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GASES TÓXICOS

E O CORPO EXPEDICIONÁRIO PORTUGUÊS

CARLOS ALVES LOPES1

Resumo
O final da “corrida para o mar”, em Outubro de 1914, estabilizou um sistema de
trincheiras e criou as condições ideais para a utilização de gases tóxicos com fins tácticos.
A generalização da guerra química só foi possível com o suporte de uma indústria
que produziu agentes químicos cada vez mais agressivos, transformando os gases de
guerra nas armas mais características da Grande Guerra. É neste contexto que o Corpo
Expedicionário Português (CEP) irá encontrar o teatro de guerra da Flandres. Sem
experiência em guerra química, as tropas portuguesas tiveram de cumprir um conjunto
de tarefas de treino, que incluíram a preparação na Escola de Gases de Mametz.
Essa preparação do CEP para a guerra química é algo pouco abordado na historiografia
militar nacional, menos ainda a capacidade de defesa e a utilização de armas químicas
pelas forças portuguesas em França. Com base em memórias, manuais técnicos,
documentação arquivística e cruzando com os relatórios do Dr. David Sarmento e Dr.
Alfredo Rocha, ambos médicos militares, desenvolvemos uma visão sobre as intoxicações
pelos gases de guerra, mas também uma perspectiva esclarecedora sobre a organização
dos serviços de saúde e como os gaseados eram evacuados e tratados.

1. Licenciado em História (1998) e mestre em História Contemporânea (2013), onde apresentou uma
dissertação sobre “Os Portugueses na Grande Guerra”, ambos na Universidade Aberta. Doutorando na
Universidade Nova de Lisboa onde se encontra a concluir a tese na área da História Militar sobre “Portugal e
o Bloqueio Naval na Grande Guerra”. Actualmente é investigador do Instituto de História Contemporânea
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa e investigador do Centro de
Investigação Naval, da Escola Naval.

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XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

Introdução

Desde a Antiguidade que se encontram referências à utilização de agentes químicos,


mas será no século XX, mais propriamente durante a Grande Guerra que se verificará
um uso extensivo, fruto de um desenvolvimento da indústria química desde os finais do
século XIX.
Nesta data em França foi experimentado um agente lacrimogénio, baseado em
bromoacetato de etila2, para ser lançado através de granadas de mão. Na Alemanha foi
desenvolvido um outro agente lacrimogénio baseado em brometo de xilila3, o qual viria
a ser utilizado em munições de artilharia. Já no início do século XX, a Grã-Bretanha e os
Estados Unidos da América optaram por desenvolver um agente lacrimogénio, baseado
em cloroacetofenona4, que se tornou o químico lacrimogénio mais utilizado até depois
da 2ª Guerra Mundial.
O desenvolvimento em laboratório de gases tóxicos e a sua produção industrial em
contexto militar deve ser pensado com base em dois objectivos: o de causar baixas,
mortes e ferimentos, e de diminuir a capacidade operativa do inimigo através da
obrigatoriedade de utilização de equipamento protector que lhes diminuía a capacidade
de combate e que desmoralizava.
Estas terão sido as razões da primeira utilização relevante de gases de guerra, ou
armas químicas como actualmente são denominadas, a 22 de Abril de 1915 pelos
alemães em Ypres na Bélgica sobre as tropas da Entente. Nesse ataque foram utilizados
aproximadamente 5.500 cilindros de gás de cloro em linha ao longo de 6km e tiveram
de esperar que o vento soprasse na direcção pretendida para o libertar. Essa descarga de
cerca 180t de gás de cloro causou 15.000 vítimas, das quais 5.000 fatais, ou seja 33%
de mortos, em parte pela surpresa do ataque, a inexistência de equipamento e de treino
individual contra ataques de gás.
Será de facto a indústria química de guerra que irá colocar os efeitos da acção dos
gases tóxicos ao nível das consequências dos feridos de sangue por explosões, ou por
metralha, nivelando ou mesmo ultrapassando as consequências permanentes e visíveis
dos mutilados de guerra. A guerra química moderna nasceu no dia 22 de Abril de 1915

2. O bromoacetato de etila (C4H7O2Br), é um éster etílico do ácido bromo acético. Foi utilizado para
odorizar o insecticida Zyklon B, o mesmo gás que foi utilizado pela Alemanha Nazi nas câmaras de morte
nos campos de concentração.
3. O brometo de xilila (C8H9Br) é um químico intensamente irritante à pele e membranas mucosas. Dadas
as suas propriedades foi utilizado como um gás de guerra, no entanto na frente oriental, a 3 de Janeiro de
1915, na Batalha de Bolinov e devido às temperaturas negativas presentes demonstrou ser pouco volátil.
4. O cloroacetofenona (C8H7ClO), também denominado (CN), é um gás lacrimogénio utilizado na
repressão de distúrbios. Ao estimular os nervos da córnea, este gás causa lacrimação, dor e mesmo cegueira
temporária.

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e o pai terá sido o alemão Fritz Haber (1868-1934) laureado com o Nobel da Química5
de 1918, pela descoberta da síntese industrial do amoníaco, de extrema importância
para a produção de fertilizantes sintéticos6 de substituição dos nitratos importados do
Chile e para a produção de explosivos químicos, o que não só permitiu uma produção
agrícola nas Potências Centrais durante o “bloqueio naval” britânico, como manteve a
sua máquina de guerra operacional durante o conflito.

A utilização de gases de guerra

A ameaça de utilização de armas químicas tornava-se uma realidade desde o século


XIX, o que levou à necessidade de um debate internacional sobre a utilização de agentes
químicos tóxicos com efeitos sobre os seres vivos, agarrando a questão como sendo
uma questão moral, já que as perdas humanas em situações de guerra levaram a que as
sociedades civis europeias reclamassem a existência de limitações à violência nos campos
de batalha. Será na prática a incapacidade de travar os avanços tecnológicos militares
conseguidos por alguns, sobre os outros que conduzirá ao desenvolvimento de leis de
limitação de uso de certas armas e às leis humanitárias internacionais.
Durante a Guerra Civil Americana (1861-65) houve a ameaça de utilização de fogo
grego (arma incendiária) e de gás tóxico de guerra (cloro), fosse através de balões, ou
uma eventual dispersão através de munições de artilharia, de acordo com uma proposta
de John Doughty7 ao Governo da União, ou ainda os rumores da pretensão de utilizar
munições de gás tóxico contra o USS Monitor pelos confederados. A ideia de utilização
de armas químicas foi real, apesar da sua utilização não ter acontecido durante a Guerra
Civil Americana.
É durante o período da Guerra Civil Americana (1861-65) que surgiu a 1ª Convenção
de Genebra (1864), centrada sobre o Direito Humanitário Internacional no sentido de
mitigar o sofrimento dos feridos nos exércitos em campanha, a integração de garantias
5. O químico Fritz Haber em conjunto com o matemático Max Born, desenvolveram o Ciclo de Born-
Haber, como método industrial de sintetização de compostos iónicos. Este método permite obter cloro a
partir do sal das cozinhas, cloreto de sódio (NaCl), através de uma electrólise ígnea que funde o cloreto de
sódio a 808ºC e através de uma corrente eléctrica produz o gás verde altamente tóxico (cloro) e o metal
sódio em forma líquida.
6. O químico Fritz Haber em conjunto com o químico Carl Boschi (Nobel da Química de 1931),
desenvolveram o processo de sínteses do amoníaco a partir do hidrogénio e do nitrogénio utilizando altas
pressões. Foi ainda possível aproveitar o gás amoníaco para a produção de adubos artificiais, hoje vastamente
utilizados na agricultura.
7. James A. Romano, Bria Lukey e Harry Salem, Chemical Warfare Agents…, p.4. Ambos os lados
beligerantes na Guerra Civil Americana ponderaram a utilização de armas químicas, sendo que Isham
Walker (confederação) propôs o bombardeamento aéreo contra o Forte Pickens e navios que o apoiavam,
em Pensacola na Florida, John Doughty (união) propôs o bombardeamento de fortificações, em Yorktown
na Virgínia, ou a ideia de Joseph Lott (união) de bombear gás através de tubos para dentro das fortificações
em Yorktown.

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de protecção a hospitais e ambulâncias e, ainda, o reconhecimento da simbologia da cruz


vermelha, se bem que não existia uma alusão à questão de gases de guerra.
Seguiu-se por iniciativa do Governo da Rússia, em 1868, a reunião de uma comissão
militar internacional, em São Petersburgo, com vista à determinação da não utilização
de certas armas, nesse caso com o objectivo de abolir a utilização de munições explosivas
de pequeno calibre para armas pessoais, reafirmando o princípio da não utilização de
armas que agravassem desnecessariamente o sofrimento dos feridos e implicassem uma
morte inevitável, o que entrelaçava com o princípio humanitário expresso na Convenção
de Genebra de 1864.
Após a Guerra Franco-Prussiana (1870-71) surgiu a organização da Conferência de
Bruxelas de 1874, iniciativa do Czar Alexandre II da Rússia8 e com o patrocínio do
Governo da Bélgica, que estimulou um verdadeiro avanço no debata internacional sobre
a questão humanitária, retomando o debate sobre leis e costumes de guerra, reforçando
a questão da não utilização de munições explosivas de pequeno calibre e incluindo pela
primeira vez a questão da utilização de gases de guerra, apesar de não se terem conseguido
formalizar as propostas.
Em 1898 os britânicos utilizaram munições explosivas na Batalha de Omdurman
no Egipto e também nesse mesmo ano o fizeram durante a 2ª Guerra Boer, com ácido
pícrico9 (C6H3N3O7) de efeito explosivo e tóxico em contacto com o sangue, o que
levou a grandes protestos internacionais por parte da comunidade Boer. Ainda nesse
ano eclodiu a Guerra Hispano-Americana (1898), que levará no ano seguinte a surgir
a 1ª Conferência de Haia, de 1899, por convocatória e sugestão do local pelo Czar
Nicolau II da Rússia. Esta reunião internacional, que ficou também conhecida como
1ª Conferência da Paz, teve um importantíssimo papel para o desenvolvimento da
diplomacia internacional ao integrar representante de 26 países, incluindo Portugal10,
e onde relativamente aos gases de guerra ficou expresso a “...proibição do emprego de
projecteis que tivessem por fim único espalhar gases asfixiantes ou deletérios...”.
Na sequência da Guerra Russo-Japonesa (1904-05), onde o confronto naval foi
determinante, surgiu a 2ª Convenção de Genebra, de 1906, que veio estender o âmbito
da acção humanitária e de outros desenvolvimentos obtidos nas leis internacionais às
situações de conflito naval. No ano seguinte, em 1907 teve lugar 2ª Conferência de
Haia, convocada pelo Presidente Theodore Roosevelt, dos Estados Unidos da América,
por pedido da Rússia, ainda, em resultado da derrota militar e naval frente ao Japão,
onde foram desenvolvidos esforços para colocar limitações na guerra naval, se expressou
8.https://www.cambridge.org/core/journals/international-review-of-the-red-cross-1961-1997/article/the-
geneva-convention-of-1864-and-the-brussels-conference-of-1874/DCE4139A3430AE64163FB1F1F156E818
(consultado em 2017-03-23).
9. James A. Romano, Bria Lukey e Harry Salem, Chemical Warfare Agents…, p.5.
10. Portugal assinou a Declaração da Convenção de Haia, de 28 de Julho de 1899, em 4 de Setembro de
1900, na qual aceitou a não utilização de projecteis com o único objective de espalhar gases de guerra. No
entanto, virá a utilizar munições com agentes químicos tóxicos, como se demonstrará mais à frente.

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o direito dos países neutros no comércio marítimo e foram aprovadas três Declarações11
comprometendo as partes na limitação de uso de armamento específico, respectivamente
a proibição do lançamento de projécteis e explosivos de balões ou por meio de novos
métodos semelhantes, a proibição do uso de gases asfixiantes e deletérios lançados através
de projécteis que permitissem a sua difusão, e a proibição do uso de balas cujos estilhaços
se espalhassem pelo corpo, retomando a Declaração d S. Petersburgo, de 1868.
Todos esses princípios humanitários e leis internacionais que envolviam uma questão
moral e de interesse económico, ficaram explicitados na 2ª Conferência de Haia, em
1907, última grande conferência internacional sobre as matérias da guerra antes da
Grande Guerra de 1914-18.
Assim, depois da Alemanha reafirmar, tal como outras nações, a não utilização de
venenos e armas envenenadas em Haia, em 1907, até que ponto o Alto Comando
Alemão terá ponderado as consequências da utilização de gás de guerra (cloro), em
Ypres a 22 de Abril de 1915, quando atacou de surpresa a linha de defesa aliada, com
a já referida descarga12 de cerca de 180t de gás, e que a dimensão do sucesso apenas
reflectiu o inesperado da situação, tanto mais que quando voltaram a executar um novo
ataque dois dias depois, quebrada a surpresa táctica e perante a determinação das forças
defensivas13, o êxito foi muito relativo.
O factor surpresa viria a ser um dos principais factores tácticos de guerra química e
uma das formas de potenciar os resultados. Por outro lado a dependência das condições
atmosféricas e da própria capacidade das tropas avançarem dentro de zona contaminadas
com gás, seriam outros factores igualmente importantes. Numa aposta clara nas
armas químicas o Alto Comando Alemão desenvolveu novas tácticas de combate,
que combinaram o ataque de infantaria com o suporte de ataque químico e também
viria a desenvolver tácticas de barragem de artilharia dentro deste âmbito. Por outro
lado as forças da Entente também acompanharam passo a passo a transformação da
guerra química desenvolvimento o treino individual e os equipamentos defensivos, mas
também a capacidade de causar baixas não tanto pela morte, mas sim pela capacidade
de neutralizar, ferir, ou simplesmente de diminuir a força de combate inimiga e de a
desmoralizar. A questão da dependência das condições atmosféricas para a viabilização de
11.https://idi.mne.pt/pt/relacoesdiplomaticas/2-uncategorised/821-conferencia-da-paz-1899-e-1907.html
(consultado em 2017-03-23).
12. John S. Haller, Battlefield Medicine: a History of the Military Ambulance from the Napoleonic Wars through
World War I, Edwardville (USA), Southern Illinois University Press, 2011, p.159. O ataque no dia 22
de Abril de 1915, foi efectuada sobre a linha francesa, que ficou envolvida numa nuvem esverdeada que
avançou à velocidade do vento e que actuou aproximadamente durante uma hora e meia. Seguiu-se um
novo ataque no dia 24 de Abril Se por um lado dispersou em pânico as tropas francesas, o gás de cloro
também acabou por impedir o avanço das forças alemãs.
13. John S. Haller, Battlefield Medicine: a History of the Military..., p.159. As forças defensivas canadianas
utilizaram máscaras improvisadas firmemente amarradas sobre a boca e nariz feitas de meias de lã embebidas
em urina misturada com terra húmida, ou feitas de almofada saturada com uma solução de carbonato de
sódio e hiposulfito de sódio.

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ataques químicos14 de gás inicialmente através de botijas sujeitas a uma fácil observação
aérea inimiga, levaram à necessidade de desenvolver munições com agentes químicos,
para tornar a utilização de gases tóxicos numa arma de guerra verdadeira operacional,
independente das condições atmosféricas e de fácil utilização.
Para além do desconhecimento de utilização táctica adicionou-se uma impreparação
do corpo médico para tratar as sintomatologias dessa nova classe de feridos, os gaseados,
à data referidos como intoxicados em combate15, o que obrigou à criação de grupos de
investigação científica multidisciplinar entre as nações aliadas beligerantes, composta
por médicos e químicos de Institutos e Faculdades, para a procura de terapêuticas para
os intoxicados e de novas formas de protecção para os combatentes.
O Corpo Expedicionário Português que começou a chegar a França em Fevereiro
de 1917, e a ocupar o seu primeiro sector de combate na linha da frente em Março,
tomou o seu primeiro contacto com os gases de guerra na Escola de Gás, de Mametz,
em Maio desse ano, mas não houve qualquer participação de médicos do CEP nos
grupos de estudo de gases das outras forças aliadas. Caso contrário foi o dos Estados
Unidos da América, que se juntou ao conflito mais tarde que Portugal e que só enviou
as sua primeiras tropas em Junho de 1917 para França, mas que participou de imediato
nos estudos que se desenvolviam junto das outras forças aliadas e que à semelhança
da França e da Grã-Bretanha criaram laboratórios de investigação para produção de
agentes químicos e estabeleceram secções de investigação na Europa (França), onde os
seu oficiais-médicos aprofundaram o estudo de terapêuticas de tratamento de gaseados.
A intervenção dos médicos militares no terreno viria a ser um factor determinante na
corrida para o combate aos agentes químicos, encurtando o tempo de implementação de
novos tratamentos o que se revelou essencial na luta contra os efeitos dos gases tóxicos.
Esse aumento das valências médicas viriam a ser obtidos pela partilha de resultados de
investigação e das novas terapêuticas farmacológicas entre todos os aliados, mas também
da partilha dos resultados extraídos directamente no campo de batalha e da experiência
obtida nos serviços de saúde na frente de combate. As terapêuticas impostas aos gaseados
acabaram por serem generalizadas e aplicadas de forma uniforme entre aliados, tendo o
Corpo Expedicionário Português beneficiado das instruções provenientes dos serviços
médicos britânicos, exército a que a formação portuguesa se encontrava subordinada.

14. A retaliação britânica aos ataques alemães com gás em Ypres, em 22 de Abril, só aconteceu a 25 de
Setembro de 1915, durante a Batalha de Loos, com a utilização do mesmo tipo de agente químico, o cloro.
Estiveram sujeitos aos mesmos constrangimentos atmosféricos que os alemães já tinham experimentado e
tiveram de espera por condições ideais que só aconteceram naquela data. Mesmo assim a nuvem 150t de
cloro lançadas sobre as linhas alemãs, voltou sobre as suas próprias linhas com a alteração da direcção do
vento, causando baixas na infantaria britânica.
15. Ilustração Portuguesa, 5 de Agosto de 1918, 2ª Série, N.º 650, p.103.

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A evolução da utilização dos gases de guerra

Não é possível neste trabalho explanar a temática de forma exaustiva dada a sua
complexidade e a profundidade que reveste a nível terapêutico e farmacológico, mas é
possível evidenciar os aspectos mais relevantes que marcaram o rumo da utilização de
gases com fins militares, em especial ao nível táctico, do treino e do equipamento.
As primeiras intoxicações no campo de batalha apareceram sem um propósito táctico
e os sintomas de intoxicação resultavam dos gases de explosão provenientes do combate
com armas de fogo e dos rebentamentos de explosivos. Os óxidos de carbono, dióxido
e monóxido libertados nas explosões de pólvora não são propriamente gases de guerra
numa visão de guerra química, mas ao diminuírem a concentração de oxigénio no ar, a
capacidade particular do monóxido de carbono de se misturar na circulação sanguínea
através do aparelho respiratório, têm efeitos neutralizadores que podem levar à morte
do intoxicado quando em concentrações elevadas no seu aparelho circulatório. Esta
característica do monóxido de carbono levaram o Capitão-Médico David Sarmento a
incluí-lo na sua classificação clínica de gases de guerra, na categoria de alterantes da
composição química do sangue16, mas não como um agente químico manipulado e
lançado sobre o inimigo numa perspectiva táctica. O efeito do monóxido de carbono
era conhecido como “embriaguez da pólvora17” e com efeitos visíveis nas trincheiras
onde os homens estavam sujeitos a constantes bombardeamentos e por longos períodos
de tempo, ou em especial quando estes se abrigavam num dug-out18, num bunker ou
dentro de covas acabadas de escavar por explosões recentes.
De uma forma provocada e intencional terá sido a utilização do gás lacrimogénio
como gás tóxico de guerra, que desde 1914 era utilizado por ambos os lados beligerantes.
Sendo um nome genérico que engloba um conjunto de compostos de bromo (Br) eram
conhecidos e utilizados em contextos civis, com efeitos variados, mas com base na
irritação de olhos e vias respiratórias, que ao causarem lacrimação também geravam
situações de cegueira temporária. Apesar de ser considerado um gás não letal, fortes
concentrações podiam causar edemas pulmonares, mas com efeito menor e menos
permanente que o causado pelos gases irritantes pulmonares com base de cloro (Cl).
Dentro dos gases tóxicos letais, o gás de cloro (Cl2) integra a categoria de gases
asfixiantes19 pelo facto de matar através da irritação do tecido pulmonar, brônquios e
16. David P. M. Sarmento, As Intoxicações..., p.53.
17. O efeito provocado eram: cefaleias, alucinações visuais, vertigens, náuseas ou vómitos.
18. David P.M. Sarmento, As Intoxicações..., p.47.
19. idem, ibidem, p.53. De acordo com a classificação francesa de gases de combate o cloro e outros derivados,
constituíam o primeiro grupo denominado como gases sufocantes. No quadro da classificação britânica o
cloro era classificado como gás irritante pulmonar, sendo que a classificação americana seguia a mesma
nomenclatura. O Tenente-Médico vem a sugerir outra classificação com base nos processos patológicos e
respectivos efeitos mórbidos. Assim o cloro seria integrado no segundo grupo da sua classificação, como gás
irritante celular de tecidos epiteliais de revestimento.

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restante aparelho respiratório, criando edemas e hematoses que destroem por sufocação,
uma espécie de afogamento interior. Este gás de cloro também tinha um efeito
lacrimogénio.
Outro agente químico muito utilizado durante a Grande Guerra foi o gás de
mostarda, ou iperite (S(CH2CH2Cl)2), um composto introduzido em Julho de 1917 no
campo de batalha de Ypres. Não tendo sido desenhado na sua génese como um agente
tóxico letal era-o quando os combatentes ficavam expostos prolongadamente. Tinha um
efeito persistente sendo que se impregnava facilmente no solo e face à sua consistência
viscosa a temperatura ambiente, mantinha um grau de evaporação lento, evaporação que
se podia manter por dias ou mesmo semanas dependendo das condições climatéricas.
O seu efeito vesicante causava queimaduras externas na pele e na membrana ocular
provocando cegueira temporária, hemorragias internas, queimaduras da membrana
mucosa, do revestimento das vias respiratórias, e causava feridas, edemas e vómitos.
A morte por intoxicação por gás de mostarda era muito dolorosa e poderia acontecer
até cinco semanas após o gaseamento, tornando-se um processo de elevado esforço
clínico para o corpo médico militar e logístico dos serviços de saúde, dado o número de
gaseados, as concentrações dos fluxos de gaseados nos postos de socorro e ao prolongado
tempo de internamento para recuperação.
O último agente químico a ser introduzido no campo de batalha foi o arsina, cloreto
de difenilarsina (ClAz(C6H5)2), com um efeito irritante nasal e olhos, não letal, mas
que por vezes sob um efeito prolongado provocava irritação da pele. Tinha uma acção
máxima de 24 horas, ao contrário da iperite (gás de mostarda) cuja acção era prolongada
e um efeito imediato ao fim de 3 a 4 segundos, incapacitando o combatente de utilizar a
máscara de protecção, devido ao efeito esternutatório. A sua utilização era normalmente
efectuada em conjunto com outros agentes químicos, criando uma situação complicada
de gerir durante os bombardeamentos.
Uma questão muito interessante relacionada com a utilização dos agentes químicos
no campo de batalha, é a evolução das munições de artilharia como meio de lançamento
dos gases em substituição das botijas com gás pressurizado, que levou a alterações na
forma de apoio de artilharia com a introdução da barragem rolante que alterou o conceito
do fogo de artilharia, transformando o objectivo de destruição para um objectivo de
neutralização do inimigo. A materialização destes novos conceitos e a disponibilização
de novas armas químicas foram visíveis a partir do ano de 1916, o que pode ser atestado
com a alteração da proporção20 entre munições de estilhaço, explosivas, fumo e químicas,
numa produção global de mais de 6 milhões por mês21.
Será também interessante conhecer o consumo mensal de munições de artilharia,
mas este não era constante e variava com as situações tácticas. Refira-se que durante
20. A proporção mensal de munições de artilharia produzidas entre Março de 1916 e Outubro de 1918,
variou entre estilhaços/explosivas-químicas de 55%-45% (Março/1916) para 31%-69% (Outubro/1918).
21. Paddy Griffith, Battle Tacics of the Western Front: The British Army’s Art of Attack 1916-18, New Haven
& London, Yale University Press, 1994, p.139.

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a ofensiva alemã, entre 18 de Março a 28 de Abril de 1918, no período de 7 a 14 de


Abril onde as estatísticas britânicas incluem o consumo de munições de artilharia do
Corpo Expedicionário Português na Batalha de La Lys, verificou-se na frente de combate
um consumo de 1.638.805 munições, onde 68% destas foram de explosivos, fumo e
químicas22.
De facto o aumento da utilização de munições neutralizantes foi acompanhado por
uma evolução gradual dos agentes químicos, em particular no que se refere ao seu ponto
de ebulição23. No relatório o Capitão-Médico David Sarmento, são apontados três factos
para fundamentar a necessidade de procurar novos agentes químicos durante a Grande
Guerra.
Primeiro a necessidade de encontrar agentes químicos que fossem resistentes a
cargas explosivas mais fortes sem alteração de propriedades, o que não acontecia com
gases com o ponto de ebulição mais baixo. A segunda necessidade era consequência
imediata do aumento da distância de tiro da artilharia, que ao passar a ter a capacidade
de bater a retaguarda inimiga, onde se encontravam os depósitos de material e reservas
de munições havia a necessidade de neutralizar essas zonas de forma duradoura, o que
não se conseguia com munições explosivas ou químicas facilmente voláteis (fugazes),
mas havia a possibilidade de o alcançar com munições químicos com características
persistentes. Por último os gases com maior ponto de ebulição24 apresentavam partículas
de maior densidade, face ao qual a sua acção irritante sobre o aparelho respiratório era
mais rápida e mais violenta.
No seu relatório o Dr. David Sarmento apresentou duas formas diferentes de classificar
os agentes químicos no campo de batalha. Por um lado, como médico suportou-se
nas situações observadas em gaseados e foi influenciado pelos trabalhos dos serviços
de saúde militares em França e do conjunto de pesquisas de tratamentos e medidas
antigás experimentadas e, ainda, na literatura científica britânica muito divulgada entre
os aliados, para transmitir a ideia que os aliados apenas classificavam as armas químicas
quanto aos efeitos, ou tipos de terapêuticas utilizadas. A ideia que não existia uma forma
de classificar os gases tóxicos como se apresentava sistematicamente na informação sobre
as munições alemães é incorrecta, uma vez que tanto os aliados e os alemães trabalharam
a questão dos agentes químicos numa perspectiva da utilização táctica25. O que se
verificava é que a utilização dos gases de guerra estava organizada por diferentes grupos,
tendo em conta o efeito táctico da munição com base no agente químico, a letalidade e
a persistência, tanto no Exército Alemão, cuja classificação se encontra mais divulgada,
22. Paddy Griffith, Battle Tacics of the Western..., p.149.
23. David P. M. Sarmento, As Intoxicações..., p.44.
24. Os pontos de ebulição dos agentes químicos foi evoluindo desde -33ºC (cloro) em Abril/1915, passando
por +77ºC (palite) em Abril/1916, +217ºC (iperite) em Junho de 1917 e alcançando um máximo de
+333ºC (cloreto de difenilarsina) em Outubro de 1917.
25. O relatório sobre as intoxicações pelos gases de guerra do Capitão-Médico David Sarmento, onde
resume o conteúdo de um conjunto de conferências efectuadas durante a Grande Guerra, também vai nessa
mesma perspectiva.

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mas também nos exércitos aliados, como iremos referir para o caso dos franceses e dos
britânicos.
Assim, durante a Grande Guerra as munições químicas alemãs não tinham uma
cor base definida, sendo o invólucro totalmente pintado na cor cinzenta inicialmente
e posteriormente umas vezes de cor cinzenta e por outras pintado de azul e com ogiva
pintada de amarelo. O tipo de agente químico que a munição continham era indicado
através da colocação de cruzes de diversas cores pintadas sobre o invólucro da munição26,
existindo ainda uma codificação adicional de números e letras, para uma identificação
mais rigorosa da composição química e fábrica .
As munições químicas britânicas27 tinham o invólucro pintado da cor cinzenta, ou
azul acinzentado. O tipo de agente químico que uma munição continham era indicado
através da colocação de anéis estreitos ou largos (bandas) pintados em redor do invólucro
da munição de cor branca e vermelha, existindo ainda uma codificação adicional de
números e letras para uma referência mais específica. Para além das munições de
artilharia os britânicos também utilizavam botijas de gás químico comprimido, com
um sistema de classificação diferente do utilizado nas munições de artilharia. Era um
código de estrelas, sem qualquer relação com o código de cruzes alemãs, ao qual estava
associada uma simbologia de cores. O corpo das botijas de gás químico era pintado de
cor cinzenta.
As munições químicas francesas28 tinham os invólucros pintados na cor base verde
escuro, ou azul acinzentado, e as ogivas eram pintadas de preto. O tipo de agente químico
que uma munição continham era indicado através da colocação de anéis estreitos e
largos (bandas) de cor branca ou laranja, pintadas em torno do invólucro da munição,
existindo também uma codificação adicional de números e letras.

As tácticas de emprego de gases

O ano de 1916 conheceu uma reorganização dos exércitos em geral e em especial


uma melhoria relativa aos serviços logísticos, de acesso a reservas de material de guerra
e munições dentro do âmbito da guerra estática assumida nessa data como longa. A
reorganização permitiu que os exércitos executassem operações tácticas de grande
envergadura, com acesso a grandes quantidades de munições explosivas e de gases
tóxicos. Por outro lado, o aumento constante do número de peças de artilharia na frente
de combate vinha sustentar uma maior concentração de gases tóxicos nas zonas batidas.

26. U.S. ARMY, Chemical Materiel Destruction Agency, Old Chemical Weapons: Munitions Specification
Report, September 1994, p.3.1, e também em M. Knorr, The development of German doctrine and command
and control and its application to supporting arms, 1832-1945. Pickle Partners Publishing. (1991), p.95.
27. U.S. ARMY, Chemical Materiel Destruction Agency, Old Chemical Weapons: Munitions Specification
Report, September 1994, p.1.3.
28. U.S. ARMY, Chemical Materiel Destruction Agency, Old Chemical Weapons: Munitions Specification
Report, September 1994, p. 2.2.

216
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

Para tal, os dispositivos da linha da frente das zonas das trincheiras eram normalmente
dotados com peças de artilharia de calibres entre 75mm e 155mm, e ainda, de vários
tipos de morteiros de trincheira, quase todos com abastecimento de munições explosivas
e com agentes químicos.
Ao nível da orgânica de uma Divisão, era esperado que as batarias de artilharia
equipadas com peças de 75mm tivessem uma capacidade de cobrir uma frente de 200m
e as batarias de artilharia de 155mm a capacidade de cobrir uma frente de 1.000m, por
forma a ser possível combinar uma frente de fogos ofensivos e defensivos escalonados e
em mútuo suporte. As técnicas de tiro de artilharia utilizadas foram variando, sendo a
mais utilizada a barragem rolante para suporte da infantaria em operações ofensivas, mas
esta técnica levantava questões de segurança, tanto quando eram empregues munições
explosivas, como quando eram empregues munições com agentes químicos, sendo
que no caso de utilização de munições explosivas não era possível combinar a acção da
infantaria em segurança em distâncias inferiores a 400m, face ao perímetro de perigo de
estilhaços das munições de 155mm em fogos combinados.
Assim, o papel de suporte da artilharia29 à infantaria em acções ofensivas era dado
através da destruição prévia de obstáculos e posições de fogo fortificadas, tal como na
neutralização da artilharia inimiga e na segurança do perímetro atacado, evitando a
chegada de reforços inimigos. A utilização de gases tóxicos tinha vantagem quando se
pretendia a neutralização da artilharia inimiga, dado o carácter persistente das munições
químicas utilizadas, que demonstravam ser mais eficazes que as munições explosivas em
situações de contrabataria.
Quando a artilharia era utilizada defensivamente, o tiro de barragem podia ser
escalonado mais facilmente em relação à posição fixa da linha de infantaria30. A utilização
de obstáculos, como a utilização do arame-farpado, profusamente utilizado na terra-de-
ninguém, acrescentava um valor intrínseco à barragem de artilharia defensiva ao expor o
inimigo aos fogos defensivos durante períodos mais prolongados, aproveitando também
o factor tempo como factor potenciador da acção persistente dos gases tóxicos.
As cadências de tiro eram determinadas de várias formas e dependiam das
circunstâncias. Desde o tiro flexível a pedido da infantaria, essencialmente utilizado
em situações defensivas e muitas vezes determinadas por sinais de foguetes ao nível
de Companhia, ou de Batalhão, ou um tiro rígido e horário montado para situações
ofensivas e dependente de instruções da Divisão. Quando da utilização da artilharia em

29. Pedro Marquês de Sousa, “O conceito de Apoio de Fogos: Artilharia e Morteiros na Grande Guerra
(1914-1918)”, Actas do Colóquio Internacional “A Grande Guerra – Um Século Depois”, Academia Militar,
2015, pp.51-8.
30. Voison, A Divisão no Combate, (Trad. Tenente-Coronel Abílio de Souza Namorado), Lisboa, Oficinas
Gráficas da Guia, [192?], p.176.

217
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

apoio ofensivo31, com o emprego de barragem rolante32, era esperado uma cadência de 1
a 4 tiros por peça e por minuto, para um avanço de 100m entre cada 2 a 4 minutos. Este
tipo de táctica era muito sensível às condições atmosféricas e às condições do terreno,
lama33, que travavam a velocidade de progressão quebrando a sincronia programada e
que a qual era impossível de reajustar face à inexistência de comunicações TSF entre as
posições avançadas do ataque e as posições de retaguarda da artilharia, no decurso de
uma operação.
No caso de utilização de fogo de barragem de gás para colocação de uma zona de
interdição, ou neutralização, a sua eficiência dependia de uma cadência rápida de tiro,
elevada concentração do ponto de fogo e de uma duração de 4 a 5 horas para que se
criasse um atmosfera tóxica eficaz e duradoura que obrigasse o defensor a colocar a
máscaras, provocando um imediato cansaço respiratório, diminuição da capacidade de
combate e um efeito desmoralizador. A manutenção de uma cadência de tiro rápido era
algo que não podia ser mantida de forma ilimitada, dado o aquecimento dos tubos das
peças e do óleo dos amortecedores de recuperação de recuo, face ao qual uma cadência
de tiro rápido, de 4 ou mais tiros por minuto, não era sustentável por mais de um quarto
de hora, necessitando de um período de arrefecimento34.
A evolução da utilização táctica de gases tóxicos levou à preferência da preparação e
condução das acções de neutralização através de uma combinação de gases e de explosivos,
deixando a utilização simples de gases tóxicos persistentes para zonas a interditar e fora
dos objectivos ofensivos. Se bem que as peças de 75mm tivessem munições de gás
tóxico à disposição, a utilização de munições de calibre superior, face à sua capacidade
volumétrica era mais utilizada. A título de exemplo para a interdição de um bosque com
iperite era suficiente a utilização de 50 granadas de 155mm por hectare coberto.
Em acções ofensivas, onde se verificasse a necessidade de destruição de obstáculos
que impedissem a progressão da infantaria, como o arame-farpado, a utilização de gases
fugazes era a opção preferida, face à propriedade que esses agentes tóxicos tinham de
diminuir a capacidade de combate inimiga, em conjunção com explosivos para destruir
o obstáculo. Para a destruição ou neutralização de posições de fogo, a utilização de
gases persistentes que penetrassem no abrigo, ou fortificação, mantendo uma demorada
atmosfera tóxica eram a opção. No entanto, para uma neutralização eficaz era
31. David T. Zabecki, The German 1918 Offensives: Case Study in the Operational Level of War, New
York, Routledge, 2006, p.54. O desenvolvimento de manobras conjuntas de artilharia e infantaria
foram desenvolvidas primeiro pelos alemães e posteriormente pelos aliados, que copiaram a táctica.
32. Outra forma de apoio ofensivo de tiro de artilharia era a barragem chinesa, que consistia em efectuar
um tiro preparatório sobre um determinado sector para neutralizar as trincheiras inimigas. Posteriormente
e finda a barragem era esperado que o inimigo reocupasse as trincheiras para suster o ataque, mas em vez de
uma ataque de infantaria, a artilharia voltava a fazer uma barragem sobre as trincheiras inimigas para acusar
o maior numero de baixas possíveis ao inimigo.
33. Paddy Griffith, Battle Tacics of the Western..., p.144. Em Outubro de 1917, Passchendaele, as condições
do terreno, lama, não permitiam um avanço de 100m em menos de 8 minutos.
34. Voison, A Divisão no..., p.177.

218
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

normalmente necessário uma barragem de várias horas.


A utilização de agentes químicos para a neutralização da artilharia inimiga distante
do sector de progressão, em contra-barragem, levava à utilização de uma combinação de
gases de efeito imediato e retardado, com características de persistência, sobre a artilharia
inimiga. A utilização de gases persistentes era viável sempre que a posição a neutralizar
se encontrava em posição fora da zona de progressão do ataque e como tal sem afectar o
avanço da infantaria.
Outra evolução táctica foi introduzida pela artilharia alemã com a mistura de
diferentes tipos de granadas químicas numa mesma salva de artilharia, conseguindo
resultados de neutralização bastante eficazes. Ao misturar químicos de munições de cruz
azul com munições de cruz verde, conseguia um efeito que levava a que o inimigo tivesse
de retirar a máscara, efeito esternutatório da cruz azul, com o efeito asfixiante da cruz
verde35. Sobre este duplo efeito adicionava o efeito persistente das granadas de cruz
amarela (gás de mostarda)36. Por outro lado, o fogo sobre a artilharia próxima de um
sector de progressão era batida por gases tóxicos fugazes, e num apoio directo e imediato
à progressão da infantaria só era viável a utilização de munições explosivas, porque
os gases tóxicos, mesmo fugazes, obrigavam à utilização de máscara e isso limitava a
capacidade de ataque da infantaria.
Quando da utilização de fogo defensivo, ou de protecção, era esperado a utilização
combinada de gases tóxicos fugazes e explosivos, se bem que não se pudesse misturar as
zonas de impacto as duas espécies de granada, porque a acção do explosivo dispersava
a nuvem tóxica. Mesmo em situações defensivas existiam excepções na preferência de
utilização de munições químicas, como se verificava quando se pretendia bater pontos
de observação do inimigo, em que as nuvens tóxicas obrigavam à colocação da máscara,
mas não impedia a acção do observador.
É relevante referir a influência atmosférica37 sobre o cone de dispersão do gás das
granadas químicas, algo que era largamente conhecido desde a libertação de gases tóxicos
por dispersão em 1915. Se por um lado o cone de dispersão de uma carga explosiva e
o feixe de metralha eram independentes das condições atmosféricas, as nuvens tóxicas
eram sensíveis ao vento, à chuva e à temperatura. Apenas a iperite (gás de mostarda) era
relativamente pouco sensível em relação às condições atmosféricas adversas, por se tratar
de uma substância viscosa à temperatura ambiente e de larga persistência.

35. M. Knorr, The development of German doctrine…, p.95.


36. M. Knorr, The development of German doctrine..., pp.93-7. A técnica foi desenvolvida pelo Tenente-
Coronel de Artilharia Georg Bruchmuller do Exército Alemão, que progressivamente foi alterando a
organização da artilharia alemã e a doutrina de combate. Uma das principais inovações foi a organização
conjunta da artilharia, quebrando a barreira entre artilharia divisional e de corpo. Outra foi a inovação
do controlo de tiro, sistema de barragem e conjugação de munições químicas, no sentido de potenciar a
eficiência das barragens. Dentro do Exército alemão foi um defensor do tiro de neutralização em detrimento
do tiro de destruição
37. Voison, A Divisão no..., p.192.

219
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

Também, a morfologia do terreno era um factor relevante para potenciar os efeitos


dos gases de guerra38, que ao serem levemente mais densos que o ar tendiam a formar
uma nuvem junto ao solo e a penetrar em todas as fissuras do terreno e em abrigos. Isto
levava a que os gases mais persistentes fossem mais actuantes em certos tipos de terreno,
do que outros. Por exemplo o gás de vincennite, codificado com uma barra branca e uma
barra vermelha nas munições britânicas, ou dois anéis brancos nas munições francesas,
tinha um tempo de actuação de 8 minutos sobre o espaço aberto de uma trincheira e de
30 minutos sobre um espaço arborizado de um bosque, sendo que o tempo de actuação
numa zona urbana poderia ser ainda superior39.
Por último, ficaram fora da classificação de armas químicas as munições de fumo, que
apesar de serem morfologicamente idênticas, utilizavam produtos químicos (tetracloreto
de estanho, SnCl4) que reagiam com o ar e a humidade e produzia nuvens opacas e
persistentes. Ao não serem tóxicos tinham a possibilidade de serem dispersos através
de múltiplas formas: aparelhos específicos, granadas de artilharia, bombas aéreas, ou
mesmo granadas de mão40.

Os equipamentos contra os gases de guerra

Se a utilização de gases de guerra teve como objectivo o enfraquecimento ou


a neutralização prolongada de grandes massas de humanas, por outro lado as
contramedidas desenvolvidas com a utilização de máscara respiratórias, vestuário e de
medidas profiláticas, vieram mitigar parte dos efeitos alcançados com os gases de guerra.
A surpresa foi o principal factor de sucesso na utilização dos gases de guerra e com
as contramedidas que vieram a ser implementadas, a mortalidade causada pelos gases
foi progressivamente diminuindo, sendo que em 1917 e 1918 já não se observavam
situações massivas de mortes por asfixia como se verificaram em 1915. O número de
mortos por asfixia foi diminuindo drasticamente com o aumento da qualidade da
protecção individual distribuída aos combatentes, mas a sofisticação das munições de
artilharia e a utilização da aviação para chegar mais longe, aumentou a profundidade das
zonas atingidas e em perigo de ataque de gás.
O relatório41 do Capitão-Médico David Sarmento dá uma ideia como se verificou
a evolução das baixas por gaseamento ao longo da guerra. Refere uma situação de
assistência a gaseados num posto de socorro da linha da frente, em Maio de 1915, onde
se identificaram 33 mortes por gaseamento de cloro em 48 horas entre 685 gaseados

38. Manuel de Mello Vaz de Sampayo, A Guerra..., p.36. Tacticamente os exércitos tomavam a decisão entre
a utilização de fugaz e persistente, sendo a questão do agente químico mais dependente da disponibilidade
das munições em stock.
39. João Duarte Ferreira, Manual do Graduado de Infantaria: Indispensável na Escola de Recrutas e em
Campanha, Braga, Livraria Cruz, 1943, 510.
40. idem, ibidem, p.517.
41. David P. M. Sarmento, As Intoxicações..., pp.18-19.

220
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

recolhidos, 5%. Outra situação idêntica, mas causada com cloro e fosgénio, onde se
identificaram 41 mortes por gaseamento entre 312 gaseados recolhidos, 13%, uma clara
diminuição do número de homens atingidos, mas com um efeito mais violento.
Em Junho de 1917, data dos primeiros ataques com gás de mostarda, registou-se um
decréscimo de casos letais, cerca de 2,7%, percentagem que se manterá em média até
Novembro de 1918. A grande diferença entre as situações anteriores a 1917 e posteriores
a essa data é que as vítimas que eram apanhadas desprevenidas, sem equipamento ou não
colocavam o equipamento atempadamente, apresentavam percentagens de mortalidade
na ordem dos 85% a 100%. É de referir que ao longo da guerra as máscaras britânicas
tiveram uma grande dificuldade em filtrar o gás cruz azul (esternutatório) o que era do
conhecimento alemão42.
O Exército Português foi equipado com os dois tipos de aparelhos antigás que
estavam em utilização no Exército Britânico43, o capuz e o respirador, sendo que e capuz
já se encontrava em desuso e apenas utilizado como reserva44. Para a defesa colectiva
eram utilizados sistemas para vedar as portas de entrada dos postos de socorro, postos
de comunicação, e outros, que compreendia uma cortina embebida regularmente numa
solução de hiposulfito, com a propriedade de proteger contra ataques de cloro.
Estava organizado um serviço de observação das condições atmosféricas, que recolhia
dados sobre a direcção e velocidade do vento por meio de ventoinhas e cataventos,
dados que de três em três horas eram reportados aos escalões superiores, existindo uma
posterior difusão meteorológica por todas as unidades duas vezes por dia45. A inexistência
inicial de detectores de gás, levava a que se procurassem indícios de uma preparação de
ataque de gás, como a existência de um tempo calmo, vento ligeiro que soprasse do lado
do inimigo e uma aparente inactividade com a ascensão de pequenos balões do lado no
inimigo46. Restava a hipótese de detecção com o olfacto ou na sensação de irritação da
garganta e nariz. Uma vez detectado era de imediato dado o alerta de gás, por meios
visuais: tabuletas e foguetes, ou através de meios sonoros: buzinas strombos47, gongos
ou matracas, mas os alarmes sonoros eram difíceis de distinguir de outras situações de
alarme.
Na linha da frente as directivas antigás obrigavam a que todos os homens levassem
os respiradouros na posição “Gás Alerta”, ou seja, fora do saco e estavam sujeitos a
uma inspecção diária do equipamento. Havia ainda um serviço de sentinelas de “Gás
Alarme”, que quando atacados difundia a mensagem “Gases Contra Trincheira” e todos

42. M. Knorr, The development of German doctrine..., p.95.


43. Thomas Mayer-Maguire; Brian Baker, British Military Respirators and Anti-Gas Equipment of the Two
World Wars, The Crowood Press Ltd, (eBooks), 2015.
44. Fernando Freiria, Os Portugueses na Flandres, Lisboa, Tipografia da Cooperativa Militar, 1918, p.71.
45. Fernando Freiria, Os Portugueses na..., p.72.
46. Mouzinho de Albuquerque; Augusto Casimiro, Nas Trincheiras: Fortificações e Combate, Porto, Tipografia
Renascença Portuguesa, 1918, p.32.
47. PT/AHM/DIV/1/35/581/1/1917 – Plano de Defesa de Ferme du Bois, 1917.

221
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

tinham de colocar de imediato as máscaras. Todos os homens, mesmo quando separados


do seu grupo, tinham ordem de ficarem parados até que a nuvem passasse, sempre que
fosse dado o alarme de “Gases Contra Trincheira”.
Nos abrigos eram descidas as cortinas e cabia aos oficiais colher amostras dos gases.
Era proibido retirar a máscara, mesmo depois da nuvem passar, e até ser dada ordem para
tal por um oficial. A precaução com o material antigás era evidente e existia o cuidado
de verificar todos os dias os capuzes e os respiradores nas zonas de “Gás Alerta”, ou
semanalmente fora das mesmas.

A adaptação do CEP à guerra química

O contacto com as tácticas de defesa e ataque com agentes químicos teve várias
vias, sendo que terá sido na Escola de Gás de Mametz, o local onde os militares do
Corpo Expedicionário Português receberam instrução defensiva no âmbito da guerra
química. No entanto, quando se fala de guerra química durante a Grande Guerra, é
frequentemente esquecido a capacidade ofensiva do CEP, caracterizada pela capacidade
de intervenção da artilharia, dos morteiros e da infantaria com granadas de mão.
Quando os primeiros contingentes portugueses chegaram a França existiu de imediato
a necessidade de instruir as praças e os oficiais sobre as tácticas de guerra química que se
praticavam no Front, e para as quais as tropas portuguesas não tinham recebido treino ou
equipamento em Portugal. O Exército Português até essa data não tinha tido qualquer
experiência de guerra química, fosse por libertação de gás comprimido em botijas,
ou lançamento de granadas de artilharia, nem os serviços de saúde militares estavam
preparados para o tratamento de gaseados.
Assim, a passagem dos efectivos do Corpo Expedicionário Português pela Escola de
Gás, de Mametz, deve ser vista como uma necessidade prática e um primeiro contacto
com os gases de guerra, uma acção com o intuito de dar confiança no uso da máscara
aos expedicionários e de instrução no uso de granadas químicas de mão, de fumo e
incendiárias48.
A partir de 7 de Maio de 1917, seguiram-se vários cursos49 com a duração de cinco
dias cada, para oficiais e praças, que incluíam a instrução sobre o equipamento pessoal, à
data máscaras PH Helmet, mas também sobre procedimentos de defesa colectiva antigás
nas trincheiras, com exercícios de alarme, prontidão, e neutralização de gases. Sendo os
cursos ministrados por instrutores britânicos é esperado que tivessem sido instruídos
na utilização de pulverizadores Vermorel50 como método de neutralização de gases nas
trincheiras e em abrigos contaminados, com trisulfato de sódio, também chamado
48. Revista Militar, Ano: LXXII, n.º 12, Dezembro de 1919, p.733.
49. Ferreira Martins, Portugal na Grande Guerra, Vol.II, Editorial Ática, Lisboa, 1934, p. 231.
50. Os pulverizadores “Vermorel” foram uma adaptação de pulverizadores utilizados na agricultura antes da
guerra. Catálogo FEQ845 Imperial War Museum.

222
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

“hypo solution”, um produto muito utilizado como fixante de imagem em películas


fotográfica e com propriedades de retenção de gases de guerra, em especial do cloro51.
Em Novembro52 de 1917 os combatentes voltaram a passar pela Escola de Mametz,
desta vez para receberem treino na nova máscara SBR (Small Box Respirator).
O principal equipamento da Escola de Gás era uma câmara de gás lacrimogéneo
por onde passavam todos os oficias e praças do curso e visitantes da Escola. Nesta ficou
registado a passagem de 1.432 oficiais e 36.730 praças, dos quais 70 oficiais e 597 praças
se especializaram em guerra química.
Para além da capacidade defensiva obtida na Escola de Gás, o Exército teve a
oportunidade de incluir no seu arsenal morteiros de fabrico britânico, o que levou a
que uma das primeiras medidas do CEP em França fosse a criação de especialistas nessa
arma. Nesse sentido seleccionou efectivos que se encontravam afectos aos Depósitos
de Infantaria para formar instrutores e guarnições, junto da I Corps Trench Mortar
School, do First Army, em Saint-Venant53. A partir de 6 de Abril de 1917 o CEP já
tinha instrutores formados com capacidade de dar instrução autónoma da dada pelos
britânicos, data em que começou a Escola de Morteiros de Trincheira. Os cursos de
instrução duravam 12 dias, aos quais se adicionavam de seguida um estágio de 18 dias
em unidades da linha da frente, primeiro em unidades britânicas e posteriormente em
unidades do CEP. Os cursos de formação contemplavam três calibres diferentes, mas
devido à falta de morteiros pesados, a formação em morteiros pesados continuou sempre
a ser ministrada na I Corps Trench Mortar School.
Foram formadas guarnições para seis batarias de morteiros médios (BMM) e seis
batarias de morteiros ligeiros cuja função era de apoio imediato às Brigadas de Infantaria,
e duas batarias de morteiros pesados (BMP) integrados na orgânica da artilharia
divisional. Para além dos morteiros o CEP estava dotado de unidades de artilharia,
organizados em grupos, com peças de tiro rápido (TR) de 75mm francesas e obuses de
114mm britânicos, e um Corpo de Artilharia Pesada (CAP) de apoio ao CEP.
Assim, a 16 de Julho de 1917 a artilharia do CEP 54 era composta por seis grupos
de batarias de artilharia (GBA) e dois serviços de munições divisional. Cada GBA era
constituído por 3 batarias de peças 75 mm TR (a 6 peças cada bataria) e 1 bataria de
obuses 114 mm (a 4 bocas de fogo). Cada sector da frente era apoiado por uma bataria
de peças 75 mm TR do grupo e no total o sector português era apoiado por 132 peças
de fogo. Para estes dois calibres eram produzidas munições químicas, sendo que no caso
do 75mm francês não foram produzidas munições de iperite, mas sim essencialmente
de vincennite.

51. Thomas Mayer-Maguire; Brian Baker, British Military Respirators…, (eBooks)


52. Fernando Rita, Com a Vida Tão Perdida: diário de um prisioneiro na Primeira Guerra Mundial, Porto,
Fronteira do Caos Editores, 2016, p.52.
53. Ferreira Martins, Portugal na..., p.30.
54. PT/AHM/DIV/1/35/1211 - Unidades de morteiros do CEP, a Julho de 1917.

223
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

O Corpo de Artilharia Pesada (CAP) teve uma organização diferente e tinha como
objectivo o apoio de fogos a nível de Corpo de Exército. A instrução das guarnições de
artilharia foi efectuado na Grã-Bretanha, na Escola de Artilharia de Roffey Camp que
incluiu formação em camuflagem e na Escola Hazeley Down Camp. Após terminada
a instrução dos grupos nas duas escolas, estes juntaram-se a 20 de Janeiro de 1918 em
Lydd, onde todos realizaram várias sessões de tiro real55.
Chegados a França, no final de Janeiro de 1918, as guarnições foram organizadas
em dois Grupos de Batarias de Artilharia Pesada, a cinco Batarias cada, 10 no total. No
entanto, por falta de peças as guarnições tiveram de efectuar o tirocínio junto das batarias
de artilharia pesada britânicas que guarneciam o sector português56, mas posteriormente
acabaram por ser dispersos por unidades britânicas de artilharia. Apesar de desfalcado
em artilharia, o CEP tinha meios para atacar e retaliar com armas químicas quando
necessário. No que se refere ao reabastecimento de munições57, estes eram efectuados
semanalmente por requisições ao Sub-Parque de Munições de acordo com os mapas
de consumo de morteiro e de artilharia. As munições requisitadas incluíam bombas de
morteiro, granadas explosivas, granadas com balas e granadas com gases58. Nos mapas de
carga das unidades de artilharia, no que se refere a munições de 75mm, verificava-se um
fornecimento de cerca de 5% de munições de gás semanalmente59.

Os serviços de saúde e os gaseados

Para encerrar o círculo da guerra química é necessário introduzir a acção dos serviços
de saúde militares60, suportados numa estrutura que ia desde os postos de socorro
avançados junto à linha de combate até às unidades hospitalares na retaguarda. Treinados
para tratar de ferimentos de sangue produzidos por explosivos e estilhaços, a partir de
1915 surgiu uma nova patologia de ferimentos com sintomas muito agressivos e que
resultavam da exposição a uma atmosfera tóxica, variável nos sintomas e dependente do
55. Paulino Mendes Gustavo, “O Sistema de Apoio de Fogos das Divisões do Corpo Expedicionário
Português (CEP): Orgânica e Emprego Táctico da Artilharia e dos Morteiros”, Relatório Científico Final do
Trabalho de Investigação Aplicada, Lisboa, Academia Militar, 2016, p.35.
56. Isabel Pestana Marques, Memórias do General 1915-1919: Os meus três comandos de Fernando Tamagnini,
Viseu, SACRE - Fundação Mariana Seixas, 2004, pp. CXCVI – CXCVII.
57. Simon Jones, World War I Gas Warfare Tactics and Equipment, Oxford (UK), Osprey Publishing, 2007,
p.25. Em Verdun a artilharia francesa de 75mm utilizou extensivamente munições químicas de vincennite
(asfixiante), agente químico que se tornou padrão no exército francês e que será uma referência para o tipo
de munições químicas de 75mm, no CEP.
58. Fernando Freiria, Os Portugueses na..., pp.170-1.
59. PT/AHM/DIV/1/35/603/1 e PT/AHM/DIV/1/35/604/1 – Cargas das Unidades em Munições, 2ª
Divisão, comando de Artilharia. Fornecimento de munições para 28 peças de 75mm da 2ª Divisão do CEP,
em 29 de Dezembro de 1917, Munições tipo gás (ZL): 670 na bataria, 499 em reserva, 41 por peças.
60. Margarida Portela, “Cuidar das feridas em todas as frentes”, 1914-1918. Portugal durante a Grande
Guerra. Histórias Esquecidas da participação dos portugueses no conflito, Visão-História, nº 25, Setembro de
2014, p.36. Ver Ferreira Martins, Portugal na..., pp.280-3.

224
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

tempo de exposição à mesma. Tinha aparecido um novo grupo de feridos, os gaseados.


A esse novo tipo de ferimento juntava-se um outro factor debilitante da guerra
química, o poder psicológico da arma, que fazia irromper nos Postos de Socorro
Avançados (PSA) de apoio aos Batalhões, equivalentes às casualty-clearing-stations
(CCS) britânicas, dezenas de homens em pânico entre os verdadeiros gaseados. Aos
serviços médicos da linha das trincheiras não restava mais do que colocar os feridos ao
ar fresco e evacua-los para os postos de socorro (PS), estruturas médicas com mais meios
médicos de apoio às Brigadas e com protecção antigás.
Havia, no entanto, a necessidade de recolher amostras dos gases, o que ficava ao
cuidado dos oficiais com especialidade de gás de guerra como anteriormente referido,
através de provetas de ensaio, ou em balões de colheita, para uma identificação do agente
químico. Estes artefactos continham um líquido e cristais que uma vez atravessados pelas
amostras de ar recolhidas alteravam a sua coloração dependendo do agente químico
presente61.
Além do tratamento imediato com um penso individual, os postos de socorro
avançados pouco podiam fazer aos feridos e muito menos aos gaseados. Restava apenas
serem levados em padiolas rodadas, ou se possível em transporte automóvel, para os
Postos de Socorro, mas esse serviço de transporte era limitado e apenas efectuado por
maqueiros das companhias, estando vedado a outros militares pela necessidade de
manter o máximo número de combatentes nas posições de tiro.
Já nos Postos de Socorro a evacuação de feridos não gaseados era regulada por graus
de urgência, já que a capacidade de acção cirúrgica era muito limitada, cingindo-se à
prestação de curativos de feridas e colocação de aparelhos provisórios para fracturas.
As intervenções cirúrgicas reduziam-se a traqueotomias por asfixias, ou amputações de
membros quase arrancados do tronco e interrupções de hemorragias (hemóstases). Na
triagem efetuada os feridos eram divididos em três grupos: grupo 1 – os que não deviam
ser curados imediatamente; grupo 2 – os que não necessitavam de intervenção cirúrgica
e eram enviados para os Serviços de Saúde do Batalhão, e; o grupo 3 – os que precisavam
de intervenção cirúrgica e eram evacuados para as Ambulâncias.
Existia ainda um 4º grupo, o dos gaseados. Para este grupo os Postos de Socorro
dispunham de ipecacunha, hiposulfito de sódio, salicilato de sódio, digitalina, ampolas de
azeite com cânfora e éter, balões com oxigénio, Pequenas seringas hipodérmicas providas
de agulha oca (seringas de Pravaz) e um oxigenador improvisado. Efectuavam sangrias
pulmonares sobre os edemas agudos e oxigenoterapias nos casos graves de asfixia62.
Dada a generalização do emprego de gases de guerra por todos os beligerantes e a
complexidade dos agentes químicos utilizados, havia sempre a necessidade de atender
à situação de os feridos de sangue também estarem eventualmente gaseados. A questão
do gaseamento impunha que qualquer admissão por gaseamento fosse tomada como
61. Fernando Freiria, Os Portugueses na..., pp. 74-5.
62. Revista Militar, Ano: LXXII, n.º1, Janeiro de 1920, p. 24.

225
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

uma situação grave de gaseamento e que todos os admitidos fossem colocados sob
estrita observação durante 48 horas, porque era extremamente difícil diagnosticar um
gaseamento ligeiro de uma situação letal63.
Assim, todos os gaseados eram evacuados para as ambulâncias, o que criava por
vezes situações de acumulação de doentes nos serviços de transporte, e igualmente
novas situações de gaseamento associados com os agentes químicos que os feridos
transportavam nas suas roupas e pele, como por exemplo resíduos de gás de mostarda.
Uma diferenciação entre a abordagem aos feridos de sangue com a abordagem dos
feridos de gás, tal como indica o Capitão-Médico David Sarmento no seu relatório
sobre as intoxicações de gases de guerra, era que qualquer gaseado, ligeiro ou grave,
seguia uma linha de tratamento equivalente a um ferido grave de sangue, em especial
face ao conhecimento adquirido, porque os gaseados ao fim de algumas horas podiam
apresentar um quadro clínico muito mais grave do que o apresentado inicialmente e que
quando não acompanhado de imediato tendiam a adquirir um quadro clínico mortal.
Os feridos em situação de maior urgência eram enviados para as ambulâncias para
serem assistidos, ou enviados para os Hospitais de Sangue64, sendo esse transporte de
dia dentro das trincheiras de comunicação e à noite pelo Decauville65. As ambulâncias
e hospitais de sangue eram equivalentes ao que hoje chamaríamos de hospitais de
campanha, com capacidade cirúrgica e de internamento. Estavam colocados fora do
alcance da artilharia alemã o que lhes dava uma maior segurança, instalados em edifícios
e com um apoio de tendas. Entre as ambulâncias e os hospitais de sangue encontrava-se
alguma diferença na especialização dos serviços, mas a principal distinção da denominação
estava relacionada com a diferente capacidade de mobilidade das instalações.
O envio de doentes para os hospitais da Base dependia principalmente do tempo
previsto para o tratamento, considerando tempos de tratamento superiores a duas semanas
como factor de transferência. Uma nota interessante é da indicação que os doentes que
eram transferidos dos serviços de saúde da primeira linha para os serviços de saúde da
Base não transitavam directamente entre os hospitais de sangue, para os hospitais da
Base. O transporte dos doentes era efectuado por caminho-de-ferro, ou barcaça através
dos canais, e como esse serviço de transporte para a retaguarda se encontravam sob a
direcção dos britânicos, os feridos e gaseados eram primeiro conduzidos para hospitais
britânicos e daí posteriormente para hospitais portugueses66, mas naturalmente existiam
excepções.
Os hospitais da Base, onde se pode incluir o Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa,
destinavam-se aos doentes, feridos e gaseados, cuja recuperação era demorada ou
não podia ser feita nos depósitos de convalescentes dos batalhões. Ainda em França
63. David P. M. Sarmento, As Intoxicações..., p.16.
64. Ferreira Martins, Portugal na..., p.281.
65. PT/AHM/DIV/1/35/581/1/1917. Decauville era um sistema de linha férrea de bitola estreita e de fácil
reparação, em geral com vagonetas movidas pela força de dois ou mais homens.
66. Ferreira Martins, Portugal na..., p.282.

226
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

existiam outras duas unidades de assistência, o Hospital Militar Português, em Hendaia,


e o Campo de Repouso, em Cherburgo, destinados a doentes, feridos e gaseados em
recuperação, mas que após terem sido dados inaptos para o serviço militar aguardavam
a evacuação para Portugal.
Aos serviços de saúde juntavam-se os serviços sanitários que de uma forma preventiva,
criavam as condições necessárias para evitar doenças e envenenamentos, já que em
resultados dos bombardeamentos químicos o solo e a água encontravam-se altamente
impregnados de agentes tóxicos. Na base dos serviços sanitários encontravam-se os
Núcleos de Saneamento das Companhias, com o objectivo de garantir padrões de limpeza
dos abrigos e trincheiras: recolha de lixos, recolha de resíduos orgânicos e inorgânicos
e destruição de ratos e ratazanas67, e as Secções de Saneamento dos Batalhões, ou dos
Grupos, com nove homens (8 soldados e 1 cabo) aos quais se associava a gestão das
incineradoras68. Estes incluíam núcleos de esterilização de águas, ao nível de Batalhão,
constituídos cada um por três praças especializados em produtos químicos, que tinham
um especial cuidado no tratamento de águas existente em crateras de granadas, as quais
estavam quimicamente envenenadas e não podiam se utilizadas para beber ou para
lavagens69.
Existia ainda na Base uma Secção de Higiene e Bacteriologia equipada com duas
viaturas-laboratório, uma de bacteriologia e outra de análises químicas, duas secção
sanitárias: cada uma com uma viatura (box-car) com material de desinfecção, e uma
secção sanitária do Corpo, com uma viatura (box-car) com material de desinfecção e
uma viatura (camião-estufa) de desinfecção70.

A Guerra Química no Sector Português

Ao longo da permanência na frente de combate foram sendo contabilizadas baixas


por gaseamento, mas a partir de Março de 1918 a actividade inimiga aumentou e a
pressão dos bombardeamentos com gases tornou-se regular. De Março a Abril foram
executados raids de parte a parte, tendo os ataques efectuados pelo Corpo Expedicionário
Português, a 9 de Março e a 3 de Abril, sido dos mais fortes que o Exército Português
efectuou em França.
O ataque de 9 de Março foi realizado a partir do subsector direito de Ferme du Bois,
comandado pelo Capitão Ribeiro de Carvalho do BI 21 da 1ª Brigada, 1ª Divisão,
em direcção às trincheiras alemãs: Sally Trench e Mitzi Trench, na zona do Bois du
Biez. A artilharia do CEP efectuou inicialmente um bombardeamento de preparação
67. Revista Militar, Ano: LXXII, n.º1, Janeiro de 1920, p. 24.
68. Fernando Freiria, Os Portugueses na..., pp.78-9.
69. Ferreira Martins, Portugal na..., p.280. O envenenamento das águas estagnadas não era só o resultado de
contaminação pelo solo, mas resultado da intensa guerra com munições químicas.
70. Ferreira Martins, Portugal na..., p.30 e pp.280-3.

227
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

sobre as trincheiras alemães que se encontravam em frente dos sectores de Chapigny e


Fauquissart, que estavam mais à esquerda do objectivo como manobra de diversão e só 5
minutos antes da hora “zero” é que formou a “caixa” sobre o verdadeiro alvo, na zona do
Bois du Biez. Nestes ataques de diversão era usual utilizar munições químicas.
O ataque alemão de retaliação aconteceu dois dias depois, a 11 de Março de 1918,
quando os alemães efectuaram um raid de resposta sobre as linhas portuguesas. Perante
esse ataque coube a defesa da linha ao Capitão Américo Olavo, como comandante da
trincheira, quando pelas quatro horas da manhã começaram a se observar numerosos
foguetes vermelhos de SOS no ar, a indicar que a zona de La Gorgue estava a ser
atacada. Sobre estas forças portuguesas caiu um bombardeamento preparatório alemão
de explosivos e gás, acompanhado por fogo de metralhadoras, que cobriu parte do sector
do BI 11 e do BI 2, tendo sido dado o alarme de gás e o os procedimentos de “GÁS
ALARME” executados.
Ao fim do combate, que durou um quarto de hora, os alemães retiraram e pouco
depois foi dado como terminado o alarme de gás. Terá sido a pronta intervenção da
artilharia de apoio que sustentou a defesa, mas no final foi necessário contar os mortos
de ambos os lados e evacuar os feridos. Terminado o ataque a vida nas trincheiras voltou
à usual monotonia e recomeçaram os trabalhos de reconstrução71. Relata ainda o Capitão
Américo Olavo que no dia 13 de Março à noite a artilharia portuguesa bombardeou o
Bois du Biez com cinco mil granadas químicas incendiárias, o que então foi considerado
como espectáculo de entretenimento72. Neste período os alemães concentravam-se na
frente ocidental para executar a ofensiva da Primavera, Operação Michael, que teve
início 21 de Março.
Os britânicos que tinham constituído várias brigadas especiais de engenharia73, leia-se
de lançamento (projecção) de gás de guerra a partir de botijas em 1915 e que mantiveram
esse método de ataque até ao final do conflito, planearam entre outros ataques, um
ataque a partir da zona portuguesa em concorrência com os ataques efectuados pela
artilharia. Enquadrado no âmbito da resposta britânica à Operação Michael alemã,
através do projecção atmosférica de gases de cloro. O ataque a partir na zona de Neuve-
Chapelle foi montado na noite de 23 para 24 de Março de 1918.
A operação foi produzida pela “D Special Company R.E.”, com uma bataria de gás de
800 projectores, divididos em dois grupos: 500 e 300 separados por alguma distância74,
mas a execução dependia mais uma vez da direcção do vento para a possibilidade de se

71. Costa Dias, Flandres, Notas e Impressões. Lisboa, Imprensa Libano da Silva, 1920, pp.133-47.
72. Américo Olavo, Na Grande Guerra, Lisboa, Guimarães e Ca. 1919, pp.82-6.
73. Paddy Griffith, Battle Tacics of the Western..., pp. 116-19. As Royal Engineer’s Special Brigade’s, “brigadas de
gás” foram constituídas em Maio de 1915 e tinham como propósito o lançamento de gás tóxicos. Estas brigadas
preparavam as operações com os comandos das Divisões de acordo com as instruções do comando britânico.
74. PT/AHM/DIV/1/35/581/7/19/8. Na documentação encontra-se a localização exacta em coordenadas
topográficas, sendo que essas localizações ficavam na linha B, do sector português. No plano existe a
indicação para avisar as seguintes unidades: BI 9, BI 12, BI14, BI 15, 1º GM, 2º BMM, 1º CSM e 2º BML.

228
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

libertar o gás na hora zero. Às tropas portuguesas foram dadas ordens para recuarem
para a linha B meia hora antes da hora zero e que aguardassem pela ordem para regressar
à linha A apenas meia hora depois do fim do ataque. Toda a frente ficou de prevenção
porque seria esperado um ataque imediato de represália da artilharia alemã.
Tudo foi coordenado entre os oficiais da Royal Engineer’s D Special Company e o
comando da 1ª Divisão75, ficando apenas a aguardar pela hora zero e pelas as condições
atmosféricas favoráveis. A operação acabou por ser anulada por falta de condições
atmosféricas, direcção do vento adversa, tendo sido transmitido a todas as unidades
a palavra código “PORTO”, que significava operação cancelada. A oportunidade
para delinear um novo ataque químico não foi conseguida por diversas razões, mas
certamente que a principal terá sido o avanço alemão a sul da posição portuguesa, entre
Saint Quentin e Péronne naquela semana e que levou os britânicos a concentrarem
todos os esforços para conter os alemães mais a sul da posição portuguesa.
Mantinha-se a pressão alemã na frente portuguesa e tornava-se necessário efectuar
reconhecimentos e destruir posições alemãs que se encontravam em frente da linha do
CEP. Nesse sentido foi efectuado um raid com uma companhia sobre as linhas alemães
a partir do subsector de Neuve-Chapelle, comandado pelo Capitão Américo Olavo, do
BI 2, de Abrantes, na noite de 3 para 4 de Abril, com o apoio da artilharia. A companhia
avançou até à segunda linha alemã onde destruiu os abrigos aí existentes auxiliados pela
“caixa” de artilharia. No regresso foram atacados pela artilharia alemã, mas conseguiram
os objectivos da missão apesar das baixas: 8 desaparecidos e 14 feridos76.
Poucos dias depois, a 9 de Abril, deu-se a grande ofensiva alemã sobre o sector
português, onde o uso de munições químicas fez parte do plano de apoio de fogos
alemão. Foi calculado que dos cerca de 250.000 tiros da artilharia de barragem, um
terço, mais de 80.000, terá sido com agentes químicos, de acordo com a doutrina alemã
de ataque77. Refira-se que o Exército Britânico durante a Batalha de La Lys consumiu
518.519 munições de metralha e 1.120.286 de explosivos, que incluem munições
de fumo, incendiárias e de agentes químicos78. Calcula-se que o total79 das munições
químicas disparadas sobre o sector português a 9 de Abril tenha sido cerca de 62.500
munições.
No Arquivo Histórico Militar não é fácil de encontrar dados individuais sobre os
gaseados, o que corrobora o relatório de Capitão-Médico David Sarmento, no entanto
as estatísticas disponíveis mostram duas realidades: um número muito elevado de baixas
por gaseamento e um número baixo de situações letais, mas não existe indicação dos
75. PT/AHM/DIV/1/35/581/7/19/8. Os códigos da operação eram “LISBOA” para indicar que a
operação ia ter lugar essa noite, “PORTO” para indicar que a operação não tinha lugar essa noite, e
“RIO” para indicar que tudo tinha sido lançado e para iniciar a reposição das tropas nas trincheiras
76. Ferreira Martins, Portugal na..., 296-70.
77. Leonel Martins, “A Classificação dos Gases...”, p.182.
78. Paddy Griffith, Battle Tacics of the Western..., p. 149.
79. Leonel Martins, “A Classificação dos Gases...”, p.182.

229
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

tipos de gaseamento verificados individualmente. Antes da ofensiva alemã em La Lys as


tropas do CEP registavam 3.777 feridos em combate, dos quais 1.594 por gaseamento
(42%)80. No final da guerra o total oficial de mortes por gaseamento, casos letais, foi de
70 homens81.
No entanto, no Arquivo Histórico Militar82 foi possível identificar o registo
pormenorizado de nove situações de guerra química sobre o sector do CEP, entre 31
de Dezembro e 15 de Março de 1918, em relatórios do Serviço de Gás e assinados pelo
responsável do mesmo, Capitão-Médico José Maria Soares83.

O relatório do Capitão-Médico David Sarmento

A importância do relatório do Capitão-Médico Miliciano David Pinto de Moraes


Sarmento enquadra-se pelo valor histórico do detalhe da análise efectuada84, mas
também pelas circunstâncias da presença do Corpo Expedicionário Português em
França, que envolveu uma situação política nacional instável e muito dependente do
Exército Britânico para quase toda a logística de apoio, em especial dos serviços de
abastecimentos, municionamento e transporte.
Tendo conhecimento que quase todos os gaseados eram enviados para os hospitais
da Base, as questões colocadas ao longo do primeiro capítulo do relatório sobre a
importância dos gases de guerra na medicina castrense faz todo o sentido.
A primeira questão teve a ver com a oportunidade que a medicina nacional perdeu
para observar e estudar as questões relacionadas com a actuação dos agentes químicos e
a aplicação de terapêuticas durante um conflito. De facto, é contra a não integração de
médicos nos grupos de cientistas aliados que o alerta de Dr. David Sarmento incide, já
que a guerra química era reconhecida com uma hecatombe e à data seria normal pensar
que qualquer guerra no futuro teria inevitavelmente uma igual hecatombe química
associada.
A segunda questão relacionou-se com a apatia com que Portugal ignorou os
congressos aliados sobre armas químicas e a sintomatologia das intoxicações85. Para ele
era evidente e necessário integrar o meio científico nacional e levar o comando do CEP
80. Ferreira Martins, Portugal na..., p.303.
81. idem, ibidem, p.127. Por gaseamento foram mortos 2 oficiais e 68 praças, de acordo com as estatísticas
fornecidas pelos Serviços de Estatística e Estado civil do CEO, em 1933.
82. PT/AHM/DIV/1/35/1389/5 – Serviço de Gás/CEP.
83. PT/AHM/DIV/1/35/0701 – Escola de Gás, Ordem Serviço do Quartel-General do CEP, n.º 253, de
21 de Novembro de 1917, onde são nomeados os seguintes oficiais como responsáveis dos Serviços de Gás,
respectivamente: Capitão-Médico José Maria Soares, oficial de Gás do CEP, Repartição de Informação e
Operações (R.I.O.) e o Tenente Custódio Vicente como Director das oficinas de reparação dos aparelhos antigas.
84. Existe um segundo documento, de 1919, sobre gases de guerra publicado pelo Tenente-Médico
Miliciano Alfredo Barata Rocha, que participou na Batalha de La Lys e foi gaseado.
85. David P. M. Sarmento, As Intoxicações..., p.13.

230
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

a compreender a capacidade bélica que aquelas armas tinham para debilitar uma força
combatente inimiga, ou para a desmoralizar.
A terceira questão referia-se à reconhecida vantagem que um serviço de saúde
treinado e conhecedor da guerra química tinha para recuperar mais rapidamente
as forças intoxicadas e diminuir os casos de mortalidade. No entanto, existe uma
observação muito importante relacionada com as incapacidades definitivas, totais ou
parciais, e as temporárias nos gaseados que conseguiram sobreviver. Enquanto as taxas de
mortalidade foram progressivamente diminuindo o mesmo não se verificou em relação
aos incapacitados. Introduzindo a questão dos mutilados e referindo os gaseados como
“debilitados”, colocou em causa a cultura nacional, a tendência para comunidade não
integrar socialmente os debilitados e como esses homens não se esforçavam para exigir
essa integração86.
Uma quarta questão que colocou refere-se à falta de organização dos serviços
estatísticos do CEP, que não compilaram convenientemente os casos de gaseamento,
impedindo que no futuro se fizesse qualquer estudo sobre os tipos de gases e os quadros
clínicos associados87. Refere a título de exemplo as estatísticas do Exército Britânico
e demonstra como os dados sobre a classe de incapacitados no CEP não permitiam
reconhecer a acção directa dos gases88. No relatório é feita a referência a uma nota sobre
a taxa levadíssima de gaseados no Hospital da Base n.º 1, com a observação que muitos
vinham sem documentação que justificasse o diagnóstico. Esta referência confirma a
aplicação da política de transferência de todos os gaseados, ligeiros ou graves, para o
escalão superior, mas também pode reflectir uma necessidade de escoar um elevado
número de doentes que se estivessem a acumular nas ambulâncias.
Por último o Capitão-Médico David Sarmento reconheceu que parte da falta de
dados estatísticos partiu da actuação dos serviços de saúde do CEP e que os médicos têm
a sua quota-parte de responsabilidade pela situação89. No entanto, há que reconhecer
que o Capitão-Médico Miliciano David Sarmento, terá sido a excepção e o único que
verdadeiramente lutou para que Portugal integrasse o meio científico aliado no âmbito
dos estudos sobre gases de guerra.
Quando em França, assumiu a responsabilidade de Adjunto dos Serviços de Saúde, a
5 de Junho de 1918, e ficou adstrito ao Hospital da Base n.º 1 (HB1), onde conseguiu
ser indigitado para o grupo britânico de estudo de gases de guerra, pelo General Garcia
Rosado, a 2 de Junho de 1918. A partir dessa data teve a maior colaboração do Estado-
86. David P. M. Sarmento, As Intoxicações..., p.20.
87. Rocha, em Gases Tóxicos: notas da guerra, refere o mesmo problema da falta de informação estatística,
nas também dá a pista de muitos dos diagnósticos de “Tuberculose” não o seja, mas sim casos de indivíduos
intoxicados por gases e mal diagnosticados.
88. idem, ibidem, p.22. No CEP a 30 de Junho de 1918, registavam-se 5.549 incapacitados: 4,277 incapazes
para o serviço militar, 321 incapazes para o serviço activo, 116 incapazes para o serviço no CEP e 835
homens foram transferidos para serviços auxiliares, sem existir qualquer indicação do número de gaseados.
89. idem, ibidem, p.24.

231
XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

Maior do CEP e do Director dos Serviços de Saúde do 1º Exército Britânico.


No âmbito do estudo dos gases de guerra efectuou duas diligências à frente de
combate, cada uma de 30 dias e a 9 de Outubro de 1918 foi enviado para o Mobile
Laboratory n.º 3 do 1º Army, tenho regressado ao HB1 a 4 de Novembro90. Aprofundou
ainda contactos com um vasto conjunto de médicos militares aliados, membros
correspondentes do Research Committee do Chemical Warefare Departement e conseguiu
tomar conhecimento dos desenvolvimentos em química e em medicina experimental
na procura de terapêuticas para os gaseados. Parte substancial do relatório percorre o
estudo dos agentes químicos e efeitos, sendo muito importante os dados que apresenta,
resultante do acompanhamento clínico de gaseados.
Terminada a Grande Guerra o Capitão-Médico David Sarmento retorna à sua
actividade de assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa, tendo o seu trabalho sido
reconhecido publicamente na Sessão do Senado, de 19 de Agosto de 1919.

“ Do pessoal de assistentes da Faculdade de Lisboa foram numerosos os que entraram


em serviço de guerra, junto dos campos de batalha ou nos hospitais dos aliados, como por
exemplo. Os Drs. Jorge Monjardino, Vasco Palmeirim, Alberto Gomes, Silva Martins, Castro
Freire, David Morais Sarmento e Pulido Valente...91”.

Conclusões

É patente que a guerra química implicou uma logística e treino especial, para a qual
o Exército Português não tinha experiência, fosse relativamente ao treino de tácticas
de defesa antigás de infantaria e de utilização de tácticas avançadas de artilharia, ou
preparação dos nos serviços de retaguarda, como os de saúde e sanitários. No entanto foi
notória a capacidade de adaptação que o Corpo Expedicionário Português demonstrou
durante o primeiro período de quatro a seis meses, em que recebeu treino e formação
sobre a guerra nas trincheiras e se preparou para os novos desafios que a guerra química
apresentava.
A introdução da Escola de Gás e das Escolas de Artilharia e de Morteiros colocaram
os militares portugueses em contacto com os conhecimentos necessários para o campo
de batalha. Nos Serviços Sanitários também se verificou a atribuição de novas tarefas
por forma a ser garantido os meios e o conhecimento necessário para a recuperação
dos espaços sujeitos a bombardeamentos, ou atingidos por nuvens de agentes químicos
tóxicos. Será sempre possível questionar o nível de operacionalidade dos serviços
sanitários, as não encontrámos referências a situações colectivas de intoxicação por
negligência dos mesmos.
90. PT-AHM/DIV/1/35A/1/05/1365 e David P. M. Sarmento, As Intoxicações..., p.4.
91. Arquivo Histórico Parlamentar, Diário do Senado, Sessão n.º 32, de 19 de Agosto de 1919, p.7.

232
Gases Tóxicos e o Corpo Expedicionário Português

Houve casos de intoxicação e envenenamento individual, cuja responsabilidade


poderá ser imputada ao desleixo individual no cumprimentos dos regulamentos, ou
instruções militares no âmbito da prevenção contra agentes químicos, mas em geral os
gaseamentos foram causados por ataques de surpresa e não por incapacidade de lidar
com a situação.
Quanto à questão da utilização de armas químicas por parte do CEP, ficou evidente
que não existiu uma atitude passiva, ou simplesmente defensiva ao longo da guerra, e que
o CEP utilizou armas químicas contra os alemães, tanto incendiárias como asfixiantes.

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XXVI COLÓQUIO DE HISTÓRIA MILITAR

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