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John W. Kleinig *
INTRODUÇÃO
Como se forma um teólogo? Dificilmente nós, professores de teologia,
poderemos ouvir pergunta mais desconcertante do que esta. Não importa
o lugar donde viemos, o fato é que os membros de nossas igrejas estão
cada vez mais críticos em relação ao sistema de treinamento teológico que
tradicionalmente temos usado na Igreja Luterana. Conhecemos bem esse
sistema, pois somos todos, de certa forma, produtos do mesmo. Os currí-
culos diferem de uma igreja para a outra, mas o padrão básico é sempre o
mesmo. As disciplinas acadêmicas das áreas de teologia bíblica, teologia
histórica e teologia sistemática levam às disciplinas da área prática. Pri-
meiramente cuidamos da teoria; depois é que vem a prática da teologia.
Nós que lecionamos teologia podemos estar felizes com esse sistema de
estudos, mas muitos membros de nossas igrejas não estão satisfeitos com
ele e com os pastores que o mesmo produz. Vocês sabem o que eles
dizem. Nossos formandos não sabem atender as necessidades espirituais
das pessoas. Estão fora de sintonia com o mundo moderno e não conse-
guem se relacionar com ele de forma positiva. São teóricos sem noções de
prática que não sabem lidar com gente de carne e osso e suas reais neces-
sidades. Não sabem trabalhar com outros, em equipe. Pior, faltam-lhes
habilidades básicas para liderar uma congregação, seja na área de adminis-
tração ou organização, liderança ou comunicação, aconselhamento ou re-
solução de conflitos, evangelização ou expansão da igreja.
*
Dr. John Kleinig é professor no Luther Seminary, Adelaide, Austrália. Este artigo é resul-
tado da conferência que foi apresentada na Conferência Mundial de Seminários Teológi-
cos Luteranos, dia 5 de abril de 2001, em Canoas, RS. A tradução do inglês foi feita pelo
Dr. Vilson Scholz e está sendo publicada com permissão do autor.
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treinamento de pastores que não forma os pastores que realmente necessi-
tamos? Será que, de fato, precisamos de pastores com formação acadê-
mica? Se os necessitamos, não deveríamos remodelar todo o currículo,
fazendo-o girar em torno de teologia pastoral como a disciplina chave, ou
algo assim? Seria inadequada a nossa maneira de fazer teologia neste
contexto pós-modernista?
Existe, sem dúvida, algum fundo de verdade nessas críticas, bem como
algum valor nas contrapropostas apresentadas. Penso, no entanto, que o pro-
blema é bem mais agudo do que isto. Tanto nós quanto nossos críticos partimos
do pressuposto de que somos nós, seres humanos, que produzimos teólogos.
Segue daí que, se conseguirmos ajustar o sistema de treinamento, invariavel-
mente produziremos bons pastores. Agora, será que isto é de fato assim?
Como se forma um teólogo? Todos sabemos que um sujeito muito bem treina-
do, que domina perfeitamente todos os assuntos da teologia e que tem todas as
habilidades pastorais necessárias, pode vir a ser um pastor medíocre, e um mau
teólogo. O inverso também é verdadeiro! Como se forma um pastor?
1
Na WA TR 3, 312, 11-13, por exemplo, Lutero diz: “O que é que forma um teólogo? 1. A graça do Espírito; 2.
Tentação; 3. Experiência; 4. Ocasião; 5. Aplicação à leitura; 6. Conhecimento das belas artes”.
2
Lutero aqui emprega o termo “passiva” no seu sentido gramatical, como o ato de receber uma ação, e não num
sentido físico, designando um estado de inércia ou inação.
3
O uso que Lutero faz desse termo bem como suas implicações foram investigadas por Christian Link, “Vita
Passiva”, Evangelische Theologie 44 (1984): 315-351; Oswald Bayer, Theologie (Eerdmans: Guetersloher
Verlagshaus: Guetersloh, 1994), 42-49; e, de modo mais abrangente, Reinhard Huetter, Suffering Divine Things.
Theology as Church Practice ( Grand Rapids: Eerdmans, 1997).
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nado” (WA 5, 163,28-29). Mais tarde, nas suas Conversas à Mesa
(Tischreden) de 1532, Lutero acrescentou que, a exemplo do que acontece
na medicina, a teologia é uma arte que se aprende apenas da experiência
que se adquire ao longo da vida. Ele se considera pastor e afirma:
4
Martin Nicol, Meditation bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 19, 91.
5
Minha compreensão destes termos e de seu significado deriva do estudo cuidadoso dos mesmos feito por Martin
Nicol em Meditatio bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 91-101; Oswald Bayer em Theologie
(Gueterslohe: Verlagshaus, 1994), 55-105, e Reinhard Huetter em Suffering Divine Things (Grand Rapids:
Eerdmans, 1997), 72-76.
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imposta por algumas antíteses pouco proveitosas e até, quem sabe, falsas.
Dessas resulta a separação entre teologia pastoral e teologia acadêmica,
teologia sistemática e teologia litúrgica, espiritualidade individual e culto
comunitário, vivência espiritual subjetiva e revelação objetiva, bem como a
separação entre a vida particular do pastor de sua função pública. Espero
que o ensino de Lutero a respeito do estudo de teologia ajude a clarear qual
é nosso papel como educadores na área da teologia.
Seria muito fácil fazer uma aplicação errada dessas palavras de Lutero,
a exemplo do que fazem alguns pietistas e carismáticos, e defender um
método de exegese espiritual. O fato é que Lutero não está aqui despre-
zando a leitura atenta da Escritura, com análise gramatical e exegese literá-
ria, para propor a dependência da orientação mental direta do Espírito San-
to. Lutero não diz que, por meio de oração e pela inspiração do Espírito
Santo, o leitor recebe um entendimento especial do texto das Escrituras,
isto é, seu verdadeiro sentido. Ao contrário, Lutero pressupõe que, por
meio de sua palavra, o Pai nos dá seu Espírito Santo que ilumina e vivifica.
Assim sendo, o estudante de teologia pode orar pela iluminação, orientação
e compreensão que só o Espírito Santo pode dar por meio das Escrituras.6
Ele ora para que o Espírito Santo se valha das Escrituras para interpretar a
ele, o intérprete, e sua experiência, de tal sorte que ele veja a si mesmo e a
outros sob a ótica de Deus. Neste sentido ele confia na palavra de Deus
como meio da graça, o canal do Espírito Santo.
Fica claro que o estudo de teologia está baseado na oração pelo dom do
Espírito Santo. O Espírito Santo faz com que pretensos mestres de teolo-
gia, gente que quer se autopromover no âmbito espiritual, se tornem humil-
des e vitalícios estudantes das Escrituras. Sem o Espírito e a capacitação
que ele dá, ninguém sabe nada a respeito da vida eterna. Sem a iluminação
do Espírito, o ensino das Escrituras fica sendo mera teoria sem nenhuma
realidade. Um teólogo é formado por meio da súplica junto a Deus pela
contínua dádiva do Espírito Santo por meio de Jesus e pela constante re-
cepção do Espírito Santo. Em suma, o Espírito Santo forma o teólogo. E
este é um projeto que dura a vida toda.
6
Ver Gunnar Wertelius, Oratio Continua (Lund: CWK Gleerup, 1970, para uma discussão do relacionamento entre
a obra do Espírito Santo e a prática da oração, 285-298.
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b. Meditação da Palavra escrita
Lutero afirma que, no estudo de teologia, a oração pelo dom do Espírito
Santo precisa vir acompanhada de contínua meditação das Escrituras.7 O
motivo desta conexão é que ‘Deus não lhe dará o seu Espírito sem a pala-
vra externa’. As Escrituras são a palavra inspirada de Deus. O mesmo
Deus que as inspirou com seu Espírito vivificador se vale delas para nos
inspirar e potencializar com seu Espírito. A palavra de Deus é o meio da
graça através do qual Deus Pai concede seu Espírito Santo por meio de seu
amado Filho. Portanto, o Espírito Santo é recebido por meio da meditação
da palavra. O Espírito vem a nós por meio da palavra para que ele, o
Espírito, possa fazer sua obra em nós por meio da palavra. Sem a palavra,
não se tem o Espírito. Do mesmo modo, sem oração, não se tem o Espírito.
7
Ver John W. Kleinig, “The Kindled Heart. Luther on Meditation”, Lutheran Theological Journal 20/2&3 (1986)
142-154.
8
Lutero emprega a expressão ‘a palavra concreta’ (das leiblich Wort) como sinônimo de palavra externa. Oswald
Bayer explora o significado dessas expressões em Leibliches Wort (Lund: J. C. B. Mohr, 1992), 57-72.
9
O estudo de Norman Nagel, “Externum Verbum: Testing Augustana 5 on the Doctrine of the Holy Ministry”,
Lutheran Theological Journal 30/3 (1996): 101-110, examina a íntima conexão entre a palavra externa e o
ministério da palavra.
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pessoa que medita fala a palavra de Deus para si mesma e a ouve com
atenção, de todo o coração, “para descobrir o que o Espírito Santo quer
dizer nela”. Nisto Lutero foi influenciado por seu estudo dos Salmos em
hebraico, ao invés do latim.10 Ele descobriu que todas as palavras hebraicas
que, nos Salmos, falam da prática da meditação tinham a ver com diferen-
tes formas de vocalização e subvocalização, que iam de falar a murmurar,
conversar a suspirar, cantar a entoar, balbuciar a gemer. Portanto, aquele
que medita ouve a palavra de Deus com atenção ao ser esta falada pesso-
almente a ele. Ele se concentra exclusivamente na palavra. Fala essa
palavra para si mesmo sempre de novo. Lê e relê a palavra. Compara o
que ela diz com o que é dito em outras partes de Bíblia. Ele a rumina, assim
como a vaca rumina seu alimento. Ele a esfrega, a exemplo de uma erva
aromática que libera sua fragrância e seus poderes terapêuticos ao ser
amassada. Ele se concentra nela, física, mental e emocionalmente, para
que a mesma chegue a seu coração, seu interior, o cerne de sua existência.
Ali ele recebe o que Deus diz a ele e lhe dá em sua palavra.
10
Ver Siegfried Raeder, Grammatica Theologica (Tuebingen: J. C. B. Mohr, 1977), 262-268.
11
Enquanto Oswald Bayer, na obra Theologie (Guetersloher Verlagshaus, 1994), 88-92, destaca o caráter público
da meditação e de sua prática em Lutero, Reinhard Huetter, em Suffering Divine Things (Grand Rapids: Eerdmans,
1997), 73, corretamente enfatiza sua conexão com práticas eclesiásticas tradicionais. Ambos reconhecem que a
prática da meditação em Lutero estava intimamente relacionada com o cantar e orar dos salmos na escola, na igreja,
e no mosteiro.
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modo como as Escrituras são lidas no culto divino, aquele que medita lê
essas Escrituras para si mesmo em voz alta, ao meditar sobre um trecho
delas. Assim como os salmos são cantados no culto, ele os canta em par-
ticular. Assim como a palavra de Deus é pregada no culto, ele a prega para
si mesmo. Assim como a congregação ouve a palavra de Deus falada no
culto, ele a ouve endereçada a si próprio de forma bem pessoal. Portanto,
Lutero defende a prática de uma meditação litúrgica da palavra de Deus,
ou seja, o exercício de uma piedade litúrgica.
Penso que tudo isso tem importantes implicações para a maneira como
aprendemos teologia em nossos seminários. Toda a vida de um seminário
deveria girar em torno do culto diário, o centro e alvo da vida receptiva da
fé. Tanto professores quanto alunos precisam ser discípulos da palavra de
Deus quando esta é falada e encenada no culto. Como é possível um
seminário luterano onde o currículo não deriva do culto divino e leva alunos
e professores de volta a ele? Como podemos ser modelos e ensinar a
nossos alunos a arte da meditação a não ser no culto corporativo? Com
certeza eles não se tornarão bons pregadores da palavra de Deus a menos
que primeiro tenham se tornado ouvintes dela em atitude de meditação. O
fruto da meditação, como Lutero reconheceu (LW 14,296, 302-303), é a
pregação e o ensino da palavra de Deus.
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A experiência que Lutero descreve difere radicalmente daquilo que nós
normalmente chamaríamos de experiência espiritual. É a experiência do
impacto da palavra de Deus sobre nós, seu efeito em nós. Experimenta-
mos o poder da palavra de Deus. Mesmo que esta experiência comece na
consciência, ela afeta todas as partes de nosso ser e permeia a pessoa em
seu todo, mental, emocional e fisicamente. A palavra cheia do Espírito nos
coloca em sintonia com Deus o Pai ao conformar-nos ao seu Filho amado.
Não somos nós que a internalizamos e assimilamos a nosso modo de ser.
Ao contrário, é ela que nos assimila e torna piedosos. Não somos nós que
nos valemos da palavra para nos tornarmos algo; é a palavra que nos faz
teólogos.
13
Ver Gene Edward Veith, Jr., The Spirituality of Cross (St. Louis: Concordia, 1999).
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CONCLUSÃO
A vida de fé é a vita passiva, a vida receptiva, onde não somos nós que
nos tornamos algo, mas Deus nos molda e desenvolve. Isto também se
aplica a pastores. Nós, professores de teologia, não formamos teólogos;
isto é obra de Deus. Ele os forma, chamando-os para serem ministros da
palavra, assim como chamou os apóstolos. Ele os treina em sua igreja por
meio daquilo que ele faz com eles ou por meio do que eles sofrem na igreja.
Deus forma teólogos por meio do dom do Espírito Santo, do poder de sua
palavra, e da oposição do diabo.
ANEXO
PREFÁCIO À EDIÇÃO DE WITTENBERG
MARTINHO LUTERO
14
Ver a discussão sobre liderança espiritual em Eugene H. Peterson, Working the Angles (Grand Rapids: Eerdmans,
1987), 103-131.
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ser somente as Escrituras. Assim, deverias imediatamente perder as espe-
ranças em relação a tua própria razão e entendimento. Com estes, não
alcançarás a vida eterna. Ao contrário, com uma arrogância dessas, tu, a
exemplo de Lúcifer, precipitarás a ti mesmo, e a outros junto contigo, do
céu ao abismo do inferno. Em vez disso, ajoelha-te em teu quarto e ora a
Deus com verdadeira humildade e sinceridade, para que, por meio de seu
Filho amado, ele te dê seu Espírito Santo, para que te ilumine, guie, e dê
entendimento.
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todos os diferentes inimigos, príncipes arrogantes e tiranos, e acima de tudo
a respeito dos falsos espíritos e bandos que ele tem que enfrentar precisa-
mente porque ele está meditando, isto é, porque ele se ocupa, como disse-
mos, com a palavra de Deus de muitas maneiras diferentes. Porque tão
logo a palavra de Deus cresce e se espalha através de ti, o diabo te perse-
gue. Ele faz de ti um verdadeiro doutor (em teologia); por meio de suas
tentações, ele te ensina a buscar e amar a palavra de Deus.15
BIBLIOGRAFIA
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Konflict. J.C.B. Mohr: Tuebingen, 1992.
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1994.
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98), 22-27.
KLEINIG, John W. “The Kindled Heart. Luther on Meditation”,
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LINK, Christian. “Vita Passiva. Rechtfertigung als Lebensvorgang”,
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101-110.
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VEITH Jr., Gene Elmer. The Spirituality of the Cross. The Way of
the First Evangelicals. St. Louis: Concordia, 1999.
WERTELIUS, Gunnar. Oratio Continua. Das Verhaeltnis zwischen
Glaube und Gebet in der Theologie Martin Luthers. Lund: CWK
Gleerup, 1970.
15
Tradução revisada por John W. Kleinig, baseada em LW 34, 285-287
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