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Gaza Jerusalém

Belém Hebron
Ramallah
Telavive Rafah
Jericó Qalqilya
Gush Katif
Médio Oriente 30 anos de reportagens dos nossos
enviados que ajudam a compreender o conflito hoje

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Olhar para
trás para
compreender
melhor

2
Q
uando começámos a tarefa de recuperar algumas
das reportagens que fomos fazendo ao longo destes
anos no Médio Oriente, percebemos rapidamente que
teríamos de deixar de fora muitos textos que teria
todo o sentido integrar numa selecção de trabalhos
que mostrassem, pelos olhos dos jornalistas do
PÚBLICO, o que se passa há tantos anos naquele território.
Estivemos em Jerusalém, em Telavive, em Gaza, em
Hebron, em Ramallah, em muitas cidades, muitas aldeias e
kibbutzim, muitas vezes, e em momentos muito diferentes.
Estivemos no regresso de Yasser Arafat à Palestina,
estivemos no seu funeral, estivemos nos 50 anos do Estado
de Israel, contámos os sonhos, os pesadelos, as aspirações,
os ataques, as bombas, a morte e a vida em ambos os
lados dos muros. Fomos aos arquivos e revisitámos mais
de 30 anos de artigos. Seleccionámos cerca de 30 que,
acreditamos, ganham uma nova vida à luz do que está hoje a
acontecer no Médio Oriente.
O primeiro é de 1993. Paulo Moura conta a história de
um famoso aperto de mão em Washington. Seguem-se
reportagens de Alexandra Lucas Coelho, de Alexandra
Prado Coelho, de Maria João Guimarães e Fernando Veludo.
Eles foram alguns dos nossos enviados. Lucas Coelho foi
também correspondente do PÚBLICO em Jerusalém. Esta
edição especial é, assim, apenas uma amostra de muitos
anos a olhar para esta região. Deixa muito de fora. Ainda
assim, é preciosa se queremos compreender melhor o
conflito em 2023.

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

1993 Acordo de Paz


O aperto de mão de Washington LER TEXTO

Paulo Moura, em Washington

1994 O regresso de Arafat


O fim do "exílio do exílio" LER TEXTO

Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, na Faixa de Gaza


A pedra atirada ao mundo LER TEXTO

Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, na Faixa de Gaza


Morrer por Jerusalém LER TEXTO

Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, em Jerusalém


Yasser Arafat... e israelitas redescobrem a Faixa de Gaza LER TEXTO

"Onde é que no mundo existe um lugar como a Palestina?"


Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, na Faixa de Gaza
Sede do Governo autónomo palestiniano à espera de Arafat LER TEXTO

Cenas da vida em Jericó


Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, em Jericó

1998 50 anos de Israel


A "traição" dos arquivos israelitas LER TEXTO

Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (texto)


e Fernando Veludo (fotos), em Israel
A História pelos olhos de um sionista LER TEXTO

Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, em Israel

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Palestinianos israelitas lutam para ser cidadãos LER TEXTO

iguais aos judeus dentro do mesmo Estado


Sem nada para celebrar
Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (texto)
e Fernando Veludo (foto), em Israel
Os kibbutzim, uma das instituições fundadoras LER TEXTO

do Estado de Israel, têm de se adaptar para sobreviver


Saudades do duche colectivo
Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (texto)
e Fernando Veludo (foto), em Israel
Hebron, a cidade dividida LER TEXTO

Uma vida absurda


Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (texto)
e Fernando Veludo (fotos), em Hebron

2002 O cerco à Basílica da Natividade


"As pessoas dentro da basílica estão esfomeadas" LER TEXTO

Dos nossos enviados Alexandra Lucas Coelho, em Belém


"Vemo-nos daqui a pouco dentro da basílica" LER TEXTO

Dos nossos enviados Alexandra Lucas Coelho, em Belém

2004 Plano de retirada dos colonatos


"A melhor oferta de um dos lados nunca será LER TEXTO

suficientemente boa para o outro"


Da nossa enviada Maria João Guimarães, em Telavive
Somos os negros de Israel LER TEXTO

Da nossa enviada Maria João Guimarães, em Jerusalém


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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Abu Nidal, o homem que tem a chave do muro LER TEXTO

Da nossa enviada Maria João Guimarães, na Cisjordânia


O imenso adeus LER TEXTO

"Ele era o meu pai, a minha mãe, o meu irmão.


Tudo na minha vida"
Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, em Ramallah
Refugiados temem que luta pelo direito de retorno LER TEXTO

tenha morrido com Arafat


Maria João Guimarães

2005 Retirada de Israel da Faixa de Gaza


Em Neve Dekalim prepara-se a resistência LER TEXTO

Não vamos lutar mas também não vamos sair


Da nossa enviada Maria João Guimarães, em Gush Katif (Faixa de Gaza)
A nova Intifada de Ramzi LER TEXTO

Alexandra Lucas Coelho, em Ramallah

2006 Eleições na Palestina


A eleição que tardava LER TEXTO

Alexandra Lucas Coelho, em Gaza


A razia da herança de Yasser Arafat LER TEXTO

Alexandra Lucas Coelho, em Jerusalém


Não é a religião LER TEXTO

Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

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Gaza ocupada, sob fogo intenso LER TEXTO

Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

2009 Regresso da tensão


Ahmad, seis anos, alvejado depois do cessar-fogo LER TEXTO

Alexandra Lucas Coelho, em Gaza


Gaza, um túnel sem saída LER TEXTO

Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

2018 A vida em Gaza


Tehila lutou por Israel e não é uma janela partida LER TEXTO

que estraga isso


Na nossa enviada Maria João Guimarães, em Telavive
Uma geração a tentar sair de Gaza para dizer: "Sou de Gaza" LER TEXTO

Na nossa enviada Maria João Guimarães, em Gaza

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Acordo de Paz

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É assinado o Acordo
de Paz de Oslo entre
Israel e a Organização
de Libertação da
Palestina, mediado
pelos Estados Unidos.
São estabelecidos
os princípios
gerais para a
implementação
de uma solução
de dois Estados.

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O aperto de mão
de Washington

Washington viveu uma encenação à Hollywood. No relvado


sul da Casa Branca, perante três mil pessoas, Israel e a OLP
assinaram a declaração de princípios que estabelece as
bases para a próxima autonomia palestiniana em Gaza e
Jericó. Havia algo de irreal ao ver Arafat no coração do poder
americano, ao lado dos chefes israelitas. Mas da festa, do
documento, das “estrelas”, dos convidados, de tudo, aquilo
que ficou, retransmitido até à náusea pelas televisões do
mundo inteiro, foi o aperto de mão entre Arafat e Rabin

Paulo Moura, em Washington

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Reportagem originalmente publicada a 14 de Setembro de 1993

M
omento histórico, em câmara lenta: Bill Clinton,
Presidente dos Estados Unidos, está a bater palmas
à assinatura do acordo de princípio entre Israel e a
Organização de Libertação da Palestina (OLP). Vira-se
para a direita, para cumprimentar o primeiro-ministro de
Israel, Yitzhak Rabin, depois para a esquerda, e aperta a
mão ao líder da OLP, Yasser Arafat. Dá meio passo para trás, abre os
braços, coloca as mãos nas costas de Rabin e Arafat e aproxima-os.
Os dois líderes não mexem os pés. Rabin fica como uma estaca
mas Arafat, que não tinha baixado a mão desde o cumprimento
de Clinton, inclina o corpo para a frente como uma árvore a cair.
Inclina-se ainda mais sobre Rabin, como um boneco sempre-
em-pé, com um sorriso rasgado por baixo do lenço tradicional
palestiniano, branco e preto. Rabin, que tinha dito de manhã a um
jornalista: "Sim, parece que tenho de o cumprimentar", lá levanta
a mão, renitente. Contacto.
Fotografia: Rabin muito direito, muito sério, com uma faísca de
ressentimento no olhar, o antebraço rigorosamente paralelo ao
corpo, o cotovelo em ângulo de 90 graus, a mão morta debaixo da
de Arafat. Este, tombado em hipotenusa, a sorrir, o braço esticado
para apanhar a mão do outro. Começam a ouvir-se aplausos.
Arafat puxa a mão de Rabin com força, empurra-a para baixo,
depois em direcção ao estômago do ministro, para cima de novo.
Prossegue este movimento de locomotiva uma dúzia de vezes, o
corpo quieto, só força do músculo do braço, como um êmbolo. O
corpo de Rabin é sacudido violentamente para trás e para diante,

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

à mercê dos safanões de Arafat, que continua a rir, divertidíssimo,


minúsculo na sua farda militar e kaffiyeh.
Termina o aperto de mão. Rabin volta-se imediatamente para a
frente, para os três mil convidados da assistência, no relvado sul
da Casa Branca, com o mesmo ar sério, a mão pendurada, como
que a pedir licença para voltar ao corpo. Arafat a fitá-lo, com o
mesmo sorriso, antes de desatar a cumprimentar o resto dos
presentes: o ministro dos Estrangeiros de Israel, Shimon Peres, o
seu colega da OLP Mahmoud Abbas, o ministro dos Estrangeiros
russo, Andrei Kozirev, o secretário de Estado americano, Warren
Christopher. Rabin não cumprimentou ninguém.

"Chega de sangue e de lágrimas!"


Rabin disse no seu discurso que não lhe era fácil estar ali. E
começou a falar de guerra, de atrocidades, de sangue, de horror,
em Jerusalém, "capital do povo judeu". Arafat, que quer para os
palestinianos metade de Jerusalém, ouvia, já sem o sorriso. Mas
Rabin, que pode ter sido para ali levado pelos cabelos, mas não
tenciona ser ultrapassado pelo processo que sabe ser inevitável,
acabou por fazer o melhor discurso da tarde.
"Deixem-me dizer-vos, palestinianos: nós, que vimos da terra
onde os nossos amigos e familiares morrem à frente dos nossos
olhos. Vamos aos funerais deles, e não conseguimos olhar nos
olhos dos seus pais. Nós, que vimos de uma terra onde os pais
sepultam os filhos. Nós que lutamos contra vós, palestinianos,
deixem-me dizer-vos, com uma voz bem clara: Chega! Chega de
sangue e lágrimas. Chega!"
Continuou: "Não temos desejos de vingança, não temos ódio.

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GARY HERSHORN/REUTERS

Nós que lutamos contra vós, palestinianos,


deixem-me dizer-vos, com uma voz bem
clara: Chega! Chega de sangue e lágrimas.
Chega! Yitzhak Rabin
Yitzhak Rabin,
Bill Clinton e Yasser Arafat,
a 13 de Setembro de 1993

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Somos pessoas como vós, que querem construir uma casa, plantar
uma árvore, amar, viver lado a lado convosco, em dignidade,
como seres humanos, como homens livres. Chega!"
Citou o "Livro dos Livros": "Para todas as coisas há uma época,
há um tempo para tudo sob o céu. Um tempo para nascer e um
tempo para morrer. Tempo para matar, tempo para curar. Tempo
para chorar, tempo para rir. Tempo para amar, tempo para odiar,
Um tempo para a guerra, um tempo para a paz. O tempo da paz
chegou."

"Um novo génesis"


Bill Clinton foi quem abriu e fechou a sessão de discursos. Entrou
no recinto no meio de Rabin e Arafat e introduziu a solenidade
do momento fazendo o seu enquadramento histórico. Referiu-
se ao território de Israel e da Palestina como "terra da Luz e da
Revelação". Mas "a devoção a essa terra tem sido a razão de ódio e
sangue por tempo de mais". Agora, exprimiu a esperança de que
"a segurança de Israel seja reconciliada com as esperanças dos
palestinianos, e haja mais segurança e mais esperança para todos".
Recordou a assinatura dos Acordos de Camp David, há 15 anos,
e agradeceu a Anwar Sadat e Menahem Begin, e ao Presidente
Jimmy Carter. Este estava na assistência e agradeceu com um
sorriso (mais tarde choraria), como fez George Bush, ao seu lado,
quando Clinton o saudou a ele, por ter reunido em Madrid árabes
e israelitas para começarem as negociações.
De resto, todos os oradores se referiram a Camp David e
agradeceram aos seus protagonistas. O ministro dos Estrangeiros
russo fez um agradecimento geral a "todos os antigos presidentes e

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políticos", que provocou o sorriso geral. Terá pretendido incluir na
sua menção abrangente alguns nomes russos? A seguir sublinhou
que "a Rússia participou no processo de paz que culmina nesta
cerimónia como um patrocinador de corpo inteiro, não como
mera testemunha".
Peres, que discursou após ter assinado o documento, mostrou-
se eufórico. Disse que o acontecimento marcava "um novo génesis"
e uma "revolução", e garantiu aos palestinianos que a disposição
de Israel era honesta. "O que queremos é mesmo negociar." Citou
Abraão em hebraico, o que provocou um claro desconforto entre
os árabes, tornando evidente como as línguas são ainda, por si só,
um elemento agressivo entre os dois povos.
Mas não foi de propósito. "Como a nossa terra é muito pequena,
a reconciliação entre nós tem de ser ainda maior." E falou por
momentos da paz, da sua antevisão da paz. Uma "paz global",
afirmou, numa mensagem óbvia aos outros líderes árabes, que
esperam a sua vez para fazerem a paz com Israel. O Presidente da
Síria, Hafez al-Assad, tinha dito horas antes que "a paz na região só
faz sentido e pode ser duradoura se for global". O rei Hussein, da
Jordânia, fizera uma declaração idêntica, ao anunciar um plano
para negociação com Israel, a ter lugar em breve.
Arafat e Mahmoud Abbas, chefe do departamento político
da OLP, o homem que negociou em Oslo com o ministro dos
Estrangeiros israelita, referiram-se acima de tudo às dificuldades
que se avizinham: o problema de Jerusalém, dos refugiados
palestinianos e dos colonatos judaicos. "Foi necessária muita
coragem para chegar até aqui, à assinatura destes acordos.
Mas será preciso uma coragem ainda maior para enfrentar os

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Primeira página do PÚBLICO


do dia 14 de Setembro
de 1994

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problemas que nos esperam", disse Arafat, em árabe. E referiu-
se, como o fez Abbas, à necessidade de ajuda internacional,
principalmente dos EUA.
"A paz no Médio Oriente é necessária para a paz no mundo",
considerou Arafat.
Bush e Warren Christopher, por seu lado, prometeram a ajuda
americana "em tudo o que for preciso para fazer avançar o
processo de paz". Clinton fechou a sessão: "Vão em paz e como
fazedores de paz."
A seguir foi almoçar com Rabin, e não com Arafat, por Israel,
explicou a Casa Branca, ser amigo dos EUA de longa data, o que
não é o caso da OLP. Arafat contentou-se com a companhia de
Christopher. Em contrapartida, Rabin e Peres tiveram de regressar
ainda ontem a Jerusalém para uma sessão no Parlamento, fazendo
cancelar o jantar de gala previsto para a Casa Branca. Quanto a
Arafat, teve o dia — e a noite — livres.
Quando chegou, na sua limusine, rodeado de uma
impressionante segurança, ao hotel Ana Westin, na zona norte
de Washington, deu com um cartaz de boas-vindas escrito
em hebraico: realizava-se um casamento judaico. Barbara
Tannenbaum Epstein, a noiva, disse aos jornalistas que,
quando viu aproximar-se a caravana de Arafat pensou que, com
toda aquela polícia, as conversações tinham acabado mal. O
comentário do noivo, Henry Epstein, foi pragmático. O acordo
entre palestinianos e israelitas era como o seu casamento: "Tinha
de acontecer."

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O regresso
de Arafat
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Yasser Arafat, o líder
da Organização
de Libertação da
Palestina, regressa
à Faixa de Gaza. A
data de 1 de Julho de
1994 marca o início
da administração
da Autoridade
Palestiniana nas
áreas da Faixa de
Gaza e da cidade de
Jericó na Cisjordânia.
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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O fim do
"exílio do exílio"

Yasser Arafat não esquecerá o dia de ontem. Para ele, expulso


do Líbano e instalado em Tunes há 12 anos, acabou aquilo
a que alguém chamou "o exílio do exílio". Pela primeira
vez em 27 anos, pisou o solo da "sua" terra. Em Gaza, falou
de unidade em clima de festa. Falta cumpri-la, mas para a
geração mais nova que o aclamou, aconteça o que acontecer
no futuro, dificilmente poderá ser também esquecido o dia
em que o "Presidente Arafat" regressou à Palestina
Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, na Faixa de Gaza

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Reportagem originalmente publicada a 2 de Julho de 1994

É
uma estrada estreita a que parte de Gaza por onde Arafat
entrou ontem, pela primeira vez em 27 anos, em terra
palestiniana. Era nessa estrada, que dá à justa para dois
carros, que se amontoavam centenas de pessoas, carros,
jornalistas com as mais variadas aparelhagens, que
esperavam há mais de uma hora, e debaixo de um sol
implacável, o tão anunciado "regresso histórico" do líder da OLP à
sua pátria.
De repente, os polícias palestinianos conscientes da
responsabilidade da missão que lhes confiavam — garantir a
segurança de Arafat — aparecem a correr, afogueados, afastando,
o mais delicadamente que lhes é possível, as pessoas, para abrir
caminho aos carros que transportam Arafat e a sua comitiva.
Ninguém conseguia dizer muito bem em que carro seguia o líder
palestiniano, mas os gritos, palmas e manifestações de alegria
repetiam-se à passagem de cada veículo. Ao todo não demorou
mais do que dois ou três minutos. Depois, quem quis, ficou a
cumprimentar algumas personalidades que foram a Rafah receber
Arafat. Os representantes da Igreja Católica e Ortodoxa, por
exemplo — que, apesar de vestidos a rigor, não tiveram mais sorte
que a maioria das pessoas e viram-se obrigados a voltar, entre a
poeira e o calor, para os seus carros.
Depois, foi a corrida para a Cidade de Gaza.

Geração que não esquece


A repórter do PÚBLICO seguiu a estrada percorrida minutos

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

antes por Arafat. E viu a mesma Palestina que passou diante dos
olhos do homem a quem os palestinianos chamam Presidente.
Uma das coisas que Arafat terá visto mais foi a sua própria cara,
multiplicada nos cartazes que enfeitavam as camionetas e eram
empunhados pelas centenas de pessoas que enchiam ambos os
lados da estrada.
Viu também, a perder de conta, bandeiras palestinianas,
no telhado das casas, nas camisas dos polícias, nos carros ou
simplesmente espetadas em montes de areia e penduradas nas
carroças puxadas por burros, o meio de transporte mais popular
entre os que não tinham carro.
Mas Arafat não deixou certamente de reparar na enorme
quantidade de crianças que enchiam as bermas da estrada,
gritando, dançando e batendo palmas. É uma geração que,
aconteça o que acontecer no futuro, dificilmente esquecerá o dia
em que o "Presidente Arafat" regressou à Palestina.
E talvez os rostos felizes das pessoas e as cores dos vestidos
das raparigas — que, ao contrário dos rapazes, arranjaram-se e
enfeitaram-se especialmente para a ocasião — tenham escondido
um pouco de Arafat o estado da Faixa de Gaza, a miséria das casas,
das ruas, o lixo, os pés descalços das raparigas nos seus melhores
vestidos.
Ontem, em Gaza, a festa era toda dos palestinianos. E quando o
cortejo de automóveis, camionetas e camiões de caixa aberta com
a lotação mais do que esgotada, que seguia Arafat, passou por um
dos colonatos israelitas que existem na Faixa de Gaza, não havia
nem um colono à vista, apenas os soldados israelitas que tentavam
ordenar o trânsito e manter os ânimos o mais calmos possível.

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AHMED JADALLAH/REUTERS

Sim meus irmãos, sim meus queridos,


eu digo ao povo israelita com cujo líder,
o senhor Rabin, assinámos a paz dos
bravos, eu digo-lhes que a paz dos bravos
necessita de mais bravura de todos, para
que a possamos preservar Yasser Arafat

O dia em que o "Presidente


Arafat" regressou à Palestina

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Alguns, mais atrás, olhavam com curiosidade para os esforços


dos seus colegas palestinianos que se viam obrigados a dividir-se
entre o papel de autoridade e o de amigos dos que passavam nos
carros tentando encontrar atalhos ou "contornar" os postos de
controlo.
Os polícias palestinianos iam vindo, cumprimentando uns
e outros, apanhando uma boleia aqui e ali. Um privilégio da
autoridade, claro, porque não faltava quem tentasse abrir as
portas a entrar para os automóveis, mesmo em andamento.

O "irmão" do Hamas
No centro de Gaza, num enorme descampado, os recém-chegados
iam-se juntando à multidão que esperava Arafat. Finalmente, o
"Presidente" chegou, por entre os aplausos das pessoas que se
amontoavam e empurravam para o conseguir ver. Rodeado por
palestinianos eufóricos, Arafat dirigiu-se ao estrado de onde fez
o seu discurso a uma multidão atenta, mas que aproveitava cada
pausa para subir o tom dos aplausos.
Arafat falou dos dois assuntos que neste momento devem estar
no centro das suas preocupações: a unidade dos palestinianos e
Jerusalém. Começou lembrando o "irmão" xeque Yassin, líder do
movimento islâmico Hamas, detido numa prisão israelita. Arafat
não quer hostilizar o Hamas e, sobretudo, não quer ver o seu povo
começar a dividir-se neste momento.
"Oh irmãos palestinianos, encontramo-nos aqui hoje pela
primeira vez juntos e em igualdade na terra da Palestina. [...]
Enviamos as nossas saudações a todos os nossos prisioneiros,
principalmente ao chefe deles, Ahmed Yassin, xeque da poderosa

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Intifada", disse Arafat a cerca de dez mil pessoas concentradas na
Praça do Soldado Desconhecido.
"O que é importante é a unidade, a unidade, a unidade. [...]
Hoje, as circunstâncias exigem de nós uma maior unidade
nacional, que é o nosso escudo. Precisamos de todos para
reconstruir o nosso país."
"Meus irmãos, daqui vamos para a mesquita de al-Ibrahimi [em
Hebron], para Nablus e Jenin, e Tulkarem e Qalqilya, e Belém e
Beit Sahour, e Beit Jalla e Ramallah e depois logo de seguida para
Jerusalém, Jerusalém, Jerusalém."
Durante os 30 minutos do seu emocional discurso, Arafat
enviou também uma mensagem aos outros palestinianos no exílio
e aos árabes. "Dirijo de toda a Palestina as minhas saudações ao
Sul do Líbano, aos nossos irmãos libaneses e aos nossos irmãos
palestinianos no Líbano. Saúdo os meus irmãos do Golfo que nos
ajudaram, e lembro aos meus irmãos da Jordânia a decisão do
Conselho Nacional Palestiniano de constituir uma confederação
jordano-palestiniana."

Alegria e tristeza
Dirigiu-se também aos seus antigos inimigos: "Daqui digo ao povo
israelita que, tal como respeitamos os seus lugares sagrados
na santa Jerusalém, eles também têm de reconhecer os nossos
lugares sagrados muçulmanos e cristãos."
"Sim meus irmãos, sim meus queridos, eu digo ao povo israelita
com cujo líder, o senhor [Yitzhak] Rabin, assinámos a paz dos
bravos, eu digo-lhes que a paz dos bravos necessita de mais
bravura de todos, para que a possamos preservar."

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Página de arranque
do destaque do PÚBLICO
da edição de 2 de Julho
de 1994

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Jerusalém, com todas as reacções que a sua menção provoca em
israelitas e palestinianos, vai continuar a ser um trunfo nas mãos
do líder da OLP. Com ele pode irritar os israelitas nas ocasiões
mais convenientes e pode manter os palestinianos unidos em
torno de uma causa. Mas é um trunfo que tem que ser gerido com
muita prudência.
Ontem, Arafat prometeu ir a Jerusalém rezar. Uma promessa
sobre as qual já se começou a construir mais um episódio do
"mito" Arafat. Quando irá? Como vai ser? (ontem não faltava quem
afirmasse convictamente que o "presidente" iria já nos próximos
dias).
Terminado o discurso, Arafat foi levado para um hotel de Gaza,
para se encontrar com outros responsáveis palestinianos que
fazem parte da Autoridade Nacional. O resto do seu programa
continua no segredo dos deuses.
Um incidente veio ensombrar o dia de glória de Arafat e a
alegria que se vivia em Gaza: um telhado ruiu devido ao excesso
de peso das pessoas que tinham subido para ali, numa tentativa
de ver melhor Arafat. E, enquanto as ambulâncias iam e vinham
para recolher os feridos, um jovem comentava: "Vê como são os
palestinianos? Nunca podemos ter uma alegria sem que aconteça
qualquer coisa triste."

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Cronologia
A vida e a resistência
A vida de Yasser Arafat, líder da OLP, confunde-se com
a própria história da resistência palestiniana.

Texto originalmente publicado a 2 de Julho de 1994

1950-1956
Estudante no Cairo.
1959
Formou a Fatah, um grupo de guerrilha nacionalista, que veio
a tornar-se a maior facção da Organização de Libertação da
Palestina (OLP).
28 Maio 1964
Criação em Jerusalém da OLP, presidida no início por Ahmed
Shukairy, um notável palestiniano dependente dos regimes
árabes.
31 Dezembro 1964
A Fatah começa a luta armada contra o Estado judaico e lança a
primeira operação de guerrilha em território israelita.

28
Junho 1967
Na sequência da derrota árabe na guerra contra Israel, Arafat
reaparece, depois de dois anos passados na clandestinidade, sob o
nome de guerra de Abu Ammar.
Julho 1968
A OLP adopta uma Carta proclamando que "a luta armada é a
única via para a libertação da Palestina".
4 Fevereiro 1969
Arafat é eleito presidente do Comité Executivo da OLP, instância
dirigente da resistência.
Setembro 1970
Expulso de Amã, após uma conspiração para derrubar o rei
Hussein e subsequente massacre de milhares de palestinianos na
Jordânia, Arafat estabelece o quartel-general da OLP em Beirute.
26 Outubro 1974
Arafat obtém dos Estados árabes o reconhecimento da OLP como
"único e legítimo representante do povo palestiniano".
13 Novembro 1974
Segurando nas mãos uma pistola e um ramo de oliveira, Arafat
discursa, pela primeira vez, nas Nações Unidas, em Nova Iorque.
Abril 1975
Início da guerra civil no Líbano. Arafat coloca os seus combatentes
ao lado dos muçulmanos contra os cristãos libaneses.
31 Maio 1980
Eleito pelo congresso da Fatah comandante-chefe das forças
de Al Assifa (braço armado da Fatah) e do Exército de Libertação
da Palestina, Arafat acumula agora poderes políticos e militares

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

nos órgãos dirigentes palestinianos.


30 Agosto 1982
Arafat e os seus "fedayin" deixam Beirute, na sequência da invasão
israelita do Líbano. Chega no dia 3 de Setembro a Tunes, seu novo
quartel-general, o "exílio do exílio".
Setembro 1982
Milícias cristãs falangistas, com a conivência de Israel, massacram
centenas de palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e
Chatila, em Beirute.
Maio 1983
Desafiado por um grupo de dissidentes da Fatah, apoiados pela
Síria, Arafat regressa ao Líbano para inspeccionar as suas tropas
no Vale de Bekaa.
Junho 1983
A Síria declara Arafat "persona non grata", rompendo os laços com
o seu aliado-rival. Confrontos entre guerrilheiros leais e hostis a
Arafat em Bekaa.
Setembro-Dezembro 1983
Arafat é cercado em Tripoli, no Norte do Líbano, por unidades
dissidentes da Fatah, apoiadas por tropas sírias. Em 20 de
Dezembro, ajudado pelos egípcios, volta a deixar o Líbano.
5 Dezembro de 1987
Começa a Intifada, uma sublevação espontânea dos palestinianos
na Cisjordânia e Gaza, contra a ocupação israelita. A OLP é
apanhada desprevenida, mas Abu Iyad, "número dois" de Arafat,
consegue controlar os resistentes e colher os louros daquela que
ficou conhecida como a "revolta das pedras".

30
15 Novembro 1988
O Conselho Nacional Palestiniano (parlamento no exílio) proclama,
em Argel, um Estado independente, e Arafat é nomeado presidente.
Um ano após o início da Intifada, aceita a resolução 242 da ONU,
reconhecendo implicitamente a existência de Israel.
Janeiro 1991
O apoio da OLP ao Iraque durante a guerra do Golfo deixou Arafat
isolado e privado da ajuda financeira das monarquias árabes do
Golfo.
Janeiro 1992
Arafat, um muçulmano sunita de 64 anos, casa-se com a sua
secretária Suha Tawil, uma cristã de 28.
Abril 1992
Arafat sobrevive, com alguns ferimentos, a um acidente de avião
no deserto líbio.
13 Setembro 1993
Aperto de mão histórico, em Washington, entre Arafat e o
primeiro-ministro israelita, Yitzhak Rabin, depois da assinatura de
uma Declaração de Princípios sobre a autonomia de Gaza e Jericó,
e do reconhecimento mútuo entre Israel e a OLP. Pela primeira
vez, Arafat realiza o seu grande sonho: ser recebido na Casa
Branca por um Presidente dos Estados Unidos.
4 Maio 1994
Rabin e Arafat assinam, no Cairo, o Acordo geral de autonomia.
1 Julho 1994
Depois de várias décadas de exílio e luta armada, Arafat regressa à
Palestina.

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

A pedra atirada ao mundo


Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, na Faixa de Gaza

Reportagem originalmente publicada a 2 de Julho de 1994

"N
ão esqueçam a Palestina." A frase estava escrita na
petição dos estudantes palestinianos entregue ao
general Neguib pouco tempo depois de os Oficiais Livres
terem derrubado a monarquia egípcia. Foi em 1952, no
Cairo, e a entregá-la estava um jovem estudante que
mais tarde viria a ser conhecido em todo o mundo como
Yasser Arafat.
Na altura, era um desconhecido que vestia um discreto
fato e gravata e não usava o kaffiyeh do qual depois se tornou
inseparável.
Arafat tinha criado, com outros palestinianos que estudavam no
Cairo, a Associação dos Estudantes Palestinianos que rapidamente
ganhou peso e em 59 se transformou na União Geral dos Estudantes
Palestinianos, com núcleos de apoio em vários países árabes
e na Europa. Nesse mesmo ano, no Kuwait, Arafat e os seus
companheiros formaram a Fatah, que viria a ser a principal facção
da OLP. Defendiam a luta armada como caminho para a "libertação
da Palestina", mas queriam manter uma "autonomia de decisão"

32
relativamente aos países árabes que os apoiavam. A sua palavra de
ordem era "o regresso à via da unidade" — uma inversão da frase do
então Presidente egípcio, Nasser, "A unidade é a via do regresso".
Para Arafat, era a luta pela Palestina que uniria os árabes. Mas na
altura ele era apenas um guerrilheiro, líder de um grupo entre os
vários que se tinham formado no exílio. Só em 1964, com a ajuda de
Nasser, é que estes diferentes grupos se uniram para formar a OLP.
E só em 1968, depois da guerra israelo-árabe, é que Abu Ammar
(Yasser Arafat) sai da clandestinidade e se torna "visível".
E a partir daí, a sua visibilidade vai tornar-se determinante,
porque vai ser a visibilidade da causa palestiniana, que nunca
mais abandonará as páginas dos jornais e os écrans das televisões.
Arafat seria várias vezes derrotado e cometeria vários erros
durante os longos anos que se seguiram, mas manteve-se sempre
como o rosto visível da Palestina e a única esperança da maioria
dos palestinianos.
Aqueles que depositavam nele as suas esperanças viram-no
ser expulso da Jordânia, em 1970, pelo rei Hussein, e viram-no,
12 anos depois, ser expulso do Líbano pelos israelitas. Viram-no
a ser abandonado pelos "irmãos árabes" e a ser obrigado a fugir
com os seus guerrilheiros nos barcos que os esperavam no porto
de Beirute, deixando atrás de si os enormes campos de refugiados
cujos habitantes seriam massacrados pouco tempo depois pelos
homens da milícia cristã Falange, aliados dos israelitas.
Mas nem por isso perderam o pé. No seu livro From Beirut to
Jerusalem, o jornalista norte-americano Thomas Friedman conta
como Arafat chegou a Amã em Outubro de 1982, pouco tempo
depois da entrada dos israelitas em Beirute Ocidental e dos

33
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

massacres de Sabra e Chatila. O líder da OLP foi recebido como um


herói naquela sua primeira visita à Jordânia depois do "Setembro
Negro" de 1970.
Friedman conta como os palestinianos tentavam
desesperadamente tocar-lhe: "O que é que estes palestinianos
tocavam? Penso que de certa forma tocavam em si próprios, para
terem a certeza de que ainda ali estavam, ainda estavam vivos,
ainda eram visíveis para o resto do mundo."
Arafat foi sempre descrito como um sobrevivente. E cada vez que
ele sobrevivia, os palestinianos sentiam que eram eles próprios que
tinham sobrevivido, mais uma vez. "Fomos empurrados para fora
da geografia. Não podemos agora sair do tempo", diria mais tarde o
líder palestiniano para convencer o seu povo de que era necessário
reconhecer Israel e iniciar conversações de paz.
Foi criticado por muitos por esta mudança de estratégia, mas
foi novamente um combate contra o esquecimento. Há muitos
anos que a OLP se tinha instalado em Tunes e a situação interna e
externa não permitia que Arafat esperasse mais.
Em Outubro de 1991, israelitas e palestinianos reúnem-se em
Madrid para discutir a paz. No seu discurso, Haidar Abdel Shafi,
chefe da delegação palestiniana, afirma: "Durante a maior parte
deste século fomos vítimas do mito de ‘uma terra sem povo’,
fomos impunemente descritos como os ‘invisíveis palestinianos’.
Perante uma tal cegueira deliberada, recusámo-nos a desaparecer
ou a aceitar uma identidade alterada."
Muitos encontros e conversações depois, os palestinianos
conseguiram aquilo que esperam venha a ser o princípio de um
verdadeiro Estado palestiniano. E, apesar de todas as críticas

34
STR NEW

Arafat foi sempre descrito como


um sobrevivente. E cada vez que ele
sobrevivia, os palestinianos sentiam que
eram eles próprios que tinham sobrevivido,
mais uma vez
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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Página com o texto original


de Alexandra Prado Coelho,
a 2 de Julho de 1994

36
que são feitas a Arafat, ninguém duvida que é dele o mérito de
ter conseguido que os palestinianos atravessassem o deserto sem
serem esquecidos pelo mundo.
A questão que agora preocupa muitos palestinianos — e
provavelmente o próprio Arafat — é a de saber se o chefe de um
movimento de libertação conseguirá transformar-se num governante.
Uma das razões usadas para explicar os contínuos adiamentos
do regresso histórico do líder da OLP a Gaza e Jericó era a de que
Arafat recearia o momento em que os palestinianos o começarão a
ver como alguém com responsabilidades na gestão das suas vidas,
alguém a quem se pedem contas quando as coisas não funcionam.
Hanan Ashrawi, que foi porta-voz da delegação palestiniana
às conversações de Washington e que rapidamente se tornou
uma das figuras preferidas pela comunicação social, afirmava
numa recente entrevista ao Nouvel Observateur: "Há também um
perigo. O perigo de Abu Ammar [Arafat] fazer nascer esperanças
irrealistas e aparecer como um salvador. Um salvador que se
arriscaria, ao fim de alguns dias, a revelar-se um homem como os
outros, obrigado a acomodar-se à realidade e incapaz de cumprir
as suas promessas. O verdadeiro teste para Arafat não é saber se
vai responder às exigências dos israelitas a nível de segurança, é
saber se vai responder às esperanças do seu povo."
Um dia, uma outra palestiniana explicara ao jornalista Thomas
Friedman a importância do líder da OLP: "Arafat é a pedra que
nós atirámos ao mundo", dissera. Mas os campos estão a mudar,
a Intifada acabou e as pedras, hoje, os palestinianos querem-nas
para construir.
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37
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Morrer por
Jerusalém

A direita israelita mobilizou os seus zelotas para protestar


contra a visita de Arafat e exigir a queda do Governo de
Rabin. No Muro das Lamentações, em Jerusalém, o lugar
mais sagrado do Judaísmo, centenas de pessoas prometeram
defender até à morte a "Capital Eterna de Israel"

Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, em Jerusalém

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Reportagem originalmente publicada a 3 de Julho de 1994

A
batalha por Jerusalém começou. Disse-o o líder
palestiniano Yasser Arafat, no discurso que fez numa
mesquita sul-africana aquando da posse de Nelson
Mandela, e disseram-no ontem as muitas centenas de
israelitas que se reuniram junto do Muro das Lamentações,
para rezar e protestar contra a visita que Arafat iniciou no
sábado aos territórios autónomos de Gaza e Jericó.
O apelo a esta manifestação de protesto tinha aparecido nos
jornais: "Este shabat [sábado sagrado dos judeus], em Jerusalém,
junta-te a centenas de famílias vindas de todo o país para defender
a Capital Eterna de Israel do terrorista mundial número um." E
em letras maiores: "O assassino vem aí! Ele apelou para uma jihad
[guerra santa] e agora vem aí."
Desde cerca das onze horas da manhã que camionetas
despejavam soldados e reforços policiais israelitas junto da Porta
de Damasco, a entrada da Cidade Velha de Jerusalém que dá
acesso ao bairro muçulmano.
Soldados armados com metralhadoras e bastões estavam
concentrados em todos os cruzamentos das estreitas vielas do
bairro onde a maior parte das lojas tinham fechado as portas.
No túnel que dá acesso ao Muro, os militares entretinham-se a
cantar, marcando o ritmo a bater com os bastões no chão. Num
canto, dois deles jogavam xadrez. No enorme espaço em frente ao
Muro os turistas passeavam como habitualmente, à torreira do sol.
O ambiente começou a mudar pouco depois do meio-dia.
Chegaram grupos de rapazes judeus, com kippas na cabeça e

39
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

caracóis caídos junto das orelhas, segurando bandeiras israelitas


enquanto esperavam reunidos nas pouquíssimas sombras
existentes. Depois começaram a chegar as famílias, com imensas
crianças e cestos de comida. Foi desdobrada uma faixa "Jerusalém
não tem medo. Sião será redimido."
Circulavam papéis: "Tragam as vossas armas e os vossos
chapéus", "Cuidado turistas, terroristas árabes estão a ser
libertados das prisões pelo ‘Governo’ de Rabin", ou "Bem-vindo
Arafat. Desejamos-te o mesmo que desejas ao povo judeu", este
último assinado pelo grupo Jihad Judaica para a Paz.
Mas, para quem não estivesse atento a estas provocações, o
ambiente era o de uma grande reunião de família ou uma festa
de casamento com mais convidados do que o habitual. Muitos
judeus rezavam voltados para o Muro das Lamentações, enquanto
as mulheres estavam mais preocupadas em vigiar as crianças.
"Shabat Shalom", ouvia-se constantemente, quando as pessoas se
encontravam.
Num grupo mais exaltado, uma mulher explicava em inglês
que o que é necessário é espírito de sacrifício. "A comunicação
internacional não quer saber, mas eu digo que se nos sentarmos
aqui e não sairmos durante dois, três, quatro dias, os que for
preciso, as atenções vão começar a focar-se em nós. Quando
começarmos a desmaiar e a ser levados em ambulâncias, as
pessoas vão começar a olhar."
Um dos homens que a ouvia tinha outra opinião: "Não é aqui
que temos que nos sentar. É no Knesset [Parlamento]. Temos que
ir para lá e recusarmo-nos a sair. A questão não é Arafat é este
Governo."

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HAVAKUK LEVISON

Judeus em protesto, junto ao Muro das Lamentações, em Jerusalém, em Julho de 1994

Circulavam papéis: "Tragam as vossas


armas e chapéus", "Cuidado turistas,
terroristas árabes estão a ser libertados",
ou "Bem-vindo Arafat. Desejamos-te
o mesmo que desejas ao povo judeu"
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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Derrubar o Governo
Minutos depois, em conversa com o PÚBLICO, a mulher que
falava em primeiro lugar apresentou-se como Sylvia, do Likud (o
principal partido da oposição de direita), habitante de Netanya,
uma cidade costeira, a Norte de Telavive, que se encontra agora
"ao alcance dos [mísseis] Katyusha".
"Arafat é um terrorista, um monstro e a comunicação social
internacional está a fazer deste regresso dele o regresso de um
herói", afirma. Quando lhe perguntámos se, no caso do Likud
chegar ao Governo, o acordo de paz já estabelecido será anulado,
responde: "Não estou disposta a morrer por Gaza, nem por Jericó.
Mas estou pronta a morrer por Jerusalém."
Por isso, o objectivo número um é derrubar o Governo de
Yitzhak Rabin e substituí-lo por um Governo de direita.
Na quinta-feira, Rabin acusou a oposição de estar a tentar
"derrubar o Governo através da violência nas ruas". "Não se sabe
onde é que isto irá conduzir", afirmou o primeiro-ministro. No
dia seguinte, os colonos e toda a direita que se opõe ao acordo de
paz manifestava-se à entrada de Jerusalém e ao longo da estrada
que conduz ao aeroporto de Ben Gurion, onde se viam, em certas
partes, pneus a arder.
Ontem, junto ao Muro das Lamentações, um homem explicava a
outro: "Temos deixado as coisas andar tempo demais. Merecemos
ser castigados por isso. A grande questão é Jerusalém, aí não
podemos ceder."

Refugiados judeus?
Rabin sabe disso e está preocupado. "Eles [a direita] têm estado

42
a recolher fundos, muitos fora do país, tudo na esperança de
derrubar o Governo", avisou. E, numa entrevista publicada sexta-
feira no Jerusalem Post, tentou acalmar os ânimos prometendo que
"Jerusalém não se transformará numa nova Berlim".
Mas são promessas que não vão acalmar a direita, que marcou
para ontem à noite mais uma grande manifestação de protesto e
montou uma Cidade de Tendas em frente do gabinete do primeiro-
ministro.
Nalguns papéis em inglês, distribuídos a quem passa nas
proximidades, pergunta-se: "Refugiados judeus aqui em Israel?
Será este o próximo passo? Venha ver por que é que deixámos as
nossas casas para tentar parar a política auto-destrutiva do nosso
Governo."
Ontem, em frente ao Muro das Lamentações, Sylvia, a militante
do Likud, dizia: "Não sei por que é que me esforço para falar.
O mundo não nos ouve." Do outro lado do túnel de acesso ao
Muro choviam papéis com a cara de Arafat e o anúncio de uma
recompensa para quem o matar. Um dos papéis caíu em cima da
banca de refrescos de um palestiniano. Calmamente, o homem
pegou no papel, rasgou as letras sobre a cabeça de Arafat e os
números por debaixo e entalou o retrato do líder da OLP na porta
da sua loja, num gesto de desafio que passou despercebido a todos
os que se amontoavam na rua estreita.

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43
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Yasser Arafat... e israelitas


redescobrem a Faixa de Gaza
"Onde é que no
mundo existe
um lugar como
a Palestina?"
Em Gaza, Arafat imprimiu o seu ritmo de vida frenética a
habitantes e visitantes. Num ambiente de euforia e mistério,
até já circulam rumores de que tem três sósias para despistar
potenciais assassinos. No território em que os israelitas só
entravam em uniforme de combate, a hora é de mudança
Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, na Faixa de Gaza

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Reportagem originalmente publicada a 4 de Julho de 1994

A
ndar a correr atrás de Arafat pelas ruas de Gaza é um
desporto ao qual já se habitwuaram os jornalistas.
E também os habitantes do território autónomo
palestiniano, que começam a adaptar-se à presença
daquele a quem preferem chamar Abu Ammar, como
que a estabelecer uma distância entre Yasser Arafat, a
personagem internacional, e o seu líder, que tratam familiarmente
pelo nome de guerra.
E mesmo que quisessem segui-lo para todo o lado, muito difícil
seria, porque o dirigente palestiniano continua a manter-se fiel
ao ambiente de secretismo e de improviso em que viveu a maior
parte da sua vida. Ontem, mesmo afónico, foi inaugurar uma
fábrica de sumos em Gaza, construída com capitais italianos, e
seguiu para visitar um campo de refugiados, junto da praia de
Gaza.
Tudo o que os habitantes da cidade conseguiam ver era a
espectacular passagem da sua comitiva, por entre o som das
sirenes, levantando enormes nuvens de poeira. À frente e atrás
dos carros que transportam Arafat e os restantes responsáveis
palestinianos, seguem jipes com os polícias em pé, erguendo as
metralhadoras no ar.
Este ambiente é, inevitavelmente, propício a todo o tipo de
rumores. Diz-se, por exemplo, que andam por Gaza três sósias
de Arafat, para despistar aqueles que o possam querer matar, ou
que o líder palestiniano não dorme no Hotel Palestina onde está
oficialmente instalado.

45
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Hotel Palestina
Os jornalistas, cheios de calor e empoeirados, tentam o melhor
que podem acompanhar esta primeira visita — ­ Arafat não gosta da
expressão e prefere chamar-lhe "o regresso" — ­ do líder palestiniano
aos territórios autónomos de Gaza e Jericó. Mas vêem-se obrigados
a adivinhar o que se vai passar a seguir, e a esperar horas em
frente do Hotel Palestina, um edifício branco de três andares,
sobranceiro à praia.
No terraço do hotel, polícias vigiam a rua, de metralhadora
em punho e debaixo de chapéus de sol às florinhas. Miúdos
aproveitam para vender bebidas ao bando de jornalistas — ­ os
preços variam entre 2 e 4 shekels, dependendo de Arafat estar ou
não no hotel no momento.
Uma delegação de deputados árabes, membros do Knesset
(Parlamento israelita) foi ontem visitar o líder palestiniano.
Chefiada por Abdul Wahab Darwash, do Partido Democrático
Árabe, a delegação incluía também representantes de várias
aldeias e localidades da Cisjordânia. Os polícias não pareciam
impressionados e revistaram conscienciosamente cada
visitante.
Pouco depois, chegou Umm Jihad, responsável na Autoridade
Nacional Palestiniana pelos Assuntos Sociais e viúva de Abu Jihad,
considerado o "pai da Intifada" e assassinado em 1988, em Tunes,
por um comando israelita. O rosto de Abu Jihad aparece quase tão
frequentemente como o de Arafat, pintado nas paredes das casas
ou nos cartazes espalhados por todo o lado.
Praticamente sufocada pelos jornalistas e câmaras de televisão,
Umm Jihad diz que se sente muito feliz e acha Gaza muito bonita.

46
DAVID SILVERMAN

Tudo o que os habitantes da cidade


conseguiam ver era a espectacular
passagem da comitiva de Arafat, por
entre o som das sirenes, levantando
enormes nuvens de poeira
47
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Um saco de hortaliças
Gaza está, no entanto, muito longe de ser bonita, embora
comecem a surgir sinais de mudança. Em muitos sítios estão em
construção prédios novos já com um aspecto diferente da maior
parte das casas em redor.
O centro da cidade é um gigantesco mercado que se estende
pelas ruas principais. A maior parte das lojas parecem garagens
improvisadas e tudo o que há para vender está espalhado pelos
passeios: roupa, sapatos, móveis embrulhados em plásticos,
ventoinhas.
No meio da confusão, distinguem-se as joalharias pelas montras
brancas e um ar particularmente limpo. Todo pintado de branco
e com ar de novo está também o Banco da Palestina, um dos
edifícios mais imponentes a par do Centro Cultural de Gaza.
Nas ruas o trânsito é completamente caótico — ­ em grande parte
por causa dos inúmeros burros que circulam na cidade.
Transformar Gaza num local turístico parece bastante difícil —­
ao contrário de Jericó —
­ , mas não falta quem tenha projectos para
explorar a praia.
Ao lado do Hotel Palestina há um outro hotel com um
restaurante chamado "Love Boat" e mais à frente o "Palm Beach".
Mas para receber visitantes, Gaza terá que perder algumas
características muito particulares como o ritual das entradas, por
exemplo.
Ontem de manhã, a Faixa esteve fechada durante mais de meia
hora porque os soldados israelitas que se encontram no posto de
controlo receavam que um saco encontrado sozinho tivesse uma
bomba. Afinal, não passavam de hortaliças.

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Lugar único
Tal como os estrangeiros, também os jornalistas hebraicos
estão a descobrir a "nova Gaza". Um artigo publicado ontem no
Jerusalem Post mostrava Gaza vista por um israelita. A primeira
dificuldade foi um árabe que fingiu não saber falar hebraico. Mas,
passado pouco tempo, impaciente com a tradução, passou a falar
fluentemente.
O jornalista diz que pouco parece ter mudado, as ruas
continuam cheias de lixo e as paredes de graffiti mas, escreve, "é
uma cidade muito diferente". "A atmosfera carregada com que
Gaza costumava aparecer aos olhos israelitas — uma mistura de
hostilidade, desespero e emoções contidas — dissipou-se."
O jornalista do Jerusalem Post segue depois para visitar a zona
comercial do campo de Jabalya, um dos locais mais miseráveis
da Faixa de Gaza e, explica, "um local onde os israelitas nunca se
aventuraram sem ser em uniforme de combate".
Gaza está a mudar, dizem todos. Mas a vontade dos
palestinianos é a de a ver mudar o mais rapidamente possível. Só
esta enorme vontade de mudança explica que um palestiniano de
Gaza diga a um jornalista israelita: "Onde é que no mundo existe
um lugar como a Palestina? Sol. Ar puro. Vida. Todo o mundo vai
querer visitar-nos. Por que é que não damos as mãos, israelitas e
palestinianos? Todos temos cabeça, temos juízo, temos crianças.
Por que é que não o fazemos?"

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Sede do Governo autónomo


palestiniano à espera de Arafat
Cenas da vida
em Jericó
Jericó, sede da autonomia palestiniana, prepara-se para
receber hoje o "Presidente" Yasser Arafat. Nesta cidade
que, ao contrário de Gaza, não tem tradição revolucionária,
ninguém ficou ofendido por o líder da OLP não ter começado
aqui a sua visita à Terra Prometida. Todos esperam o
momento de saudar o líder. Sejam partidários ou opositores,
com mais ou menos fé no futuro
Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, em Jericó

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Reportagem originalmente publicada em 5 de Julho de 1994

I
ntissar e Ammer. Intissar tem cerca de 40 anos, enviuvou há
pouco tempo e vive sozinha com o filho, Ammer, de quatro anos.
Têm uma casa de três assoalhadas mesmo no centro de Jericó,
por cima de uma loja de pão e bebidas. Na verdade, não se trata
exactamente de uma loja, Intissar põe o pão numa banca no
passeio e senta-se numa cadeira à porta.
No interior há apenas um frigorífico. Dentro de casa, as paredes
estão cheias de fotografias do marido e quatro tapetes com a imagem
da mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém. Ammer tem uma fotografia
vestido a rigor, com farda camuflada e espingarda na mão.
Intissar aproveita o facto de Jericó estar no centro das atenções
e aluga quartos aos jornalistas. Não fala inglês, mas desfaz-se em
simpatias. Faz questão de oferecer um almoço, frango com arroz,
mas apesar de ter uma mesa e várias cadeiras, toda a gente se
senta no chão para comer.
À noite, depois de fechar a sua banca, cerca das dez horas,
Intissar volta para casa, o único sítio onde o ar condicionado e
as várias ventoinhas tornam a vida suportável, e liga o televisor.
Escolhe um canal jordano, que transmite uma espécie de
telenovela e, enquanto come pedaços de melancia, assiste ao
telejornal da televisão jordana onde se vê Yasser Arafat em Gaza,
no terceiro dia da sua visita aos territórios.
O irmão de Intissar veio há pouco tempo dos EUA, onde
estudou, e espera agora encontrar um emprego num dos sete
bancos que, segundo ouviu dizer, deverão abrir em Jericó. Não
está muito optimista. Na sua opinião, toda esta excitação em torno

51
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

de Jericó vai acabar rapidamente quando a autonomia palestiniana


se estender ao resto da Cisjordânia.
Então, talvez a Autoridade Nacional Palestiniana, o "governo
provisório", se instale em Ramallah, por exemplo, uma cidade
muito maior e mais importante do que Jericó. Por agora, o irmão
de Intissar sente-se sufocado. Não pode sair para Israel, porque
as autoridades israelitas só autorizam a entrada em certos casos
e, mesmo que se tenha uma autorização para trabalhar, pode-se
chegar a um posto de controlo e voltar para trás. E não pode ir
para a Jordânia, onde os palestinianos daqui são tratados como
"cidadãos de terceira".
Apesar da euforia que rodeia a chegada de Arafat, muitos
palestinianos continuam cheios de dúvidas em relação ao futuro. E
mesmo as famílias ricas, que vivem nos Estados Unidos ou noutros
países, preferem esperar para ver o que acontece, em vez de se
precipitarem para Jericó com dinheiro e vontade de o investir.

Dawood Erikat. O líder do antigo Partido Comunista vive em


Jericó desde Maio de 1993, depois de ter passado 16 anos na prisão
e 19 no exílio, no Líbano. Recebe os jornalistas na varanda da sua
casa, ainda em fase de acabamento, com vista para o monte das
Tentações, onde Jesus foi tentado depois de ter jejuado durante 40
dias e 40 noites.
Não vê praticamente nada desde que esteve preso e foi torturado
pelos israelitas. Fala perfeitamente inglês, explica que estudou
no Cairo e costumava ler a Time e a Newsweek. "Agora são a minha
mulher e as minhas filhas que lêem, mesmo os jornais em árabe."
Ontem, Erikat estava particularmente divertido com a presença

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RULA HALAWANI/SYGMA VIA GETTY IMAGES

Apesar da euforia que rodeia a chegada


de Arafat, muitos palestinianos continuam
cheios de dúvidas em relação ao futuro
53
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

de um jornalista israelita. "Acho que foi a primeira vez que ele


ouviu um palestiniano falar assim, sobre a necessidade de sermos
bons vizinhos, de termos paz para sempre."
O seu partido não aceitou participar na Autoridade Nacional
Palestiniana, mas tenciona cooperar com Arafat. O acordo
estabelecido com Israel não é o melhor, mas "andámos um ou dois
passos de um longo caminho", diz Erikat.
Na sua opinião, Israel terá de respeitar a sua legitimidade
internacional e retirar-se de todos os territórios ocupados, como
está previsto nas resoluções 242 e 338 das Nações Unidas. Depois,
os palestinianos poderão instalar a sua capital em Jerusalém
Oriental, refere este responsável da "oposição" palestiniana que,
no entanto, não defende a divisão da cidade, mas sim um acordo
de "fronteiras abertas, sem muros de Berlim".
Embora, de um ponto de vista político, tenha ideias diferentes
das de Arafat, não receia que este tipo de questões vá provocar
divisões entre os palestinianos. "Entre os que apoiam o processo
de paz e os que são contra, ninguém quer o confronto, todos
querem uma luta democrática." E, por isso mesmo, espera que as
eleições se possam realizar em Outubro, como previsto.

Yasser Shelaby. Anda às voltas com o seu carro pelas ruas de


Jericó na esperança de encontrar turistas a quem possa mostrar
as principais atracções da cidade. É um tipo de trabalho que nos
últimos tempos não tem sido muito rentável, sobretudo quando
as autoridades israelitas fecharam a cidade aos turistas alegando
razões de segurança. Mas o período pior já passou e, nos últimos
dias, os turistas voltaram à cidade —
­ não tantos como antigamente,

54
é verdade, mas Yasser Shelaby tem esperanças de que o seu
número continue a aumentar.
O turismo é, juntamente com a agricultura, um dos trunfos
económicos com que os habitantes de Jericó contam. Mas,
segundo este guia, será sempre um turismo de passagem.
Primeiro, porque "os israelitas passaram muitos anos a dizer às
pessoas que não era bom ficar para dormir em Jericó, que era
melhor ficar em Jerusalém". Depois, porque, de facto, o clima
no Verão não ajuda: situada abaixo do nível do mar, Jericó é um
pequeno forno, com temperaturas acima dos 40 graus.
Apesar disso, Yasser Shelaby acredita que os estrangeiros virão
— e aconselha os meses de Inverno — para ver o que resta da antiga
cidade de Jericó, cujos muros caíram ao som das trombetas, como
conta a Bíblia; a fonte do profeta Elias, cuja água, considerada
sagrada, serve toda a cidade, tornando-a autónoma; ou o Palácio
Hisham, que demorou 19 anos a construir para ser habitado
apenas durante quatro, ao fim dos quais foi destruído por um
terramoto, no ano 747.
Para Shelaby, não importa se Arafat vai ou não ficar a viver em
Jericó e ninguém levou a mal o facto de ter começado a sua visita
por Gaza — "não somos senhores para ficar ofendidos por isso".
O que realmente o preocupa é o facto de os habitantes de Jericó
não poderem entrar livremente em Israel. "Querem a paz, mas não
podemos viajar livremente como quaisquer dois países em paz."

Televisão experimental. Nos estúdios da televisão palestiniana


há uma enorme azáfama, mas ninguém tem a certeza de tudo
estar pronto para funcionar no momento em que Arafat chegar.

55
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Reportagem na edição
de 5 de Julho de 1994
do PÚBLICO

56
"Não vamos passar a chegada de Arafat e depois interromper
novamente as transmissões porque não temos programas
suficientes", explica uma jornalista palestiniana que antes
trabalhava para uma televisão alemã.
A PBC (Palestinian Broadcasting Corporation) reúne a rádio e a
televisão palestinianas, a primeira já a emitir e a segunda em fase
preparatória.
Instalada inicialmente no Hotel Hisham, a televisão mudou-
se há cinco dias para uma pequena casa onde tem já um estúdio
montado. Mas o stock de programas, por enquanto, ainda só inclui
alguns documentários feitos por todo o lado e o corrimão das
escadas ainda está a ser pintado.
No futuro, estas instalações passarão provavelmente a ser
só o "estúdio de Jericó", quando for dado o segundo passo da
autonomia palestiniana e a PBC se instalar em Ramallah, como,
talvez, o Governo.
Quando a autonomia (ainda que limitada) for aplicada ao resto
da Cisjordânia, Jericó provavelmente será esquecida e voltará a ser
uma pacata e soalheira aldeia de província. Mas, por enquanto, é
a sede da autonomia palestiniana e prepara-se para receber hoje o
"Presidente" Yasser Arafat.
Poderão ser poucos os dias de glória de Jericó, mas serão
suficientes para reentrar na História.

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57
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

50 anos
de Israel
58
A 14 de Maio de 1948
David Ben-Gurion,
líder do governo
provisório, proclama
a independência
de Israel. Em 1998,
a festa dos 50 anos
sobre aquela data atrai
jornalistas de todo
o mundo. Prosseguem
as negociações entre
palestinianos
e israelitas.
59
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

A "traição"
dos arquivos
israelitas
Ilan Pappé acredita que os judeus cometeram crimes contra
os palestinianos quando, há 50 anos, criaram o seu Estado.
E, usando os arquivos políticos oficiais, prova o que diz.
Ele é um dos novos historiadores israelitas, um grupo de
estudiosos que tem vindo a pôr em causa alguns dos velhos
mitos sionistas. Em Israel muitos consideram-no um traidor.
Mas, no fundo, foram os arquivos que os traíram
Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (texto) e Fernando Veludo (fotos), em Israel

60
Entrevista originalmente publicada a 27 de Abril de 1998

P
ertencer a um grupo chamado os "novos historiadores" não
é uma posição fácil para um israelita. Ilan Pappé sabe-o
melhor do que ninguém. O seu livro The Making of de Arab-
Israeli Conflict, 1947-1951, publicado em 1992, não o tornou
muito popular no seu próprio país e valeu-lhe mesmo ser
acusado de "traidor" e "amigo dos árabes".
O livro, que se baseia em documentos recolhidos nos arquivos
políticos israelitas, tenta analisar o nascimento de Israel e os
primeiros anos do Estado de uma forma mais objectiva do que a
história oficial sionista.
E o que Pappé — e, tal como ele, outros novos historiadores,
em diferentes trabalhos — conclui é que a construção de Israel
foi feita à custa dos palestinianos, expulsos das suas casas e das
suas terras, que houve episódios violentos, e que os judeus não se
limitaram a instalar-se numa terra vazia, como os jovens israelitas
aprenderam na escola durante muito tempo.
Ilan Pappé assume-se como um pós-sionista, um israelita para
quem o sionismo faz parte do passado. "O que quero é que a
sociedade israelita deixe de se basear numa ideologia responsável
por tantos crimes contra diferentes grupos. Essa ideologia, o
sionismo, continua hoje a ser dominante", afirma o historiador no
seu pequeno gabinete na Universidade de Haifa, onde recebeu o
PÚBLICO.
Não foi por acaso que, a partir dos anos 80, alguns historiadores
começaram a olhar para a História de Israel nesta nova
perspectiva. Segundo Pappé, houve duas razões principais. A

61
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

REUTERS

Árabes em fuga, numa


zona não identificada na
Galiléia, em Outubro de
1948. Dezenas de milhares
como eles saíram das suas
casas durante e após a
independência de Israel

Imigrantes judeus do
Iémen são recebidos num
acampamento, em 1949,
por enfermeiras israelitas.
Fazem parte de um grupo
de recém-chegados que vão
começar uma vida nova

62
REUTERS

O que é importante é que as crianças


aprendam que ao fim de dois mil anos
os judeus regressaram para uma
terra que estava vazia e que em 1967
vizinhos maus atacaram-nos, não
está muito claro porquê
63
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

primeira tem a ver com uma sucessão de acontecimentos que


começaram a pôr em causa o carácter quase mítico que o Estado
judaico tinha assumido aos olhos dos próprios judeus, depois das
extraordinárias vitórias nas guerras de 1948 e 1967.
Em 1973, a guerra do Yom Kippur veio pôr em causa o mito da
invencibilidade do Exército israelita; em 1977, o omnipresente
e todo-poderoso Partido Trabalhista, até aí praticamente um
sinónimo do próprio Estado, foi pela primeira vez derrotado em
eleições pela direita; depois houve a visita do Presidente egípcio
Anwar Sadat a Israel, e a percepção de que havia um interlocutor
do lado árabe; em 1982, a intervenção militar no Líbano marcou
a primeira guerra em relação à qual não houve um consenso na
sociedade israelita; e, finalmente, os palestinianos lançaram a
Intifada e o Exército israelita viu-se confrontado com um desafio
ao qual não sabia como responder. "Tudo isto fez com que
algumas pessoas começassem a fazer perguntas sobre as verdades
básicas do sionismo", explica Pappé.
Para um historiador como ele, este percurso crítico acabou por
conduzir aos arquivos políticos do Estado, que são abertos ao fim
de 30 anos — em 1977/78 foram abertos os relativos a 1947/48, os
anos da formação de Israel. Depois de algum tempo de estudo, o
ponto de viragem surgiu em meados dos anos 80.
"Começámos a escrever em inglês porque não podíamos
escrever em hebraico sobre estas questões, depois [em
Israel] perceberam que o que escrevíamos estava a despertar
interesse no mundo e que estávamos a ser publicados em sítios
considerados importantes. Acusaram-nos de traição e de falta de
profissionalismo."

64
Mas como no estrangeiro o trabalho dos novos historiadores era
reconhecido e respeitado, o mundo académico israelita acabou
por, lentamente, começar a aceitar algumas das questões que eles
levantavam.
Nos últimos anos tem havido progressos e a prova disso é o facto
de, para assinalar as comemorações do 50.º aniversário de Israel,
a televisão pública ter produzido uma série documental, Tkuma,
onde é dada voz aos palestinianos, onde estes podem não só
contar a sua versão dos acontecimentos, mas, sobretudo, mostrar
que, tal como os israelitas, são homens, mulheres e crianças e que
viveram tragédias pessoais.
Pela primeira vez num meio de comunicação como o impacto
da televisão, os palestinianos deixam de ser um grupo indistinto
e ganham rostos. A série pode assim colmatar algumas lacunas
graves que o sistema de ensino israelita continua a ter em relação
a estes problemas. Aliás, em resposta ao trabalho dos novos
historiadores, foi até criado um novo programa escolar que Pappé
descreve como "ainda mais sionista e mais fundamentalista". Para
o historiador, um dos exemplos mais graves é um recém-editado
livro para a escola primária, intitulado o Jubileu de Israel, que não
menciona os palestinianos, ou [os acordos de paz de] Oslo, ou
sequer o acordo de paz com o Egipto.
"Na perspectiva deles", continua Pappé, "o que é importante
é que as crianças aprendam que ao fim de dois mil anos os
judeus regressaram para uma terra que estava vazia e que em
1967 vizinhos maus atacaram-nos, não está muito claro porquê
ou quem eram estes vizinhos, mas Deus estava com o povo
judeu e em seis dias derrotámo-los. O mundo está contra nós,

65
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

REUTERS

Soldados israelitas limpam


as armas nas trincheiras
na guerra de 1956 contra
o Egipto

Judeus recém-chegados da
Europa, num acampamento
em Beit Lid, logo após a II
Guerra Mundial

66
REUTERS

Serão os mitos e os heróis dos anos


40 ainda relevantes nos anos 90?
Porque não podemos ter heróis
da paz, em vez de heróis da guerra?
67
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Um dos trabalhos de uma


série de reportagens e
entrevistas com as quais o
PÚBLICO assinalou os 50
anos do Estado de Israel

68
mas estamos a ficar cada vez mais fortes à medida que os anos
passam. Esta é a mensagem que as crianças nas escolas primárias
receberiam se ouvissem apenas a versão oficial".
Aquilo que historiadores como Pappé, Benny Morris (The Birth
of the Palestinian Refugee Problem, 1947-48) ou Tom Segev (The
Seventh Million) tentam fazer é particularmente difícil num país
em que o movimento sionista tentou unir os diferentes grupos
de judeus vindos de diversas partes do mundo precisamente em
torno de heróis e mitos fundadores.
Em parte para compensar aquilo que era visto como a
passividade com que os judeus viveram a diáspora e o próprio
Holacausto, os "pais" do Estado apostaram em histórias de
resistência e coragem, como a dos zelotas judeus que defenderam
a fortaleza de Massada dos romanos no ano de 73 DC, preferindo
suicidar-se em conjunto do que render-se ao inimigo.
Durante muito tempo, os jovens soldados das IDF (Forças de
Defesa de Israel) faziam o seu juramento de bandeira em Massada.
Ilan Pappé admite que ter heróis é importante para qualquer
sociedade. Mas acha que é altura de questionar certos princípios:
"Serão os mitos e os heróis dos anos 40 ainda relevantes nos anos
90? Porque é que não podemos ter heróis da paz, em vez de heróis
de guerra?" É que, na sua opinião, é evidente que algo está a falhar
nos velhos mitos.
"Penso que uma sociedade que em 1998 ainda é uma força
ocupante, um pária perante a opinião pública mundial, mais do
que nunca dividida internamente por conflitos religiosos, culturais
e ideológicos, deveria perguntar-se a si própria se os seus mitos
ainda são eficazes."

69
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O historiador sabe, no entanto, que a sua posição é minoritária


em Israel e, por isso mesmo, está preocupado com o futuro. Entre
os pós-sionistas, como ele, e aqueles a que chama neo-sionistas, os
nacionalistas radicais, há a grande maioria dos israelitas que tem
posições menos extremadas, mas que de uma maneira geral tende
a simpatizar mais com o segundo grupo. "E o que os neo-sionistas
dizem é que se para mantermos a Nação tivermos que sacrificar a
democracia, então que seja assim. Foram eles que assassinaram [o
antigo primeiro-ministro trabalhista] Yitzhak Rabin."
Pappé está convencido de que pelo menos a curto prazo "o neo-
sionismo tem muito mais hipóteses de se tornar a ideologia de
Israel do que o pós-sionismo". Quanto ao longo prazo, as coisas
poderão ser diferentes.
"Julgo que nos esperam erupções violentas, que vão aproximar
as pessoas do nosso ponto de vista. Se as nossas análises estiverem
certas, isso significa que o pior ainda está para vir tanto na relação
entre Israel e os palestinianos como dentro do próprio Estado."

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70
A História pelos olhos
de um sionista
Da nossa enviada Alexandra Prado Coelho, em Israel

Texto originalmente publicado a 27 de Abril de 1998

P
ara David M. pouco importa o que possam revelar os
arquivos do Estado ou os novos historiadores — a História é
tal como ele a viu e a viveu. As suas certezas são absolutas
e inquestionáveis, a sua entrega ao sionismo é total. As
suas conversas são monólogos que, apesar das notas que
tomou para que não houvesse esquecimentos, se perdem
em memórias que começam na Grécia, quando ainda era criança
e um dia o pai lhe disse: "Vamos para a Palestina. Aqui não posso
continuar a viver."
A razão para esta decisão repentina, que deixou a mãe de David
desfeita em lágrimas, fora a notícia do massacre dos judeus de
Hebron.
Chegaram em 1932. David tinha 13 anos, mas nunca mais
se esqueceu de que, na Palestina sob o mandato britânico, os
judeus não eram autorizados a entrar na Gruta de Machpelah, em

71
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

GETTY IMAGES

Hebron em 1898 (mesquita e Gruta de Machpelah)

Um sionista convicto como David M.


nunca aceitará a ideia de que o Estado
de Israel possa ter sido criado à custa
dos palestinianos
72
Hebron, onde estão enterrados os Patriarcas. Um dia, numa visita
de estudo da escola católica que frequentava, foi o único que ficou
à porta da Gruta, porque era o único judeu.
"Quando libertámos Hebron na guerra de 1967, fui lá com a
minha mulher e os meus filhos e foi essa a minha grande vitória,
ter podido subir os degraus e entrado na Gruta. Nessa altura disse
aos meus filhos: nunca mais abandonaremos Hebron."
David, que ainda hoje tem um negócio de recordações para
os peregrinos católicos que visitam a Terra Santa, não gosta dos
árabes. Mas o seu ódio vai sobretudo para os britânicos e para a
forma como estes trataram os judeus da Palestina antes de 48. Não
esconde, por isso, a satisfação quando recorda episódios como o
atentado contra o Hotel King David, onde funcionava o quartel-
general da administração civil e militar britânica. "Os homens de
[Menachem] Begin [líder do grupo extremista Irgun] disfarçaram-
se de árabes e meteram a dinamite dentro dos contentores que
todas as manhãs abasteciam o hotel de leite. Depois telefonaram
a avisar que o King David ia explodir, mas os ingleses não
acreditaram. Nunca pensaram que nós fossemos capazes", conta.
"Se não fosse a nossa luta, os ingleses nunca teriam deixado Israel.
Foi o princípio do fim do Império Britânico."
Um sionista convicto como David M. nunca aceitará a ideia
de que o Estado de Israel possa ter sido criado à custa dos
palestinianos. O seu grande desgosto é precisamente o mundo não
reconhecer que os judeus "podiam ter morto muita gente mas não
o fizeram".
O que não o impede de, mais à frente na conversa, disparar
de repente: "Já ouviu falar de Deir Yassin?". É, provavelmente,

73
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

o episódio mais negro da guerra de 48 — uma aldeia inteira


massacrada pela milícia Irgun. "Um truque psicológico", chama-
lhe David M. A partir daí, noutras aldeias, os palestinianos
fugiram, abandonando as suas casas, por recearem sofrer a
mesma sorte que os habitantes de Deir Yassin. "O ataque foi um
sucesso. Não ficou vivo nem um cão."
Foi há muitos anos, mas lembra-se como se fosse neste
momento de, poucas semanas depois, estar nas trincheiras a
defender Telavive dos ataques árabes vindos de Jaffa e de ver
passar dois blindados — "eram os únicos que tínhamos, roubados
aos ingleses" — em direcção a Jaffa. "Parem de disparar. É o
Exército de Begin que ataca. Rendam-se se querem salvar a vida",
gritava um soldado de dentro de um dos blindados.
"Quando ouviram o nome de Begin, os árabes lembraram-se
de Deir Yassin e fugiram apavorados", recorda David, na altura
combatante da Haganah (o exército judaico do pré-Estado). "Os
ingleses tinham-lhes dito para ficarem, porque os judeus não
tinham armas. Era verdade, mas conseguimos sempre vencer
graças a golpes psicológicos como este."
Bem vivos na sua memória estão também os seis dias que
durou a guerra de 1967. Eram 8h30 da manhã quando as sirenes
começaram a tocar em Telavive, onde vivia e ainda vive, e as
pessoas correram a refugiar-se nas caves das suas casas. Durante
quatro dias, as únicas notícias que recebiam do exterior eram
as emitidas em hebraico pelas rádios árabes, que anunciavam
avanços extraordinários das suas tropas.
Enquanto os egípcios afirmaram estar a 10 quilómetros de
Telavive, a rádio israelita permanecia muda, indiferente aos

74
esforços desesperados para a sintonizar. "Ao 5.º dia ouvimos
'Aqui Rádio Israel. O nosso Exército destruiu a aviação dos países
árabes, as nossas forças entraram na Cidade Velha de Jerusalém,
as nossas forças ocuparam o Muro das Lamentações.' É impossível
descrever a nossa alegria."
David encosta-se para trás com a mão no peito, exausto, com
lágrimas nos olhos. Aos 80 anos, esta é a "sua" História de Israel, e
será sempre assim.

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75
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Palestinianos israelitas
lutam para ser cidadãos
iguais aos judeus dentro
do mesmo Estado
Sem nada
para celebrar
São palestinianos que um dia aceitaram ser cidadãos
de Israel. São árabes que vivem num Estado judaico.
Incompreendidos pelos outros palestinianos, também
choram as aldeias que perderam em 1948. No 50.º
aniversário do Estado de Israel, são cidadãos com direito de
voto, com bilhete de identidade, mas sem nada para celebrar
Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (texto) e Fernando Veludo (foto), em Israel

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Reportagem originalmente publicada a 2 de Maio de 1998

A
família Sawad, palestinianos com nacionalidade israelita,
vive há muito tempo na aldeia de Sahali, na Galileia. É
verdade que a aldeia é pequena — são apenas seis casas
—, mas desde que os "bulldozers" vieram e derrubaram
três delas, a aldeia ficou reduzida a metade e pessoas que
ontem tinham um tecto estão hoje a viver em tendas ao
lado dos destroços da antiga casa.
Sahali é aquilo a que em Israel se chama uma aldeia "não
reconhecida", ou seja, sem existência legal, embora a família
Sawad garanta que as suas casas estavam naquele mesmo sítio
há 40 anos. O litígio começou, aparentemente, há alguns anos,
quando as autoridades israelitas decidiram que as casas tinham
que ser derrubadas porque a área era necessária para alargar a vila
judaica de Adi.
Hashem Mahameed é também um palestiniano de
nacionalidade israelita e membro do Knesset (Parlamento). Vem
visitar as famílias desalojadas de Sahali e é recebido com todas as
honras. Numa tenda improvisada, os homens da aldeia esperam-
no. Primeiro servem uma chávena de café amargo, para marcar a
tristeza do acontecimento que ali os reúne, depois, ao bom estilo
árabe, vão circulando bebidas frescas, bananas, cigarros, mais
café. Os representantes da aldeia fazem os seus discursos. Hashem
Mahameed ouve-os, faz perguntas, visita as casas destruídas, e as
novas que começaram já a ser construídas ao lado das primeiras.
Os palestinianos israelitas vivem uma das situações mais difíceis
que é possível imaginar. Há 50 anos, quando Israel foi criado,

77
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

aceitaram ser cidadãos do novo Estado e viver dentro das suas


fronteiras iniciais, ao contrário da maioria dos palestinianos, que
fugiram para a Cisjordânia, para Gaza, ou para os países árabes
vizinhos. Mal vistos pelos outros árabes, os palestinianos israelitas
também nunca conseguiram integrar-se entre os judeus. Divididos
entre dois mundos, sentem-se tão longe de um como do outro e
ainda hoje lutam para definir a sua identidade.
Quando Israel festeja os seus 50 anos de existência, eles não têm
nada para celebrar. "A independência de Israel marca o momento
em que os palestinianos perderam a sua terra, as suas cidades, as
suas aldeias", explica o deputado.
E os que ficaram, como aquele grupo de homens reunidos à
sua volta, são também refugiados, embora não possam beneficiar
desse estatuto. "Ele" — e aponta para um dos presentes — "é um
refugiado dentro do seu próprio país. Em 48 ou 49 a sua aldeia
foi destruída pelo Exército israelita é nunca mais pôde voltar".
Na altura, os soldados disseram-lhe que poderia voltar em duas
semanas. "As duas semanas prolongaram-se até hoje, 50 anos
depois. Como é que eu lhe posso dizer, vai e celebra o aniversário
de Israel?", pergunta Hashem Mahameed.
O quadro que o deputado traça da situação dos palestinianos
israelitas é negro: "As nossas casas são destruídas, não temos
autorização para construir, a nossa juventude está desesperada,
não temos escolas suficientes, não temos os currículos adequados,
não temos a nossa própria história, o nosso folclore, a nossa
cultura. Não temos indústrias. Temos uma elevada percentagem
de desempregados, mais de 50 por cento da nossa comunidade
vive abaixo do nível de pobreza."

78
Os palestinianos que vivem em Israel também choram as aldeias que perderam em 1948

Mal vistos pelos outros árabes, os


palestinianos israelitas também nunca
conseguiram integrar-se entre os judeus.
Divididos entre dois mundos, sentem-se
tão longe de um como do outro e ainda
hoje lutam para definir a sua identidade
79
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Num Estado que se define como judaico, os cidadãos não judeus


são uma espécie de "filhos ilegítimos".
Há, entre os palestinianos israelitas e os judeus israelitas uma
luta surda que passa, em grande parte, pela terra. É uma luta que
se mede em metros quadrados. Mahameed explica: "Grande parte
da terra em Israel pertence à Agência Judaica. Quando um casal
[árabe israelita] quer comprar uma casa ou um terreno perto da
sua aldeia não tem autorização para o fazer porque é terra que
pertence ao povo judeu. Há terra em Israel que pertence até aos
judeus que estão em Manhattan. Mas nós, que no passado fomos
os proprietários dessa terra, não somos autorizados a construir
uma casa." E repete: "Como é que eu posso ir ter com esse casal e
dizer-lhe para comemorar?"
E a guerra prossegue, agora com outros números. "Os nossos
filhos são considerados um perigo demográfico. Somos contados
todos os dias para ver quantos nasceram e quantos morreram,
para manter o equilíbrio demográfico no país. Como é que este
'perigo potencial' pode celebrar um Estado que olha para ele dessa
maneira?"
O papel de Hashem Mahameed também não é fácil. Como
membro do Knesset ele aceita participar numa das principais
instituições israelitas, apesar de achar que esse mesmo Estado
discrimina o seu povo? "Às vezes pergunto a mim próprio o que
é que estou a fazer ali. Tenho a sensação de ser um estranho, um
estrangeiro, um perigo potencial. Sou olhado como um objecto
suspeito que a qualquer momento pode explodir."
Como palestiniano israelita ele tem, efectivamente, algumas
limitações. Não pode, por exemplo, participar em determinadas

80
comissões parlamentares que discutem "assuntos secretos",
geralmente questões relacionadas com a segurança do país.
"Mas depois penso que fui eleito por pessoas que são cidadãos
deste Estado, e que não me estão a fazer favor nenhum por me
deixarem estar ali."
Acredita que é sendo afirmativo, pressionando, falando alto,
que se conseguem as coisas. Recorda que em 1992 as pressões dos
deputados e políticos árabes permitiram que a ajuda da assistência
social às crianças da sua comunidade passasse a ser igual à que
recebiam os israelitas — até então era metade.
Durante muito tempo, o conflito israelo-palestiniano era uma
prioridade na agenda dos árabes israelitas. Mas o processo de
paz e os acordos de Oslo alteraram as coisas e levaram muita
gente a pensar que, se já se estava a caminhar para paz, era
altura dos cidadãos palestinianos de Israel (cuja situação nem
foi mencionada nos acordos de Oslo) começarem a pôr os seus
problemas em primeiro lugar.
"Democracia não é apenas podermos votar nas eleições ou ter
um bilhete de identidade. Democracia é também podermos ter um
tecto para viver", diz Mahameed, olhando para as casas destruídas
de Sahali. "Se isso não é possível, então ainda estamos muito longe
da democracia.”

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81
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Os kibbutzim, uma das


instituições fundadoras
do Estado de Israel, têm de
se adaptar para sobreviver
Saudades do
duche colectivo
Dantes as crianças nem dormiam em casa dos pais e havia
duches colectivos. Agora os kibbutzim são diferentes. Já não
podem viver só da agricultura e apostam na indústria. Muitos
jovens vão-se embora porque o estilo de vida comunitário
não lhes diz nada. E até há quem queira pôr em causa uma
instituição como o refeitório, onde toda a gente come as três
refeições diárias, tal como faziam os pioneiros há 50 anos,
quando Israel nasceu
Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (texto) e Fernando Veludo (fotos), em Israel

82
Reportagem originalmente publicada a 3 de Maio de 1998

A
quilo de que Zvica e Ithamar sentem mais falta é do duche
colectivo, das longas discussões que aí se tinham, das
canções que se cantavam. Hoje o kibbutz Zoba tem um
jacuzzi, mas não é a mesma coisa. Ithamar queixa-se de
que quando vai lá está sempre vazio, Zvica promete que
da próxima vez que for o avisa. Mas o facto de existir um
jacuzzi é sinal de que, ao contrário de que acontece com a maioria
dos kibbutzim — a instituição que durante muito tempo simbolizou
o espírito do novo Estado de Israel — Zoba não está em crise, e
goza até de uma situação económica confortável.
Zoba tem exactamente a mesma idade de Israel: 50 anos. Foi
criado em Outubro de 48, poucos meses depois do nascimento
do Estado. Na escola das crianças que têm entre um e três anos, a
mulher de Zvica está a preparar as coisas para o dia do aniversário
do país. "Como eles são muito pequenos, a forma que arranjei
foi explicar-lhes que o Estado — um conceito que eles não sabem
muito bem o que significa — faz anos como eles. Pomos uma
fotografia no placard, fazemos uma festa. Usamos muito as cores
nacionais, o azul e o branco, para eles se habituarem", explica.
Há também uma escola para as crianças entre os três e os seis
anos e depois entre os seis e os nove. A partir daí, as crianças
passam a frequentar uma escola que serve vários kibbutzim da área.
Em Zoba têm depois as suas casas — uma para os adolescentes,
outra para os mais velhos — para onde vão quando lhes apetece.
É um sistema muito diferente do que foi idealizado há 50 anos e
que era uma das principais características dos kibbutzim: numa

83
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

vida que se pretendia que fosse totalmente comunitária, as


crianças eram colocadas desde que nasciam numa casa à parte e
só estavam com os pais durante algumas horas por dia, voltando
depois para dormir na "casa das crianças".
A primeira alteração, conta Ithamar, surgiu com a decisão de
deixar os bebés com as mães durante as seis primeiras semanas.

Em casa dos pais


Depois, de pequena mudança em pequena mudança, em 1983 veio
a revolução — os filhos passaram a viver em casa dos pais. Foi um
golpe nos ideais comunitários, mas outros haveriam de se seguir.
A agricultura deixou de garantir o sustento dos kibbutzim, e foi
preciso adaptá-los à nova realidade económica. Zoba apostou numa
fábrica (a única no país) de fabrico de vidros, normais e à prova de
bala, e noutra de mobiliário. Mais recentemente — e seguindo uma
ideia que está a ser aplicada em vários outros kibbutzim — construiu
um parque de diversões para visitantes de fora.
São cerca de 700 pessoas que vivem em Zoba, contando com
as crianças — e actualmente, por razões económicas, já não
são aceites novos membros. Muitos trabalham em actividades
ligadas ao kibbutz: nas fábricas, na agricultura, na lavandaria,
no refeitório. Mas há quem viva aqui e trabalhe fora — uma coisa
impensável há 30 ou 40 anos. No entanto, mesmo esses entregam
o seu ordenado para o orçamento comum e, quando são feitas as
contas, recebem exactamente o mesmo que todos os outros.
A luta agora é para manter em comum o que ainda funciona
em comum porque, se isso não acontecer, nada distinguirá os
kibbutzim de uma aldeia qualquer. É por isso que Zvica (que

84
Numa vida que se pretendia totalmente
comunitária, as crianças eram colocadas
desde que nasciam numa casa à parte.
Depois, em 1983, veio a revolução — os
filhos passaram a viver em casa dos pais
85
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

chegou a Zoba em 1980, integrado num movimento de juventude)


e Ithamar (que se tornou membro do kibbutz em 1962, depois do
seu curso de agricultura) insistem em falar do refeitório.
"Num kibbutz há sempre discussões ideológicas. Agora
discutimos se o orçamento para a comida deve ser dividido pelas
famílias ou se deve continuar a ser colectivo", explica Ithamar.
Percorrendo com o olhar a enorme sala de refeições, onde dezenas
de pessoas enchem os pratos e, de tabuleiros na mão, procuram
lugar a uma mesa, Zvica suspira: "O refeitório é muito importante
porque as três refeições diárias que comemos aqui são um
momento de encontro social. Se houver alguma alteração, isso vai
ter um enorme impacto na vida do kibbutz."
Foi o que aconteceu noutros kibbutzim onde, por causa das
crescentes dificuldades económicas, os ideais comunitários foram-
se perdendo rapidamente. Os casos mais graves terminaram mesmo
em falência.Mas o próprio Ithamar confessa que ele e a mulher
raramente jantam no refeitório porque à noite preferem comer uma
coisa mais leve em casa. Muitas das alterações que ao longo dos anos
foram sendo introduzidas na vida comunitária dos kibbutzim têm a ver
precisamente com o problema da privacidade. Quando os fundadores
do Zoba se estabeleceram aqui eram cerca de dez pessoas, que viviam
em três ou quatro casas de madeira, onde nem sequer tinham água
corrente, e trabalhavam os campos do nascer ao pôr-do-sol.
Mais tarde receberam da Suécia o dinheiro para construir a
primeira sala de jantar colectiva, que depois foi sendo alargada à
medida que ia chegando mais gente. Sarah, que hoje trabalha na
lavandaria, chegou a Zoba nesses primeiros anos e ainda se lembra
de como a vida era difícil mas de como isso era ultrapassado pelo

86
enorme entusiasmo das pessoas que acreditavam que aquela forma
de vida era o futuro do Estado de Israel.

A questão da privacidade
Os jovens de hoje não são assim. "Falam em mudanças, porque
acham que trabalham muito e queriam ganhar mais", diz Ithamar,
cuja filha optou por viver fora de Zoba, como acontece com muitos
dos jovens que nasceram e cresceram nos kibbutzim. "É verdade
que aqui sabemos mais da vida uns dos outros do que numa
cidade. Mas a questão da privacidade já mudou muito. Acho que
hoje ninguém interfere na vida privada de ninguém."
Só que a fronteira nem sempre é fácil de definir. É verdade que
aqui ninguém manda mais do que os outros. "Não há nenhuma
hierarquia. Há pessoas que são responsáveis por certas funções
rotativamente. Temos uma espécie de 'presidente da Câmara' que
muda de dois em dois anos, e o director da fábrica, por exemplo,
muda de cinco em cinco." Mas, afinal, o dinheiro que cada um
ganha é de todos, os carros pertencem à comunidade e são
requisitados à medida das necessidades de cada um, se alguém
tem problemas de saúde o kibbutz assume todas as despesas,
quando alguém se reforma é o kibbutz que paga a reforma.
"A diferença", explica Ithamar, "é que nunca dizemos 'isso é um
problema dele'. É sempre um problema nosso. E enquanto for
assim está tudo bem". Mesmo que já não cantem todos juntos no
duche, que as grandes discussões ideológicas se tornem raras e
que não seja fácil encontrar os amigos no jacuzzi.

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87
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Hebron, a cidade dividida


Uma vida
absurda

Uma parede de arame à entrada de uma rua. Do lado de cá, a


confusão do mercado. Do lado de lá, lojas fechadas, silêncio. A
cidade dividida faz 30 anos
Dos nossos enviados Alexandra Prado Coelho (textos) e Fernando Veludo (foto), em Hebron

88
Reportagem originalmente publicada a 3 de Maio de 1998

"E
stá a ver?" Rifat dá pequenos saltinhos para a frente
e para trás no meio da rua do mercado, em Hebron.
"Aqui estou em território controlado pela Autoridade
Palestiniana, agora já estou em território israelita.”
A linha que desde Janeiro de 1997 divide a cidade de
Hebron, na Cisjordânia, passa exactamente pelo meio
de uma confusa rua de mercado com lojas de ambos os lados e
vendedores ambulantes com as suas bancas a venderem legumes
e frutas.
Sentado em cima do bloco de betão que marca a divisão (quem
não sabe não repara nela) está um polícia palestiniano com um ar
aborrecido.
Um dos vendedores ambulantes é o tio de Rifat, que dantes tinha
uma loja na parte da cidade que agora pertence aos israelitas. "Ele
podia continuar a tê-la aberta. Mas para quê?", pergunta Rifat,
"ninguém vai para aquele lado". O jovem palestiniano, que está a
estudar na Universidade de Belém, oferece-se como cicerone para
mostrar o absurdo que é viver assim.
A verdadeira divisão entre os dois lados está um pouco mais à
frente, e, essa sim, não passa despercebida: a entrada de uma rua
está tapada por uma verdadeira parede de arame com uns seis
metros de altura. Do lado de cá, a confusão do mercado. Do lado
de lá, uma rua deserta, lojas fechadas, um súbito silêncio. Por
cima das nossas cabeças dezenas de bandeirinhas israelitas. Rifat
olha melancólico para as portadas fechadas das lojas. "Ninguém
vem aqui", repete.

89
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Segurança reforçada
Meia dúzia de metros mais à frente começam a ver-se soldados
israelitas, armados com metralhadoras, em pequenos grupos. A
segurança foi reforçada porque é um dia especial: a comunidade
de judeus de Hebron vai celebrar o 30.º aniversário da sua
formação e os 50 anos do Estado de Israel. Centenas de autocarros
cheios de convidados vão chegar nas próximas horas e já se vêem
alguns judeus a passearem pelas ruas, também armados.
Rifat pergunta a um soldado se se pode passar para a Mesquita
de Abraão/Gruta de Machpela, um local sagrado tanto para judeus
como para muçulmanos. Foi aqui que, em 1994, Baruch Goldstein,
habitante do colonato vizinho de Kiryat Arba, abriu fogo matando
29 palestinianos que estavam a rezar. Desde essa altura, a Gruta
foi dividida em duas, com entradas separadas para judeus e
muçulmanos, e dias diferentes para cada grupo. O soldado
responde a Rifat que hoje não, os muçulmanos não podem entrar
porque vai haver celebrações dos colonos. Rifat dá meia volta.
Dias depois, no colonato de Kiryat Arba, David Wilder, porta-
voz da comunidade judaica de Hebron, recorda emocionado que
80 mil pessoas vieram de todas as partes do país para se juntar
às comemorações dos 550 judeus que vivem no coração de
Hebron. "Isto mostra como a maioria da sociedade israelita apoia
fortemente a nossa presença aqui. Aliás, a eleição de Benjamin
Netanyahu também é uma prova disso, já que a plataforma política
dele é claramente a de trazer mais pessoas para a Judeia e Samaria
(os nomes judaicos da Cisjordânia)."
A manifestação organizada no dia da festa pelos pacifistas do
movimento Peace Now não é representativa de nada, segundo

90
O porta-voz da comunidade, ele próprio
um habitante de Hebron há 17 anos,
reconhece que é um risco viver aqui.
Mas "hoje há riscos em viver em qualquer
sítio em Israel. O terrorismo é uma coisa
que qualquer pessoa que viva em Israel
tem que enfrentar"
91
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Wilder. "Se eles fossem maioritários, o primeiro-ministro seria


Shimon Peres."
E, no entanto, mesmo com Netanyahu, o processo de paz
israelo-palestiniano ainda existe, e há determinadas coisas que os
palestinianos já adquiriram e em que dificilmente se poderá voltar
atrás. "Em inglês há duas maneiras de escrever 'peace'", responde
Wilder, "há uma que significa ausência de conflito e outra, ‘piece’
que significa pegar numa coisa e parti-la aos bocados. Para mim é
este o significado do processo de paz."

Motivos de optimismo
Os colonos de Hebron e Kiryat Arba (onde vivem seis mil pessoas)
têm alguns motivos para estarem optimistas. Desde a chegada ao
poder de Netanyahu, a construção de novos prédios, "congelada"
pelos Governos anteriores, pôde prosseguir e agora, pela primeira
vez desde há alguns anos, a população está a aumentar porque há
novas casas para as pessoas viverem.
O porta-voz da comunidade, ele próprio um habitante de
Hebron há 17 anos, reconhece que é um risco viver aqui. Mas,
afirma, "hoje há riscos em viver em qualquer sítio em Israel".
"Infelizmente, vimos autocarros a explodir em Jerusalém, em
Telavive, tivemos ataques na rua Ben-Yehuda [ Jerusalém]. O
terrorismo é uma coisa que qualquer pessoa que viva em Israel
hoje tem que enfrentar. Não acho que aqui seja mais perigoso do
que em qualquer outro sítio do país."
De facto, ao final da tarde de um dia de semana, Kiryat Arba
parece uma pacata vila. Há poucas pessoas nas ruas, poucas lojas,
de vez em quando passa um carro ou uma criança de bicicleta

92
por meio de um jardim. Podia parecer um sítio muito agradável se
não fossem alguns pormenores que destoam na paisagem. Ali ao
fundo, o arame farpado que isola o colonato do exterior, mais para
cá, junto das poucas lojas, os soldados, e, de repente, o autocarro
que começa a subir a rua, com os seus vidros duplos, mais escuros
do que o habitual, e a grossa grelha metálica que protege todo o
vidro da frente. Como se estivéssemos numa zona de guerra.
"Desde que Hebron foi dividida, as condições de segurança
deterioraram-se muito", explica David Wilder. "A comunidade foi
atacada várias vezes. Atiram-nos pedras e bombas incendiárias,
dispararam contra nós três vezes. Todas as colinas que rodeiam
os nossos três bairros estão ocupadas por terroristas. O que os
colonos de Hebron se queixam é que ‘o Governo tem feito muito
pouco para acabar com esses ataques’."
É um facto que há milhares de soldados israelitas mobilizados
apenas para assegurar a protecção dos judeus que vivem em
Hebron, mas estes afirmam que os soldados não podem fazer nada
se não tiverem ordens dos superiores para reagirem aos ataques.
Embora Wilder continue a repetir que não conhece sítio melhor
para criar uma criança do que Hebron ou Kiryat Arba, está
consciente de que a situação pode vir a complicar-se num futuro
mais ou menos próximo se o processo de paz falhar totalmente.
No entanto, de uma coisa tem a certeza: não deixará Hebron.
"Acho que Hebron representa, em menor escala, o Estado de
Israel. Somos, tal como Israel, um grupo de judeus rodeados
por milhões de árabes que não nos querem aqui. Se não posso
viver em Hebron como é que posso viver em Israel? Se não tenho
direito de viver aqui, que é a primeira cidade judaica em Israel,

93
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Página 19
da edição do PÚBLICO
de 3 de Maio de 1998

94
que direito tenho de viver em Telavive? Há 60 anos os judeus que
queriam viver na Europa eram metidos em fornos crematórios em
Aushwitz. Viemos para aqui e agora dizem-nos que não podemos
estar aqui. Para onde é que havemos de ir?"
Sim, admite, é possível que, face ao eventual fracasso do
processo de paz, o líder palestiniano, Yasser Arafat, decida
proclamar unilateralmente um Estado palestiniano e que isto
desencadeie uma nova onda de violência. "Infelizmente, nas
últimas décadas houve muita violência, Israel teve que lutar em
muitas guerras. E é isso que temos que fazer para podermos
continuar a existir."
Rifat, o jovem palestiniano de Hebron, está preparado para
essa violência — acha mesmo que, se as coisas continuarem como
estão, a única solução para o seu povo é "uma nova Intifada".
Para lá dos blocos de betão que marcam a "fronteira" interna de
Hebron, para lá das redes que os separam, do outro lado da rua
David Wilder também está preparado.

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95
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O cerco à
Basílica da
Natividade
96
Em Abril de
2002 um grupo
de palestinianos
armados, incluindo
membros da Fatah e
do Hamas, abrigam-
se na Basílica da
Natividade, após
confrontos com
o exército israelita.
Soldados israelitas
cercam a basílica e o
cerco dura vários dias.
97
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

As pessoas
dentro da
basílica estão
esfomeadas
Os padres e os palestinianos na Basílica da Natividade estão
em risco de "morrer à fome ou por falta de medicamentos". É
o alerta de uma das pessoas que estão lá dentro, o advogado
Anton Salman. Em Jerusalém, a autoridade máxima dos
franciscanos disse ao PÚBLICO que a situação já é de "fome"
Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, em Belém

98
Reportagem originalmente publicada a 21 de Abril de 2002


cristã? Reze por nós." São as primeiras palavras de
Anton Salman, quando atende o telemóvel na Basílica da
Natividade, cercada há 20 dias por tropas israelitas. Lá
dentro estão 36 religiosos — sobretudo franciscanos, mas
também gregos e arménios — e 240 palestinianos, alguns
dos quais são resistentes procurados por Israel.
Anton Salman é um cristão palestiniano, advogado dos
franciscanos em Belém. Conseguiu carregar a bateria do seu
telemóvel na véspera, quando a electricidade veio, por duas horas:
"Não há comida, não há água, não há luz, não há medicamentos.
A situação é pior a cada dia. Se não acontecer nada rapidamente,
as pessoas vão morrer de fome ou por falta de medicamentos. Não
temos pão há 12 dias. Tem havido algum arroz e esparguete, que
é dado a cada pessoa, uma vez por dia, em quantidades mínimas,
um quarto de uma refeição normal. Os franciscanos estão a
partilhar tudo o que têm, mas agora a comida acabou. A partir
de amanhã, não sabemos o que dar. E as pessoas estão sempre a
pedir comida, estão esfomeadas."
Segundo Salman, entre os 240 palestinianos que buscaram
refúgio na basílica, quando o exército israelita invadiu Belém,
a 1 de Abril, há "cerca de 15 rapazes, 10 homens idosos" e vários
doentes: "Não temos medicamentos nenhuns para quem está a
sofrer do coração, de diabetes, de pressão."
À noite, conta, as pessoas "dormem nas lajes da basílica, com
um cobertor para três ou quatro". Não há aquecimento, e para
tirar água das cisternas seria precisa electricidade.

99
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Dentro da basílica, em caixas de madeira, continuam os dois


corpos de palestinianos mortos no decorrer da ocupação — um há
18 dias, o outro há quatro.

"Não somos reféns"


No princípio do cerco, o exército israelita acusou os combatentes
palestinianos que se refugiaram na basílica de estarem a tomar
como reféns os religiosos. Anton Salman desmente esta alegação:
"Não é verdade que sejamos reféns. Não assisti a nenhuma
situação de tensão, ninguém se comportou de forma violenta. Eles
estão à espera de uma solução política e pacífica, como todos nós.
Não digo que seja fácil a vida cá dentro, com mais de 250 pessoas,
mas todos esperamos que acabe em paz, e cedo."
Uma "solução política, não militar", insiste, é a única possível. E
no imediato, provisões: "Porque é que ninguém nos trouxe comida
e medicamentos? Neste momento é o mais urgente, para evitar
que as pessoas morram."
O maior grupo de religiosos dentro da Basílica da Natividade é o
dos franciscanos. "Estão 23 irmãos e quatro irmãs lá dentro, neste
momento", precisou ao PÚBLICO Giovanni Batisteli, custódio dos
franciscanos na Terra Santa, a autoridade máxima desta ordem.
Quando o visitámos ontem à tarde, no convento da Cidade
Velha, o padre Batisteli acabava de falar por telemóvel com um
dos irmãos no interior da basílica. "Ontem os militares cortaram
todas as linhas telefónicas. Já não é possível usar o telefone
para contactar ninguém, só celulares. Desde o princípio, não
receberam comida nenhuma, só 24 garrafas de água, e por duas
vezes uns poucos medicamentos. No princípio, ainda fizeram pão,

100
REUTERS

Basílica da Natividade

Os religiosos são reféns? "Não são reféns."


O padre abana a cabeça: "Estão é reféns
quer dos militares israelitas quer dos
palestinianos. Reféns da situação"
101
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Edição do PÚBLICO
de 21 de Abril de 2002

102
e macarrão. Mas agora já não há comida... estão lá dentro, sem
água, sem luz, e a situação piora de dia para dia. Os palestinianos
estão a procurar comida por toda a parte, onde podem, forçando
portas. É a fome lá dentro. A fome."
O padre Batisteli diz que é difícil saber quantos resistentes
armados estão na basílica: "Sabemos que há três grupos: os
polícias e seguranças que faziam parte da Autoridade Palestiniana,
alguns combatentes e os civis." Entre os civis, confirma que "há
jovens de 14 ou 15 anos".
Questionado sobre a alegação israelita quanto aos religiosos
serem reféns, o custódio franciscano começa por suspirar.
"Reféns... não são reféns." Abana a cabeça: "Estão é reféns quer
dos militares israelitas quer dos palestinianos. Reféns da situação."
Durante a noite, confirma, o exército israelita sistematicamente
projecta ruído e luzes sobre a basílica: "Granadas incendiárias,
altifalantes, tanques a circularem, é verdade, é verdade."
Este representante dos franciscanos também defende
uma solução "política, não militar". E sublinha: "A comissão
palestiniana e israelita é que tem de resolver isto. Se Bush não
pôde, se Prodi não pôde, o que vamos [a Igreja] fazer? Armarmo-
nos? Podemos rezar." Mas não só. Segundo Batisteli, Franciscanos,
gregos e arménios estão a preparar uma declaração conjunta para
entregar a Ariel Sharon.
Será um novo esforço, depois de, há uma semana, os líderes
das igrejas cristãs de Jerusalém terem entregue a Colin Powell um
documento em que defendiam, quanto à Basílica da Natividade,
que todos os palestinianos refugiados no seu interior pudessem
partir "em segurança para suas casas".

103
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O documento terá tido um efeito zero, a avaliar pelo que se


seguiu: Israel propôs que os combatentes armados (alegadamente
pertencendo à Fatah e ao Hamas) fossem ou exilados ou
julgados; a Autoridade Palestiniana recusou, para não legitimar
o cerco israelita, e pediu que a Igreja e representantes europeus
integrassem a negociação; o pedido foi rejeitado por Israel, quinta-
feira.
Quanto a Powell, já partira, de mãos a abanar.

Marcha com sinos


Além dos 27 franciscanos, há mais nove padres dentro da Basílica
da Natividade. Fontes próximos da Igreja arménia em Jerusalém
disseram ao PÚBLICO que neste momento são cinco os religiosos
arménios — inicialmente eram oito, mas três foram retirados, um
deles ferido, outro doente. A estes, juntam-se quatro religiosos
gregos ortodoxos.
Tal como acontece com a Igreja do Santo Sepulcro, em
Jerusalém, os diversos espaços da basílica de Belém — venerada
como o lugar do nascimento de Jesus — são partilhados pelas
várias igrejas cristãs.
Um responsável dos ortodoxos gregos confirmou-nos a falta de
comida e medicamentos na basílica e o apoio ao palestinianos
refugiados: "Não concordamos com a presença de homens
armados na igreja, mas temos que os ajudar, partilhando o que
pudermos."
Os ortodoxos gregos — a Igreja cristã mais representativa
em Jerusalém — convocaram para o meio dia de hoje (o
terceiro domingo desde o cerco), uma Marcha dos Sinos Para a

104
Solidariedade com a Basílica da Natividade. O apelo é para que
cristãos, muçulmanos e judeus se reúnam junto ao Mosteiro
de Ilias, a 300 metros do checkpoint de Belém, e tentem entrar
na cidade, caminhando até à basílica, tocando sinos e levando
comida. Esperam gente vinda desde Jerusalém e da Galileia,
além dos habitantes de Belém. Se forem impedidos pelo exército
israelita de entrar na cidade, pensam fazer uma oração junto ao
checkpoint.
O acesso a Belém está vedado desde o início do cerco, e a cidade
tem estado sob recolher obrigatório desde então. Na zona próxima
da basílica, o recolher obrigatório nunca foi levantado, nem por
umas horas, o que significa que muitas famílias estão a começar a
passar fome, também.

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105
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Vemo-nos
daqui a pouco
dentro da
basílica
Ao quinto domingo de cerco, o dia amanheceu puríssimo
em Belém. Céu azul, calor, pássaros. Pouco antes das nove e
meia, o franciscano Ibrahim Faltas abriu a pequena porta da
Basílica da Natividade e caminhou até à a praça. O mesmo
tanque estacionado ao centro, os mesmos soldados pelas
esquinas apontando, os mesmos na torre em frente
Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, em Belém

106
Reportagem originalmente publicada a 6 de Maio de 2002

C
omo as pessoas não podem entrar na Basílica da
Natividade, em Belém, para rezar e cantar em conjunto,
o padre Ibrahim Faltas saiu da basílica para rezar e cantar
com as pessoas. Sob escolta das tropas ocupantes israelitas,
que o seguiam num jipe branco blindado, foi levado até à
capela da Universidade de Belém, um belo espaço, a dez
minutos de distância: edifícios de pedra branca, jardins cheios de
flores, relva cuidada.
Por cima do seu hábito castanho, amarrado por um cordão à
cintura, o franciscano Ibrahim vestiu a batina e entrou na capela.
Tinha 200 pessoas à sua espera, sentadas, outras 50 enchendo as
capelas laterais, e uma pequena multidão em pé, ao fundo, entre
a porta e o jardim. Mulheres de véu branco, jovens de jeans, pais
com meninas ao colo vestidas de cetim colorido. Toda a gente se
levantou, cantando. O padre Ibrahim estava de volta. E sorria, ao
centro do altar.
As boas vindas da liturgia, uma leitura dos profetas, um coro de
aleluias com todos, incluindo as crianças. E então o franciscano
que há 35 dias tem a sua basílica cercada começou a falar, no meio
de um silêncio absoluto:
"Há muito tempo que não nos víamos. Fomos fortes, é a nossa
fé. Este tempo de Páscoa devia ser o tempo do amor, mas ninguém
conseguiu ir à nossa igreja. É a única igreja na história em que algo
assim aconteceu.
Há 35 dias que temos hóspedes. Eles pediram protecção.
Mas os israelitas cortaram a electricidade, a água, a comida. E

107
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Edição do PÚBLICO
de 2 de Maio de 2002

108
dispararam a matar sem que tiros tivessem partido do interior.
Tentaram isolar-nos do mundo mas não conseguiram. No lugar da
electricidade houve a luz de Deus. Era muito difícil carregarmos
os telefones, falar para o exterior. Partilhámos a comida, tudo, até
não haver mais nada para partilhar. Tínhamos muitas dores dentro
da basílica, mas fomos mais fortes do que as dores, em nome da
paz, não da guerra.
No caminho para aqui, vi a destruição de Belém. Toda a gente
falava na basílica, mas houve muito mais gente que sofreu. A nossa
fé é ficarmos juntos, brincarmos juntos, sofrermos juntos.
Por mais que fale, não posso descrever-vos completamente o
que aconteceu na basílica durante os últimos 35 dias. O melhor
foram as relações entre nós, e as nossas relações com Deus."
Toda a capela se levanta a bater palmas.
O franciscano sorri e propõe que quem quiser faça uma
oração. Três pessoas, uma a uma, rezam pela paz de Israel e da
Palestina. Um homem, com as mãos pousadas sobre a cabeça de
uma menina pede "que todas as igrejas e mesquitas possam estar
abertas, e juntas numa só festa."
O padre Ibrahim começa a preparar a comunhão, as hóstias, o
vinho, enquanto a capela canta, de pé, palmas das mãos abertas
para o alto. A multidão que estava entre a porta e o jardim junta-se
aos que estão dentro, para comungar. Durante toda a comunhão,
os cânticos não param. O Sol entra pelos vitrais. E, no fim, toda a
gente aplaude, de pé.

Bolsos cheios de cigarros


Há quem disperse para o jardim, há quem siga o franciscano até

109
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

à pequena sacristia. Abraçam-no, beijam-no, agarram-lhe na


mão. Ele retribui enquanto tira a batina e regressa ao seu hábito.
"Estávamos consigo em espírito", diz uma mulher de lágrimas nos
olhos. "Tínhamos saudades", reforça outra.
Os repórteres aguardam uma aberta. Mas os abraços não páram.
"Vim para estar com as pessoas, já falamos", pede-nos, sem deixar
de sorrir para quem o cumprimenta. Sabe os nomes de cor.
Saímos para os jardins. Uma mar de gente à espera. Mais
cumprimentos. O padre Ibrahim ri às gargalhadas. Como se tudo
tivesse acabado. Um domingo de Maio luminoso, a dez minutos
dos tanques.
Agora, há câmaras e fotógrafos por toda a parte. O franciscano
cede a três ou quatro perguntas:
O que vai acontecer agora? "Espero que as pessoas possam sair
da basílica hoje. A situação lá dentro é muito má, apesar de a
moral ser alta. Não há água, durante 24 dias seguidos não houve
comida nenhuma."
Intervenção do Vaticano? "Estamos à espera do cardeal amanhã
ou depois dentro da basílica, para rezar connosco."
Alguém está refém? O padre Ibrahim abre os braços e responde,
peremptório: "Absolutamente ninguém é refém. As relações entre
nós são muito boas."
Nisto, alguns habitantes entregam-lhe reforços para dentro da
basílica: pacotes de maços de Marlboro. Ele levanta o hábito e
toda a gente desata a rir. Traz por baixo umas calças desportivas
com vários bolsos nas pernas. Começa a atafulhá-los com os vários
maços de cigarros.
Chega um tabuleiro cheio de tacinhas de café — como acontece

110
sempre, em qualquer lugar da Cisjordânia onde apareçam visitas
—, o franciscano tira uma e senta-se num banco do jardim, a
conversar com os seus paroquianos.
"É um milagre", diz-nos Doris Freij, 40 anos contabilista, que
veio à missa com as suas duas filhas adolescentes. "O padre
Ibrahim celebrava todos os domingos às 11h00 na Basílica da
Natividade. Estávamos sempre 500, 600 pessoas, na Páscoa e no
Natal, mais de mil. Sentimos muito a sua falta."
Quando o jipe blindado chega ao portão da universidade, o
padre Ibrahim sai, ao encontro de Eimat Natshe, um dos cinco
palestinianos que desde o início conduziram as negociações com
os israelitas sobre o fim do cerco à Basílica.
Perguntamos-lhe se, ao princípio da tarde, poderá estar tudo
resolvido. "Julgo que sim." Pedimos para o acompanhar no seu
regresso. Ele hesita, depois ri-se: "Podem tentar. Mas se não
conseguirem, vemo-nos daqui a pouco dentro da Basílica, estou
certo." Entra no carro de Natshe, que está parado atrás do jipe
israelita.
Arrancam. Durante algum tempo, é possível segui-los. Até que
vemos o jipe travar de repente, uma porta abrir-se, um soldado
discutir com Natshe. O negociador palestiniano pede-nos para
darmos meia-volta.
Não vimos dali a pouco Ibrahim Faltas dentro da Basílica da
Natividade. Até a noite cair, a pequena porta da igreja abriu-se
uma única vez: para o franciscano voltar a entrar, depois de ter
celebrado a missa do quinto domingo do cerco.

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111
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Plano de
retirada
dos colonatos
112
Em Outubro de 2004,
o Knesset aprova o
plano de retirada de
Gaza apresentado pelo
primeiro-ministro
Ariel Sharon, que alega
que esta é a única
forma de avançar
nas negociações pela
paz. É uma votação
histórica. O que se
seguirá é uma grande
incógnita.
113
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

A melhor oferta
de um dos lados
nunca será
suficientemente
boa para o outro
Gary Sussman é director do departamento Pesquisa
e Desenvolvimento da Escola de Ciência Política da
Universidade de Telavive. Trabalhou durante cinco anos
na Fundação para a Cooperação Económica, o think- tankdo
ex-ministro da Justiça e promotor da Iniciativa de Genebra
Yossi Beilin
Da nossa enviada Maria João Guimarães, em Telavive

114
Entrevista publicada originalmente a 22 de Fevereiro de 2004

Tem defendido que a solução de dois estados é cada vez


menos possível. Porquê?
É uma questão de psicologia. A percepção palestiniana é de que o
muro [na Cisjordânia] não é uma medida temporária. Não importa
quantas vezes os israelitas digam que é uma medida temporária. Eu
também acho difícil que o maior projecto de infra-estrutura nacional
de Israel seja uma medida temporária. Mas o que importa é que os
palestinianos acham que não é. Acham que a barreira é a fronteira.
Estão convencidos que a barreira vai conduzir a uma solução de
cantões. E há já muitos palestinianos a pedir o desmantelamento da
Autoridade Palestiniana e o fim da solução dos dois estados.
Arafat disse-o numa entrevista recente.
Exacto, até na Fatah há muitas pessoas a usar isso para pressionar
Israel. Mas eu acho que não será só para pressão. Eu acho que a
psicologia da barreira está a afastar os palestinianos, mesmo os
nacionalistas, da solução de dois estados.
Mas não é estranho que uma coisa que leva à separação
conduza a uma solução de um estado binacional?
Exactamente. Para os israelitas, a barreira é sobre separação.
Mas para os palestinianos, destrói a separação. Há um grande
dilema aqui. É fácil decidir sair de Gaza, mas Gaza não é um
Estado palestiniano viável. Mesmo se assinasse [a Iniciativa de]
Genebra amanhã, não tenho a certeza de que houvesse um Estado
palestiniano viável em dez ou vinte anos.
A Iniciativa de Genebra surgiu com uma força enorme. E
agora?

115
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Genebra teve um impacto brutal. Destruiu o mito de que não


há interlocutor do lado palestiniano. Nada mais foi o mesmo, as
pessoas definiam-se a favor ou contra avançar o debate. Acredito
que o que [o primeiro-ministro israelita, Ariel] Sharon está a fazer
agora é, em parte, por causa de Genebra. O principal objectivo
estratégico de Sharon é destruir um Estado palestiniano viável
segundo as linhas de [Bill] Clinton e Camp David. Os israelitas
acreditam que se os palestinianos controlarem um Estado, Israel
passa a ser um Estado vulnerável. Fazer concessões em Gaza é uma
maneira de dar resposta à questão da demografia. Há 1,4, talvez dois
milhões de palestinianos na Cisjordânia, e 1,4 em Gaza. Se tirarmos
Gaza da equação, a relação demográfica é muito diferente.
Mas Gaza nunca poderá ser um Estado palestiniano viável.
Pois não, mas na mente de Sharon, isso tira-a da equação. Tira
uma grande parte da pressão. Com o muro, Sharon toma uma
medida relativamente à segurança. Com Gaza, toma outra relativa
à demografia, dirigindo-se assim às duas maiores preocupações
dos israelitas. Tira a pressão suficiente para ele poder seguir as
suas fantasias na Cisjordânia.
Há cada vez mais pessoas a dizer que a importância dada à
demografia começa a ser excessiva, porque como Sharon
usou o muro para os seus propósitos, distorcendo a ideia
original, poderá fazer o mesmo com a demografia, tentando
"transferir" os palestinianos para fora.
Sharon é um produto do seu tempo. Nasceu antes da criação do
Estado de Israel. Se os enfrentarmos, podemos ganhar, pensa.
Com Gaza, ele está a tentar alterar a equação demográfica. Com
a barreira, tira-se a hipótese de um Estado palestiniano. Mas e

116
DR

Gary Sussman

Vão continuar a lutar durante cinquenta


anos e no fim vão ter de encontrar
uma solução para viver juntos. Mas agora
não vejo nenhum líder, nenhuma força
política, capaz de conseguir chegar
a uma solução de dois Estados
117
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

se a Jordânia for uma Estado palestiniano viável? Com a barreira


cria-se pressão, e a pressão vai em direcção à Jordânia. Mas claro
que a demografia voltar-se contra nós, pode levar os israelitas a
apoiarem soluções muito mais radicais.
Disse que Sharon é um produto do seu tempo. Pode-se dizer
o mesmo de Arafat. É possível paz com eles?
Acho que os palestinianos têm uma falta de capacidade
estratégica impressionante. Apesar do poder judaico, não há
razão nenhuma para que os palestinianos não estejam a ganhar a
guerra dos media. Têm uma liderança inábil que é desastrosa. Olhe
para o caso da ameaça do Estado binacional. Se os palestinianos
quiserem um Estado, binacional ou não, têm de convencer os
israelitas. Ouvi uma vez uma história maravilhosa, que pode ser
aplicada a Sharon e a Arafat. Dois marinheiros estão a afundar-
se, e um diz ao outro: enquanto puder nadar acima de ti,
estou bem. Neste caso Sharon é mais esperto, e está a derrotar
completamente Arafat. Ele é quem controla. Sempre que parece
que está a perder, ganha.
Há quem veja o plano de Gaza como um último recurso para
desviar a atenção do muro ou das acusações de corrupção.
Eu não acredito nisso. Se Sharon quisesse criar uma questão
dominante nos media, entrar-se-ia em negociações com a Síria.
Claro que esta é uma das dimensões, mas acho que é simplista
demais achar que é apenas isso. O que Sharon quer é evitar um
Estado palestiniano viável. É evitar que as fronteiras estejam na
"linha verde" [da guerra de 1967]. São tudo manobras tácticas.
Como a de minar a autoridade de Arafat.
O que quer fazer Sharon com a Autoridade Palestiniana?

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Quer fronteiras defensáveis para Israel. Sahron só está a continuar
uma política começada por [Ehud] Barak, que, na verdade,
fez um grande elogio aos palestinianos, usando contra eles a
violência que se usaria contra um Estado, atingindo esquadras de
polícia. Esta foi a génese da política de destruição das instituições
palestinianas. O que Sharon está a fazer é uma mistura desta
herança e um desejo de os destruir e os enfraquecer, porque pode
ser que eles aceitem, então, as suas fronteiras menos generosas.
Começa a haver vozes palestinianas a defender o
desmantelamento da Autoridade Palestiniana (AP).
Claro, o que nos leva ao Estado binacional. Porque isso criaria
uma ocupação "de luxe" para Israel. A AP dá uma sensação
aos palestinianos de que alguma coisa funciona, dá empregos,
salários. Nos regimes coloniais, há duas formas de controlo, uma
de controlo directo, a outra de controlo indirecto. A AP é uma
forma de controlo indirecto mas também deixa a ocupação numa
ambiguidade. Há a ocupação mas há Oslo. Acabar com a AP teria
custos económicos enormes para Israel. Mas também teria um
impacto enorme na vida dos palestinianos. Uma centena de milhar
de palestinianos é paga pela AP.
Acha que vai ver esse Estado binacional?
Acho que os meus netos vão viver para ver esse dia. As pessoas
esquecem que a solução dos dois Estados tem muito pouco
tempo. Até 1988, falava-se de federalismo. A ideia era Israel e a
Jordânia partilharem a Cisjordânia. A solução de dois Estados só
se tornou relevante em 1988, quando Arafat declarou o Estado
palestiniano e o reconhecimento de Israel, e a Jordânia retirou as
suas pretensões. As pessoas realmente acreditam que um Estado

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Edição do PÚBLICO
de 22 de Fevereiro de 2004

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palestiniano na Cisjordânia e em Gaza ameaça a sobrevivência de
Israel. E então é legítimo que Israel sobreviva, mesmo que isto
signifique injustiça para os palestinianos. É um círculo. Queremos
dois Estados, mas queremos o máximo possível para o nosso
Estado. É como a história do rei Salomão. Não se pode cortar o
bebé ao meio.
Como vão viver juntos dois povos que se guerreiam
constantemente?
Vão continuar a lutar durante cinquenta anos e no fim vão ter
de encontrar uma solução para viver juntos. Mas agora não
vejo nenhum líder, nenhuma força política, capaz de conseguir
chegar a uma solução de dois Estados. A ocupação tornar-se-á
insuportável. Os palestinianos poderão viver em cantões. Mas
mesmo que haja uma entidade palestiniana, a situação vai deslizar
para um estado binacional. A nossa melhor oferta nunca será
suficiente para um Estado viável por causa dos colonatos. Nós
não vamos desistir dos colonatos e das estradas que levam aos
colonatos. E essa é que é a tragédia: a melhor oferta de um dos
lados nunca será suficientemente boa para o outro.

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Somos
os negros
de Israel

Árabes israelitas sentem-se discriminados e controlados


pelos seus compatriotas. “Se somos muitos, começam
a ficar nervosos”
Da nossa enviada Maria João Guimarães, em Jerusalém

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Reportagem originalmente publicada a 22 de Fevereiro de 2004

A
família Barakhat é uma família de Jerusalém. “Nasci aqui,
o meu avô nasceu aqui, o meu pai nasceu aqui, os meus
filhos nasceram aqui”, apresenta-se o chefe da família,
Bahajat. A casa onde todos nasceram está num sítio
curioso, mesmo de um dos lados da fronteira de 1967. Os
Barakhat sentem-se actualmente ameaçados. Acham que
a qualquer momento vão ter de sair daquela casa, onde agora nos
recebem com café acabado de fazer. “Gostávamos de viver sempre
aqui, com os nossos filhos e os filhos deles.”
Mas para isso é preciso espaço. E se a casa não tem telhado
com telhas, como a maioria nas zonas árabes, uma maneira de
poder acrescentar mais um andar conforme cresce a família, a
lei israelita não é tão elástica como a construção árabe. “O último
andar que fizemos foi há três anos. Estivemos mais de sete à
espera de autorização.” Acham que a próxima autorização nunca
vai chegar. Acham ainda que a barreira de separação que se
começa a desenhar a poucos quilómetros da sua casa é uma outra
maneira de os tirar dali.
Nenhum membro da família Barakhat vai a Jerusalém Ocidental,
que fica mais perto da sua casa do que o muro. “Sentimos que não
somos desejados. Não gostam de árabes. Se vamos à parte deles
( Jerusalém Ocidental), olham para nós. Por isso, posso ficar anos
sem ir lá”, diz o pai.
A filha acena vigorosamente com a cabeça, é da mesma opinião.
Dispara: “Nunca vou lá. Não sei hebraico, não há lá nada de que
precise, não tenho nada lá, não quero nada de lá.”

123
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O restaurante de fast-food MakSandwich, numa parte de


Jerusalém Oriental mais perto da cidade velha, está cheio. No meio
do zumbido do vaivém das pitas e dos rolos de shwarma, Abu Zaid
almoça depois de ter saído da loja onde trabalha. É um cidadão
israelita, mas como árabe que é, sente que os seus compatriotas
o “controlam”. “Estão sempre a ver se somos muitos, se formos,
começam a ficar nervosos... Isso quando não olham como se
fossemos uma bomba prestes a explodir”, desabafa, entre duas
dentadas no rolo de carne.
Apesar disso, viver num futuro Estado palestiniano não é uma
opção para Abu Zaid. “Aqui tenho segurança, emprego, reforma,
hospital pago, benefícios sociais. Lá, duvido que fosse assim.”
Apesar de viver numa democracia, sente que as regras do jogo
estão definidas contra ele, contra eles. “Para que é que vou
votar? Para ter uns tipos no Knesset que não servem para nada?”,
pergunta. Pega numa lotaria. “Se ganhar, vou para Maiorca. Dizem
que é lindo. Não quero ficar neste país, é só arame farpado e
checkpoints. Ia para Maiorca, abria um café, um restaurante...”
A discriminação de que se sentem alvo todos os dias provoca
várias reacções. No caso de três jovens acabou por os tornar
num grupo de hip-hop com um relativo sucesso, quando uma
música justamente intitulada “Porque és árabe” começou a
passar frequentemente nas rádios árabes israelitas. No seu site na
Internet, os rapazes do MWR justificam a escolha de um tipo de
música que serviu para cantar a discriminação racial nos Estados
Unidos: “Somos os negros de Israel.”
Em árabe, a letra diz qualquer coisa como: “Em vez de jogarmos
futebol em campos, fazemo-lo entre duas lâmpadas na rua. Na

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escola estudamos em salas frias de janelas quebradas. Onde quer
que vás, pedem-te os papéis, por que é que não somos iguais?”
E de seguida “Por que vivemos sem alegria e esperança? Se
conseguires um emprego vão despedir-te. Porquê?” A resposta:
“Porque és árabe.”
Alguns residentes de Jerusalém têm um estatuto diferente.
Não têm cidadania israelita — são considerados “estrangeiros”
— mas conservam o direito de viver em Jerusalém. “Eu quero
ser palestiniano em Jerusalém”, diz o organizador de viagens
turísticas Abu Hassam. “Recuso-me a entrar nas estatísticas como
israelita. O que eles querem é depois argumentar que Jerusalém
tem uma maioria israelita.”
Apesar de o Estado hebraico impor regras cada vez mais
apertadas para a conservação da autorização de residência, do
custo exorbitante das casas ou das licenças, os cerca de 200 mil
palestinianos teimam em não deixar Jerusalém abandonada à sua
maioria judaica.

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Abu Nidal,
ohomem que
tem a chave
do muro
Todos os dias de manhã, Abu Nidal abre a porta de sua casa,
desce os oito degraus das velhas escadas de metal, dá as
três passadas necessárias para percorrer o jardim, prepara
a chave que tem entre um molho preso à cintura enquanto
atravessa a estrada e abre um cadeado maior do que a sua
mão. Empurra o portão, e atravessa a barreira de segurança
entre a Cisjordânia e Israel. Abu Nidal é o único palestiniano
que tem a chave do muro. Ri-se do insólito. "Quando se tem
muitas coisas más que não podem ser derrotadas, não resta
mais nada senão rir."
Da nossa enviada Maria João Guimarães, na Cisjordânia

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Reportagem originalmente publicada em 23 de Fevereiro de 2004

A
bu Nidal, sem qualquer relação com o "mestre terrorista"
palestiniano que semeou a morte nos anos 70 e 80 e
morreu recentemente no Iraque, é conhecido como "o
homem que está dentro do muro". Porque atrás da sua
casa há um colonato, que é protegido por uma dupla
barreira. Seguindo o sentido dos ponteiros do relógio,
a próxima lateral da casa terá também uma cerca de arame,
espécie de prolongamento da que protege o colonato. À frente,
está o muro propriamente dito, parte de cimento, parte vedação,
separado por um portão que é por onde passa Abu Nidal.
Finalmente, na outra lateral da casa, passa uma estrada, que já
não serve de nada porque está cortada pelo muro. Abu Nidal está
literalmente enjaulado, encurralado, aprisionado.
Há quem diga que Abu Nidal tem sorte. Porque ao ter a chave
do muro, não depende dos humores e atrasos dos soldados, como
acontece em outros portões pela barreira fora.
Nos arredores da cidade de Qalqilya, Abu Nidal está sozinho,
mas a chave foi-lhe dada com a condição de não receber visitas.
Na casa construída em 1973, mas que parece muito mais velha, ele
vive com a sua mulher e os quatro filhos. Um quarto para o casal,
outro quarto para os filhos. Recebe-nos na sala, a porta aberta com
vista para os oito metros de cimento, o muro.
Tudo começou, conta Abu Nidal, a voz cansada, quando a
família foi visitar uns parentes a uma localidade próxima e, ao
regressar, os soldados israelitas não o deixaram entrar durante
três semanas. As plantações que tinha, de couves, alfaces, "todo

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

o tipo de frutas", secaram. Esqueceu-as e decidiu começar


um aviário — no final da conversa há-de mostrar, com orgulho
nostálgico e triste, fotografias das galinhas poedeiras, todas
ordenadas nas suas gaiolas, a perder de vista; ele e as galinhas, um
filho e as galinhas, outro filho no mesmo cenário.
Mas as galinhas, que conseguiu graças a dinheiro emprestado,
estão do outro lado da estrada, daquela por onde agora não se pode
passar. As galinhas definham, já não põem ovos. Abu Nidal perdeu
parte das suas terras para o muro e para a estrada de patrulha. Para
chegar às outras pequenas propriedades que estão do mesmo lado
da sua casa, tem de passar o muro, uma vez pelo seu portão, outra
vez por um outro, onde estão soldados. Demoraria dez minutos a
pé. Agora pode demorar uma, duas, três horas.
Os seus quatro filhos também passam o portão da barreira,
que é como se fosse o da casa, todos os dias para ir para a
escola, agora, um quilómetro a pé, já que é impossível usar um
automóvel. Um dos filhos saiu de casa há quinze dias. "Se calhar
não aguentou mais. Não faço ideia onde está. Nunca mais disse
nada."
Mas a chave do muro não caiu do céu para Abu Nidal. Foram
precisos meses de pressão de um sem número de agências
humanitárias: a UNRWA (organismo das Nações Unidas de ajuda
aos refugiados palestinianos), a Cruz Vermelha, as Mulheres
pela Paz, organização israelita para a justiça, comité dos direitos
cívicos. Abu Nidal também foi a tribunal: "Não ganhei nada, foi só
para depois um dia mais tarde não me dizerem que não fiz nada,
que não protestei, que concordei."
Isolado, fechado, engaiolado, quase não passa um dia que Abu

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NIR ELIAS/REUTERS

"Se querem fechar, façam uma porta",


grita uma árabe israelita que acabou
de passar o muro
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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Nidal não discuta com os soldados. Um dia destes, colocaram-


lhe um segundo cadeado, fechado, mas apenas entre a rede da
barreira. "É para me lembrarem que me podem fechar", diz.
Então tudo voltaria a ser como antes: tinha esperar que eles
aparecessem, duas vezes por dia, nunca à mesma hora. Agora, os
soldados gritam-lhe, quando o vêem: 'Por que é que ainda estás
aqui?'". "Este muro é para isso. É para nos fazer sair."

Qalqilya estrangulada
O obstáculo é chamado "barreira de prevenção do terrorismo"
pelos israelitas e "muro de separação racista" pelos palestinianos.
Tirando os complementos, a realidade dá mais razão aos israelitas
na maior parte do traçado. Até agora, foram construídos pouco
mais de 180 quilómetros (no total, a barreira irá chegar aos 720
quilómetros) e destes, a maior parte é constituída por uma dupla
barreira electrificada ladeada por uma estrada de patrulha de um
lado e arame farpado do outro. Pouco mais de oito quilómetros,
diz o Ministério da Defesa israelita, são compostos pelos blocos de
cimento de oito metros de altura. Mas é precisamente perto das
cidades que a barreira se torna muro.
Uma das partes mais fotografadas da "barreira" é a que rodeia
Qalqilya, uma cidade de 45 mil habitantes rodeada pelo muro,
sim um muro, que depois se transforma na vedação que avança,
torce-se, retorce-se, rodeia, serpenteia, galgando terras, culturas,
pomares, incluindo casas, ladeando colonatos — segundo Zahran,
vinte e cinco por cento dos colonatos judaicos da Cisjordânia estão
naquela área.
Há apenas uma entrada para Qalqilya. Um sinal no checkpoint

130
avisa, em hebraico, árabe e inglês, que esta é uma zona militar
fechada. Numa das ruas principais, um relógio parado nas sete e
meia espelha a imobilidade da cidade. "Sentimos um laço prestes
e enforcar-nos. O muro está a 20 metros de nossa casa. Se a cidade
crescer, vai crescer para onde?", pergunta o presidente da câmara,
Maarouf Zaharan.
Zaharan, entristecido, olha para uma planta de Qalqilya,
cidade onde antes florescia a cooperação entre palestinianos e
israelitas — "era uma cidade rica" — e vê desolação. Vê uma taxa
de desemprego de 78 por cento. Seis mil trabalhadores que,
muitas vezes, iam a pé para Israel, ali ao lado, e que estão agora
fechados na cidade. Vê os campos onde cresciam alimentos que se
destinavam "a toda a Cisjordânia, até exportávamos para o Kuwait,
para a Arábia Saudita", do outro lado do muro. Vê agricultores
que não podem chegar às suas terras, criadores que não podem
alimentar os seus animais todos os dias. Finalmente, vê aumentar
o apoio aos extremistas. "Isto não é bom para as nossas crianças
nem para as deles. Se não é possível resistir pacificamente."
Preocupa-se em dar números, o presidente da câmara. "Veja só.
A cidade perdeu 46 por cento das suas terras. Trinta e dois por
cento dos recursos de água ficaram do outro lado. Oitenta por
cento dos habitantes da cidade vivem de ajudas."

"Nunca se sabe se os soldados nos deixam passar"


Em Qalqilya, encontramos também Jalal Ahmad Yossef Zed, 45
anos, oito filhos, um dos maiores criadores de galinhas da região.
Para além dos problemas que enfrenta para olhar pelas aves, que
estão "do outro lado", tem também questiúnculas diárias com os

131
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

soldados. "Pedem o registo de propriedade para deixar passar


os trabalhadores. Mas eles só trabalham lá, obviamente não são
donos." Como têm então acesso ao trabalho? "Às vezes os soldados
deixam. Mas estão a fazer-me um favor. E nunca se sabe se, nem
quando, os vão deixar passar."
A vida nas aldeias na zona mudou enormemente desde que
existe o muro. O tempo agora mede-se em "antes" e "depois" do
muro. Antes: a vida era normal. Os professores davam aulas,
os alunos assistiam, as pessoas usavam os hospitais da zona,
trabalhava-se, quer fosse em Israel, quer fosse em Qalqilya.
Depois: muitos professores moram em aldeias diferentes daquela
onde está a sua escola. Levantam-se às cinco da manhã para
chegarem a tempo ao portão, que pode abrir às sete, ou às oito,
para chegarem à escola, nem sempre a horas. Doentes esperam
que os soldados abram o portão para irem ao hospital. Outro dia,
uma família com uma criança doente esperava a chegada dos
soldados para passar para um hospital vizinho. Como não era hora
de abrir o portão, chamaram o médico. Que também não pôde
passar, por isso, a criança foi observada através da rede.
"O problema é não haver regras claras. Nunca sabemos com o
que contar. O portão abre durante 15 minutos, meia hora, e depois
fecha, qualquer atraso implica não passar. Nunca ninguém sabe
quando é que os soldados vão lã estar. Estão sempre a mudar",
queixa-se Zahran.

"Sharon: I did it my way"


Em Abu Dis, ainda há locais onde se consegue contornar o muro.
Um deles é uma secção com blocos pequeninos, com cerca de

132
dois metros, que está entre duas vedações de dois quintais de
casas vizinhas, e onde é possível passar, à vez, trepando pedras
acima, tropeçando pedras abaixo. Dos dois lados zumbem,
atarefadas, umas mini-carrinhas palestinianas e antigas limusinas
Mercedes, são os táxis colectivos, indispensáveis para quem
precisa de se mover, já que várias etapas são precisas para passar
de um lado para o outro: carrinha, checkpoint, um pouco a pé;
carrinha do outro lado, mais um checkpoint; andar mais um
pouco, outro táxi, muro.
O movimento é impressionante. Mulheres com filhos,
vendedoras com a mercadoria à cabeça, estudantes, homens de
cigarro ao canto da boca ou com misbahas na mão, até rapazes
carregando borregos mortos esperam que os do outro lado
acabem de passar, empoleiram-se e lá seguem. Em breve este
pequeno muro vai ser substituído por outro completamente
intransponível, que está cada vez mais próximo. E cada novo
pedaço vai apresentando novos graffiti: "Sharon: I did it my way",
lê-se num; "Paid by the US", lê-se noutro.
"Se querem fechar, façam uma porta", grita uma árabe israelita
que acabou de passar o muro. E o que havia ali há umas semanas
era precisamente uma porta. Um portão que, às vezes, era
fechado. Se perguntassem porquê, o soldado explicava que era
para que os palestinianos se fossem habituando, já que dentro de
meses não haveria porta, conta Mihal Zupan, de uma organização
de protecção de direitos humanos, que nesse dia visitava a zona.

"Só Deus ou as Nações Unidas nos podem ajudar"


Há um caso especialmente triste e conhecido de uma família

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Primeira de duas páginas


com a reportagem sobre
Abu Nidal, na edição
do PÚBLICO de 23
de Fevereiro de 2004

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afectada pelo muro, diz Mihal Zupan. Trata-se da família Iyyad.
O filho Abdullah, de 10 anos, tem um problema nas pernas que o
obriga a andar de cadeira de rodas. Antes, um táxi transportava-o
num instantinho da sua casa no Monte das Oliveiras. Agora, um
muro separa a casa da família da escola. Isso significa uma viagem
de táxi que tem de rodear o muro, dando uma longa volta que se
está a reflectir nos rendimentos da família e no aproveitamento
escolar do menino.
"Vai ser mais uma dificuldade", diz Mohammed Halil, acabado
de passar o muro com sacos de vassouras e esfregonas para
vender em Jerusalém. Mais uma dificuldade para quem ganha
100 a 120 shekels por dia (não chega a 35 euros), saindo de casa às
cinco da manhã e voltando já noite.
Já Abu Adel, que vem de Hebron para uma operação aos olhos,
vê impossibilidades na nova barreira. Saiu de casa às cinco e meia
para chegar aqui, ao muro, às 8 horas. Nota que é um caminho
que, sem os checkpoints ou a pequena barreira, demoraria nem
uma hora a fazer no seu velho carro. Não quer pensar como
será depois, quando o muro estiver completo. Não vai conseguir
entrar, não vai conseguir ir ao hospital. "Só Deus ou as Nações
Unidas nos podem ajudar."
Passamos para o outro lado, ou seja, para Abu Dis propriamente
dita. Seria a sede do parlamento palestiniano, a capital do
Estado Palestina, contígua a Jerusalém, se o processo de paz
não tivesse ficado moribundo em 2000. Mas quando o plano foi
delineado não havia Jerusalém e Abu Dis, queixa-se Salah Ayad,
que conhecemos por ser primo do dono do Hotel Cliff, que está
ensombrado pelo muro, vazio. "Não havia Israel e Cisjordânia,

135
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

REINHARD KRAUSE/REUTERS

todos temos família dos dois lados, isso era uma coisa de papel."
Uma coisa de papel, tal como ter cidadania israelita: Salah não
tem. O muro vai deixá-lo preso em Jerusalém, ilegal no Estado
hebraico. Não vai poder ir para o trabalho que é "já ali". Ali, na
Cisjordânia? "Antes não havia Israel e Cisjordânia, era tudo coisa
de papel." O ministério israelita da Defesa diz que o "pequeno
número" de palestinianos que ficam do lado israelita "não vai ter
de se mudar" mas acrescenta que o "seu estatuto permanecerá
inalterado". Ilegal, portanto.
Partes do jardim do Hotel Cliff têm acessos com escadas
improvisadas, escadotes encostados, num equilíbrio precário, aos
muros dos desníveis do jardim, um para subir, outro para descer,
indicando caminhos para chegar aos locais onde o muro ainda é
ultrapassável. Um jardineiro cuida de algumas plantas no meio

136
da desolação total. Quase no meio de nada, o muro, imponente.
Mesmo ao lado, lá mais a frente, um outro pedaço de muro, que
em breve ficará unido a este, fechando toda a zona, o "envelope de
Jerusalém".

"Até Jesus teria tido dificuldade em passar o muro"


Salah Ayad mora mesmo ao lado do hotel, mas o muro deverá
separá-los. Salah deverá ficar em Israel e o hotel na Cisjordânia.
Olha à sua volta e suspira. "Sabe, este é um local muito estratégico
e muito bonito." Olha à volta como que a adaptar-se à realidade,
como se visse pelos olhos de quem é de fora, como se de repente
se apercebesse que já não há grande beleza naquele pedaço de
terra poeirenta devido aos jipes do exército e dos camiões, com
uma enorme barreira de cimento cinzenta a aproximar-se. "Pelo
menos antes era bonito." Um pouco à frente, uma cidade viu o seu
cemitério ficar do lado israelita, conta. Tiveram de procurar outro
sítio para deixar os seus mortos.
"Até Jesus teria tido dificuldade em passar o muro", ironizam
alguns palestinianos. Lázaro, o fiel discípulo ressuscitado da
morte, teria ficado deitado no seu túmulo, brincam, porque a
barreira separa Jerusalém de Betânia, o local do milagre segundo
o Novo Testamento. Como dizia Abu Nidal, o homem que tem a
chave do muro, "quando se tem muitas coisas más que não podem
ser derrotadas, não resta mais nada senão rir."

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

O imenso adeus
Ele era o meu
pai, a minha
mãe, o meu
irmão. Tudo na
minha vida
138
Dezenas de milhares de palestinianos fizeram do funeral de
Arafat uma autêntica despedida popular. Gritos, orações e
lágrimas. Bandeiras, cartazes e balões. Pistolas, sabres
e metralhadoras. O caixão desceu do helicóptero no meio
de um caos de gente, atravessou a multidão uma e outra vez,
e foi enterrado entre pinheiros, com pedra de Jerusalém
e as cores da Palestina

Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, em Ramallah

Reportagem originalmente publicada a 13 de Novembro de 2004

F
oi o funeral que nenhum chefe de Estado poderia ter.
Sem paradas nem marchas fúnebres. Sem cavalos nem
trombetas. Sem protocolo. Às três da tarde da última sexta-
feira do Ramadão, sob um sol intenso, Yasser Arafat foi
enterrado entre as dezenas de milhares de palestinianos que
transbordavam da Muqata, empoleirados em telhados, nas
ruínas, nos muros, a toda a volta, apesar do arame farpado. Era o
povo, que lhe chama pai e não tem um Estado.
Ao princípio da manhã, já havia ondas humanas em direcção
à Muqata. Famílias inteiras com bebés e crianças. Velhos muito
velhos, curvados. Homens de muletas, até em cadeiras de rodas.
Adolescentes, universitários, em grupos. Mulheres todas cobertas,
de braço dado. Rapazes aos milhares, dominando, com faixas da
Fatah, bandeiras da Palestina, cartazes com a cara de Arafat.

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Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Chegando às traseiras do quartel-general onde o Presidente


palestiniano passou os últimos três anos em clausura, é uma
multidão sem fim. Em todas as casas e prédios, as varandas, os
telhados começam a encher-se. Os estreitos muros da Muqata são
tomados pelos mais ágeis, que se agarram ao arame farpado para
manter o equilíbrio. Ainda não sabem se as portas vão abrir para
todos. Guardam lugar.
Frente à entrada principal, as pessoas esmagam-se umas contra
as outras. O sol arde como no Verão. "Abu Ammar é a luz dos
nossos olhos", berra um rapaz com a cabeça enrolada no kaffiyeh,
o lenço palestiniano. Trepou para uma plataforma junto a uns
arbustos e com um megafone na mão vai incentivando o clamor.
"Longa vida à Palestina!"
Quando um carro vem a apitar furiosamente, abrindo caminho
para entrar na Muqata, é o caos, gente atirada contra as paredes.
Passa uma coroa de rosas vermelhas da família de um prisioneiro
político. Passa um garoto a vender balões cinzentos com a cara de
Arafat a sorrir. Passa um carro de bombeiros, crianças de seis e
sete anos com porta-estandartes, barbudos de olhar incendiado.
Nem todos são da Fatah de Arafat. Por exemplo, Mohammed,
30 anos (sem apelido, porque é procurado em Gaza), é do Hamas.
"Neste dia, somos todos palestinianos, somos irmãos, vamos na
mesma direcção", diz, entre raparigas de Ramallah de cabeça
descoberta e jeans justos que nunca poderiam pertencer ao
Hamas.
Iptisam, 46 anos, também tem a cabeça descoberta (embora
neste momento lhe desse jeito um chapéu contra o sol). Pertence
à equipa local da UNRWA, a agência da ONU para os palestinianos,

140
REINHARD KRAUSE

As pessoas esmagam-se umas contra as


outras. Os estreitos muros da Muqata são
tomados pelos mais ágeis, que se agarram
ao arame farpado para manter o equilíbrio.
O sol arde como no Verão. Nem todos são
da Fatah de Arafat
141
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

e está furiosa. "Somos de Ramallah, e para nós é fácil, mas os que


são de fora ficam presos nos checkpoints. Estou à espera de uma
amiga há horas. Nem hoje os israelitas nos respeitam."
Um grupo de garotos distribui posters de Arafat. Uma família
toda de luto aproveitou para colar um deles às costas do bebé, que
ainda mal anda e já tem um cachecol, um balão e uma faixa na
cabeça.
Um homem com hábito franciscano tenta furar entre a gente.
É frei Fadi Shalufi, 28 anos. Nasceu em Nazaré e vive agora no
Convento da Custódia da Terra Santa, em Jerusalém. "Vim para
honrar o chefe de Estado palestiniano", diz firmemente, em
italiano. "Sempre mostrou responsabilidade e amor pela sua terra
e morreu com verdadeira dignidade. Compreendeu muitíssimo
bem o que significa a comunidade cristã na Terra Santa. Lembro
as suas palavras: um dia a bandeira palestiniana será posta no
minarete e na igreja, em Jerusalém."

"Fuck Bush! Merci Chirac!"


Enquanto frei Fadi é arrastado, o cabeludo Hythum Kiswani
agarra impávido o seu cartaz que diz: "Fuck Bush! Merci Chirac!"
Palestiniano a viver em Los Angeles, veio há cinco dias visitar
a irmã em Ramallah. "Esta é uma mensagem para os media
americanos. Os Estados Unidos controlam Israel. Mas por Chirac
tenho muito respeito. Recebeu Arafat, deu-lhe uma bela procissão,
mostrou ao mundo que os palestinianos são relevantes."
A multidão desata a correr, olhando para cima. Um grupo
com bandeiras conseguiu trepar ao telhado do prédio onde as
televisões fazem os directos, e é celebrado euforicamente.

142
Dois amigos de Belém assistem, à sombra de um arbusto.
Ahmad, 24 anos, estudante universitário, e Ali, 22 anos,
desempregado, a viver num campo de refugiados. "Fiz isto hoje
de manhã", diz Ali, a sorrir, mostrando uma coroa de flores já um
pouco murchas. "Passámos sete checkpoints para chegar aqui."
Ambulâncias do Crescente Vermelho e da Assistência Médica
Palestiniana aguardam, a postos. Juntas, têm mais de 130 pessoas
à volta da Muqata, em prevenção. Uma nova onda humana fura
a caminho da entrada, cantando: "O helicóptero, o helicóptero,
o helicóptero está no céu!" Sabe-se que quatro helicópteros vão
sobrevoar a Muqata e num deles estará o corpo de Yasser Arafat.
"É a primeira vez que vejo uma coisa assim!", espanta-se
Abdelhamid, 56 anos, barbas brancas, quase atropelado pela
imparável corrente humana.
Nas traseiras da Muqata, o portão abre-se. Saem rapazes a
rufar tambores, entra quem pode, aos trambolhões. No interior,
o primeiro pátio está repleto. Cachos de homens nos escombros
de um dos vários edifícios arruinados pelas bombas israelitas. Um
formigueiro por janelas e portas, a caminho dos telhados.
Os polícias palestinianos estão entre a apoplexia e a emoção do
luto, tentando que a multidão não tente passar toda ao mesmo
tempo para o pátio onde estão os convidados.
Aí, por baixo das janelas onde Arafat tinha o seu gabinete, e
agora há um poster descomunal com a sua cara, foram colocadas
algumas dezenas de cadeiras de plástico. Já estão todas cheias.
Diplomatas, responsáveis de organizações humanitárias, e, na
primeira, fila, os patriarcas religiosos. São mais de uma dezena,
com as suas vestes negras arcaicas.

143
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Primeira página do PÚBLICO


de 13 de Novembro de 2004

144
"Com os lobos, há que ser lobo"
"Todas as igrejas estão aqui", diz Jack Nobel Abed, 47 anos, grande
barba grisalha, grande cruz com pedras preciosas ao peito. "A
Arménia ortodoxa, a síria ortodoxa, a copta ortodoxa, a católica
romana, a grega ortodoxa, a anglicana, a luterana, a síria católica,
todos os patriarcas de Jerusalém." Ele é da igreja grega católica.
"Estamos muito tristes por perdermos o pai, a cabeça, o fundador
do caminho palestiniano. Foi um bom professor. Esperemos que
os que venham sigam o seu caminho para a paz." Como responde
aos israelitas que apresentaram Arafat como um obstáculo à paz?
"Com os lobos, há que ser lobo. E eles são piores do que lobos."
Numa das primeiras filas está também Jeff Halper, um
americano que se fez cidadão israelita há 30 anos e dirige o
Comité Israelita Contra a Demolição de Casas, um dos vários em
Israel que colaboram com a causa palestiniana. "Vim num grupo
de organizações, 24 pessoas de Jerusalém e 40 de Telavive, para
expressar o nosso apoio."
Deixando esta zona, chega-se ao grande terreiro onde o
helicóptero vai aterrar. A visão repete-se, numa escala maior:
dezenas de milhares de pessoas, no chão, por toda a parte.
Liad Kantorowicz sobressai. Tem as unhas pintadas com
todas as cores do arco-íris, o cabelo cor-de laranja, um piercing
no nariz e outro na língua. Israelita de Telavive, 26 anos. "Sou
anarquista", declara, à laia de aviso. "Não sinto nada por Arafat.
Era um corrupto, como a liderança palestiniana, israelita e os
governos em geral. Mas hoje é um dia extraordinário na história
da Palestina, e vim aqui para o entender, na tensão e na emoção.
Os israelitas não querem saber, não compreendem. Mas é preciso

145
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

ver isto, ver as pessoas, os posters do tamanho de prédios, para


perceber o impacto que Arafat tinha nas pessoas. É um símbolo do
Médio Oriente, e hoje é o fim de uma era. Isto não se pode ver na
televisão, eu queria vivê-lo."
O sol continua escaldante, e há muita poeira no ar. Todos
esperam, entre cânticos e gritos ("Yasser! Yasser!"). Abrindo
caminho em silêncio, vem agora uma Brigada dos Mártires de Al-
Aqsa, máscaras na cara e sabres erguidos. São duas e dez da tarde.
E de repente, pontinhos no céu. Dezenas de milhares de
pessoas explodem, levantando os braços. O xeque da mesquita
na zona dos convidados começa a recitar o Corão. Cada vez mais
próximos, os pontinhos transformam-se em helicópteros. É o
delírio.

Tiros e orações
Um grupo de 30 juízes de toda a Cisjordânia, impecáveis nos seus
trajes negros e barretes brancos, avança entre homens de botas
sujas e metralhadora ao ombro. "Arafat era o nosso professor",
grita o juiz Ahmad Mohammed acima dos gritos.
Hassam, ao seu lado, tem uma Galilon israelita ao ombro. "É
uma boa arma, não há muitas assim em Ramallah", orgulha-se este
pai de oito filhos com 31 anos, ligado à Fatah. "Os tiros são para
honrar Arafat e dizer a Israel que resistimos." Afastando-se, aponta
ao céu e dispara.
Ouvem-se rajadas de todos os lados. O céu enche-se de pó.
A multidão empurra-se na direcção do helicóptero. Em cima
de um barril, uma mulher põe-se em bicos de pés e chora
convulsivamente. Há braços no ar, balas usadas a tilintar no chão.

146
Avista-se a parte de cima do helicóptero, de onde o caixão com o
corpo de Arafat está a ser retirado.
Os versículos do Corão continuam a ecoar. Dezenas de homens
curvam-se no chão, a rezar, voltados para uma parede cheia de
retratos de Yasser Arafat. Aí estará Meca. Voluntários do Crescente
Vermelho correm com uma maca. Um homem inconsciente.
"Yasser! Yasser!", continua a multidão. Abre-se um corredor.
Vemos o primeiro-ministro Qorei e outros líderes palestinianos
passarem, e, atrás, o carro com a urna, coberta por uma bandeira
palestiniana e ladeada por soldados aos gritos, de braços
levantados.
As metralhadoras disparam sem cessar. Cheira a pólvora.
As mulheres choram, levantando os braços. O xeque reza
incessantemente. A urna avança aos solavancos, com milhares de
mãos a quererem tocá-la. Gritos por Alá, por Jerusalém, por Abu
Ammar.
O caixão é levado para a mesquita, de onde sairá para ser
sepultado numa campa de mármore, entre pinheiros, com pedras
de Jerusalém, bandeira e lenço da Palestina.
Um dos jovens guardas que passou os últimos três anos na
Muqata, partilhando o cerco com o Presidente, mantém-se no
seu lugar, guardando a entrada do que era o gabinete de Arafat.
Diz isto: "Ele era o meu pai, a minha mãe, o meu irmão. Tudo na
minha vida." Diz que não interessa como se chama nem dizer mais
nada.

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147
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Refugiados
temem que
luta pelo direito
de retorno
tenha morrido
com Arafat
Maria João Guimarães

148
Texto originalmente publicado a 13 de Novembro de 2004

L
íbano, Síria, Jordânia. Os campos de refugiados palestinianos
receberam a notícia da morte de Arafat como se fosse
a notícia de que nunca iriam conseguir o que o líder
palestiniano lhes prometeu durante décadas: o direito de
retorno aos lugares de onde saíram depois da criação do
Estado de Israel.
"Nunca conheci um pai, mas tive Abu Ammar", disse à Reuters
Johaina Okasha, uma palestiniana de 40 anos do campo de
refugiados Ain el-Hilweh, no Líbano, referindo-se ao nome de
guerra de Arafat. "Ele era o único em quem confiava. E agora foi-se
embora."
Ain el-Hilweh, o maior campo de refugiados do sul do Líbano,
era conhecido como "Fatahlândia" pela concentração de apoiantes
da facção de Arafat na OLP.
Ontem, a Beirute onde entre 1975 e 1982 o chefe da OLP
estabeleceu o seu quartel-general, e "um estado dentro do Estado",
fez a sua última homenagem a Arafat, num mar de bandeiras negras
e com as cores palestinianas, negras, vermelhas, verdes e brancas.
"Abu Ammar morreu. O nosso povo perdeu uma garantia
preciosa de recuperar os seus direitos, nomeadamente o direito
de retorno dos refugiados", disse Ammé Jibril, da União Geral das
Mulheres Palestinianas, à AFP.
Os campos de refugiados de Beirute Burj al-Shamali e Sabra e
Shatila marcaram também o acontecimento com tiros. Como em
Ain el-Hilweh, foram queimados pneus para o céu ficar de luto. As
pessoas saíram à rua, gritando: "Abu Ammar, onde estás?"

149
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Os refugiados palestinianos no Líbano continuaram nos campos


depois de Arafat, e de muitos dos seus homens, terem saído do
país na sequência de um acordo assinado em 1982 que pôs fim
à invasão israelita do Líbano. Beirute teme que os refugiados
palestinianos, na maioria muçulmanos, possam desequilibrar
a periclitante distribuição do poder no país. Os refugiados não
podem sair do Líbano — se saírem não poderão regressar — nem
trabalhar, ir à escola, comprar terra.
"Abu Ammar era o nosso pai, era tudo para nós", diz Nabil Abdel
Salam, um apoiante da Fatah em Ain el-Hilweh. "Toda a esperança
desapareceu".
"Esperávamos todos um milagre" confessava Mona Ali, uma
palestiniana de 24 anos. "Esperávamos que ele voltasse, ainda não
conseguimos acreditar que o nosso líder está morto."
Arafat sempre prometeu aos refugiados, que, aliás, constituíram
o núcleo duro da sua guerrilha, que um dia teriam o direito de
voltar às terras que deixaram e que estão entretanto localizadas
em Israel.

"O funeral devia ter sido aqui, na Jordânia"


Nos campos de refugiados da Jordânia, havia algum
descontentamento quanto ao lugar do funeral de Arafat: "A
Jordânia tem a maior concentração de palestinianos no exílio. O
seu funeral devia ter sido aqui, entre o seu povo", afirmou Aouni
Shatarat, um dos principais elementos da Fatah no campo de
refugiados de Baqa'a, a cerca de 10 quilómetros a norte de Amã.
Este campo recebeu refugiados de 1948 (criação do Estado de
Israel) de 1967 (Guerra dos Seis Dias) e de 1991 (Guerra do Golfo).

150
No reino hachemita vivem cerca de 1,8 milhões de refugiados
palestinianos entre um total de 4 milhões divididos entre outros
países árabes da região. Em Baqa'a foi feito um funeral simbólico,
com um caixão coberto por uma bandeira palestiniana. "Vamos
voltar para a Palestina", gritavam cerca de duas mil pessoas.
Mulheres e crianças seguiam à frente. As crianças disparavam
armas de brincar.
"Parece que perdi um pai e um bom amigo", disse Mohammed
Sbeia, 55 anos, à Associated Press. "Ele tentou ajudar refugiados
como eu. Mas não podia fazer mais, porque não nos querem de
volta às nossas casas na Palestina."
"Arafat continuou fiel aos seus princípios e não vendeu a
sua causa", elogiou Abdul Latif Ahmed, um lojista de 26 anos.
"Queremos um líder revolucionário que lidere o nosso povo e
renove a revolução", afirmou por seu lado Adeeb Abu Rouz, que
lutou nas fileiras da Fatah no Líbano e em 1982 foi viver para a
Jordânia. "Qualquer outro líder que faça mais compromissos do
que Arafat será eliminado", avisou.
"Arafat definiu o mínimo aceitável para uma solução negociada
baseada na edificação de um estado independente que nenhum
dirigente poderá transgredir", dizia Issam, um jovem quadro da
Fatah, em Beirute."
"Com a morte de Arafat não quer dizer que a causa tenha
acabado, o seu sucessor seguirá o seu caminho", disse, mais
optimista, o palestiniano Hilmi Adel.

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151
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Retirada de
Israel da Faixa
de Gaza
152
Prossegue o plano
de retirada de Gaza.
E também
a construção do Muro
de Separação
na Cisjordânia, uma
barreira de segurança
que Israel entende
essencial para proteger
as suas cidades
de ataques terroristas.

153
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Em Neve Dekalim
prepara-se
a resistência
Não vamos lutar
mas também
não vamos sair
154
Em muitas casas de Neve Dekalim, há montes de conservas,
leite e água de habitantes que querem prevenir um "desastre
humanitário" quando o Governo cortar água e luz. E há
pessoas que acreditam em milagres e que estão convencidas
de que a retirada não vai acontecer

Da nossa enviada Maria João Guimarães, em Gush Katif (Faixa de Gaza)

Reportagem originalmente publicada a 14 de Agosto, de 2005

O
centro de Neve Dekalim, que é uma espécie de capital
do bloco de colonatos judaicos de Gush Katif, está a
fervilhar de gente. As ruas do centro, normalmente
calmas, estão em plena actividade. A relva em frente ao
conselho regional polvilhada de jovens de cor de laranja.
O supermercado está a ficar com as prateleiras vazias. O
Governo avisou que vai cortar electricidade e água até dia 15. As
pessoas armazenam víveres em casa.
"Cortar a electricidade e a água com este clima é potencialmente
fatal, especialmente com tantas grávidas e bebés pequenos, como
é costume nesta comunidade. Além disso, vão fechar a clínica, que
é também onde há os medicamentos", diz o advogado holandês
Yohan Rhodius, que está em Neve Dekalim a procurar processar
o Estado de Israel por este estar a prestes a cometer "um desastre
humanitário".
Rhodius está como convidado numa casa do colonato, cheia

155
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

já de água e leite e conservas de lata para permitir a subsistência


durante dias.
"É um cerco", conclui. "Estou inclusivamente a pensar se
não se adapta a estas pessoas a descrição de refugiados, já que
um refugiado é uma pessoa que tem medo justificado de ser
perseguido por razões políticas e religiosas", desfia Rhodius. "E
estas pessoas estão a sofrer uma perseguição: o que mais senão
tirar-lhes a comida?"
"Isto é violência. Tirar a água para mim é a mesma coisa que
dar um tiro", sustenta. "E estamos a falar de pessoas que não vão
sair", garante Chain Eisen, um religioso de kippa e barba que tirou
licença sem vencimento do trabalho — não quer dizer qual — em
Jerusalém. "Nós não vamos sair. Não há aqui nenhum tempo verbal
no condicional. As pessoas prometeram que não vão lutar, mas o
Governo está a impor-lhes um castigo."
Na casa onde antes morava um casal — uma casa grande e
solarenga, com uma espécie de coreto coberto de hera no jardim,
verde, com flores distribuídas generosamente, mas com cuidado,
o Mediterrâneo a espreitar na janela panorâmica da sala — há
agora mais de sete pessoas, incluindo Rhodius e Eisen.
Noutros jardins, há tendas. No centro, há jovens a dormir em
sacos cama no chão. Centenas de pessoas ter-se-ão infiltrado em
Gush Katif apesar da proibição do Governo.
"Como é que um exército tão competente deixa infiltrarem-se
tantas pessoas?", pergunta Eisen. "Só há uma resposta. Estão a
desafiar a proibição de entrada a não residentes."
Zeevi, de 26 anos, veio de Jerusalém com a mulher e o filho de
um ano e meio. São professores e estão de férias. "Conheço muitas

156
REUTERS

Os Efergan, uma família de colonos israelitas, embalam os seus pertences na frente de sua casa
no assentamento Elei Sinai, na Faixa de Gaza, em 14 de Agosto de 2005

"Nós não vamos sair", assegura um


religioso de kippa e barba. Há quem
considere que expulsar as pessoas dos
colonatos é "um desastre humanitário".
"Não queremos ser exilados outra vez"
157
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

pessoas que estão aqui e para isso deixaram os seus trabalhos,


para o bem de Israel."
O som de guitarras tocadas por adolescentes sentados na relva,
vestidos de cor de laranja berrante (a cor dos anti-retirada) é a
banda sonora ideal para o discurso de Zeevi. "Vim aqui dizer a
Sharon e ao mundo que amamos Israel, amamos a democracia, e
acreditamos na força deste amor".
"Esperamos que o mundo perceba que não queremos ser
exilados outra vez", diz. "Agora temos um país, deixem-nos viver
em paz."
Para Zeevi, não haverá resistência mas também não haverá
evacuação. "Não vai haver violência. Vai ser muito difícil para
todos, para nós, para os soldados, afinal, estamos todos do
mesmo lado." E dispara uma comparação: "Os paramédicos
acham que estão preparados, mas quando chegam ao local do
acidente ninguém, nem eles próprios, sabem como vão reagir.
Será o mesmo com os soldados. Eles virão e vão acabar por
não conseguir". Zeevi tem a certeza. "Já tenho visto soldados a
chorar."

"Os árabes querem tudo, querem Jerusalém."


Há estrangeiros numa paragem de autocarro do colonato. Têm
T-shirts amarelas a dizer "Americanos contra a expulsão de
judeus".
Chegaram há pouco, já depois da proibição da entrada no
bloco de colonatos a não residentes. "Falei com um comandante
uma hora e meia e ele acabou por deixar entrar dez pessoas",
conta Nava Klein, de Nova Iorque, uma artista gráfica que deixou

158
a família preocupada e o marido à beira do divórcio para "fazer
o que está certo". Em paz: "Se o soldado vier, leva mais cinco
minutos a levar-me a mim, mais cinco minutos a levar outra
pessoa, e assim por diante."
Bilha Nissein está no mesmo grupo apesar de ser israelita de
Herzlyia. Este verão, trocou o Algarve do costume por Gush Katif.
"Os rockets podem cair em todo o lado, até Telavive, e vamos
retirar de Telavive? Os árabes querem tudo, querem Jerusalém."
Acha não só que a retirada não vai acontecer como que esta vai ser
uma época de viragem. "Se com a ajuda de deus tudo correr bem,
vai ser o início dos judeus governarem Israel", sentencia.
Muitos residentes dizem estar à espera de um milagre. Invocam
a relação entre os foguetes artesanais Qassam atirados pelos
combatentes palestinianos — tubos de lata cheios de explosivos
que caem onde calhar — e os mortos por causa deles. Seis mil
rockets e nenhum morto. Diz Nava Klein, diz Bilha, diz Zeevi.
"Seis mil rockets caíram em Gush Katif e ninguém morreu", é um
mantra, uma garantia, uma prova para convencer os descrentes
que o milagre há de vir. "Mesmo quando a espada está no nosso
pescoço não devemos perder a esperança", conclui Nava.

Tiros em Kfar Darom


Um bando de crianças recebe-nos à porta de Kfar Darom, um
colonato um pouco mais acima do bloco de Gush Katif que
segundo a aprovação do Governo será um dos primeiros a ser
evacuado. Mas afinal não é uma recepção — elas querem impedir
a entrada do carro com os jornalistas. Barram literalmente o
caminho da viatura. Ao argumento de que temos autorização do

159
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Governo, os miúdos encolhem os ombros: "Não reconhecemos


autoridade ao Governo."
As crianças devem ter entre sete e dez anos, e algumas contam
que vieram da Cisjordânia para ajudar Kfar Darom.
Um dos miúdos discute com o soldado. Soaram tiros — uma
rajada, duas rajadas. E depois silêncio. São tiros de aviso aos
árabes, explica um dos miúdos. Vai ter com o soldado e pergunta-
lhe porque é que dispararam tiros de aviso, passando alguns
minutos a discutir estratégia militar.
Depois está pronto para uma pergunta. Sair de Kfar Darom?
"Nem pensar, ainda hoje plantei uma árvore."

Os colonatos que vão ser evacuados


na Faixa de Gaza e na Samaria
Bedolah
Um moshav (colectivo de indivíduos proprietários de bens
livres) fundado em 1986 como parte do movimento religioso
Hapoel Hamizrahi e do movimento juvenil Bnei Akiva,
Bedolah tem 33 famílias e 220 habitantes. A maior parte dos
seus membros cultivam pimentos, tomate e outros vegetais
em estufas, para o mercado local e para exportação. Em anos
recentes alguns imigrantes da França juntaram-se ao moshav,
aumentando a sua diversidade cultural.

160
Bnei Atzmon
Fundado em 1978 depois dos Acordos de Camp David, Bnei
Atzmon é um moshav misto de colectivo e privado de 70
famílias que totalizam mais de 500 pessoas. Tem um bem
desenvolvido sistema educacional para 550 alunos desde
o jardim infantil até ao secundário. Bnei tem mais de 5000
dunams [cerca de 500 hectares] de culturas, 12 dunams [1,2
hectares] com perus, produção leiteira, uma empresa de
construção e uma estufa de plantas considerada uma das mais
avançadas da região.

Gadid
Criado em 1982 por um grupo de 22 Bnei Akiva (movimento
nacional de jovens religiosos), Gadid tem agora 60 famílias,
com mais 15 de França no seu centro de absorção de
imigrantes. Ao contrário dos outros colonatos agrícolas da
Faixa de Gaza, as suas estufas originais foram construídas
junto das residências. À medida que o colonato cresceu, novas
estufas foram acrescentadas por trás da área residencial,
incluindo as que são operadas pela família Berbie para
produzir plantas medicinais. Cerca de 60 por cento das
plantas deste género exportadas por Israel são de Gush Katif.

Gan Or
Membro do movimento religioso Hapoel Hamizrahi, Gan Or
foi fundado em 1983 por licenciados dos movimentos Bnei

161
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Akiva e hesder yeshiva, combinando este último o estudo de


yeshiva (Talmude) com o serviço militar. A maior parte das
suas 50 famílias ganham a vida com estufas de vegetais. A
comunidade, que completou recentemente a construção de
uma sinagoga e de um salão anexo, também aloja o Colégio
Feminino Tohar, que oferece estudos religiosos e outros
na Open University e na Universidade Bar-Ilan, na vizinha
Ashkelon.

Ganei Tal
Este moshav religioso foi fundado em 1979 por licenciados
de Bnei Akiva. A maior parte das suas 65 famílias vivem de
estufas onde criam produtos agrícolas, incluindo vegetais
orgânicos, flores, sementes, plantas de casa e de jardim e
especiarias. Ganei Tal também se orgulha da sua vasta gama
de actividades culturais.

Katif
Dez antigos combatentes do movimento Bnei Akiva e das
Forças de Defesa de Israel criaram Katif em 1985, depois de
se terem submetido a treino agrícola no vizinho Moshav Bnei
Darom. Hoje a comunidade congrega mais de 60 famílias e
tem uma população de cerca de 330 pessoas, 220 das quais
crianças. Para além das suas muitas outras instituições
educacionais, os seus membros fundaram o Katifa Yeshiva
para estudos marinhos e do deserto, que combina estudo

162
religioso e ambiental. Katif tem produtos lácteos enquanto nas
suas estufas produz vegetais para exportação.

Kerem Atzmona
Criado em 2001 por cinco famílias num pomar abandonado
entre os colonatos de Bnei Atzmon e Morag, Kerem Atzmona
tem hoje 15 famílias com umas 60 pessoas. Trabalham no
ensino e em profissões várias.

Kfar Yam
Este pequeno colonato na parte ocidental de Neve Dekalim
foi estabelecido em 1983 por duas famílias num posto
abandonado do Exército egípcio. A sua população aumentou
um terço em 1985 e um quarto em 1996. É considerado um
"colonato de indivíduos".

Morag
O mais meridional dos colonatos de Gush Katif, Morag
começou em 1972 e tornou-se um moshav religioso em 1983,
filiado no movimento Hapoel Hamizrahi. A maior parte
das suas 29 famílias trabalham na agricultura, plantando
tomate, hortaliças, especiarias e outros produtos. Apesar de
submetido a constantes ataques terroristas, Morag recebeu
recentemente mais sete famílias e completou a construção de
uma estrutura para utilização como sinagoga.

163
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Netzer Hazani
Inicialmente estabelecido como um colonato Nahal (pioneiros
combatentes) em 1973, Netzer Hazani foi fundado como
moshav civil por 12 famílias religiosas em 1997. Hoje a maior
parte das suas 70 famílias vivem de agricultura em estufas,
criando vegetais orgânicos e uma grande variedade de
espécies para exportação e criam peixe em viveiros.

Neve Dekalim
Este colonato religioso de 500 famílias (cerca de 2600
habitantes) é o maior da Faixa de Gaza e serve os outros como
central administrativa e de serviços. Neve Dekalim mantém
vereação, serviços religiosos e de saúde, um centro comercial
e industrial, uma vasta variedade de instituições regligiosas
e movimentos juvenis, actividades culturais, um centro
comunitário e a biblioteca regional.

Pe'at Sadeh
Criado como colonato temporário em 1989, passou em 1993
para a sua actual localização numa colina sobranceira ao mar.
As suas 20 famílias somam 110 habitantes, 70 dos quais são
crianças. Os habitantes deste colonato são uma mistura de
seculares e religiosos. A maior parte dedica-se à agricultura.

Rafiah Yam
Este colonato misto de secular e religioso foi estabelecido

164
como local temporário em 1984 por jovens casais de
diferentes partes de Israel e transferiu-se em 1991 para a
actual localização. A maior parte das suas 25 famílias (100
habitantes) vivem de agricultura avançada em estufas,
fabricando também roupas para as principais casas de moda
de Israel.

Shirat Hayam
Criado em 2000 em resposta ao bombardeamento terrorista
de um autocarro escolar no vizinho Kfar Darom, fica à beira-
mar e tem 16 famílias com 26 crianças. A maior parte dos
residentes trabalha na agricultura.

Slav
Primeiro criado em 1980 como um colonato Nahal, Slav
começou a funcionar depois da retirada do Sinai em 1982,
como um ponto de passagem para grupos de colonos e como
local do colégio Midreshet Hadarom. Hoje três famílias vivem
numa parte do colonato, enquanto o resto serve como base da
polícia fronteiriça.

Tel Katifa
Fundado alguns meses antes da assinatura dos Acordos de
Oslo de 1992, o colonato tem 15 famílias, a maior parte das
quais faz a sua vida com a agricultura e procura desenvolver a
localização à beira-mar, com um lago natural, para o turismo.

165
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Dugit
Fundado em 1990, Dugit é um colonato comunal à beira-mar
de cerca de 20 famílias (70 pessoas) que vivem da criação de
peixe e do turismo. Depois de terem morado em caravanas
desde a criação de Dugit, algumas famílias receberam licença
para construir casas permanentes.

Elei Sinai
Fundado em 1983, em parte por colonos obrigados a deixar
o Sinai pelo acordo de paz assinado com o Egipto, Elei Sinai
é um colonato comunal secular de 85 famílias com uma
população de 350 pessoas. A maior parte dos seus membros
são profissionais que trabalham na vizinha Ashkelon, a 15
quilómetros.

Nisanit
O maior colonato na parte setentrional tem 300 famílias e
1300 habitantes. Fundado inicialmente como um colonato
Nahal em 1980, tornou-se uma comunidade civil em 1993. A
maior parte dos seus profissionais trabalham em colonatos
próximos ou na cidade de Ashkelon.

Kfar Darom
Este histórico moshav religioso tem as suas origens há mais
de 70 anos, quando um homem chamado Tuvia Miller
comprou 260 dunams (26 hectares) para um pomar. A sua

166
Infografia publicada
a 14 de Agosto de 2005

167
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

terra foi destruída durante a agitação árabe de 1936-1939,


mas o Fundo Nacional Judaico comprou o terreno em 1946,
quando foi povoado por um grupo de kibbutzniks religiosos.
Durante a Guerra da Independência, aguentou-se contra
o Exército Egípcio durante cerca de três meses, até que a
Força de Defesa de Israel ordenou aos seus defensores que
partissem no Verão de 1948. Depois da Guerra dos Seis Dias,
Kfar Darom foi restabelecido como um conjunto militar e
agrícola e transformado em colonato religioso em 1989. Hoje
tem 65 famílias e 400 habitantes. O seu Instituto da Torah e da
Terra busca soluções para problemas colocados pela moderna
agricultura e pelo direito religioso e os seus membros ganham
a vida com a agricultura, o ensino e outras profissões. Aloja
uma empresa regional de empacotamento e entre os seus
estabelecimentos de ensino encontra-se um Centro para
Desenvolvimento da Criança.

Netzarim
Criado como colonato em 1972 por um grupo do movimento
secular Hashomer Hatzair, tornou-se um colonato civil
em 1984. Alguns anos depois os seus membros decidiram
dissolver o kibbutz e transformar Netzarim num colonato
comunal. As suas 60 famílias operam uma economia
desenvolvida que inclui tomate para exportação, mangas e
hortaliças. Alguns dos seus membros trabalham em colonatos
vizinhos. Devido à insegurança, as crianças estudam em

168
Bnei Atzmon. No entanto, há três anos foi criada uma escola
religiosa com 20 estudantes/soldados.

Ganim
Este colonato secular foi criado em 1983 e tem 30 famílias.
Planificado para uma população eventual de 300 famílias,
deveria fazer parte de uma série de comunidades no Norte da
Samaria.

Homesh
Comunidade mista de secular e religioso, começou em 1978 e
tornou-se civil em 1988, com 30 famílias. A sua localização na
mais elevada colina da região dá-lhe uma vista panorâmica dos
arredores e foi um factor de segurança no seu planeamento.

Kadim
Comunidade residencial criada em 1983, tornou-se civil no
ano a seguir com a chegada de 25 famílias. Foi estudada para
200 famílias.

Sa-Nur
Criado em 1977, este colonato religioso adoptou o actual nome
em 1987, depois de ter servido desde 1984 como uma colónia
de artistas. Tem 15 famílias e foi planificado para 80.
Fonte: Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel

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169
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

A nova Intifada de Ramzi


Música, no lugar
das pedras

É a criança no poster a atirar uma pedra. É o adulto que toca


uma suite de Bach na sua viola. Ramzi Aburedwan foi um
ícone da primeira Intifada palestiniana. Passou a infância
a atirar pedras. Agora anda pela Palestina a levar música às
crianças que cresceram como ele, em campos de refugiados
Alexandra Lucas Coelho, em Ramallah

170
Reportagem originalmente publicada a 21 de Agosto de 2005

M
ozart num souk palestiniano, em noite de quarto
crescente. A voz da soprano eleva-se, delicadíssima, até
ao silêncio. E então, na pausa em que ela respira, ouve-se
o bruá de dezenas de milhares de pessoas.
Judeus religiosos, ortodoxos, ultra-ortodoxos, unidos
em oração contra a retirada de Gaza, cinco dias antes do
ultimato.
Estão a passos daqui e noutro mundo, como só é possível na
Cidade Velha de Jerusalém. Rezam, cantam, choram, diante do
Muro das Lamentações, com as suas muitas crianças, todas as que
Deus dá, para acrescentar mais e mais judeus à Terra Prometida, a
Grande Israel onde um colono em Gaza é um judeu em casa.
Chegaram antes do crepúsculo, por todas as portas da velha
Jerusalém. Muitos atravessaram o bairro muçulmano, em marcha
firme. Passaram à porta deste souk, com a Torah nas mãos como
um tambor. Gush Qatif. Gush Qatif.
Quando a lua começou a subir, eram uma massa apertada frente
ao muro, um coro fervoroso ecoando as palavras de três rabis. E
muitos outros se empurravam para entrar na praça.
Quem saísse, abrindo caminho a custo na direcção do bairro
muçulmano, encontraria o souk Al Qattanin do lado direito, com
uma barreira da polícia israelita, reforçada para impedir o acesso
dos manifestantes judeus. E do lado de lá da barreira, a meio do
souk fundado no século XIV por um príncipe mameluque, todo
este outro mundo:
Um pátio de pedra ao ar livre com palco improvisado; jovens

171
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

músicos a afinarem clarinetes, alaúdes, violinos, violoncelos;


cadeiras, banquinhos, tapetes, almofadas à espera de gente; chá
com hortelã fresca em tabuleiros.
E pouco a pouco, uma plateia repleta de palestinianos e
membros da comunidade estrangeira, sorrindo, acenando aos
conhecidos, sentando as crianças no colo, como se não tivessem
acabado de sobreviver ao engarrafamento de religiosos partidários
da ocupação.
A alma da noite é Ramzi Aburedwan.
O jovem anfitrião de barba que foi ao centro do palco explicar
como o concerto começaria com música clássica, no antigo
hammam por baixo do pátio.
O violetista que ao som de uma suite de Bach então encaminhou
a plateia em fila descendente pelo labirinto de pequenas salas
com abóbadas, onde durante séculos os homens se banharam, em
repouso.
O intérprete que numa das salas tocou Debussy com um trio
de viola, flauta e harpa, na outra integrou uma orquestra de dez
músicos interpretando Tchaikovsky, e reconduziu o público à
primeira sala, para uma ária de Mozart.
O também tocador de buzuk, uma espécie de alaúde, na
parte oriental do concerto, de volta ao ar livre, quando todos os
instrumentos se encontraram e a voz assombrosa de um menino
refugiado de Hebron vibrou em todo o pátio e a soprano francesa
se tornou árabe e as famílias na plateia cantaram com ela, batendo
palmas.
O congregador de todos estes jovens intérpretes que levam
música aos mais remotos cantos da Palestina, esperando em

172
HANS LUCAS/JEAN-MICHEL DELAGE

Ramzi Aburedwan

“Foi a primeira vez que atirei uma pedra.


Eu vinha da escola com um amigo e
começámos a ouvir tiros. Quando olhei
para o lado ele estava morto." Viu os
soldados israelitas à sua frente. Agarrou
na pedra. Nem pensou que podia morrer.
Uma raiva, uma dor, sem medo
173
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

checkpoints com as suas harpas e os seus violoncelos às costas, e


que na véspera tinham passado horas a limpar o velho hammam,
perfumando-o com incenso, iluminando-o com velas.
Aquele que hoje à noite, neste terceiro domingo de Agosto,
estava convidado para tocar em Ramallah ao lado do israelita
Daniel Barenboim, director da Chicago Simphony Orchestra e
da Staatsoper de Berlim, fundador da West-Eastern Diwan, uma
orquestra que junta músicos árabes e israelitas, sonhada a meias
com o ensaísta palestiniano Edward Said.
Ramzi teve de declinar o convite, como já fizera duas vezes
antes. Implicava muito tempo em ensaios, neste mês em que ele
não tem um só dia livre, entre concertos, ateliers para crianças em
campos de refugiados e a abertura da sede da sua associação, Al
Kamandjâti, em Ramallah.
Al Kamandjâti significa O Violista.
É a nova vida de Ramzi Aburedwan. A outra intifada do garoto
que se tornou um ícone da primeira intifada palestiniana.

Um buraco num casebre de cimento e zinco, no campo de


refugiados de Al Amari, junto a Ramallah. "Era aqui que nos
escondíamos quando atirávamos pedras", aponta Ramzi. "Eu era o
chefe do bando."
Está em casa. Vai apertando mãos e acenando às crianças,
ruelas de lama fora, até à porta dos avós. Aqui cresceu e continua
a viver.
Um dia, quando descobriu que nem toda a gente vivia em
campos como este, perguntou ao avô: "Porque estamos assim?" E
então o avô contou-lhe a história da Naqba, a Tragédia, em 1948,

174
quando o Estado de Israel foi criado e centenas de milhares de
palestinianos foram expulsos ou obrigados a fugir das suas casas,
refugiando-se em Gaza (então Egipto), na Jordânia (que incluía
a Cisjordânia), na Síria e no Líbano. Contou-lhe do pomar de
laranjeiras que a família tinha em Ramlah, hoje Israel. Daí vieram
os parentes de Ramzi, uns para Gaza, outros para este campo de
refugiados.
Dentro de casa está fresco. A avó descansa num sofá da pequena
sala. Emoldurado na parede, o poster com Ramzi, aos oito anos.
"Foi a primeira vez que atirei uma pedra. Eu vinha da escola
com um amigo e começámos a ouvir tiros. Quando olhei para
o lado ele estava morto." Viu os soldados israelitas à sua frente.
Agarrou na pedra. Nem pensou que podia morrer. Uma raiva, uma
dor, sem medo. Um fotógrafo apanhou-a por acaso, e a cara de
Ramzi correu mundo, feita poster. Aconteceu em 1987, no começo
da Primeira Intifada.
"Meses depois mostraram-me um jornal com a fotografia, não
sabia que a tinham tirado", conta Ramzi no seu francês desenvolto,
que facilmente pode mudar para inglês, conforme o interlocutor.
É gentil e firme, de uma inteligência rápida. Um homem
franzino muito forte.
Traz o estojo da sua viola, tira o poster da parede e sobe até ao
modesto terraço, a única zona da casa com luz suficiente para
fotografar.
Dentro do estojo, tem duas fotografias. Vão com ele para onde
ele for. Uma da dourada Cúpula do Rochedo, que para qualquer
palestiniano simboliza o direito a Jerusalém. E outra, a preto e
branco, com os avós que o criaram.

175
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Capa da revista Pública


de 21 de Agosto de 2005

176
"O meu pai e a minha mãe separaram-se quando eu tinha quatro
anos, e fiquei a viver com o meu pai, em casa dos meus avós." O
pai era porteiro na Universidade Hebraica de Jerusalém. "Quando
comecei a atirar pedras, protegia-me muito."
Ainda assim, Ramzi guarda cicatrizes da Intifada. Aos nove
anos, levou um tiro no braço esquerdo. "Por um centímetro não
mo amputaram." Por um centímetro, a música continuou à sua
espera.
Depois, levou um tiro numa perna.
E aos 11 anos perdeu o pai.
"Foi morto por um 'colaborador'." Um denunciante a soldo de
Israel. "O mesmo homem que traiu Marwan Barghouti", diz Ramzi,
referindo-se ao líder da Intifada que está preso numa cadeia
israelita, condenado a cinco penas perpétuas.
A infância, depois da morte do pai: "Ajudava o meu avô,
distribuía jornais de manhã, à tarde ia à escola. E atirava muitas
pedras aos israelitas."
Até que aos 17 anos, conheceu um músico palestiniano refugiado
na Jordânia. "Ele queria fazer um atelier de música, começou a
procurar gente em Ramallah, encontrei-o em casa de uma colega.
Tocava viola."
Ramzi nunca tinha visto esse parente do violino, um pouco
maior, um pouco mais grave. "Tocou para mim um pouco de Oum
Kalthoum [a Amália da música árabe]. Eu quis experimentar o
instrumento e ele motivou-me muito." Deu-lhe aulas e ao fim de
um mês Ramzi tocou um pequeno concerto. Nem tinha luzes de
solfejo. "Ele disse-me que eu avançara num mês o que se avança
em seis."

177
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Ao fim de um ano, aos 18, dá o primeiro concerto a sério no


YMCA de Jerusalém. E então entra na sua vida um violetista da
Orquestra Sinfónica de Londres, que depois de o ouvir tocar lhe
dá aulas e lhe arranja um estágio nos Estados Unidos.
Regressado da América, Ramzi inscreve-se no Conservatório
de Ramallah, onde um violetista da Ópera de Paris o encontra, e
convence a fazer uma audição. Ganha uma bolsa de estudos para o
Conservatório de Angers.
Mal saído da intifada, do campo de refugiados, acha-se assim a
viver em França sem saber uma palavra de francês. "Ao princípio
foi muito duro. Eu falava só um pouco de inglês. Mas falava por
gestos, por expressões. O mais difícil era o solfejo."
Durante a estadia em Angers, além da viola, faz canto coral, dois
anos de harmónica, cinco anos de piano, toca música antiga, toca
na Orquestra do Conservatório — e em 2002, com a colaboração
de amigos franceses, funda a associação Al Kamandjâti, para
fazer chegar a música às crianças palestinianas, sobretudo as dos
campos de refugiados.
"Era um sonho. Sempre que voltava de Angers, a cada Verão,
as crianças vinham ao meu quarto pedir-me que tocasse para
elas." Envolve músicos e associações francesas, recolhe apoios
palestinianos e europeus, e começa a fazer duas séries de ateliers
e concertos por ano, uma no Inverno, outra no Verão, Palestina
fora.
Mais de uma vez toca para Arafat, cercado na Muqata, em
Ramallah. Num documentário francês sobre Ramzi, o líder
histórico aparece sentado no seu gabinete, a escutar, e depois
exuberante, cumprimentando o jovem violetista.

178
Da Autoridade Palestiniana recebe "apoio oral e moral", ou seja,
dinheiro nenhum.
Três anos e 20 mil crianças depois, neste Verão a seguir à
conclusão do conservatório, a Al Kamandjâti ganhou um espaço
físico. "Arranjámos uma casa antiga em Ramallah, recuperámo-
la com ajuda sueca e será o nosso centro. Vai funcionar como
escola de música, sala de concertos e biblioteca musical. Temos já
mais de mil Cds de música clássica, jazz e africana, e temos livros
também. Para frequentar o Conservatório de Ramallah é preciso
dinheiro, mas as nossas aulas serão de graça."
A inauguração foi na quarta-feira passada, em concerto.
Na véspera, Ramzi esteve a desempacotar um contentor com
duas toneladas de instrumentos enviados de toda a Europa.

Um táxi colectivo, amarelo-torrado-amolgado, a caminho de


Nablus. Ramzi viaja como todos os palestinianos. No centro de
Ramallah procurou um carro que estivesse a sair nessa direcção e
esperou que ele enchesse até ao limite de passageiros.
Cá vai, serpenteando pelas belas montanhas pedregosas do
norte da Cisjordânia, com o condutor a acelerar loucamente.
Por este ritmo, se tudo correr bem no checkpoint, Ramzi chegará
mais que a horas do seu atelier, para crianças de um campo de
refugiados depois de Nablus.
O menino que cantou no concerto de Jerusalém foi encontrado
assim, há dois anos, num campo de Hebron. "Veio ter comigo e
disse-me que gostava de cantar. Pedi-lhe que cantasse e fiquei
impressionado, com a voz e com a confiança." Já o levou a cantar
em França.

179
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Os restantes músicos que estão a participar na digressão deste


ano, os mesmos que também estavam no concerto de Jerusalém,
partiram de Ramallah para Nablus de manhã e já estão no lugar
onde o atelier vai acontecer.
"É uma antiga prisão", diz Ramzi, com o carro a dobrar a curva
de mais um precipício. "O meu pai esteve lá preso. Fui lá visitá-lo.
Esta será a segunda vez que vou entrar lá."
No checkpoint, há que seguir a pé e procurar um carro do outro
lado, para os vinte quilómetros que faltam. Sob um sol escaldante,
entre a fila de homens e mulheres e crianças que caminham para
Nablus, Ramzi fala do poeta palestiniano Mahmud Darwich.
Compôs música para poemas dele no CD Nous aimons la vie,
o segundo que gravou em França com o colectivo Dalouna,
fundindo influências clássicas, jazz e música oriental.
Começa a dizer um verso e de repente está a dizer o poema
todo, enquanto passa o checkpoint.
"Eu atirava pedras e hoje sou um músico", diz, já no segundo
carro, que contorna Nablus, avançando pelas montanhas desertas.
"Atirar pedras é uma forma de dizer que não e fazer um concerto
num checkpoint, como já fizemos, ou no muro [de cimento, que
Israel está a construir à volta dos territórios palestinianos], é
uma outra forma de dizer que não. Dar às crianças palestinianas
a possibilidade de viver uma outra infância, que não quer dizer
atirar pedras, também é uma forma de resistir. De dizer que nos
querem fazer sentir mortos mas não conseguirão."
O carro alcança a antiga prisão, lentamente a ser reconvertida
num centro cultural. Pátios com árvores, salas para ateliers de
música e pintura, camaratas para alojar quem está de passagem,

180
HANS LUCAS/JEAN-MICHEL DELAGE

Ramzi fundou a Al Kamandjâti para fazer chegar a música às crianças palestinianas, sobretudo as dos campos
de refugiados

Aos nove anos, levou um tiro no braço


esquerdo. "Por um centímetro não
mo amputaram." Por um centímetro,
a música continuou à sua espera
181
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

músicos franceses que se cruzam com jovens palestinianos da


região — um deles vem anunciar que quatro portugueses chegarão
no dia seguinte, para colaborar na pintura de um mural.
Às cinco da tarde, pontuais, as crianças começam a chegar.
Raparigas e mais raparigas e mais raparigas, muitas de cabeça
coberta, ao todo 19. E um rapazinho, Eimat, de olhos azuis
transparentes, que pula eufórico. Vivem no campo de refugiados
de Farah, mesmo ali ao lado.
É um primeiro grupo, encaminhado para a sala onde uma
harpista e um clarinetista os vão fazer tocar sons que nunca
ouviram. Os dois músicos só falam umas palavras de árabe, as
crianças só falam umas palavras de inglês, hello, yes, no, how are
you, what's your name, mas não faz falta muito mais.
As raparigas sentam-se em cadeiras a toda a volta, com Eimat
a balouçar as pernas, que ainda não chegam ao chão. A harpista
traz a harpa e uma cadeira para o centro, faz soar as cordas, que
têm cores, vai chamando um a um a sentar-se, guia-lhes o corpo,
as mãos. Eimat, que esperou ansiosamente a sua vez, é todo
concentração quando finalmente agarra nas cordas, espreitando
entre elas.
O clarinete, que é mais transportável, passa de mão em mão. Os
primeiros a soprar dão pulos, do susto.
Noutra sala, com outro grupo, está a soprano da noite de
Jerusalém, com um buzuk nas mãos.
E entre todos eles, de um lado para o outro, Ramzi.
A partir de Setembro, quando esta digressão de concertos
e ateliers por Hebron, Jerusalém, Belém, Nablus e Ramallah
terminar, vai começar a dar aulas em campos de refugiados. Agora

182
que acabou o conservatório, terá como base Ramallah, onde está a
associação, e o campo de refugiados de Al Amari, onde está a casa
dos seus avós.
Tem o seu grupo em França, tem projectos para tocar com
Barenboim em 2006, tem amigos pela Europa, podia estar em
qualquer lugar do mundo. Mas vai continuar a apanhar vários
autocarros cheios, a esperar horas na fronteira com a Jordânia,
para ir a Amã apanhar um avião, sempre que tiver de ir ao
estrangeiro.
"Politicamente, não confio em ninguém. Só acredito nas
crianças, em preparar uma nova geração, ajudá-las a saberem
mais, a serem pacíficas. Quero ficar aqui enquanto as coisas não
estão bem. Quando tudo estiver bem, muita gente vai vir, muitos
palestinianos vão voltar. Mas agora é que é preciso."
Não é uma escolha. É uma evidência.
Se Ramzi está aqui, foi porque um dia alguém lhe mostrou uma
viola.

Nota: “A nova Intifada de Ramzi” foi uma das três reportagens que valeram a Alexandra Lucas
Coelho o Grande Prémio Gazeta 2005, atribuído pelo Clube de Jornalistas, e partilhado, nesse
ano, com Cândida Pinto, do Expresso. Alexandra Lucas Coelho esteve entre Agosto de 2006 e
Janeiro de 2006 como enviada do PÚBLICO na Palestina.

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183
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Eleições na
Palestina
184
Havia dez anos
que os palestinianos
esperavam por
umas eleições que
legitimassem
um Parlamento
e um Governo. Várias
vezes adiadas, são
marcadas para
25 de Janeiro — as
primeiras legislativas
em que a Fatah
enfrenta o Hamas.
185
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

A eleição
que tardava

Numa clínica do único território palestiniano que não tem


ocupação israelita no interior, mas em volta, dois homens
resistem a dizer a palavra Hamas, o movimento em que hoje
vão votar. As segundas eleições legislativas de sempre para
os palestinianos são as primeiras em que a Fatah de Arafat
competirá com os islâmicos do Hamas, candidatos ao poder
com mais de 30 por cento de votos nas sondagens
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

186
Reportagem originalmente publicada a 25 de Janeiro de 2006

P
or cima da porta está escrito: emergência. É uma clínica,
mas podia ser uma metáfora.
Hoje, os palestinianos vão votar em eleições legislativas.
A primeira e única vez que isso aconteceu foi há dez anos.
Havia um processo de paz. A promessa de um Estado.
Arafat chegara há dois anos do exílio em triunfo. A Fatah
dominava. O Hamas era um outsider que não ia a votos.
Hoje, os palestinianos vão votar numas eleições que até à
véspera ninguém jurava que iam acontecer. Não há processo
de paz. Continua a haver a promessa de um Estado. O primeiro
aniversário da morte de Arafat foi uma modesta pompa para
pouca gente. A Fatah está dividida em duas, talvez em 20. E o
Hamas é candidato ao poder, com mais de 30 por cento de votos
nas sondagens e o alarme de americanos e europeus.
Estas são as segundas legislativas palestinianas, mas na
verdade as primeiras em que a Fatah de Arafat, coluna vertebral
da Organização de Libertação da Palestina, competirá com os
islâmicos do Hamas.
O que é que a sala das emergências tem a ver com isto? É o que
dois homens, sentados lá dentro, vão contar.
Estão no único território palestiniano que não tem ocupação
israelita no interior, mas à volta. Para chegar a eles, atravessa-se
uma Cidade de Gaza tão atulhada de campanha como as cidades
da Cisjordânia. Os incontáveis cartazes de uma eleição com mais
de uma dezena de partidos. As bandeiras dos grandes flutuando
ao vento nos postes, nas janelas, no topo das casas, amarelo Fatah,

187
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

verde Hamas. Para meses de caos anunciado, com semanas de


tiroteios entre militantes que por vezes se identificam mas nunca
são identificados, bloqueio da fronteira com o Egipto, raptos de
estrangeiros, tomadas de edifícios, rockets de Gaza para Israel
e assassínios selectivos de Israel para Gaza, é uma terça-feira
agitadamente tranquila. A campanha acabou na véspera, não se
vêem armas em passeio.
Mas o céu, que amanheceu azul limpo, pesa como antes de uma
tempestade. A gigantesca sede das forças de segurança parece
um bunker de cimento, rodeada de um muro alto, medida de
prevenção para tumultos eleitorais.

Clínica Hamas
A sul da Cidade de Gaza, na zona a que chamam Campos do Meio,
está o campo de refugiados de Marazi, 30 mil habitantes. Há uma
clínica de assistência médica elementar da UNRWA, a agência das
Nações Unidas para os refugiados palestinianos, e depois há esta
clínica, num edifício moderno, que tem um poster com Mahmoud
Zahar, o líder do Hamas, colado na porta de entrada.
Algumas mulheres de lenço na cabeça à espera na recepção,
sentadas. Nenhuma fila, tudo limpo, retratos das montanhas
suíças nas paredes e um retrato um pouco maior da Cúpula
do Rochedo, a mesquita que é o ícone de Jerusalém para os
palestinianos.
O director clínico é Abdul Fatah, 50 anos, um médico sem bata,
que se confunde com o recepcionista, a atender uma chamada.
Pede aos visitantes que o esperem na sala de emergências, vazia. E
manda chamar o jovem Ashraf Ismail, médico todo de negro, tão

188
MOHAMMED SALEM/REUTERS

Janeiro de 2006, Faixa de Gaza: um trabalhador palestiniano carrega urnas de voto

Esta é uma das quatro clínicas da rede


Al Salah. É aqui que a palavra Hamas entra
pela primeira vez. Tal como tem fundado
escolas e redes de assistência social,
o Hamas fundou a Al Salah
189
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

jovem que não parece sequer ter metade da idade do director, 25


anos.
Enquanto Ashraf não chega, Abdul informa que esta clínica,
fundada em 1991, tem 15 médicos de especialidade (oftalmologia,
dermatologia e ortopedia são as mais reforçadas), dois dos quais
mulheres, e atende quatro a cinco mil doentes por mês. Nesta
área, diz, é aqui que as pessoas vêm para fazer exames avançados,
com equipamentos de raio X e ultra-sons que não existem nas
redondezas. Para os exames de especialidade pagam menos de
dois euros. Para médicos de família e fisioterapia, menos de um.
Os medicamentos são a preço de custo, e existem em stock até ao
fim de cada mês, "enquanto nos hospitais públicos esgotam a meio
do mês". Neste momento estão a funcionar dois andares, mas já
foram construídos mais três, para a prevista expansão de serviços
de parto, cardiologia, cirurgias.
Ashraf é o responsável pela captação de fundos para os novos
projectos da clínica, e a primeira coisa que diz ao entrar é: "As
organizações internacionais têm medo de lidar connosco."
Ainda ninguém pronunciou a palavra Hamas. "Tentamos fazer
um projecto preciso, com objectivos, explicando cada tostão e
recebemos cartas de desculpa a dizer que não têm dinheiro." Isto
aconteceu com organizações americanas. Europeias até agora
não apareceram, mas Asraf crê que "têm mais facilidade em ler os
nossos projectos".
De onde vêm então o dinheiro que permite dar equipamentos
sofisticados a milhares de pessoas que pagam quase nada?
"Pessoas islâmicas, doações de indivíduos..." E países árabes,
como a Arábia Saudita.

190
Esta é uma das quatro clínicas da rede Al Salah. É aqui que a
palavra Hamas entra pela primeira vez. Tal como tem fundado
escolas e redes de assistência social, o Hamas fundou a Al Salah.
Trocando olhares, e palavras em árabe, Abul e Ashraf, duas
gerações de médicos, vão resistindo à evidência. Que ambos são
apoiantes do Hamas veementes.
Até que chegando a conversa ao voto, Abdul declara: "Claro que
vou votar no Hamas, adoro o Hamas, estava no ventre da minha
mãe e já era Hamas."
E então Ashraf, que votará pela primeira vez: "Voto Hamas 100
por cento. Eles fazem o que dizem, lidam de forma justa e honesta
com o dinheiro."
Se resistiram foi por medo de "problemas" caso o Hamas perca.
O Hamas não reconhece a existência de Israel.
Se o Hamas ganhar, e for para o poder, acham que devia falar
com Israel?
Abdul, o mais velho, responde num ímpeto: "Sim! Porque não
tentar?"
E é Ashraf, o jovem, que contesta: "Não. Falar de quê?"

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191
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

A razia da
herança de
Yasser Arafat

À lupa, os resultados mostram como a Fatah foi varrida.


Figurões do regime desapareceram do mapa. De certa forma,
é a segunda morte de Yasser Arafat
Alexandra Lucas Coelho, em Jerusalém

192
Reportagem originalmente publicada a 28 de Janeiro de 2006

O
psiquiatra Eyad Sarraj, de Gaza, resume o resultado das
eleições palestinianas numa única palavra: tsunami. E vale
a pena ver os números à lupa para confirmar como o que
aconteceu foi uma razia da Fatah por toda a Palestina,
incluindo cidades mais laicas e com populações cristãs
significativas, como Ramallah, Jerusalém e Belém.
Além da maioria na lista nacional, o Hamas só perdeu em 3
dos 16 distritos da lista regional. Deputados ganhos em Jerusalém
Leste: 6 em 4; Hebron: 9 em 9; Belém: 2 em 4; Jenin: 2 em 4;
Ramallah: 4 em 5; Nablus: 5 em 6; Tulkarem: 2 em 3; Salfit: 1 em 1;
Toubas: 1 em 1; Khan Yunis: 4 em 5; Der Al Balah: 2 em 3; Norte de
Gaza: 5 em 5; Cidade de Gaza: 8 em 8.
Os três únicos distritos que a Fatah conseguiu ganhar foram
Rafah, Qalqyilia e Jericó (que só elege um lugar, e voltou a reeleger
o ministro negociador Saeb Erekat, um homem da terra, que
nunca mudou o seu gabinete para Ramallah).
Todos-poderosos do regime, como Jibril Rajoub, o controverso
figurão a quem Yasser Arafat entregou os serviços de segurança
da Cisjordânia, simplesmente deixaram de existir. Rajoub era o
cabeça de lista da Fatah por Hebron, o distrito que elege mais
deputados de toda a Palestina. Mas o Hamas arrebatou-os todos,
com Nayef Rajoub, irmão e rival de Jibril, na liderança.
E o equivalente de Rajoub em Gaza, o omnipotente Mohammed
Dahlan, que tudo parecia controlar, da segurança à "pasta"
da retirada, viu-se eleito à tangente: em Khan Yunis, onde era
candidato, foi o único eleito da Fatah entre quatro Hamas.

193
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

A Fatah conseguiu eleger membros da chamada nova guarda


como Marwan Barghouti ou Nasser Juma (o líder das Brigadas dos
Mártires de Al-Aqsa). Mas perdeu nomes como Qaddura Fares,
um dos próximos de Barghouti, e defensor da Iniciativa de Paz de
Genebra.
Entre os independentes, sobreviveram o médico Mustafa
Barghouti, o ex-ministro das Finanças Salam Fayyad (indicando,
eventualmente, que os eleitores o distinguiram do resto do
Governo) e a ex-porta-voz da OLP, a cristã Hanan Ashrawi.
O estado de choque em que a Fatah mergulhou na manhã a
seguir às eleições viu-se no desaparecimento público ao longo de
mais de 24 horas de figuras sempre-falantes como Mohammed
Dahlan. Só ontem Dahlan apareceu para pedir contenção aos
grupos da Fatah que pediam a demissão do presidente Mahmoud
Abbas em Gaza.
Depois de um primeiro dia e noite sem tumultos, com militantes
da Fatah a levantarem bandeiras entre os vitoriosos do Hamas,
sem quaisquer confrontos, os muitos grupúsculos em que a Fatah
está estilhaçada começaram a causar tensão ontem. Três feridos e
protestos em Gaza.
No pós-eleições, Mahmoud Abbas foi deixado sozinho a
anunciar que ia chamar o Hamas para formar governo, como
naturalmente decorre do resultado. E a atmosfera de deterioração
interna na Fatah veio de novo ao de cima, com gente a
responsabilizar Abbas pela derrota e a pedir a sua cabeça.
Abbas é o homem que tanto o Hamas como Israel e a
comunidade internacional precisam como ponte. Foi através de
Abbas que o grupo islâmico convidou a Fatah para uma coligação.

194
Que os barões da Fatah recusam. Dahlan prometeu ontem aos
militantes em fúria que isso não aconteceria. Rajoub disse que
a Fatah não se juntará ao Hamas no governo sob nenhuma
condição.
É a lógica: que o Hamas se enterre sozinho.
"A única solução é Abbas liderar o governo do Hamas, como
primeiro-ministro", diz Eyad Sarraj. "Não há outra alternativa."
Quem mais pode o Hamas pôr à frente de um executivo que
alarma a comunidade internacional?
Aos 70 anos, o homem que toda a gente, com respeito ou
desprezo, toma como um líder fraco, vê-se no epicentro do
terramoto. Pouco antes de tudo isto, anunciara que não se
recandidataria à presidência, depois do termo do seu mandato,
dentro de dois anos.
Quarta-feira, mais de um milhão de palestinianos (1.011.992)
foram às urnas, num processo democrático reconhecido pelos
observadores internacionais. A afluência às urnas foi de 74,6 por
cento, mais alta do que há dez anos, quando se realizaram as
primeiras eleições legislativas.
O Hamas, pela primeira vez candidato, saiu com maioria
absoluta. Ao fim de 40 anos a dominar a vida política, 12 anos
de poder na Autoridade Palestiniana, e vários adiamentos de
eleições, a Fatah foi varrida. O voto Hamas é também, se não
sobretudo, um voto contra o que a Fatah de Arafat não deu aos
palestinianos. De certa forma, a segunda morte de Yasser Arafat.

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195
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

DAMIR SAGOLJ/REUTERS

Trabalhadores palestinianos num "ponto de verificação" junto à fronteira de Erez

Não é a religião
Alexandra Lucas Coelho,em Gaza

196
Reportagem originalmente publicada a 28 de Janeiro de 2006

A
mani acordou com o telemóvel cheio de sms. Ouvir um
CD de uma cantora decotada, 50 chicotadas. Não deixar
crescer a barba, 80 chicotadas. Ter televisão por satélite,
pena de morte. Anedotas de reacção rápida. A Palestina
nunca será o Hamastão, inshallah. Amani é muçulmana
como os católicos não-praticantes dizem se Deus quiser.
Vive sozinha, frente ao mar de Gaza. Viaja sozinha, França,
Holanda, Alemanha, a falar de água. Todo o bem escasso é
político.
— Vale a pena fazer uma guerra pela água? Politicamente, sim.
Ontem, chegou a Erez, o checkpoint entre Gaza e Israel, a
puxar a sua mala de rodinhas pela lama. Sobretudo com gola de
pêlo, calças escuras, saltos altos, cara lavada, cabelo preto. Uma
elegância com um nariz que já fez frente ao Hamas.
Foi numa câmara governada pelo movimento islâmico no norte
de Gaza. Amani preparara um projecto sobre recursos de água
locais, financiado por uma ONG. A câmara só tinha a ganhar em
o ler. Para a primeira reunião, Amani não cobriu o cabelo, mas
pôs uma camisola comprida, e era Verão. A câmara recebeu
o documento e não o leu. Na segunda reunião, foi de blusa de
manga curta.
— Porque havia de lhes dar o que eles chamam respeito se não
me estavam a respeitar?
Isto é o que ela conta enquanto espera no túnel, uma, duas, três
horas.
Há um mês, as ordens eram berradas em altifalantes. Agora

197
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Há um mês, as ordens eram berradas


em altifalantes. Agora chegam por
intercomunicadores à altura do ouvido.
Avance. Páre. Tire o casaco. Rode as malas.
Não. Para o outro lado. Não. Volte para trás

chegam por intercomunicadores à altura do ouvido. Avance. Páre.


Tire o casaco. Rode as malas. Não. Para o outro lado. Não. Volte
para trás. Tire o cinto. Tire os sapatos.
— O chão está molhado.
Amani tirou o cinto e entrou na máquina. Se não fosse de
verdade era o Espaço 1999. Uma cápsula transparente com duas
marcas amarelas no chão em forma de pés. Amani pôs os pés em
cima das marcas e levantou os braços acima da cabeça, como
mostra o desenho dentro da máquina. E então a cápsula rodou
360 graus em torno dela, com um zumbido.
Quando as portas se abriram, Amani era uma mulher
interiormente verificada, do ponto de vista israelita.

198
Se fosse manhã cedo, o túnel estaria repleto de trabalhadores,
palestinianos como ela, mas peritos em nada, que todos os dias
se levantam ao começo da madrugada para passar a humilhação
matinal de Erez, ir a Israel trabalhar, passar a humilhação
vespertina de Erez, dormir duas ou três horas, e assim serem
os afortunados que têm trabalho, enquanto os membros da
Autoridade Palestiniana passam com o conforto dos VIP, ano após
ano após ano, há 12 anos.
Amani nunca votaria Hamas. Mas sabe por que tanta gente
votou Hamas. Não apenas em Gaza, Jenin ou Hebron. Mas em
Jerusalém, Belém ou Ramallah, onde há tantas Amani.
O Hamas ceifou os votos da Fatah por toda a Palestina, homens
sem barba, mulheres trabalhadoras, muçulmanos laicos, gente
que não quer a sharia, que não espera um Estado islâmico. Gente
exausta, entre a ocupação israelita e o abandono da Autoridade
Palestiniana, perante a indecisa ambiguidade internacional. Não
tiveram um Estado e tiveram o pior de um Estado, um aparelho ao
serviço de si próprio, que foi adiando eleições.
— As pessoas não aguentavam mais a corrupção. Agora a Fatah
que se arrume e o Hamas que mostre o que vale.
O código penal da anedota sms é o que ninguém imagina
acontecer na Palestina. Foi da religião que o Hamas emergiu. Mas
não foi a religião que o fez subir ao poder, democraticamente. E
em democracia, tudo o que sobe pode cair.
O Hamas saberá como pode morrer do seu próprio remédio.

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199
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Gaza ocupada,
sob fogo
intenso

Os primeiros mísseis partiram Gaza em duas, os segundos


deixaram centenas de milhares sem luz. De madrugada,
explosões sónicas. De dia, mais mísseis e artilharia. Os
tanques já estão dentro do sul de Gaza. Hoje espera-se
que entrem no norte. Uma sanduíche
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

200
Reportagem originalmente publicada em 29 de Junho de 2006

Q
uando Nunu ontem adormeceu, pelas três da manhã,
Israel já tinha lançado uma chuva de mísseis em Gaza. Os
suficientes para destruir duas pontes que ligam Norte e Sul
e a única central eléctrica da Faixa.
Depois vieram as explosões sónicas.
04h25.
05h00.
05h04.
08h25.
08h32.
De cada vez a casa tremeu e Nunu deu um salto no colchão que
partilha com as irmãs, num quinto andar, no centro da Cidade de
Gaza.
Na última vez começou a chorar em silêncio, só lágrimas, talvez
de cansaço.
O som de um caça F16 a cortar a barreira do som é o de uma
grande bomba a explodir. Um rebentamento que abana prédios,
parte vidros, e arranca do sono quem dorme, até à exaustão.
Como Nunu, que tem cinco anos, foi assim que centenas de
milhares de pessoas em Gaza passaram a primeira noite da ofensiva
Chuva de Verão, nome de código para a maior operação israelita
depois da retirada dos colonos e soldados em Agosto de 2005.
Desde que um grupo de militantes palestinianos atacou um
posto militar junto ao sul da Faixa, na madrugada de domingo —
matando dois soldados e raptando um terceiro, Gilad Shalit — que
os palestinianos se preparavam para uma resposta.

201
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Israel concentrou rapidamente uma bateria bélica junto


à fronteira e recusou-se a negociar o destino do refém,
nomeadamente trocar Shalit por mulheres e crianças presas nas
cadeias israelitas.
Os primeiros mísseis partiram Gaza em duas, os seguintes
deixaram mais de 40 por cento sem electricidade, o resto da noite
foi de caça ao sono.
E ontem de manhã tanques israelitas avançaram para dentro de
Gaza, tomando o aeroporto na zona de Rafah.
O regresso da ocupação territorial, sob um céu de helicópteros
Apache e caças F16.
Após a retirada, há um ano, Israel manteve o controle sobre o
céu, o mar e as fronteiras de Gaza, incluindo passagem de bens e
pessoas, mas não estava presente no interior da Faixa.
Durante o dia de ontem, os tanques, posicionados na fronteira
do lado israelita ou dentro de Gaza, dispararam várias vezes
artilharia, e continuaram a ser lançados mísseis.

Apanhado em férias
Para Taha, é um regresso inesquecível à Palestina, ao fim de 43
anos. Os primeiros mísseis caíram à sua vista, na mais importante
ponte entre norte e sul. Agora, este professor de matemática já
reformado vagueia num emaranhado de betão e ferros retorcidos,
com uma máquina fotográfica na mão como um novato, cercado
por dezenas e dezenas de crianças e adolescentes que juntam
todos os pedaços de metal que podem.
Nascido em 1945, em Ramleh — a partir de 1948, território
israelita — Taha tornou-se refugiado aos três anos. Viveu no campo

202
YANNIS BEHRAKIS/REUTERS

Tanques posicionados na fronteira do lado israelita ou dentro de Gaza a 28 de Junho de 2006

Israel concentrou rapidamente uma bateria


bélica junto à fronteira e recusou-se a
trocar o soldado feito refém por mulheres
e crianças presas nas cadeias israelitas
203
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

de Nusseirat, ao centro da Faixa de Gaza, e depois partiu para a


Argélia.
Pela primeira vez em décadas conseguiu voltar para um mês de
férias. Este mês.
Aterrou em Gaza no dia 12.
Ao contrário destes miúdos, habituados a vender restos de
míssil a meio euro e destroços de ferro a vinte cêntimos (preço por
quilo), Taha nunca vivera uma explosão.
"Os filhos dos meus sobrinhos começaram a gritar, a casa
abanou toda", conta em francês. "Isto é terrorismo de Estado."
O seu sobrinho Assad, 27 anos, com o filho Ahmed pela mão,
fala em "dois mísseis, e depois vários", a atingir a ponte. "Ouvimos
e depois vimos, pela janela."
Um pedaço do gradeamento da ponte foi parar à praia e agora
dois homens molham os pés para o transportar. Talvez pese uns
euros, o que faz toda a diferença num território com 30 por cento
de desempregados, e em que os empregados (como em toda a
Palestina) não recebem há quatro meses.
Esta é a estrada costeira, a única que os palestinianos podiam
utilizar de norte para sul, antes da retirada israelita. O mar é um
paradoxo mesmo aqui ao lado, brilhante e livre.
Khalid, 15 anos, aparece em carro de burro para levar um
carregamento de metal. Os outros miúdos ajudam, carregando,
empurrando. A maresia não disfarça o cheiro nauseabundo. Por
baixo desta ponte corria o esgoto de Gaza.

Um ano para reparar a central


A central eléctrica de Gaza, nova de três anos, e co-financiada com

204
dinheiro americano, não fica longe. O fumo do incêndio vê-se à
distância.
Pendurados na rede do portão, magotes de crianças a espreitar.
Sobrou algo operacional? "Nada, está completamente inutilizada",
diz o desolado engenheiro Attar Mohammed. "Temos seis
transformadores e Israel atirou um míssil em cada transformador."
Mais dois que falharam, segundo as contas do guarda Abedeljarim,
velho beduíno, que estava aqui de serviço.
"Esta central representa 42 a 45 por cento da energia de Gaza, o
resto vem de Israel", informa o engenheiro.
Gaza tem um milhão e 300 mil habitantes. Portanto, num
cálculo por alto, as cerca de 600 mil pessoas que dependiam desta
central agora estão sem electricidade. As outras dependem de
Israel. E a reparação não é coisa de dias.
"Vai demorar entre seis meses a um ano, porque estes
transformadores não existem à venda no mercado, tem que
se encomendar, e demoram pelo menos seis meses", explica
Mohammed. "Vamos encomendar geradores, mas são caros e não
serão suficientes."
Cada transformador custa dois milhões de dólares.

A base israelita
Destruída a grande ponte e a pequena ponte de outro caminho
alternativo, a única possibilidade é seguir para sul pela estrada
interior, a Salahadin, que os colonos usavam.
Na zona do aeroporto junto a Rafah, onde ainda há dois dias
havia guardas palestinianos e beduínos zangados por terem de
sair das suas casas, os campos estão abandonados desde que

205
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Primeira página do PÚBLICO


de 29 de Junho de 2006

206
os tanques israelitas chegaram. Estradas desertas, nem um
vestígio de gente, como se toda a vida estivesse escondida do céu.
Invisíveis aviões e helicópteros de combate passam a zunir. Um
zeppelin oscila sobre a fronteira.
Avançando uma meia hora a pé, até a torre do aeroporto ficar
à vista, começam a ouvir-se os tanques em manobras. Dando
a volta, através de uma vedação, avistam-se três, disfarçados
atrás de montículos de areia e arbustos, um quarto ao fundo, em
movimento.
Uma explosão de míssil não muito longe. Três da tarde.
Rafah está quase deserta. Do outro lado da cidade, em direcção
à estrada costeira, uma concentração de crianças com pedaços de
metal nas mãos.
"Vou vender a três shekels", diz Bader, 17 anos, que tem uma
t-shirt do Banco da Palestina e um resto recém-explodido, quente.
É o míssil de há pouco. Este terreno é um campo de treino
do Hamas. A bandeira verde ondula no alto. Há uma cratera, as
crianças vão e vêem. Muitos pedaços para vender.
Na outra ponta de Gaza, no norte, estão a ser lançados folhetos
instando a população da Cidade de Gaza e das áreas mais a norte,
de Beit Hanoun e Beit Lahia, a ficar em casa. À hora de fecho desta
edição esperava-se a entrada das tropas israelitas no norte.
Tanques a sul, tanques a norte. Uma sanduíche.

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207
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Regresso
da tensão
208
Nos últimos dias
de 2008 e até 17 de
Janeiro de 2009 Israel
leva a cabo uma
operação militar de
grande escala em
Gaza. O objectivo, diz,
é conter o lançamento
de foguetes por parte
do Hamas. A operação
põe fim a seis meses de
cessar-fogo acordado
entre Israel e o Hamas.
209
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Ahmad, seis
anos, alvejado
depois do
cessar-fogo

A guerra acabou, a morte continua. Os médicos de Gaza


viram o pior, coisas que nunca tinham visto
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

210
Reportagem originalmente publicada a 25 de Janeiro de 2009

A
cama parece muito grande com um corpo tão pequeno,
de fraldas. Ahmad, seis anos, está deitado, entubado, em
coma, numa cama da Unidade de Cuidados Intensivos do
Hospital Al-Shifa, o maior de Gaza. Como faz calor, não há
nada a cobri-lo. A barriga sobe e desce com a respiração.
O relatório diz que foi alvejado a 22 de Janeiro. Ou seja,
vários dias depois do cessar-fogo.
Hani Al Shanti, um dos médicos intensivistas, mostra as
radiografias. A bala aparece perfeitamente nítida no centro do
crânio. "É uma bala de M16, as dos israelitas", diz. "Em Gaza só
se usam kalashnikovs russas e essas balas são duas vezes mais
compridas."
Mas como, se Israel declarou cessar fogo sábado à noite? "A
família dele vive ao pé da fronteira, os soldados israelitas estavam
a disparar e ele foi atingido." Foi o que os familiares de Ahmad
contaram aos médicos.
"Eles estão lá fora, quer falar-lhes?", pergunta Hani. E leva o
PÚBLICO ao átrio, onde Hajid, o pai da criança, espera com um
grupo de familiares e vizinhos.
"Vivemos a um quilómetro da fronteira", conta ele. "Na quinta-
feira, pelas nove e meia da manhã, ouvimos tiros na fronteira e
no mar, Ahmad estava a brincar lá fora e foi atingido." O genro
acrescenta: "Eu estava com as crianças, Ahmad estava a comer um
doce, e de repente caiu com a cara no chão."
Como sabem que a bala é israelita? "É uma bala de M16, que
os israelitas usam, o que é comum em Gaza é a kalashnikov, e

211
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

"Os soldados continuam a disparar só


para assustar as pessoas, afastá-las da
fronteira", diz um. "Ainda ontem atingiram
pessoas no campo de Bourj", diz outro

ninguém estava a disparar do nosso lado", diz o pai.


Toda a gente à volta quer dizer mais. "Os soldados continuam
a disparar só para assustar as pessoas, afastá-las da fronteira",
diz um. "Ainda ontem atingiram pessoas no campo de Bourj", diz
outro. E o genro do pai: "Está convidada para vir a nossa casa esta
noite e ouvir os disparos."

Morto no último dia


De volta à sua unidade, Hani Al Shanti vai até à cama em frente à
de Ahmad, onde um homem parece dormir. "Já está morto, mas
não podemos desligar a máquina, é ilegal, só quando a linha do
coração estiver plana."
Este homem chama-se Mohammed Sarbou, tem 25 anos e
é pescador. Estava na praia quando foi alvejado por um navio
israelita. O relatório diz que isso aconteceu a 17 de Janeiro, o último
dia da guerra. "A bala entrou pelo meio da testa", explica Hani.

212
Todos os médicos do Al Shifa têm histórias terríveis desta
guerra, desde os primeiros minutos, quando chegaram 188 mortos
e centenas de feridos ao hospital.
"Vi uns 150 feridos morrerem nesse dia", conta Hani. "Não
consegui não chorar. Eles estavam simplesmente aqui pelo chão e
não podíamos fazer nada por eles."
Kamal Abu Abada, outro médico intensivista, tinha acabado
de sair de serviço quando começou o bombardeamento. "Fiquei
parado à porta do hospital sem saber se ia ver da minha família ou
se voltava ao trabalho." Decidiu voltar. "No tempo de vestir a bata
já o hospital tinha sido inundado com mortos e feridos."
Um dos alvos desse mega-bombardeamento simultâneo foi uma
sede da polícia a 130 metros do hospital. "Começámos a abrir
mais unidades de cuidados intensivos em todo o lado. Passámos
de 11 para 35 camas." Ao longo de toda a guerra receberam 5500
feridos.
Abada tem 52 anos, Hani 32. Duas gerações de intensivistas.
Como descrevem o que aconteceu a Gaza nesta guerra? "Um
tsunami", diz Abada. "Foi a Zeytun? A Atattra? Quando voltei lá
nem consegui encontrar as casas que me eram familiares. E neste
hospital foi a pior situação que já vivemos. A quantidade de casos
e o tipo de casos."

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213
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Gaza, um túnel
sem saída

É uma rede comercial subterrânea. Com o bloqueio,


a faixa depende deles para tudo. Israel tentou destruí-los
e arrasou as casas
Alexandra Lucas Coelho, em Gaza

214
Reportagem originalmente publicada em 25 de Janeiro de 2009

A
família de Mohammed tem não um, mas dois túneis entre
Gaza e o Egipto. Com o bloqueio das fronteiras, no último
ano e meio, tem sido assim. Um boom. "Neste momento
há 2000 ou 2500 túneis aqui", diz Mohammed, como
se estivesse a falar de lojas. E de certa forma está. Hoje
[ontem], primeiro sábado depois do cessar-fogo, é dia de
mercado em Rafah, a cidade no Sul de Gaza que faz fronteira com
o Egipto, e Mohammed está a vender fogões a petróleo, um bem
essencial ao longo da guerra.
Durante semanas foi impossível encontrar gás. Ao lado dos
fogões de cozinha, as famílias passaram a ter um pequeno fogão a
petróleo, onde faziam toda a comida.
Agora, já se vende gás à entrada de Rafah, mas é preciso esperar
horas numa fila de rapazes e homens sentados em botijas vazias.
Portanto, Mohammed continua a fazer negócio no mercado
central. Tem um monte de pequenos fogões verdes no chão.
"Trazemo-los por túneis, como tudo o que aqui está." Cafeteiras
eléctricas, televisões, fraldas, queijo de triângulos.
"Antes desta guerra eu trabalhava nos túneis, trazia as coisas
para o lado palestiniano, mas agora compro as coisas e vendo
aqui." Com ajuda de alguém do outro lado. "Há um parceiro
egípcio que põe as coisas no túnel. Não chegamos a andar nas
ruas. A maior parte dos túneis vai sair por baixo de casas."
É assim que os túneis de Gaza são túneis sem saída. Os
palestinianos arriscam a vida — e vários morrem — a andar de
um lado para o outro debaixo da terra, mas não conseguem sair.

215
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Seriam repelidos. O Egipto não está interessado em ter refugiados,


como se viu durante a guerra.
E por causa dos túneis, Rafah tornou-se o grande mercado
da Faixa de Gaza desde que o Hamas tomou o poder, em Junho
de 2007. Com Israel a bloquear as fronteiras, toda a zona junto
à fronteira egípcia começou a ser escavada. Já havia algumas
passagens, utilizadas pelos militantes para trazer armas e
munições, mas agora é uma realidade doméstica. Faz parte de
cada casa.
"As grandes famílias têm pelo menos um túnel", diz Mohammed,
descontraidamente, já rodeado por uma multidão. Até que um
velho de grandes barbas abre caminho e o ameaça com a bengala.
"Porque estás a contar-lhe tudo isso? Os túneis são coisas nossas!"

Remendar a guerra
Entre o mercado e o muro da fronteira, os passeios de Rafah estão
carregados de produtos frescos, acabados de chegar. Microondas,
computadores, motas — até vacas são trazidas pelos túneis.
O que não veio do Egipto vem da ajuda humanitária. Virando à
direita, depois de mais um carro de burro carregado com um saco
da ONU, aparece a linha da fronteira, ao fundo.
Esta é a zona de Rafah que mais sofreu durante a guerra. Já
havia várias casas derrubadas por Israel, para garantir a vigilância
da fronteira. Mas agora são mais as destruídas do que as que
continuam em pé. Vêem-se montanhas de entulho fresco e
famílias inteiras sentadas nas ruínas, de cabeça baixa, à espera de
ajuda.
Já uns metros adiante, em plena Estrada de Filadélfia —­­ o

216
Reportagem publicada
na edição de 25 de Janeiro
de 2009

217
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Entre o mercado e o muro da fronteira,


os passeios de Rafah estão carregados
de produtos frescos, acabados de chegar.
Microondas, computadores, motas — até
vacas são trazidas pelos túneis

corredor poeirento que separa Gaza do Egipto —, vai uma


actividade febril.
Para a direita, montes de terra com tendas brancas a perder de
vista. Para a esquerda, mais montes de terra com tendas brancas
a perder de vista. Cada tenda é um túnel. Ou seja, toda a linha
de fronteira é agora uma linha de túneis. E ouvem-se tractores
e escavadoras entre um formigueiro de miúdos e homens. Um
estaleiro, a reparar os danos da guerra.
"Tudo isto começou com o bloqueio, se o bloqueio não existisse,
não existiam túneis", resume Mustafá, de 28 anos, o dono do túnel
mais próximo. É uma cratera de terra, com uma espécie de escada
de metal por onde se desce. Agora não se pode descer porque

218
a terra abateu. Uma escavadora anda para trás e para diante,
enquanto dezenas assistem, com os pés enfiados na terra mole.
"Foi atingido por um F16", explica Mustafá. "Quarenta metros de
túnel desabaram. E não sabemos dos danos do outro lado."
Quem está do outro lado? "Gente que trabalha para nós." O que é
que costumam trazer? "O que as pessoas precisarem." A última vez
que o túnel funcionou foi uns dias antes da guerra. "Trouxemos
roupa interior."
Do outro lado da cratera, um miúdo fuma uma beata em cima
de uma velha mesa de bilhar enfiada na terra, como a prancha de
uma piscina. Ainda se vê o pano verde, em farrapos.
Mustafá demorou sete meses a construir o seu túnel. Tem 450
metros de comprimento e várias saídas do outro lado, consoante
o que ele quer trazer. Ao longo da fronteira há túneis mais curtos
e mais compridos. Alguns têm calhas para facilitar o transporte,
outros têm a altura de um homem.
Neste é preciso ir a rastejar. "São 60 centímetros de altura e 40
de largura." Como é que se segura a terra lá dentro? "Com suportes
de madeira e metal."
Mustafá não faz de conta que não é perigoso. "Já morreram
cinco pessoas lá dentro, foram acidentes." Mas quanto a medo, o
que tem a dizer é isto: "Deixámos de ter medo."
Existirão mais de 2000 túneis entre Gaza e o Egipto, dos quais
os palestinianos dependem para obter tudo, de fraldas a fogões.

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219
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Dois lados
da vida
220
2018 é marcado por
protestos na Faixa
de Gaza, confrontos
intermitentes
com israelitas,
uma controversa
transferência da
embaixada dos EUA
de Telavive para
Jerusalém e uma
situação humanitária
cada vez mais precária
na região.
221
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Tehila lutou
por Israel e não
é uma janela
partida que
estraga isso
Nascida na Roménia há 88 anos, Tehila Ofer foi combatente
do Palmach. Da sua casa em Telavive conta como foi e o que
acha do Estado de Israel no seu 70.º aniversário
Na nossa enviada Maria João Guimarães, em Telavive

222
Reportagem originalmente publicada a 14 de Maio de 2018

H
á 70 anos, Tehila Ofer lembra-se que ouviu que David
ben Gurion tinha proclamado a independência do Estado
de Israel. “Não liguei nenhuma”, conta agora. Na altura,
não lhe passava pela cabeça que ia mesmo haver um
Estado, embora fosse por isso que estava onde estava: na
fronteira do Líbano, à espera de um ataque dos libaneses.
“Tínhamos tão poucas armas, não tínhamos força aérea, não
tínhamos marinha, como podíamos ter um Estado?”, pergunta
agora Tehila Ofer, então num batalhão do Palmach, a força de elite
da Haganah (embrião do Exército).
Há 70 anos, o que a preocupava era que se esperava um ataque
de libaneses e sírios — e enquanto os homens estavam a lutar, as
mulheres do batalhão iam ao final da tarde carregadas com armas
e mantimentos para os homens que estavam na frente.
Tehila Ofer chegou ali vinda da Roménia. Interessou-se muito
cedo por sionismo — quando tinha dez anos, lembra o “impacto
profundo” de ter de usar a estrela de David para se identificar como
judia na Roménia, o seu país de origem. Na sua aldeia participou
num movimento jovem sionista banido, “marxista mas sionista”,
basicamente, “um grupo de miúdos de 12 anos com um de 14 como
líder”. Aos seus 14 já era ela a líder, e aos 16 anos tomou a decisão
de ir para a “Eretz Israel/Palestina” (diz sempre as duas expressões
juntas). “Os meus pais não tentaram impedir-me.”
Viajou até à Jugoslávia e embarcou num dos navios que levava
ilegalmente judeus da Europa para a Palestina, então sob controlo
britânico (as autoridades britânicas limitaram muito o número de

223
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

imigrantes legais). “Eram navios com milhares de pessoas a bordo,


na altura este era o maior, depois foi o Exodus, que se tornou
o mais famoso. Íamos na parte da carga e à noite saíamos para
apanhar um pouco de ar fresco”, lembra.
Foi então que conheceu membros da Haganah, que deram
instruções aos ocupantes do navio sobre o que fazer, caso fossem
interceptados pelos britânicos (e foram): atirar tudo o que
tivessem à mão para atrasar o processo o mais possível (e foi o
que fizeram). “Era meio da noite, eles chegaram com holofotes,
queriam que fôssemos para Chipre, recusámos. Quando chegámos
a Haifa, atirámos tudo o que tínhamos, comida, conservas, carvão,
óleo. Mas venceram-nos com gás, e lá nos tiraram um a um, e
levaram para Chipre.”
Em Chipre os campos para judeus deportados eram
especialmente duros para os sobreviventes do Holocausto. "Era
estar outra vez num campo com arame farpado”, lembra Ofer.
Ela ainda se manteve por lá uns tempos antes de uma segunda
tentativa. Em 1947, Tehila Ofer chegou à Palestina e foi para um
kibbutz para estudar — hebraico, a língua reavivada por judeus em
Israel há algumas décadas, e trabalhar. “Seis horas de estudo, seis
horas de trabalho.”
Ela queria trabalhar com tractores na agricultura. “Porquê?
Porque a primeira vez que vi mulheres num tanque foi quando o
Exército Vermelho entrou na Roménia [contra ao nazis] em 1944 e
isto ficou a ser para mim um desafio para o futuro.”
Na altura, no kibbutz, “claro que nunca imaginei que haveria um
dia tanques no Estado de Israel”, diz a rir. “Por isso um tractor era
o mais aproximado.”

224
DR

Os primeiros anos da vida de Tehila Ofer no kibbutz

"Foi aí que nos tornámos israelitas.


Começámos a falar hebraico." Depois
começaram a treinar com armas. "Era
uma arma para umas 30 pessoas"
225
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Dessa altura diz simplesmente: “Foi aí que nos tornámos


israelitas. Começámos a falar hebraico, mesmo que o nosso
hebraico fosse muito mau.”
E logo de seguida, passaram de ser “um grupo de imigração
para ser um grupo do Palmach, e começámos a treinar com
armas”. Dizer armas é quase exagerado, já que “era uma arma
para umas 30 pessoas.”
O estudo ficou adiado e no kibbutz passou a trabalhar-se meio
mês e treinar outro meio mês. “Era o único exército do mundo
que assegurava o pagamento da sua existência.”
Foi aí que começou a Guerra da Independência, sublinha, “não
com a declaração de independência, mas com a declaração da
partição [da ONU] a 29 de Novembro” de 1947.
O que aconteceu foi que era preciso lutar e foi isso que ela
fez. Explica que as mulheres tinham, muito raramente, posições
de combate. O que faziam era sobretudo tarefas de apoio nas
unidades e os homens é que combatiam. “Claro que se houvesse
um ataque pegava numa arma e lutava. Mas não eram as mulheres
que iam para o campo de batalha ou conquistar posições.”
E no meio disto, um dia, na Galileia: “O comandante chamou-
nos, era uma sexta-feira, seis da tarde. Disse duas coisas: que
Ben Gurion tinha declarado a independência três horas antes, e
que era preciso levar coisas aos rapazes que estavam na frente.
A última parte é que me interessou e voluntariei-me para ir.”
Também porque “eram pessoas muito próximas, partilhámos
tendas no kibbutz, muitos eram namorados.”
O que se seguiu foi duro. “A noite em que levei os mantimentos
foi a última vez que vi três amigos. Depois chamaram-nos para

226
reconhecer os corpos. Éramos um grupo de 15. Após este combate,
um estava doente, três estavam mortos e dois feridos. Perguntámo-
nos quantos combates aguentaríamos até acabar o grupo…”
As baixas eram muitas e vieram muitos novos imigrantes da
Europa, mas não tinham tido interesse prévio pelo sionismo, não
sabiam distinguir onde era Telavive ou Hebron ou Eilat, e não
falavam uma palavra de hebraico.
Tehila ficou com a missão de lhes ensinar hebraico, ainda que
ela também não falasse assim tão bem. “Era um hebraico de vida
ou de morte. Era para aprenderem palavras como ‘deitem-se’,
‘fujam’, saber dizer ‘estou ferido’, saber ler ‘minas’.” As baixas
iam continuando (seis mil pessoas do lado do recém-criado Estado
morreram). “De vez em quando um dos meus alunos não aparecia
no dia seguinte. Perguntava por ele, tinha caído em combate.”
Essa foi “a época de grande perigo para Israel”. Mas “a guerra
de 1948 ainda não acabou”, diz. Porque “a cada dez anos há uma
guerra e entre as guerras não há paz”. E, explica, “em cada família
há pessoas no exército. Eu estive no exército, o meu marido esteve
anos e anos; o meu filho também, a minha neta na força aérea, o
neto no exército… vivemos nisso.”
“Moshe Dayan, o grande herói da guerra de 1967, disse que
temos de deixar passar pelo menos 100 anos. Esperava que fosse
mais cedo…”
Tehila tem agora 88 anos e fala muito quieta, pausadamente.
Tem um sorriso calmo e uns pequenos ramos de veias azuis muito
definidas na testa. Estamos na sua casa numa zona chique de
Telavive; da janela da sua sala entra uma luz quente e vê-se o verde
de um parque em frente.

227
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Tehila foi professora, jornalista, escritora.


Aos 88 anos diz: "Não fizemos o suficiente,
adiámos as negociações. O outro lado
também não fez o suficiente." Mas
"esta é a nossa casa"

O marido, Zeev, que conheceu no final da guerra e estava na


mesma unidade da Haganah, está no escritório. As paredes estão
cheias de livros sobre personagens da história militar de Israel que
escreveram ambos e de distinções do Estado hebraico aos dois.
Tehila foi ainda professora, jornalista, escritora. O tempo
na Haganah ocupa uma pequena parte no seu currículo.
Mas é essencial no definir da sua identidade. “Falo disso
com algumas palavras”, diz, e começa a tentar procurá-las, a
rever a formulação: “Acho que não estamos suficientemente
orgulhosos na participação da fundação do Estado. Cada povo
tem a sua história, tem os seus melhores momentos e os seus
piores momentos, mas a oportunidade de ser é só uma. E nós
aproveitámo-la”, defende.
Israel comemorou a independência seguindo o calendário

228
hebraico, a 19 de Abril, a data assinalada nesta segunda-feira é a
que segue o aniversário segundo o calendário gregoriano.
Na data dos 70 anos, perguntaram a Tehila se as suas
expectativas se cumpriram. “Não, não completamente”,
responde. “Mas o que digo é que quando se vive na nossa casa, e
uma janela se partiu, fazemos os possíveis por a arranjar. Se não
conseguimos, temos de aprender a viver com ela como está.”
A janela partida “é ainda não termos paz”. “Não fizemos o
suficiente, adiámos as negociações. O outro lado também não fez o
suficiente — mas temos de assumir que nós também não.”
O que era preciso “era termos dois Estados [um israelita e um
palestiniano], com segurança, sim, e os cidadãos árabes israelitas
que quisessem ficar também”.
Também há outras falhas: “Como sou de esquerda não concordo
com a política deste Governo, acho que temos um problema
muito grande com os religiosos, é talvez o nosso maior problema
interno. E ainda não chegámos a uma igualdade real entre homens
e mulheres — apesar de estar muito melhor.”
Ou seja, “há coisas em que superou as minhas expectativas, e
coisas em que não”.
Mas “esta é a nossa casa, e uma janela partida não é suficiente
para decidirmos mudar”, diz, à laia de conclusão. E depois de
parar um minuto sublinha: “E quanto às expectativas, na altura
não tínhamos expectativas!”

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229
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Uma geração
a tentar sair de
Gaza para dizer:
"Sou de Gaza"
O quotidiano de Gaza é definido pelos limites do território.
Mas no meio da destruição e da densidade urbana, a Internet
funciona. A ligação ao exterior traz possibilidade de trabalho,
e há startups a sair do grupo dos “empreendedores mais
duros” do mundo
Da nossa enviada Maria João Guimarães, em Gaza

230
Reportagem originalmente publicada a 27 de Maio de 2018

H
ala Olwan e Iyad Altahrawi são jovens e ambiciosos
num lugar de enormes dificuldades para quem é jovem
e ambicioso: a Faixa de Gaza, um pequeno território
cercado, de onde é difícil (alguns dirão: quase impossível)
sair, onde os bens que entram são restritos e rigorosamente
revistos, onde há electricidade apenas quatro horas por
dia, onde quem governa é o movimento islamista Hamas.
Hala sente que a sua vida é ainda mais complicada por ser
mulher. Mas tem um plano e está a segui-lo com rigor. Vai fazer
“tudo o que conseguir, e ainda “mais um pouco” para tentar
“realizar um sonho quase impossível”: sair de Gaza e conseguir
um emprego fora.
Já Iayd fez o percurso de sonho de Hala e regressou: saiu
para estudar nos EUA e na Alemanha, trabalhou em Frankfurt,
mas largou um emprego para voltar, ajudar e trabalhar com os
“empreendedores mais duros do mundo”.
Iyad Altahrawi está no espaço dos Gaza Sky Geeks, uma
incubadora de startups, academia de código, aconselhamento
a freelancers e espaço de coworking, um oásis de electricidade,
energia e optimismo no meio de Gaza. A decisão que tomou é
sempre questionada — a maioria das pessoas está a tentar fazer o
oposto. Iyad não desvaloriza as dificuldades, nem para si próprio
— “É verdade que às vezes estou encurralado em Gaza e não
consigo sair” — nem para o trabalho. “Trabalhamos num ambiente
muito incerto.” Mas desde que regressou, há mais de um ano,
nunca se arrependeu, garante.

231
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

“Gosto de acordar e ir para o trabalho todos os dias”, sublinha.


“As pessoas são muito activas e ambiciosas. Toda a gente está a
tentar conseguir chegar a qualquer lado”, diz. Nos Gaza Sky Geeks
tem possibilidade de ajudar e fazer mesmo a diferença. “Este é um
local de esperança e ambição.”
A um sábado às 9h30 da manhã (é o segundo dia do fim-de-
semana na região) já há uma série de pessoas sentadas na sala
comum de coworking, de café e computador à frente. O espaço
tem quadros com frases motivadoras de figuras inspiradoras de
Harry Potter a Rocky Balboa (“Não é uma questão de quão forte
consegues bater, é quão bem consegues aguentar ser atingido e
continuar em frente”).
O caos de Gaza, as buzinas e burros, o pó e os checkpoints do
Hamas ficam lá fora. Aqui há um bulício, mas mais organizado:
“Não trabalhes duro, trabalha de forma inteligente”, diz outro
cartaz. O inglês é a língua franca, mas há também informação em
árabe.

Fazer muito com pouco


Iyad Altahrawi é responsável pelo programa de incubação e
aceleração nos Gaza Sky Geeks e trabalha de perto com as equipas
de startups e mentores. Está prestes a começar um programa de
aceleração de 16 semanas com workshops, metas semanais, e um
dia de demonstração para apresentação a investidores.
A Internet é uma das infraestruturas boas de Gaza, o território
tem muitos jovens qualificados. O programa Gaza Sky Geeks (GSG)
começou em 2011, com financiamento da organização de ajuda
dos EUA Mercy Corps e da Google, para aumentar o conhecimento

232
GETTY IMAGES

Uma praia de Gaza, em 2015

“Fazes o mesmo que pessoas em todo


o mundo estão a fazer — e devia estar
a resultar. Mas estás em Gaza, por isso
tens de trabalhar mais. E ter paciência”,
explica Sara
233
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

de tecnologia, e foi tendo cada vez mais ofertas e programas, para


aproveitar o potencial do trabalho em software.
Iyad explica que Gaza tem potencial, por ter grande “talento
tecnológico”, de se tornar um exportador de trabalho na área
como é a Índia. A dificuldade em trabalhar com hardware (quase
nada entra em Gaza; apesar disso, há uma série de pessoas a
trabalhar com impressoras 3D, contornando a falta de materiais
com peças antigas e vídeos de instruções do YouTube) também
leva a que a maior parte dos que trabalham na área se dediquem
antes ao software.
E com os GSG a conseguirem ter pessoas a participar em
competições internacionais e ganhar prémios, Iyad garante:
“Tenho a certeza que lá fora somos conhecidos pelo nosso
trabalho.”
Mas nem tudo o que é virtual funciona só em meio virtual. Se é
possível contrariar o não ter matérias primas oferecendo serviços,
a dificuldade em viajar afecta muito as hipóteses de crescimento.
É que os donos do dinheiro “não investem em ideias”, diz Iyad,
querem sim “conhecer as pessoas, ver como trabalham”. Existe o
Skype, mas neste caso não funciona.
Muitas vezes há oportunidades fora, mas o ritmo das
autorizações de Israel é incomparavelmente mais lento do que
o ritmo das oportunidades. E do Egipto é ainda mais incerto. Os
dois países bloqueiam o território invocando razões de segurança;
organizações de defesa dos direitos humanos dizem que o
bloqueio é ilegal e que serve como “castigo colectivo”.
Face a tudo isto, importa “nunca desistir”, diz Sara Alafifi, do
programa de mentores e comunicação. Mesmo que a taxa de saída

234
dos empreendedores para mostrar trabalho, ou de formandos
para estágios em empresas internacionais, seja “de 5 por cento”,
eles vão tentar sempre aumentá-la. Mesmo que não haja lógica
aparente nas decisões, e que a saída de uma pessoa possa ser
aceite numa vez e rejeitada na seguinte, “vamos aprendendo”.
A aposta é na maior antecedência possível, e na flexibilidade de
todos — “nem que seja preciso adiar”. Por exemplo, recentemente
a Google aceitou adiar seis meses um estágio de um formando dos
GSG até chegar a autorização para a viagem. Acabado o estágio,
novo problema — o regresso também teve de ser adiado (as entradas
são quase tão incertas quanto as saídas). Mas o estágio foi feito.
Outro problema é a falta de opções de pagamentos: o PayPal,
sistema quase universal, não opera na Palestina.
Por isto, e por tudo o resto, explica Sara Alafifi, é que aqui
estão “os empreendedores mais duros” do mundo. Porque estão
habituados a trabalhar num local onde tudo pode acontecer, a
contornar todos os imprevistos, a encontrar uma solução para
todos os problemas. O chavão de não haver dificuldades e sim
desafios a superar é verdadeiro aqui, todos os dias.
Mas também porque é possível trabalhar arduamente, ser
óptimo, e perder uma ou várias oportunidades. É preciso
saber lidar com a incerteza, com a frustração. “Fazes o mesmo
que pessoas em todo o mundo estão a fazer — e devia estar a
resultar. Mas estás em Gaza, por isso tens de trabalhar mais. E ter
paciência”, explica Sara Alafifi.

Mulheres na liderança
Sara nota que em todo o mundo as mulheres trabalham mais e em

235
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

“As pessoas são muito activas


e ambiciosas. Toda a gente está a tentar
conseguir chegar a qualquer lado”, diz Iyad

Gaza trabalham ainda mais. Mas aqui nos Gaza Sky Geeks, “se há
coisa que não há, é falta de ajuda para mulheres”, sublinha. Elas são
53 por cento em todos os programas, e a percentagem sobe na parte
das startups: 58 por cento são fundadoras ou parte das equipas.
Os casos de maior sucesso saído dos GSG são startups
de mulheres — Nour Abuzaher é uma delas, a sua empresa
MomyHelper, de ajuda a mães árabes, que obteve um segundo
lugar numa competição de startups em Istambul (para onde teve
autorização de Israel para ir — já para outro concurso na Califórnia
não conseguiu) e financiamento de uma business angel (como são
chamados investidores relativamente pequenos) do Dubai.
Nour teve a ideia para um serviço de aconselhamento de mães
árabes depois de ser mãe. “Na altura estava fora de Gaza, não
estava perto da família, e não sabia lidar com o meu bebé — queria
fazer tudo o possível para dar tudo ao meu pequenino”, conta.

236
Começou a partilhar no Facebook algumas das ideias para o seu
“pequenino”, como chama sempre ao filho (hoje com três anos).
Recebeu muitos comentários e mensagens privadas de mães que
não conhecia a pedir a sua opinião para dificuldades e problemas.
“Eu não podia responder, não sou especialista”, nota. Percebeu
que havia ali uma necessidade.
Leu que as mães árabes têm uma percentagem de depressão
comparativamente alta. E que apesar de haver rede e de apoio
familiar, o mundo já não é o mesmo do da sua mãe e avó.
Assim começou a trabalhar numa aplicação para
aconselhamento profissional fácil e discreto para mães árabes
— telefónico, sem imagem, o que é importante sobretudo se o
especialista for um homem. A empresa foca-se no mercado do
Médio Oriente e Norte de África, mas Nour conta que mesmo sem
ter esse mercado como target, tem utilizadoras da Alemanha ou
Áustria.
Nour sublinha que muitas mulheres sempre trabalharam em
Gaza — embora as profissões mais típicas fossem como professoras
ou enfermeiras. Mas “a situação mudou muito nos últimos cinco
anos”, explica. As dificuldades económicas fizeram com que
muitas famílias já não vejam com maus olhos que as mulheres
trabalhem e ganhem dinheiro. “Cada vez há mais mulheres a sair,
trabalhar, fazer voluntariado — há uma percentagem que não
pode, é verdade, mas é cada vez mais pequena.”
Voltando a Sara al-Afifi e à sua tour algo acelerada de tudo o
que os Gaza Sky Geeks têm para oferecer, ela sublinha a parte
direccionada para as mulheres: clubes de código para mulheres
(“a maioria não é encorajada na universidade a seguir esta via”),

237
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

reuniões regulares com mulheres que têm startups, brunch às


segundas-feiras com mulheres inspiradoras e sempre que há
mentoras internacionais também é organizado um encontro.
“Algumas das visitantes internacionais ficam espantadas e dizem
que aqui é melhor para as mulheres do que em Silicon Valley”,
diz Sara. “Os homens é que às vezes acham que estão a ser
discriminados.”

Uma cerimónia à americana


A Internet é o trabalho de uns, mas é também uma linha de ligação
ao exterior.
A pouca distância da sede dos Gaza Sky Geeks está o café Al-
Baqa. É uma curtíssima viagem de carro, que pode ser chamado
com uma app, que permite partilhar viagens com amigos. “O seu
capitão chegou”, anuncia a app — desenvolvida por uma startup
saída dos Gaza Sky Geeks. Da janela do carro vêem-se os muros
cheios de graffiti, a cúpula dourada da mesquita de al-Aqsa, em
Jerusalém, desenhos alertando para o perigo de colisões nos
cruzamentos, onde se amontoam carros e carroças e se buzina
para passar.
O café é uma grande esplanada sobre o mar e vai enchendo
à medida que a tarde passa com grupos de amigos que se
encontram. Hoje, a estudante Mais Abu Shawish tem um sorriso
especial quando anuncia: “Tive o meu último exame: finalmente
acabei e posso fazer o que quiser!”, diz. “Estava mesmo
stressada”, acrescenta, deixando-se cair na cadeira e pedindo um
sumo cor-de-rosa, que condiz com o seu hijab florido.
Mais (lê-se Maiz) tem 23 anos e está a acabar o curso de inglês e

238
francês na Universidade al-Azhar — a cerimónia de fim de curso, à
americana, ainda está para vir: centenas de alunos vestirão o seu
fato com um pormenor de padrão de lenço palestiniano, e chapéu
e tudo, para receber os diplomas.
O contraste entre a cerimónia e o muro da universidade é
grande: lá foram sendo pintados os retratos dos manifestantes
mortos por atiradores furtivos israelitas nos protestos da Marcha
do Retorno, que começaram a 30 de Março. O muro só teve espaço
para os primeiros — acabaram por morrer 110 manifestantes, a
maioria dos tiros (o Exército disse que atingiria quem quer que se
aproximasse da barreira que divide Gaza de Israel).
Mesmo antes de ter o diploma na mão, a prioridade de Mais é
trabalhar. “Preciso de ser independente financeiramente — explica
—, porque já tive uma oportunidade de estudar fora e os meus pais
não me deixaram”. Nem todas as famílias aceitam que as jovens
mulheres viajem sozinhas. Se vai resultar ou não, não faz ideia.
Ela oscila entre o pessimismo (“não sei como vai ser, parece que
as portas estão todas fechadas”) e o optimismo (“talvez um dia
consiga fazer muita coisa!”).
O futuro, Mais sabe que vai ser diferente do que é hoje. “Nada
fica igual. Não quer dizer que vá ficar melhor, mas igual, não fica”,
garante. Esta estudante é “apaixonada por tudo o que é diferente”
e por isso tem amigos, que fez online, em todo o mundo. “Os meus
amigos mais próximos são os que vivem mais longe”. Um budista,
um homossexual, em Gaza não conhece ninguém assim (pessoas
de outras religiões há apenas cristãs, uma pequena minoria,
“homossexuais talvez haja, sim, mas escondidos”).
Estas amizades surgiram num grupo para poliglotas de que

239
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Mais fez parte. Fez, no passado, porque a dada altura houve


um encontro na Califórnia e ela não foi porque não conseguiu
autorização, apesar da pressão de responsáveis do grupo. A
ausência foi o motivo para a sua saída. “Um problema das ligações
externas de Gaza é que muitas pessoas não percebem o que
passamos aqui.”
Tais como: a falta de electricidade; ter electricidade em
períodos de quatro horas que não são sempre os mesmos; não
saber quando há ou não; não saber, desde há cerca de dez anos, o
que é um fornecimento de electricidade normal. As implicações
mais óbvias: não se pode ter nada no frigorífico que se estrague
em mais do que um dia; ter problemas caso se precise de
medicamentos que necessitam de frio; ter a casa às escuras à noite
durante longos períodos; ou ter luz eléctrica só de madrugada;
ficar frequentemente com o telefone ou o computador sem
bateria; a roupa por lavar, ou por passar; ter os elevadores parados
(e há muitos prédios altos em Gaza); ler ou estudar à luz de velas
ou lanternas. Não ter alívio para o calor no Verão.

Como “num filme de terror”


Estar em casa sem electricidade “é como estar num filme
de terror”, diz Tarek, 21 anos, estudante de Engenharia,
especialização em Metalomecânica, que se junta mais tarde ao
grupo de Mais no café à beira-mar. Estar fechado, à noite, horas a
fio, no escuro... “é horrível, não consigo explicar.”
“Se é para falar de electricidade, então vamos falar do efeito
psicológico”, diz por seu lado a advogada Fatima, 25 anos, que
entra na conversa.

240
MOHAMMED SALEM/REUTERS

O Gaza Sky Geeks é uma incubadora de startups, academia de código, espaço de coworking, um oásis de
electricidade em Gaza

“Viajar mudou-me”, diz Abier. “Porque se


és daqui e viajas para outro sítio, percebes
que mereces uma vida melhor”
241
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Fatima é uma das sortudas: tem um contrato de seis meses —


“O que é o melhor que se consegue arranjar aqui.” Mas recusa-se
a viver de acordo com o horário aleatório da electricidade. Se há
pessoas que deixam todos os interruptores em casa ligados para
terem a certeza que acordam quando regressa a luz, e que assim
conseguem não falhar as quatro horas quando estas calham a
meio da noite, ela faz o contrário. “Já não consigo lidar com isto,
então, vivo sempre na escuridão”. “Já estou habituada, foram sete
anos a estudar sem luz” — às vezes fora de casa, às vezes com uma
lanterna, ou mesmo à luz de velas.
Não quer dizer que não tenha um desejo profundo de ter
algumas horas mais de electricidade: “Penso muito que as coisas
podem mudar. Sobretudo nos dias de calor, penso em como seria
bom ter uma ventoinha”. Mas há dez anos que a situação não
muda. Fatima fez uma única concessão à electricidade: tem um
carregador de bateria para o telefone; mesmo assim, às vezes fica
sem bateria.
Por isso muitos jovens estão cada vez mais tempo fora de casa,
na universidade, ou no café, onde geradores vão carburando a
combustível e, com uma ou outra interrupção, asseguram uma
quase normalidade.
Estar num destes cafés ao pé do mar, então, é a maior
escapatória possível, ter um horizonte além do emaranhado de
prédios da cidade. É uma sensação, imaginária, porque a Marinha
israelita assegura o cerco no mar e nunca seria possível sair por
ali. E como a electricidade não chega para tudo, também não
chega para tratar os esgotos, e assim, muitas vezes, estes são
descarregados sem tratamento directamente no mar.

242
Mas num sítio onde não há quase nada para fazer, não ir ao mar,
não deixar as crianças nadar, está fora de questão. O máximo
é evitar as zonas de descarga directa. Da esplanada do Al-Baqa
vêem-se os miúdos, gritos entusiasmados, a lutar com as ondas, a
brincar com o vaivém do mar. Ao longe parece tudo bem; ao perto
vê-se que a espuma não é branca.

A electricidade como tema


Muitos destes jovens falam inglês como se tivessem saído de um
intercâmbio nos Estados Unidos — mesmo que a maioria nunca
tenha ido a nenhum lugar a mais de 20 quilómetros de onde estão.
A fluência que têm espelha o seu esforço — é a chave para a tão
ansiada saída.
Hala Olwan é o exemplo máximo disto: tem 21 anos, estuda
Literatura Inglesa na Universidade Al-Azhar, nunca saiu de Gaza,
mas fala como se estivesse numa série de televisão americana,
velocidade, entoação, ritmo, entusiasmos e tudo.
Hala está na sala da casa da sua família, onde hoje estão também
a mãe, os quatro irmãos (“os macaquinhos”), e uma amiga. É num
terceiro andar e foi possível subir de elevador porque estamos numa
hora em que há electricidade. Enquanto falamos, a mãe serve Coca-
Cola já fresca de uma hora no frigorífico, e vai supervisionando o
carregar de uma bateria que parece de automóvel, e depois outra.
Estas vão guardar alguma electricidade, que depois é usada, com
um conversor, para ver televisão, carregar um telefone, ter luz para
ler à noite. Isto diminui a vida útil dos aparelhos, mas é melhor
do que só os puder usar às horas de fornecimento. É impossível
escapar a este tema em Gaza.

243
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Reportagem publicada
na edição do P2
de 27 de Maio de 2018

244
Mas não é só a electricidade, e ter de planear toda a vida à
volta daquelas quatro horas de energia — é ter de “lidar com as
expectativas sociais em relação às mulheres”, o que é, sublinha
Hala, “uma questão de cultura e não de religião” (ela usa o véu
islâmico).
Feminista, lança-se num desabafo sobre o poder dos homens
sobre as mulheres, o facto de os maridos serem quem decide tudo,
de haver violência doméstica. Ela não quer valer menos, não quer
submeter-se, não quer ser “uma mulher em Gaza”.
“Sou muito ambiciosa”, diz, “tenho um plano, e vou fazer tudo
o que puder para conseguir este sonho quase impossível” — sair de
Gaza.
O plano inclui esmero no estudo — tem de ser excelente porque
quer concorrer a uma bolsa e tem de estar entre os melhores para
a ganhar. Vai procurar tudo o que é preciso saber sobre as bolsas
disponíveis, cruzar toda a informação que conseguir, e vai fazer
uma candidatura que lhe dê as melhores hipóteses. Não quer pôr a
hipótese de não resultar.
“Nós fazemos tudo e até mais qualquer coisa”, diz, falando de
si — e de repente, está a falar também dos habitantes de Gaza em
geral. “Passámos por três guerras e estamos a sobreviver.” Olha
para a amiga, que está ao lado, toca-lhe no braço, e sai-lhe uma
exclamação sentida: “Oh-my-God! Tenho tanto orgulho de ser
palestiniana!”
Mas quer ser uma palestiniana fora. Às vezes demora muito
tempo a ter uma ideia do que isto poderá ser. Abier Almasri, por
exemplo, saiu de Gaza pela primeira vez aos 31 anos.
Foi há dois meses. Sentada num pátio de um antigo e clássico

245
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

restaurante da cidade, Abier, que trabalha em pesquisa na


organização de defesa de direitos humanos Human Rights Watch,
ainda se emociona ao falar disso.
Contar esta história é um misturar de relatos de restrições
práticas, suspenses burocráticos e sentimentos tão fortes que a
fizeram rir e a seguir chorar e tudo ao mesmo tempo.
As restrições são a parte mais fácil de contar, embora leve
tempo: nunca se sabe se a autorização dada por Israel se vai
manter até ao momento em que se passa realmente para o lado de
lá; quem sai pode levar pouco mais do que roupas (muitas pessoas
optam por levar sacos de plástico transparente com roupa). Pasta
de dentes, champô, maquilhagem: nada disto pode passar. Pior,
para quem trabalha: não é possível levar computadores portáteis.
No caso de Abier, como a viagem era para uma reunião da Human
Rights Watch em Nova Iorque, ainda havia o visto para os EUA
— que tinha de ser pedido em Amã ( Jordânia) e nem acreditou
quando conseguiu.
Depois vem a parte mais difícil de relatar. “Viajar mudou-
me”, diz Abier, gestos calmos interrompidos por entusiasmos
repentinos. “Porque se és daqui e viajas para outro sítio, percebes
que mereces uma vida melhor.” Porque em Gaza “as pessoas estão
com tanta falta de empregos, de salários, de seis ou oito horas
de electricidade — já nem sequer pensamos em 24... estamos tão
preocupados em ter os cuidados de saúde de que precisamos se
ficarmos doentes”, diz. “Estamos tão ocupados com isto que nem
pensamos no futuro. Mas nós merecemos esta vida melhor e este
futuro”.
Sair é “respirar um ar de liberdade”, diz Abeir. “Só me apetecia

246
dizer a toda a gente: ‘eu sou de Gaza! Sou de Gaza!’”, conta, a
sorrir. “Gravei vídeos para me lembrar da sensação. Não consigo
descrever, é impossível pôr em palavras.”
Sair “é mágico”, dizia na esplanada Tarek, o estudante de
engenharia. “É como se flutuasses no ar”, gesticula, com
saudades.
Sair é achar estranho que lugares estejam todos iluminados
durante a noite “só porque é bonito”, que não haja barulho de
geradores para suprir a falta de energia, nem haver um balão do
exército israelita a recolher imagens, é andar por um aeroporto e
comentar que este é — “de certeza, pessoal!” — maior do que Gaza.
“Apesar de tudo isto”, dizia ainda Tarek, “Gaza não é um inferno
como as pessoas possam pensar — também é bonito”. Aponta para
o mar. E olhando depois as pessoas em volta no café, em conversas
animadas em grupo ou em família, ou a dois, mais recatadas,
termina: “O mais importante é o espírito.”

Nota: Maria João Guimarães recebeu com esta reportagem o Prémio de Jornalismo Direitos
Humanos & Integração 2019, da Comissão Nacional da UNESCO e da Secretaria Geral da
Presidência do Conselho de Ministros, categoria imprensa, ex aequo com Céu Neves, do
Diário de Notícias

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247
Guerra no Médio Oriente 30 anos de grandes reportagens

Um agradecimento especial a Alexandra Lucas Coelho, Alexandra Prado Coelho,


Fernando Veludo, Maria João Guimarães e Paulo Moura

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