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Igreja Luterana - nº 1 - 2002

ARTIGOS

COMO SE FORMA UM TEÓLOGO:

John W. Kleinig *

INTRODUÇÃO
Como se forma um teólogo? Dificilmente nós, professores de teologia,
poderemos ouvir pergunta mais desconcertante do que esta. Não importa
o lugar donde viemos, o fato é que os membros de nossas igrejas estão
cada vez mais críticos em relação ao sistema de treinamento teológico que
tradicionalmente temos usado na Igreja Luterana. Conhecemos bem esse
sistema, pois somos todos, de certa forma, produtos do mesmo. Os currí-
culos diferem de uma igreja para a outra, mas o padrão básico é sempre o
mesmo. As disciplinas acadêmicas das áreas de teologia bíblica, teologia
histórica e teologia sistemática levam às disciplinas da área prática. Pri-
meiramente cuidamos da teoria; depois é que vem a prática da teologia.

Nós que lecionamos teologia podemos estar felizes com esse sistema de
estudos, mas muitos membros de nossas igrejas não estão satisfeitos com
ele e com os pastores que o mesmo produz. Vocês sabem o que eles
dizem. Nossos formandos não sabem atender as necessidades espirituais
das pessoas. Estão fora de sintonia com o mundo moderno e não conse-
guem se relacionar com ele de forma positiva. São teóricos sem noções de
prática que não sabem lidar com gente de carne e osso e suas reais neces-
sidades. Não sabem trabalhar com outros, em equipe. Pior, faltam-lhes
habilidades básicas para liderar uma congregação, seja na área de adminis-
tração ou organização, liderança ou comunicação, aconselhamento ou re-
solução de conflitos, evangelização ou expansão da igreja.

Essas críticas se tornam mais insistentes em tempos difíceis, como os


que hoje vivemos, quando o dinheiro é pouco e os recursos são limitados.
Podemos nos dar o luxo de investir tanto dinheiro assim num sistema de

*
Dr. John Kleinig é professor no Luther Seminary, Adelaide, Austrália. Este artigo é resul-
tado da conferência que foi apresentada na Conferência Mundial de Seminários Teológi-
cos Luteranos, dia 5 de abril de 2001, em Canoas, RS. A tradução do inglês foi feita pelo
Dr. Vilson Scholz e está sendo publicada com permissão do autor.

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treinamento de pastores que não forma os pastores que realmente necessi-
tamos? Será que, de fato, precisamos de pastores com formação acadê-
mica? Se os necessitamos, não deveríamos remodelar todo o currículo,
fazendo-o girar em torno de teologia pastoral como a disciplina chave, ou
algo assim? Seria inadequada a nossa maneira de fazer teologia neste
contexto pós-modernista?

Existe, sem dúvida, algum fundo de verdade nessas críticas, bem como
algum valor nas contrapropostas apresentadas. Penso, no entanto, que o pro-
blema é bem mais agudo do que isto. Tanto nós quanto nossos críticos partimos
do pressuposto de que somos nós, seres humanos, que produzimos teólogos.
Segue daí que, se conseguirmos ajustar o sistema de treinamento, invariavel-
mente produziremos bons pastores. Agora, será que isto é de fato assim?
Como se forma um teólogo? Todos sabemos que um sujeito muito bem treina-
do, que domina perfeitamente todos os assuntos da teologia e que tem todas as
habilidades pastorais necessárias, pode vir a ser um pastor medíocre, e um mau
teólogo. O inverso também é verdadeiro! Como se forma um pastor?

Lutero foi daqueles professores de teologia que refletiu muito e


longamente a respeito dessa questão de aprender teologia. Em diferentes
ocasiões ele tratou do assunto, sob diferentes ângulos. Embora Lutero,
para surpresa nossa, tenha reconhecido a importância das artes liberais
como fundamento de uma boa educação teológica1, sabia também que
mesmo o melhor currículo, lecionado pelos melhores teólogos, não poderia,
por si só, produzir um bom pastor. Algo mais era necessário. Aprender
teologia era uma questão de experiência e sabedoria derivada da experiên-
cia. Em linguagem contemporânea, o que forma um teólogo é a correta
prática da espiritualidade evangélica na igreja, a prática da vita passiva2, a
dimensão receptiva da fé.3 Em teologia, assim como na vida, não temos
nada que não tenhamos recebido e continuamente recebemos (1 Co 4.7).

Lutero desenvolveu esta percepção de diferentes formas. Por volta de


1520, numa preleção sobre o Salmo 5.11, afirmou, de modo um tanto quanto
categórico, que um teólogo não é formado mediante “compreensão, leitura
e especulação”, mas por meio do “viver, ou melhor, o morrer e ser conde-

1
Na WA TR 3, 312, 11-13, por exemplo, Lutero diz: “O que é que forma um teólogo? 1. A graça do Espírito; 2.
Tentação; 3. Experiência; 4. Ocasião; 5. Aplicação à leitura; 6. Conhecimento das belas artes”.
2
Lutero aqui emprega o termo “passiva” no seu sentido gramatical, como o ato de receber uma ação, e não num
sentido físico, designando um estado de inércia ou inação.
3
O uso que Lutero faz desse termo bem como suas implicações foram investigadas por Christian Link, “Vita
Passiva”, Evangelische Theologie 44 (1984): 315-351; Oswald Bayer, Theologie (Eerdmans: Guetersloher
Verlagshaus: Guetersloh, 1994), 42-49; e, de modo mais abrangente, Reinhard Huetter, Suffering Divine Things.
Theology as Church Practice ( Grand Rapids: Eerdmans, 1997).

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nado” (WA 5, 163,28-29). Mais tarde, nas suas Conversas à Mesa
(Tischreden) de 1532, Lutero acrescentou que, a exemplo do que acontece
na medicina, a teologia é uma arte que se aprende apenas da experiência
que se adquire ao longo da vida. Ele se considera pastor e afirma:

Eu não aprendi a minha teologia toda de uma só vez, mas tive


que buscá-la sempre de novo, indo cada vez mais fundo. Quem
fez isso para mim foram as minhas tentações, pois ninguém
consegue entender as Escrituras sem prática e tentações. Isto
é o que falta aos entusiastas e às seitas. Eles não têm o crítico
certo, o diabo, que é o melhor professor de teologia. Se não
tivermos esse tipo de diabo, seremos apenas teólogos
especulativos, que só ficam perambulando em seus próprios
pensamentos e especulando com a própria razão se as coisas
devem ser assim ou assado (TWA I, 147, 3-14).

Aí está, dito de forma rude e ofensiva, como só Lutero sabia fazer: “o


diabo é o melhor professor de teologia”. O diabo faz do pastor um verda-
deiro professor de teologia na escola da vida, a universidade das pancadas.
Não, isto não está totalmente correto e precisa ser corrigido. O diabo
transforma estudantes de teologia em teólogos ao complicar a vida deles
dentro da igreja. Portanto, treinamento em teologia envolve luta espiritual,
a luta entre Cristo e Satanás dentro da igreja. Conflito na igreja, este é o
contexto em que se aprende teologia.

Em 1539, Lutero desenvolveu estes conceitos, com mais intensidade e


vigor, no famoso Prefácio à Edição de Wittenberg de seus escritos em
alemão (WA 50, 657-661; LW 34, 283-288). Neste prefácio Lutero deli-
neia “o modo correto de estudar teologia”, um modo que ele tinha apren-
dido a partir de muita prática, “o modo que o santo rei Davi ensina no
Salmo 119”. Apesar da linguagem empregada, Lutero não propõe, como
se poderia esperar, um currículo teológico, ou, ao menos, um método para
o estudo acadêmico da teologia. Ao contrário, Lutero descreve a prática
pessoal da espiritualidade que ele tinha aprendido de cantar, recitar e orar
o Saltério. Mas até isto pode ser mal entendido. Lutero não defende um
método específico de meditação, mas esboça a efetiva dinâmica de for-
mação espiritual para estudantes de teologia. Isto envolve a interação de
três poderes: o Espírito Santo, a palavra de Deus, e Satanás. Lutero
assevera que a interação dinâmica entre essas três forças é tão poderosa
e eficaz que aqueles que se submetem a ela “poderiam (se necessário
fosse) escrever livros tão bons quanto aqueles dos Pais e dos concílios”
(LW 34,285).
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Como Martin Nicol deixou claro, Lutero fez uma diferença entre sua
prática pessoal de espiritualidade e a tradição de fundamentação espiritual
que ele tinha vivenciado como monge.4 A tradição monástica seguia um
antigo padrão de meditação e oração bem estruturado em termos de tem-
po. Seu alvo era a “contemplação”, a experiência de êxtase, bem-
aventurança, arrebatamento e iluminação mediante a união com o Senhor
Jesus glorificado. Para atingir este alvo, o monge ascendia da terra ao céu,
da humanidade de Jesus à sua divindade, em três etapas, como se fora por
uma escada, a escada da devoção. A elevação começava com a leitura
pessoal, em voz alta, de uma passagem das Escrituras, para despertar os
afetos; prosseguia com oração intensa, e culminava com a meditação men-
tal de realidades celestiais, enquanto se aguardava a experiência da con-
templação, a infusão de graças divinas, a concessão de iluminação espiritu-
al. Quatro termos eram usados para descrever esta prática de espiritualidade:
leitura, meditação, oração, e contemplação.

Em contraste com este método um tanto quanto manipulável, Lutero


propôs um modelo evangélico de espiritualidade em termos de recepção, e
não de autopromoção. Isto inclui três coisas: oração (oratio), meditação
(meditatio), e tentação (tentatio).5 Estas três giram em torno de uma
contínua e cuidadosa atenção à palavra de Deus. A ordem da lista é signi-
ficativa, pois, ao contrário do modelo tradicional de devoção, esta forma de
estudar teologia começa e termina aqui na terra. Os três termos descre-
vem a vida de fé como um ciclo que começa com oração pelo dom do
Espírito Santo, concentra-se na recepção do Espírito Santo mediante a
meditação da palavra de Deus, e redunda em ataque espiritual. Isto, por
sua vez, leva a pessoa a mais oração e meditação mais intensa. Logo,
Lutero não encarava a vida espiritual de forma ativa como um processo de
autodesenvolvimento, mas em termos passivos como um processo de re-
cepção da parte do Deus trino. Nele, pessoas auto-suficientes aprendem a
ser mendigos na presença de Deus.

Nesta conferência, quero valer-me do prefácio de Lutero à edição de


Wittenberg para investigar um pouco mais a fundo o que ele tem a dizer
sobre como se forma um teólogo. Penso que temos muito a aprender dele
quanto à formação espiritual de pastores. O que ele nos propõe nesta área
de estudo da teologia bem pode nos libertar da camisa de força que nos é

4
Martin Nicol, Meditation bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 19, 91.
5
Minha compreensão destes termos e de seu significado deriva do estudo cuidadoso dos mesmos feito por Martin
Nicol em Meditatio bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 91-101; Oswald Bayer em Theologie
(Gueterslohe: Verlagshaus, 1994), 55-105, e Reinhard Huetter em Suffering Divine Things (Grand Rapids:
Eerdmans, 1997), 72-76.

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imposta por algumas antíteses pouco proveitosas e até, quem sabe, falsas.
Dessas resulta a separação entre teologia pastoral e teologia acadêmica,
teologia sistemática e teologia litúrgica, espiritualidade individual e culto
comunitário, vivência espiritual subjetiva e revelação objetiva, bem como a
separação entre a vida particular do pastor de sua função pública. Espero
que o ensino de Lutero a respeito do estudo de teologia ajude a clarear qual
é nosso papel como educadores na área da teologia.

COMO SE FORMA UM TEÓLOGO


a. Oração pelo dom do Espírito Santo
Lutero assevera que o estudo de teologia tem a ver com o dom da vida
eterna. Nenhum professor deste mundo pode nos ensinar a respeito disso,
pois nenhum professor terreno pode nos dar vida eterna. Tampouco pode-
mos alcançar a vida eterna para nós mesmos fazendo uso da razão para
refletir sobre nossa experiência de Deus ou até mesmo para interpretar as
Escrituras à luz de nossa experiência pessoal. Na verdade, estaremos co-
metendo suicídio espiritual, se tentarmos alcançar a vida eterna com Deus
por meio de especulação racional e autodesenvolvimento espiritual. Quem
se vale da razão e do intelecto para construir uma escada que o leve ao céu
estará, ao contrário, e a exemplo de Lúcifer, precipitando a si mesmo e a
outros no inferno.

A verdade é que não precisamos subir ao céu por conta própria. O


Deus Trino desceu à terra por nós. Deus se encarnou a nosso favor. Ele
se fez acessível externamente em nossos sentidos. No ministério da pala-
vra, ele se tornou concreto para nós, criaturas de carne e osso. As Escritu-
ras Sagradas não apenas nos ensinam a respeito da vida eterna; elas de
fato nos dão a vida eterna à medida que nos ensinam. Também temos ‘o
verdadeiro mestre das Escrituras’, o Espírito Santo, que se vale das Escri-
turas para nos ensinar as coisas de Deus. Assim, Lutero recomenda ao
estudante de teologia que desista de tentar elaborar um sistema teológico
baseado na razão e na experiência humanas. Ao invés disso, ele deveria
aprender teologia orando pelo dom do Espírito Santo como seu instrutor.
Diz Lutero:

Ajoelha-te em teu quarto e ora a Deus com verdadeira humil-


dade e seriedade, para que, por meio de seu Filho amado, ele
te dê seu Espírito Santo, para que te ilumine, guie, e dê enten-
dimento.

Duas coisas se destacam neste conselho de Lutero: a dinâmica trinitária


desta oração pelo Espírito Santo, e o reiterado pedido pela dádiva do Espí-
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rito Santo. Como mendigos que se ajoelham de mãos vazias perante nosso
grande benfeitor, somos levados para dentro do Deus Trino e participamos
de sua ação aqui no mundo.

Seria muito fácil fazer uma aplicação errada dessas palavras de Lutero,
a exemplo do que fazem alguns pietistas e carismáticos, e defender um
método de exegese espiritual. O fato é que Lutero não está aqui despre-
zando a leitura atenta da Escritura, com análise gramatical e exegese literá-
ria, para propor a dependência da orientação mental direta do Espírito San-
to. Lutero não diz que, por meio de oração e pela inspiração do Espírito
Santo, o leitor recebe um entendimento especial do texto das Escrituras,
isto é, seu verdadeiro sentido. Ao contrário, Lutero pressupõe que, por
meio de sua palavra, o Pai nos dá seu Espírito Santo que ilumina e vivifica.
Assim sendo, o estudante de teologia pode orar pela iluminação, orientação
e compreensão que só o Espírito Santo pode dar por meio das Escrituras.6
Ele ora para que o Espírito Santo se valha das Escrituras para interpretar a
ele, o intérprete, e sua experiência, de tal sorte que ele veja a si mesmo e a
outros sob a ótica de Deus. Neste sentido ele confia na palavra de Deus
como meio da graça, o canal do Espírito Santo.

Fica claro que o estudo de teologia está baseado na oração pelo dom do
Espírito Santo. O Espírito Santo faz com que pretensos mestres de teolo-
gia, gente que quer se autopromover no âmbito espiritual, se tornem humil-
des e vitalícios estudantes das Escrituras. Sem o Espírito e a capacitação
que ele dá, ninguém sabe nada a respeito da vida eterna. Sem a iluminação
do Espírito, o ensino das Escrituras fica sendo mera teoria sem nenhuma
realidade. Um teólogo é formado por meio da súplica junto a Deus pela
contínua dádiva do Espírito Santo por meio de Jesus e pela constante re-
cepção do Espírito Santo. Em suma, o Espírito Santo forma o teólogo. E
este é um projeto que dura a vida toda.

Se Lutero está certo, então nós, professores de teologia, precisamos


promover a obra do Espírito Santo e o papel da súplica pelo dom do Espírito
Santo no estudo da teologia. Ninguém deveria ousar diminuir a importância
da oração apenas por não ser ela um meio da graça, tampouco deveríamos
descartar a súplica pelo dom do Espírito Santo como sendo uma aberração
neopentecostal. A exemplo dos apóstolos em Atos 6.4, precisamos nos
dedicar à oração e ao ministério da palavra, pois o estudo de teologia de-
pende da contínua recepção do Espírito Santo por meio desses dois.

6
Ver Gunnar Wertelius, Oratio Continua (Lund: CWK Gleerup, 1970, para uma discussão do relacionamento entre
a obra do Espírito Santo e a prática da oração, 285-298.

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b. Meditação da Palavra escrita
Lutero afirma que, no estudo de teologia, a oração pelo dom do Espírito
Santo precisa vir acompanhada de contínua meditação das Escrituras.7 O
motivo desta conexão é que ‘Deus não lhe dará o seu Espírito sem a pala-
vra externa’. As Escrituras são a palavra inspirada de Deus. O mesmo
Deus que as inspirou com seu Espírito vivificador se vale delas para nos
inspirar e potencializar com seu Espírito. A palavra de Deus é o meio da
graça através do qual Deus Pai concede seu Espírito Santo por meio de seu
amado Filho. Portanto, o Espírito Santo é recebido por meio da meditação
da palavra. O Espírito vem a nós por meio da palavra para que ele, o
Espírito, possa fazer sua obra em nós por meio da palavra. Sem a palavra,
não se tem o Espírito. Do mesmo modo, sem oração, não se tem o Espírito.

Ao falar da “palavra externa”8, Lutero critica dois outros tipos de meditação


que, na prática, negam a encarnação. Por um lado, ele critica o método de
meditação que tinha aprendido como monge. Este se valia das Escrituras como
uma espécie de trampolim para a oração do coração e a apropriação mental ou
visionária de realidades celestiais. Por outro, Lutero igualmente se mostra crítico
em relação à prática entusiasta de meditação na palavra interior do Espírito San-
to, falada diretamente aos corações do povo de Deus. Em contraste com esses
dois métodos de aprender teologia, Lutero defende a meditação na “palavra ex-
terna”. É a palavra concreta, falada por lábios humanos, escrita com mãos hu-
manas, e ouvida com ouvidos humanos. A exemplo da luz do sol, a palavra está
fora de nós, é dirigida a nós por um pastor, escrita num livro, encenada no culto
divino.9 Assim, uma vez que o foco da meditação é a palavra externa, o que está
envolvido é basicamente extroversão espiritual e não introversão espiritual. É um
assunto que envolve o coração, mas não apenas o coração. O acesso ao coração
é de fora para dentro, através dos ouvidos. Na meditação, ouvimos interiormente
o que nos é falado exteriormente.

Esta noção da palavra de Deus como o meio físico para a concessão do


Espírito Santo trouxe duas profundas mudanças na forma como Lutero
praticava a meditação em sua vida pessoal. Em primeiro lugar, como mon-
ge ele tinha aprendido a ver a meditação como um ato mental, um estado
em que se é marcado por uma reflexão interior, silenciosa. Agora ele en-
tendeu que meditação cristã era antes de tudo uma atividade verbal. A

7
Ver John W. Kleinig, “The Kindled Heart. Luther on Meditation”, Lutheran Theological Journal 20/2&3 (1986)
142-154.
8
Lutero emprega a expressão ‘a palavra concreta’ (das leiblich Wort) como sinônimo de palavra externa. Oswald
Bayer explora o significado dessas expressões em Leibliches Wort (Lund: J. C. B. Mohr, 1992), 57-72.
9
O estudo de Norman Nagel, “Externum Verbum: Testing Augustana 5 on the Doctrine of the Holy Ministry”,
Lutheran Theological Journal 30/3 (1996): 101-110, examina a íntima conexão entre a palavra externa e o
ministério da palavra.

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pessoa que medita fala a palavra de Deus para si mesma e a ouve com
atenção, de todo o coração, “para descobrir o que o Espírito Santo quer
dizer nela”. Nisto Lutero foi influenciado por seu estudo dos Salmos em
hebraico, ao invés do latim.10 Ele descobriu que todas as palavras hebraicas
que, nos Salmos, falam da prática da meditação tinham a ver com diferen-
tes formas de vocalização e subvocalização, que iam de falar a murmurar,
conversar a suspirar, cantar a entoar, balbuciar a gemer. Portanto, aquele
que medita ouve a palavra de Deus com atenção ao ser esta falada pesso-
almente a ele. Ele se concentra exclusivamente na palavra. Fala essa
palavra para si mesmo sempre de novo. Lê e relê a palavra. Compara o
que ela diz com o que é dito em outras partes de Bíblia. Ele a rumina, assim
como a vaca rumina seu alimento. Ele a esfrega, a exemplo de uma erva
aromática que libera sua fragrância e seus poderes terapêuticos ao ser
amassada. Ele se concentra nela, física, mental e emocionalmente, para
que a mesma chegue a seu coração, seu interior, o cerne de sua existência.
Ali ele recebe o que Deus diz a ele e lhe dá em sua palavra.

Em segundo lugar, ao ensinar sobre meditação, Lutero deriva a vida


devocional particular do estudante do envolvimento que este tem no culto
público. Diz Lutero:

Assim, percebes como Davi constantemente se orgulha no


Salmo 119, dizendo que, de dia e de noite e sempre, ele não
falaria, comporia, diria, cantaria, ouviria e leria nada que não
fosse a palavra e os mandamentos de Deus. Pois Deus não te
dará o seu Espírito sem a palavra externa. Portanto, deixa
que isso te oriente, porque não é por nada que ele ordenou que
a palavra fosse escrita, pregada, lida, ouvida, cantada e falada
externamente.

Lutero não vê a prática da meditação como uma atividade mental, inter-


na, e sim como uma encenação ritual, externa. Em si, este método foi
inspirado pela liturgia e derivado da encenação da palavra de Deus em
público, no culto divino. Deus ordena à igreja que pregue, leia, ouça, cante
e fale sua palavra, para que assim ele possa transmitir e dar o seu Espírito
Santo a seu povo. Esta proclamação externa e esta encenação da palavra
de Deus determina como o estudante de teologia medita.11 Do mesmo

10
Ver Siegfried Raeder, Grammatica Theologica (Tuebingen: J. C. B. Mohr, 1977), 262-268.
11
Enquanto Oswald Bayer, na obra Theologie (Guetersloher Verlagshaus, 1994), 88-92, destaca o caráter público
da meditação e de sua prática em Lutero, Reinhard Huetter, em Suffering Divine Things (Grand Rapids: Eerdmans,
1997), 73, corretamente enfatiza sua conexão com práticas eclesiásticas tradicionais. Ambos reconhecem que a
prática da meditação em Lutero estava intimamente relacionada com o cantar e orar dos salmos na escola, na igreja,
e no mosteiro.

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modo como as Escrituras são lidas no culto divino, aquele que medita lê
essas Escrituras para si mesmo em voz alta, ao meditar sobre um trecho
delas. Assim como os salmos são cantados no culto, ele os canta em par-
ticular. Assim como a palavra de Deus é pregada no culto, ele a prega para
si mesmo. Assim como a congregação ouve a palavra de Deus falada no
culto, ele a ouve endereçada a si próprio de forma bem pessoal. Portanto,
Lutero defende a prática de uma meditação litúrgica da palavra de Deus,
ou seja, o exercício de uma piedade litúrgica.

Penso que tudo isso tem importantes implicações para a maneira como
aprendemos teologia em nossos seminários. Toda a vida de um seminário
deveria girar em torno do culto diário, o centro e alvo da vida receptiva da
fé. Tanto professores quanto alunos precisam ser discípulos da palavra de
Deus quando esta é falada e encenada no culto. Como é possível um
seminário luterano onde o currículo não deriva do culto divino e leva alunos
e professores de volta a ele? Como podemos ser modelos e ensinar a
nossos alunos a arte da meditação a não ser no culto corporativo? Com
certeza eles não se tornarão bons pregadores da palavra de Deus a menos
que primeiro tenham se tornado ouvintes dela em atitude de meditação. O
fruto da meditação, como Lutero reconheceu (LW 14,296, 302-303), é a
pregação e o ensino da palavra de Deus.

c. Tentação da parte de Satanás


Lutero afirma que o correto estudo da teologia culmina na experiência.
Tanto ele quanto seus mestres concordavam nisto. Agora, discordavam
quanto ao que experimentavam, e como. A tradição monástica de medita-
ção entendia que a prática adequada da meditação levava à experiência da
contemplação, isto é, a experiência de união com o Senhor Jesus glorifica-
do. Em contrapartida, Lutero ensinava que o estudo receptivo da Escritura
em oração e meditação levava à experiência da palavra de Deus, isto é, a
experiência de sua eficácia, sua criatividade, e sua produtividade. Por es-
tranho que possa parecer, é na tentação que se encontra e experimenta de
forma bem nítida o poder da palavra de Deus, o poder do Espírito Santo
operante em e através da palavra.12 Assim diz Lutero:

Em terceiro lugar, existe a tentação, ‘Anfechtung’. Este é o


teste que te ensina, não apenas a conhecer e entender, mas
também a experimentar quão justa e verdadeira, quão doce e
amável, quão poderosa e consoladora é a palavra de Deus,
sabedoria que excede toda sabedoria.
12
Confira Andrew Pfeiffer, “The Place of Tentatio in the Formation of Church Servants”, Lutheran Theological
Journal 30/3 (1996): 111-119, e Steven A. Hein, “Tentatio”, Lutheran Theological Review 10 (1997-98): 29-47.

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A experiência que Lutero descreve difere radicalmente daquilo que nós
normalmente chamaríamos de experiência espiritual. É a experiência do
impacto da palavra de Deus sobre nós, seu efeito em nós. Experimenta-
mos o poder da palavra de Deus. Mesmo que esta experiência comece na
consciência, ela afeta todas as partes de nosso ser e permeia a pessoa em
seu todo, mental, emocional e fisicamente. A palavra cheia do Espírito nos
coloca em sintonia com Deus o Pai ao conformar-nos ao seu Filho amado.
Não somos nós que a internalizamos e assimilamos a nosso modo de ser.
Ao contrário, é ela que nos assimila e torna piedosos. Não somos nós que
nos valemos da palavra para nos tornarmos algo; é a palavra que nos faz
teólogos.

Na tentação, o estudante de teologia experimenta pessoalmente a justi-


ça e a verdade da palavra de Deus em todo o seu ser, e não apenas em seu
intelecto. Ele tem experiência da doçura e beleza da palavra de Deus com
todo o seu ser, e não apenas com suas emoções. Ele experimenta o poder
e a força da palavra de Deus com todo o seu ser, e não apenas com seu
corpo. A tentação é, portanto, o teste para avaliar qualquer teólogo; ela
revela o que, sem ela, não se vê e não se conhece. Assim como o penhorista
faz um teste para detectar a presença e pureza do ouro numa moeda ou
jóia, também a tentação testa e prova a realidade da espiritualidade de
alguém.

Ao falar da tentação no prefácio da edição de Wittenberg, Lutero em-


prega a palavra num sentido especial. Ele não se refere aos convites que o
diabo nos faz a que pequemos, nem mesmo ao fato de o diabo condenar o
pecador. A palavra alemã que Lutero usa, ‘Anfechtung’, mostra que está
envolvido algum tipo de ataque à pessoa. Lutero deixa claro que isto se
passa no âmbito público. Envolve antagonismo e oposição pública àqueles
que são pastores ou estão se preparando para sê-lo. Trata-se de um ataque
ao ministério da palavra. O diabo não ataca o ofício do ministério em si,
pois este pode estar a seu serviço, se atuar sem a palavra de Deus e o
Espírito Santo. Ele ataca o instrumento através do qual o ofício do ministé-
rio recebe poder espiritual, a saber, a atuação do pastor em fé na palavra de
Deus e no poder do Espírito Santo. Isto o diabo não pode permitir de jeito
nenhum, pois será seu fim.

Enquanto um pastor ou um estudante de teologia atua baseado em seu


próprio poder, com seu próprio intelecto e idéias humanas, o diabo o deixa
em paz. Mas tão logo ele medita na palavra de Deus e depende do poder
do Espírito Santo, o diabo o ataca, promovendo falta de compreensão, con-
tradição, oposição, e perseguição. Ele ataca através dos inimigos do evan-
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gelho na igreja e no mundo. Deste modo tenta impedir a ação da palavra de
Deus no estudante de teologia. Assim sendo, tão logo a palavra de Deus é
plantada no coração dele o diabo procura tirá-la de lá, para que o teólogo
não possa atuar pelo poder do Espírito Santo. As muitas lamentações nos
Salmos indicam que esta situação é bastante comum. Mostram como o
ministério da palavra suscita inimizade e oposição. O ministério provoca a
ira do inimigo.

Mas paradoxalmente esses ataques são contraproducentes. Lutero


explica:

Pois tão logo a palavra de Deus cresce e se espalha através


de ti, o diabo te persegue. Ele faz de ti um verdadeiro mestre
(de teologia). Por meio de seus ataques (tentações) ele te
ensina a buscar e amar a palavra de Deus.

Assim, o ataque que o diabo lança contra o estudante de teologia ajuda


a fortalecer a fé deste, pois o impulsiona a voltar à palavra de Deus como o
único fundamento para seu trabalho na igreja. Diante do ataque do diabo,
ele não pode depender de seus próprios recursos. Ele não pode depender
da confirmação de sua teologia por parte do mundo e nem mesmo por
parte da igreja. Sua própria fraqueza espiritual e sua falta de sabedoria
levam-no a depender do poder do Espírito Santo e da sabedoria da palavra
de Deus, que é ‘sabedoria que excede toda sabedoria’. Por meio da tenta-
ção o estudante de teologia se torna teólogo; ele aprende a teologia da cruz;
para ser mais exato, a espiritualidade da cruz.13 Ele não experimenta a
glória da união com seu Senhor glorificado, mas conhece a dor da união
com o Cristo crucificado. Ele carrega a cruz juntamente com seu Senhor,
sofrendo com ele na igreja.

Se atentarmos no que Lutero diz a respeito do papel do diabo na forma-


ção espiritual dos teólogos, compreenderemos que nossos seminários são
campos de batalha espiritual, um lugar de luta, e não um oásis espiritual
onde se encontra refúgio da tentação. Também poderemos ajudar nossos
alunos a entender por que eles e suas famílias sofrem um ataque tão cerra-
do em certos momentos ao longo do programa de estudos. Poderemos até
considerar esses ataques bem-vindos, pois mostram que Deus de fato está
atuando entre nós, fazendo de nós e de nossos alunos verdadeiros teólogos.

13
Ver Gene Edward Veith, Jr., The Spirituality of Cross (St. Louis: Concordia, 1999).

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CONCLUSÃO
A vida de fé é a vita passiva, a vida receptiva, onde não somos nós que
nos tornamos algo, mas Deus nos molda e desenvolve. Isto também se
aplica a pastores. Nós, professores de teologia, não formamos teólogos;
isto é obra de Deus. Ele os forma, chamando-os para serem ministros da
palavra, assim como chamou os apóstolos. Ele os treina em sua igreja por
meio daquilo que ele faz com eles ou por meio do que eles sofrem na igreja.
Deus forma teólogos por meio do dom do Espírito Santo, do poder de sua
palavra, e da oposição do diabo.

Se isto de certo modo facilita a nossa vida de professores de teologia,


por outro lado também torna as coisas muito mais complicadas, pois nunca
seremos capazes de desenvolver um sistema de treinamento infalível para
a produção de bons pastores. No entanto, é isto que se espera de nós. E é
muito fácil querer corresponder a tal expectativa. O melhor que podemos
fazer é organizar um currículo que condiz com a dinâmica de formação
espiritual instituída por Deus, fomentar uma comunidade que promova sua
operacionalização, e servir de modelo em como continuar a aprender vi-
vendo a vida receptiva da fé.

Que podemos fazer para promover a vida receptiva entre estudantes de


teologia? Apresento sete breves propostas, à guisa de conclusão.

1. Todo o currículo da educação teológica precisa girar em torno do culto


da comunidade. Isto precisa estar no centro de tudo que é feito no
seminário, pois no culto a palavra de Deus que concede o Espírito
Santo é proclamada e encenada ao ser lida e cantada, pregada e orada,
falada e confessada. No culto deveríamos cantar e orar todos os Sal-
mos, pois é o manual de espiritualidade cristã inspirado por Deus no
qual o próprio Deus nos ensina a orar, meditar e resistir ao inimigo.
2. Seria aconselhável começar todas as nossas aulas com uma leitura da
palavra de Deus e oração pelo dom do Espírito Santo.
3. Precisamos ser diligentes em nossa própria vida espiritual e ajudar os
alunos a desenvolver o hábito de devoções diárias, com ênfase na me-
ditação da palavra de Deus, oração e vigilância espiritual.
4. Uma disciplina sobre espiritualidade luterana como a vida receptiva de
fé poderia fazer parte do currículo. A ênfase aqui deveria recair, não
sobre a teoria, mas sobre a experiência concreta e a prática pessoal.
Um curso desses deveria abordar a conexão entre a piedade pessoal e
o culto público, a prática da oração, meditação evangélica da palavra
de Deus, envolvimento em luta espiritual, e o papel do Espírito Santo na
vida de fé.
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5. O estudo de teologia precisa ser visto como parte da luta entre Cristo e
Satanás na igreja. Quanto melhor nosso desempenho como estudan-
tes da palavra de Deus, maior será a oposição. E isto não é mau,
desde que encaremos os conflitos em nossa comunidade e na vida de
nossos estudantes numa perspectiva espiritual, como ataques do diabo
e não simplesmente como problemas pessoais, doutrinários ou psicoló-
gicos.
6. A mesma ênfase que se dá ao desenvolvimento acadêmico deveria ser
dada à fundamentação espiritual dos alunos. Isto se dá por meio de
seu envolvimento na comunidade e sua aceitação de autoridade, a par-
ticipação no culto público e a interação dos alunos entre si, nosso cui-
dado pastoral deles e o cuidado pastoral que eles têm um pelo outro,
nossa provisão de liderança espiritual14 e a prática de auto-avaliação
espiritual da parte deles, nossa prontidão em pedir desculpas e a dispo-
sição deles em perdoar.
7. Todo o currículo deve estar centrado no uso da palavra de Deus no
culto, na vida e no ministério como o meio pelo qual o Espírito Santo
atua. Pois, como diz Lutero, “Deus não nos dará ... seu Espírito sem a
palavra externa”. Sem a palavra de Deus ninguém nunca poderia
aprender teologia. É assim que se forma um teólogo.

ANEXO
PREFÁCIO À EDIÇÃO DE WITTENBERG
MARTINHO LUTERO

Mais do que isso, quero mostrar-te o modo correto de estudar teologia,


pois eu mesmo o pus em prática ... Este é o modo que o santo rei Davi ...
ensina no Salmo 119. Nele encontrarás três princípios, detalhadamente
explicados ao longo de todo o Salmo. São estes: oração (oratio), medita-
ção (meditatio), tentação (tentatio).

Primeiramente, precisas entender que as Escrituras Sagradas são aque-


le tipo de livro que transforma a sabedoria de todos os outros livros em
loucura, porque nenhum deles pode ensinar a respeito da vida eterna, a não

14
Ver a discussão sobre liderança espiritual em Eugene H. Peterson, Working the Angles (Grand Rapids: Eerdmans,
1987), 103-131.

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ser somente as Escrituras. Assim, deverias imediatamente perder as espe-
ranças em relação a tua própria razão e entendimento. Com estes, não
alcançarás a vida eterna. Ao contrário, com uma arrogância dessas, tu, a
exemplo de Lúcifer, precipitarás a ti mesmo, e a outros junto contigo, do
céu ao abismo do inferno. Em vez disso, ajoelha-te em teu quarto e ora a
Deus com verdadeira humildade e sinceridade, para que, por meio de seu
Filho amado, ele te dê seu Espírito Santo, para que te ilumine, guie, e dê
entendimento.

Podes notar como Davi continua a orar no Salmo 119: “Ensina-me,


Senhor, instrui-me, guia-me, mostra-me”, e assim por diante. Embora co-
nhecesse muito bem o texto do Pentateuco e de muitos outros livros; por
mais que ouvisse e lesse os mesmos diariamente, Davi queria ter também
para si o verdadeiro professor (mestre) das Escrituras, para que não lidasse
com elas a partir de seu próprio entendimento e se tornasse seu próprio
professor (mestre). Isso produz agitadores espirituais que imaginam que as
Escrituras estão sujeitas a eles e são facilmente compreendidas com o pró-
prio entendimento que eles têm, sem o Espírito Santo e a oração, como se
faz com as lendas de Markolf ou as fábulas de Esopo.

Em segundo lugar, precisas meditar, não apenas com o coração, mas


também externamente, sempre de novo trabalhando e esfregando, lendo e
relendo a palavra falada e o texto escrito na Bíblia, diligentemente prestan-
do atenção e refletindo no que o Espírito Santo está dizendo nela. Cuida
para não perder o interesse e pensar que, se leste, ouviste e falaste essa
palavra uma ou duas vezes, isto basta para que a entendas perfeitamente.
Desse jeito nunca te tornarás um bom teólogo, mas serás como uma fruta
imatura que cai da árvore antes mesmo de ter amadurecido pela metade.

Assim, percebes como Davi constantemente se orgulha no Salmo 119,


dizendo que, de dia e de noite e sempre, ele não falaria, comporia, diria,
cantaria, ouviria e leria nada que não fosse a palavra e os mandamentos de
Deus. Pois Deus não te dará seu Espírito sem a palavra externa. Portanto,
deixa que isso te oriente, porque não é por nada que ele ordenou que a
palavra fosse escrita, pregada, lida, ouvida, cantada e falada, e isso exter-
namente.

Em terceiro lugar, existe a tentação (tentatio), ‘Anfechtung’. Este é o


teste que te ensina não apenas a conhecer e entender, mas também a expe-
rimentar quão justa e verdadeira, quão doce a amável, quão poderosa e
consoladora é a palavra de Deus, sabedoria que excede toda sabedoria.
Assim vês como, no Salmo 119, Davi a toda hora lamenta a respeito de

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todos os diferentes inimigos, príncipes arrogantes e tiranos, e acima de tudo
a respeito dos falsos espíritos e bandos que ele tem que enfrentar precisa-
mente porque ele está meditando, isto é, porque ele se ocupa, como disse-
mos, com a palavra de Deus de muitas maneiras diferentes. Porque tão
logo a palavra de Deus cresce e se espalha através de ti, o diabo te perse-
gue. Ele faz de ti um verdadeiro doutor (em teologia); por meio de suas
tentações, ele te ensina a buscar e amar a palavra de Deus.15

BIBLIOGRAFIA
BAYER, Oswald. Leibliches Wort. Reformation und Neuzeit im
Konflict. J.C.B. Mohr: Tuebingen, 1992.
BAYER, Oswald. Theologie. Guetersloh: Guetersloher Verlagshaus,
1994.
HUETTER, Reinhard. Suffering Divine Things. Theology as Church
Practice. Grand Rapids: Eerdamans, 1997.
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98), 22-27.
KLEINIG, John W. “The Kindled Heart. Luther on Meditation”,
Lutheran Theological Journal 20 (1986), 142-154.
LINK, Christian. “Vita Passiva. Rechtfertigung als Lebensvorgang”,
Evangelische Theologie 44 (1984), 315-357.
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Doctrine of the Ministry”, Lutheran Theological Journal 30 (1996),
101-110.
NICOL, Martin. Meditatio bei Luther. Goettingen: Vandenhoeck &
Ruprecht, 1984.
PETERSON, Eugene H. Working the Angles. The Shape of Pasto-
ral Integrity. Grand Rapids: Eerdmans, 1987.
PFEIFFER, Andrew K. “The Place of Tentatio in the Formation of
Church Servants”, Lutheran Theological Journal 30 (1996), 111-119.
RAEDER, Siegfried. Grammatica Theologia. Tuebingen: J. C. B.
Mohr, 1977.
VEITH Jr., Gene Elmer. The Spirituality of the Cross. The Way of
the First Evangelicals. St. Louis: Concordia, 1999.
WERTELIUS, Gunnar. Oratio Continua. Das Verhaeltnis zwischen
Glaube und Gebet in der Theologie Martin Luthers. Lund: CWK
Gleerup, 1970.

15
Tradução revisada por John W. Kleinig, baseada em LW 34, 285-287

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