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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

MACHADO DE ASSIS E O GÊNERO FANTÁSTICO:


UM ESTUDO DE NARRATIVAS MACHADIANAS

Darlan de Oliveira Gusmão Lula

Dissertação
de
Mestrado

2005
DARLAN DE OLIVEIRA GUSMÃO LULA

MACHADO DE ASSIS E O GÊNERO FANTÁSTICO:


UM ESTUDO DE NARRATIVAS MACHADIANAS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Universidade Federal de Juiz de Fora – MG, como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Teoria da Literatura, do Curso de Pós-
Graduação em Letras, Instituto de Ciências
Humanas e Letras, UFJF, sob orientação da
Professora Doutora Teresinha Vânia Zimbrão da
Silva.

Juiz de Fora
2005
Exame de dissertação

LULA, Darlan de Oliveira Gusmão. Machado de Assis e o gênero fantástico. Dissertação de

Mestrado em Letras (área de concentração: Teoria da Literatura), apresentada à Universidade

Federal de Juiz de Fora – UFJF, 2º semestre de 2005, 76 páginas.

BANCA EXAMINADORA

Professora Doutora Teresinha Vânia Zimbrão da Silva (Orientadora – UFJF – MG)

Professor Doutor Edimilson de Almeida Pereira (Presidente – UFJF – MG)

Professor Doutor Marcos Rogério Cordeiro Fernandes (Membro Titular – UFV – MG)

Examinada a dissertação:

Conceito:

Em:
A Míriam e Pedro Henrique, pelo amor, carinho,

e a vida que me proporcionam: repleta de luz.

Aos pais Geraldo e Neuseli, pelos

amores que renderam frutos.


AGRADECIMENTOS

A professora Teresinha Vânia Zimbrão da Silva, pelo diálogo enriquecedor e pela

compreensão em momentos difíceis.

Ao amigo Rogério Cordeiro, por onde tudo começou.

Aos amigos Édimo de Almeida e Odirlei Costa, cujo constante convívio e troca de idéias

reforçam a cada dia a amizade e o carinho sinceros.

Aos colegas e professores do Curso de Mestrado, pela convivência acadêmica e pelos

momentos enriquecedores de trocas de experiências.

Ao professor Antônio Pereira Gaio, sempre solícito e pronto a ajudar, o meu carinho especial.

A todas as pessoas que, direta ou indiretamente, colaboraram nessa caminhada.


Machado, bastante influenciado por Poe, é
um dos nomes maiores do conto fantástico
nas literaturas em língua portuguesa e
figura dentre os grandes nomes mundiais do
gênero.

Djalma Cavalcante

Crês em sonhos? Há pessoas que os aceitam


como a palavra do destino e da verdade.

Machado de Assis
em “Um sonho e outro sonho”
RESUMO

Esse trabalho busca estudar o gênero fantástico nas narrativas de Machado de

Assis (1839-1908), partindo do princípio de que o escritor conhecia o gênero quando

designou um texto seu intitulado “O país das quimeras” (Futuro, 1862) de “conto fantástico”.

Nosso trabalho também se inspira em um livro organizado por Raymundo Magalhães Júnior

cujo título é Contos fantásticos: Machado de Assis. Propomo-nos a analisar algumas

narrativas machadianas, sublinhando a originalidade do autor ao se apropriar do gênero.

Nossa pretensão maior é despertar o interesse dos estudiosos da obra de Machado de Assis

para a relevância de se estudar a ocorrência do fantástico em suas narrativas, relevância até

hoje pouco considerada.


ABSTRACT

This work looks for to analyze the fantastic genre in the Brazilian writer

Machado de Assis (1839-1908) narrative, by considering that he knew this literary genre

when he called one of his texts – “O país das quimeras” (in Futuro, 1862) – as a “fantastic

short story”. Our study is also based on a book, organized by Raymundo Magalhães Júnior,

named Contos Fantásticos: Machado de Assis (Fantastic short-stories: Machado de Assis).

Our proposal is to analyze some of the Assis’ narratives by emphasizing the originality of the

writer when he takes over the genre. Our main intention is to call the attention of the

researchers of the Machado de Assis’ works for the importance of the studies on the fantastic

ocurrence in his narratives, which researches are not so explored even nowadays.
SUMÁRIO

• INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 09

1. O GÊNERO FANTÁSTICO .................................................................................... 15

1.1 – O FANTÁSTICO TRADICIONAL ........................................................................ 17

1.2 – O FANTÁSTICO E A PSICANÁLISE .................................................................. 21

1.3 – O FANTÁSTICO MODERNO ............................................................................... 22

2. O FANTÁSTICO TRADICIONAL EM MACHADO DE ASSIS ........................ 25

2.1 - ANÁLISE DOS CONTOS: O FANTÁSTICO TRADICIONAL ............................ 28

2.1.1 – Decadência de dois grandes homens ............................................................... 29

2.1.2 – Sem olhos .......................................................................................................... 35

2.1.3 – O capitão Mendonça ........................................................................................ 43

2.1.4 – A vida eterna ..................................................................................................... 48

2.1.5 – O anjo das donzelas .......................................................................................... 54

2.2 – INTERSECÇÕES .................................................................................................... 60

3. O FANTÁSTICO MODERNO EM MACHADO DE ASSIS: MEMÓRIAS

PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

.................................................................................... 63

• CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 71

• REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 73


• INTRODUÇÃO

Aquela moça era o único laço que havia entre mim e o


mundo, porque tudo naquela casa me parecia realmente
fantástico, e eu já não duvidava do caráter purgatorial
que me fora indicado pelo capitão.
Machado de Assis
em “O capitão Mendonça”

Se voltarmos nossos olhos para os últimos quarenta anos do século XIX,

veremos uma figura preponderante no cenário cultural brasileiro: Machado de Assis (1839-

1908). Tido como unanimidade em sua época, revelou uma produção de grande valor e

suscitou estudos cujos interesses variados mostram a complexidade da sua obra.

À semelhança de vários críticos que se perfilaram em torno dos textos do bruxo

do Cosme Velho, estamos aqui, neste estudo, para propor mais uma análise que, esperamos,

auxiliará na recepção do já consagrado escritor brasileiro.

Um trabalho que nos inspirou na escolha da temática a ser estudada foi a

publicação pela Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora do 1º volume de Contos

Completos de Machado de Assis1, organizado por Djalma Cavalcante. Nesse volume,

figuram 38 contos do escritor que vão de 1858 a 1870. Dentre estes contos, interessou-nos em

particular o seguinte: “O país das quimeras”, publicado originalmente no jornal O Futuro em

1862. E interessou-nos por conta da classificação que lhe foi dada pelo próprio Machado de

Assis: a de “conto fantástico”. Djalma Cavalcante, ao final da narrativa, referenda a

classificação dada por Machado quando nos diz que o título já nos remete à idéia de

fantástico, pois a palavra “quimera” significa monstro fabuloso com cabeça de leão, corpo de

cabra e cauda de dragão; em sentido figurado significa “coisa impossível e só imaginada

1
Citaremos esta obra no texto, com a abreviatura CCMA, seguida do ano de publicação e da indicação da
página.
(CCMA, 2003, p. 58)”. Cavalcante nos lembra que a primeira obra brasileira dentro desse

modelo literário foram os contos de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo (Ver PIMENTEL,

2001). Também nos informa que Machado leu e apreciou esses contos, e que seu contato com

esse tipo de gênero não se restringiu aos escritores locais, sendo leitor também de Ernst-

Theodore-Amadeus Hoffmann (1776-1822) e Edgar Allan Poe (1809-1849). Cavalcante

chega a nos dizer que Machado de Assis “é um dos nomes maiores do conto fantástico nas

literaturas em língua portuguesa e figura dentre os grandes nomes mundiais do gênero (CCMA,

2003, p. 60)”.

Dar crédito a esta afirmação nos leva à indagação seguinte: como Machado de

Assis pode ser afirmado dentre os grandes nomes mundiais do gênero do conto fantástico sem

que se saiba haver um criterioso estudo sobre o assunto?

Ao pesquisarmos, descobrimos dois fios condutores para guiar o nosso estudo.

O primeiro deles é um livro organizado pelo crítico Raymundo Magalhães Júnior (1907-1981)

e originalmente publicado em 1973 e relançado pela editora Bloch em 1998 com o seguinte

título: Contos fantásticos: Machado de Assis. Ora, nada mais animador do que esta

antologia. Isso nos coloca na trilha certa, pois se há uma coletânea com esse título é sinal de

que não passou desapercebido, pelo menos para Magalhães Júnior, essa faceta da obra de

Machado de Assis. Nele estão organizados onze contos do escritor: “O anjo Rafael” (Jornal

das Famílias, 1869), “A vida eterna” (Jornal das Famílias, 1870), “O capitão Mendonça”

(Jornal das Famílias, 1870), “Decadência de dois grandes homens” (Jornal das Famílias,

1873), “Os óculos de Pedro Antão” (Jornal das Famílias, 1874), “A chinela turca” (A Época,

1875), “Um esqueleto” (Jornal das Famílias, 1875), “Sem olhos” (Jornal das Famílias,

1876), “A mulher pálida” (A Estação, 1881), “O imortal” (A Estação, 1882) e “A segunda

vida” (Gazeta Literária, 1884).


O segundo fio condutor, que nos coloca em definitivo na rota de nossa proposta

de estudo, é uma dissertação de mestrado escrita por Marcelo José Fonseca Fernandes,

defendida em novembro de 1999 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e intitulada

“Quase-macabro: o fantástico nos contos de Machado de Assis”. Nela, ele nos diz que há em

Machado “a ocorrência de um fantástico mitigado, diferenciado, quase sempre ambientado em

sonhos e, na maioria das vezes, explicável (FERNANDES, 2004

www.netterra.com.br/poieses/85/machadodeassis.htm)”2. Cita o livro organizado por Magalhães

Júnior, fala-nos da influência sofrida por Machado vinda dos grandes escritores desse gênero.

Além dos já citados, inclui Théophile Gautier (1811-1872), e ainda acrescenta quatro contos

aos já classificados como fantásticos por Magalhães Júnior. São eles: o já mencionado “O país

das quimeras” (O Futuro, 1862), “O anjo das donzelas” (Jornal das Famílias, 1864),

“Marianna” (Jornal das Famílias, 1871) e “Um sonho e outro sonho” (A Estação, 1892). Ao

longo de sua explanação, ele retoma Tzvetan Todorov que define o fantástico como o terreno

fronteiriço entre o estranho e o maravilhoso. Sublinhamos de Todorov a seguinte definição de

fantástico:

dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à


personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da
“realidade”, tal qual existe na opinião comum. [...] Se ele [leitor] decide que
as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos
descritos, dizemos que a obra se liga a outro gênero: o estranho. Se, ao
contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o
fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso
(TODOROV, 1975, pp. 47-48).3

Fernandes nos diz que o modelo proposto por Todorov em 1968 é passível de

verificação/aplicação em Machado, ressaltando que nos contos fantásticos machadianos o

fantástico é interrompido, quase sempre, pelo simples despertar do personagem. Nesse caso,

2
Essa dissertação teve como orientador o professor Doutor Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira e está disponível
na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3
Aprofundaremos a definição do gênero fantástico no capítulo primeiro.
os sucessos extraordinários (= extra-ordem, fora de ordem) estão justificados/explicados no

espaço onírico: o fantástico opera no plano inconsciente, exatamente na fresta crepuscular

entre a vigília e o sono. A retomada do equilíbrio inicial coincide com a própria retomada de

consciência.

Fernandes termina por fazer uma proposta de tipologia dos contos fantásticos

machadianos, traçando as semelhanças entre Machado de Assis e seus influenciadores,

principalmente o escritor francês Théophile Gautier. Fernandes acha conveniente a

denominação “conto gautieriano” para a modalidade de “fantástico onírico”, vertente usual

em Machado, e como “não-gautierianos” os demais. A característica comum às narrativas

não-gautierianas é a estrutura de “causo”, quer dizer, uma história dentro de outra, contada

por um narrador-personagem, que assume uma experiência inverossímil, quer como

testemunha, quer como protagonista. Já os contos do fantástico onírico são, segundo

Fernandes: “Decadência de dois grandes homens”, “A chinela turca”, “Capitão Mendonça”,

“A vida eterna”, “O anjo das donzelas”, “O país das quimeras”, “Marianna” e “Um sonho e

outro sonho”; e os contos não-gautierianos são: “Um esqueleto”, “O imortal”, “O anjo

Rafael”, “A mulher pálida”, “A segunda vida”, “Os óculos de Pedro Antão” e “Sem olhos”.

Há, ainda, um ponto importante a acrescentar. Em 2003, o escritor e

compositor Bráulio Tavares organizou um livro intitulado Páginas de sombra: contos

fantásticos brasileiros, onde estão inseridos dezesseis contos de dezesseis escritores

brasileiros, e Machado de Assis figura entre os escritores com o conto “As academias de

Sião” (1884). Apesar de Tavares hesitar em definir o conceito do gênero fantástico a ponto de

dizer que “não se deve esperar destas páginas sequer uma tentativa de estabelecer uma teoria

unificada do fantástico (TAVARES, 2003, p. 7)”, a referência torna-se importante, pois reconhece

Machado de Assis como um dos principais expoentes do fantástico no Brasil.


Assim sendo, citamos até o momento dezesseis contos fantásticos

machadianos. Dentre estes, encontramos facilmente “O imortal”, “A chinela turca”, “Um

esqueleto”, “A segunda vida”, Marianna” e “As academias de Sião”, por estarem inseridos na

Obra Completa de Machado de Assis da Editora Nova Aguilar. “O anjo Rafael”, “O capitão

Mendonça”, “A vida eterna”, “O país das quimeras” e “O anjo das donzelas” foram

encontrados no livro já citado, organizado por Djalma Cavalcante: Contos Completos de

Machado de Assis. “Os óculos de Pedro Antão” e “A mulher pálida” estão, respectivamente,

em Contos Avulsos e Contos sem data, livros organizados por Raymundo Magalhães Júnior.

Os três restantes “Decadência de dois grandes homens”, “Sem Olhos” e “Um sonho e outro

sonho” só encontramos disponibilizados para leitura pela internet (ver

www.uol.com.br/machadodeassis). Podemos notar o quão ainda é difícil o acesso irrestrito aos

contos machadianos, já que ainda não possuímos uma publicação que contemple plenamente,

através do meio impresso, toda a obra do nosso contista brasileiro.

Tendo em vista o desenvolvimento de nosso estudo, teremos a seguinte

conformação nos capítulos que se seguem.

No primeiro capítulo, faremos o estudo do fantástico convocando três figuras

reconhecidas no mundo literário pelos seus trabalhos críticos no gênero. Uma delas é Tzvetan

Todorov com seu estudo clássico sobre a recorrência do fantástico na literatura: Introdução à

literatura fantástica. As outras são Irlemar Chiampi e Selma Calasans Rodrigues, que

sublinham ter surgido no gênero fantástico uma nova variante a partir do século XX.

No segundo capítulo, veremos como no Brasil da segunda metade do século

XIX havia um clima propício para o desenvolvimento do gênero fantástico. E faremos a

análise dos seguintes contos de Machado de Assis: “O anjo das donzelas” (Jornal das

Famílias, 1864), “A vida eterna” (Jornal das Famílias, 1870), “O capitão Mendonça” (Jornal

das Famílias, 1870), “Decadência de dois grandes homens” (Jornal das Famílias, 1873) e
“Sem Olhos” (Jornal das Famílias, 1876). Resolvemos selecioná-los por serem textos da

chamada primeira fase machadiana (levando-se em conta a data de suas publicações)4, e,

portanto, há pouco envolvimento da crítica especializada em torno deles. A seleção também

privilegiou os contos cuja temática é o fantástico onírico, já que é a vertente mais comum em

Machado de Assis.

No terceiro e último capítulo vamos sugerir que Memórias Póstumas de Brás

Cubas5 (1881) pode ser interpretado dentro dos parâmetros do fantástico do século XX.

Resolvemos enquadrá-lo em nosso estudo para explicarmos, através de um texto da fase

madura machadiana, como o escritor se diferenciou do fantástico tradicional empregado no

século XIX, aproximando-se já do fantástico do século XX.

Tomando como ponto de partida a organização de Magalhães Júnior e as

afirmações de Marcelo Fernandes e Djalma Cavalcante, pretendemos discutir aqui questões

de influência e originalidade.

A nossa pretensão maior é fazer com que esse trabalho desperte o interesse dos

estudiosos da obra de Machado de Assis para o gênero fantástico nas narrativas machadianas,

sejam elas curtas ou não.

4
Há um certo consenso da crítica em apontar convencionalmente duas fases, ou momentos, na carreira literária
de Machado de Assis, sendo a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) a divisora de águas entre elas.
5
Citaremos esta obra no texto, com a abreviatura MPBC, seguida do seu respectivo capítulo.
1. O GÊNERO FANTÁSTICO

Podemos nos perguntar até que ponto uma definição de


gênero que permitisse a obra “mudar de gênero” por
uma simples frase como: “Neste momento, ele acordou e
viu as paredes de seu quarto...” se sustenta. Mas,
primeiro, nada nos impede considerar o fantástico
precisamente como um gênero sempre evanescente.
Tzvetan Todorov

Há, bem da verdade, uma variedade de opiniões acerca do nascimento do

gênero fantástico. Em consagrada antologia, Ítalo Calvino considera o seu nascimento entre

os séculos XVIII e XIX (ver RODRIGUES, 1988, p. 17 e CALVINO, 2004, p. 9):

É no terreno específico da especulação filosófica entre os séculos XVIII e


XIX que o conto fantástico nasce: seu tema é a relação entre a realidade do
mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção e a realidade do
mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda (CALVINO, 2004,
p. 9).

Isso quer dizer que o gênero fantástico leva expressivamente em conta as

relações entre literatura e realidade, ou seja, o fato de se questionar o caráter verossímil de

um episódio narrado em um texto fantástico é que faz com que o gênero se instaure, pois

provoca a dúvida do que é ou não real. Sendo assim, falaremos um pouco sobre como a arte

elabora o real. E para isso, vamos recorrer a dois filósofos da Antigüidade: Platão (427? –

347? a.C.) e Aristóteles (384 – 323 a.C.), que foram os primeiros a discutirem, a partir do

conceito de mimese, este assunto.

Para Platão, a mimese é apenas verossímil e não visa à essência das coisas,

nem à verdadeira natureza dos objetos particulares, ela é falsa e ilusória, sendo prejudicial e
perigosa ao discurso ideal do filósofo. “Portanto, a arte de imitar está bem longe da verdade,

e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena porção de cada

coisa, que não passa de uma aparição (PLATÃO, 2001, p. 296).” A mimese foi depreciada por

Platão que privilegiava a verdade e considerava as imagens miméticas como imitação da

imitação, já que elas imitavam a própria pessoa e o mundo do artista, os quais, por sua vez, já

eram imitação (sombra e miragem) da “verdadeira” realidade original. Dessa forma, “o

imitador [...] nada entende da realidade, mas só da aparência (PLATÃO, 2001, p. 300)”6.

Aristóteles, por sua vez, recebeu de Platão a palavra mimese. Refutou,

contudo, o conceito platônico, enaltecendo o valor da arte justamente pela autonomia do

processo mimético face à verdade preestabelecida. Imitar significa muito mais do que a

simples reprodução ou “fotografia” do real, já que “não é ofício de poeta narrar o que

aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível

segundo a verossimilhança e a necessidade (ARISTÓTELES, 1993, p. 53)”. De ontológica, a arte

passa a ter, com ele, uma concepção estética, não significando mais “imitação” do mundo

exterior, uma vez que a atitude de determinada personagem justifica-se à luz de um aparato

estético, ou seja, “ainda que a personagem a representar não seja coerente nas suas ações, é

necessário, todavia, que [no drama] ela seja incoerente coerentemente (ARISTÓTELES, 1993, p.

79)”. Desse modo, há o fornecimento de “possíveis” interpretações do real através de ações,

pensamentos e palavras de experiências existenciais imaginárias. A mimese afirma-se como a

representação do que “poderia ser” e o critério do verossímil, que merecera a crítica de Platão

por ser apenas ilusão da verdade, torna-se, com Aristóteles, o princípio que garante a

autonomia da arte mimética. Nesse caso, temos que a mimese consiste numa atividade

produtora de intrigas que transpõe ações e as representa nas obras artísticas. Esse caráter

dinâmico da operação mimética não se completa, porém, no término da produção do objeto

6
Para isso, ver livros III (páginas 84,86, 87) e X (páginas 293 a 300) de PLATÃO (2001).
estético pelo autor, mas necessita ainda da atividade também dinâmica do receptor, que,

através da leitura, refigura e avaliza o representado.

Esses ditames clássicos foram de certo modo abandonados pela Idade Média

cristã. No alvorecer das estéticas do Renascimento, dos séculos XVII e XVIII há a retomada

vigorosa do conceito de verossimilhança como ideal artístico.

Isso se estende até o século XIX quando o Romantismo libera o gênio criador

das restrições da poética clássica de modo geral, mas garante ainda o lugar da

verossimilhança.

1.1 – O FANTÁSTICO TRADICIONAL

O verdadeiro tema do conto fantástico oitocentista é a


realidade daquilo que se vê: acreditar ou não acreditar
nas aparições fantasmagóricas, perceber por trás da
aparência cotidiana um outro mundo, encantado ou
infernal.
Ítalo Calvino

Tendo em vista esse preâmbulo em torno de questões ligadas à

verossimilhança em textos literários, voltemos ao fantástico. Como a verossimilhança opera

no gênero, já que no fantástico o inverossímil se instala freqüentemente? Neste ponto, o que

mais nos interessa discutir são as fronteiras entre o sonho e a realidade, uma vez que o sonho

foi usado constantemente como explicação verossímil para experiências inverossímeis em

textos fantásticos e particularmente nos que vamos analisar. O que determina a fantasticidade

deste tipo de narrativa é exatamente a brecha deixada ao se inserir o questionamento: é ou

não sonho?
Lembremos que, segundo Todorov, o gênero fantástico antes parece se

localizar no limite de dois gêneros, o maravilhoso e o estranho, do que ser um gênero

autônomo.

De forma resumida, temos que no gênero maravilhoso:

os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem


nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os
acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria
natureza desses acontecimentos (TODOROV, 1975, p. 60).

Já nas obras que pertencem ao gênero estranho:

relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas


leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis,
extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta
razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que os
textos fantásticos nos tornaram familiar. [...] O estranho não é um gênero
bem delimitado [...]; mais precisamente, só é limitado por um lado, o do
fantástico; pelo outro, dissolve-se no campo geral da literatura (os romances
de Dostoievski, por exemplo, podem ser colocados na categoria do
estranho) (TODOROV, 1975, p. 53).

Em seu texto “O estranho” (1919), Freud se apropria de um conto fantástico

chamado “O homem da Areia” do escritor alemão E. T. A Hoffmann (conto classificado

também como fantástico por: CALVINO, 2004, p. 49) para tecer considerações psicanalíticas em

torno de questões que envolvem os seres humanos da vida real, os seus medos, as suas

repressões, os seus complexos. Em seu texto, Freud compara o estranho literário e o real:

O estranho, tal como é descrito na literatura, [...] é um ramo muito mais fértil do
que o estranho na vida real, pois contém a totalidade deste último e algo mais além
disso, algo que não pode ser encontrado na vida real (FREUD, [200-], 1 CD).

E continua:
Em primeiro lugar, muito daquilo que não é estranho em ficção sê-lo-ia se
acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais
meios de criar efeitos estranhos na ficção, do que na vida real (FREUD,
[200-], 1 CD).

É o que, de uma certa forma, Todorov estava querendo dizer quando comparou

o seu conceito de “estranho” com o de Freud: “não há coincidência perfeita entre este

emprego do termo e o nosso (TODOROV, 1975, p. 53)”, já que Freud o utiliza para fazer uma

análise psicanalítica de fatos que acontecem na vida real, e Todorov o descreve e o conceitua

no âmbito estrito da literatura. Porém, se pensarmos que o medo do desconhecido (monstros,

figuras demoníacas e etc.) é uma provação para o leitor de um texto fantástico, já que ele - o

leitor - é motivado pelo seu próprio desejo de preservar seus conhecimentos prévios da

realidade, veremos que o “sentimento do ‘Unheimliche’ (estranheza inquietante), que Freud

descreveu, aplica-se com justeza ao efeito de fantasticidade (CHIAMPI, 1980, p. 68)”, pois o

leitor teme o “não-familiar”, o novo, enquanto signos que ameaçam a sua ordem de valores já

estabelecida.

Ainda segundo Todorov, teríamos o gênero maravilhoso como o sobrenatural

aceito e o gênero estranho como o sobrenatural explicado. Então, se o gênero fantástico se

localiza no limite desses outros dois gêneros, ele ocorre na incerteza:

Ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num


gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV, 1975, p. 31).

O fantástico pode, portanto, se desvanecer a qualquer instante. Todorov

estabelece, então, alguns parâmetros para a sua consolidação. O primeiro é a hesitação.

Porém, quem hesita no fantástico? Segundo Todorov:


é ele [o personagem] quem, ao longo de toda a intriga, terá que escolher
entre duas interpretações. Mas se o leitor fosse alertado sobre a “verdade”,
se soubesse em que terreno está pisando, a situação seria completamente
diferente. O fantástico implica, pois, uma integração do leitor no mundo das
personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos
acontecimentos narrados. É necessário desde já esclarecer que, assim
falando, temos em vista não este ou aquele leitor particular, real, mas uma
“função” de leitor, implícita no texto. A percepção desse leitor implícito
está inscrita no texto com a mesma precisão com que o estão os
movimentos das personagens (TODOROV, 1975, p. 37).

O leitor implícito materializa o conjunto das preorientações que um texto

ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis. Designa uma

construção textual que antecipa a presença do receptor. O leitor implícito dará pistas ao leitor

real e poderá conduzi-lo a uma compreensão e interpretação adequadas da obra. Nesse caso,

o fantástico comporta inúmeras indicações a respeito do papel que o leitor irá representar,

pois esse gênero “produz um efeito particular sobre o leitor – medo, ou horror, ou

simplesmente curiosidade –, que os outros gêneros ou formas literárias não podem provocar

(TODOROV, 1975, p. 100)”. Será essa “função” de leitor que irá fazer com que se instaure a

percepção ambígua no texto, e a hesitação do leitor, um elemento necessário à concepção do

gênero fantástico.

Outro parâmetro importante do fantástico é a irreversibilidade do tempo de

leitura, ou seja, é necessário ler o texto do começo ao fim, sem pular a ordem. Não se está

querendo dizer aqui que com outros textos seja diferente, contudo o fantástico é um gênero

que acusa esta convenção mais claramente, uma vez que se precisa respeitar a ordem da

narrativa (que parte de uma situação perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural) para

gerar a hesitação necessária ao estabelecimento do gênero. Por isso que a primeira e a

segunda leitura de um conto fantástico dão impressões muito diferentes: na segunda leitura,

que se torna inevitavelmente metaleitura, “ressaltam-se os procedimentos do fantástico

(TODOROV, 1975, p. 98)”.


Um outro ponto a se considerar é o grupo de obras em que o efeito de

fantástico se produz somente durante parte da leitura, ou seja, somente antes de se receber

uma explicação para os fatos representados, e, quando se recebe, o fantástico desvanece. Pois

se considerarmos o fantástico como um gênero sempre evanescente, poderemos incluir este

grupo de obras como também pertencendo ao gênero fantástico, mas só se o fantástico, no

caso, for relevante de fato, como é o caso do fantástico onírico.

Relembremos a definição de Todorov:

no universo evocado pelo texto, produz-se um acontecimento – uma ação –


que depende do sobrenatural (ou do falso sobrenatural); por sua vez, este
provoca uma reação no leitor implícito (e geralmente no herói da história): é
esta reação que qualificamos de “hesitação”, e os textos que a fazem viver,
de fantásticos (TODOROV, 1975, p. 111).

É necessário lembrar, ainda, que os textos fantásticos proliferaram no século

XIX, principalmente em sua segunda metade, em um momento de Positivismo quando o

homem ambicionava explicações racionais para os supostos fatos sobrenaturais.

1.2 – O FANTÁSTICO E A PSICANÁLISE

A Psicanálise substituiu (e por isso mesmo tornou


inútil) a literatura fantástica.
Tzvetan Todorov

A literatura fantástica surgiu para introduzir certos temas caros à sociedade da

época que proibia a abordagem de determinados assuntos. Machado de Assis, por exemplo,

no conto “O anjo das donzelas” afirma decoroso: “Descanse leitor, não verá neste episódio

fantástico nada do que não se pode ver à luz pública. Eu também acato a família e respeito o

decoro (CCMA, 2003, p. 66)”. O respeito do escritor pelo decoro faz com que este apresente o
“indecoroso” sob as vestes decorosas do fantástico. A opção pela vestimenta fantástica evita

a condenação social.

Com o surgimento da Psicanálise, a literatura fantástica, nos moldes

tradicionais, torna-se obsoleta porque desde então não se tem mais necessidade de recorrer ao

diabo para falar de um desejo sexual excessivo, nem aos vampiros para designar atração

exercida pelos cadáveres, nem aos sonhos para descrever certas atitudes sociais condenáveis,

pois a Psicanálise provocou o levantamento da censura social que proibia abordar certos

temas. O escritor contemporâneo, nesse caso, não precisa mais da vestimenta fantástica, já

que agora a Psicanálise e a própria literatura passam a tratar disso tudo em termos

indisfarçados: os temas da literatura fantástica do século XIX são retomados pelas

investigações psicológicas do século XX.

A literatura fantástica tradicional “recebeu com isto um golpe fatal; mas desta

morte, deste suicídio nasceu uma nova literatura (TODOROV, 1975, p. 177)”: o fantástico

moderno.

1.3 – O FANTÁSTICO MODERNO

Resta-nos agora, para finalizar esta reflexão, fazer uma


comparação entre o fantástico tradicional e o moderno.
[...]
No fantástico tradicional há a apresentação de várias
alternativas: Sobrenatural ou delírio? Ou sonho?
No fantástico atual, não há reconstrução; nenhuma
explicação é dada ao acontecimento estranho,
permanecendo na total ambigüidade.
Selma Calasans Rodrigues

Se abordarmos a narrativa fantástica moderna com as categorias anteriormente

elaboradas, veremos que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas tradicionais.

Comentamos que estas partiam de uma situação perfeitamente natural para alcançar o
sobrenatural. Já a narrativa fantástica moderna parte do acontecimento sobrenatural para dar-

lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural; e o final da história é o mais

distante possível do sobrenatural. O acontecimento sobrenatural até se apresenta, porém as

sucintas indicações de uma hesitação se afogam no movimento geral da narrativa, onde o

mais surpreendente é precisamente a ausência de surpresa diante do acontecido. Qualquer

hesitação torna-se de imediato inútil no fantástico moderno. No tradicional, ela servia para

preparar a percepção do acontecimento inaudito, caracterizava a passagem do natural ao

sobrenatural. Aqui é um movimento contrário que se acha descrito: o da adaptação, e

caracteriza a passagem do sobrenatural ao natural. Hesitação e adaptação designam dois

processos simétricos e inversos. No entanto, temos de deixar claro o seguinte: não se pode

dizer que diante dessa “nova” narrativa, pelo fato da ausência de hesitação, até mesmo de

espanto, e da presença de elementos sobrenaturais, nos encontramos num outro gênero

conhecido: o maravilhoso. Pelo contrário, o maravilhoso implica que estejamos mergulhados

num mundo de leis totalmente diferentes das que existem no nosso; por este fato, os

acontecimentos sobrenaturais que se produzem não são absolutamente inquietantes. Já na

narrativa fantástica moderna, trata-se realmente de um acontecimento chocante, impossível;

mas que acaba por se tornar paradoxalmente admissível. Neste sentido, a narrativa fantástica

moderna, assim como a tradicional, depende ao mesmo tempo do maravilhoso e do estranho,

é a coincidência de dois gêneros, aparentemente, incompatíveis.

Vejamos como, segundo Irlemar Chiampi, o fantástico do século XX e o

tradicional se diferenciam entre si:

Os traços básicos desse momento de renovação [...]: a dúvida racional se


dissolve, a emoção do medo não é significada mais pelo discurso, o insólito
se generaliza, o relato descentraliza o enigma do acontecimento, bem como
a bifurcação antinômica das probabilidades externas da explicação do
“fantasma” (CHIAMPI, 1980, p. 70).
Não se deve esquecer, também, que as literaturas fantásticas tradicional e

moderna floresceram em meios diversos e tiveram motivações diferenciadas. Enquanto a

primeira nasceu para dar conta de certos temas que seriam proibidos se não fossem

deslocados para o gênero fantástico, a segunda se situa no contexto após o surgimento da

Psicanálise, fato que fez com que as narrativas desse gênero tomassem um novo caminho

ficcional, assim como nos conta Selma Calasans Rodrigues: “no fantástico atual, não há

reconstrução; nenhuma explicação é dada ao acontecimento estranho (RODRIGUES, 1988, p.

49)”. As motivações usadas na narrativa tradicional não são mais capazes de provocar a

hesitação no leitor, já que as referências que deram impulso à fantasia da narrativa fantástica

tradicional “são atualmente incapazes de provocar emoções no leitor (CHIAMPI, 1980, p. 70)”.

Lembremos que o assunto aqui tratado não se esgota com essas considerações,

até porque é um assunto polêmico. O recorte operado privilegia o que interessa para o nosso

estudo.
2. O FANTÁSTICO TRADICIONAL EM MACHADO DE ASSIS

Apenas vimos sobre uma mesa um cachimbo alemão,


que necessariamente devia ter pertencido ao cavaleiro
Teodoro Hoffmann, pois a sua forma era de todo
fantástica.
Machado de Assis
em “Os óculos de Pedro Antão”

Machado de Assis nasceu na primeira metade do século XIX. Esse momento

foi precedido pelas mudanças sócio-econômico-culturais levadas a efeito com a vinda da

Corte de D. João VI para o Rio de Janeiro. Nos anos que se seguiram ao seu nascimento,

estamos diante de um Brasil norteado pelos padrões culturais da Europa, especialmente

França e Portugal. É certo que a partir de então nota-se a acentuada tendência para se

“abrasileirar” a linguagem e os temas, mas também é verdade que os pontos de referência

ainda são europeus: livramo-nos do servilismo à metrópole portuguesa para nos colocarmos

sob a tutela cultural da França.

Ao longo deste século, podemos notar uma grande agitação de idéias: nas

ciências, houve avanços consideráveis; na arte, assuntos diversos fervilhavam pelo mundo;

não houve lugar que a curiosidade humana não fizesse pretexto de estudos ou de divagações.

E, a partir da segunda metade do século, tudo foi tomado com um ceticismo estrondoso, todas

as contestações tomaram caráter científico. Nas mentes geniais borbulharam idéias empiristas,

soberanamente objetivas e racionais. Desencadearam-se os princípios naturalistas de Charles

Darwin com a Origem das espécies (1860) que forneceu ao mundo científico a explicação
evolucionista dos seres vivos, juntamente com Spencer que também “deu o golpe de

misericórdia na idéia antropocêntrica da existência e da História como produtos da liberdade

humana. (MERQUIOR, 1977, p. 103)”. Deu-se, também, a consagração e a influência filosófica de

Auguste Comte (1798-1857) com o seu Curso de Filosofia Positiva (1830).

O Brasil, como outros países, passa a dar muito valor à Ciência. Quase todas as

manifestações culturais e políticas querem abocanhar um naco da filosofia positiva que faz a

apologia da Ciência e refuta a Teologia, porque esta última é baseada na fé, não resiste ao

crivo científico. Interessa ao Positivismo os fatos, concretos, “positivos”, suscetíveis de

análise e experimentação, de forma que, com base no bom senso, se procure saber, não o

“porquê”, ou o “quê”, ou “para quê”, mas o “como” dos fenômenos reais.

O Positivismo cria um ambiente de racionalidade propício para o surgimento

dos raros exemplos do gênero fantástico no Brasil. Notemos que até então o clima no Brasil

era de intenso misticismo, já que, além do catolicismo, religião oficial, possuíamos tradições

religiosas trazidas pelos negros africanos e as “magias” oriundas dos nativos com seus pajens

e suas poções curativas, fazendo com que tudo isso nos tornasse um povo de religiosidade

sincrética. É necessário lembrar que esse não era um fenômeno recente no Brasil, assim como

nos diz Roger Bastide:

No Brasil o sincretismo é um fenômeno antigo, pois desde o início da


colonização já o encontramos no quilombo dos Palmares, tanto nos gestos
ou ritos (o sinal da cruz, o recitativo de certas orações) como na união por
semelhança dos deuses africanos e dos santos (encontram-se imagens
católicas nos templos quilombos) (BASTIDE, 1959, p. 107).

A situação brasileira, nesse sentido, torna-se peculiar quando consideramos

que os europeus tendem a ser mais racionais que os países ibero-americanos. Segundo

Richard Morse:
o mundo ibérico rejeitou as implicações últimas das revoluções religiosa e
científica e, portanto, não pode experimentar plenamente seus resultados
lógicos na forma do utilitarismo e seu subordinado individualismo, que
estão implantados como marca-passos na mente coletiva do resto do
Ocidente (MORSE, 1988, p. 134).

Então, quando falamos em gênero fantástico, devemos ter em mente que um

escritor e/ou leitor europeus talvez perceba o gênero de maneira diversa de um escritor e/ou

leitor ibero-americanos, pois, assim como nos diz o próprio Morse:

As [sociedades] da Ibero-América são sociedades onde, em lugar do casual


“How are you doing?”, com a suposição do verbo fazer de interlocutor
autodeterminante e socialmente isolado, ainda se escuta o solícito “Como
tem passado a família?”, que significa: você tem consolo e apoio afetivo
num mundo ilógico de perigos ocultos (MORSE, 1988, p. 134)?

Dessa forma, recordemos o que o Todorov nos disse: que o fantástico é a

hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, em face de um

acontecimento aparentemente sobrenatural. Ora, o fato é que um europeu, integrado a um

ambiente racional, provavelmente verá com muito mais hesitação, chegando às raias da

descrença total, um fato sobrenatural, enquanto que um ibero-americano, diante de um

acontecimento sobrenatural, sofrerá um certo abalo, porém, possivelmente, logo em seguida o

enquadrará em seu mundo receptivo a fenômenos transcendentes. Assim, talvez possamos

dizer que os europeus tenderão para os gêneros estranho e fantástico, enquanto que os ibero-

americanos para os gêneros fantástico e maravilhoso.7

No Brasil do século XIX, o princípio positivista da análise concreta da

realidade propiciava o clima de hesitação, que não existiria se nos deixássemos levar pela

7
Diante desse quadro, tentamos enxergar essa análise sob um viés de caráter histórico, pois, à época
machadiana, o Brasil ainda não possuía uma educação regimentar, havendo um contrapeso cultural devido ao
fato do país ter uma enorme porcentagem de analfabetos (ver GUIMARÃES, 2004, p. 103). Dessa forma, não
tentamos, através do estudo de um brasilianista, estabelecer um traço reducionista que vê os ibero-americanos
como menos racionais, emotivos, enquanto que os europeus são mais racionais, menos emotivos. As relações por
nós estabelecidas levaram em conta o caráter histórico-cultural, tendo como circunstância causal o estudo do
gênero fantástico.
religiosidade impregnada de fé e receptiva ao sobrenatural. O peso do Positivismo, então,

contribuiu para gerar o leitor do gênero fantástico.

Diante do que já foi dito, analisaremos os contos mencionados à luz do gênero

fantástico tradicional, no entanto, ao final de nossas considerações, recorreremos às

Memórias Póstumas de Brás Cubas para defendermos que Machado aproximou-se das

concepções do fantástico moderno nesse seu primeiro romance da segunda fase.

2.1 - ANÁLISE DOS CONTOS: O FANTÁSTICO TRADICIONAL

A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas;


um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da
narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do
Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como
disse, era escura; o mar batia funebremente na praia.
Estava-se em pleno Hoffmann.
Machado de Assis
em “Um esqueleto”

Os contos aqui analisados foram todos publicados no Jornal das Famílias e

estão situados entre os anos de 1864 e 1876. Isso quer dizer que eles compreendem a primeira

fase da obra machadiana. O Jornal das Famílias foi uma publicação mensal, ilustrada,

recreativa e literária que circulou entre 1863 e 1878, e era destinada fundamentalmente ao

público feminino. Sabemos que, à época vivida, as mulheres não tinham uma formação

acadêmica, liam mais como forma de entretenimento, de recreação. Machado de Assis sabia

qual era o seu público-alvo nesse periódico, desenvolvia assim histórias palatáveis às suas

leitoras. Lançava a sua “mercadoria” de acordo com a demanda. Roberto Schwarz analisa

bem essa situação quando diz:

na ambiência imaginária originada pela imprensa e intensificada no


folhetim, o público era induzido a se comportar como consumidor na escala
do planeta. E o folhetinista, explorando como atrativos a variedade, a
novidade, a vivacidade, o preço, o exclusivismo etc., transpunha para a
técnica da prosa os mandamentos práticos da mercadoria (SCHWARZ,
2000, p. 231).

Machado soube explorar muito bem esses atrativos. Não é à toa que a sua

produção no Jornal das Famílias ao longo dos quinze anos de existência se deu em larga

escala, publicando no periódico 85 contos (ver CCMA, 2003, t. I). Nesse sentido, a utilização do

gênero fantástico em contos publicados no Jornal das Famílias se justifica na medida em que

sabemos que esse tipo de narrativa lança mão de elementos sobrenaturais como recurso para

falar de certos temas tabus e ao mesmo tempo evitar a condenação da sociedade, e,

principalmente, das famílias das respectivas leitoras do periódico. Machado de Assis utilizava

esse recurso para descrever coisas que não teria ousado mencionar em termos realistas. O

fantástico lhe franqueava certos limites então inacessíveis.

2.1.1 – Decadência de dois grandes homens

Dentre os inúmeros contos de Machado de Assis, “Decadência de dois grandes

homens” não figura entre os mais citados pela crítica especializada. Foi originalmente

publicado no Jornal das Famílias em 1873.

Uma peculiaridade a seu respeito é a dificuldade em ser encontrado. Fizemos

uma pesquisa criteriosa nos inúmeros livros de antologias de contos, incluindo nesse filão as

Obras Completas do autor, e não nos deparamos com esse conto. Somente o encontramos

para leitura na internet (ver em www.uol.com.br/machadodeassis).

Trata-se de uma narração em 1ª pessoa. O narrador-personagem, de nome

Miranda, viera ao Rio de Janeiro de passagem para tratar de questões políticas com os

ministros. Nesse meio tempo, a sua curiosidade se atiçou por um velho que freqüentava há
quatro anos um mesmo ponto, o Café Carceller. Segundo Miranda, o velho, cujo nome era

Jaime, era um original entre tantas cópias. Daí para começar a travar uma conversa amigável

com o senhor foi uma questão de tempo.

Logo no início do texto, o narrador caracterizou o personagem Jaime como

uma figura misteriosa e assustadora: “Era ele homem de seus cinqüenta anos, barbas brancas,

olhos encovados, cor amarela, algum abdome, mãos ossudas e compridas [...] A expressão

dos olhos, que de ordinário era morta e triste, nessa ocasião tinha um quê de terror (ASSIS,

2004, www.uol.com.br/machadodeassis)”. A partir daí, vão-se avolumando expressões como “voz

cavernosa” e frases enigmáticas como: “Obrigado; eu só fumo dos meus; são charutos

opiados, grande recurso para quem quer esquecer um grande crime (ASSIS, 2004,

www.uol.com.br/machadodeassis)”. A incredulidade inicial do narrador-personagem foi cedendo e

ele começou a aceitar as esquisitices do seu novo amigo como características de um doido.

Machado ainda inclui no conto um “enorme gato preto”, figura recorrente em narrativas

fantásticas, que é visto no texto como o imperador romano Caio Júlio César, que voltou à

Terra para se vingar de seu assassino Marco Bruto, personificado na figura de Jaime, assunto

que trataremos mais adiante. Para percebermos a importância desse animal no gênero,

tomemos, por exemplo, o conto de Edgar Alan Poe intitulado “O gato preto”, e vejamos como

o gato comparece associado ao extraordinário:

[O gato] era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de


espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que,
no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes
alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras
disfarçadas (POE, 1978, p. 42).

Ou seja, os gatos são tidos como seres misteriosos, enigmáticos, feiticeiros.

Junta-se a isso a cor preta, que simboliza a sombra, a escuridão, a falta de visibilidade diante

do acontecido, e se consegue um cruzamento perfeito para as manifestações fantásticas. E


tanto em “Decadência de dois grandes homens” quanto em “O gato preto” temos a figura do

gato como um personagem que modifica a história, representando um elo forte entre os

acontecimentos narrados e os outros personagens presentes. No texto de Poe, o narrador-

personagem nos conta que ele e sua mulher adoravam animais, e que ele tinha, entre tantos,

um gato “extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade (POE, 1978,

p. 42)” cujo nome era Pluto. Com o passar do tempo, o narrador-personagem, que tinha como

vício o álcool a lhe turvar as idéias, começou a se enervar com os carinhos e carícias do seu

animal, e, tomado por uma súbita perversidade mais do que diabólica, um dia arrancou-lhe a

órbita do olho. Posteriormente, ele passou a se irritar com o terror do gato ao sentir sua

presença e tomou uma atitude: enforcou-o. Após o acontecido, uma fatalidade aconteceu em

sua casa. Esta pegou fogo e junto foram-lhe embora chamuscados pelas chamas todos os seus

pertences. Só sobrou uma parede, e gravada em baixo-relevo sobre sua superfície branca, a

figura de um gato gigantesco. O personagem ficou aterrado com aquilo, embrenhou-se mais

ainda em sua orgia alcoólica, decidindo entrementes adquirir um gato com as mesmas

características do outro animal. Acabou por conseguir, mas isso lhe causou profundo pavor,

mesmo porque o gato possuía, também como o outro, uma órbita do olho vazia e uma

mancha branca a lhe cobrir todo o peito: mancha esta que criava uma imagem: a da forca. Um

dia, não agüentando mais a figura do animal, o personagem decidiu matá-lo, porém a sua

mulher evitou e ele a matou ao invés do gato com uma machadada no cérebro. Impassível

diante do assassinato, contudo aliviado pelo sumiço do gato, ele escondeu o corpo da mulher

atrás das paredes do porão de sua casa. Algum tempo depois, apareceram alguns policiais e

ele só foi descoberto porque o gato miou por trás das paredes, mostrando a eles onde o

personagem havia escondido o corpo da esposa, pois ele, sem perceber, havia emparedado o

gato junto a ela.


Este pequeno resumo aponta para certas semelhanças entre este texto e o de

Machado de Assis. Há a figura recorrente do gato; há, também, a descrição de fatos insólitos,

algo misterioso rondando os personagens e o ambiente. Contudo, há diferenças. No conto de

Machado, como veremos, está claro o caráter onírico, em Poe o narrador apresenta o

contrário:

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária


e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se
esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se
negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não
sonho (POE, 1978, p. 41).

Ele aceita a sua história como sendo um fato. Embora seja algo extraordinário,

ambienta-se singularmente na realidade que nos cerca, ou seja, o fato é aceito como tal e visto

como algo ocorrido, mas que não se explica, pois os “próprios sentidos se negam a aceitar

(POE, 1978, p. 41)”.

Em contrapartida, em Machado de Assis o caráter onírico dará ao texto um ar

inquietante, uma atmosfera misteriosa e um tanto quanto extraordinária. Tudo principiou

quando Miranda observava em uma das estantes de Jaime um livro que tinha no lombo o

título: Metempsicose. E fez a seguinte pergunta ao velho: “Acredita na metempsicose?” O

velho disse que sim e Miranda disse a ele que um senhor tão instruído não deveria acreditar

em “tolices desta ordem”. Ao que o senhor retorquiu:

Não zombe assim da verdade; nem zombe nunca de filosofia nenhuma.


Toda a filosofia pode ser verdadeira; a ignorância dos homens é que faz de
uma ou de outra crença da moda. Contudo para mim, que as conheci todas,
só uma é a verdadeira, e é essa a que alude o senhor com tanto desdém
(ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis).
Na definição dicionarizada, metempsicose significa uma “doutrina segundo a

qual uma mesma alma pode animar sucessivamente corpos diversos, homens, animais ou

vegetais; transmigração (COSTA, 1979)”. Nesse momento da narrativa, Miranda representa a

racionalidade e o Positivismo reinantes no século XIX, enquanto Jaime está mais aberto e

afeito aos fenômenos sobrenaturais e inexplicáveis, tentando convencer o seu patrício da sua

teoria. No entanto, àquele momento, Miranda não ousava contestar-lhe e o considerava

evidentemente um doido. As impressões aumentaram ainda mais quando o velho disse ser

Marco Bruto, o irmão adotivo do imperador romano Caio Júlio César, enquanto este estava

transmigrado na figura do gato aguardando a vingança suprema. E ela viria nos idos de março

de algum próximo ano, quando Bruto se transformaria em um rato e seria perseguido e

comido pelo gato Júlio. Miranda começa a entender a inquietação do velho, pois estavam nos

idos de março e Jaime achava que à meia-noite daquele dia fatídico ele viraria o banquete

para o seu gato. E, tentando explicar a sua atitude no passado, ele disse ao seu ouvinte: “eu

matei César, não por ódio a César, mas por amor da República (ASSIS, 2004,

www.uol.com.br/machadodeassis)”. Tentou, também, argumentar e conduzir o seu interlocutor para

a sua doutrina:

Ouça, mancebo; o senhor é filho de um século sem fé nem filosofia; não


conhece o que é a cólera dos deuses. Também eu nasci neste século; mas
trouxe comigo as virtudes da minha primeira aparição na terra: corpo de
Jaime, alma de Bruto (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis).

Nesse momento, Miranda já não sabia mais como chamar o seu novo amigo:

“Jaime ou Bruto, que eu realmente não sei como lhe chame (ASSIS, 2004,

www.uol.com.br/machadodeassis)”. Há aí uma certa hesitação por parte de Miranda diante dos

fenômenos narrados: quando chama o outro de Jaime a sua descrença permanece firme,

incólume, a razão está arraigada em seu ser, mas ao mesmo tempo chama-o de Bruto,
admitindo algo além das fronteiras do imanente e do previsível olhar. Não se pode dizer que

se instaurou permanentemente esta dúvida, todavia é o suficiente para formar um certo clima

extraordinário, algo delirantemente fantástico, mesmo que posteriores explicações nos digam

que o ocorrido foi um delírio imaginativo do personagem. E o Miranda começou a se

convencer por instantes dos fenômenos descritos por Jaime, até porque, como ele mesmo nos

disse, Jaime “conversava com muito juízo” e “tinha a palavra fácil, ardente, impetuosa”.

Convenceu-se tão firmemente que chegou a ver o seu novo amigo Jaime, ou, melhor dizendo,

Bruto ser transformado em rato:

O meu anfitrião, sentado na cadeira de couro, olhava para mim, abrindo dois
grandes olhos e eis que estes começam a crescer lentamente, e já ao fim de
alguns minutos pareciam no tamanho e na cor as lanternas dos bondes de
Botafogo. Depois, começaram a diminuir até ficarem muito abaixo do
tamanho natural. A cara foi-se-lhe alongando e tomando proporções de
focinho; caíram as barbas; achatou-se o nariz; diminuiu o corpo, assim como
as mãos; as roupas desapareceram; as carnes tomaram uma cor escura; saiu-
lhe uma extensa cauda, e eis o ilustre Bruto, a saltar sobre a mesa, com as
formas e as visagens de um rato (ASSIS, 2004,
www.uol.com.br/machadodeassis).

Viu, também, o gato ir ao encalço do rato e, de tanto correrem, o rato deixar-se

cair arquejante e o gato pondo-lhe a pata em cima. E com horror ele observou o corpo do

nobre Bruto passar todo ao estômago do divino César. Porém o gato não sobreviveu à

vingança: comeu o rato, caiu trêmulo, miou alguns minutos e faleceu. Daí deu-se uma

verdadeira epopéia delirante do personagem, digna de ser vista como prelúdio do que viria a

ser mais tarde o famoso capítulo “O delírio”, de Memórias Póstumas de Brás Cubas,

considerando, é claro, as singularidades de cada narrativa. Mas vamos ao fantástico delírio de

Miranda:

De repente, duas luzes surgiram dos restos miserandos daquele par da


Antigüidade; duas luzes azuis, que subiram lentamente até o teto; o teto
abriu-se e eu vi distintamente o firmamento estrelado. As luzes subiram no
espaço.
Força desconhecida me levantou também do sofá, e eu acompanhei as luzes
até meio caminho. Depois seguiram elas, e eu fiquei no espaço,
contemplando a cidade iluminada, tranqüila e silenciosa. Fui transportado ao
oceano, onde vi uma concha à minha espera, uma verdadeira concha
mitológica. Entrei nela e comecei a andar na direção do oeste.
Prossegui esta amável peregrinação de um modo verdadeiramente mágico.
De repente senti que o meu nariz crescia desmesuradamente; admirei o
sucesso, mas uma voz secreta me dizia que os narizes são sujeitos a
transformações inopinadas – razão pela qual não me admirei quando o meu
apêndice nasal assumiu sucessivamente a figura de um chapéu, de um
revólver e de uma jabuticaba. Voltei à cidade; e entrei nas ruas espantado,
porque as casas me pareciam todas voltadas com os alicerces para cima,
coisa sumamente contrária à lei das casas, que devem ter os alicerces
embaixo. Todos me apertavam a mão e perguntavam se eu conhecia a ilha
das chuvas, e como eu respondesse que não, fui levado à dita ilha que era a
Praça da Constituição e mais o seu jardim pomposamente iluminado.
Nesta preocupação andei até que fui levado outra vez à casa onde se passara
a tragédia referida acima. A sala estava só; nem vestígio dos dois homens
ilustres (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis).

Até este momento, o nosso personagem Miranda acreditava que tudo o que se

passara na sala de Jaime era verdade, tanto que, quando no dia seguinte avista o velho no

mesmo lugar de sempre, ele pensou o seguinte: “Qual não foi o meu espanto quando lá

encontrei vivo e são aquele que eu supunha na eternidade (ASSIS, 2004,

www.uol.com.br/machadodeassis)?” E descobre, pelas palavras de Jaime, que ele havia dormido e

provavelmente sonhado pelos efeitos provocados pelo charuto opiado que fumara.

Apesar de ter havido um final esclarecedor, que desvanece os meandros do

gênero fantástico explicando-o através das manifestações oníricas do personagem, não

devemos nos esquecer do que foi dito em capítulo anterior: apesar da explicação final, o efeito

do fantástico se produziu em boa parte da leitura do conto. Sendo um gênero evanescente, a

relevância do fantástico em “Decadência de dois grandes homens” é explícita já que Machado

utiliza em larga escala recursos do gênero como o caráter insólito, o mistério, o recurso da

hesitação do personagem e do leitor, a temática da loucura e a explicação final através das

visões oníricas.

2.1.2 – Sem olhos


O conto “Sem olhos” de Machado de Assis foi publicado originalmente no

Jornal das Famílias em 1876 e é pouco conhecido entre os leitores e críticos do escritor,

talvez pela dificuldade de ser encontrado, estando disponível somente pela internet.

O texto possui como cenário inicial a casa do casal Vasconcelos, que recebe

quatro visitas para uma conversa íntima regada a chás e alguns charutos. São elas as figuras

do sr. Bento Soares, sua esposa D. Maria do Céu, o bacharel Antunes e o desembargador

Cruz. Tratam de assuntos amenos, quando a conversa envereda para temas como a morte de

um conhecido, almas do outro mundo, contos de bruxas, lobisomem e superstições dos índios.

Nesse momento da conversa, há uma cisão no grupo, já que o sr. Bento Soares não dá crédito,

segundo ele, a essas “tolices”; enquanto que o desembargador Cruz acredita em manifestações

sobrenaturais. Isso acaba gerando uma discussão entre os presentes, pois a maioria acredita

que tudo isso não passa de mera especulação imaginativa. Assim temos o sr. Bento Soares:

Pela minha parte, disse o sr. Bento Soares, nunca pude compreender como o
espírito humano pôde inventar tanta tolice e crer no invento. Vá que uma ou
outra criança dê crédito às suas próprias ilusões; para isso mesmo é que são
crianças. Mas, que um homem feito... (ASSIS, 2004,
www.uol.com.br/machadodeassis)

Nesse episódio, ele diz claramente que é infantil acreditar em coisas

sobrenaturais. Ao que o desembargador Cruz retruca: “- Que tem isso? [...] A vida do homem

é uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras (ASSIS, 2004,

www.uol.com.br/machadodeassis)”.

O sr. Bento Soares diz que o desembargador mofa da razão ao acreditar em

almas de outro mundo, enquanto este diz que a existência de fantasmas não é coisa que

absolutamente se pode negar. Temos aí dois modos de ver o mundo: um está impregnado
pelas sujeições ao conhecimento empírico e às leis naturais; enquanto o outro vivencia o lado

misterioso, supersticioso e sobrenatural dos fenômenos, chegando a afiançar a sua realidade.

E não é somente Bento Soares que considera simplória e inculta essa crença

em fantasmas. Maria do Céu diz: “Fantasmas! [...] Pois há quem tenha visto fantasmas?”,

enquanto Vasconcelos observa: “É o desembargador quem o diz”. Já o bacharel diz que o

desembargador deve estar querendo dizer que esses fenômenos extraordinários acontecem “na

imaginação”. Porém o nosso desembargador afiança: “- Na realidade”. E a descrença se opera

quando os ouvintes dão risadas do dito e Maria faz um gesto de desdém.

Nesse momento, o desembargador afirma que, se eles tivessem vivenciado o

que ele vivenciou, a opinião de todos seria diferente. Isso lhes atiça a curiosidade e todos

pedem para que ele conte o ocorrido. Assim, resolve contar-lhes:

O que eu vi foi há muitos anos, disse ele; ainda assim conservo a memória
fresca do que me aconteceu. Não sei se poderia ir até o fim; e desde já estou
certo de que vou passar uma triste noite... (ASSIS, 2004,
www.uol.com.br/machadodeassis)

O começo de sua história não poderia ser mais enigmático. Ele revela um certo

receio de contar o que se passou, como se, ao contar, os fatos presenciados pudessem retornar

em sua forma física e palpável, dando a impressão ao leitor de algo verdadeiramente

assustador. O desembargador conta, então, aos presentes que, enquanto estudante em São

Paulo, conhecera uma figura chamada Damasceno Rodrigues, seu vizinho. Eis como

Damasceno é descrito:

Mas o que ele [Damasceno Rodrigues] tinha naquele lugar das pernas eram
dois verdadeiros pregos, tão magro estava. A cara angulosa e descarnada, os
olhos cavos, o cabelo hirsuto, as mãos peludas e rugosas, tudo fazia dele um
personagem fantástico. [...] O riso de Damasceno era pior que a seriedade;
sério, dava ares de caveira; rindo, havia nele um gesto diabólico (ASSIS,
2004, www.uol.com.br/machadodeassis).
Todas as descrições do personagem Damasceno perpetram um ar sombrio,

verdadeiramente fantástico. A ocasião singular do primeiro encontro entre o ainda estudante

Cruz e o Damasceno fez o jovem Cruz atinar com a idéia de que seu vizinho seria um doido.

Não nos escapa, nesse momento, a semelhança existente entre “Decadência de

dois grandes homens” e essa narrativa, pois, assim como Miranda acreditava ser Jaime um

doido, também Cruz acreditava que Damasceno o fosse: “A idéia de que o vizinho era doido

apoderou-se logo de meu espírito. Que outra coisa seria, vindo consultar a semelhante hora, a

um vizinho de três dias, sobre um texto de Jonas (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis)?”

Porém a certeza de Cruz se dissipou diante das palavras convictas de Damasceno sobre Jonas:

- Jonas não alude às crianças, mas aos canhotos que são os homens que não
podem discernir a direita da esquerda. Sendo assim, veja o senhor a
importância da minha interpretação. Duas coisas se concluem dela: 1ª que os
ninivitas eram geralmente canhotos; 2ª que o ser canhoto era no entender
dos hebreus um grande mérito. Desta última conclusão nasceu uma terceira,
a saber, que chamar canhoto ao diabo é estar fora do espírito bíblico. Isto é
claro como a água e evidente como a luz.
A profunda convicção com que ele disse tudo isto, e o ar de triunfo com que
ficou a olhar para mim, confesso que me impressionaram singularmente.
Não sabia que dizer; o melhor era concordar, declarando que a sua opinião
era por força verdadeira (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis).

A figura do vizinho misterioso, com o seu convicto modo de “conversar e

atrair” fizeram com que Cruz duvidasse da loucura de Damasceno, instaurando-se a dúvida - a

hesitação – perceptível no seguinte trecho: “Durante quinze dias encontrei-o duas vezes, na

escada; cumprimentou-me e falou-me como se tivera intactas todas as molas do cérebro

(ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis)”. E também: “A gravidade com que ele proferiu

estas palavras excluía toda a idéia de loucura. A própria fisionomia parecia revelar o regresso

da consciência (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis)”.


Damasceno caiu enfermo e Cruz foi o único que se preocupou com a sua

doença. Ficou em sua companhia o tempo todo, fazendo com que o vizinho lhe confiasse um

segredo da sua vida. Entregou-lhe um maço de papéis e um retrato de uma formosa mulher,

dizendo ao estudante para guardar e queimar caso ele morresse. Cruz guardou no bolso o

maço enquanto Damasceno, reclinando o corpo, ficou tranqüilo:

Durante cinco minutos nada disse; começou a murmurar palavras sem


sentido, com esgares próprios de louco. Esta circunstância chamou-me à
realidade. Não seriam os papéis e o retrato coisas sem valor, a que ele em
seu desvario atribuía tamanha importância (ASSIS, 2004,
www.uol.com.br/machadodeassis)?

Daí em diante, o enfermo começou a narrar a sua estória. Disse que ambos, ele

e Lucinda, foram moços e o que os matara foi um olhar. O marido os pegara entre olhares

sinuosos e concupiscentes. Encolerizara-se a princípio, logo se aquietara. Porém, diante do

acontecido, Damasceno resolvera contar ao marido os sentimentos que ele nutria por sua

esposa. O marido de Lucinda apenas riu e nada disse. Então, Damasceno saiu em viagem.

Algumas semanas depois, Damasceno retornou à Jeremoabo, e, pensando em

Lucinda, resolveu procurá-la. Ouviu rumores que diziam que ela havia morrido, outros diziam

que havia cometido suicídio, alguns que desaparecera, ou seja, estas notícias diversas eram

claro indício de que algo grave acontecera. Nesse momento da narrativa, Damasceno

interrompeu a sua elocução. Estava cansado e opresso. Cruz pensa: “admirava a perfeita

lucidez com que ele me referia àquelas coisas, a comoção das palavras, que nada tinha do

vago e desalinhado da palavra dos loucos (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis)”. A

hesitação começa a ganhar força na narrativa. Cruz estava ligado de forma impreterível aos

fatos contados pelo senhor acamado, estava convencido de que a história devia ser levada em

conta, pois poderia pertencer ao mundo do tangível. E foi justamente neste instante que
Damasceno chegou ao clímax da sua história. Ele procurou o marido de Lucinda para saber

dos acontecimentos e este lhe disse

que Lucinda estava viva, mas podia morrer no dia seguinte; que, depois de
cogitar na punição que daria ao olhar da moça resolvera castigar-lhe
simplesmente os olhos... Não entendi nada; tinha as pernas trêmulas e o
coração batia-me apressado. Não o acompanharia decerto, se ele, apertando-
me o pulso com a mão de ferro, me não arrastasse até uma sala interior... Ali
chegando... vi... oh! é horrível! vi, sobre uma cama, o corpo imóvel de
Lucinda, que gemia de modo a cortar o coração. “Vê, disse ele – só lhe
castiguei os olhos”. O espetáculo que se me revelou então, nunca, oh! nunca
mais o esquecerei! Os olhos da pobre moça tinham desaparecido; ele os
vazara, na véspera, com um ferro em brasa... Recuei espavorido. O médico
apertou-me os pulsos clamando com toda a raiva concentrada em seu
coração: “Os olhos delinqüiram, os olhos pagaram” (ASSIS, 2004,
www.uol.com.br/machadodeassis).

Esta é uma temática recorrente em narrativas fantásticas: a do olhar. Primeiro

vimos que o olhar foi decisivo para o marido de Lucinda descobrir as redes amorosas entre ela

e Damasceno, fato este que culminou na vingança do traído. O mesmo olhar que manifestou o

amor, agora é retirado de suas órbitas, gerando uma figura assustadoramente fantástica. O

próprio Machado se utiliza dessa temática em um outro conto seu: o já mencionado

“Decadência de dois grandes homens”, em que o gato Júlio é ferido e arrancam-lhe os olhos,

deixando-os vazados.

Um outro escritor que se utilizou dessa temática foi o alemão Theodor

Hoffmann, cuja influência Machado absorveu. Sobre o escritor alemão, Todorov chega a nos

dizer que:

Em Hoffmann, [...] há realmente coincidência entre o “tema do olhar” (tal


qual se colocou em nosso léxico descritivo) e as “imagens do olhar”, tal
como se descobrem no próprio texto; eis por que sua obra é particularmente
reveladora (TODOROV, 1975, p. 131).
No conto, “O homem da areia”, de Hoffmann aparece claramente a temática do

olhar através das “imagens do olhar”. Somos invadidos, literalmente, em sua obra, por

microscópios, binóculos, olhos falsos e verdadeiros, espelhos e etc. Vejamos um exemplo no

conto:

... perguntei por fim à velha governanta de minha irmãzinha quem era
mesmo o Homem da areia.
- Pois é, meu pequeno Natanael, então você não sabe? É um homem mau,
que vem procurar as crianças que não querem ir para a cama. Joga
punhados de areia em seus olhos, que tombam ensangüentados, e os
apanha, os enfia numa bolsa, e os carrega para a lua para alimentar seus
netinhos. Eles estão lá, empoleirados em seu ninho, com os bicos
recurvados como o da coruja. E bicam os olhos das crianças que não
são boazinhas (HOFFMANN, 1986, p. 15).
[...]
Tive a impressão de perceber à sua volta rostos humanos, mas sem os olhos,
com espantosas cavidades negras e profundas em seu lugar.
- Olhos! Dê-me olhos! – gritava Coppelius com voz surda, ameaçadora
(HOFFMANN, 1986, p. 22).

Vejamos, agora, o que o olhar psicanalítico de Sigmund Freud pensa sobre

esse assunto:

O medo de ferir ou perder os olhos é um dos mais terríveis temores das


crianças. Muitos adultos conservam uma apreensão nesse aspecto, e
nenhum outro dano físico é mais temido por esses adultos do que um
ferimento nos olhos. Estamos acostumados, também, a dizer que estimamos
uma coisa como a menina dos olhos. O estudo dos sonhos, das fantasias e
dos mitos ensinou-nos que a ansiedade em relação aos próprios olhos, o
medo de ficar cego, é muitas vezes, um substituto do temor de ser castrado
(FREUD, [200-], 1 CD).

Freud ainda nos diz que essa relação substitutiva entre o olho e o órgão

masculino verifica-se, em parte, por estar presente nos sonhos, mitos e fantasias. Se formos

interpretar a reação do marido de queimar com um ferro em brasa os olhos da esposa e ainda

obrigar o seu pretenso amante a assisti-la com os olhos vazados, diremos que fez isso com um

intuito de causar um temor ao Damasceno, que veria naquela imagem a figura substitutiva da
castração. Essas afirmações acabam por confirmar ainda mais o que já foi dito anteriormente:

que os temas da literatura fantástica, dentre os quais se destacam aqui o da loucura e o do

olhar, tornaram-se os mesmos das investigações psicanalíticas.

Voltando ao conto, temos que, após a cena horrível descrita pelo enfermo, ele

teve uma visão da amada: “Olhe!... Olhe! lá está ela! lá está!... O dedo magro e trêmulo

apontava alguma coisa no ar, enquanto os olhos, naturalmente fixos, resumiam todo o terror

que é possível conter a alma humana (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis)”. Novamente

o olhar é uma figura chave e domina essa parte da narrativa, pois o estudante Cruz teve a

mesma visão do moribundo:

Olhei; e podem crer que ainda hoje não esqueci o que ali se passou. De pé,
junto à parede, vi uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos
soltos, e os olhos... Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e
ensangüentadas (ASSIS, 2004, www.uol.com.br/machadodeassis).

O próprio Cruz, que não acreditava, ou, pelo menos, manifestava algum

ceticismo em relação à história, acabou “vendo” a figura descrita por Damasceno. E foi

tomado pela hesitação:

Naquela meia luz da alcova, e no alto de uma casa sem gente, a semelhante
hora, entre um louco e uma estranha aparição, confesso que senti esvairem-
se-me a força e quase a razão. Batia-me o queixo, as pernas tremiam-me
tanto, eu ficara gelado e atônito. Não sei o que se passou mais; não posso
dizer sequer que tempo durou aquilo, porque os olhos se me apagaram
também, e perdi de todo os sentidos (ASSIS, 2004,
www.uol.com.br/machadodeassis).

A hesitação surge em seu estado pleno, juntamente com o clímax do conto; há

um embate no espírito do jovem entre a razão e o acontecimento sobrenatural presenciado,

onde as forças de uma e de outro fazem-no perder os sentidos. Os ouvintes do desembargador

Cruz, nesse momento, também são tomados, junto com ele, pelo movimento indescritível e
indecifrável dos acontecimentos, contribuindo para a engrenagem de uma narrativa cujo

gênero fantástico de fato se manifesta.

O episódio teve um epílogo: Damasceno morreu e, algum tempo depois, o

desembargador descobriu que o morto aos vinte e dois anos casara-se em Santa Catarina e

nunca havia estado em Jeremoabo, cidade de Lucinda e seu esposo. E que a mulher descrita

por Damasceno era, na verdade, uma sobrinha sua. No entanto, fica um fenômeno

extraordinário a atormentar o espírito de Cruz: a aparição da moça na sua própria frente com

os olhos vazados e ensangüentados.

2.1.3 – O capitão Mendonça

Este conto de Machado de Assis teve publicação original no Jornal das

Famílias. A sua conclusão apareceu na edição de maio de 1870, no entanto, não se sabe em

quantas edições anteriores foi publicada a parte inicial. Em livro, sua primeira publicação

aconteceu na coletânea Contos Recolhidos (Editora Civilização Brasileira, RJ, 1956),

organizada por Raimundo Magalhães Jr. Recentemente foi publicado em Contos Completos

de Machado de Assis, organizados por Djalma Cavalcante.

Temos em “Capitão Mendonça” a história do Sr. Amaral, que, irritado com a

dama dos seus pensamentos, resolveu andar pela noite sem destino com o intuito de preencher

o tempo. Com essas intenções foi assistir a uma peça teatral no Teatro de São Pedro. Estando

lá, encontrou com um amigo de seu falecido pai, o capitão Mendonça, um sujeito muito

singular. Durante o espetáculo, o capitão o chamou para cearem juntos em sua casa. Ele,

como não tinha nada o que fazer e estava um pouco enfadado daquela peça, resolveu

acompanhá-lo. Chegaram a uma casa velha e escura, causando uma impressão de terror ao Sr.

Amaral, que cogitou, ainda, se o capitão seria um louco. Lembrou-se, então, de que o próprio
pai, “quando falava no capitão Mendonça, dizia ser um excelente homem... com uma aduela

de menos (CCMA, 2003, p. 731)”. No entanto, quando começaram a aparecer situações

inusitadas e acontecimentos ligados a fenômenos extraordinários, de divertidas que as coisas

estavam, passaram a ganhar um status amedrontador: “casa velha e escura (CCMA, 2003, p.

732)”, “rangia a porta nos gonzos e nós entrávamos num corredor escuro e úmido (CCMA, 2003,

p. 732)”. As palavras enigmáticas e as atitudes estranhas do capitão Mendonça geraram uma

atmosfera ainda mais sombria e assustadora:

- Se lhe parecer que não há de tremer quem entre por um corredor como
este, o qual, haja de perdoar, parece o corredor do inferno.
- Quase acertou, disse o capitão guiando-me pela escada acima.
- Quase?
- Sim; não é o inferno, mas é o purgatório.
Estremeci ao ouvir estas últimas palavras; todo o meu sangue precipitou-se
para o coração, que começou a bater apressado. A singularidade da figura
do capitão, a singularidade da casa, tudo se acumulava para encher-me de
terror. Felizmente chegamos acima e entramos para uma sala iluminada a
gás, e mobiliada como todas as casas deste mundo (CCMA, 2003, p. 732-
733).

O terror só se dissipou quando algo familiar surgiu: a sala “mobiliada como

todas” as salas ditas “normais”, o resto dava uma impressão aterrorizante porque não fazia

parte do mundo das coisas conhecidas pelo Sr. Amaral. O capitão Mendonça parecia um

louco porque, como o Sr. Amaral mesmo disse: ele era um “original no meio de tantas cópias

de que anda farta a vida humana (CCMA, 2003, p. 732)”, as suas atitudes, o seu modo de agir,

não eram condizentes com o modo das outras pessoas lidarem com as situações do mundo

vivido pelo narrador-personagem. Por isso que na narrativa ele se questiona se “ainda estaria

no mundo dos vivos, ou começara já a entrar na região dos sonhos e do desconhecido (CCMA,

2003, p.739)”. E o desconhecido está sempre se apresentando diante dos seus olhos: “Na

parede fronteira a essa havia apenas uma coruja [ave de mau agouro], também empalhada, e

com olhos de vidro verde, que, apesar de fixos, pareciam acompanhar todos os movimentos
que a gente fazia (CCMA, 2003, p. 735)”. Somente quando foi apresentado à moça Augusta é

que lhe foi restituída a calma, pois ela “era o único laço que havia entre mim e o mundo,

porque tudo naquela casa me parecia realmente fantástico, e eu já não duvidava do caráter

purgatorial que me fora indicado pelo capitão (CCMA, 2003, p. 735)”. A moça constituía para ele

algo que estava bem próximo do que ele conhecia de mundo, daí a sua tranqüilidade, pois ela

o ligava a um ambiente familiar. Novamente, surgiu-lhe algo tranqüilizador, pois ele, assim

como o leitor da história, temia o “não-familiar”, o novo, enquanto signos que ameaçavam a

sua ordem de valores estabelecida. No entanto, isso se desvaneceu quando o capitão

Mendonça lhe apresentou a verdade sobre Augusta:

- Então acha esses olhos bonitos?


- Já lho disse; são tão formosos quanto raros.
- Quer que lhos dê? perguntou o velho.
Inclinei-me dizendo:
- Seria muito feliz em possuir tão raras prendas; mas...
- Nada de cerimônias; se quer, dou-lhos; senão limito-me a mostrar-lhos.
Dizendo isto, levantou-se o capitão e aproximou-se de Augusta, que
inclinou a cabeça sobre as mãos dele. O velho fez um pequeno movimento,
a moça ergueu a cabeça, o velho apresentou-me nas mãos os dois belos
olhos da moça.
Olhei para Augusta. Era horrível. Tinha no lugar dos olhos dois grandes
buracos como uma caveira. Desisto de descrever o que senti; não pude dar
um grito; fiquei gelado. A cabeça da moça era o que mais hediondo pode
criar imaginação humana; imaginem uma caveira viva, falando, sorrindo,
fitando em mim os dois buracos vazios, onde pouco antes nadavam os mais
belos olhos do mundo. Os buracos pareciam ver-me; a moça contemplava o
meu espanto com um sorriso angélico (CCMA, 2003, p. 736).

Augusta era a construção engenhosa do capitão Mendonça, um “produto

químico”, um ser inanimado. Esse instante da narração nos faz lembrar do conto do escritor

alemão Hoffmann: “O homem da areia”. O próprio Machado de Assis o cita quando diz,

pelas palavras do narrador, que: “Ocorreu-me um conto fantástico de Hoffmann em que um

alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir criaturas humanas (CCMA, 2003, p.

739)”. Esse alquimista, o professor Spalanzani, realmente cria uma figura mecânica bem

similar a do conto de Machado, e a atmosfera também possui muitas semelhanças, pois a


boneca Olímpia, é esse o nome do ser inanimado, também faz com que o rapaz Natanael se

apaixone por ela, ficando cego diante de sua singularidade:

- [...] Achamos que esta Olímpia tem qualquer coisa de sinistro e nós
queremos ficar longe dela, pois temos a impressão de que apenas finge
ser criatura viva e que há algum lamentável equívoco nessa história
toda.
Natanael não se entregou ao sentimento de amargura que parecia querer
tomar conta dele, ao ouvir tais palavras. Ele se controlou, contentando-se
em dizer gravemente:
- Para vocês, homens prosaicos e frios, pode ser que Olímpia pareça
inquietante. Só às sensibilidades poéticas se revela tal organização!
Apenas eu percebi seu olhar amoroso, que me iluminou a alma e os
pensamentos (HOFFMANN, 1986, p. 67).

Mais tarde, ele fica sabendo, assim como o Sr. Amaral, da feição verdadeira

de Olímpia: “Natanael permanece imóvel. Tinha visto tudo direitinho. O rosto de cera de

Olímpia, de mortal palidez, não tinha mais olhos, apenas cavidades negras. Era uma boneca

sem vida (HOFFMANN, 1986, p. 72)”. Após essa cena, a loucura toma posse dele por algum

tempo.

Assim como em “O capitão Mendonça”, o tema dos seres inanimados

(Olímpia e Augusta) é um elemento importante que contribui para as atmosferas insólita e

fantástica instauradas em suas respectivas narrativas. Assim, os escritores criam uma espécie

de incerteza no leitor, não o deixando saber se está sendo conduzido por uma narrativa

realista ou fantástica. Não só o leitor hesita, o próprio Amaral se pergunta: “Estaria eu ainda

no mundo dos vivos, ou começara já a entrar na região dos sonhos e do desconhecido

(CCMA, 2003, p. 739)”? O clima de hesitação penetra na narrativa de forma acentuada, fazendo

o personagem pôr a sua razão à prova:

O que tornava a minha situação mais dolorosa e impossível de suportar era


justamente a perfeita solidez da razão. Do conflito da minha razão com os
meus sentidos resultava a tortura em que eu me achava; os meus olhos
viam, a minha razão negava. Como conciliar aquela evidência com aquela
incredulidade (CCMA, 2003, p. 739)?
O espírito positivista do rapaz se negava a acreditar em tamanha insensatez,

porém não havia meios de não dar crédito a esse fenômeno, pois os seus olhos

acompanharam cada evolução dos fatos. Em contrapartida, apesar de saber do aspecto

fantástico da moça, ele continuou sentindo uma forte atração por ela, a ponto até de dar razão

ao capitão: “- Afinal, disse Mendonça, o doutor há de acostumar-se aos meus trabalhos... e

acreditará então... / - Já creio. Não posso negar a evidência; quem tem razão é o senhor; o

resto do mundo não sabe nada (CCMA, 2003, p. 743)”. Mesmo sabendo ser Augusta um produto

químico, Amaral não deixou de se impressionar por ela, “apesar de sua origem misteriosa e

diabólica (CCMA, 2003, p. 738)”. Tanto que, livre daquela casa e dos tormentos que ela lhe

trazia, ele ainda retornou a ela algumas vezes, até que, na última vez em que retornou, o

capitão disse ter uma notícia boa para lhe dar: consentiria no casamento de sua filha com ele,

coisa que ele queria profundamente, desde que este se transformasse por conta de uma

operação que Mendonça faria nele. O pai da moça inocularia uma quantidade extraordinária

de éter em uma região de seu cérebro para que ele se transformasse em um gênio. Nesse

momento, o rapaz pensou: “Seriam dois loucos? ou andaria eu num mundo de fantasmas?

Olhei para ambos; ambos estavam risonhos e tranqüilos como se houvessem dito a coisa

mais natural deste mundo (CCMA, 2003, p. 747)”. Novamente a dúvida paira na narrativa, ele

não sabia lidar com esses fenômenos insólitos justamente porque não conseguia explicá-los à

luz da racionalidade. No entanto, o pai e a filha conseguiram sedá-lo, e ele, vendo todo o

processo pré-operatório, não conseguiu reagir e “de repente os olhos foram-se-me

enterrando: as feições do capitão assumiram proporções descomunais e fantásticas (CCMA,

2003, p. 748)”. Quando deu acordo de si, parecia ver a sua frente uma cortina. Ele havia

dormido no teatro, e a peça já se havia acabado há dez minutos. Fora tudo um sonho. Quando

ia sair, o porteiro o chamou e entregou-lhe um bilhete do capitão Mendonça convidando-o


para fazer-lhe uma visita. Porém, mesmo já tendo descoberto serem aqueles fatos frutos

imaginativos de um sonho, a hesitação permaneceu através do receio supersticioso: “Apesar

de saber que o Mendonça da realidade não era o do sonho, desisti de o ir visitar. Berrem os

praguentos, embora, - tu és a rainha do mundo, ó superstição (CCMA, 2003, p. 749)”.

2.1.4 – A vida eterna

A publicação original de “A vida eterna” aconteceu no Jornal das Famílias em

janeiro de 1870. O conto veio a ser publicado em livro na coletânea Contos Avulsos em

1956, quando Raimundo Magalhães Jr. organizou diversos volumes com contos inéditos de

Machado de Assis. Ele também está presente em Contos Completos de Machado de Assis

organizados por Djalma Cavalcante.

O texto é narrado por um velho chamado Camilo da Anunciação que nos conta

que, após uma refeição abundante em companhia de seu amigo o Dr. Vaz, os dois foram

conversar um pouco no quarto de Camilo. A conversa, animada ao princípio, esmoreceu-se, e

os dois entraram em um estado que não era sono nem vigília. E ficaram assim: esquecidos um

do outro. Até o momento em que o narrador-personagem Camilo nos disse o seguinte:

Era natural passarmos dali ao sono completo, e eu lá chegaria, se não


ouvisse bater à porta três fortíssimas pancadas. Levantei-me sobressaltado;
Vaz continuava na mesma posição, o que me fez supor que estivesse
dormindo, porque as pancadas deviam ter-lhe produzido a mesma
impressão se ele se achasse meio acordado como eu (CCMA, 2003, p. 716).

Ele foi ver quem lhe batia à porta e lá encontrou um homem que lhe produziu

uma impressão bem desagradável, pois este entrou sem pedir licença e se ajeitou

comodamente em uma cadeira, cruzando as pernas. Isso fez com que Camilo enxergasse na

figura à sua frente um ser peculiar:


[O homem] tirou o chapéu e começou a tocar com os dedos na copa do dito
chapéu uma coisa que eu não pude saber o que era, mas que devia ser
alguma sinfonia de doidos, porque o homem parecia vir direitinho da Praia
Vermelha (CCMA, 2003, p. 716).

Há neste trecho uma referência ao hospital de doenças mentais existente na

Praia Vermelha, ou seja, o homem seria um doido. Assim como nas narrativas anteriores, a

alegação de loucura em uma situação tão peculiar como essa acentua o caráter inaudito do

ambiente em que se encontra o personagem, instaurando assim um elemento importante para

projetar na narrativa uma característica do gênero fantástico. E a alusão da loucura vai

ganhando força quando Camilo passou a descrever o vestuário e as feições do desconhecido.

Quanto ao vestuário:

[Ele] vinha embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriu-se-lhe o capote, e


vi que o homem calçava umas botas de couro branco, vestia calça de pano
amarelo e um colete verde, cores estas que se estão bem numa bandeira, não
se pode com justiça dizer que adornem e aformoseiem o corpo humano
(CCMA, 2003, p. 716).

E as feições:

As feições eram mais estranhas que o vestuário; tinha os olhos vesgos, um


grande bigode, um nariz à moda de César, boca rasgada, queixo saliente e
beiços roxos. As sobrancelhas eram fartas, as pestanas longas, a testa
estreita, coroando tudo uns cabelos grisalhos e em desordem (CCMA,
2003, p. 717).

Além da forma como o homem entrou na sala, esses outros indícios acentuam

a suspeita de Camilo na insanidade deste. Uma pessoa sã não se vestiria daquela forma, no

século XIX as pessoas se vestiam de modo grave, e as feições não eram tão desconcertantes

como as aqui descritas.


E o ambiente tornou-se ainda mais confuso e impróprio quando o homem se

apresentou, dizendo se chamar Tobias e que estava ali para fazer Camilo se casar com sua

filha Eusébia, moça de vinte e dois anos, muito rica e sua única herdeira. Diante desse

episódio, Camilo já não tinha mais dúvidas: “Eu me espantaria do contraste que havia entre a

riqueza e a aparência do desconhecido se não tivesse já a convicção de que tratava com um

doido (CCMA, 2003, p. 717)”. A dúvida anterior apresenta-se então como uma certeza. Diante

da recusa do velho Camilo, Tobias teve de ameaçá-lo: ou se casaria com sua filha Eusébia,

ou morreria alvejado na cabeça com uma bala de revólver. Assim, Camilo não teve escolha,

seguiu o homem, deixando o amigo Vaz dormindo em sua casa e pensando que não se deve

discutir “com um doido (CCMA, 2003, p. 719)”.

Camilo foi levado para a casa de Tobias e observou que era um verdadeiro

palácio. Foi apresentado já como genro do anfitrião aos convidados do casamento (que se

realizaria naquela mesma noite) e notou a amabilidade de todos. E como também eram

velhos.

Aliada à sensação de estar diante de um louco, o narrador Camilo transporta o

leitor para uma ambiência “não-familiar”, que ameaça a ordem natural de valores:

Nunca me há de esquecer a vista da ala apenas se me abriram as portas.


Tudo ali era estranho e magnífico. No fundo, em frente da porta de estrada,
havia uma grande águia de madeira fingindo bronze, encostada à parede,
com as asas abertas, e preparando-se como para voar. Do bico da águia
pendia um espelho, cuja parte inferior estava presa às garras, conservando
assim a posição inclinada que costuma ter um espelho de parede (CCMA,
2003, p. 720).

À estranheza do ambiente soma-se o fato de todos os convidados, inclusive

Camilo e Tobias, serem velhos e de todos se portarem como se Camilo fosse conhecido há

anos naquela casa. Ao apresentar o futuro genro, Tobias se retirou para ir se vestir para o

casamento, deixando-o em presença dos convidados. Entretanto, decorrera uma hora e a


noiva e o pai não apareciam na sala, fazendo Camilo ficar aflito diante daquela demora.

Acentua-se o clima “não-familiar”, e até mesmo a figura do velho Tobias é mais bem vinda a

Camilo do que aqueles momentos em presença de estranhos em uma casa tão estranha:

Eu confesso que, apesar da cena do quarto e das disposições em que vi o


homem, estaria mais tranqüilo se ele estivesse presente. É que ao velho já
eu tinha visto em minha casa; habituara-me aos seus gestos e discursos
(CCMA, 2003, p. 721).

Ou seja, neste momento, ele preferiria algo já conhecido, mesmo que lhe

parecesse louco, do que o ainda mais novo e inquietante.

A sensação desagradável desapareceu quando surgiu o seu amigo o Dr. Vaz.

Camilo ficou sabendo que Tobias o havia convidado para a cerimônia e pensou que o futuro

sogro fez isso para lhe gerar satisfação com a surpresa. Foi nesse instante que Tobias

retornou à sala. A presença de um amigo no ambiente estranho acalmou Camilo, que

reavaliou a situação, rejeitando nesse momento a tese de insanidade de Tobias, o que traz a

normalidade à cena:

Já não tinha as roupas esquisitas e o ar singular com que o vira no meu


quarto; agora trajava com aquela elegância grave que cabe a um velho, e
pairava-lhe nos lábios o mais amável sorriso (CCMA, 2003, p. 722).

Camilo já não temia por nada, dizendo ser o sogro “uma pérola (CCMA, 2003,

p. 722)”, pois trouxera o amigo Vaz, seu “primeiro amigo (CCMA, 2003, p. 722)”, ao seu

convívio. Achou-se até mesmo um bem-aventurado por desposar uma moça tão bela e rica

quanto Eusébia:

Fui apresentado à noiva pelo pai, e recebido por ela com uma afabilidade,
uma ternura, que acabaram por convencer-me completamente. No fim de
dois minutos estava eu cegamente apaixonado (CCMA, 2003, p. 722).
Ele se convenceu completamente de que seria feliz, tanto que se deixou levar

pelos acontecimentos: a cerimônia ocorreu seguida por uma pequena e breve festa. No

entanto, a própria narrativa deixou entrever algo de errado. Veremos o que é.

Todorov nos diz que em uma narrativa fantástica há constante transgressão às

normas vigentes na realidade, porém, “para que haja transgressão, é preciso que a norma seja

perceptível (TODOROV, 1975, p. 12)”. Na narrativa analisada, a norma foi transgredida quando

surgiu uma figura estranha no mundo perceptível de Camilo, no entanto o personagem

deslocou essas referências, já que ele aceitou o mundo que foi oferecido por Tobias, fazendo

com que a transgressão instaurada se transformasse em norma. No momento em que Camilo

se encontra sozinho com sua já esposa Eusébia, a narrativa volta ao anterior estágio de

suspense: a transgressão reaparece como transgressão, e não mais como norma, e a norma

reacende o caráter insólito dos fenômenos descritos. Eis o que acontece: Camilo vem a saber,

pela boca de Eusébia, da sua futura desgraça:

Se lhe ocultasse seria cúmplice perante Deus, e Deus sabe que eu sou
apenas um instrumento passivo nas mãos de todos esses homens. Escute. O
senhor é o meu quinto marido; todos os anos, no mesmo dia e à mesma
hora, dá-se nesta casa a cerimônia que o senhor presenciou. Depois, todos
me trazem para aqui com o meu noivo, o qual... (CCMA, 2003, p. 724)

Esse é o momento de maior suspense na narrativa, e sabe-se que um dos

pontos fortes do gênero fantástico é manter o suspense (Ver TODOROV, 1975, p. 100). Eusébia

tirou um rolo de pergaminho de uma cômoda e o entregou ao Camilo. Ele o abriu trêmulo e

leu, fulminado, as seguintes linhas:

“Elixir da eternidade, encontrado numa ruína do Egito, no ano de 402. Em


nome da águia preta e dos sete meninos do Setentrião, salve. Quando se
juntarem vinte pessoas e quiseram gozar do inapreciável privilégio de uma
vida eterna, devem organizar uma associação secreta, e cear todos os anos
no dia de S. Bartolomeu, um velho maior de setenta anos de idade, assado
no forno, e beber vinho puro por cima (CCMA, 2003, p. 724).”

Diante dessa situação e dos fenômenos desenrolados, Camilo se desesperou e

não soube como lidar com tamanho horror:

Compreende alguém a minha situação? Era a morte que eu tinha diante de


mim, a morte infalível, a morte dolorosa. Ao mesmo tempo era tão singular
tudo quanto eu acabava de saber, parecia-me tão absurdo o meio de comprar
a eternidade com um festim de antropófagos, que o meu espírito pairava
entre a dúvida e o receio, acreditava e não acreditava, tinha medo e
perguntava por quê (CCMA, 2003, p. 724)?

O clima de hesitação comum às narrativas do gênero fantástico surge em sua

máxima potência, pois Camilo não sabia se acreditava nos fenômenos descritos por Eusébia

ou no racionalismo que os negava. Então, ele percebeu que a moça não estava brincando. À

porta do quarto, surgiram Tobias e os seus condiscípulos para resgatarem Camilo e

prepararem o ritual. Após uma tentativa vã de resistir, a vítima deixou-se levar, e, antes de

morrer, ficou sabendo que seu pobre amigo Vaz não sairia mais daquela casa, pois seria “o

prato destinado ao ano futuro (CCMA, 2003, p. 726)”. Preparou-se o ritual de antropofagia

seguido de uma cena forte típica das narrativas fantásticas:

Luziu-me pelos olhos a lâmina do punhal, que se cravou todo no coração; o


sangue jorrou-me do peito e inundou a mesa; eu entre convulsões mortais
dei o último suspiro.
Estava morto, completamente morto, e entretanto ouvia tudo à roda de mim;
restava-me uma certa consciência deste mundo a que já não pertencia
(CCMA, 2003, p. 726).

A partir desse momento, ele continuou narrando a sua história, com uma certa

curiosidade e estupefação por estar morto e ainda assim ouvir o que falavam as pessoas no
mundo dos vivos, ao contrário do personagem Brás Cubas, que não se intimida em narrar as

suas memórias póstumas, coisa que iremos ver em capítulo posterior.

Lembremos que Todorov argumenta: “o fantástico produz um efeito particular

sobre o leitor – medo, ou horror, ou simplesmente curiosidade –, que os outros gêneros ou

formas literárias não podem provocar (TODOROV, 1975, p. 100)”, coisa que acontece

constantemente nesta narrativa, principalmente no momento da narração da morte do

personagem Camilo. E, mesmo morto, ele ouviu uma pessoa dizendo que ele era muito alto e

gordo e não poderia ser assado inteiro, teriam que esquartejá-lo. E foi o que aconteceu:

“Vieram as facas, e começou a operação; confesso que eu não sentia nada; só sabia que me

haviam cortado uma perna quando ela era atirada ao chão com estrépito (CCMA, 2003, pp. 726-

727)”. O horror da cena é de se impressionar. O fato de sabermos que no Brasil existiam

índios que praticavam esse ritual antropofágico com a naturalidade de uma cena afeita aos

seus padrões culturais não minimiza o sentimento de horror e angústia produzidos em quem

lê a história descrita, pois há que se levar em conta que a narrativa se situa em um contexto

bem diferente ao dos índios.

Após a cena do esquartejamento, Camilo ouviu a voz do Vaz, abriu os olhos e

achou-se deitado no sofá de sua casa. Teve um pesadelo horrível, segundo seu amigo Vaz,

que acordou com os gritos de Camilo.

Apesar do final esclarecedor, a narrativa pertence ao gênero fantástico devido

ao fato de termos presenciado elementos fundamentais para o seu surgimento como o tema

da loucura, o horror diante de fenômenos descritos, a transgressão às normas vigentes e o

clima de hesitação.

2.1.5 – O anjo das donzelas


A publicação deste conto ocorreu no Jornal das Famílias, nas edições de

janeiro e fevereiro de 1864. Em livro, ele veio a ser publicado em 1956, em Contos Avulsos,

quando Raimundo Magalhães Jr. organizou diversos volumes com contos inéditos de

Machado de Assis que foram publicados pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de

Janeiro. Ele também está presente em Contos Completos de Machado de Assis organizados

por Djalma Cavalcante.

O texto conta a história de uma donzela chamada Cecília que nunca havia

amado. Só conhecia o amor pelos livros, e estes trouxeram a ela uma pintura do amor como se

fora um perigo e uma condenação. Esse sentimento, segundo o narrador, provinha de duas

coisas: primeira, o caráter supersticioso da dama; segunda, a natureza das novelas que lhe

davam para ler. Numa dessas noites em que lia em seus aposentos, a moça insone percebeu a

entrada de uma figura “fantástica” em seu quarto que dizia ser o anjo das donzelas e que a

salvaria do casamento e do amor, deixando-a livre das paixões. Porém a moça teria que usar

um anel e nunca haveria de tirá-lo, senão estaria perdida.

Notemos que o termo “fantástico” aparecerá algumas vezes ao longo da

narrativa. Logo no início, o narrador define a história narrada de “episódio fantástico (CCMA,

2003, p. 66)”. Ele também usa o mesmo termo para dar claramente um adjetivo à Cecília:

“Avalia-se já que o pé de Cecília deve ser um pé fantástico, imperceptível, impossível (CCMA,

2003, p. 66)”. Por último, ao descrever a figura sobrenatural que entra no quarto de Cecília, o

autor retoma o termo:

De repente sentiu que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura
desconhecida, fantástica. Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha
esse aspecto masculino e feminino a um tempo com que os pintores
reproduzem as feições dos serafins. Vestia túnica de tecido alvo, coroava a
fronte com rosas brancas e despedia dos olhos uma irradiação fantástica e
impossível de descrever (CCMA, 2003, p. 68).
O termo e as descrições que o rodeiam contribuem para instaurar o clima de

fantasticidade na narrativa. Descreve-se, então, uma figura inexistente na realidade em que

vivemos: uma figura que não é nem homem e nem mulher, um ser extraordinário, inefável

diante dos nossos olhos, e vestindo uma roupa peculiar, de um ser celeste. Juntando-se a isso,

temos ainda um pacto estranho selado entre essa aparição e Cecília:

E dizendo isso a fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de


Cecília. Depois tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que
não opunha a nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes
sorria com um sorriso de angélica suavidade como se naquele momento,
entrevisse as glórias perenes que o anjo lhe prometia.
- Este anel, disse o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha
esposa ante a eternidade. Deste amor não te resultarão nem tormentos
nem catástrofes. Conserva este anel a despeito de tudo. No dia em que o
perderes, estás perdida (CCMA, 2003, p. 69).

O fenômeno descrito está muito além do que consideramos como algo

percebido em nosso mundo. Outro fato a ser notado é a aparente naturalidade com que a moça

lidou com a aparição e seu discurso, não se opondo a nenhum dos atos dela, e sorrindo com

uma suavidade tal, a ponto de nos impressionar fortemente. Tanto que, no dia seguinte ao da

aparição, Cecília acordou com o anel no dedo e com as impressões do que se passara na

véspera e, a partir desse momento, ela começou a recusar toda e qualquer proposta de

casamento, permanecendo fria diante do amor. Isso se dá porque, segundo o narrador, a moça

tinha um “espírito supersticioso (CCMA, 2003, p. 67)”, ou seja, a sua crença em fenômenos

sobrenaturais era forte, incisiva, fazendo-a enxergar a aparição como algo natural, tanto que,

no dia seguinte ao ocorrido, Cecília “tinha o coração leve e o espírito desassombrado (CCMA,

2003, p. 69)”.

Os anos passaram, e notamos que Cecília, apesar de estar seguindo as regras

do acordo com o anjo das donzelas, já não estava mais tão segura de si: “Todavia, mais de

uma vez, à noite, no fundo da alcova, a moça sentia-se só. O coração solitário parece que se
não acostumava de todo ao isolamento a que o votara a dona (CCMA, 2003, p. 71)”. Ela

começou a se questionar se o pacto valeria de fato tanta solidão. A sua dúvida aqui é somente

no campo de sua tomada de atitude e não se realmente a figura celeste existia. No entanto,

“mais de uma vez a moça dava acordo de si procurando com uma das mãos arrancar o anel da

aliança com a visão (CCMA, 2003, p. 71)”, somente porque ainda ela se encontrava presa à

condição de crer nela – na visão –, temendo a sua fúria caso retirasse o anel. Cecília

atravessou esse quadro durante anos, lutando contra a aparição e seu funesto acordo, porém a

forte crença perdurou:

A isenção foi sempre completa. Lutava embora contra não sei que
repugnância do vácuo, não sei que horror da solidão, mas nessa luta a
vontade ou a fatalidade vencia sempre, triunfava de tudo, e Cecília pôde
chegar à adiantada idade em que achamos sem nada perder (CCMA, 2003,
p. 73).

Vivendo na casa de uma irmã viúva, pois seus pais já estavam mortos, com os

cabelos alvos e com rugas a lhe enfeitar o rosto, porém conservando ainda a delicadeza da

juventude, Cecília “gastava horas e horas da noite em evocar a visão dos quinze anos. Quisera

achar conforto e confirmação às suas crenças, quisera ver e ouvir ainda a figura mágica e a

voz celeste do anjo das donzelas (CCMA, 2003, p. 74)”. As suas crenças precisavam de

confirmação para sobreviverem, já que desde aquele dia em que a figura lhe apareceu, ela

nunca mais a viu nem a ouviu. Cecília começou a hesitar: teria ou não teria visto o anjo das

donzelas?

Um dia, um primo, que partira da corte na noite em que Cecília fizera o pacto

com o anjo das donzelas, voltou à Corte e resolveu visitá-la. Em uma dessas visitas, o primo

Tibúrcio, desconfiado de que ela não se casara por causa dele, resolveu abrir-lhe o coração.

Contou que a amara no passado e que ainda nutria um carinho enorme por ela, dizendo que

estava satisfeito por Cecília não ter se esquecido dele. O primo começou, então, a desvendar
diante dos olhos de Cecília o mistério que envolvia o anel em seu dedo. Ela, estranhando a

atitude do primo, disse não saber do que ele estava falando. Tibúrcio, então, resolveu se

explicar. Disse que aquele anel que ela usava, fora ele que havia lhe dado. Na noite da

aparição, ele havia entrado em seu quarto e posto o anel em seu dedo em sinal de sua

devoção. Ela não acreditou. Porém Tibúrcio insistiu, dizendo a ela: “- Este anel, sim. É meu.

Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o encomendei (CCMA, 2003, p. 79)”. O espanto

de Cecília não poderia ser maior, ela queria ouvir o que Tibúrcio tinha a dizer: “- E se quer

mais uma prova tire o anel... Nunca tirou? / - Nunca. / - Pois tire o anel e veja se não estão

gravadas pela parte interior as iniciais do meu nome (CCMA, 2003, p. 79)”. Nesse exato

momento, as cordas que estão a atar o fio de sua crença na aparição, começam a ruir. Cecília

hesita frente a um fenômeno natural, ou seja, explicado pelas leis da razão. Podemos notar um

fator relevante a ser considerado: os procedimentos narrativos de “O anjo das donzelas” se

operam pelo avesso, ou seja, Cecília até o momento não tinha um motivo para considerar

aquela imagem como um fator explicado através da razão, pois o seu espírito estava

impregnado de sujeições supersticiosas e de crenças no sobrenatural, contribuindo para isso as

suas constantes leituras de novelas que a levavam para um outro mundo, imaginativo e fértil.

Assim, ao invés da personagem hesitar diante de um fenômeno sobrenatural, ela o faz pelo

avesso. No entanto, nem por isso o gênero fantástico deixa de prevalecer, pois é a situação

hesitante que ordena os acontecimentos, instaurando uma seqüência de ações que gera uma

narrativa fantástica.

Assim, após as explicações de Tibúrcio, Cecília contou a sua versão:

E Cecília passou a referir [...] todas as circunstâncias da visão, o diálogo


que tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das
donzelas.
- Tal foi, acrescentou Cecília, a razão por que não me casei. Tinha fé
nisto. Quanto a tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse
(CCMA, 2003, p. 80).
Ao que Tibúrcio contestou, dizendo a ela para não acreditar em sonhos e que

não devia “contestar uma verdade com uma superstição (CCMA, 2003, p. 80)”. O elemento

racional se presentifica, ganha forças, travando uma luta contra as convicções supersticiosas

da personagem Cecília, instaurando a hesitação:

- Ora, prima, disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma
superstição? Ainda acredita em sonhos!
- Como, sonhos?
- É evidente. Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho
com o fato do anel. Mas você quando acordou no dia seguinte achou-se
com um anel no dedo, não devia fazer outra coisa mais do que averiguar
a razão do fenômeno, e não dar crédito a uma coisa toda de imaginação.
Cecília abanou a cabeça.
- Pois não crê? Tire o anel.
Cecília hesitava. Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi
acompanhado pela prima viúva de modo que Cecília, com alguma
relutância, pálida e trêmula, arrancou o anel do dedo (CCMA, 2003, p. 80).

Além da hesitação, notemos que Tibúrcio explicou a Cecília quais os

procedimentos que ela deveria tomar quando estivesse diante de um fenômeno sobrenatural:

“quando acordou no dia seguinte achou-se com um anel no dedo, não devia fazer outra coisa

mais do que averiguar a razão do fenômeno”. Foi o que Cecília fez? Não. Mas por quê? O que

a diferencia de Tibúrcio, e dos demais personagens Miranda, Cruz, Sr. Amaral e Camilo nas

narrativas aqui analisadas? Ora, o sexo e a superstição. Àquela época, as mulheres recebiam

uma educação de salão, ou seja, elas eram instruídas somente o suficiente para desfilarem nas

rodas sociais e conversarem amenidades no dia-a-dia. Nenhum espírito racional rondava-lhes

as cabeças, pelo contrário, elas recebiam os ensinamentos das mães a serem devotas, crentes

na fé, viviam às rodas com as mucamas, ouvindo-lhes fervorosas crenças em manifestações

sobrenaturais. Tudo isso ajudou a formar a mentalidade das mulheres da época machadiana.

Acompanhemos um trecho de um texto do próprio Machado de Assis, “A cartomante”, onde o

narrador afirma a respeito do personagem Camilo:


Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal
inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos
desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e
ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os
ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação
total. Camilo não acreditava em nada (ASSIS, 1997, v. II, p. 478).

A superstição e a religião são ensinamentos atribuídos à mãe. No momento em

que Camilo se livrou da sua influência e foi beber em outras fontes tais como o ensino

acadêmico, colocou todas as suas lições “na mesma dúvida” e em seguida “em uma só

negação total”. Está completo na figura de Camilo o ciclo de pensamento que o homem

perfaz, chegando à racionalidade. Machado parece sugerir que a percepção do homem àquela

época é diferente da percepção da mulher, envolvida em condicionamentos supersticiosos.

Por fim, temos que em “O anjo das donzelas” os momentos sobrenaturais se

dissolvem quando é percebida a presença do sonho a guiá-los: Tibúrcio pediu para Cecília

tirar o anel, pois acharia gravadas em seu interior as iniciais do seu nome T.B.. Nesse

momento, ela hesitou, temendo os ditos da aparição: “Conserva este anel a despeito de tudo.

No dia em que o perderes, estás perdida”. Porém, com relutância e um certo pavor, arrancou o

anel do dedo e lá encontrou, em seu interior, as iniciais T.B., descobrindo ser a aparição fruto

de um sonho imaginativo.

No entanto, o elemento fantástico se apresenta no movimento geral da

narrativa.

2.2 – INTERSECÇÕES

Os cinco contos aqui analisados são sugeridos como pertencentes ao gênero

fantástico, e entram em consonância com a definição de Raimundo Magalhães Jr. e Marcelo


Fernandes. Todos eles contêm uma manifestação onírica, menos em “Sem olhos”, em que o

personagem Cruz tem uma visão misteriosa e inexplicável de Lucinda morta e com os olhos

vazados e ensangüentados, fenômeno que poderia ser explicado pelo fato do desembargador

Cruz ter passado a noite insone. Os fatos extraordinários são explicados como oníricos em:

“Decadência de dois grandes homens” (Miranda sonha com a morte fantástica de Jaime); “A

vida eterna” (Camilo sonha que está sendo morto e devorado por um grupo de pessoas insanas

e antropófagas); e “O anjo das donzelas” (Cecília sonha com o anjo das donzelas, acreditando

ser essa figura fantástica real até o final da narrativa). Em “O capitão Mendonça” as situações

insólitas se explicam também como sendo oníricas: Amaral sonha com um capitão Mendonça

louco e construtor de engenharias fantásticas, porém a hesitação permanece pelo receio

supersticioso de Amaral em achar que o capitão Mendonça da realidade poderia ser o do

sonho.

O tema da loucura está presente em quatro contos: “Decadência de dois

grandes homens”, “Sem olhos”, “O capitão Mendonça” e “A vida eterna”. A recorrência a

outros temas como o tema do olhar e o tema de dar vida a seres inanimados – o animismo -

também estão presentes. Reafirma-se, também, que Edgar Alan Poe e Theodhor Hoffmann

são influências confessas e presentes na biblioteca de Machado de Assis (ver JOBIM, 2001).

Um outro fato importante a considerar é que em “O anjo das donzelas” há uma

situação diferenciada da dos demais contos. Isso porque as outras quatro histórias são

narradas por vozes masculinas e estão em primeira pessoa, ou seja, os próprios personagens

contam o que ocorreu em suas vidas (lembrando que em “Sem olhos” há um narrador

onisciente, mas que dá voz a Cruz no momento em que ele conta a sua história, fazendo-o

narrador também). Enquanto que em “O anjo das donzelas” há um narrador que conta a

história de Cecília, uma personagem feminina. Ao invés de Cecília hesitar diante de um

fenômeno sobrenatural, como Miranda, o desembargador Cruz, o Sr. Amaral e Camilo, ela
hesita diante de um acontecimento explicado racionalmente. Machado parece sugerir que a

mulher era mais afeita a fenômenos sobrenaturais devido a sua educação, por isso Cecília

hesita diante de um acontecimento racional, pois prefere afiançar-se no elemento sobrenatural.

E sobretudo a mulher brasileira era supersticiosa, já que lhe faltava a educação acadêmica.

Enfim, esperamos ter comprovado, através dos cinco contos aqui analisados,

que Machado de Assis produziu, de fato, narrativas que pertencem ao gênero fantástico

tradicional.
3. O FANTÁSTICO MODERNO EM MACHADO DE ASSIS: MEMÓRIAS

PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Tanto a América hispânica quanto o Brasil não foram


ricos em literatura fantástica até o começo do nosso
século. [...] O Brasil, menos pródigo que os países de
língua espanhola, teve, entretanto, um autor que, no
século XIX, já usava elementos fantásticos em sua
narrativa: Machado de Assis, em Memórias póstumas
de Brás Cubas.
Selma Calasans Rodrigues

No ano de 1881, lançava-se a prosa de ficção Memórias Póstumas de Brás

Cubas de Machado de Assis, considerada a divisora de águas entre a primeira e a segunda

fase de sua obra, já que o livro apresenta propostas literárias diferentes do padrão romanesco

de sua época.

Procuraremos estudar o texto a partir do conceito de fantástico moderno. É

preciso deixar claro que o crítico Merquior abordou o termo quando disse que fantástica “é a

moldura narrativa do Brás Cubas; a começar pelo fato de ser o romance de um defunto,

‘memórias’ radicalmente póstumas... (MERQUIOR, 1979, p. 167)”, porém o termo fantástico

referido por ele se filia à tradição das sátiras em prosa de Luciano de Samosata, escritas no

século II, não tendo vínculo com o termo e o conceito dado a ele em nosso estudo. Assim, a

linhagem a que ele se refere em MPBC é a do gênero cômico-fantástico, também conhecido

como literatura menipéia.

Um outro crítico que segue os caminhos sugeridos por Merquior é Enylton de

Sá Rego, que diz ser MPBC um épico-cômico, com raízes em Cervantes. E não só Cervantes,

pois “suas raízes estão ligadas à tradição da sátira menipéia, tradição portanto anterior à obra

do grande escritor espanhol (REGO, 1989, p. 166)”. Rego nos chama a atenção para o fato de que

“Machado sugere que o herói possível em nossos tempos tem que fazer-se ‘inverossímil’

(REGO, 1989, p. 167)”. Se voltarmos alguns anos antes da produção de MPBC, veremos que
Machado de Assis, em uma crônica de 15 de janeiro de 1877, tendo rejeitado os ideais tanto

do romantismo quanto do naturalismo, tinha uma visão bastante clara das relações entre o

romance contemporâneo e as exigências do século: “O século é prático, esperto e censurável;

seu herói deve ter feições consoantes a estas qualidades de bom cunho (ASSIS, 1997, v. III, p.

358)”. Ele sabia que teria de conceber um novo tipo de romance que nos daria o herói (ou anti-

herói) possível em nosso século. Então, sugere, ironicamente, na crônica citada que tal herói é

Rocambole, o personagem de “feuilleton-roman” de Ponson du Terrail. E, dentre outras

considerações feitas a respeito do personagem, ele diz: “Rocambole fez-se inverossímil;

morre, vive, cai, barafusta e some-se, tal qual um capoeira em dia de procissão (ASSIS, 1997,

vol. III, p. 358)”. São essas considerações de Machado de Assis que fazem Enylton de Sá Rego

afirmar que é exatamente este aspecto

“inverossímil” do herói de Ponson du Terrail que Machado irá recuperar nas


Memórias Póstumas de Brás Cubas. Com efeito, Brás é, como
Rocambole, um herói que “morre” e depois “revive” como narrador em seu
livro, escrito do além-túmulo (REGO, 1989, p. 145).

Ao abordar as características de sua escrita, no capítulo intitulado “O senão do

livro”, Brás Cubas se dirige ao leitor, dizendo:

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho o
que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo é
tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a
sepulcro, traz uma certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo.
[...] Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à
esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu,
escorregam e caem... (MPBC, cap. LXXI)

Vemos, assim, o aproveitamento literário do aspecto ébrio do herói dos nossos

tempos, do inverossímil Rocambole que “morre, vive, cai, barafusta e some-se”, e volta para

narrar suas memórias:


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.
Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me
levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou
propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa
foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais
novo (MPBC, cap. I).

Notemos que Brás Cubas remete-nos a uma realidade inverossímil, a de um

defunto autor, ou seja, de uma impossível autoria do além-túmulo. Diante disso, ele “leva a

realidade cotidiana [romanesca] até as fronteiras do fantástico, ultrapassando as leis da razão

(RIEDEL, 1974, p.13)”. Ele se desloca, levando juntamente o leitor para uma ambiência

sobrenatural, ou seja, a impossibilidade de se ter um defunto escrevendo as suas memórias.

Roberto Schwarz acrescenta que o próprio

título do livro é uma provocação, já que não é possível escrever memórias


depois de morto; que também a dedicatória aos vermes [no livro], em forma
de epitáfio, é um desrespeito ostensivo (SCHWARZ, 1987, p. 116).
[...]
O morto escrevendo as suas memórias configura uma situação narrativa
artificiosa, na qual o estatuto da ficção e do leitor ficam privados de sua
“naturalidade” ou verossimilhança, e são elementos de uma constante
provocação (SCHWARZ, 1987, pp. 120-121).

Perde-se a naturalidade, e há uma provocação, instaurando um sobrenatural

mitigado, diferenciado, provocativo, uma variante do gênero: o fantástico moderno. E há

mais uma provocação: o fato dele quebrar os métodos vigentes da composição romanesca,

que tinha como referência começar a história pelo “nascimento” e não pela “morte”. Daí que

ele distorce, ou transgride, uma das condições de se operar o gênero fantástico tradicional,

pois este leva em conta o caráter de irreversibilidade do tempo de leitura, ou seja, a leitura do

texto do início ao fim, que, partindo do acontecimento natural, tinge-se de um caráter

sobrenatural. No fantástico moderno ocorre o oposto: a narrativa parte do acontecimento


sobrenatural para atingir uma aparência cada vez mais natural. E nesse processo, há o que se

chama de adaptação. Vejamos como isso ocorre.

Após a revelação de sua morte, desde o primeiro capítulo, o defunto autor

Brás Cubas já nos quer impingir a idéia de uma manifestação fantástica, algo delirante e

sobrenatural: um homem narrando as suas memórias, começando pelo enterro, um fenômeno

extremamente insólito e instigante, pavoroso e funéreo, assustador e provocante. No entanto,

ao longo de suas primeiras palavras e explicações, ele já nos vai amortecendo os fatos:

descreve sua morte com tanta naturalidade e sobriedade que acaba dissolvendo aos poucos a

situação inaudível e inverossímil diante de nós. Tomando uma frase de Schwarz de

empréstimo, temos que nessa situação retratada, “além de infração, a infração é norma, e a

norma, além de norma, é infração (SCHWARZ, 2000, p. 43)”, ou seja, o fato de Brás Cubas ser

um defunto narrando as suas memórias é uma infração acintosa, mas ganha um caráter

normativo no decorrer da narrativa. Assim, o que se procura explorar na narrativa não são as

explicações racionais para os fenômenos sobrenaturais, como no fantástico tradicional, e sim

a idéia de que os fenômenos sobrenaturais produzidos não são absolutamente inquietantes e

não precisam ser explicados. Diferente das narrativas curtas machadianas, o fantástico torna-

se a regra, não a exceção. Ele está presente no processo narrativo, pois o sobrenatural se dá,

não deixando nunca de nos parecer inadmissível. E Brás Cubas vai narrando e nos

convencendo da naturalidade de se ter um narrador defunto, justificando porque resolve

escrever as suas memórias após a morte:

Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças


obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os
remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência. [...]
Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente
pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se,
despintar-se, dasafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de
ser (MPBC, cap. XXIV)!
Ele justifica, mas não explica como faz para realizar esse fenômeno de

escrever de um outro mundo, de outra dimensão que não a nossa, uma dimensão não terrestre

e, por isso mesmo, reafirma o caráter insólito da narrativa: “expirei às duas horas da tarde de

uma sexta-feira do mês de agosto de 1869. [...] Fui acompanhado ao cemitério por onze

amigos (MPBC, cap. I)”. A escrita das memórias de Brás foi processada em outro mundo, e o

fato mais intrigante, saber como ele fez para trazê-la para o mundo dos vivos, não vai ser

explicado: “evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas

Memórias, trabalhadas cá no outro mundo (MPBC, Ao leitor)”. Se lembrarmos da narrativa

“Decadência de dois grandes homens” estudada no capítulo anterior, notaremos uma possível

explicação para o fenômeno. O velho Jaime estudava a metempsicose, ou seja, a

transmigração de uma alma para um outro corpo, o que explicaria como a narrativa de um

defunto poderia surgir no mundo dos homens vivos. Comentando sobre a evolução da

literatura fantástica, sublinha Irène Bessière:

as inovações nas ciências psíquicas apenas tornaram caducos os motivos


clássicos da literatura fantástica, que volta a prosperar ao contato de outras
influências (biologia, física nuclear, espiritismo, telepatia, etc.) (apud
CHIAMPI, 1980, p. 70).

Se considerarmos o espiritismo no processo das Memórias, pode-se sugerir

que Brás Cubas desenvolve a sua narrativa e a traz para o nosso mundo através de um

fenômeno chamado de psicografia, ou seja, a escrita de um espírito pela mão de um médium.

Este, então, estabeleceria a ponte, ou o contato, para que os escritos do morto Cubas

chegassem até nós. Isso contribuiria para o fato da narrativa parecer natural, uma vez que a

doutrina espírita ganhara numerosos adeptos no Brasil.

Como Irlemar Chiampi já havia dito: quando “o insólito se generaliza, o relato

descentraliza o enigma do acontecimento (CHIAMPI, 1980, p. 70)”, não há mais o enigma como
no gênero fantástico tradicional, tudo se dissolve no movimento geral da narrativa, dando um

caráter natural aos acontecimentos, a hesitação já não predomina.

Uma outra consideração na obra a ser frisada está no capítulo VII intitulado “O

delírio”, onde Brás Cubas, à beira da morte, delira e narra como isso aconteceu. É importante

frisar aqui que é fantástico o fato do morto narrar o seu delírio e não o delírio em si. E que há

uma diferença considerável entre este delírio e o delírio de Miranda em “Decadência de dois

grandes homens”, pois Miranda delirou não sabendo que aquilo era só fruto da sua

imaginação, ao passo que, em MPBC, desde o início, Brás Cubas já sabe que o delírio

instaurado em sua mente é de fato um fruto da sua condição febril e da sua fértil imaginação:

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a
ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes
fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por
menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se
passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos (MPBC, cap.
VII).

O fato de Miranda não saber que estava delirando o fez acreditar nos

fenômenos descritos - extraordinários em sua natureza - instaurando um conjunto de ações

narrativas que inscrevem o conto no fantástico tradicional. Já Brás Cubas descreve os fatos

partindo de sua fantasticidade, ou seja, a condição de um morto narrando o seu próprio delírio

quando estava vivo, e narra estes fatos pedindo ao leitor para imaginá-los como fruto de um

delírio. Com isso, não há hesitação por parte do leitor, já que este acredita sem espanto que é

um morto a narrar o seu delírio. O sobrenatural parece natural, instaurando o clima propício

ao fantástico moderno.

Um outro recurso da narrativa fantástica tradicional, e explorado por um viés

diferenciado em MPBC, é o tema da loucura. Enquanto que no gênero fantástico tradicional a

loucura serve de parâmetro para justificar fenômenos sobrenaturais e atitudes estranhas de


algum personagem, em MPBC ela é vista e tida com uma certa naturalidade, uma ferramenta

que seduz e encobre o caráter de Brás Cubas.

Vejamos o capítulo VIII, “Razão contra Sandice”, em que Cubas nos fala da

luta travada em sua mente entre a Razão e a Sandice. A Razão, vendo a Sandice em sua casa,

ou seja, no cérebro de Brás Cubas, expulsa-a, mas antes a Sandice pede-lhe alguns minutos

para solucionar um mistério: o da vida e o da morte. A Razão põe-se a rir e expulsa a Sandice.

O capítulo mostra, através das descrições de Brás Cubas, que a Razão é a “dona da casa”. No

entanto, esse movimento racional, comum às narrativas tradicionais do gênero fantástico, é

quebrado quando surge a figura de Quincas Borba e seu sistema filosófico “Humanitas”. Ao

primeiro contato com essa doutrina, Brás tece um comentário sobre o seu autor: “a lucidez, a

serenidade, a convicção, - um pouco jactanciosa, é certo, - pareciam excluir a suspeita de

insensatez (MPBC, cap. XCI)”. Ele, a princípio, acha Quincas sensato, lúcido, ou seja, uma

figura sã. E vai-se convencendo, ao longo da narrativa, desse fato, asseverando e assegurando

a doutrina filosófica do amigo:

Para que negá-lo? eu estava estupefacto. A clareza da exposição, a lógica


dos princípios, o rigor das conseqüências, tudo isso parecia superiormente
grande, e foi-me preciso suspender a conversa por alguns minutos, enquanto
digeria a filosofia nova (MPBC, cap. CXVII).

Não faltam elogios a Quincas Borba, cuja amizade e respeito vão se

acentuando. Brás considera que o amigo dispõe de “elevado tino (MPBC, cap. CXXXVII)” e

este acaba se tornando uma espécie de guru, um conselheiro para ele. Mas é Quincas Borba

quem percebe em Brás uma parcela de loucura (MPBC, cap. CLIII) , mandando imediatamente

um alienista à sua casa. O alienista diz a Brás que quem está doido não é ele e sim Quincas

Borba. É nesse momento que Brás Cubas deixa-se de fato seduzir por essa parcela de loucura

e tenta encobri-la, dizendo ao amigo ensandecido, mesmo após a conversa com o alienista: “-
Sublime és tu, bradei eu, lançando-lhe os braços ao pescoço (MPBC, cap. CLVII) ”. E, após a

agonia com que o amigo morre nos braços da loucura, Brás ainda afirma: “fulgurava [em

Quincas Borba] um raio persistente da razão, triste como uma lágrima... (MPBC, cap. CLIX)”.

Com essas atitudes, Brás também se resguarda, pois se confirmasse o caráter louco do amigo,

estaria, com isso, pondo à prova a sua própria lucidez, já que foi o próprio Borba quem

percebeu em Cubas os mesmos sintomas que havia nele.

Esperamos ter mostrado que Machado de Assis, após experiências sobre o

gênero fantástico tradicional produzidas em suas narrativas curtas, operou nesta fase madura

de sua obra uma manifestação do que viria a ser a narrativa fantástica do século XX.

É nesse sentido que reside a originalidade de Machado de Assis: ele antecipou

elementos do fantástico moderno em tempos de fantástico tradicional.


• CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi estudado, acredita-se que o estudo do gênero fantástico em

narrativas machadianas passe a contribuir para o aprofundamento das análises sobre a obra do

autor.

Durante o desenvolvimento do estudo, relacionamos dezesseis contos de

Machado de Assis sugeridos como pertencentes ao gênero fantástico e destacamos a presença

de autores que consideraram a presença do fantástico na obra do escritor brasileiro, como, por

exemplo, Djalma Cavalcante, Raymundo Magalhães Júnior, Marcelo José Fonseca Fernandes,

Bráulio Tavares, Selma Calasans Rodrigues e outros mais que nos auxiliaram a tentar buscar

uma análise que passe a destacar Machado de Assis como um expoente no gênero.

Fizemos, também, uma análise da verossimilhança como fator que interfere na

criação literária, principalmente na concepção do fantástico, que necessita da presença do

verossímil para sobreviver na narrativa.

Em seguida, analisamos de forma detalhada como o fantástico tradicional se

manifesta nas narrativas e o que o faz um gênero evanescente; e quais são os parâmetros para

a sua consolidação.

Logo depois, tivemos que falar como, com o surgimento da Psicanálise e com

o passar dos anos, a feição tradicional do gênero perdeu sua força produtiva, visto que os

temas da literatura fantástica do século XIX foram retomados pelas investigações psicológicas

do século XX. No estudo, essa análise não ganhou uma profundidade maior devido ao fato de

não querermos estudar o momento de transição entre uma e outra variante do gênero, mas sim

vermos precisamente como os gêneros fantásticos tradicional e moderno se manifestaram em

determinadas narrativas do escritor Machado de Assis, além de apontarmos para as questões

de influência e originalidade em sua obra.


Assim, analisamos cinco contos do autor: “Decadência de dois grandes

homens”, “Sem olhos”, “O capitão Mendonça”, “A vida eterna” e “O anjo das donzelas”,

tentando comprovar neles a ocorrência da vertente tradicional do gênero. Deu-se destaque,

também, para a relação com nomes relevantes do gênero como Hoffmann e Edgar Allan Poe,

ressaltando a inserção da obra machadiana no cenário dos grandes autores da literatura

mundial.

Mostramos, também, como, em sua fase madura, Machado aproxima-se em

Memórias Póstumas de Brás Cubas de uma variante do gênero: o fantástico moderno.

Apontamos, assim, para a originalidade do autor ao antecipar o fantástico moderno em

tempos de fantástico tradicional.

Esperamos então ter cumprido a proposta do nosso trabalho de estudar a

ocorrência do gênero fantástico nas narrativas machadianas. É nossa pretensão despertar o

interesse dos estudiosos da obra de Machado de Assis para a relevância, até hoje pouco

considerada, do estudo do fantástico em Machado de Assis.


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