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elaborada por
Glauciele Dutra Gularte
COMISSÃO EXAMINADORA
Sob a atuação no país do grupo terrorista islâmico Boko Haram, a Nigéria encontra-se
atualmente em uma conjuntura de grande instabilidade. Nesse contexto, o presente trabalho
trata do impacto humano do grupo terrorista Boko Haram na população civil nigeriana,
enfatizando a segurança humana no país. Assim, o trabalho é guiado pela seguinte questão:
como se dá a atuação do Boko Haram em relação à população civil? Como hipótese tem-se: a
ocorrência de crimes contra a humanidade, porém não perpetrados apenas pelo Boko Haram,
mas também pelas forças nacionais de segurança e a violência contra toda a população civil,
usada como ferramenta em benefício dos objetivos do grupo. Com isso, essa pesquisa
pretende, a partir da análise do contexto histórico nigeriano, fazer uma abordagem do
panorama atual do país ressaltando o papel do grupo terrorista islâmico Boko Haram como
desestabilizador social e como agente perpetrador da insegurança humana do país. Os
resultados obtidos dão conta de que os crimes contra a humanidade configuram-se apenas nas
ações do Boko Haram e o uso do terrorismo ocorre contra os diversos grupos da população,
homens, mulheres, crianças, cristãos e muçulmanos.
Under the action in the country of the Islamic terror group Boko Haram, Nigeria is
currently in a situation of great instability. In this context, the present work deals with the
human impact of the terrorist group Boko Haram in the Nigerian civilian population,
emphasizing human security in the country. Thus, the work is guided by the following
question: how is the work of Boko Haram towards the civilian population? As a hypothesis
we have: the occurrence of crimes against humanity, but not only perpetrated by Boko Haram,
but also by national security forces and violence against all civilians, used as a tool for the
benefit of the group's goals. Thus, this research aims, based on the analysis of the Nigerian
historical context, making an approach to the current situation of the country highlighting the
role of the Islamic terror group Boko Haram as social destabilizing and perpetrator agent of
human insecurity in the country. The results realize that crimes against humanity constitute
only in the actions of Boko Haram and the use of terrorism occurs against various population
groups, men, women, children, Christians and Muslims.
Figura 2 – Mortes na Nigéria pela violência social, por categoria, 1998 – 2014.....................56
Figura 3 – Número de mortos pelo Boko Haram e pelas forças nacionais 2009 –
2012......................................................................................................................... .................61
Figura 3 – Operações Militares contra o Boko Haram 2015....................................................64
LISTA DE QUADROS
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 .................................................................................................................................. 13
Segurança Internacional, Segurança Humana e Terrorismo............................................................... 13
1.1 Segurança e Segurança Internacional: origens e perspectivas tradicionalistas .......................... 13
1.2 Segurança Internacional: ampliadores e perspectivas críticas .................................................. 20
1.3 Segurança Humana................................................................................................................. 25
1.4 Terrorismo ............................................................................................................................. 29
CAPÍTULO 2 .................................................................................................................................. 33
Contexto Histórico Nigeriano no Pós Independência, Etnia, Religião e Diferenças entre Norte e Sul 33
2.1 A Nigéria no Pós Independência ............................................................................................. 33
2.1 Etnicidade na Nigéria ............................................................................................................. 40
2.2 Religião na Nigéria................................................................................................................. 43
2.3 Disparidades entre as regiões Norte e Sul ............................................................................... 46
CAPÍTULO 3 .................................................................................................................................. 51
Boko Haram na Nigéria e os Custos Humanos.................................................................................. 51
3.1 Origens e Objetivos do Boko Haram....................................................................................... 51
3.2 Terrorismo como forma de alcançar os objetivos do grupo e Vulnerabilidade da população .... 55
3.3 Vulnerabilidade da população civil nigeriana .......................................................................... 58
3.4 Iniciativas Governamentais e Ajuda Externa ........................................................................... 63
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 67
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................. 71
10
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a Nigéria encontra-se com boa parte da sua população em uma
situação socioeconômica de marginalização bastante difícil. País mais populoso do continente
africano e que conta com uma imensa diversidade, linguística, religiosa e regional, a Nigéria
tem dificuldade em encontrar e manter a coesão sobre todo o seu território. Remontando à
guerra civil ocorrida no país em 1960 logo após a declaração de independência do país,
observa-se que este conflito colaborou para o agravamento da divisão social da Nigéria e sua
instabilidade política. Tal instabilidade é um reflexo de condições que favorecem a
insurgência, assim, mesmo sendo o maior produtor de petróleo da África, a Nigéria não
consegue reverter o rendimento proveniente dessa matéria-prima em fortalecimento social e
estatal, com a flagrante pobreza de sua população - 60.9% da população vivia em absoluta
pobreza em 2010 segundo o Escritório Nacional de Estatísticas da Nigéria - a fragilidade e
corrupção estatal, bem como a frágil coesão social entre as diferentes etnias e as diferentes
religiões que formam o país, a realidade social da Nigéria acaba por refletir tais problemas, o
que vem resultando em frustração e conflito. Nessa conjuntura, surge o grupo terrorista
islâmico Boko Haram, mais comumente datado de 2002, este grupo, cujo nome tem como
significado „A civilização ocidental é proibida‟ reflete a difícil situação social da Nigéria,
sobretudo do norte, região onde a pobreza é ainda mais grave. Em 2009, liderado por
Mohamed Yusuf, o grupo sofre um ataque perpetrado pelas forças do governo, no qual Yusuf
acaba sendo morto extrajudicialmente. A partir da perda de seu líder, o grupo dá uma guinada
para a violência realizando seu primeiro ataque terrorista na cidade de Borno, em 2010. No
lugar de Yusuf, Abubakar Shekau passa a liderar o grupo, que tem entre seus objetivos a
formação de um Estado islâmico, ao menos na parte norte do país, e a oposição à
ocidentalização da Nigéria. Como explicitado, a partir de 2009, o grupo passa a intensificar o
uso da violência em suas ações, sobretudo em represália ao assassinato, pelas forças
nacionais, de Yusuf, tendo a população nigeriana como principal alvo. A partir dessa
violência direcionada à população, o Boko Haram e as tropas nacionais, passam a ser agentes
de atos graves de violência e violação de direitos humanos, em um círculo vicioso de
represálias entre ambos.
Quanto aos ataques contra civis, a Anistia Internacional argumenta:
Ataques contra civis demonstram desrespeito do direito à vida. Todos os atos de
violência perpetrados pelo Boko Haram constituem crimes sob a lei nigeriana que as
autoridades devem evitar e reprimir através dos sistemas comuns de aplicação da lei
11
Perante esse preocupante cenário da Nigéria, este trabalho pretende abordar as ações
do grupo terrorista Boko Haram perante a população civil nigeriana, direcionando seu
enfoque à questão da segurança humana do país, procurando saber como ocorre a atuação do
grupo Boko Haram em relação à população. Por segurança humana entende-se a ausência de
ameaças a vários valores humanos fundamentais, entre eles, o mais básico, a segurança física
do indivíduo (HAMPSON, 2008, p. 231). Entre as hipóteses do trabalho estão a de que há a
ocorrência de crimes contra a humanidade na Nigéria, porém estes não são perpetrados apenas
pelo grupo Boko Haram, mas também pelas forças nacionais de segurança. Outra hipótese é
de que a violência ocorre contra toda a população, homens, mulheres e crianças, além de
vítimas diretas dos atentados, a população é utilizada como ferramenta em benefício dos
objetivos do grupo.
Como objetivo geral do trabalho, pretende-se analisar a atuação do Boko Haram na
Nigéria e a situação de vulnerabilidade da população local frente às ameaças impostas pelo
grupo no período de 2003 a 2014. Para isso, será feito primeiramente a conceituação de
segurança humana e terrorismo, passando para a descrição da conjuntura atual da Nigéria,
abordando fatores como, religião e etnia, por fim, pretende-se localizar o Boko Haram nessa
conjuntura, tratando de questões como a ajuda externa a Nigéria.
Com o Boko Haram despertando crescente preocupação internacional, principalmente
por se tratar de um grupo fundamentalista que faz uso de sórdidos mecanismos de ação no
intento de alcançar seus objetivos, estudar como esse grupo atua e sobretudo, evidenciar a
vulnerabilidade a que a população nigeriana está exposta, se faz necessário para que se
esclareça alguns pontos pouco expostos desse complexo contexto, para assim, melhor
compreender a situação em que essa população está inserida e tratar o problema. Para a
academia esse estudo se faz necessário uma vez que é escasso o estudo sobre segurança
humana da Nigéria atual, e para que se compreendam as evidentes limitações do Estado
nigeriano em lidar com a situação em que o país se encontra, bem como para que se avalie o
que tem sido feito até então para a contenção do grupo e do terrorismo dentro deste e,
principalmente devido ao tópico do terrorismo ter sido lançado à linha de frente da
preocupação de segurança internacional nesse início de século, indo, assim, ao encontro dos
interesses dos Estados.
12
CAPÍTULO 1
Outra abordagem da noção de segurança é apresentada por Williams (2008, p. 6), que
identifica duas filosofias que podem ser atribuídas como forma de compreensão do conceito
de segurança, atreladas ao escopo estatal e político do termo. A primeira está fortemente
ligada ao materialismo e à capacidade do Estado. Esta filosofia percebe a segurança como
uma commoditie e como “praticamente um sinônimo de acumulação de poder”, para estarem
seguros os atores precisam possuir, por exemplo, propriedade, dinheiro e armamento. O poder
aqui é entendido como o caminho para a segurança, quanto mais poder acumulado, sobretudo
militar, mais seguro o ator vai ser. A segunda filosofia, baseia a segurança na ideia de
emancipação, “ou seja, uma preocupação com justiça e provisão de direitos humanos”. Essa
perspectiva ressalta a relação entre os diversos atores dando menos relevância a ideia de
commoditie, destacada pela primeira filosofia.
Ole Wæver (2004, p. 55), estabelece uma relação mais próxima do âmbito político
internacional ao se relacionar com a questão do dilema de segurança, através da noção do
sentido objetivo e subjetivo do conceito. Nas palavras do autor, “Segurança objetiva é o quão
ameaçado você realmente está, e subjetiva é como você percebe (e equivocadamente percebe)
ela [a ameaça]”. O dilema de segurança se encaixa justamente na ideia da subjetividade já que
tal ideia deixa as percepções mais passíveis de interpretações incorretas. McSweeney
argumenta sobre essa questão da seguinte forma:
A percepção dos Estados quanto às intenções dos seus rivais regionais causa sua
escalada da 'segurança' em um instrumento, ou em uma cadeia de instrumentos, e
isso resulta em uma sequência de interações equivocadas, com a consequência de
uma maior insegurança que ninguém desejava. (MCSWEENEY, 1999, p. 14,
tradução nossa1)
1
Este e os demais trechos de obras citados ao longo do trabalho foram traduzidos pela autora.
16
A segurança internacional não nega à segurança nacional; em vez disso, ela supõe
que a verdadeira segurança nacional só pode ser realizada enquanto segurança
internacional, enquanto a segurança internacional não visa segurar algo [de natureza]
internacional, mas o fornecimento de segurança nacional de uma forma saudável.
(Wæver, 2004, p. 59)
Desse modo, entende-se que a visão preponderante na Guerra Fria elevava a ideia de
segurança internacional como uma questão necessária para se obter a segurança dos Estados
de forma individual, ela não era “usada em termos de segurança nacional, mas sim como
segurança internacional” (WAEVER, 2004, p. 59).
17
Durante este período, a teoria realista forneceu uma base poderosa para explicar o
comportamento do Estado e a busca pela segurança através de meios militares e não-
militares. Com a força da evidência fornecida pela Guerra Fria, muitos analistas
concluíram que guerra e conflito eram de fato uma característica central do sistema
internacional. Neste tipo de sistema, os Estados eram os atores principais, e eles
existiam sob uma condição de anarquia, onde não havia nenhuma autoridade global
capaz de gerir os assuntos mundiais. (MALIK, 2015, p. 5)
Como afirma Malik, em consequência dessa conjuntura, “os Estados foram obrigados
a buscar sua própria segurança e para alcançá-la eles continuamente procuraram aumentar o
seu poder através da melhoria de suas forças armadas, acesso seguro a recursos e equilíbrio
diante de outros Estados” (MALIK, 2015, p.5).
Nesse início de estudos do campo, nos anos 1950 e 1960, época da chamada Idade de
Ouro dos estudos de segurança internacional, é que se dá o período de conformação dos
estudos estratégicos. Como afirmam Buzan e Hansen (2009, p. 67), nesse período, “o
subcampo tornou-se quase exclusivamente dedicado ao estudo das armas nucleares e da
rivalidade bipolar”. Dessa maneira, sumarizando as preocupações dos estudos estratégicos
realistas através do conceito de segurança, os autores argumentam que o conceito dominante
de segurança nos estudos de segurança internacional tem sido o de segurança
“nacional/internacional” e que esse conceito, nas palavras dos autores “[...] define o Estado
como objeto de referência, o uso da força como preocupação central, ameaças externas como
as principais ameaças, a adoção de medidas emergenciais, e estuda segurança através de
epistemologias positivistas e racionalistas [...]” (BUZAN; HANSEN, 2009. p. 21).
Em 1979, tem-se a publicação do livro Theory of International Politics de Kenneth
Waltz, causando grande impacto no meio acadêmico, esta obra firma as bases de outra
vertente do realismo, o neorrealismo ou realismo estrutural. Diferentemente dos realistas
clássicos, os neorrealistas não atribuem a busca por poder à natureza humana, “realistas
estruturais atribuem competição por segurança e conflito interestatal à ausência de uma
autoridade superior aos Estados e à distribuição relativa de poder no sistema internacional”
(DUNNE; SCHMIDT, 2008, p. 91). Como afirma Jatobá (2013, p.28) o propósito principal
do livro do Waltz é apresentar uma teoria sistêmica de política internacional 2, as teorias
sistêmicas, segundo Jatobá, “explicam porque as diferentes unidades comportam-se de modo
similar”. Waltz, assim, define a estrutura do sistema internacional a partir de três elementos,
sendo eles: o princípio organizador, a diferenciação de unidades e a distribuição de
capacidades. Para os realistas estruturais, a distribuição relativa de poder no sistema
internacional é a principal variável independente para a compreensão de importantes
2
Em seu livro, Teoria das Relações Internacionais, Daniel Jatobá (2013, p.28) apresenta a distinção que Waltz
realiza entre dois tipos de teorias, “Para Waltz, existem dois tipos de teorias, conforme o nível de análise
privilegiado para a identificação das causas dos fenômenos estudados: “as teorias da política internacional que
concentram as causas no nível individual ou nacional são reducionistas; as teorias que concebem as causas como
operando também ao nível internacional são sistêmicas”. Waltz dá preferência às teorias sistêmicas, em
detrimento das teorias reducionistas, que ele considera inadequadas para demonstrar “como a política
internacional pode ser concebida como um domínio distinto do econômico, social, e outros domínios
internacionais que se pode conceber”.
20
resultados internacionais, tais como guerra e paz, políticas de alianças e balança de poder
(DUNNE; SCHMIDT, 2008, p. 91-92).
Considerado historicamente como uma alternativa ao realismo, temos o liberalismo.
Para compreendermos o pensamento desta corrente podemos remontar a Immanuel Kant,
filósofo e grande representante da tradição liberal, ele “ressalta a importância de constituições
republicanas na produção da paz” (NAVARI, 2008, p. 29). Para Kant, Estados republicanos
são mais propensos a terem comportamentos pacíficos que aqueles que não o são, como expõe
Navari:
Ele atribuiu isso [essa propensão] a hábitos de consulta; uma cidadania que teve de
ser consultada antes de ir para a guerra seria pouco provável de endossá-la
facilmente. Ele também atribuiu aos fundamentos legais do estado republicano
porque ele acreditava que um estado construído sobre lei era menos provável de
endossar um comportamento sem lei nas relações internacionais. (NAVARI, 2008,
p.30)
No século XX, à época do final da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento das
Nações Unidas, ocorreu um ressurgimento do sentimento liberal, como aponta Dunne (2008,
p.102). Na década de 1970, assim como o neorrealismo, emerge o neoliberalismo 3 e, como
afirmam Boyer, Hudson e Butler (2012, p. 16) este também enfatiza a estrutura do sistema
internacional e concorda com os neorrealistas quanto à ideia de que a competição entre os
Estados em um sistema anárquico causa conflito, porém discorda a respeito do peso da
anarquia na determinação do comportamento das unidades. Desse entendimento, os
neoliberais Robert Keohane e Joseph Nye, destacam-se ao formularem o conceito de
interdependência complexa. Para os autores, esse conceito, “refere-se a uma situação entre um
número de países nos quais múltiplos canais de contato conectam sociedades (ou seja, os
Estados não monopolizam esses contatos); não há hierarquia de questões; e a força militar não
é usada pelos governos para com o outro” (KEOHANE; NYE, 1987, p. 731). Dessa forma,
como argumenta Jatobá (2013, p. 49), “a teoria da interdependência complexa foi a primeira
tentativa de conciliar a perspectiva liberal sobre as possibilidades de cooperação com a visão
realista da importância dos recursos de poder para a conquista de resultados políticos”.
3
É importante destacar que este neoliberalismo não é o mesmo da teoria econômica, com origem na Escola de
Chicago. O neoliberalismo da teoria econômica (neoclássica) ficou conhecido a partir dos anos 1970 e 1980,
sobretudo por sua influência nos governos Reagan e Thatcher, e nos anos 1990 por sua hegemonia na América
Latina.
21
Entre os defensores iniciais mais notáveis deste foram Richard Ullman e Jessica
Mathews. Na década de 1980 Ullman alegou que, durante todo o período da Guerra
Fria "cada governo em Washington definiu a segurança nacional americana em
termos excessivamente militares", e que isso resultou na relegação das muitas
ameaças não militares enfrentadas pelos Estados. Ele [Ullman] passou a comparar as
catástrofes naturais (como terremotos) com o conflito nuclear e ressaltou que o
primeiro poderia ser igualmente devastador. (MALIK, 2015, p. 5)
4
Como afirma Buzan e Hansen “Na perspectiva tradicionalista dos estudos de segurança internacional, "uso da
força" era e é definido principalmente como “o uso estatal da força militar" e as ameaças enfrentadas pelos
estados como sendo predominantemente de tipo militar” (BUZAN; HANSEN, 2009, p. 16)
22
também ressalta a diferença desta vertente para a abordagem tradicional, que se dá pelo
tratamento diferente dado ao Estado. O autor demonstra que a abordagem tradicional
privilegia uma visão estado-cêntrica do mundo, enquanto a teoria crítica entende o Estado
como o meio e não o fim da política de segurança. Já no entendimento de McCormack (2010,
p.19), o compromisso que a teoria crítica possui é o de “representar um desafio às relações de
poder contemporâneas” o que implica, segundo a autora, em uma “crítica as abordagens
teóricas tradicionais à segurança, ao realismo com seu foco na segurança do Estado e
indiferença para com a liberdade humana e emancipação, e uma crítica ao estado soberano”.
A ideia de emancipação mencionada é indispensável para a teoria crítica, segundo
define um dos principais representes desta teoria, Ken Booth:
Emancipação é a libertação das pessoas (como indivíduos e grupos) desses
constrangimentos físicos e humanos que lhes impedem de realizar o que eles
livremente escolheriam fazer. Guerra e a ameaça de guerra são uma dessas
restrições, juntamente com a pobreza, a educação deficiente, a opressão política e
assim por diante. Segurança e emancipação são dois lados da mesma moeda.
Emancipação, não poder ou ordem, produz a verdadeira segurança. Emancipação,
teoricamente, é segurança. (BOOTH, 1991, p. 319)
Podemos entender, com isso, que para a teoria crítica a emancipação dos indivíduos
leva à segurança, no entendimento de Buzan e Hansen (2009, p. 206), “a solução da
emancipação no nível da segurança individual tem consequências positivas para a segurança
no nível coletivo”.
Dentro do escopo abrangente dos estudos de segurança, e nesse contexto de ampliação
dos seus objetos de referência 5, que surge, na década de 1980, a Escola de Copenhague.
Caracterizada por Duque (2009, p. 475) por ter feito uma profícua síntese tanto das vertentes
tradicionalista e crítica quanto das abordagens realista e construtivista, a Escola de
Copenhague se insere em um meio termo quanto à ampliação do entendimento de segurança,
considerando como objetos de referência outros agentes além do Estado, mas sendo menos
abrangente que teóricos críticos como Booth, por exemplo (BUZAN; HANSEN, 2009, p.
215).
A Escola de Copenhague nasce na Dinamarca no Copenhagen Peace Research
Institute (COPRI), com os seus nomes mais representativos sendo os de Ole Wæver e Barry
Buzan. A Escola, segundo Duque (2009, p. 476-477), “adota uma abordagem interpretativa da
segurança internacional” e entre suas principais contribuições aos estudos de segurança
5
Buzan et al (1998, p. 36) define o conceito da seguinte forma “Objetos de referência: unidades que têm sua
existência ameaçada e possuem uma reivindicação legítima para a sua sobrevivência”.
23
"Segurança" é o movimento que leva a política para além das regras estabelecidas
do jogo e enquadra o problema ou como um tipo especial de política ou como acima
da política. A securitização pode assim ser vista como uma versão mais extrema da
politização. Em tese, qualquer questão pública pode ser localizada no espectro que
vai de [assuntos] não politizados (ou seja, o Estado não lida com isso e não é de
qualquer outra forma uma questão de debate e decisão pública) a politizados (ou
seja, a questão é parte de políticas públicas, exigindo decisão do governo e
alocações de recursos ou, mais raramente, alguma outra forma de governança
pública) até securitizados (ou seja, a questão é apresentada como uma ameaça
existencial, necessitando de medidas de emergência e justificando ações fora dos
limites normais do processo político). (BUZAN et al., 1998, p. 23-24)
questões de segurança são construídas por agentes fez-se necessária a elaboração de quadros
analíticos específicos para cada um dos cinco setores, passando-se também a defender que
cada setor possui sua própria lógica.
Na sua exposição sobre os setores Buzan et al. (1998, p. 22-23) os diferenciam
iniciando pelo setor militar o qual possui, usualmente, como objeto de referência o Estado,
mas não se descarta a possibilidade de outras entidades políticas, como as Forças Armadas,
por exemplo, também o serem. O setor político é definido pelo princípio constituinte do
Estado, tais como soberania e ideologia. Os objetos de referência do setor econômico são
mais difíceis de determinar, mas a ocorrência de ameaças existenciais a empresas pode se dar
quando há falências, por exemplo. Sendo difícil de estabelecer limites rígidos que diferenciem
ameaças existenciais das não existenciais, devido a natureza dos objetos de referência, o setor
societal é composto pelas identidades coletivas que podem funcionar independentes do
Estado, como nações e identidades. O setor ambiental, por sua vez, fundamenta-se na
preocupação quanto à relação entre a espécie humana e o restante da biosfera, podendo
abranger uma gama grande de objetos de referência, que podem ir desde a sobrevivência de
espécies de animais até a manutenção do clima planetário.
Assim, vemos que a Escola de Copenhague com o estabelecimento dos cinco setores
de segurança avança na ampliação do conceito de segurança, e como afirma Duque (2009, p.
487), “ainda que os setores militar e político continuem a concentrar a maior parte das
iniciativas de securitização observadas, a expansão da agenda de pesquisa tem o propósito de
fornecer ferramentas teóricas para se lidar com as modificações no conceito de segurança”.
No pós-Guerra Fria, os autores observam uma tendência de regionalização dos
conflitos e, a partir dessa percepção, surge a teoria dos complexos regionais de segurança
(TANNO, 2003, p. 63). Na obra Regions and Powers: The Structure of International Security,
Buzan e Wæver (2003, p. 40) destacam que essa teoria possuir suas raízes no construtivismo,
pois se entende que o sistema regional depende das ações e interpretações de seus atores. Os
autores ainda argumentam que a teoria dos complexos regionais de segurança pode ser
aplicada a qualquer grupo de países, mas que esses não são grupos aleatórios, segundo a
definição de complexos regionais de segurança estes “se definem como subestruturas do
sistema internacional pela intensidade relativa da interdependência de segurança entre um
grupo de unidades, e a indiferença de segurança entre esse conjunto [essas unidades] e
unidades vizinhas” (BUZAN; WAEVER, p.48).
Através da Escola de Copenhague e das vertentes que se propuseram a ampliar o
escopo do debate, notamos que a Guerra Fria, e principalmente seu fim, suscitou importantes
25
e comunidades estão expostos, “com enfoque nas causas originárias das inseguranças
promovendo soluções centradas nas pessoas, que sejam localmente conduzidas, abrangentes e
sustentáveis”. Assim, podemos distinguir cinco princípios considerados pela ONU na
formação da abordagem da segurança humana, como mostra o quadro a seguir.
1.4 Terrorismo
30
6
Ibid., p. 3-4.
32
COUNCIL, Resolution 2133, 2014). Dessa forma, percebe-se que o terrorismo está entre as
principais preocupações da ONU, no entanto, a falta de consenso do âmbito acadêmico sobre
o tema também se faz presente na Organização, pois Estados, sobretudo do sul global,
questionam, por exemplo, a legitimidade do Comitê Contra o Terrorismo, devido o seu
mandato direto do Conselho de Segurança (COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS, 2013, p.
3). Assim, da mesma forma que no escopo da segurança humana há aqueles que reivindicam
uma maior democratização das organizações internacionais, o Conselho de Segurança
também pode ter nesse caminho uma forma de aumentar o diálogo e a adesão dos países do
sul.
Em resumo, este capítulo procurou expor algumas das principais contribuições
teóricas acerca dos temas de maior relevância para o trabalho, assim, procuramos trazer
debates sobre segurança, segurança internacional, segurança humana e, por fim, terrorismo.
Dessa forma, será adotado nesse estudo o entendimento de Wæver (2004) sobre a
segurança internacional, o qual a entende como uma ideia relacionada à segurança nacional,
de forma que a segurança internacional complementa a segurança nacional. A abordagem de
segurança humana adotada, por sua vez, será a exposta pela Comission on Human Security
(2003) que entende que para poder proteger as pessoas se faz necessário garantir seus direitos
básicos. Por fim, o entendimento adotado quanto o terrorismo se dará a partir da visão de
Suarez (2012) que destaca a necessidade de considerar o contexto em que o terrorismo está
inserido e a sua complexidade.
Observa-se entre os textos utilizados que na área de relações internacionais, mas não
uma exclusividade sua, há vários posicionamentos e bastante dissenso na compreensão destes
temas. Devemos considerar a mutabilidade das questões tratadas e a contínua adequação do
debate às novas realidades. Com isso, nos encaminharemos para a segunda parte deste
trabalho que discutirá os aspectos históricos da Nigéria, para melhor compreendermos sua
formação e seu contexto atual.
33
CAPÍTULO 2
divisão do território do continente entre si, discutindo sobre “as terras da África centro-
ocidental, onde franceses, britânicos, portugueses e alemães já marcavam presença havia
algum tempo” (BARBOSA, 2008, p. 162).
É importante destacar que a forma de administração das colônias pelos europeus
variava consideravelmente, das chamadas administração direta à administração indireta, como
aponta Herbst (2000, p. 81) pode-se identificar um espectro referente à administração das
colônias, que vai da administração portuguesa com o sistema mais direto, franceses e belgas
colocando-se em nível intermediário, até o sistema de administração indireta aplicada pelos
britânicos.
A Grã-Bretanha, entre os anos de 1935 a 1945, controlava dezesseis territórios
africanos. Na África Ocidental, eram quatro, Costa-do-Ouro, Gâmbia, Serra-Leoa e Nigéria.
Nessas quatro, a administração ocorria de forma indireta, através dos chefes tradicionais
locais, “principais responsáveis pelos organismos locais” e que “se ocupavam frequentemente
e pessoalmente, da supervisão direta de numerosos aspectos da administração dos negócios”,
vale ressaltar que os ocupantes de tais funções sobreviveriam à independência 7.
Elementos importantes a serem destacados nessa conjuntura são os eventos do século
XX, mais precisamente a Crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial. Estes tiverem um
impacto essencial na mudança de percepção dos africanos sobre o colonialismo e para o fim
desse sistema. A ocorrência da depressão econômica e a guerra estariam “na raiz das
mudanças que conduziriam à “descolonização” e na base da rápida transferência do poder aos
africanos”, a depressão fez diminuir as possibilidades de provisão pelas potências coloniais
aos territórios africanos e, fez com que os produtores rurais do continente, por exemplo,
vissem seus rendimentos diminuírem, o descontentamento daí originado abre caminho para os
nacionalistas (CROWDER, 2010, p. 92, 104).
A Grã-Bretanha, a partir de uma nova ideia provinda da crise, segundo a qual “o
governo britânico teria a obrigação de assegurar o bem-estar econômico e social das suas
colônias” cria estabelecimentos de ensino que acabam por criar “uma elite com uma
consciência política” que passa a notar as injustiças do sistema colonial, sobretudo em relação
à participação no sistema vigente. (CROWDER, 2010, p. 92, 116,120).
Com a vitória dos aliados na guerra os povos africanos passam a crer na maior
possibilidade de libertação, já que como apontam Suret-Canale e Boahen (2010, p. 191), “a
derrota do fascismo representava o insucesso de uma doutrina fundada sobre o racismo, a
7
CROWDER, 2010, p. 89-97 passim.
35
exaltação da força bruta e a negação dos direitos aos povos em dispor, por eles próprios, do
seu futuro”, assim, como argumentam os autores, “tratava-se, implicitamente, da condenação
do colonialismo”. Um fator importante, que suscitou mais descontentamentos entre os
africanos, foi o fato de que força africana foi utilizada no conflito, com homens e provisões,
para lutar pelos princípios de autonomia defendidos pelo lado vencedor, o que fez os povos da
África Ocidental questionarem o colonialismo e alimentarem sentimentos anticoloniais e
nacionalistas (SURET-CANALE, BOAHEN, 2010, p. 192). Justamente por não verem
refletidos em sua realidade o que pregam as colônias que os dominam, os africanos têm na
Guerra, e anteriormente na Crise de 1929, eventos que trazem para o continente
desdobramentos fundamentais que impulsionam a ascensão do nacionalismo.
Como identificam Suret-Canale e Boahen (2010, p. 196, 199), são três fatores
principais que atestam o fim do colonialismo na África Ocidental britânica: a ascensão do
nacionalismo africano, a atuação dos partidos políticos e dos movimentos nacionalistas e a
reação britânica à essa atuação. Tais partidos, nesse contexto, são caracterizados notadamente
por não serem elitistas e por congregarem militantes das zonas urbana e rural, tendo assim,
bastante apoio entre a população.
Assim, somente na década de 1960, ocorrem nove independências na África
Ocidental, entre elas a da Nigéria. A forma como se deu a independência nos países da África
Ocidental, apontam Suret-Conale e Boahen (2010, p. 205), foi com os britânicos recorrendo
principalmente a meios pacíficos e constitucionais, embora “o emprego da força ou da
violência não estivessem inteiramente fora de cogitação”. Após uma série de conferências,
entre Grã-Bretanha e os partidos nigerianos tem-se a “aceitação, por parte a Grã-Bretanha, das
reinvindicações de independência”.
Dessa forma, vemos que a Grã-Bretanha opta, na África Ocidental, por uma atuação
que concilie as lideranças locais com a dominação inglesa, com a presença de uma elite
ocidentalizada através da educação provida que se depara com um crescente sentimento
nacionalista entre a população nativa. A Nigéria se configura, dessa maneira, em um país que
tenta acomodar sua grande diversidade ao mesmo tempo em que luta pela sua consolidação
estatal a partir do legado deixado pelos colonizadores.
Com isso, antes de explorarmos a Nigéria no pós-independência, precisamos fazer
algumas considerações sobre a ideia de nação e Estado. Como afirma Rossolillo (1998, p.
795, 796), assim como os europeus utilizavam, antes da Revolução Francesa, o termo nação
em referência a toda Europa, aos Estados ou as cidades-Estado, os africanos também o
utilizam hoje para indicar a África, seus Estados e tribos. O autor argumenta que o conceito
36
de nação é geralmente concebido “como um grupo de pessoas unidas por laços naturais e,
portanto, eternos e que, por causa destes laços, se torna a base necessária para a organização
do poder sob a forma do Estado nacional”.
Elaigwu e Mazrui (2010, p. 522,523), por sua vez, identificam os aspectos objetivos e
subjetivos do conceito. Entre os objetivos encontram-se elementos como língua, cultura,
território, organização política e, por vezes, religião, os subjetivos referem-se ao sentimento
comum de identidade e a uma relação de identidade perante o grupo. Referindo-se ao
processo de edificação da nação e seu vínculo com os sentimentos de pertença e fidelidade, os
autores acreditam que esse processo ocorre através da “ampliação do horizonte até o qual os
grupos restringidos reconhecem a sua própria identidade, a ponto de englobar entidades mais
vastas, como o Estado", a aceitação e identificação com o governo central também fazem
parte desse processo.
No caso dos Estados da África no pós-independência, estes estavam configurados da
forma, muitas vezes arbitrária, que os colonizadores os traçaram e assim se mantiveram em
sua maioria, com poucas mudanças em seus desenhos territoriais. Como argumenta Herbst
(2000, p. 139, 103) “os países africanos tomaram como dado seus desenhos nacionais”, os
líderes do continente viam em questões como demografia, etnografia e topografia obstáculos
para se rearranjar os limites estabelecidos, além do mais, como expõe o autor “porque os
estados pré-coloniais não estavam organizados numa base territorial, eles poderiam ter pouca
ressonância em um mundo organizado em torno de limites rígidos”, em opinião contrária a
uma possível volta dos limites pré-coloniais. Assim, opta-se pela manutenção dos limites
firmados pelas potências coloniais.
O processo de edificação dos Estados africanos não se deu sem conflitos, a
“diversidade dos grupos humanos” presente no continente os fez inevitáveis 8. Com a Nigéria
não foi diferente, Herbst (2000, p. 150) destaca essa diversidade, argumentando que o país
teve de engajar-se para balancear temores de uma dominação étnica e expansionismo
religioso, situação advinda “da complexa divisão étnica do país acompanhada de polarização
religiosa”. É nesse contexto social que a Nigéria torna-se independente da Grã-Bretanha em
1960, a partir do exposto a seguir, poderemos notar a busca pelo desenvolvimento do Estado e
a tentativa de acomodação dessa diversidade.
Com pouco mais de cinco décadas como um Estado independente, a Nigéria pode ter
sua história política dividida em cinco períodos, como fazem Suberu e Diamond (2002, p.
8
ELAIGWU, MAZRUI, 2010, p. 527.
37
401), a primeira fase, datada a partir da independência em 1960 e com duração de cinco anos,
é conhecida como Primeira República Nigeriana. A segunda fase refere-se ao regime militar
de treze anos, de 1966 a 1979, que sucedeu a primeira fase. Após esse período militar inicia,
em outubro de 1979, a Segunda República, durando até dezembro de 1983. A quarta fase
refere-se ao segundo regime militar, com início na véspera do ano de 1984 e término no ano
de 1999. Por fim, a quinta fase, refere-se ao momento atual, iniciado com o fim do último
período de governo militar.
Através de um ato do Parlamento britânico, em 1º de outubro de 1960 a Nigéria, então,
passa a ser um Estado independente, tendo como líderes Nnamdi Azikiwe, presidente, e
Abubakar Tafawa Belawa, primeiro-ministro (LOVEJOY, 1992, p. 47, 48). Nesse primeiro
momento pós-independência, a situação política do país era a de um governo federal, baseado
em três regiões. Como afirmam Elaigwu e Mazrui (2010, p. 540), “a política etnoregionalista
do país gerou, no quadro de um regime parlamentar, vigorosas regiões governadas por
potentes primeiros-ministros em contraste com um centro de poder enfraquecido”. Assim, na
Primeira República Nigeriana tem-se um fraco poder central que, como argumentam Suberu e
Diamond (2002, p. 402), juntamente com a “[..]estrutura federal etnoregionalista e coalisões
regionais concorrentes geraram uma série de conflitos que culminaram no golpe militar de
1966[...]”.
Com o advento, em 1966, dos militares ao poder, ocorre na Nigéria um agravamento
dos conflitos etnoregionais. Em 1967, eclodiu a Guerra Civil no país, durando até o ano de
1970. Esta tinha um caráter de secessão, com seu epicentro na região da Biafra e demonstrou
a intensidade das rivalidades interétnicas, constituindo-se, no que se refere à identificação
com o governo central, em um desafio “à autoridade do governo central e uma rejeição ao
sentimento de identidade comum” (ELAIGWU, MAZRUI, 2010, p. 524). Com o intuito de
transformar a realidade regionalizada do país para uma estrutura integrada, em 1967, a
Nigéria passa-se a ter doze estados, seis na região sul e seis na região norte. Essa iniciativa
ajudou a malograr as intenções secessionistas, a trazer uma estabilidade de longo prazo, bem
como a atenuar a preponderância da região norte em termos geográficos e demográficos, a
criação de sete novos estados em 1976 veio consolidar essa integração (SUBERU,
DIAMOND, 2002, p. 402).
Essas transformações culminaram, em 1979, no advento da Segunda República, que
estava envolta de boas expectativas. Estas se deviam principalmente ao petróleo que, como
afirma Lovejoy (1992, p. 73, 226) “os preços do petróleo estavam altos, e as receitas estavam
aumentando. Parecia que um desenvolvimento ilimitado era possível”. Este ano coincide com
38
a promulgação da nova constituição nacional, promovida pelos militares e que fazia parte da
estratégia de transição do período de governo militar para o civil, que, com o intuito de evitar
as falhas da Primeira República, tinha como propósito “eliminar a competição política
baseada no sistema de o vencedor pega tudo [system of winner-takes-all, no trecho original],
expandir o consenso político para uma base nacional, eliminando o excesso de centralização
de poder e garantir eleições livres e justas”.
Por essa constituição, como aponta Lovejoy (2002, p. 227), também foi instituído o
sistema presidencial, em substituição ao parlamentar, com o caráter federativo sendo
ressaltado, procurando-se uma distribuição de poder. Assim, evitando que este ficasse restrito
a alguns estados ou grupos étnicos. Suberu e Diamond, no entanto, apontam que, na prática,
as tensões étnicas não foram amenizadas pelo presidencialismo, como demonstram os autores:
Somando-se a isso, o declínio da Segunda República foi fortalecido por fatores como o
fim do boom do petróleo em 1981, pelo declínio da economia devido a sua queda de preço, e
pela corrupção. Assim, o fim da Segunda República era iminente (LOVEJOY, 2002, p. 76).
A eleição seguinte, de 1983, foi marcada por fraude. Envolvendo principalmente o
partido governante da região norte, o NPN (National Party of Nigeria). Esse episódio,
segundo Suberu e Diamond (2002, p. 403) “destruiu a delicada balança institucional partidária
e de interesses étnicos que sustentou o federalismo nigeriano desde o início da República em
1979”.
Nesse contexto de desconfiança, em 1984, os militares usaram a fraude ocorrida nas
eleições como desculpa para retomar o governo. Esse golpe foi liderado por Muhammadu
Buhari, atual presidente nigeriano, cujos laços políticos o vinculam com o norte muçulmano
(LOVEJOY, 2002, p. 76.). Graves abusos caracterizaram o segundo período de governo
militar, que só se encerrou em 1999, entre eles corrupção desmedida, má administração
financeira, anulação das eleições presidenciais de 1993, concentração de poder em uma
oligarquia etno-militar, violações de direitos civis acompanhado da intensificação de
ressentimentos etno-regionais (SUBERU, DIAMOND, 2002, p. 403).
Assim, as medidas tomadas pelos governos militares tiveram consequências notórias
para a Nigéria. Entre elas, destacam-se os novos estados criados, tais reconfigurações que, por
39
fim, deixaram a Nigéria com 36 estados foram idealizadas para “responder a agitações locais
quanto à descentralização econômica e politica”, essa medida, teve, no entanto, entre seus
efeitos, a centralização de poder e de “manipulação do sistema de atribuição de receitas” pelo
governo federal (SUBERU, DIAMOND, 2002, p. 408). Assim, apesar do intento de
descentralização com a criação de mais estados, o período militar operou de forma a
centralizar o poder central em detrimento do poder dos estados, dando maior relevância, pela
via da centralização, à unidade e estabilidade nacionais.
Diante dessa insatisfação com a configuração administrativa do país, o fim do último
período militar e o início do governo civil em 1999 foi de bastante euforia, pois a expectativa
da população nigeriana era de que “a restauração da governança democrática iria acabar e
talvez reverter, a sistemática vandalização e violação das estruturas e processos federais pelos
militares” (SUBERU, DIAMOND, 2002, p. 410). O período de governo civil iniciado em
1999 e atualmente vigente foi inaugurado pelo presidente de origem Yoruba, Olusegun
Obasanjo, que já havia comandado o país entre os anos de 1976 e 1979, durante o período
militar. Apesar do governo civil e as expectativas em sua volta, ainda hoje os governos
nigerianos lutam para combater a corrupção permanente na política do país, ao mesmo tempo
em que ainda lidam com as rivalidades etno-regionais na tentativa de fazer da Nigéria um país
estável apesar de toda sua complexidade.
Os últimos governos, de Goodluck Jonathan e do atual presidente, Muhammadu
Buhari, trazem uma perspectiva mais otimista para a democracia do país, com transições de
governo sem interferências no processo eleitoral e sem a violência registrada em ocasiões
anteriores.
Dessa maneira, percebe-se que o desenvolvimento da Nigéria em termos políticos
ocorre não sem crises e turbulências, concebíveis para um país de tamanha complexidade
populacional e histórica. Passando de um governo central frágil no pós-independência, para o
resoluto poder central do período militar, chegando aos atuais avanços em sua democracia, a
Nigéria, apesar da grave situação politica e social que enfrenta sobretudo na região norte do
país e dos demais desafios na gestão estatal, dá sinais de que vem consolidando seu regime
democrático.
40
9
Identidade é compreendida, para o contexto desse trabalho, como definem Osaghae e Suberu (2005, p.5)
“qualquer atributo de um grupo que forneça reconhecimento ou definição, referência ou afinidade, coerência e
significado para os membros individuais do grupo, agindo individual ou coletivamente”.
10
No uso coloquial da Nigéria, esses grupos eram comumente referidos como “tribos”. Na cultura nacional
emergente no país esse assunto era discutido como “tribalismo”, um termo moralmente condenável cuja
conotação era similar a termos americanos tais como “discriminação”, “racismo” e “preconceito”. Com as
políticas nacionais nigerianas usualmente tendo fomentado a tolerância há, assim, uma campanha de longo prazo
41
apresentam de forma abundante na Nigéria. Segundo afirmam Cohen e Goldman (1992, p. 97)
não há um número definido de grupos étnicos no país, mas estima-se que este número varie
entre 250 a 400. Retratando a conformação regional dos grupos, os autores argumentam:
Os maiores grupos de unidades étnicas conectadas são regionais. A Grã-Bretanha
governou a maior parte da área da atual Nigéria como dois protetorados de 1900 a
1914, os protetorados sul e norte cada um com administrações regionais distintas.
Estas partes foram unidas finalmente sob um único governo colonial da Nigéria em
1914. Mas eles mantiveram as suas autoridades de base regional, divididas depois de
1914 em três unidades regionais. (COHEN, GOLDMAN, 1992, p. 98)
Assim, a regionalização dos grupos étnicos nigerianos ocorre com o sul incluindo a
área ocidental Yoruba e a área oriental Igbo. O norte abrange os falantes da língua Hausa, os
Fulani e os Kanuri. A região do Cinturão do Meio, que se estende da costa leste ao oeste da
região central do país, concentra várias minorias étnicas sem influência política (COHEN,
GOLDMAN, 1992, p. 98, 99). Na ilustração a seguir podemos observar a disposição dos
grupos na Nigéria:
para a substituição do termo “tribo” ou “tribal” pelo conceito mais universal de etnicidade. (COHEN,
GOLDMAN, 1992, p. 97)
42
secessão da região leste, sob a liderança do governador militar Igbo, Odumegwu Ojukwu,
como a República independente da Biafra”, que culminou com a guerra civil. Assim, mesmo
após a divisão em seis zonas geopolíticas do território nigeriano, em 1996, a predominância
dos três principais grupos étnicos determinados na divisão das três unidades permanece
(OSAGHAE, SUBERU, 2005, p. 12,17).
Outro desdobramento que afeta diretamente a juventude do país encontra-se na busca
por protagonismo de seus grupos étnicos. Essa questão se evidencia no surgimento de novos
movimentos étnico-juvenis tais como o Odua Peoples Congress e o Niger Delta Peoples
Volunteer Force. Os autores destacam como fatores determinantes dessa questão a frustração
socioeconômica aliada ao desemprego, o legado de repressão e impunidade estatal desde
1984, e a incapacidade das forças nacionais de segurança de cumprir com as suas obrigações
básicas de proteção (OSAGHAE, SUBERU, 2005, p. 13,14).
Dessa forma, o que se observa do contexto étnico nigeriano é que sua inegável
diversidade não gera por si só as turbulências étnicas que ocorrem no país. Com a organização
das unidades regionais que foram estabelecidas ao longo dos anos acentua -se o
distanciamento entre os grupos, o que faz com que a competição daí suscitada, torne-se a
principal base das tensões, pois está aliada a busca por representatividade e por recursos,
sobretudo dos grupos étnicos maiores, acentuando suas rivalidades. A incapacidade do Estado
em equilibrar a participação dos grupos no âmbito político e de contornar os problemas
sociais que afligem a população torna-se um agravante que faz do cenário étnico nigeriano
palco de constante instabilidade.
toda a trama da vida individual e comunitária da África”, o que podemos relacionar com o que
os autores identificam como o “problema da religião” quanto à transformação social do
continente. Para eles, este se observa no “vigor do sentimento religioso e da pluralidade de
religiões”. Assim, congregar os diferentes povos com suas diferentes religiões se faz um
desafio para o continente e, da mesma forma, para a Nigéria.
A base religiosa do país, como anteriormente mencionado, assenta-se sob as religiões
tradicional, cristã e islâmica. Com a religião islâmica dominando o norte do país enquanto a
região sul é dominada pela cristã.
Iniciaremos, assim, a exposição das religiões pela religião tradicional. Destaca-se
nessa religião sua estreita relação com a natureza, entendendo-se que:
A religião tradicional africana constituiu, especialmente, em um meio de explorar as
forças da natureza e de sistematizar os novos conhecimentos sobre o ambiente
humano e físico. Em seu desejo de compreender os múltiplos aspectos da natureza e
de fazer frente a eles, o africano identificou várias divindades e instaurou numerosos
cultos (TSHISHIKU, AJAYI, SANNEH, 2010, p. 606).
11
ALAO, 2013, p. 6-10 passim.
46
Verificam-se diferenças nas relações dos grupos étnicos com a religião, assim também ocorre
com os grupos Hausa-Fulani no norte e os Yoruba no sul com relação ao islã. Os Yorubas são
mais flexíveis no que diz respeito à religião, assim, também os são com o islã. Essa
diferenciação de postura frente ao islã acarreta algumas implicações que ajudam a
compreender sua radicalização, entre elas estão:
Em primeiro lugar, a adesão estrita às crenças islâmicas faz os Hausa/Fulani
muçulmanos deverem maior fidelidade à sua religião do que à sua etnia ou até
mesmo ao Estado nigeriano, uma situação que os muçulmanos Yoruba, pelo menos
por um tempo muito longo, acharam um pouco difícil de tolerar. Em segundo lugar,
isso explica por que, ocasionalmente, os muçulmanos da região norte do país se
consideram "superiores" aos muçulmanos Yoruba, cuja versão do Islã eles acreditam
ser adulterada (ALAO, 2013, p. 11, 12).
Essas duas questões estão presentes na dinâmica atual da Nigéria, fazendo-se nítidas
no grupo Boko Haram que, como veremos, faz uso das lógicas citadas para fundamentar suas
operações, uma das suas principais reinvindicações é justamente pelo retorno ao “verdadeiro
islã”. Poderemos observar o emprego da radicalização de forma mais explícita no próximo
capítulo.
Assim como a etnia a religião é um elemento de extrema importância para os
nigerianos, moldando a relação da sociedade desde antes do território da Nigéria ser como se
apresenta hoje. Notamos a continuidade e flexibilidade da religião tradicional e também a
presença mais forte do cristianismo e do islã, este desenvolvido, sobretudo no norte, possui
uma dinâmica particular que aliada aos grupos étnicos da região se expressa de uma forma
mais acentuada em comparação a religião tradicional ou ao cristianismo.
Como vimos pelo exposto até então, na Nigéria, aspectos identitários, como etnia e
religião, com frequência polarizam o país devido aos interesses de seus respectivos grupos. As
diferenças entre as regiões norte e sul observadas na Nigéria refletem em grande medida tais
polarizações e o delineamento territorial a que o país foi submetido. Com isso, nesta seção
buscaremos compreender como se configuraram as disparidades regionais e as tensões que
esta conjuntura oferece a Nigéria.
O delineamento territorial realizado pela Grã-Bretanha teve importante papel na
configuração das diferenciações entre o norte e o sul nigeriano. Conforme demonstrado
47
anteriormente, o arranjo de três unidades realizado pelos britânicos em 1954 foi um fator
desencadeador de agitação etno-regional, entre outras razões por institucionalizar a
hegemonia da região norte. Entre os elementos envolvidos na atuação britânica associados às
disparidades regionais tem-se:
(...) a diferente administração e modernização das seções norte e sul deste estado
colonial. Esta diferenciação engendrou uma enorme fissura geopolítica histórica
entre a hegemonia política do Norte e a ascendência socioeconômica do Sul, que
continua a assombrar a política nigeriana até hoje (SUBERU, DIAMOND, 2002, p.
401).
Nacional 33.1
Nordeste 50.2
Noroeste 45.9
Sudeste 28.8
12
Human Development Report, 2014, p. 180.
49
Sudoeste 16.0
Pela tabela, podemos observar que a região norte concentra as piores taxas, com a
porcentagem mais alta da população em situação de pobreza. Essa tendência também ocorre
com fatores como alfabetização entre os jovens, frequência escolar e acesso à água potável
(SODIPO, 2013, p. 4.), com a região norte apresentando índices piores em relação à região
sul. Assim, fica clara a preponderância do Sul em termos de indicadores sociais, com o Norte
possuindo uma situação social mais grave e enfrentando um maior desafio em combater tais
índices, em uma região que atualmente reflete os problemas sociais que vivencia,
demonstrados através da flagrante insatisfação e violência com que se depara a população
local.
Dessa forma, a disparidade entre o norte e o sul nigerianos é um elemento que se pode
observar com facilidade a partir das diferenciações a que as regiões foram submetidas ao
longo dos anos, sejam administrativas, remontando a atuação da Grã-Bretanha ou etno-
regional, com seus grupos e crenças característicos. Nota-se que a preponderância política
desempenhada pelo norte, principalmente durante o período militar, não ocorre no âmbito
social, com o sul apresentando os melhores índices socioeconômicos. A corrupção e as
disputas por poder ajudam a manter as polaridades, reforçando os interesses de cada grupo e
região em detrimento do interesse da nação, assim, as disparidades entre as regiões perpassam
também pelas questões identitárias, étnicas e religiosas, e não pode ser vistas de forma
isolada, já que cada elemento impacta e influencia o outro.
Em síntese, o processo histórico da Nigéria anterior à independência possui forte
influência na configuração política e social do país, que persiste mesmo após o fim do
colonialismo britânico. Uma vez independente, a Nigéria teve de enfrentar desafios relativos à
governança, corrupção e tensões identitárias. Podemos identificar na competição por poder e
representatividade o elemento comum entre as questões étnicas, religiosas e regionais. A
preponderância dessa competição tem dificultado a tarefa de edificação da nação, fazendo
com que, através da politização de tais elementos da identidade nigeriana, seja reforçada a
polarização no país, o que gera um ciclo vicioso de instabilidade. Assim, ao se pensar em uma
alternativa que vise o progresso nacional da Nigéria, deve-se priorizar os fatores que suscitam
50
CAPÍTULO 3
Como vimos até então, são vários os fatores que moldam o contexto social nigeriano,
desde sua história até a configuração da sua sociedade, influenciando o cenário atual. Assim,
depois que tratamos destas questões iremos agora verificar como o terrorismo contemporâneo
se desenvolveu na Nigéria, e a partir daí observar como os graves abusos que ocorrem no país
estão presentes não apenas entre os membros do Boko Haram mas também entre os agentes
estatais. Analisaremos se entre tais abusos ocorrem crimes contra a humanidade e se sim,
quais são os seus perpetradores e de que forma eles ocorrem no país, destacando a condição
da população civil nesse cenário de conflito.
Iniciaremos o capítulo expondo como surgiu o Boko Haram e quais são os fatores que
envolvem o seu surgimento, evidenciando no que estão amparadas as suas ideias e quais são
seus objetivos a partir delas. Na segunda parte do capítulo destacaremos o desenvolvimento
das ações terroristas do grupo e os seus alvos. Na terceira parte mostraremos a atuação do
Boko Haram e das forças nacionais nigerianas como geradores dos abusos que ocorrem no
contexto do conflito, para então analisarmos a ocorrência de crimes contra a humanidade no
país. A quarta parte, por fim, discorrerá sobre algumas das iniciativas governamentais para
combater o grupo, adicionados a esse esforço de combate, trataremos da ajuda militar externa
recebida pela Nigéria.
13
Human Rights Watch , 2012, p.5
52
pode ser entendida como a “educação ocidental é proibida”, com o termo “Boko” designando
educação ocidental e “haram” referindo-se a proibida. A apreensão mais adequada do nome,
contudo, revela-se no seu entendimento como “a civilização ocidental é proibida”, pois a
oposição do grupo não se limita a educação ocidental (ADIBE, 2013; HUMAN RIGHTS
WATCH, 2012).
A questão da educação pode ser relacionada à atuação colonial e à importância que a
religião possui sobre a população africana, como anteriormente mencionado. O que vemos no
discurso do Boko Haram quanto a oposição à educação é que o grupo entende que, antes do
colonialismo, o islã era amplamente disseminado pela Nigéria e assim permaneceu até o
domínio colonial no país, isso, na visão deles, “(...) afetou todos os aspectos da vida, em
particular o sistema educacional, erodindo, desse modo, algumas doutrinas do islã”
(AJIBOLA, 2015; MURTADA, 2013).
Com uma história de revoltas, a região norte, onde se desenvolve também o Boko
Haram, presenciou o surgimento, no século XIX, do Califado de Sokoto, liderado por Usman
dan Fodio. Este inicia uma guerra santa “contra o corrupto e o injusto governo Hausa”,
também estabelecendo a sharia na região. A revolta de Fodio acaba sendo suprimida pela
incorporação da região ao domínio britânico. Já no pós-independência, na década de 1980,
surge na região a seita religiosa radical Maitatsine que se opunha a elite dominante do país
considerada corrupta e abusiva, a seita chega ao fim com a atuação do governo militar, então
no poder (HUMAN RIGHTS WATCH, 2012, p. 22).
Nessa região de recorrentes conflitos, nasce Muhammad Yusuf, o criador do Boko
Haram. A data de origem no grupo possui algumas controvérsias. Como expõe Adibe:
(...) a seita foi na verdade iniciada em 1995 como Sahaba e foi inicialmente liderada
por um Lawan Abubakar, que mais tarde partiu para novos estudos na Universidade
de Medina na Arábia Saudita. Yusuf dizia-se ter assumido a liderança da seita após a
saída de Abubakar e imediatamente embarcou em um intensivo e extremamente bem
sucedido recrutamento de membros de tal forma que ele tinha mais de 500.000
membros antes de sua morte. (ADIBE, 2013, p. 11)
Apesar dessa exposição, a crença mais popular é que o grupo foi formado no ano de
2002 por Yusuf, que envolvido com movimentos políticos religiosos em anos anteriores, cria
nesse ano o grupo independente Boko Haram.
No ano de 2003 verificam-se os primeiros relatos de confronto armado com a polícia,
influenciados pela propagação do grupo empreendida por Yusuf. Em seguida, o líder do grupo
“assume o controle da cidade de Borno como o reduto de poder da sua da’wah [propagação] e
continua a incitar a juventude para a jihad, contra a opressão do governo e os alertando contra
53
a educação ocidental e a „modernidade‟” 14 (MURTADA, 2013, p. 7). Assim, nos seus anos
iniciais, afirma Onuoha (2013, p. 19), o grupo se consolidou nos estados de Borno, Yobe,
Katsina e Bauchi, região nordeste da Nigéria.
O ano de 2009 se apresenta para o grupo e para o país como o ano em que ocorre a
transformação mais incisiva em termos de violência e reorganização do movimento. Essa
transformação decorre da morte, nesse ano, de Muhammad Yusuf. Os acontecimentos desse
ano iniciam com a confrontação entre seguidores de Yusuf e a polícia. Foi instituída, em
2009, uma nova legislação sobre uso de capacetes para motociclistas, o que fez o governo de
Borno orientar a polícia para que reforçasse o uso desse item, ação parte da chamada
“Operation Flushout”.
Durante a operação, alguns seguidores de Yusuf dirigiam-se a um funeral de
motocicletas, porém sem os capacetes, a polícia os encontrou e os abordou de forma violenta,
o que levou a um violento confronto no funeral. Cerca de dezoito membros do Boko Haram
sofreram ferimentos. Esse episódio gerou grande descontentamento em Yusuf o que o fez
escrever sua “Carta Aberta ao Governo Federal” onde Yusuf “ameaça o governo e demanda
que eles respondam em 40 dias com vistas a uma resolução entre o governo e seu grupo, caso
contrário, „operações da jihad começariam no país as quais apenas Allah será capaz de parar‟”
(MURTADA, 2013, p. 8).
O prazo estipulado por Yusuf encerra-se sem uma resposta do governo, o que leva a
uma série de confrontos entre o grupo e as forças do governo em várias cidades do país. Em
um desses confrontos a polícia ataca uma mesquita, usada por Yusuf para lições e leituras. A
polícia prende Yusuf nesse confronto, em seguida, o líder do Boko Haram é morto em poder
dos policiais15.
A morte de Yusuf, no entanto, não significou o fim da insurreição. Segundo o porta-
voz do movimento, a morte do seu líder não traria nenhuma mudança em sua agenda e os
estimularia na busca pela implementação dos seus planos. A partir de então, seguem-se duas
mudanças no grupo, a primeira foi a ascensão do novo líder Abubakar Shekau. A segunda
decorre da redefinição das suas táticas, aperfeiçoadas com o intuito de se tornarem mais
violentas (MURTADA, 2013; ONUOHA, 2013).
Quanto ao apoio provido ao grupo em termos de financiamento e pessoal, ele ocorre
de maneira diversificada quanto ao primeiro aspecto, ao passo que quanto ao segundo, o apoio
ocorre refletindo em grande medida a péssima situação social do norte do país. Assim, como
14
O termo jihad significa “luta na via de Deus”. (MAZRUI, 2010, p. 136)
15
Ibid., p. 9.
54
expõe Onuoha (2013, p. 18, 19) o que financia as atividades do grupo são os pagamentos de
cotas pelos seus membros, doações de políticos e oficiais do governo e de outros grupos
terroristas como a Al-Qaeda e o crime organizado. O autor ainda evidencia que o apoio de
pessoal que o Boko Haram recebe é motivado pela crença de que “o Estado nigeriano é um
covil de vícios sociais”, assim, integram o grupo jovens frustrados e pessoas desempregadas
com formação acadêmica, em sua maioria.
As causas que motivaram a emergência do grupo são bastante discutidas nos meios
acadêmico e social, não havendo uma unanimidade entre eles. Das mais recorrentes no debate
destacam-se aqueles que aludem à má governança estatal e aos problemas sociais do país.
Entre os apontados pela Human Rights Watch (2012, p. 10) encontram-se a corrupção
endêmica, a pobreza, como observado anteriormente, mais severa na região norte da Nigéria,
impunidade e violações dos direitos humanos pelas forças de segurança. Ressaltando um fator
que perpassa pela questão econômica, estatal e social, temos a corrupção presente na Nigéria
que, como expõe a Human Rights Watch, através de depoimento de um jornalista nigeriano
que entrevistou antigos líderes do grupo, opera junto ao Boko Haram da seguinte maneira:
Assim, como forma de combater esses fatores o grupo tem como objetivos declarados
a imposição de uma identidade islâmica estrita no país e a implementação de uma severa
interpretação da sharia 16 (HUMAN RIGHTS WATCH, 2012, p. 37).
Dessa forma, percebe-se que o Boko Haram emerge de uma região historicamente
instável que, somada ao contexto social deficitário do norte da Nigéria sobretudo, expressa-se
na forma da violência e do radicalismo praticados pelo grupo. Com forte oposição ao
governo, o Boko Haram pretende, através da luta armada, fazer ascender ao país a sharia que,
16
A sharia é o código de leis derivado do Alcorão. No contexto da Nigéria em relação à sharia tem-se “[...]Em
1999, depois das eleições na Nigéria, o governador de Zamfara, Ahmad Sani Yerima, encontrou justificação na
constituição nigeriana para a implementação da sharia em seu estado, em 2001, tornou-se o primeiro governador
a implementar a sharia em um estado nigeriano. Ahmad convidou outros estados do norte nigeriano a fazer o
mesmo e alguns estados responderam ao convite e similarmente começaram a implementar as regulações da
sharia. Depois de intensa insistência pública desses estados pela implementação da sharia, cerca de 12 estados
anunciaram a implementação da sharia em seus territórios[...]”. (MURTADA, 2013, p. 5). A Human Rights
Watch (2012, p. 23) mostra que a “sharia foi adicionada pelos governadores dos estados como uma lei paralela
aos códigos penais existentes, e apenas aplicada aos muçulmanos”.
55
no ano de 2011 o número de mortos por ataques cometidos pelo grupo foi de ao menos 550,
nos primeiros nove meses de 2012 o número de vítimas já chegava aos 815 (ONUOHA, 2013;
HUMAN RIGHTS WATCH, 2012).
A imagem a seguir mostra a evolução do número de vítimas.
Figura 2 – Mortes na Nigéria pela violência social, por categoria, 1998 – 2014
Fonte: Connect SAIS Africa
Os cidadãos compõem 77% das fatalidades dos ataques do Boko Haram 17,
constituindo-se assim no principal alvo dos ataques do grupo. No entanto, ao analisarmos a
situação da Nigéria observaremos que não apenas o grupo radical perpetra abusos, as suas
forças nacionais, polícia e exército, também são agentes da violência no país. Analisando esse
aspecto do conflito buscaremos observar se há no país a ocorrência de crimes contra a
humanidade a partir da atuação dos dois agentes mencionados. Para isso, destacaremos as
principais situações de violência cometidas contra a população, expondo também as
consequências decorrentes dessas hostilidades.
Encarregado de julgar pessoas acusadas de cometerem sérios crimes de interesse
internacional, o Tribunal Penal Internacional (TPI) através do Estatuto de Roma define no
artigo sétimo o que caracteriza um crime contra a humanidade:
Artigo 7º
Crimes contra a humanidade
1. Para efeitos do presente Estatuto, "crime contra a humanidade" significa qualquer
um dos seguintes atos, quando cometidos como parte de um ataque generalizado ou
sistemático dirigido contra qualquer população civil, com conhecimento do ataque:
(a) Assassinato;
(b) Extermínio;
(c) Escravidão;
(d) Deportação ou transferência forçada de população;
(e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação de
normas fundamentais do direito internacional;
(f) Tortura;
(g) Estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização
forçada, ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável;
(h) Perseguição de qualquer grupo ou coletividade identificável por [motivos de]
política, raça, nacionalidade, etnia, cultura, religião, gênero, como definido no
parágrafo 3, ou outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no
direito internacional, em conexão com qualquer ato referido neste parágrafo ou
qualquer crime da competência do Tribunal;
(i) Desaparecimento forçado de pessoas;
(j) Crime de apartheid;
(k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, intencionalmente causando grande
sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou para a saúde física ou mental.
(ROME STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 1998, p.
3,4)
17
Ibid., p. 41.
59
A Human Rights Watch (2012, p. 75, 11) também destaca que a agressão deve
“também ser parte de uma política estatal ou "organizacional" para cometer múltiplas
encomendas destes crimes. Organizações não estatais podem ser responsáveis por crimes
contra a humanidade, se eles possuírem um grau suficiente de organização”. Assim, tanto as
forças nacionais quanto o Boko Haram são passíveis de serem enquadrados como agentes de
tais crimes. Ainda segundo a organização, a Nigéria, a partir da sua adesão aos tratados de
direito internacional, assume a responsabilidade de assegurar a proteção de sua população
“esses direitos são garantidos por vários tratados internacionais, incluindo a Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos
Povos, ratificados pela Nigéria.”
Em contraposição aos aspectos preconizados para a proteção da população da Nigéria,
as forças nacionais de segurança têm, sobretudo em retaliação as ações do Boko Haram, feito
uso de práticas que colaboram com a violência observada no país. Como evidencia a Human
Rights Watch:
O governo da Nigéria tem respondido com uma mão pesada à violência do Boko
Haram. Em nome de acabarem com a ameaça do grupo para os cidadãos, as forças
de segurança que compreendem militares, policiais e pessoal de inteligência,
conhecidas como a Força-Tarefa Conjunta (JTF) [Joint Military Task Force, em
inglês], mataram centenas de suspeitos do Boko Haram e membros aleatórios de
comunidades onde os ataques ocorreram. De acordo com testemunhas, a JTF se
envolveu em uso excessivo da força, abuso físico, detenções secretas, extorsão,
incêndio de casas, roubo de dinheiro durante os ataques e execuções extrajudiciais
de suspeitos. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2012, p. 9)
Como evidenciado, são diversas as acusações feitas às forças nigerianas. Entre estas,
uma das mais recorrentes são as execuções extrajudiciais. Como afirma relatório da Anistia
Internacional (2012, p. 19), é proibido, pela lei internacional, que autoridades matem alguém
que esteja em seu controle sem que haja um julgamento. Segundo pessoas entrevistadas pela
organização, pessoas desarmadas, deitadas no chão e cooperando com as forças de segurança
foram alvos de tiros a queima roupa disparados pelos agentes de segurança.
Os desaparecimentos forçados também são uma prática verificada, familiares de
presos são impedidos de os visitarem e informados de que eles foram “transferidos”. Segundo
afirma o relatório “desaparecimentos forçados são graves violações de direitos humanos e
facilitam uma série de outras violações, incluindo a tortura e execuções extrajudiciais”. No
caso de incêndio de casas, entende-se que esta seja uma forma de retaliação, pois ocorre após
ataques nas mesmas áreas, essa prática também constitui-se em uma violação de direitos
60
Dentre os efeitos decorrentes das ações do grupo podemos destacar dois bastante
evidentes. Ao atacar escolas, que pelo entendimento do Boko Haram são consideradas como
aliadas ao governo ou contrárias aos seus objetivos, o grupo produz um grande impacto na
infraestrutura do país e, mais precisamente, na sua educação. Como informa o relatório da
ONU, 338 escolas foram destruídas pelo grupo em um período de apenas dois anos, entre
2012 e 2014, nos estados de Adamawa, Borno e Yobe. Isso agrava ainda mais a educação
especialmente precária do norte, onde encontram-se 6,3 milhões das 10,5 milhões de crianças
fora da escola no país. (HUMAN RIGHTS COUNCIL, 2015; HUMAN RIGHTS WATCH,
2012, 2014).
Figura 3 – Número de mortos pelo Boko Haram e pelas forças nacionais 2009 – 2012
Fonte: Human Rights Watch, 2012
Outro efeito direto da atuação do Boko Haram na Nigéria é o grande fluxo de pessoas
deslocadas. Essas pessoas estão divididas entre deslocados internos e refugiados. Até julho de
2015, o número de deslocados internos chegou a 1,3 milhão, com as crianças representando
56% desse número. Milhares de pessoas também se dirigiram aos países vizinhos em busca de
62
18
Ibid., p. 28.
63
19
Ibid., p. 9.
64
Fonte: Stratfor
65
Entre os países que oferecem suporte a Nigéria no combate ao Boko Haram, encontra-
se a França. Os franceses têm oferecido apoio a Força-Tarefa Multinacional, incluindo “voos
de vigilância para monitorar os movimentos dos extremistas, que são lançados a pedido da
Nigéria”. A França tem demonstrado grande empenho em combater o Estado Islâmico, assim,
quando no início desse ano o Boko Haram declarou aliança com esse grupo, o presidente
francês François Hollande afirmou que não se pode priorizar um combate em detrimento do
outro, pois, para ele, o inimigo é o mesmo, o terrorismo. (O‟GRADY, 2015, p. 1, 2).
Outra importante ajuda externa destinada a Nigéria vem dos Estados Unidos. Apesar
da controvérsia verificada devido aos norte-americanos oferecem ajuda no resgate das
estudantes de Chibok, mas não demonstrarem maiores preocupações quanto aos alegados
abusos cometidos pelas forças de segurança nigerianas, os Estados Unidos cooperam com a
Nigéria no caso das estudantes, empregando drones e vigilância aérea para encontrá-las. Em
2014, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos enviou soldados a Nigéria para treinar
um efetivo de 650 militares nigerianos para operações de combate. Como argumenta
Campbell (2014, p. 17, 18) tais treinamentos poderiam aumentar o profissionalismo das
forças nigerianas e, assim, melhorar sua performance.
Dessa maneira, a atuação do governo nigeriano com relação ao Boko Haram parece
carecer de consistência, apesar dos esforços que tem sido feitos, não se observa uma atuação
efetiva e principalmente eficaz por parte do governo. Assim, a retomada de alguns territórios
antes controlados pelo Boko Haram só ocorre de forma mais significativa a partir da atuação
do governo em colaboração com seus países vizinhos que, receando uma maior expansão do
grupo para os seus territórios, veem-se compelidos a atuar no conflito.
Desse modo, o Boko Haram desde o início das suas práticas aplica o terrorismo em
suas atividades. Se antes seus métodos eram mais conservadores, com o início da liderança de
Abubakar Shekau o grupo torna-se mais dinâmico e cruel. Como observado durante este
capítulo e os anteriores, não podemos desassociar o contexto social nigeriano da ascensão e
expansão do grupo. A descrença social que enfrentam os nigerianos, sobretudo os jovens da
região de atuação do grupo, faz com que sua adesão ao radicalismo seja facilitada.
O grupo assim, tira proveito da fragilidade social e também da corrupção e brutalidade
das forças nigerianas para reforçar seus argumentos. Para eles essa situação reforça sua ideia
de que é preciso derrubar o governo nigeriano e colocar no poder um poder baseado na
honestidade e na moralidade, estas, advindas de um governo islâmico que empregue a sharia
no país.
66
Dessa forma, para combater tais aspirações do grupo, as forças nacionais nigerianas
atuam com demasiada violência e arbitrariedade, sem muitas vezes, distinguir quem é
membro do Boko Haram e quem é apenas morador das cidades onde o grupo atua. Com os
embates entre Boko Haram e forças de segurança, as retaliações decorridas e a população civil
como uma vítima recorrente dos grupos, há na Nigéria a ocorrência de crimes contra a
humanidade, como concebido pelo artigo 7º do Tribunal Penal Internacional.
A população civil nigeriana infelizmente encontra-se sem muitas alternativas no
momento, o que reflete o grande número de deslocados e refugiados nigerianos abandonando
suas moradias, se por um lado há a violência do Boko Haram, de outro há a violência da
polícia e do exército e, entre esses fatores, a ausência de um Estado capaz de prover segurança
ou alternativas seguras, o que faz com que a população não confie nas suas forças nacionais
para protegê-la, preferindo buscar uma alternativa fora das suas cidades.
67
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abordando a atuação do grupo Boko Haram na Nigéria este trabalho procurou mostrar
a situação vulnerável em que se encontra a população civil no país. Partindo do pressuposto
de que o grupo ataca deliberadamente a população procurou-se verificar se esta, nesse
contexto de vulnerabilidade e violência, era vítima de crimes contra a humanidade.
Para isso, de forma a aproximar as concepções que estariam relacionadas ao tema do
trabalho, no primeiro capítulo fez-se uma exposição histórico-conceitual das ideias de
segurança, segurança internacional, segurança humana e terrorismo. Observa-se, ao longo do
tempo, o direcionamento do conceito de segurança do âmbito das ideias e individual cada vez
mais em direção ao âmbito político e coletivo. O século XX traz para a área da segurança a
consolidação do conceito de segurança internacional no contexto da Primeira e Segunda
Guerras Mundiais e da Guerra Fria. Assim, nesse período de grandes conflitos mundiais é que
no pós Segunda Guerra tem-se o advento dos Estudos de Segurança Internacional, o qual,
nesse primeiro momento, preocupa-se com a proteção dos Estados, utilizando-se da teoria
realista, limitando suas preocupações as questões militares.
Percebendo-se a limitação da abordagem tradicional de segurança para analisar de
forma completa as dinâmicas então presentes no âmbito da segurança internacional, na década
de 1980 inicia-se a ampliação do conceito de segurança. Destacam-se nesse momento as
teorias crítica e construtivista, juntamente com a Escola de Copenhague, estas proporcionam
um aprofundamento e ampliação do escopo da segurança, adicionando novos temas ao debate.
Seguindo a tendência da ampliação, surge no âmbito internacional a concepção de segurança
humana, que centra seu foco sobre o ser humano através de uma abordagem multi-setorial e
que objetive a promoção do desenvolvimento para a mitigação das ameaças aos indivíduos.
Quanto ao terrorismo destaca-se a sua complexificação no decorrer das décadas, com a
diversificação dos seus ataques e dos seus métodos, assim como a necessidade de se analisar o
contexto em que ele está inserido. A mais recente tendência desse fenômeno também é
ressaltada, sua transnacionalização e seu aspecto global.
Dessa maneira, o primeiro capítulo expõe algumas ideias fundamentais para a
compreensão do que foi abordado no trabalho, podemos identificar nas ideias de segurança
humana e terrorismo, por exemplo, aspectos fundamentais presentes na realidade da Nigéria.
Como se mostrou ao longo do trabalho o aspecto social e a sua precária condição,
especialmente no norte nigeriano, desempenham um papel importante nas tensões da região
norte. Assim, como sugere a concepção de segurança humana, buscar o desenvolvimento se
68
faz importante na medida em que ele colaboraria para a estabilidade, mitigando um aspecto
importante da ansiedade local e preenchendo uma das demandas da população. A
transnacionalidade, observada como a mais recente tendência do terrorismo, também pode ser
observada no Boko Haram. O grupo, desde 2013 tem atuado para além das fronteiras
nigerianas, chegando aos seus países vizinhos, ademais, sua recente declaração de aliança
com o Estado Islâmico suscita preocupações que não se limitam ao Estado nigeriano.
O segundo capítulo destacou os aspectos históricos e a configuração dos principais
aspectos identitários da Nigéria. Assim, pode-se notar a grande inconsistência institucional
nigeriana, que após um breve período de governo civil no pós-independência de 1960, viu
alterar o governo central, muitas vezes por meio de eleições fraudulentas, entre governos civis
e militares. Os aspectos identitários do país são também influenciados pela organização
empregada pela colônia inglesa. A divisão territorial em três unidades foi um fator que
contribuiu para a consolidação etno-religiosa estabelecida entre os três maiores grupos étnicos
do país, Hausa-Fulani, Yoruba e Igbo, assim como contribuiu para a diferenciação entre as
regiões norte e sul. As tensões advindas da questão étnica no país ocorrem principalmente
pela disputa por poder estatal e pela decisão sobre a alocação dos seus recursos. No aspecto
religioso ressalta-se a predominância das religiões tradicional, cristã e islâmica, com o islã e
os Hausa-Fulani sendo os mais inflexíveis dos três. O fator das disparidades regionais reflete
significativamente os dois anteriores, a etnia e a religião, estabelecidas no norte e no sul. O
norte vem tendo durante as últimas décadas um protagonismo político, sobretudo durante os
períodos militares, esse protagonismo porem não diminui os indicadores mais baixos que a
região apresenta em termos sociais, possuindo esta região os mais altos índices de pobreza,
por exemplo. Dessa forma, um aspecto que se destaca nesse no âmbito social da Nigéria é a
constante competição por recursos e representatividade, que permeados pela corrupção e
interesse individual, colaboram para a instabilidade nacional e para a polarização dos grupos.
O terceiro capítulo, insere-se nesse contexto de insatisfação e instabilidade, e trata do
surgimento do Boko Haram no norte nigeriano e do desenvolvimento das ações terroristas do
grupo, bem como da atuação das forças nacionais de segurança e dos abusos cometidos por
ambos. Contrários ao governo que considera corrupto, contra a ocidentalização da Nigéria e
advogando pela implantação da sharia, o grupo vem cometendo inúmeros abusos nessa região
do país em busca dos seus intentos. Entre as diversas causas do surgimento do Boko Haram
com frequência citam-se a debilidade social da região norte, especialmente a pobreza, a má
governança juntamente com a corrupção. O terrorismo empregado vem se desenvolvendo
69
constantemente, com o grupo operando de forma mais dinâmica e ampliando sua gama de
alvos.
Assim, alcançando os objetivos do trabalho, pôde-se analisar a atuação do Boko
Haram na Nigéria bem como a situação de vulnerabilidade da população, através da discussão
dos conceitos de segurança humana e terrorismo, da exposição da conjuntura nigeriana e da
configuração dos elementos principais da sua identidade e através da caracterização do grupo
e de sua origem e de seus objetivos, bem como através da exposição das estratégias para a
realização de tais objetivos.
As hipóteses levantadas quanto à ocorrência de crimes contra a humanidade e a
violência dirigida a toda a população civil foram confirmadas. Há na Nigéria a configuração
de crimes contra a humanidade como formulado e confirmado pelo Tribunal Penal
Internacional, no entanto, ao contrário do sugerido, não são ambos os agentes que se
enquadram como perpetradores desse crime, de forma afirmativa, pode-se atestar que apenas
o Boko Haram comete tal crime, já que, ao contrário das forças nacionais de segurança, o
grupo ataca deliberadamente a população civil de forma generalizada e sistemática. Assim,
também constata-se a violência dirigida a toda a população pelo grupo, com este vitimando
homens, mulheres, crianças, cristãos e muçulmanos.
Um agente perpetrador da violência inesperado e identificado ao longo da pesquisa foi
justamente a força nacional da Nigéria, que ao contrário do imaginado, esta não atua de forma
profissional e com o intento de proteger sua população, não acredita-se que toda a força
nacional esteja envolvida nos abusos evidenciados, mas dado a gravidade das acusações e dos
vários relatos expostos é preocupante a situação em que está inserida a população que, nesse
contexto, não pode confiar em um agente estatal que teoricamente deveria atuar pra lhe
proteger.
Assim, podemos concluir que o Boko Haram de fato atua como um agente
desestabilizador na Nigéria, vitimando todos aqueles que se opõe ao radicalismo praticado
pelo grupo. Emergido de um contexto histórico e social turbulento, o Boko Haram pode ser
entendido como um sintoma dessa situação de turbulência do norte nigeriano, que concentra
os piores índices sociais verificados no país.
Agravada pela corrupção estatal da Nigéria, a polarização das identidades do país atua
de forma a distanciar os grupos e criar constantes cenários de rivalidades étnicas, religiosas e
regionais. Tal corrupção aliada a falta de uma identidade nacional sólida no país colabora para
a visão hostil que possuem os membros do grupo sobre o governo, bem como o seu
argumento de estarem lutando contra o mesmo. Nesse contexto, o grupo encontra em meio
70
aos jovens frustrados e sem perspectiva os seus seguidores. Assim, para que se possa dirimir a
propagação do grupo deve-se atuar sobre as causas que proporcionaram a sua emergência.
Combater as desigualdades regionais e a grave pobreza que atinge a região norte faria com
que os seguidores do grupo não vissem na radicalização uma alternativa. Mas sobretudo, o
combate a corrupção deve ser um dos objetivos, por mais que esta esteja presente nos vários
níveis do Estado nigeriano deve ser ao menos mitigada, de forma que não obstrua da maneira
que vem fazendo o desenvolvimento do país, desviando os recursos advindos do petróleo
principalmente, de serviços fundamentais para a população.
Dessa forma, esse trabalho tem sua relevância na exposição que faz sobre a
vulnerabilidade da população nigeriana. Como verificado durante as pesquisas, são poucos os
trabalhos que tratam da segurança humana, sobretudo da Nigéria, assim, expor a situação em
que se encontra essa população lança luz sobre os crimes e abusos cometidos nesse território
de modo a levar a reflexão sobre os mesmos e aumentar o debate sobre essa grave conjuntura.
Como recomendação de futuras pesquisas nessa área, à luz da expansão recente do
Boko Haram para territórios fora da fronteira nigeriana, pode-se sugerir um debate sobre
expansão do grupo para os países vizinhos, como verificado, o Boko Haram vem infligindo
graves tensões no âmbito da Nigéria, sua atuação em países como o Chade e Camarãoes, por
exemplo pode acarretar em uma desestabilização de toda essa região. Um segundo tópico
pode estar na exploração dos links do grupo com outras organizações terroristas como o
Estado Islâmico e até mesmo o AQIM (Al-Qaeda do Magreb Islâmico) que atua no Magreb e
no Sahel, entre outros, verificando-se a tendência transnacional do terrorismo contemporâneo.
Por fim, esse trabalho em seu intento de verificar a conjuntura em que se encontra a
população civil nigeriana buscou levantar os principais aspectos para que se pudesse obter
uma compreensão contextualizada do processo que ocorre no país. Procurou-se agregar ao
âmbito acadêmico novas contribuições sobre um assunto ainda pouco explorado, sendo
possível, explorar esse tópico sobre outras perspectivas, que também podem contribuir para o
debate acadêmico e social de um tema atual e de grande importância para ambos os meios.
71
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