Você está na página 1de 1

A origem do mito bíblico que foi utilizado para 'justificar' racismo

Nudez e maldição

O Antigo Testamento conta que, depois do dilúvio, Deus procurou Noé para selar
uma aliança. A destruição iria cessar e todos que saíssem da famosa arca — humanos e
animais —, iriam repovoar a Terra. Noé tinha três filhos: Jafé, Sem e Cam. Esse último
também tinha um filho, Canaã, neto do patriarca.
Depois do dilúvio, Noé virou lavrador e plantou um vinhedo. Um dia, "bebendo
do vinho, embriagou-se e achou-se nu dentro da sua tenda", narra a Bíblia. "Cam, pai de
Canaã, viu a nudez de seu pai, e contou a seus dois irmãos que estavam fora. Então
tomaram Sem e Jafé uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e, andando virados para
trás, cobriram a nudez de seu pai; tiveram virados os seus rostos, e não viram a nudez."
Quando acordou, Noé ficou possesso ao descobrir que seu filho tinha visto sua nudez -
algo considerado inaceitável. Então, resolveu amaldiçoar Canaã, tornando seu neto um
servo. "Maldito seja Canaã, servo dos servos será de seus irmãos", disse Noé.
Nessa povoação, Jafé teria levado à criação dos europeus, germânicos e arianos.
Sem teria originado os povos semitas. Já povos da Ásia Oriental descenderiam de Cam.
Mas Canaã, filho de Cam amaldiçoado pelo avô, seria o pai dos etíopes, sudaneses,
ganeses e ameríndios. Ou seja, os africanos seriam descendentes de Cam e de Canaã. Para
o pastor Kenner Terra, doutor em Ciências da Religião, o mito é uma "etiologia", ou seja,
"um texto que pretende explicar a razão de certos nomes ou práticas". "Essa tradição
justificou, bem posteriormente, os conflitos entre o povo de Israel e Canaã, descendente
de Cam", explica.
Segundo texto do historiador Hiran Roedel, doutor em História pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o destino dos três filhos de Noé e de seu neto Canaã
ajudam a explicar por que essa narrativa foi usada por europeus e por ramos do
cristianismo como justificativa para escravizar outros povos, principalmente indígenas e
africanos. "Quando as rotas das grandes navegações se estabelecem, dão-se em direção,
para efeito de comércio, das terras que, segundo a Bíblia, haviam sido povoadas pelos
descendentes de Cam, os amaldiçoados.
Nesse sentido, eram povos que poderiam e deveriam ser subjugados, segundo o
entendimento no texto sagrado", escreve Roedel. O historiador André Chevitarese,
professor do Instituto de História da UFRJ, explica que o mito de Cam foi utilizado para
pintar a África como "personificação do mal" por conta da "origem amaldiçoada de sua
população" por conta dessa interpretação do mito bíblico. "O continente passou a ser
marcado como demoníaco, amaldiçoado por Deus e formado por pessoas mergulhadas
no pecado. O uso simbólico desse mito inunda a cabeça das pessoas sem que elas se deem
conta. Essa imagem é utilizada até hoje", explica.

Leandro Machado

Da BBC News Brasil em São Paulo

Você também pode gostar