia culto a diferentes
divindades infernais23, estava entre os lugares que pretendiam ter
testemunhado os últimos momentos de Édipo. Sabemos como

22
Comp. o duplo sentido de coecus em latim. Pott, no Journal de Kuhn (t. II, p.
101), consagrou um trabalho especial a toda uma série de expressões do mesmo
tipo. É dessa forma que andha,“cego”, em sânscrito, é um nome das trevas.
23
Voy. C. Fr. Hermann, Quoestiones OEdipodeoe, Pars III. — Schneidewin,
Die Sage vom OEdipus, p. 192. — Preller, Griechische Mythologie, II,

177
Michel Bréal

Sófocles, apoiando-se em tradições locais24 , tirou partido desta


circunstância. A ideia de que a posse das cinzas de Édipo asseguraria
poder ao país lembra o tesouro dos Nibelungos e as lendas análogas
das mitologias germânica e escandinava.
O nascimento de Édipo, que era colocado ora em Tebas, ora
em Sicião, ou ainda no Monte Citerão, é consoante ao que se conta do
nascimento de Rômunlo, de Ciro, de Fereydoun, de Kay Khosrow:
é a mesma história da criança abandonada que cresce na solidão, que
depois conhece o segredo de seu nascimento, e que evidencia em
seguida, por grandes feitos, sua coragem e sua nobreza. Uma tradição
citada pelo escoliasta de Eurípedes25 e por Higino26 representa-o
flutuando na água dentro de uma caixa como Perseu. O conto dos
pés atados por uma corda saiu, como se percebeu há muito tempo, de
outra etimologia do nome de Édipo.
Os crimes que tornam a história de Édipo tão trágica pertencem
à imaginação da Grécia Clássica, que quis tirar um ensinamento da
lenda e explicar um castigo cujos motivos eram incompreensíveis. De
onde vem efetivamente o fato de que Édipo, após salvar sua pátria e
ganhar a realeza pela sua coragem, seja atingido pela cegueira e morra
longe de seu país? Por que esse contraste entre a glória do herói e a
desgraça que o atinge? Quando Édipo fazia seu combate contra a
Esfinge nos ares, desposava as nuvens e desaparecia no horizonte, sua
história não precisava de explicação moral; mas uma vez que Édipo se
tornou príncipe tebano, libertando sua cidade de um flagelo, e, apesar
de seus grandes feitos, foi privado da vista e de seu reino, o instinto de
justiça natural ao homem revoltou-se e procurou, na vida do herói, os
crimes que atraíram a cólera divina. Como essa vida apresentava, além

24
Oedipe à Colone, v. 62. Cf. Otfr. Müller Gesch. der griech. Literatur, II, 136
25
Phoenissoe, 26 e 28.
26
Fab. 66.

178
O MITO DE ÉDIPO

da derrota da Esfinge, dois atos, a saber, a morte de Laio e o casamento


com Jocasta, supôs-se que seriam aqueles os dois motivos da punição
celeste. Acusou-se Édipo, então, dos dois maiores crimes que se possam
conceber, o incesto e o parricídio: Laio, que ele tinha matado, era seu
pai; Jocasta, com quem ele tinha casado, era sua mãe. Assim se expli-
cava seu fim terrível. Uma ideia familiar à época, a da fatalidade, veio
mesclar-se a essa sequência de catástrofes: os dois crimes que causam
a punição de Édipo eram inevitáveis, assim como a própria punição.
O oráculo de Delfos previa essas desgraças e as tinha anunciado antes.
Essa interpretação encontrou um adversário no professor
Domenico Comparetti, que, em um trabalho intitulado Edipo e la
mitologia comparata27, ataca a ideia de que a história de Édipo tenha
tido um ponto de partida naturalista. Ele seria um conto moral
destinado a mostrar que o homem não pode escapar de seu destino
e que uma primeira desgraça leva a uma série de outras. Reduzida
a seus elementos, a história de Édipo se restringiria a três fórmulas
bem conhecidas, que aparecem em uma porção de outros contos:
1º pais expõem sua criança para evitar uma desgraça que se cumpre
mesmo assim; 2º uma rainha ou filha de rei é oferecida em casamento
àquele que matar um monstro; 3º um enigma é dado à decifração,
com pena de morte para aquele que não conseguir. Essas três fórmulas
combinadas constituíram toda a substância da narrativa.
Respondemos ao erudito professor de Pisa em outra ocasião28.
Digamos aqui, somente, que ele não nos parece ter suficientemente
distinguido os tempos. Estou longe de pretender que se devam ver
deuses solares em todos os personagens que matam monstros e libertam
princesas acorrentadas. Mas antes de entrar na composição dos contos,
é preciso que esses acontecimentos tenham sido representados em

27
Pisa, 1867.
28
Revue critique de 22 de janeiro de 1870.

179
Michel Bréal

narrativas nas quais tivessem sua razão de ser. Foi pelos mitos que eles
se tornaram familiares à imaginação popular o bastante para passar
ao estado de lugares comuns. Não explicaríamos por que as mesmas
fórmulas se encontram na Pérsia, na Germânia, na Grécia, se por trás
da fórmula não se encontrasse a crença naturalista. Os contos de fada
são o último resíduo da religião de um povo: parece-nos prematuro
situar esse resíduo nos tempos que precederam Homero e Hesíodo.

180
O MITO DE ÉDIPO

Referência

BRÉAL, Michel. “Le mythe d’Oedipe”. In: BRÉAL. Mélanges de


mythologie et de linguistique. 2. ed. Paris: Librairie Hachette et
Cie, 1882. p. 163-185.

181
SOBRE OS AUTORES E TRADUTORES

Alex Beigui
Professor da Universidade Federal de Ouro
Preto. Professor vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem –
PPgEL (UFRN). Desenvolve pesquisa sobre:
Estética; Teoria e Crítica Teatral; Dramaturgia
e Cinema; Teatro de Androginia; Etnodrama;
Performances da Escrita; Performatividade em
Textos Teatrais Contemporâneos; Matrizes
Estéticas e Culturais da Cena Contemporânea. Escreve continuamente
para periódicos na área de Letras e Artes, entre eles: Aletria; Sala-Preta;
Repertório; Urdimento; entre outros. Artista-Pesquisador

Ana Luisa Camino


Graduada em Letras-Francês pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Na mesma
instituição, doutorou-se em 2012 com tese
sobre mito e tragédia moderna em Sartre
e Giraudoux. Trabalha como atriz desde
1989, e, paralelamente ao teatro, dedicou-se
ao canto lírico e integrou, entre 1996 e
2000, o Grupo CAMENA de música antiga
(DEMUS/UFPB). Desde 2006, integra o Piollin, Grupo de Teatro
(João Pessoa-PB), com o qual montou, entre outros espetáculos, A
gaivota (alguns rascunhos) (2006), dirigido por Haroldo Rego (RJ).
Atualmente, está no elenco de remontagem de Pobres de Marré¸

182
espetáculo do Grupo Carmin, com direção de Henrique Fontes. Além
do trabalho como atriz, é escritora.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior


Professor Titular da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador
do CNPq. Professor permanente do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE) e do Programa
de Pós-Graduação em História da UFRN. Tem
experiência na área de História, com ênfase
em Teoria e Filosofia da História, atuando
principalmente nos seguintes temas: gênero, nordeste, masculinidade,
identidade, cultura, biografia histórica, produção de subjetividades e
história das sensibilidades. De sua vasta produção acadêmico-científica,
merece destaque o livro A invenção do Nordeste e outras artes (1999),
traduzido no recente espetáculo A Invenção do Nordeste (2017), pelo
Grupo Carmin, companhia teatral do Rio Grande do Norte.

Fabiano Incerti
Professor do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia e diretor do Instituto de Ciência e
Fé da Pontifícia Universidade Católica do
Paraná (PUCPR). Desenvolve pesquisas em
torno da filosofia moderna e contemporânea,
diagnósticos críticos da contemporaneidade,
tragédia grega, mística e espiritualidade,
principalmente nos pensamentos de Michel
Foucault e Pierre Hadot.

183
Guilherme Gontijo Flores
Professor de Língua e Literatura Latina na
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Poeta e tradutor, Guilherme Gontijo Flores
ganhou da Associação Paulista de Críticos de
Arte (APCA) o prêmio de melhor tradução
de 2017, pelo livro Fragmentos Completos,
da poeta grega Safo. Em 2014, Guilherme
ganhou o prêmio APCA e o Prêmio Jabuti
pela tradução de A Anatomia da Melancolia de Robert Burton, publi-
cado pela Editora UFPR. Em 2015, recebeu o prêmio pela Biblioteca
Nacional, pela tradução de Elegias de Sexto Propércio, publicado pela
Editora Autêntica. A tradução reúne num único volume os quatro
livros de poesia do autor clássico romano.

Kathrin Holzermayr Lerrer Rosenfield


Professora Titular do Departamento de
Filosofia (UFRGS). Integra o corpo docente
dos Programas de Pós-Graduação de Filosofia
e de Letras (UFRGS). Pesquisadora do CNPq,
atua nas áreas de Filosofia e Literatura (Estética
e Filosofia da Arte, Literaturas anglo-ameri-
cana, alemã, brasileira e francesa), Psicóloga e
psicanalista formada na Sorbonne, Paris VII.
Sua produção abrange autores diversos: Machado de Assis, Hegel e
Aristóteles, Kleist e C. Lispector, T. S. Eliot, Gilberto Freyre, J. M.
Coetzee, R. Musil e Sófocles. Recebeu o prêmio “Mário de Andrade”
pelo ensaio Desenveredando Rosa – a obra de J. G. Rosa. Dentre sua
vasta produção acadêmica, merece destaque o livro Antígona- Intriga
e Enigma: Sófocles lido por Hölderlin (2016).

184
Maria Hozanete Alves de Lima
Professora, desde 2004, de Línguas e
Literaturas Latinas e Gregas e História das
Línguas Românicas na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem (PPgEL/UFRN) e ao
Programa de Pós-Graduação em Linguagem
e Ensino (PPGLE/UFCG). Doutora em
Linguística, pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e
Pós-doutora pela École Normale Superieure (Paris-França). Áreas de
interesse: História das Ideias Linguísticas; Estudos do Texto e dos
discursos; Estudos sobre escrita e processos de escrita no espaço escolar.

Pedro de Souza
Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Professor pesquisador do CNPq. Atua na área de Linguística, com
ênfase em Teoria e Análise Linguística e
Análise do Discurso, atuando principalmente
nos seguintes temas: discurso, enunciação,
subjetividade, seguindo a perspectiva de
Michel Foucault. Pedro de Souza desen-
volve pesquisas junto aos programas de
Pós-graduação em Literatura e Pós-gradução
em Linguística (UFSC). Escritor de várias
obras acadêmico-científicas.

185
Édipo é o principal personagem da tragédia grega Édipo Rei,
escrita por Sófocles (496-406 a.C.) por volta dos anos 427 a.C. O texto
de Sófocles conta a história de uma jovem criança destinada a matar o
pai e a se casar com a mãe. Após consultar o oráculo de Delfos e saber
do trágico destino, Édipo tenta afastar-se o mais longe possível dos
seus pais, ignorando que eles eram pais adotivos. A fuga de Édipo,
por conseguinte, o aproxima de seu destino quando, ao errar pelos
campos, entra em conflito com Laio, rei de Tebas. Nesse conflito,
Édipo mata Laio, seu pai verdadeiro e dirige-se para Tebas, uma cidade
que estava sendo devastada por uma esfinge. Após destruir a esfinge,
e por este feito, Édipo esposa a rainha Jocasta, sem saber que ela era
sua mãe biológica.
Esse resumo esconde mistérios e enigmas que tornaram a
tragédia Édipo Rei um marco da literatura ocidental. Ademais, Sófocles
inaugura uma forma peculiar de acessar as profundezas psicológicas
de suas personagens, trazendo à luz e às trevas suas contradições. Por
isso, tal obra recebeu atenção de grandes pensadores como Aristóteles,
Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Michel Foucault que testemu-
nharam a pluralidade discursiva de tal obra. É isso que veremos na
edição de Édipo Rei: tradução, transmissão, recepção. Esperamos que
cada leitor possa dialogar com o texto de Sófocles, oferecendo-lhe
outras possibilidades de leitura.

Renan Marques Liparotti


(Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos
da Universidade de Coimbra/Universidade de Salerno)

186

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