Você está na página 1de 146

Israel Daniel Boyarin

Carnal
1 lendo o sexo na
cultura calmúdica.
ISRAEL CARNAL
1
1

DAN IEL Bl WARIN

l'ar1111do -,urprcc11dc111c111c111r tk 11111 1'11·


LENDO O SEXO NA
do-,.,o a ,.1.,;\o qu•· .1 1gn·1;1 p.1111..,11, ;1 1111h.1
do 1uda1-,11w - l'<lll..,1lkr.1da u111.1 1Cl1g1.11>
CULTURA TALMÚDICA
"carnal''. cm opo-,1c;10 a \'1-,,10 r..,p111 1u;d tl.1
Igrqa - Bny;1r111 ;ngu11H·111.1 que n 1ud.1¡..,
mn r.1h1111u1 c.,la\·a fu11d.1d11 11u11i.1 .,.·r1•· d ..
prc-,-,up,i...1n-, -,ohrr n corpn hu111.1110 <t1111·
plr1a111c111r d1fcre111,·-, d.1q11rlr.., lkk11 l1dt1..,
pelo tr1.,11a111-,1110 l'ar.1 º" 111dn1.., r 1h1111·
Ul'>. n -.,·r hu11i.1110 e dcl1111do '01111 · 11111
u1rpt1 .111111Lllln lll'h ;d111a .\ .d111.1 1 .1ll ,.
".ihngad.1" 1wla carne. '01110 ;ll rnl11.1\·.1111
Tradu(iiO
n.., p1dcu-, hclc111..,1;1., r '"' trhl.1<i... p.11111·
André Cardoso
110., I· claque d.1 \'Ida ;1<1 nirpo. t llJ.I l'\l..,-
1.:·11t 1;1 dd111c o que <,1g11d1c.1 ..,cr llllm.111"
I-,1.1 d1fcrn1(.1 - ;1p.1g.1da pt·l.1 "'111<·..,.
<,,10 "JUlLlll<HTl..,lao" - ,. o ll'lll;I ll'lllLil
do l1nn de Bo\ .1r111 .\ <arn.d1d.1<k dt1 111
da1-,mn r.1h1111u>. ll<''>lt' -,c1111do ""Pn 1.11.
11;·1,1 per111111.1 ;IP'> !1 .. 1., ..,1mp!,·..,111n11t· 1.L'.llt1
rar ª" an..,lt'lhdc., ..,c\ua1-, e..,lutl.ul.1-, pt1r
Pe ter l\ro\\ 11 1w 11i.1,g1-,1r.d //1t· Bn1h a11d ,,,. Revisiio Final
1 lt'I\ \lt-11. \\.1111!01. <111d ">n11<1/ /(.-111u11111- Jayme Salomao, Monique Balbuena e
ll/lll 111 /:cll f\ (./11 l\Íl(/111(\. ;\ti lOlllLlrlO. ;l.._
Carlos Alves
<,olu,oe-, c11to111rad.1.., ¡H·I,,.., l l'l..,l.lt1.., p11m1-
t1\n-, :e <llllr<>.., 1udn1-, do..,,·, ult1J1 p.11.1 11-
<lar com e<,¡;¡-, a11-,1nLidc-, 1i.10 podu111 .,,.1
cmprcg;1da-, pelo.., 1udn" rah1111• '" l) '01 11- 11::· ~:::i·
po - 111a1-, c<.,pt·,J!1¡,1111c111,·. t1 tt1rp" ..,. ..
xuali=a<lo - 1Uo pod1.1 ..,n ah.111dll11,1d" ~ 20990699-4
pois os rah1-, aunl1ta\ ;1111 1i.1 pr•ll r1.1,,111 ~)C)..,tA ,.
como um prmup1" rcl1g1""t1 c. P"rl.111111 ~~.:.
.nas · rclar,;ücs '>l'\11a1., '>;11H 1ll11.1d.1., ¡H"l11 , ;1
s:uncnto. Imago
Titulo original:
Carnal lsratl

C> 1993 by The Regents of the University of California

Capa:
VERÓNICA D 'OREY

CIP-Brasil. Catalogai;ao-na-fome
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Dedicado a Chava,
Boyarin, Daniel com honra e gratidcio,
B784i Israel Camal: lendo o sexo na cultura talmúdica/ Daniel Boyarin; por vinte e cinco anos de íntima ami.zade
tradutor André Cardoso. - Rio de janeiro: lmago Ed., 199-t.
292p. (Cole~ao Bereshit)

Tradu~o de: Camal lsrael: reading sex in Talmudic culture


lnclui bibliografia e lndice
ISBN 85-312-0368-6

l. Sexo na literatura rablnica. 2. Corpo humano na literatura rabinica.


3. Mulheres na literatura rablnica. 4. Literarura rablnica - História e cri-
tica. 5. Sexo - Aspectos religiosos - judaísmo. 6. Corpo humano - As-
pectos religiosos - Judalsmo. 7. judalsmo - História - Periodo talmú-
dico, 10-425. 8. Mulheres no judaismo. l. Titulo. 11. Titulo: Lendo o sexo
na cultura talmúdica. lll. Série.
CDD - 296.12
94-0709 CDU - 296.80

Reservados todos os direitos.


enhuma pane desta obra poder:!. ser
reproduzida por fotocópia, microfilme,
processo fotomecanico ou eletrOnico
sem pennissao expressa da Editora.

1994

lMAGO EDITORA LIDA.


Rua Santos Rodrigues, 201-A - Est:l.cio
20250-430 - Rio dejaneiro - RJ
Tel.: 293-1092

lmpresso no Brasil
Printal in Brazil
A segunda implicac;áo que R. Hanina bar Papa encontrou [no Sumário
versículo uMuitas ( ...) sao Tuas obras maravilhosas ( .. .) e Teus pen-
samentos para nós (SI 40,5)) foi a seguime: Muitas sao as obras ma-
ravilhosas e os pensamentos que Tu, ó Deus, empregas para que o
homem tenha desejo pela sua mulher. A respeito <leste sentimento
está escrito: Adao conheceu ainda mais a sua mulher (Gn 4,25). O Agradecirnentos 9
que significa a escritura dizer ainda mais? Que seu desejo tinha
sido aumentado por muito mais desejo do que antes: antes, nao Observa~ao sobre o Termo Rabi 11
sentía desejo quando náo vía a mulher, mas agora sentía desejo 13
Introdu~o
por ela mesmo quando nao a via.
É este forte desejo que forc;a os mercadores e os marinheiros
- assim disse R. Aba bar Yudan, em nome de R. Aha - a se lem- l. "Considerai o Israel segundo a Carne": Sobre a Antropología
e a Se.xualidade nos judaísmos do Final da Antigüidade 43
brar de suas esposas e a voltar para elas.

William G. Braude e lsraelj. Kapstein, trads., 2. A Dialética do Desejo: "O Instinto do Mal é Muito Bom" 73
Pesi!lla de-Ra}l Kahana: Discursos para o Shabat
e os festivais, reunidos por R. Kahana 3. Diferentes Evas: Mitos Sobre as Origens da Mulher e o
Discurso do Sexo no Casamento 89

4. A Produ~ao do Desejo: Maridos, Esposas e a Rela<;ao Sexual 119

5. O Desejo pelo Saber: A Torá enquanto "a Outra" 145

6. As Mulheres Estudantes: A Resistencia Interna ao


Discurso Masculino 179

7. (Re)produzindo os Homens: A Constru<;ao do


Corpo Masculino Rabínico 209

Urna Conclusao para o Futuro: O Estudo do Talmude


enqu~nto Critica Cultural 237

Bibliografía 257

Índice Geral 277

Índice de Textos judaicos Prirnários 285


Agradecimentos

A idéia <leste livro surgiu numa conversa que tive com Chana Safrai, sobre
Berúria e o estudo da Torá para as mulheres no periodo talmúdico. A con-
versa deu origem a um artigo (que agora é o capítulo 6 desta obra) e, mais
tarde, a um livro. Os meus objetivos ao escrever este trabalho, apresentados
com maiores detalhes na lntrodw;ao, possuem diversos aspectos. Pretendo
dar continuidade ao meu projeto intelectual/cultural de inserir os textos ra-
bínicos no discurso crítico e o discurso critico no corpo dos escritos rabíni-
cos. Também pretendo corrigir cenas concepc;6es erróneas a respeito da
ideologia da sexualidade, dos géneros e do corpo na cultura rabínica. Estas
vis6es equivocadas distorcem a nossa compreensao desta cultura e impedem
que recorramos a ela para atingir o terceiro objetivo <leste livro: iniciar urna
reestruturac;ao feminista do sexo e da relac;ao entre os géneros no extremo fi-
nal da Antigüidade - isto é, no nosso próprio tempo.
Vers6es mais antigas de diversos capítulos <leste livro já foram publica-
das nas seguintes coletaneas e periódicos: Critica! lnquiry, The ]ournal of the
History of Sexuality, People of the Body (editado por Howard Eilberg-
Schwartz), Poetics Today, Representations e Yale ]oumal of Criticism. Agrade-
c;o aos editores de todas estas publicac;6es por terem permitido que meus
textos fossem revisados e reeditados.
A subvenc;ao das organizac;oes a seguir foi essencial para a pesquisa que
levou a composic;ao <leste livro: a Littauer Foundation, a faculdade de Letras
e Ciencias da Universidade da Califómia (Berkeley) e, principalmente, o
Fundo Nacional para as Ciencias Humanas, que financiou um período de li-
cenc;a essencial para a conclusao <leste livro. O Instituto Shalom Hartman de
Estudos Judaicos Avanc;.ados ofereceu um ambiente seguro para a troca de
idéias em momentos cruciais desta pesquisa, além de fornecer urna ajuda
material importante.
Eu gostaria de agradecer também pelo fato de ter feito novos amigos
(principalmente David Biale e Howard Eilberg-Schwartz, que também traba-
lham com estes mesmos problemas, sem que baja nenhum tipo de competi-
c;ao entre nós) e pela agitada vida intelectual do meu novo lar em Berkeley.
Agradec;o a Universidade e seus patrocinadores por terem tido a sábia inicia-
1O Agradecimentos

tiva de fundar a Cadeira Taubman de Cultura Talmúdica. Tenho urna <lívida


de gratidao especial com Stephen Greenblatt, que encorajou meus estudos
culturais desde o início, ainda mais agora que incluiu meu livro na série que
dirige ("O Novo Historicismo: Estudos de Poética Cultural"). Gostaria de Observac;ao sobre o Termo Rabi
agradecer também aos editores da University of California Press: Stanley
Holwitz, que simplesmente me cativou, e Doris Kretschmer, que tornou rudo
isso possível.
Acredito que a produc;ao academica, assim como a obra de arte, nao é a
criac;ao de um único autor, mas de toda urna cultura. Gostaria de tornar ex- ·este livro, utilizo a palavra rabi sempre que me refiro ao grupo específico
plícita, neste caso, a minha <lívida a um discurso contemporaneo sobre o de líderes religiosos judaicos que íloresceu na Palestina e na Babiló~i~, en_tre
corpo que tornou possível este trabalho e, principalmente, a obra de Peter século n e 0 final do século VI. Este grupo surgiu de urna das ram1ficac;oes
0
Brown, publicada seis meses antes que eu iniciasse este projeto, sobre o do judaísmo do século I e sua hegemonía cultural sobre a massa dos judeus
qual exerceu urna influencia mareante. Os amigos e colegas a seguir leram o cresceu sem interrupc;óes ao longo <leste período. Foi nessa época que as
manuscrito <leste livro, ou pelo menos partes dele. A sua ajuda foi imensa, e maiores obras literárias do judaísmo rabínico - os midrashim e os Talmu-
em outra disciplina alguns deles teriam que aparecer como ca-autores: Ro- des _ foram escritas. Os seus cognatos históricos mais próximos, ponanto .
bert Alter, Mieke Bal, Albert Baumganen, David Biale, james Boon, Alice sao os Padres da Igreja. Quando me refiro aqueles que ocupam quálquer
Boyarin, jonathan Boyarin, Sidney Boyarin, jeremy Cohen, Arnold Davidson, carao religioso no judaísmo em geral, emprego o termo rabino. .
0
Carolyn Dinshaw, Howard Eilberg-Schwartz, Arnold Davidson, Arnold Ei- Todos os textos escritos em hebraico e aramaico citados neste livro lo-
sen, Steven Fraade, john Gager, Alon Goshen-Gottstein, Stephen Greenblatt, ram traduzidos por mim, a nao ser quando indico o contrário.
Erich Gruen, David Halperin (MIT), Sarah Hammer, Verna Harrison, Galit
Hasan-Rokem, judith Hauptmann, Christine Hayes, Marc Hirshman, Elliot
Horowitz, Moshe ldel, Karen King, Ross Kraemer, Chana Kronfeld, joshua
Levinson, john Miles, Haim Milikovsky, Shlomo Naeh, llana Pardes, David
Resnick, Amy Richlin, Chana Safrai, Dov Samet, Elissa Sampson, David Sa-
tran, Ellen Spolsky, Dina Stein, Ruth Stein, David Stern, Brian Stock, Guy
Stroumsa, Deborah Weissman, Shira Wolosky, Eli Yassif e, principalmente,
Regina Schwartz e Froma Zeitlin, que leram e comentaram diversas versóes
<leste livro. Também gostaria de agradecer aos editores da Critica! Inquiry,
ao conselho editorial da Representations, a um leitor anónimo do Yale ]oi1r-
nal of Criticism, a vários leitores anónimos da University of California Press
e ao Grupo de Crítica Cultural dejerusalém.
Meu filho, jesse Boyarin, e um amigo, Shoham Carmi, "descobriram" a
pintura reproduzida na capa.*
Finalmente, agradec;o aos meus alunos da Universidade da Califórnia,
em Berkeley, pelo seu estímulo intelectual e amizade, "deles mais do que
ninguém".

* N. E. - A capa do original americano.


Introduc;ao

ISRAEL CARNAL

Tractatus adversus ]udaeos, Agostinho faz a seguinte


0 acusa~ao contra "os
judeus":

Considerai o Israel segundo a carne (1 Cor 10,18). Este nós sabemos que é o
Israel carnal; mas os judeus nao compreendem este significado e, assim,
tomam-se indiscutivelmente carnais.
(vii, 9)

Agostinho sabia do que estava falando. Havia urna diferen~a entre judeus e
C:ristaos que tinha a ver corn o corpo. Ele parte de um comentário hermenéu-
tico feito por Paulo na Epístola aos Corintios, a respeito de u m versículo da
Bíblia Hebraica que fala de "Israel". Paulo afirma que o versículo se refere a
Israel "segundo a carne", isto é, "Israel" em seu sentido literal. Trata-se de
urna alusao a doutrina platónica de que a realidade externa - os objetos
concretos - sao urna fach ada que possui urn significado espiritual. lsso se
aplica tanto as palavras do texto quanto as coisas do mundo. Assirn como
há um Israel segundo a carne, há também um "Israel segundo o espírito": os
gentíos (e os judeus) que acreditavam em Cristo. Agostinho se utiliza de um
paradoxo delicado para argumentar que o Israel segundo a carne - i. e., os
judeus - , pela sua própria insistencia no fato de ser o verdadeiro Israel, mos-
tra nao compreender que existe um sentido camal e outro esp iritual para a
escritura. Ao se ater a esta interpreta~ao , este povo está para sempre conde-
nado a manter um caráter indiscutivelmente carnal, e nao espiritual 1 • Esta
leitura concreta de Israel o confina definitivamente ao dominio da carne. Ou
seja, as práticas hermenéuticas dos judeus rabínicos 2 , sua existencia corpo-

Para urna interpretac;ao brilhante da hermenéutica de Agostinho a respeito do judaísmo e


do cristianismo, ver Robbins (1991, 21-70). Foi ao lera obra de Robbins que cncontrei um
titulo para este livro.
2 o tempo de Agoslinho, o judaísmo rabínico era pralicameme a única modalidade de ju-
daísmo a.inda existente. No entamo, como Brian Stock me indicou, é pouco provável que
/ntrodur;iio 15
14 Introdur;ao

ral enquanto povo e a importancia que davam ao sexo e a reproduc;ao sao a comunidade religiosa. A remoc;:ao da sexualidade - ou, numa atitude mais
estigmatizados pelo Padre como elementos "carnais". Esta acusac;ao contra humilde, o afastamento do individuo do ambito da sexualidade -
simbolizava a total disponibilidade para Deus e os outros seres humanos, que
os judeus - a de que eram indiscutivelmente carnais - foi o topos de gran-
está associado ao ideal da pessoa inteiramente devotada.
de parte dos escritos cristaos no final da Antigüidade. (Brown 1987, 266-67)
Neste livro, procuro explicar esta prática de Agostinho e de outros que,
como ele, caracterizavam os judeus como um povo carnal. a verdade, pre-
Apesar de estabelecer nesta passagem urna oposi<;ao entre um judaísmo e
tendo demonstrar que a noc;ao patrística recorrente de que o elemento que
um cristianismo reilicados, o próprio Brown mostra que esta nao é a taxono-
distingue os crista.os dos judeus rabínicos é o discurso do corpo (e, princi- mía mais relevante, pois o gran rifuto da sexualidade, assim como a sua acei-
palmente, da sexualidade) está essencialmente correta. Também examinarei
tac;ao (ainda que ambigua) por parte dos rabís, também tem origens sociais
as conseqüencias desta diferenc;a na construc;ao dos gen eros e outros aspec- judaicas. Brown coloca explícitamente esta questao em outro trecho, próxi-
tos da vida social dentro do judaísmo dos rabis que produziram a literatura
mo aquele citado acima:
talmúdica e de seus seguidores3 .
Apesar de várias obras atuais homogeneizarem as divergencias entre os Costuma-se d izer que a repulsa ao corpo humano já era comum no mundo
discursos ·~udaico" e "cristao" a respeito da sexualidade numa hipotética tra- pagao. Parte-se, entao, do principio de que ao se afastar de suas raízes
dic;ao judaico-crista, Peter Brown, um dos grandes intérpretes modernos dos judaicas - onde predominavam atitudes otimistas em relac;:ao a sexualidade e
Padres da lgreja, acredita que a diferenc;a fundamental entre o cristianismo e ao casamento, encarados como parte da criac;:ao de Deus - a lgreja crista
o "judaísmo" está na maneira como o corpo e o sexo sao encarados pelas assumiu a ideología sombria do ambiente pagao em que estava inserida.
duas culturas: Trata-se de urna visao distorcida. O contraste fácil entre o pessimismo pagao
e 0 otimismo judaico despreza a importancia da renúncia sexual como um
A divisao entre cristianismo e judaísmo era mais forte neste ponto. Na meio de se atingir urna devoc;:ao fervorosa no judaísmo radical que deu
interpretac;:ao adotada pelos rabís, a sexualidade era um adjunto permanente origem ao cristianismo.
(Brown 1987, 266)
da personalidade. Apesar de ser potencialmente turbulenta, era possível
'.11oderá-la - assim como as mulheres, apesar de serem respeitadas pela sua
importancia para a existencia de Israel, eram impedidas de se intrometer nos Ao contrário de Brown, neste livro darei mais atenc;ao ao lado judaico desta
negócios mais sérios da sabedoria masculina. Trata-se de um modelo baseado equac;ao. Procurarei trac;ar um esboc;o da cultura do corpo neste "judaísmo
no controle e na segregac;:áo de um aspecto necessário, mas irritante, da radical" e na reac;ao rabínica contra ele. Gostaria de propor, entretanto, que
existencia. No caso dos cristaos, ocorreu o contrário. A sexualidade tomou-se o "judaísmo radical" de Brown nao era tao radical assim; na verdade, repre-
um marcador de alta carga simbólica, justamente porque se acreditava que sentava um aspecto típico da ideología de várias subculturas judaicas em
pudesse ser extirpada do individuo que assumisse cenos compromissos. torno do Mediterraneo". Além disso, no século 1 era impossível separar as di-
Pensava-se que este desaparecimento, mais do que qualquer outra
ferentes orientac;óes a respeito do corpo entre grupos "judaicos" e "cristaos".
transformac;:ao humana, era um sinal das qualidades necessárias para liderar
A religiao de Paulo deve ser encarada como um movimento paralelo a outros

Agost_inho estivesse se referindo a judeus vivos. É importante lembrar que o termo judalsmo
rablnico ml.o se refereape~as ao judaismo praticado pelos rabís, mas também aquele prati-
cado por todos que os ace1tavam como sua autoridade espiritual. 4 É possivel que Brown estivesse se referindo a seitas apocalipticas, como a do Mar Mono.
Os indicios arqueológicos, porém, indicam que apesar de periodos em que havia um retrai-
3 ~e~ho plena consciencia de que esta colocar,;ao levanta sérias questoes teóricas e epistemo-
log1cas,. algumas das quais fogem totalmente de meu controle. Quem eram os seguidores mento das rela<;óes sexuais, esta ndo era urna comunidade celibatária. Quaisquer que fos-
d?s rabi? Qua! é o sentido da expressao "vida social"? Se dizemos que urna cultura é misó- sem as origens espirituais de Paulo, a comunidade crista nao se desenvolveu a partir de
gma (ou nao ~ misógina), o que isto significa, ou melhor, a quem estamos nos referindo? grupos apocalípticos de judeus palestinos. A rninha tese de que as atitudes dos Padres cm
Aos homens, as mulheres, as elites, hoi polloí? O que significa dizer que urna determinada relar,;ao a sexualidade estao mais ligadas ao judaismo helenizado de Fllon e seus congéne-
culc~ra é misógina? Estañamos ignorando a existencia das mulheres como parte da cultura,
res, do que aos grupos apocalípticos de lingua semltica, é conftrmada pelo fato de tanto Fí-
ou s1?1plesm~nte afirmando que elas seriam vitimas de urna falsa consciencia, tendo tam- lon quanto josefo descreverem os Essénios como um grupo celibatário. Pode ou nao ter
havido um grupo deste tipo; de qualquer maneira, os dois judeus helenizados declararam
b~m m ternahzad~ a misoginia? Tentarei evitar as armadilhas mais óbvias do meu próprio
dLScurso. Nao creio, porém, que isto será sempre posslvel. os seus valores através desta afirmar,;ao.
16 lntrodu~:iio
lntrodu<;iio 17

judaísmos ~~leniza.dos; . só
é possível detectar urna separar;áo entre forma óes Antigüidade, pois havia urna lenda popular segundo a qual Fílon teria se
c~ltural-relig10sas JUda1cas e cristas num período mais tardios Um d _r; d' convertido ao cristianismo. Certos estudiosos recentes chegaram a atribuir
c1os que apóiam esta hipótese sao d . os m !-
Paulo e Fílon - lh ~s gran es semelhanr;as existentes entre algumas de suas obras a autores cristáos (Bruns 1973; ver também Winston
. . - seme. anr;as que nao podem ser explicadas através de urna 1981, xi-xii e 313-14).
poss1vel míluenc1a reciproca pois as atividade d d .
n;;::
d . ' s os o1s eram paralelas e se
em reg1o_es muito afastadas (Chadwick 1966 e Borgen 1980). As afi-
es_ e~rre_ ~1lon e textos como o quano evangelho e a E ístola aos -
A tese central <leste livro é que o j udaísmo rabínico - a formar;áo cultu-
ral da maioria dos judeus falantes do hebraico e do aramaico, na Palestina e
na Babilonia - desenvolveu representar;óes e discursos a respeito do corpo
breus sao md1c10s menos interessante . . . p He
te~t?s já conhecessem Fílon (Borgen sit6º;~ :;J;¡~:::::~~ul~~~)aulor~s <lestes e da sexualidade bem diferentes de seus equivalentes de língua grega, in-
cluindo boa parte do cristianismo. A minha hipótese central, que será exa-
afm1dades como um · di · d · ceno estas
Medir - . m c10 gera 1 e que havia urna koiné cultural em todo o minada e discutida ao longo de todo este livro, é a de que o judaísmo
er~':::eo oriental, que pode apresentar variar;óes regionais mas rabínico atribuiu a mesma importancia ao corpo que as outras formar;óes
compam a dos mesmos elementos em toda a área , que
atribuíram á alma. Para os judeus rabínicos, o ser humano é definido por
Além disso, como Wayne Meeks ( 1983 33 ) · ..
. . l d ¡- , e outros Jª observaram é um corpo - animado, é claro, por urna alma - enquanto que para os ju-
1mposs1ve e mear urna fronteira nítida entre os ·udeus h . '.
deus rabínicos no século 16 Po l d . J elemstas e os JU- deus hel~nistas (como Fílon) e os cristáos (pelo menos os falantes do grego,

:ás~ existía; por outro, jud~us ~e~:Uªadº~s~ :::;::\~rea~~~~~ pre;[:;1 :::~: como Paulo), a essencia do ser humano era urna alma que habitava um cor-
po8. Para a maior parte do mundo greco-romano, esta dualidade ontológica
mesmos como fariseus e Pa 1 '
Gama~i-el, lí~er hipotéti~a fac:á~ ;~:i~~:::~7ct:. ~: !~~~~oi:i:
o da Raban
tornou-se urna maneira de pensar táo natural quanto o consciente e o in-
consciente é para nós hoje em dia. Os judeus proto-rabínicos da Palestina,
;;:~o, Ja no seculo I havia tendencias que, apesar de nao serem ~em ~e~~~~ porém, parecem ter oferecido urna enorme resistencia a estas nor;óes dualis-
, separavam os falantes d 1 .
helenismo dos f 1 d ¡· o grego, re at1vamente aculturados pelo
do com a ,rninhaa~nt-es as mguas semíticas, menos aculturados. De acor-
8 Ver Boyarin (1992) para ourros indicios que apóiam e qualificam esta aíirmai;ao. Para im-
d potese, estas tendencias foram se pola rizando ao l
o tempo acabando por criar d. . ongo pedir desde já interpretai;óes equivocadas, é preciso lembrar que este d ualismo nao implica
foram ab~orvidos por u~a - IVlsáo mar~ante entre os he lenistas, que necessariamentt em um desprezo pelo corpo. Seria um erro definir Paulo (e muitos outros

nascente movimento r=~~~1~~t;~t~ ~os _ann-hele~istas, que formaram o


cristaos primióvos, mesmo no grupo dos dualistas) como um simples adepto do ódio ao
corpo. Enquanto alguns dualistas representam o corpo como o túmulo da alma, Paulo o

::::/~!ªql~~j: ~:r.sido igno_ra~o peloes ~~~i~ ~e;i:;::::;~ª!~t:x~~~i;:~ apresenta como urna vestimenta e !he confere um papel positivo, mesmo no éschaton. o
entamo, a essencia do ser humano, para ele, aparentemente era a alma; o que estou procu-
xao com o platonism::~~i~ cnstao p~ssou a se caracterizar pela sua cone- rando afirmar aqui é que para os rabis, ao conrrario, ela era o próprio corpo.
Na afirmai;ao de E. P. Sanders a seguir, podemos encontrar um exemplo análogo, em
(entre o judaísmo de Fílon e : o _ne_o p _atom)·s'.1:1º· Na verdade, esta conexao que se percebe a preseni;a comum de urna visao platonista na sociedade helenista e sua au-
cnsnamsmo Ja era reconhecida na própria sencia no judaismo rabinico:

5 Afirmo mais urna vez que, ao contrário de Robinson, acredito na validade de se discutir um
Ao fazer esta afirmai;ao, sei que estou me lan ando n .
no da interpretai;ao de Paulo Por e <;b .o meto de urna grande disputa em tor- caráter geral da religHlo que se toma dominante num determinado meio geografico/cultu-
. nquamo asta dizer q [ ·¡· . ral. Creio que faz sentido falar de "platonismo", por exemplo, quando nos referimos á no-
versas maneiras de se ler 0 corpus . .' .. ue estou ami 1anzado com as di-
. pau1m o, me 1utndo a fase · ( i;ao generalizada no mundo helenista de que a verdade <leve ser identificada com aquilo
mterpretai;ao revisionista de Gaston ( 1987) N l. mame mas pouco convincente)
Radical jew: Paul and the Politics of Identit . ~x o liivro _que estou escrevendo no momento, A que é imutável. Robinson poderla protestar que esta é urna categoría essencialista demais e
que me levam a conclusao acima. y, p caret em detalhes, Deo volente, os motivos pouco dina.mica, e talve.z seja posslvel apresentar um desenvolvimento histórico para este
6 Va rios dos ensaios editados por Neusner Fre . h conceito, m as a categoría do platonismo, como foi definida acima, realmente aponta para
também abordam estas questóes prin . , l ne se McCracken-Flesher {ver Collins 1985) algo que, na minha opiniao, era real no mundo antigo (trata-se, aliás, de urna noi;ao notável
<;a: O Século ¡• (73-282). , c1pa mente na sei;.a o intitulada "Definindo a Diferen,. pelo fato de estar ausente na maior parte do judalsmo palestino).
7 (Sanders 1977, 24)
Nao podemos nos esquecer de que também hav · . . .
d io. Tertuliano seria o exemplo m . ób . la anu-Helemstas no Cristianismo mais Lar-
. lºd
matena 1 acle ou corporalidad d . .a1s VIO. Em alguns aspect
_ . .
os, a sua v1sao a respeito d:i Argumentarei neste Uvro que é possivel encontrar um padrao semelhante no que diz
. e a essencta humana é lh .
sua tdeologia da sexualidade ser oposta a deles. seme am e a dos rabis, apesa r de respeito a idéia platOnica (ou melhor, platonista) de que a alma é a essencia do ser humano
e simplesmente habita o corpo.

18 lncroduqoo
lntroduqiio 19

tas. a minha opiniao, esta resistencia se deve, ao menos em parte, a urna


questao de política cultural. Como já vimos, urna conseqüéncia da ado~ao da Mesopotamia, apresenta este tema com enorme precisao ao citar um j u-
de no~óes dualistas pelos cristaos, pelo menos depois de Paulo, fo¡ a alegori- deu, ao mesmo tempo que demonstra o seu desprezo por ele:
za~ao da realidade de Israel fara de sua existencia material. A idéia de que o
Escrevi para vós, meus queridos, para falar da virgindade e da santidade, pois
aspecto físico é apenas um sinal, ou urna sombra, daquilo que é verdadeira-
soube de um judeu que insultou um de nossos irmaos, os membros da igreja.
mente real abriu caminho para a rejei~ao da sexualidade e da procria~ao , da
Ele disse: YSois impuros, pois nao tomais esposas. !\fas nós so mos mais
importancia da filia~ao e da genealogia, e do sentido histórico ou concreto santos e virtuosos, pois ternos filhos e multiplicarnos nossa semente pelo
da escritura, ou seja, da própria memória histórica. Por outro lado, a enfase mundo".
no carpo como o centro da significa~ao humana nao permite esse tipo de (Wright 1869, 355) 13.
desvaloriza~ao • A sexualidade, portanto, nao é apenas um subitem da ética:
9

ela está no centro de diferentes formas de autocompreensao tanto indivi- Algumas dessas divergencias permanecem até os días de hoje. Veja, por
10
dual, quanto coletiva • Um individuo e urna coletividade que atribuem á exemplo, a diferen~a entre as afir ma~óes : "eu nao sou cristao" e "eu nao sou
sua existencia um caráter basicamente espiritual terao um comportamento judeu". A primeira fala de cenas cren~as e compromissos, enquanto a segun-
bem diferente de um individuo e urna coletividade que véem o carpo como a da aponta para urna genealogía. Este livro explorará as origens históricas
sede privilegiada da esséncia humana. O judaísmo rabínico e os cristianis- dessa diferen~a no período formativo do judaísmo rabínico (que deu origem
mos primitivos apresentavam diferen~as mareantes no que diz respeito as a praticamente todo o judaísmo posterior) e do cristianismo.
suas ideologías da sexualidade e, portanto, do individuo e do coletivo. As A disputa em torno do carpo entre o judaísmo rabínico e seus competi-
duas correntes, entao, nao podem ser subsumidas a rubrica do judaico-cris- dores helenistas (isto é, falames do grego, sejam eles seus antepassados ou
tianismo, um termo que, se significa alguma coisa, só adquiriu este significa- contemporaneos), incluindo Paulo, manifestava-se em áreas aparentemente
do na modernidade • Símbolos religiosos, como a encarna~ao e a gravidez
11
dispares da prática sócio-cultural, em terrenos tao distantes quanto a ques-
virginal, sao importantes sinais de diferen~as culturais que agiam n o nivel tao dos sexos e do matrimonio, dos métodos de interpretaGiio da escritura e
da prática social e nao apenas no da teologia (Gager 1982) 12 • Já no final da das ideologías ligadas a etnicidade e a história. A própria organiza~ao deste
Antigüidade, os judeus e os cristaos se davam canta dessa diferen~a em tor- livro é, de cena maneira, um reflexo dessas diversas áreas culturais e procu-
no do carpo e a apontavam (com urna aspereza mútua) como uma área cen- ra mostrar como elas interagem no discurso do judaísmo rabínico. De fato,
tral de discórdia cultural entre as duas correntes. A acusa~ao dos judeus o grosso do livro (coma exce~ao do último capítulo) lida diretameme como
contra os cristaos, segundo a qua! estes eram deficientes porque nao se casa- discurso da sexualidade per se, mas o seu argumento será complementado
vam e tinham filhos, nao era inteirameme desconhecida. Afraates, um padre por este capítulo, onde se fará urna tentativa de demonsLrar como o mesmo
tipo de diferen~a entre o judaísmo rabínico e seus contestadores de cultura
9 Verna Harrison chamou minha atenc;ao para o fato de que esta formulac;ao estabelece urna grega se aplicava a interpreta~iio literal ou figurada da emicidade judaica.
correspondenci~ estreita demais entre o corpo e a sexualidade, e que existem alguns auto- Para os judeus do final da Antigüidade, na minha opiniao, o rito da circunci-
res cnstaos (prmc1palmeme os padres capadocios) que da.o urna imponllncia positiva ao
corpo, apesar de repudiarem a sexualidade. Eles simplesmente encaravam a sexualidade sao tomou-se o ponto mais polémico dessa disputa, justamente por concen-
como urna entidade secundária e temporária dentro do corpo. Creio que esta observac;llo é trar as representa~óes da importancia da sexualidade, da genealogía e da
extre'.11~mente pe.r tinente e nao deve ser esquecida. A obra de Caroline Bynum sobre a res- especificidade étn ica numa única prática corporal. A disputa entre os dois ti-
surre1c;ao na trad1c;ao ocidental (1991) aponta para a mesma direc;ao.
10 Devo esta formulac;ao brilhante ajohn Miles. pos de religiosidade judaica, definidos em linhas gerais aqui, passa do dis-
11 Arg.umentarei mais adiante que, apesar das enormes variac;oes dentro dos crislianismos e curso direto sobre o sexo, os géneros e o casamento para um debate indireto
do JUdaismo rabinico, a .imponllncia quase universal da virgindade, mesmo para os pensa- sobre a língua e a interpreta~ao da história, da escritura e das práticas ri-
dores cnstaos que valonzavam o casamento, produz urna divergtncia irreconciliável entre
esta formac;ao e o juda!smo rabinico, que encara a sexualidade e a procriac;ao como atos da
tuais. De qualquer maneira, trata-se ainda da mesma disputa. Vejo, entao,
mais alta significac;ao religiosa e que, como autores cristaos da Antigüidade apontaram urna conexao entre as interpretac,:óes da sexualidade e as interpreta~óes da
com toda a razao, viam na virgindade urna questao problemática.
12 Em Boyarin (1992, 497), argumento que a encamac;ao de Deus nao representava urna afir-
mac;ao da corporalidade, mas sim urna hipostasiac;ao do dualismo.
13 Para urna discussao mais detalhada desta passagem fasciname, ver capítulo 5, n. 10.
20 lncrodui;iio lntrodui;iio 21

etnicidade; mais do que isso: já se tinha consciéncia desta conexao no final Esta congruéncia entre Paulo e Fílon é um dos aspectos de seu pensa-
da Antigüidade 14• mento que mostra como os dais compartilhavam da mesma formai;ao , den-
Assim, quando Agostinho condena os judeus á eterna carnalidade, ele tro do eclético mundo mental do platonismo médio que caracterizava o
estabelece urna conexao direta entre a antropologia e a hermenéutica. Já que · <laísmo de língua grega (Chadwick 1966) 16 • A sua prática de leitura alegó-
os judeus se recusavam a fazer urna leitura "no espirito", estavam condena- JU . - b. -
rica, assim como a de seus descendentes, está baseada numa opos1i;ao ma-
dos a permanecer "Israel na carne". Segundo a sua teoria, entao, a alegoria ria onde 0 significado existe como urna substancia incorpórea, antes de ser
era urna maneira de se relacionar com o carpo. Em outra parte do mundo en~arnado pela língua. Trata-se, entao, de um sistema dualista, onde o espi-
cristao, Orígenes também atribui o fracasso dos judeus a urna hermenéutica rito precede o carpo e lhe é superior17 . O midrash, o s~stema he~enéut~co
literal, que nao está disposta a ir além da linguagem material para descobrir do judaísmo rabínico, parece refutar este dualismo, evltando as dico~om1as
o seu espirito incorpóreo (Crouzel 1989, 107-12). Esta maneira de pensar entre interior e exterior, visível e invisível, carpo e alma, que caractenzam a
sobre a linguagem se desenvolveu junto aos Padres, inicialmente, através da interpretai;ao alegórica. O midrash e a alegoria platónica sao técnicas apos-
influencia de Paulo, que emprega "na carne" e "no espirito" para se referir,
tas do carpo.
respectivamente, ao que é literal e ao que é figurado. Romanos 7,5-6 é um As minhas afirma<;óes nao devem ser entendidas como urna espécie de
exemplo mareante dessa estrutura hermenéutica: "Pois quando ainda estáva- interpretai;ao apologética moderna de um judaísmo rabínico (muitas vezes
mos na carne, nossas paixóes pecaminosas, remexidas pela lei, estavam em simplificado pelo rótulo de "judaísmo") que "aceitarla" ou "afirmarla" sem
ai;ao para gerar frutos para a marte. Mas agora estamos livres da lei, mortos problemas as coisas Deste Mundo, a carne e a auséncia do diabo. Na minha
para aquilo que nos prendia. Podemos, entao, servir no novo ser do Espirito, opiniao, urna cultura que adota urna posii;ao ideológica segundo a qual a se-
e nao no velho da letra". Na verdade, a mesma metáfora é utilizada inde- xualidade é um benefício oferecido por Deus aos seres humanos - tanto
pendentemente de Paulo por Fílon, ainda que para transmitir a mensagem
aposta:
teremos urna nor;ao melhor das coisas de que sao simbolos; além disso, escaparlamos da
censura de muitos e das acusar;óes que certamente nos fariam". Assim como Paulo, ele
É verdade que receber a circuncisao nao representa a supressao do prazer e
aparentemente cumpria Literalmente os mandamentos, pelo menos alg~mas .vezes, para
de todas as paixóes, ou o abandono da arrogancia ímpia, segundo a qua! a fugir da censura dos out.ros j udeus. É importante observar que Fílon e . apenas .º
mente acreditava ser capaz de gerar pelo seu próprio poder: isso, no entamo, representante mais destacado de toda urna escola que encarava da mesma mane1ra a Blbha
nii.o é motivo para anularmos a lei que estabelece a circuncisao. Estaríamos e a própria filosofía da linguagem - como se pode perceber pela censura ~ue fa~ aqueles
ignorando a santidade do Templo e de milhares de outras coisas, se nii.o que dao atenr;ao apenas ao significado alegórico e ignoram as observancias físicas. Ver
fossemos dar atern;ii.o a mais nada, além daquilo que nos é revelado pelo Winston (1988, 211).
16 A idéia de que a formar;ao de Paulo estarla calcada no judalsmo helenista já foi proposta di-
significado interno das coisas. Nao, é preciso encarar estas prálicas externas versas vezes. Ela geralmente surge com urna certa conotar;ao pejorativa, como se apenas o
como o corpo e os seus significados internos como a alma. Conclui-se, entii.o, judaísmo palestino fosse "autentico". Termos como frou.xo e, a inda mais surpreendente: fr'.o
que assim como é preciso pensar no corpo, pois ele é a morada da alma, e j urídico sao empregados para descrever o suposto ambiente helenista de Paulo. Esta 1dtta
também é preciso dar atenc;ao ii. letra das leis. fo¡ recentemente descartada, panindo-se do principio de que nao há urna divisao bem deli-
(Fílon 1932, 185) 15 mitada entre o judaismo helenista e o palestino. Além disso, se abandonarmos a avalia<;ao
a post Jacto da história, nao há nenhum motivo para aceitar as an~gas. nor;óes de margem :
centro, que costumavam ser utilizadas para descrever os grupos judaicos do final da Anu-
güidade, nem para considerar Filon menos autentico do que Raban Gamaliel. A. questao
14 Repare que nos deparamos com a mesma conexao no conílito dos Shahers, coreshantistas e das diferen<;as culturais entre os judeus falantes do grego e os falantes do hebraico pode
santificacionistas com o cristianismo "tradicional" na América do século XIX. Também para ser abordada num novo território, que nao implica um julgamento de valores. Neste con-
estes grupos, como observa Kitch (1989, 67). o celibato estava Ligado a "Biblia como urna texto, considero as semelhanr;as entre Paulo e Fllon, dois homens que provavelmente nun-
história simbólica, e nao literal. Eles se opunham ao batismo com a água e ao uso de pao e ca tiveram nenhum contato entre si, um indicio muito importante para se compreender os
vinho no sacramento, baseando-se no mesmo argumento: estes ritos eram encarados como
judeus falantes do grego no século l.
atos simbólicos, e nao como gestos literais e concretos". Todos estes grupos acreditavam 17 Limitei o escopo desta afirmar;ao para levar em conta out.ros tipos de alegoría, incluindo fe-
num Deus andrógino, cuja imagem era restaurada na comunhao espiritual celibalária entre nOmenos como a interpretar;ao que José dá aos sonhos do Faraó e urna tradir;ao desautori-
os homens e as mulheres. O paralelo, ponanto, é perfeito. zada que faz urna leitura alegórica de Homero. Quando emprego o termo alegoría,
15 Para urna boa e concisa descrir;ao da hermenéutica de Fílon, ver Fraade (1991, 11-14). portanto. ele nao de.ve ser entendido como um sinOnimo para o tipo de alegoria com que
Fílon compromete um pouco o seu argumento ao admitir que "se nós as observarmos,
estamos familiarizados a partir de Fllon.
22 lmrodu<;iio lntrodu<;iio 23

com fins de procriac;:ao quanto outros objetivos positivos - acaba se depa- difícil imaginar um ambiente fara do texto, ou até mesmo interligar os dife-
rando com cenos problemas além de soluc;:óes. De falo, havia grandes coníli- rentes momentos do Talmude, ou seja, fazer urna leitura conjunta das len-
tos sociais dentro das sociedades que o judaísmo rabínico ajudou a formar. das biográficas e do discurso em tomo das leis e do ritual. Urna vez que nao
lsso aconteceu justamente por causa da forc;:a com que esta posic;:ao foi ado- é mais possível acreditar que as histórias reíletem eventos "verdadeiros" da
rada, pois a insistencia na corporeidade e na sexualidade como os funda- vida "real" dos "autores" do discurso legal, tem-se a impressao de que este
mentos primários da esséncia humana geralmente faz com que a surgiu do nada 19• Se as narrativas biográficas perdem o seu referencial, os
diferenciac;:ao entre os sexos se torne urna característica dominante da for- te.xtos legais deixam de ter autores e ficam isolados das histórias 20 .
mac;:ao social. Alguns cristaos (fossem eles de origem judaica ou gentia) po- No enramo, a noc;:ao de que a literatura rabínica - nao importa o seu ge-
diam declarar que nao havia nem grego nem judeu, nem homem nem nero - seria autónoma (no sentido que a Nova Crítica dá a este termo) pa-
mulher. Os judeus rabínicos nao podiam fazer isso, pois as pessoas sao car- rece ir contra todas as intuic;:óes que ternos a este respeito. Nenhum outro
pos e nao espiritas. Ora, os carpos tém urna forma masculina e outra femini- texto possui urna forma que demonstra com tanta clareza a sua inserc;:ao
na e, através de práticas e técnicas materiais (como a circuncisao e os tabus numa prática social e numa realidade histórica. Como seria possível, entao,
relacionados a comida), também sao marcados como gregos e judeus. historicizar a leitura que faremos <lestes textos, <liante do ceticismo histórico
que discutí acima? Proponho que a velha noc;:ao de que existe urna conexao
entre os diversos géneros de textos rabínicos, e entre estes e a sociedade,
LE DO O SEXO pode ser preservada se entendermos a literatura como um discurso - um
discurso no sentido foucaultiano da palavra, mais bem definida por Hodge:
Já que a principal fonna de discurso <leste livro será a interpretac;:ao de tex-
tos literários de vários tipos, é preciso responder a seguinte questao: em que Se a literatura é encarada como um fenómeno contingente, produzido dentro
sentido se pode dizer que estou lendo "sexo" aqui? Em que sentido se pode e pelo discurso, entao um novo conjunto de objetos e conexóes torna-se
dizer que estou fazendo algo mais do que ler alguns textos literários? A diretamente disponível para o estudo: os processos sociais que íluem pelos
questao da relac;:ao do texto literário com outros aspectos da cultura sempre textos "literários", ligando-os de forma indissolúvel a outros lipos de texto, e
os significados sociais que sao produzidos de diferentes maneiras, a partir de
esteve presente na interpretac;:ao moderna de textos rabínicos. O escudo tra-
diferentes loci sociais. Este conceito, seguindo a definic;ao essencial de
dicional da literatura rabínica, baseado numa abordagem historiográfica po-
Foucault, dá enfase a literatura como um processo, e nao apenas como um
sitivista, encarava a narrativa biográfica dos rabis como urna elaborac;:ao conjunto de produtos - um processo de natureza intrínsecamente social,
legendária de histórias "reais", isla é, histórias que continham um cerne de conectado em cada ponto de seu desenvolvimento aos mecanismos e
verdade biográfica que podia ser revelado através de um cuidadoso trabalho inslituic;óes que servem de mediadores e controladores do íluxo de
de arqueología literária 18 • Os relatos biográficos sobre os rabís eram tratados conhecimento e poder dentro da comunidade.
como um "pano de fundo histórico" para seus postulados haláquicos (basea- (Hodge 1990, viii)
dos na lei ritual) e suas interpretac;:óes midráshicas da Bíblia. Neste livro, ao
contrário desta abordagem, estas narrativas serao tratadas como textos ex- Esta noc;:ao de literatura como um processo ligado de forma indissolúvel a
tremamente complexos, como ficc;:óes que exigem comentários para explicá- ourros processos sociais é muito útil para o estudo de textos talmúdicos. Ela
las. Vários esludiosos já se deram canta de que estes textos sao nos permite perceber como os significados sociais produzidos pelas discus-
essencialmente relatos literários, isto é, fictícios, sobre homens e (as vezes)
mulheres que provavelmente existiram, mas que funcionam basicamente 19 A solm;ao encontrada por jacob eusner, que prefere encarar todos os textos como urna
como significanles de valores desta cultura, ou seja, como exemplos (Friin- cria~ao de seus redatores finais (1990), também nao resolve este problema, pois sabemos

kel 1981 ). Contudo, se lemas cada narrativa como urna "ficc;:ao", fica muito tao pouco a respeito <lestes redatores quanto dos rabís citados.
20 Assim, até mesmo Weller (1989), que procura lera série de histórias em Ketuvot como urna
produ~ao ideológica (o que consegue fazer com urna cena dose de sucesso), simplesmente
ignora o contexto haláquico, parlindo do principio de que as histórias foram inseridas no
18 Ainda é possivcl cncomrar trabalhos que empregam este método, como, por exemplo, texto por associa~ao, e nao como um esfor~o para compreendcr a mesma dim'lmica cultural
MacArthur (1987). e os mesmos problemos codificados pelo texto haláquico.
24 Introdw;iio
lntrodur;iio 25

sóes a respeito da halaká e as inovac;óes preservadas pelos documentos sao 3. É preciso adotar algum tipo de materialismo histórico (nao necessariamente
reproduzidos nas histórias sobre os rabis que estes mesmos documentos marxista).
apresentam. Se nao é mais possível escrever longas biografias sobre os rabis, 4. É preciso demolir boa parte da rígida barreira que hoje em dia separa as
capazes de explicar (ainda que parcialmente) as suas intervenc;óes no ambi- ciéncias humanas das sociais.
to da halaká (como, por exemplo, a clássica biografia de Rabi Akiva escrita
p~r Louis Finkelstein [1964]), podemos, aparentemente, unir a halaká a aga- Este axioma e seus postulados exigem urna reestruturac;ao radical da con-
da para escrever urna história de processos discursivos e loci sociais de ins- cepc;ao que ternos do trabalho do crítico, ou mesmo de toda a cultura huma-
tituic;óes e mecanismos comunitários. ' na. O fato de eles serem colocados desta maneira e de serem tomados como
Como aplicar esta idéia a interpretac;ao dos textos? Depois de abando- um principio de trabalho já representa urna prática transgressora, principal-
narmos a noc;ao de que os textos simplesmente refletem as intenc;óes de seus mente se levarmos em conta a divisao atual entre as ciencias "humanas" e
autores ou a realidade extratextual de seus referenciais, que alternativa nos "sociais".
resta, além de urna leitura intenextual? A resposta seria urna utilizac;ao ade- Um pressuposto básico da prática do novo historicismo - que, porém,
~uada do conceito de intertextualidade, principalmente o tipo específico de toma-se bastante problemático no nível teórico - é que o documento, a pro-
mtertextualidade praticado por um grupo de estudiosos chamados de "no- clamac;ao, o contrato, o diário ou a carta fomecem algum tipo de acesso a
vos historicistas"21 urna versao menos elaborada e mais transparente das práticas discursivas
O paradigma de pesquisa conhecido de modo geral pelo nome de novo do período, servindo, assim, como um contexto que pode explicar o "tex-
historicismo é, na verdade, mais urna forma de intuic;ao do que urna teoria. to"23. Num ensaio escrito dentro do modelo do novo historicismo, o rneu
De fato , alguns dos estudiosos que se enquadram nesta linha se definem ex- texto comec;aria com urna anedota histórica retirada de urna fonte documen-
plicitamente (ainda que com certa ironía) como sendo "contra a teoria"22. De tal palpável - urna carta, um livro de memórias ou um memorando ao rei
qualquer maneira, creio ser possível encontrar um principio básico capaz de - e depois procuraría estudá-la lado a lado com um texto literário por exce-
estabel~cer este paradigma como urna intervenc;ao teórica importante, além lencia, desconstruindo, por assim dizer, a dicotomia existente entre o literá-
de explicar a convergencia de estudiosos calcados em interesses e métodos rio e o documental. Nao se trata, porém, de mostrar que o documental é
bastante diferentes. Este principio é a rejeic;ao da idéia de que a literatura e a literário, mas sim que o literário tem o mesmo caráter documental do docu-
arte formam ~m dominio autónomo e atemporal, de validade e importancia mentoH. Quando estudamos o Talmude, entretanto, a imagem do documen-
transcendenta1s. Ao contrário, esta visao também seria condicionada histori- to deve ser abandonada de urna vez por todas. Todos os textos disponíveis
camente: ser~a ~~ con~truto ideológico que surgiu numa determinada época apresentam o mesmo status epistemológico. Todos possuem as mesmas ca-
~ lu~ar da h1st?na social. Colocada de forma mais positiva, esta afirmac;ao racterísticas documentais e literárias; na verdade, surgem dentro das mes-
implica ~ue a literatura e a arte constituem apenas urna das práticas através mas obras, das mesmas capas. Nao há literalmente (praticamente) nada fora
d~s qua1s urna cultura organiza a sua produc;ao de significado e valores, do texto.
alem de se estruturar. Pode-se tirar vários postulados desta hipótese: Stephen Greenblatt prefere adotar urna outra terminología e urna outra
definic;ao ao invés de novo historicismo: a poética cultural, isto é, urna espécie
l. O estudo de urna obra lilerária nao pode ignorar outras práticas de crítica que pode estar baseada ern diferentes teorías a respeito da cultura,
sócio-culturais.
e que procura estudar a literatura corno urna prática social (Greenblatt
2. A chamada alta cultura nao possui um privilégio essencial sobre a cultura
1990) 25 . Sob os auspicios da poética cultural, o problema deixa de existir.
"popular" ou de "massa". nem se pode dizer que esta é um reflexo mais fiel
da sociedade do que aquela. Estas distinr;óes representam urna prática
cultural e urna intervenr;ao ideológica que devem ser questionadas. 23 este senúdo, o "n ovo historicismo" muitas vezes parece apenas urna versiio mais sofistica-
da do velho modelo histórico da critica literária, que reduzia o texto a um reílexo da "r eali-
dade" em que foi produzido.
21 Proponho mais adiante, po rém , q ue este tenno seja abandonado. 24 Fineman (1989) conduz urna invesúgac;Ao séria e relevante da impo rtancia da anedota no
22 Refir~-,'."e ~s?ecificameme a Walter Benn Michaels, um dos autores do ensaio "Contra a estilo novo-historicista.
Teon a , on gmal. Ver Thomas (1991). 25 A grande implicac;iio desta mudanc;a é que se deixa de acreditar que urna teoría em particu-
lar (fara dos axiomas e postulados que apresentei acima) esteja em jogo neste processo.
26 lntrodU<;oo 27
lntrodu9ao

Ao comrário da velha crítica historicista (incluindo a de Marx) e dos méto- será encarar os textos como tentativas (necessariamente fracassadas) de pro-
dos formalistas defendidos pela ova Crítica - que postulavam urna dife- por soluc;óes utópicas para cenas tensóes culturais. Sao estas tensóes que
rern;a. essencial. entre a literatura e outras práticas, senda que , no pnme1ro
· · me interessam. Ao observar os efeitos da energía empregada por esta cultura
mov1mento, a lneratura seria um "reflexo" destas e, no segundo, seria autó- na sua tentativa de suprimir ou (colocando a questao de forma mais positi-
noma ~m relac;ao a elas - a poética cultural simplesmente anula a oposic;ao va) lidar com estas tensóes, espero utilizar as sensibilidades ou até mesmo
en~~ literat~~a e outras atividades. A literatura é apenas urna das diversas as técnicas das diversas hermenéuticas da suspeita para trazer á tona as
praucas socia1s, mas na cultura em questao (assim como em outras culturas pressóes que se escondem por trás delas. Como astrónomos que descobrem
amiga:) é praticamente a única a que ternos acesso. Já que nao se pressupóe carpos celestiais pequenos demais para serem observados por telescópio
u~a d1ferenc;a essencial entre a literatura e outros textos, nem entre a produ- através dos efeitos de distorc;ao que exercem sobre outras entidades, tomarei
c;ao ~e te~tos e qualquer outra atividade, podemos encarar os indícios a nos- as ambigüidades presentes nestes textos como indicios de tensóes existentes
s~ d1sposH;ao como urna prática social, fazendo urna Ieitura co njunta de na sociedade. Como um substituto para a riqueza documental que histori-
diversos subtextos, buscando, assim, um acesso ao discurso da sociedade cistas de climas mais favoráveis tém a sua disposi<;ao, adotarei um método
em que foram prod~zidos. O tipo de pesquisa específico e a estratégia crítica de argumentac;ao segundo o qual temas abordados (ás vezes implícitamente)
emprega~os _n~ste hvro, p~rtanto, sao os da poética cultural, que respeita 0 por textos de diversos géneros da literatura talmúdica - incluindo o mi-
aspecto ~Iterano ~e .deterrn~nados textos (isto é, de textos marcados pela sua drash - giram em tomo das mesmas problemáticas sociais. Darei o nome
~omplex1dade retonca e cujas características formais sao importantes na sua de Jorma~iio discursiva a complexos textuais <leste tipo 26 •
mterpretac;ao), ao mesmo tempo que procura compreender o seu funciona- A poética cultural, portanto, oferece as ferramentas necessárias para se
mento dentro de sistemas de práticas sócio-culturais mais amplas. dar urna explicar;ao unitária á halahá (lei religiosa) e á agadá (narrativa),
Urna vez que, como indiquei acima, a cultura do Talmude é urna forma- principalmente no que diz respeito ás lendas biográficas sobre os rabis, pois
c;~o que n~o ~presenta ~raticamente nenhum indício "fora dos textos'', é pre- as duas fazem parte das mesmas formar;oes discursivas. Os velhos pesquisa-
aso sub:mu1r ?utros npos de associar;ao pela correlar;ao (mais empolgante dores da história judaica procuravam nas lendas biográficas um "cerne" de
e produnva) existente entre o documento e o texto literário. Aparentemente verdade histórica, que servi.ria como um "pano de fundo" para explicar cer-
nao há nenhum ponto de entrada que permitiria fazer urna Jeitura critic~ tas opinioes legais e cenas inovac;óes, enquanto estudiosos de urna gerar;ao
dos textos, apontan.do para os conflitos ideológicos e as relac;óes de poder mais receme defendiam a "autonomia" da agadá enquanto literatura (Fran-
presentes nesta soc1edade. De fato, a maioria das pesquisas realizadas em kel 1981). O método da poética cultural, por outro lado, combina novamen-
torno dest~ cultura sao acriticas, limitando-se a reproduzir a ideologia das te a halahá á agadá, mas de urna maneira completamente diferente. Parto do
vozes dommantes que estruturam os seus textos. A minha prática neste livro pressuposto de que a halaká e a agadá representam tentativas de lidar com
os mesmos problemas culturais, políticos, sociais, ideológicos e religiosos.
As duas, portanto, estao interligadas, mas nao da maneira como acreditava o
Passa-se a postu~ar, entao, urna nova formai;:ao disciplinar que parte <lestes axiomas e os- velho historicismo. Nao podemos ler a agadá como um pano de fundo para
t~lados.. Os s~gutdores da P?~tica cultural, ponanto, nao esliio comprometidos com as Xou-
r~mas f1los6f1cas d~ ~1~tonc1smo, que implicam em urna difereni;:a irredutlvel entre os a halahá. Ao contrário: a halahá pode ser vista com um pano de fundo e
diversos periodos h1stoncos. Alguns praticantes da poética cultural podem ser historicistas urna explicac;áo para a maneira como as biografias dos rabis foram estrutu-
enquanto . outros ?odem questionar o historicismo enquanto urna doutrina. Enquanto un: radas - nao porque a halahá represente urna "realidade" que a agadá sim-
~e70 ma~s genérico, ela separa este paradigma de pesquisa do trabalho especifico da esco-
6
a e er cley (qualquer que seja o sentido desta expressao - afina!. o estilo e 0 tema da
plesmente ' reflete", mas sim porque a halaká, senda urna prática normativa
obra de Greenblau sao completamente diferentes daqueles da obra de Joel Fine já estipulada, apresenta, quase por definic;ao, urna ideología mais explícita.
exe'.11plo). Este trabalho gira basicamente em torno do inicio do período moderno~ª:~:;~ Parto do principio de que o fato de urna história ou opiniao acerca da hala-
proJetos de d.o mmac;ao e colonizac;fo, além das relac;óes de poder entre os sexo¡ eram
questóes parucularmente vividas. O "novo historicismo" tambérn · ' ká ser atribuida a um determinado rabi - nao importa se isso representa urna
b · · ~ . se caracteriza por urna
ase teonca oucauluana, onde o poder é encarado como o fator dominante de praticamen-
te todas ~s o~ras cul.rurais. A ampliac;ao do paradigma para "poética cultural" permite que 26 Espero ter deixado claro com esta afirmac;ao por que métodos cr!Licos de caráter formalista
esta esco a se!a considerada um afluente de urna correme de pesquisa mais ampla em que nao se enquadram neste projeto especifico de pesquisa. lsso nao significa, contudo, que eu
questóes teóricas estao sempre em discussao.
os descartei de forma geral.
28 lntrodu<;oo !ntrodu<;oo 29

verdade "histórica" ou ndo - tem urna enorme importancia semiótica e pode percebidas como tais). Sempre que urna ameac;a deste tipo era detectada, a
ser interpretado como parte do discurso rabínico 27• Nao pretendo negar a sua reac;ao era imediata e vigorosa. a Palestina, um número cada vez maior
possibilidade de haver um cerne de "verdade histórica" em algumas, ou mes- de judeus recorría a violencia aberta e a guerrilha. A nascente seita crista nao
mo em todas as narrativas. Quera apenas mostrar que este núcleo é insigni- estava isenta destes ditúrbios. De fato, é posslvel chegar a urna conclusa.o
ficante ao lado da história da prática discursiva que pode ser montada bastante segura ao se examinar os indicios acima: sernpre que as crenc;as ou
as práticas desta nova seita eram consideradas urna arneac;a as instituic;óes e
através <lestes materiais. Assim, no capítulo S estudarei em detalhes a histó-
as tradic;oes j udaicas, os seus membros sofriarn urna pressao enorme dos
ria romantica - e obviamente ficticia - do casamento de Rabi Akiva. Segun-
outros judeus para permanecerem fiéis a sua heranc;a judaica específica.
do a interpretac;:ao apresentada neste capítulo, este relato nao teria muita (Dunn 1990, 135)
relac;:ao com a vida e a época de Rabi Akiva, que viveu na Palestina do século
II, mas tem muito a nos dizer a respeito do casamento e das práticas sexuais
Apesar de Dunn se referir aqui as controvérsias que ocorriam dentro do m~­
dos judeus babilónicos nos séculas IV e V. De qualquer maneira, o fato de a vimento cristao no século 1, creio que estas pressóes também podem expli-
história girar em tomo de Rabi Akiva é extremamente importante, e será in- car, mutatis mutandis, boa parte do desenvolvimento da literatura rabínica a
terpreta do ma1s . adi anteiaD
. a mesma maneira, o complexo de textos que partir do século II, quando o cristianismo passa a ser, com urna forc;:a cada
representa Rabi Eliézer como um asceta e um "misógino" também é impor- vez maior, a principal ameac;:a "as institui<;óes e as tradic;:oes judaicas". Ape-
tante dentro da produc;:ao de um determinado tipo de religiosidade rabínica, sar desta situac;ao sócio-cultural ser levada em considerac;ao neste livro, ndo
quer a sua atribuic;:ao a este rabi seja "autentica" ou nao 29 .
procurarei fazer exatamente um relato histórico, mas sim urna análise tex-
tual sob o signo da poética cultural.
Urna das ferramentas empregadas pela poética cultural é a descric;ao de
A Cultura Rabínica como urna Cultura Colonizada práticas literárias e culturais como formas de resistencia ou conciliac;ao ( ou
entao de resistencia conciliatória e conciliac;ao resistente) diante das práticas
A cultura judaica na Palestina romana era urna cultura colonizada. A forc;:a dominantes de urna cultura colonizadora. Em diversos pontos da minha dis-
política dominante era, é claro, a Roma paga (e, mais tarde, crista). As in-
cussao, argumentarei que qualquer momento do desenvolvimento textual ou
fluencias culturais dominantes eram aquelas exercidas pelo helenismo no fi-
cultural rabínico representa exatamente uma resistencia <leste tipo. Assim,
nal da Antigüidade (Bowersock 1990). A literatura dos rabís se formou no capítulo I, "Considerai Israel segundo a carne: sobre a antropologia e a
dentro desta matriz cultural e política. Apesar de, na minha opiniao, ser sexualidade nos judaísmos do final da Antigüidade", analiso as estratégias
muito dificil descobrir a que eventos históricos específicos um determinado hermenéuticas dos judaísmos helenista e rabínico no que diz respeito ao pri-
texto rabínico reagia (Boyarin 1989), nao há dúvida de que este contexto meiro ser humano. Em ambas as formac;:óes, encontramos interpretac;óes
histórico geral possui urna enorme importancia interpretativa. james Dunn que solucionaram o problema da existencia de duas histórias da criac;ao -
descreveu com grande eloqüencia a situac;:ao político-cultural ameac;:adora em Génesis 1 e 2 - ao adatar o principio de que o primeiro ser humano a
em que viviam os judeus do século 1:
ser criado, o homem e a mulher de Génesis 1, era um andrógino. Dentro da
formac;ao helenista, porém, Fílon, alguns dos padres ortodoxos e diversos
Quaisquer que fossem os detalhes destes vários incidentes, a situac;ao geral é
gnósticos viam este andrógino primário como urna entidade sem carpo e
bastante clara. Durante o periodo em que ocorreu o distúrbio em Antióquia,
os judeus tiveram que se precaver contra atitudes que eram urna ameac;a
acreditavam que o ser humano corporal descrito em Génesis 2 representava
constante aos seus direitos nacionais e religiosos (ou que, pelo menos, eram
um ato de criac;ao isolado30. Vários rabis interpretavam a cria~ao de Génesis
1 como um ente andrógino, dotado de um carpo, que seria separado no ca-
pítulo seguinte para formar os dais sexos. Proponho que estas duas versóes
27 Quanto a questao da biografiados rabis, ver Green (1978). da criac;ao nao sao apenas urna invenc;ao literária: elas possuem um aspecto
28 Discu_Li co.m maiores detalhes um exemplo semelhante num ensaio que fala especificamente
das htstónas de martirio sobre Rabi Akiva (Boyarin 1989).
29 Hoshen (1990) é um excelente exemplo da aplica~ao deste método a Rabi Elié.zer, ao mes- 30 Ver capitulo l para urna cliscussao da liga~o deste mito a famosa passagem de Aristófanes
mo tempo que contesta a visao que se costuma ter deste personagem como um misógino. em Plata.o.
30 lntrodur;iío l11trodur;iío 31

análogo ou homólogo na prática social, pois enquanto o primeiro grupo en- duplamente parcial <leste livro. As minhas leituras enfocam apenas parte da
cara a forma mais elevada da vida humana como um espirito sem sexo e história; além disso, sao leituras caracterizadas pela situac;ao do intérprete
sem corpo (ideal que as comunidades celibatárias procuravam atingir), os (eu) como um herdeiro da tradic;ao formada pelos textos. Este livro nao tem
rabís viam o casamento e a relac;ao sexual como um retorno ao estado pri- a menor pretensao á objetividade e á imparcialidade. Sou ao mesmo tempo
mário e ideal do ser humano. A poética cultural nos permite analisar a cone- um "judeu rabínico" e um "feminista"32 • Este posicionamento duplo (que al-
xao existente entre a prática "literária" da interpretac;ao bíblica e a gumas pessoas considerariam um oximoro) representa a minha motivac;ao
instituic;ao social do casamento, sem recorrer a um reducionismo que colo- para escrever urna obra <leste tipo, alérn de dar forma ás construc;óes e leitu-
caria a interpretac;ao bíblica como o produto de urna ideología, nem a um ras específicas que farei a partir <lestes textos e de suas interconexóes. Urna
idealismo segundo o qual ela seria a produtora da ideología. A interpretac;ao vez que esta tomada de posic;ao pode ser interpretada como urna perda da
e a ideología sao práticas que coexistem dentro do mesmo campo sócio-cul- significac;ao histórica do meu discurso, será preciso me deter um pouco
tural. Assim, quando citam o mito do primeiro andrógino, mas invertem o mais neste assunto.
seu significado, os rabis estao empregando uma esrratégia clássica, através A leitura de qualquer produto cultural, ainda que de algo relativamente
da qua) a cultura colonizada procura abalar a hegemonía do colonizador. simples como a letra de urna música, exige a tomada de diversas pressuposi-
i;óes antes da leitura - incluindo, muitas vezes, a própria pressuposic;ao de
que um determinado texto é autónomo e pode ser estudado isoladamente de
Para Além do "Pensamento Rabínico" ourros textos. Este fato fica ainda mais evidente ao se fazer urna tentativa,
como no caso desee livro, de abordar práticas sociais bem mais amplas e
É justamente este método de passar da leitura de determinados textos para a complexas, como o discurso da sexualidade. O leitor deve escolher os textos
leitura mais ampla de toda urna cultura que me permite afirmar que estou que seráo examinados, aqueles que servem de contexto para os outros, a for-
de fato "lendo sexo" - isto é, lendo o discurso do sexo na cultura talmúdi- ma como se deve ler um texto específico e como ele deve ser interpretado
ca, e nao apenas alguns documentos literários. A minha intenc;ao é escapar em conjunto com outras obras. Algumas destas escolhas sao conscientes, en-
do paradigma do "pensamento rabínico", como se a literatura rabínica fosse quanto outras sao sugeridas ao leitor pela visao ideológica que este tem do
urna espécie de filosofia manqué. Em vez disso, pretendo estudar a cultura mundo. De qualquer maneira, urna leitura é sempre urna leitura: a abertura
como um todo, como um conjunto de práticas ínter-relacionadas de forma de urna janela, e nao a comtemplac;ao de um espelho - pelo menos, essa é
complexa, tanto textuais quanto concretas31 . Podemos ver, entao, que as dis- urna das maneiras de encará-la. Levando-se em coma as rninhas preocupac;óes,
cussóes e as decisóes tomadas em torno da halaká , assim como as histórias a minha formac;ao e a minha noc;ao do que é natural ou possível, é inevitável
sobre os rabís, ou até mesmo a leitura da Biblia, sao maneiras arravés das que a minha interpretac;ao, principalmente ao trabalhar numa escala mais
quais a cultura expressa as suas preocupac;óes e tensóes mal resolvidas e ampla, seja em parte urn produto de todos estes fatores. Ao mesmo tempo,
procura solucioná-las. É possível aprender muito sobre a cultura e seus p;o- ela nao deixa de ser a interpretac;ao de um texto, urna leitura que mobiliza
blemas, ou até sobre as diferenc;as entre os seus diversos ramos, a través do ao máximo os meus conhecimentos de filología e história. Estou, ao menos
estudo em conjunto dessas práticas discursivas. ern parte, "na" cultura talmúdica. A minha leitura sem dúvida será um refle-
xo desta identificac;ao. Gostaria de frisar, no encanto, que este livro nao tem
urn caráter apologético ou defensivo, pois a minha intenc;ao nao é apresen-
NA tar argumentos que encobririam ou suavizariarn cenos aspectos do judaís-
mo rabínico que considero problemáticos do ponto de vista ético, nem
O "na" de "Lendo o Sexo na Cultura Talmúdica" o subtítulo deste livro, defende-lo dos ataques de urna religiao rival. Em ve.z disso, pretendo recons-
também deve ser interpretado. Estou lendo o sex~ "na" cultura talmúdica. tituir a partir dele um "passado útil", descobrindo e assinalando as áreas
Esta preposic;ao funciona em dois sentidos: ela serve para indicar o caráter

32 Quamo as dificuldades em torno da questao de ser um "homem feminis1a", ver Jardine e


31 Para urna observac;ao semelhame, feita em cutre contexto, ver Bynum (1991 , 245). Smi lh ( 1987) e, principalmeme, Healh (1987).
32 lntrodu~iio Jncrodu~ao 33

dentro da cultura que possam ser de algum auxílio hoje ero dia, e descobrir rna coro que me identifico. Em outras palavras: como proteger
palroente d e U .
maneiras de contextualizar e historicizar os seus aspectos mais desagradá- . ha cultura, sem falsear a "verdade" histórica, nem o meu comprorrusso
veis, de modo a podermos superá-los. Para que este passado possa nos ser ª ~Uld
éttco e roo
dificar as suas práticas atuais no que diz respeito a divisao entre
.
útil, é preciso nao haver dúvidas (pelo menos para mirn) de que se trata de -, Como acontece em varias áreas do conheetmento, Franz Rosenz-
os sexos. . - d.
urna reconstitui~ao plausível, baseada nos dados a nossa disposi~ao . Para . be'm aponta para urna solu~ao aqm, urna solu~o a que ele a o
we1g tam . d
atingir este ideal, utilizei ao máximo a habilidade e o conhecimento que te- cna· urna apresenta~ao franca e direta da cultura, capaz e
nome d e aPolo o· · . . . -
nho das línguas e da história cultural e textual das obras estudadas. alizar as suas práticas tanto a nivel esrrurural quanto histonco. E
contextu 1 1 . .d ..
Franz Rosenzweig fez a seguinte observa~ao: · contudo, evitar a arrogancia do darwi.nismo .cu .tura
preciso, . , ou seJa, . a .1 eia
de que a culrura se desenvolve a partir de formas .pnrnmvas para atmgir ou-
Por que a palavra apología recebeu urna conotar;ao tao negativa? Parece ter rras mais avan~adas. Ao invés de se fazer urn JUlgamento .da cultura em
acontecido o mesmo com a profissao apologéúca por excelencia, a advocacia. - e· preciso descreve-la de forma crítica. Prefiro detxar de lado o
questao,
Um preconceito generalizado contra o advogado ve na sua tarefa legíúma norne de apología e chamar esta rnodalidade de crítica cultural (que ~rocuro
apenas o ato de menúr. Talvez urna cena roána profissional pare<;a justificar praticar neste livro) de crítica generosa. Este método procura qu~snonar a
este preconceito. Mesmo assim, a defesa pode ser urna das mais nobres - · do Outro a partir dos deseJ·os e das necessidades
ocupar;óes do homem - ou seja, quando invesúga a fundo cada questao e pranca . de aqm e agora, .
sern reificar este Outro ou tentar julgá-lo dentro da sua epoca e lugar. Cre1?
vasculha a alma humana, ignorando o recurso mesquinho da menúra. Assim,
ela se jusúfica através da verdade, e nada além da verdade. Neste senúdo
que esta tática pode ser aplicada a qualquer discussao de urna cultura anu-
mais amplo, a apología literáría também pode oferecer urna defesa. Ao fazer ga, mas ela se coma essencial no rneu caso, em que procuro tratar do meu
isso, ela nao estaría tentando enfeitar nada, muito menos evitar algum ponto róprio passado. A crítica feíta ao Orientalismo (Said 1979), enquanto urna
p rática que procura julgar as outras culturas e hornogenetza- . . 1as, tarob ern
' se
em que apresentasse alguma vulnerabilidade. Ao contrárío, tomaría como
base de sua defesa os pontos de maior perígo. Em outras palavras: defendería ~plica a boa parte da crítica e da história escrita a respeito dos nossos ante-
o todo, e nao apenas um aspecto em parúcular. Nao se trataría de urna defesa passados. . _
no senádo tradicional, mas de urna apresentar;ao aberta - nao de alguma Como afirmei acirna, os fenómenos culturats podem ser mterpretados de
coisa ao acaso, mas de algo em sua própria provincia. diversas maneiras. Quanto mais complexo o fenómeno, rnaior a quantidade
( 1923, 272) de leituras diferentes que ele pode receber. Os textos do judaísmo rabínico e
a forma que damos a sua totalidade sao, portanto, necessariamente arnbí-
O que Rosenzweig chama de "apologia", prefiro chamar de crítica cultural. A guos. Representantes posteriores do judaísmo atribuíarn aos textos rabíni~os
minha obra parte do principio de que a tarefa da crítica é "transformar o urn determinado sentido e fecharaln ou tras possibilidades de cornpreensao.
mundo", a mesma que Marx atribuí a filosofia. Aceito o desafio de Mártir Isto nao significa que a sua interpreta~o seja errada ou falsa, ou que eu te-
justino, que perguntou a uro antigo interlocutor: "És, entao, um filólogo, nha descoberto o verdadeiro significado do judaísmo rabínico, mas esta
mas nao amas os feítos, nem a verdade? E preferes ser urn sofista a um ho- constata~o abre a possibilidade de novas leituras para estas mesmas obras.
rnero prático"? Pretendo contribuir para a transforma~ao saudável, nao "de já que a nossa situa~ao cultural é diferente daquela em que se encontrava~
algurna coisa ao acaso, mas de algo na minha própria provincia". A minha os rabís medievais, cabe a nós, estudiosos e críticos da cultura, descobnr
provincia é o judaísmo rabínico, nao só porque pratico esta religiao e me novas facetas dos mesmos textos - facetas que podem nos ajudar a recons-
considero urn herdeiro de suas tradi~óes e rnemórias, mas também porque a truir a nossa própria versao da cultura e das práticas em tomo da divi.sao
escolhi como o terreno de rneu discurso intelectual. Isso significa dizer que entre os sexos. Esta descoberta só seria apologética (no piar sentido da pala-
desenvolvi alguma facilidade para ler os seus textos e urna certa familiarida- vra) se fosse colocada como o resgate de urna interpreta~ao autentica que te-
de coro seu estilo e conteúdo. ria sido distorcida, se ocultasse cenos aspectos do texto contrários a nova
Estas declara~óes de inten~ao e identidade me obrigarn, creio eu, a con- leitura, ou se negasse ourras tradi~óes a mesma oportunidade de serem rein-
duzir urna prática crítica da leitura <lestes textos. A questao que se impóe terpretadas e reconstituidas.
diante de mirn é como realizar a crítica de urna cultura do passado, princi- Gastarla de me deter um pouco mais neste ponto. Tomou-se urna tática
34 lntrodur;oo lntrodur;ao 35

bastante comum entre os historiadores feministas da religiao atribuir impul- lise que compare formac;óes culturais inter-relacionadas, mostrando que
sos feministas legítimos a sua própria tradic;ao, ao mesmo tempo que se im- cada urna representa "soluc;óes" complementares para determinados "proble-
puta o machismo das práticas sócio-culturais do presente a influencia mas" culturais. Entre outras coisas, este método de apresentac;ao permite
perniciosa dos "outros". Esta prática está aliada a um estilo de escrita em que se fac;a urna comparac;ao entre culturas diferentes sem qualquer tipo de
que a tradic;ao do autor é delineada como um todo heterogeneo, enquanto a eriunfalismo, pois cada formac;ao apresenta urna crítica a seu "outro".
dos outros é apresentada como urn bloco monolítico. Pode-se perceber urna Espero que o meu discurso tenha conseguido evitar todas estas armadi-
tendencia <leste tipo em cenas obras cristas que apontam para o feminismo lhas éticas e intelectuais. Tenho plena consciencia de que, mesmo nas cien-
de Jesus, ou mesmo de Paulo, e explicam os seus lapsos desastrosos como cias exatas, as expectaeivas ajudam a dar forma aos resultados da pesquisa,
resíduos ou retrocessos "judaicos" ou "rabínicos". ao citarei os exemplos e que isLO é ainda mais verdadeiro nas ciencias hermeneuticas. Gostaria, en-
mais vulgares <leste tipo de escrita, mas mesmo urna pesquisadora meticulo- ea.o, de convidar o leitor a reformular as suas expectativas em relac;ao ás rep-
sa como Elizabeth Schüssler Fiorenza nao escapa completamente <leste erro, resentac;óes dos dois sexos e da sexualidade numa tradic;ao amiga. Assim
reproduzindo com aprovac;ao o trabalho de um aluno que explica o retroces- como só se sabe se o bolo saiu bom na hora de comer, somente a plausibili-
so de Paulo entre Gálatas e Corintios como urna "retomada de seus precon- dade deseas interpretac;óes para outros leitores (principalmente aqueles que
ceitos rabínicos"! (Fiorenza 1983, 63-64 ). Nao menciono esta questao nao compartilham das minhas crenc;as) pode demonstrar o sucesso ou o fra-
apenas para repetir um protesto que muitos já fizeram (e coro bons resulta- casso desee projeto.
dos, pelo menos no caso de Fiorenza), mas sim para lembrar que eu mesmo
sofro urna enorme eentac;ao de fazer o mesmo tipo de coisa: pintar a tradic;ao
rabínica como um movimento cuja essencia nao apresentava nenhuma een- CULTURA TALMÚDICA
dencia misógina, marginalizando os indícios de seu desprezo pelas mulhe-
res como um resíduo popular e helenista, que, na verdade, seria urna Como urna das grandes ambic;óes deste livro é tomar a cultura talmúdica
característica do cristianismo. Tentei conseantemente evicar esta tentac;ao, acessível a estudiosos que nao sao eruditos hebreus, gostaria de fazer urna
nem sempre com grande sucesso. Estou cada vez mais convencido de que a pausa para apresentar a literatura com que estarei trabalhando.
história da recepc;ao fecha diversas opc;óes de leitura dentro de qualquer tra-
dic;ao, e que urna das grandes tarefas da crítica é recuperar aquelas que fo-
ram suprimidas. Os Documentos da Literatura Rabínica
Por outro lado, nao pretendo condenar o meu próprio projeto ao fracas-
so, descrevendo cada formac;ao cultural como um corpo heterogeneo a pon- Apresento a seguir urna breve introduc;ao aos documentos da literatura rabí-
to de nao haver diferenc;as importantes entre as diversas culturas. A minha nica:
leitura da cultura talmúdica parte do princípio de que o judaísmo rabínico
como um todo era diferente de seus "outros" - o judaísmo helenista e o A Mishná A Mishná é sem dúvida o documemo rabínico mais antigo que
cristianismo paulino (ou pós-paulino) - apesar de levarmos em conta a he- foi preservado. Trata-se de um compendio, altamente editado, de opinióes
terogeneidade interna de cada formac;ao. Um perigo que paira sobre esta sobre a halahá proferidas por diversos rabís ao longo dos dois séculos que
obra desde o inicio, entao, é a tendencia (ligada ao problema descrito no pa- precederam a sua publicac;ao. Foi redigida no inicio do século lll.
rágrafo anterior) de fazer urna comparac;ao triunfalista entre o judaísmo e o
cristianismo, onde o judaísmo surgiría como urna religiao a favor do corpo e A Tosefta A Tosefta é o comentário mais antigo sobre a Mishná. Ela ofere-
do sexo, sendo, assim, bem mais saudável. De fato, este tipo de comparac;ao ce um paralelo muito próximo á Mishná, apresentando vers6es expandidas
é muico comum na recente apologia judaico-americana (David Biale 1992). ou modificadas das seneenc;as que comp6em o texto anterior. As suas tradi-
Urna vez que esta nao é a minha intenc;ao, dediquei urna quantidade de tem- c;oes muitas vezes se op6em á Mishná.
po considerável á elaborac;ao de um método de apresentac;ao a que dei o
nome de dialética cultural. Através desee método, pretendo realizar urna aná- Os Midrashim "Haláquicos" Há um conjunto de textos que costuma ser
36 lntrodu<;if o
lntrodu<;iio 37
chamado de midrashim "haláquicos" ou "tanaíticos" - obras rabínicas de
comentários sobre a Torá cujo principal interesse está na descoberta ou na Babilonia, onde a cultura persa ainda era a mais forte. Em diversos pon-
comprovac;ao das práticas legais e rituais dos rabis na Torá Escrita. A sua tos <leste livro apontarei para alguns sinais destas diferenc;as. o entanto, os
nature.za e origem tém sido muito discutidas nos ciclos académicos. Perten- seus textos - principalmente os rnais tardios, como os Talmudes - sao an-
c;o á escola que considera estes textos nem mais, nem menos auténticos do tologias enciclopédicas de citac;oes, abrangendo todas as épocas e regióes
que qu~l.quer outro texto rabínico - ou seja, eles seriam antologias altamen- em que se deu a produc;ao da cultura rabínica. ao há como dizer com cer-
te mod1f1cadas de materiais mais antigos, e nao pseudepígrafos. Na sua for- teza se urna determinada passagem, atribuida a urna autoridade em particu-
ma atual, estes textos provavelmente foram redigidos nos séculos III ou ¡yn_ lar, é um reflexo do tempo e lugar em que esta viveu, ou se ela está ligada
apenas a cultura em que o texto foi escrito (ao contrário do que afirma
Os Midrashim Agádicos Um outro tipo de literatura rabínica que será im- eusner 1990). De fato, nem a redac;ao dos textos rnidráshicos e talmúdicos
p~rta~te na ~ossa ~scussao sao os comentários rabínicos sobre a Bíblia ee pode ser atribuida com certeza a alguma data, área ou grupo de pessoas em
nao so a Tora! ), CUJa preocupac;ao básica é explicar a sua narrativa e nao as particular. Mesmo dentro de textos específicos há indícios de que diversas
im~licac;óes de seus textos legais para a halaká. Estes midrashim , agádicos sec;oes receberam a sua forma definitiva em momentos históricos diferentes.
mu1tas ve.zes preservam materiais mais antigos, apesar de terem sido com- Por estes motivos, creio que seria impossível produzir um livro como The
po~t~s s~cu~o~ depois das obras da categoria anterior, atingindo 0 seu atual Body and Society, de Peter Brown, a respeito da cultura rabínica do período
estag10 hterano nos séculos V e VI3 ". talmúdico. Ainda que eu fosse capaz de fa.ze-lo, isso só seria possível em re-
lac;ao a períodos posteriores. A obra de Brown depende da análise de dourri-
Os Talmudes Existem dois Talmudes: um foi escrito na Babilonia e 0 ou- nas produ.zidas por indivíduos específicos, cuja biografia, situac;oes de vida,
tro , n~ Pale~tina. ?~ dois sao (em linhas bastante gerais) contemporaneos contextos políticos e sociais, formac;ao filosófica, etc. sao até certo ponto co-
aos m1drash1m agad1cos. Trata-se de discussóes literárias de ambito geral, nhecidos. No caso da literatura rabínica do final da Antigüidade, contudo,
q_u e p~rt~m vagamente de comentários sobre a Mishná. Sao praticamente en- nao possuímos praticamente nenhuma informac;ao <leste tipo35. Sendo as-
c1cloped1as da cultura rabínica do final da Antigüidade. O Talmude da Babi- sim, sou abrigado a falar da cultura rabínica como um todo, apesar de saber
lonia tomou-se o texto de rnaior autoridade para todas as culturas judaicas que esta atribuic;ao representa apenas urna lacuna no nosso conhecimento.
medievais. Procurei indicar todos os pontos em que encontrei indícios de alguma dife-
renc;a entre as subculturas estudadas aqui. Podem-se encontrar exemplos de
tentativas <leste tipo nos capítulos 5 e 6, onde aponto para a existencia de
Entre a Babilonia e a Palestina: ideologias diferentes na Palestina e na Babilonia no que di.z respeito a cenas
O Mais Antigo e o Posterior questoes envolvendo a diferenciac;ao dos sexos e a sexualidade.

Ao falar da cultura talmúdica, nao pretendo sugerir que ela tenha assumido
urna forma homogénea ao longo dos seiscentos anos ern que se desenvolveu, A Dialética e a Descrir;do
nem nos do1s centros geográficos em que floresceu. Sern sombra de dúvida da Cultura Rabínica
havia diferenc;as consistentes entre formas mais antigas da cultura e seu de~
senvolvimento posterior, assim como havia diferenc;as entre a sua versao oci- A cultura rabínica estrutura a sua principal expressao literária de urna ma-
dental na Palestina, sob o dominio da cultura helenista, e sua versao oriental neira completamente diferente dos padroes culturais e literários com que es-

33 Para um_a opiniao contrária, ver eusne.r (1990) e a resenha que escrevi sobre a sua obra a 35 A obra de Ford (1989) chamou mais urna vez a minha atenc;ao para este ponto. Ford conse-
ser publicada no ]oumal of the American Oriental Society ' gue trac;ar diferenciac;óes precisas dentro do pensamento de Crisóstomo, baseando-se em
34 A_fim de e_vitar ~ualquer mal entendido, ndo estou suge~ndo que ternos acesso direto a tra- momentos distintos de sua vida como heremita e hispo . É impossivel fazer urna análise <les-
dtc;óe~ ma1s anugas através das atribuic;óes feitas nestas obras, ou em qualquer outro escri· te lipo a respeito das figuras rablnicas pré-islamicas. Muitas vezes náo sabemos se de fato
to rabm1co.
proferiram os ditos que !hes sao atribuidos e, nos casos em que a atribuic;ao seria verdadei-
ra, nao sabemos quando, em que circunstancias ou em que contexto literário ela se deu.
38 lmrodu~ao lntrodu~ao 39

tamos acostumados a lidar. Essas distirn;óes formais também sao o sinal e 0 bakhtinianos, pode-se dizer que os textos nao sao monológicos, e sim dialó-
elemento gerador de um outro tipo de significado cultural. A primeira é que gicos, apresentando vísóes diferentes a respeito de quase todas as questóes.
os textos apresentam urna estrutura claramente intenextual (dialógica), tal- Trata-se de um terreno já bastante conhecido. Esta característica dos tex-
ve.z mais do que quaisquer outros da história da literatura. Ao contrário de tos rabínicos já foi descrita muitas vezes como urna espécie de indecisao.
sist~mas literários que pressupóem ou criam autores para as suas obras, os David Stem fez um avanc;o salutar, deixando de lado as abordagens "teóri-
escntos do período rabínico sao todos anónimos (ver Fraade 1991 , 17). Eles cas" que procuravam explicar este fenómeno e passando a historicizá-lo em
sao apresentados como antologías de citac;óes e discussóes, como se tivésse- termos da estrutura social da comunidade rabínica (Stem 1988). Stem ob-
mos acesso á matéria-prima verdadeira das interac;óes verbais entre os rabís. servou que, ao contrário da opiniao geral de que a interpretac;ao rabínica se
A segunda característica formal (íntimamente ligada á primeira) é que os caracterizava pela dúvida e pela indeterminac;ao (Handelman 1982, 75), os
textos possuem urna estrutura basicamente dialética, tomando a forma de rabís do Talmude e do midrash defendiam as suas opinióes coro vigor (ou
discussóes entre os rabinos que na maioria das vezes permanecem em aber- até mesmo agressividade). Eles costumavam, inclusive, empregar expressóes
to. O texto nao resolve a disputa a favor de nenhum dos lados envolvídos. como "Até quando voce vai ficar amontoando este monte de besteira"? ou "O
Apesar de outras culturas literárias também registrarem divergencias e que voce sabe de agadá? Vá estudar as minúcias de urna halaká obscura"!
controvérsias, a semiótica social da polémica assume aspectos distintos Expressóes <leste tipo nao parecem indicar que estas pessoas tinham alguma
quando as discordancias aparecem em tratados de autores diferentes ou sob dúvida de que a sua interpretac;ao era a mais carreta. Além disso, o Talmude
a forma de urna dialética dentro do mesmo texto. Comparemos esta situac;ao conta vários episódios em que escalas de rabís entraram numa briga, ou
com a dos textos do cristianismo primitivo. Nao há, é claro, a menor dúvida algo pior, por causa de diferenc;as de opiniao em relac;ao á interpretac;ao e á
de que a igreja primitiva apresentava divergencias radicais em praticamente prática. A "indeterminac;ao", portanto, nao <leve ser localizada no nivel da
todos os assuntos, desde a cristología até os mandamentos da Torá e a cir- epistemología ou da teología, mas sim no de urna prática social que prefere
c~ncis~o, passan~o pela situac;ao do casamento. As diferentes opinióes, po- nao escolher entre opinióes diferentes de urna autoridade dialógica. Cada
rem, nao foram mcorporadas a livros onde eram colocadas numa relgc;ao rabi podía ter certeza de que a sua interpretac;ao era a correta, mas os textos
dialética entre si, sendo apresentadas em total pé de igualdade.. Ao invés dis- definitivos apresentam urna relutancia ou urna incapacidade para escolher
s_o, elas chegaram até nós sob a forma de urna série de tratados, alguns pau- entre opinióes conílitantes, e foi este fator que se tomou dominante neste
linos e outros antipaulinos. o final, a versao paulina foi vitoriosa e as momento cultural específico. Esta tendencia chega a um tal ponto que, ao
outras desapareceram36. O mesmo nao acontece na cultura talmúdica. Todas longo de urna discussao talmúdica, um argumento que apresenta a possibili-
as opinióes possuem a mesma origem literária. Em termos formais, apresen- dade de resolver urna controvérsia é considerado urna dificuldade [kushia] ,
tam a mesma autoridade. Sao provenientes da mesma fome. Nao há a menor enquanto outro que é capaz de restabelece-la é visto como urna soluc;ao [te-
possibilidade de aceitar ou rejeitar definitivamente qualquer urna delas. Na rutz]! Gerald Bruns descreve esta formac;ao de maneira bastante clara: "De
prática, é claro, foram tomadas decisóes posteriores a respeito da halahá um ponto de vista transcendental, esta teoría da autoridade é paradoxal,
para evitar o caos, mas o privilégio epistemológico da vísao dominante con- pois se apóia no caráter heteroglóssico do diálogo, na fala de muitas vozes,
tinuou a ser negado. Seria incoerente para um judeu afirmar ser um akivano ao invés de buscar o princípio lógico da univocidade, da fala de urna única
ou um meirita, pois a autoridade nao estava nas maos de um rabi em parti- opiniao. Ao contrário, a idéia de falar com urna única opiniao ( ...) é explici-
cular, e sim na comunidade dos rabís como um todo. Empregando termos tamente rejeitada; ela levaría apenas ao surgimento de diversas facc;óes"
(1990, 199). A implicac;ao desta afirmac;ao é que "falar com muitas vozes" é
urna alternativa para o partidarismo. lsso é verdade, no sentido que discutí
acima. Nao existe nenhuma facc;ao dentro do judaísmo rabínico, pois as opi-
36 No ~ue diz respeito ao crislianismo, é preciso relali vizar um pouco este ponto. Num certo nióes apostas foram todas incorporadas aos mesmos textos canónicos. O
senu~o.' as ~plstolas deutero-paulinas apresentam a mesma heterogeneidade da d ialélica ato de se declarar um adepto de Rabi Meir ou de Rabi Akiva acarretaría, por-
talmud1ca, amda que mio no mesmo grau. Ao fazer urna revisao constante das doulrinas de
Paulo, es tes textos oferecfam várias op~óes culturais a igreja paulina em forma~ao. Refiro- tanto, a negac;ao de parte do texto canónico. De fato, levando-se em coma as
~e, por exe m~lo, a maneira como os Haustfafel n das epístolas mais recentes fazem urna re- dificuldades de se confiar na atribuic;ao de sentenc;as específicas a autorida-
v1sao da doulrlna do casamento apresentada em Corinlios.
40 Introd119iio
Introdu9iio 41

de~ nomea~as pelo Talmude e o midrash, nao é possível sequer definir 0 que
tas e estas sao as palavras de Deus", sendo que nem mesmo Deus temo pri-
sena um akivano ou um meirira. Esta característica, por si só, já pode ser en-
vilégio de decidir qual interpretac;:ao é a carreta (Boyarin l 990c, 34-3 7). Ne-
tendida como urna prática cultural. As diversas ideologias, portanto, estao
nhuma tentativa de descrever a cultura rabínica ou algum de seus
sempre em diálogo urnas com as outras dentro desta cultura.
subsistemas pode deixar de levar em considerar;ao esta estrutura específica.
~ode-se . encontrar um exemplo mareante des ta tendencia num caso que É preciso reconhecer nao só que havia sernpre opinióes discordantes nurn
já fo1 menc10nado acima: os textos talmúdicos e midráshicos discutem ex-
determinado momento, mas que o próprio fato destas opinióes contraditó-
tensam~nte a possibilidade fundamental do primeiro Adiio ser andrógino ou
rias apresentarern o mesmo nível de autoridade tinha efeitos profundos na
masculmo, com o seu corolário a respeito da situar;ao ontológica do sexo e
natureza da prática social e na ideología desta forrnar;ao.
da mulher, sem que se chegue a nenhuma conclusao. A opiniao majoritária
O argumento central deste livro, entao, é que enquanto no nivel do deta-
parece ser a de que quando a Torá afirma que "homem e mulher Ele os
lhe a cultura rabínica é marcada pela heterogeneidade, esta própria hetero-
· criou", isso significa que Deus criou um andrógino. Comudo, nao há ne-
geneidade está calcada numa unidade fundamental: a nor;ao de que o ser
nhum me~anismo dentro dos textos que permita suprimir a outra opiniao.
humano é essencialrnente corporal. Esta idéia, que tern origem em causas
As duas v1sóes sao provenientes da mesma fome e apresentam a mesma au-
materiais, tomou-se a fonte de diversos aspectos da prática sócio-cultural
toridade, ao contrário, por exemplo, de urna discussao hipotética entre Orí-
dos judeus da Palestina e da Babilonia, desde o século lI até a conquista dos
g~~es ~ Agostinho. Esta prática pede que tememos decidir qua! das duas
árabes, quando a cultura rabínica foi completamente transformada por urn
~lsoes e a co1Teta, enquanto a prática textual rabínica considera quase heré-
nca qualquer tentativa de se chegar a urna decisao. novo contato macir;o com a filosofía grega, através de tradur;óes para o árabe.
Levando-se ern canta a impossibilidade de se fazer urna separac;:ao entre
Há urna diferenr;a semiótica fundamental entre a apresentar;ao de inter-
a teoría ontológica e hermenéutica e o discurso sobre os géneros, urna das
pretar;oes divergentes em textos isolados, cujas autores sao nomeados e as
grandes tarefas deste livro será examinar este discurso numa cultura que
discordancias canonizadas pelo midrash e o Talmude (Boyarin 1990~ 78-
nao opera dentro do sistema de oposic;:óes dualistas descrito acima. O meu
79). Qualquer opiniao ou imerpretar;ao contestada por outra dentro da ~es­
objetivo, é claro, nao é argumentar ou sugerir que a prática social rabínica
ma obra canónica perde, quase que por definir;ao, a sua utilidade como um
era mais "igualitária" do que aquela do judaísmo helenista ou do cristianis-
fundamento para a prática cultural e social. Ao se estudar esta cultura é es-
mo. Pretendo, na verdade, descobrir em que medida esta configurar;ao cultu-
sencial dar urna enorme atenr;ao ás estruturas montadas dentro do p;óprio
ral da assimetria entre os sexos fez alguma diferen<;a dentro desta sociedade.
texto, ao constante jogo de interpretar;ao e contra-interpretar;ao. Creio que
Como urna cultura que nao identifica o homern com a mente e a mulher
este ponto costuma ser ignorado por historiadores nao-talmudistas que utili-
corn o carpo, nem o hornern corn a cultura e a mulher com a natureza (pois
z~m textos talmúdicos como suas fomes. Assim, muiras vezes urna opiniao é
nao opera com estas categorías ontológicas) ainda pode rnanter urna hierar-
citada como sendo tipica do judaísmo rabínico, quando, na verdade foi in-
quía ern que as mulheres sao dominadas pelos hornens? Em que medida
cluída no texto talmúdico apenas para ser desacreditada, ou pelo me~os mi-
esta estrutura hierárquica seria diferente, na teoría e na prática, daquelas
nada p_o r urna passagem oposta. Pode-se encontrar um exemplo <leste tipo
que caracterizam as culturas platonizadas (sejam elas judaicas ou cristas)?
no capnulo 4, onde um texto que costurna ser citado como urna evidencia
Seria possível realizar urna crítica cultural útil, ao se especificar historica-
da atitude repressora dos rabis em relar;ao á prática sexual é interpretado
mente os fatores que tomam o judaísmo rabínico do final da Antigüidade di-
como urna passagem inserida no Talmude apenas para ser refutadaJ7. lsso
ferente da forrnar;ao ern que estamos inseridos desde o início da Idade
nao significa que havia mais discordancias e controvérsias dentro da cultura
Média, no que diz respeito ao discurso do carpo e dos géneros? Mais especí-
~abínica do que no cristianismo e em outras formas de judaísmo; a diferenr;a ficamente, a descrir;ao dialética destas culturas como urna alternancia de so-
e que-~essa cultura, ao contrário do que ocorria nas outras, o que é canoni-
luc;:oes e fracassos para solucionar certos problemas sócio-culturais poderia
zado e Justamente a discordancia. O modelo cultural adorado é o de que "es-
nos fornecer as ferramentas para realizar urna síntese que permitirla a valo-
rizar;ao da sexualidade e a liberar;ao das mulheres (ver também Kraerner
3 7 Ao . ser cüado, o texto também passa a panicipar do jogo da cultura, mas de fo rma bem
(1992, 199-200])? Passemos, entao, a leitura de alguns dos textos produzi-
ma1s sutil e complexa do que a maioria dos relatos dao a entender. dos por esta cultura, a luz destas questóes.
1

"Considerai o Israel Segundo a Carne"


Sobre a Antropología e a Sexualidade
nos Judaísmos do Final da Antigüidade

DEFINlC::óES DO SER HUMANO:


FÍLO , PAULO E OS RABIS

Urna das tendencias do judaísmo de língua grega (incluindo o de Paulo) que


acabou afastando-o do judaísmo rabínico parece ter sido a aceitac;:ao daquilo
que se poderia chamar, em linhas gerais, de urna concep c;:ao platónica do ser
humano. De acordo com esta noc;:ao, a alma representaria o individuo, e o
corpo, na melhor das hipóteses, seria apenas a sua morada. "Nesta vida, o
que constitui a pessoa de cada um de nós nao é nada mais do que a alma"
(Leis 12, 959a7-8; Vemant 1991, 190). Para Fílon, "pode-se dizer que a alma
está sepultada no corpo" (Winston 1988, 212). Esta era urna concepc;:ao
muito comum na maior parte do mundo helenista 1• Fílon diz que o corpo é

Brian Stock chamou minha atenc;il.o para o fato de que nem todos os platonistas definiam o
ser humano como urna alma aprisionada no corpo. "Alguns pensadores platonistas, princi-
palmente Filon, Plotino e Porfirio, acreditavam que a alma estava presa no corpo; outros -
cujos interesses giravam em torno da medicina, da astrologia e outras ciéncias, por exem·
plo - combinavam o seu transcendentalismo a um modelo de macrocosmo/ microcosmo
que clava mais valor ao corpo, a se>nialidade e a atividade do ser humano no mundo". Dil-
lon discute esta quest.ao em relai;ilo aos platonistas médios. como, por exemplo, Antloco de
Ascalon, e chega a conclusil.o de que, para este pensador, "nós somos a nossa mente, e nil.o
nosso corpo". Ele lembra, porém, que este mesmo "filósofo de segunda classe" - um dos
fundado res do platonismo médio - afirrnou num tratado de ética que somos ao mesmo
tempo a nossa mente e o nosso corpo (Dillon 1977, 98). Dillon observa que estes autores
modificavam as suas dout.rinas de acordo com as exigéncias retóricas de um determinado
género. De qualquer maneira, a maioria dos pensadores Uudeus ou cristil.os) que adOLaram
os dualismos platónicos como base de sua filosofia provocaram urna profunda desvaloriza-
c;i\o do papel do corpo na constituic;il.o do ser humano. Ver também Spidlik (1986, 108),
q ue afirma: "qualquer que fosse a escola a que pertenciam, os filósofos chegavam sempre a
mesma conclusil.o: o corpo era desprezado como um 'inimigo' da alma, ou era visto como
um objeto útil, um 'escravo', que devia ser utilizado ao bel-prazer de seu dono, ou entil.o ser
jogado fora. a tradic;il.o platónica, a uniil.o do corpo com a alma era encarada como uma
queda".
44 " Considerai o Israel Segundo a Carne " "Considerai o Israel Segundo a Carne" 45

"perverso e conspira contra a alma", é "um cadáver, sempre mono"


que

, e a mna cas de Fílon e Paulo, apesar de várias diferenc;:as significativas entre os dais,
levam-me a conclusa.o de que estas noc;:óes platonistas a respeito do ser hu-
mano eram muito comuns - ainda que nao necessariamente universais -
a pri~cipal causa da ignorancia é a carne e nossa atrac;:ao a ela. o próprio entre os judeus de língua grega. Este conceito de ser humano sem dúvida se
Mo'.s~s d~f~nde este ponto de vista ao afirmar que "porque sao carne" 0 tomou muito disseminado entre os Padres da Igreja, que propagaram metá-
esp'.nto_divmo ~ao po~e permanecer na sua presenc;:a. De fato, 0 casamento, a foras para o carpo do tipo "prisao, túmulo, grilhóes, vestimenta, máscara
obngac;:ao de cnar os ftlhos, a satisfac;:ao das necessidades diárias a má
feia, roupa de pele, habitac;:ao" da alma (Spidlík 1986, 111; Dodds 1965,
reputac;:ao que acompanha a pobreza, negócios privados e públic~s e vários
o~tros fatore~ sufocam a flor do conhecimento antes de ela desabrochar. Nao 30).
ha nada, porem, que prejudique mais o seu desenvolvimento do que a nossa O judaísmo rabínico, ao contrário, definía o ser humano como um car-
natureza camal. po animado, e nao como urna alma aprisionada ou vestida pela came4 • Alon
Goshen-Gottstein apresentou esta diferenc;:a de forma brilhante:
(Filon 1981, 65)

Paulo emprega imagens semelhantes, mas sem atributos tao negativos O este aspecto, a antropología rabínica é diferente da antropología helenista
exemplo mais claro aparece em 2 Corintios 5,1-4: . [incluindo a dos judeus helenistas) e, mais tarde, da crista. A distinc;:ao enae

S~~t~10s qu~ se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruida ternos um
e 1 1c10_ergmdo por Deus, urna morada eterna nos céus, que nao f~i em que repudia a sexual.idade, é enfatizar a distini;.ao que alguns <lestes autores estabele-
cem entre o "corpo" e a "carne". O primeiro termo muiras vezes apresenta urna valencia po-
construida por maos humanas. Aqui, gememos no desejo de vestir nossa
sitiva, enquamo o segundo tem quase sempre urna conotai;.ao negativa. Robinson (1952)
morada celeste, de modo que ao vesti-la nao fiquemos nus. Pois enquanto salientou muito bem esta distini;.ao dentro do próprio Paulo. Assim, é a um corpo sem car-
estamos nesta tenda, gememos de ansiedade, nao porque queremos ficar nus ne - isto é , sem sexualidade, entre out.ros atributos - que vários pensadores do cristianis-
m~s porqu~ queremos ficar mais vestidos, para que aquilo que 0 que é mortai mo primitivo conferiam o status positivo de "corpo". Neste sentido, Yema Harrison me
se1a absorvido pela vida. informou que os padres capadócios acreditavam que a criai;.ao da humanidade tinha o obje-
tivo de trazer Deus ao mundo material, com o qua! se uniría. Ainda assim, consideravam a
sexualidade urna característica temporária e um sinal da queda do "homem". Bynum
Paulo sem .dúvida alguma se refere a ressurreic;:ao do carpo, apesar de o car- ( 1991) conduz urna discussao muito imponante destas questOes a partir de um ponto de
po ressuscnado
. . . _nao. ser o mesmo "que habitamos" agora . Ele cons1.d era ne-
vista diferente. Apesar de estudar basicamente o periodo medieval, ela levanta a possibíli-
dade de que a culrura crista nunca aceilou por complelo a ideología "platón ica" da pessoa
~essana a existencia de algum tipo de carpo para que o ser humano nao enquanto alma.
f1q2ue ~u, e sua polemica se dirige áqueles que negam a ressurreic;:ao da car- 4 Ver Robinson ( 1952, 14) para formulai;.Oes semelhantes em relai;.ao ao judaísmo biblico.
ne . Nao se pode entao ·1 . Rubin (1989) apresema urna coletanea bastante útil de textos "antropológicos" rablnicos
' , encara- o como um dualista que se opóe ferrenha-
ment~ ao corp?, ~dotando, por exemplo, o modelo de Plotino. De qualquer de varios periodos. Apesar de Rubin dese.rever o deslocamento de urna concepi;.ao total-
mente monislica da pessoa para um "dualismo moderado", nao há praticamente n ada no
maneira, o ma1s importante é que Paulo mantém a imagem do ser humano judaísmo rablnico que indique a preseni;.a de urna visao do ser humano como urna alma
co1:1o urna alma que habita ou veste um carpo. No mesmo texto em aprisionada num corpo, ou de que a tarefa da alma seria se libertar de seu receptáculo
lanza o co d . que va- material , como acontecia com Filon e Origenes, assim como vários out.ros Padres da
" . rpo , opon o-se aqueles que procuram negá-lo, Paulo se refere a
Igreja.
nos que estamos nesta tenda"J. A coincidencia entre as visóes antropológi- De qualquer maneira, a famosa senteni;.a de Rabi Meir no Talmude da Babilonia, Sane-
drin 90b ("Se um grao de trigo, que é enterrado nu, brota com vários mantos, muito mais
2 os vinuosos, que sao enterrados com suas vesres") é completamente irrelevante. O argu-
Ver rambém 1 Corimios 15,35-49, urna passagem notoriameme dificil e d . mento de Rabi Meir é que os virtuosos estarao vestidos ao ressuscitar - literalmente! Se
Conzelmann conduz a seu respeito (1976 280-88) S d R b. ' a iscussao que
nao se refere aqui ao corpo da ressurrei ~o co . egun o o i.n son (1952, 77), Paulo neste rrecho R. Meir utiliza urna figura de linguagem tradicional, a própria inversao de seu
mas. ao Corpo de Cristo. Ver também Mee~ (Í97~~;~ costuma afirmar nos comentários,
significado, que deixa de ter um caráter dualista e filosófico para assumir o aspecto de um
3 mito concreto, é mais urna prova daquilo que procuro demonstrar neste capitulo e no resto
Unhzo urna hnguagem ·d d
fica claro que o co o r~~~sªci~s; porqu~ nesta passagem, assim como em 1 Coríntios 15, do livro.
1 Deve-se lembrar aqui que Urbach (1975, 248) apontou para um deslocamento histórico
Provida de "carne_:IJG o polssm urna natureza completamente transformada des-
. era mente a so ui;.ao bl ·
discurso do cristianismo . . : · para cenos pro emas de descontinuidade no da época dos tanaim para a dos amoraim, sendo que os últimos viam o corpo e a alma de
pnmmvo, que parece afirmar a corporalidade ao mesmo tempo forma mais dualista. Ver também Stiegman (1977, 510-12).
46 "Considerai o Israel Segundo a Carne "
"Considerai o Israel Segundo a Carne" 47

carpo e alma pode ser considerada leve, e nao pesada5 . Fala-se muito de
mo fosse urna tendencia desconhecida. Num ensaio recente, Steven Fraade
carpo e alma nas fontes rablnicas. As qualidades especificas ,de cada um
também sao reconbecidas. No entamo, nao há urna oposi<;ao metafísica
formulou urna questao que deve ser levada em considerac;ao ao se estudar
fundamental entre os dais aspectos. Pode haver urna confronta<;ao existencial, este discurso:
mas o carpo e a alma metafísicos formam um todo, e nao urna polaridade.
Colocando a questao de forma mais direta, a alma é como urna pilha que faz De acordo com [urna) interpreta<;ao mais ampla, o asceticismo respondería,
funcionar um aparelho eletréinico. Ela pode ser diferente e originariamente de várias maneiras, a urna tensao inerente a todos os sistemas religiosos: o ser
externa ao aparelho. Nao há, porém, urna diferen<;a em sua essencia. Em humano (individual ou coletivo) procura chegar o mais peno posslvel de um
nenhum ponto da literatura rabínica a alma é encarada como um elemento ideal de realiza<;ao espiritual e perfei<;ao, ao mesmo tempo em que confronta
divino. Ela pode ter urna origem celestial, mas nao é divina. Mais importante urna individualidade e um mundo que colocam obstáculos constantes ao
do que isso, o aparelho e a sua fonte de energia devem Cicar juntos, e nao longo deste caminho, qualquer que seja o seu trajeto especifico. Como é
separados. Assim, a alma é o agente que traz a vitalidade; o seu lugar é no possível avan<;ar por este caminho com todo o "cora<;ao" (com toda a energia
carpo, e nao fara dele. e inten<;ao), sem divisóes e desvios, ao mesmo tempo que se vive em meio as
(Goshen-Gottstein 1991 ) distra<;éies do mundo concreto?
(Fraade 1986, 255)
Os rabis, assirn, sao apenas um dos grupos ideológicos do judaísmo do final
da Antigüidade. A sua visa.o antropológica é urna de suas características Apesar das expressóes "confrontar urna individualidade" e "realizac;ao espiri-
mais mareantes. Nos seus escritos, a alma freqüentemente é comparada ao tual" parecerem evitar cenas questóes que elas deveriam estar colocando, a defi-
sal que preserva a carne (Theodor e Albeck 1965, 320-21; ver também Ur- nic;ao de Fraade é bastante útil. O asceticismo nao seria o produto de um
bach 1975, 220-21 e Stiegman 1977, 508-16). Talvez a prova mais elegante desprezo dualista pelo corpo; na verdade, este desprezo, encontrado em diver-
da antropologia essencialmente monística do judaísmo rabínico seja um tre- sas modalidades do judaísmo antigo, é apenas urna resposta á tensa.o ascética.
cho de suas orac;óes diárias; depois de urinar e defecar, o judeu deve pro- A áskesis é urna espécie de atletismo religioso, "um processo obstinado e árduo
nunciar a seguinte benc;ao: de treinamento e teste das faculdades humanas, que muitas vezes passa pela
abstinencia daquilo que costumava ser permitido, na busca positiva da perfei-
Se aben<;oado, ó Senhor, Rei do Universo, que fez o ser humano com c;ao moral e espiritual" (Fraade 1986, 257; ver também Dodds 1965, 24).
sabedoria e criou nele orificios e espa<;os ocas. É revelado e sabido <liante de Ao contrário de outras formas de asceticismo, a renúncia ao sexo nao
Teu Trono de Glória que se algum deles fosse aberto ou fechado , seria era permitida aos rabís. Esperava-se que todas as pessoas se casassem, fizes-
imposslvel viver <liante de Ti. Se aben<;oado, pois curas todas as carnes e sem sexo e tivessem filhos. Aqueles que se recusavam a fazer isso eram ta-
fazes coisas maravilhosas. chados hiperbolicamente como assassinos e blasfemos (Tosefta Yevamot 8,7
e Talmude da Babilonia Yevamot 63b). A necessidade de urna hipérbole <les-
Este texto mostra claramente duas coisas: primeiro, a aceitac;ao da camalidade te tipo mostra a atrac;ao que o celibato exercia sobre os judeus de língua se-
na sua forma mais material e prosaica como urna concreúzac;ao da sabedoria de mítica7. Os rabis faziam parte do mundo helenista, apesar da sua noc;ao de
Deus; segundo, a definic;ao do ser humano6 como sendo o seu corpo. ao é de corpo fugir (ou até resistir) a concepc;óes antropológicas helenistas que ou-
admirar que para Agostinho os judeus fossem indiscutivelmeme camais. rros judeus tinham assimilado. Urna vez que os rabis entendiam o ser huma-
De qualquer maneira, o corpo está Ionge de ser urna questao livre de no como um corpo, a sexualidade era vista como um de seus componentes
controvérsias dentro da cultura rabínica, nem se pode dizer que o asceticis- essenciais, ao contrário das formac;óes platonistas, onde se podia imaginar
urna fuga da sexualidade em direc;ao a um estado puramente espiritual e ver-
5 Quanto a presenc;a do dualismo "leve" no pensamento moderno ver Swinburne (1986 298- dadeiramente "humano"8 . A insistencia dos rabis no papel fundamental que
312). • •
6 Utilizarei este termo por motivos éticos, apoiando-me na prática atual Ele nao implica urna
declarai;ao de que o sexo é urna categoría "natural", ponto que será discutido na úllima se-
7 Para urna discussao mais detalhada desta quest:lo, ver capitulo 5.
i;ao <leste livro. Por enquanto, ver Butler (1990, 152, n. 15). De qualquer maneira, tanto os
homens quanto as mulheres devem proferir esta btni;ao. 8 Ver Mopsik (1989, 50). Ver, porém, a ne. 3 acima, a respeito da maneira como Vema Harri-
son coloca esta questao.
"Considerai o Israel Segundo a Carne " 49
48 "Considerai o Israel Segundo a Carne"

o corpo e, portanto, o sexo, exercia na formac;ao do ser !mmano representa Génesis 1,27-28 Génesis 2, 7 et seq.
um ponto de resisténcia as práticas discursivas dominantes de outras cultu- [27) E Deus criou a criatura de [7) E Deus formou a criatura de
ras judaicas e nao-judaicas do final da Antigüidade. terra 11 • A Sua imagem; a imagem de terra da poeira do solo, soprou em
Deus, Ele o criou; macho e fémea suas narinas o sopro da vida e a
Ele os criou. [28) Deus os abenc;oou criatura se tornou um ser vivo.( .. .)
INCORPORANDO O ANDRÓGINO ORIGINAL e Deus lhes disse: Reproduzi-vos e [20] E a criatura de terra deu nomes
a todos os animais, as aves do céu e
enchei aterra ( ...).
Um dos indícios mais claros da resisténcia dos rabis ao discurso sobre o a todos os animais dos campos, mas
a criatura de terra nao enconrrou um
corpo desenvolvido pela sociedade que os cercava era justamente a ma- Génesis 5, 1-2
[l) Este é o livro das Gerac;óes de ajudante que !he correspondesse.
neira como citavam este discurso, ao mesmo tempo que modificavam pro-
[21) E Deus fez com que um sono
fundamente o seu significado. O mito de um andrógino original era Adao, no día em que Deus criou
muito comum no final da Antigüidade, principalmente entre os platonis- Adao, a imagem de Deus Ele o criou. pesado caísse sobre a criatura de
{2] Macho e fémea Ele os criou, terra, que dormiu. Ele tirou urna de
tas da tradic;ao judaica e, mais tarde, crista (Meeks 1973; Cro uzel 1989,
94)9 . O mito é citado na Génesis Rabá , o midrash mais antigo sobre o pri- abenc;oou-os e os chamou de Adao, suas costelas e fechou a carne por
meiro livro da Bíblia 10• A versa.o midráshica, contudo, é bem diferen te de n o dia em que Ele os criou. baixo dela. {22) E o Senhor Deus
consrruiu urna mulher com a costela
versóes anteriores ou contemporaneas da mesma narrativa. Urna das mo-
que rinha tirado da criatura de terra
tivac;óes por trás do mito discutido no midrash é harmonizar os dois rela- 12
tos diferentes da criac;ao da humanidade apresentados nos capítulos 1 e 2 e a levou ao homem de terra .
do Génesis: {23 J E o homem de tena disse: Esta
.
sim é osso de meu osso e carne da
minha carne. Ela será chamada
mulher, pois do horoem foi tirada.

a primeira história, parece óbvio que a primeira criac;ao da espécie ~u~a­


9 Ver também Daube (1973, 71-89). o entamo, gostaria de observar que, na minha opiniao,
na incluía os dois sexos, enquanto a segunda sugere urna criatura ongmal
Daube erra ao interpretar o fato de os rabis citarem a Septuaginta como um indicio de que
este mito teria surgido muito cedo nos clrculos judaicos, erro repetido por Tov (1984). Be- do sexo masculino, de cuja carne foi criada urna mulher. Esta contradic;ao
reshit Rabá atribui o verslculo "Um homem com orificios Ele o criou" a Septuaginta, substi- representa um clássico problema hermenéutico.
tuindo a palavra "mulher" por "orificios", o que, em hebraico, é urna operac;:ao bastante
simples. Daube (72-73) vé aqui urna versao do milo do andrógino original, pois interpreta
os "orificios" como a genitália feminina. A palavra nequvaw, porém, nao significa nada dis-
so. 8a surge diversas vezes no hebraico rabínico, referindo-se a todos os orifícios do corpo, O Andrógino Espiritual: Fílon
incluindo os que sao especificamente masculinos. Assim, quando se aftrma em Mishná Be-
rakhot que alguém que precisa cuidar de seus orificios nilo deve rezar, trata-se apenas de
um homem ou urna mulher que precisa urinar! A emenda a Septuaginta, caso auténtica,
Segundo a interpretac;ao de Fílon, o primeiro Ada~ ~ra um ser puramente ~­
apontaria para um texto hebraico que teria feíto urna modificac;:ao tendenciosa do verslcu- piritual, cuja existencia nao-corpórea pode ser defm1da como senda masculi-
lo, que deixou de indicar a cria<;ao simultanea do homem e da mulher - quer sob a forma
de um andrógino ou nao - para descrever a criai;ao de um ser humano completamente
masculino. De qualquer maneira, ela pode ser tomada como um indicio da antiguidade do
mito do andrógino, urna vez que parece refulá-lo. 11 Assim como Trible (1978) e Bal ( 1987), nilo traduzi "adam" como homem, mas como
10 O Génesis Rabá, de o nde fo¡ retirada a citai;ilo, é o midrash mais tradicional e importante criatura de terra (neste eslágio) para reproduzir o Lrocadilho em torno de seu _nome -
sobre o Génesis. Esta inlerpreta<;ilo aparece em diversas versóes paralelas (a este respeito, adam/ adamá (terra) _ e para evitar dar urna urn a semeni;a precoce sobre a questao de seu
ver Theodor e Albeck (1965]). Assim como todos os textos midráshicos, o Génl!Si.s Rabá é ~~~ h
urna colec;:ilo de sentenc;:as de vários rabis, provenientes de épocas diferentes. Estes dilos fo- 12 Mais urna vez, sigo a uadui;ao de Bal (1987). Se a criatura de terra nilo apresenta nen ~m
ram reunidos num único texto mulú-vocálico por voila de meados do século V, na Palesti- tipo de diferencia<;ao sexual, é apenas a cria<;ilo de urna mulher que pode transforma-la
na. Os seus parentes lilerários mais próximos silo os padres gregos. num homem.
50 " Considerai o Israel Segundo a Carne" " Considerai o Israel Segundo a Carne " 51

na e feminina ao mesmo tempo. O segundo capítulo introduziria um Adao Depois disso, ele diz que "Deus formou o homem a partir do barro da terra, e
camal, que de inicio seria assexuado ou do sexo masculino e do qua!, mais soprou em seu rosto o hálito da vida" (Gn 2,7). Assim, ele mosrra com clareza
tarde, seria formada a mulher 13. Assim, o corpo sexuado é afastado duas ve- que havia urna grande diferenc;a entre o homem formado desta maneira e
zes da origem do "homem". Além disso, de acordo com esta interpretac;ao, a aquele que fora criado ames á imagem de Deus: o homem assim formado é
um objeto de percepc;ao sensual, dotado de determinadas qualidades,
criac;ao de Eva - e, conseqüentemente, da própria sexualidade - é um en-
constiruído de carpo e alma, dividido entre homens e mulheres, de natureza
saio da Queda (Bloch 1987, 10):
mortal; já aquele que fora criado segundo a lmagem era urna idéia, um tipo
ou um selo, um objeto do pensamento, incorpóreo , nem homem nem mulher,
" ao é bom que nenlmm homem fique sozinho", pois há duas ra~as de
de natureza incorruptlvel.
homens, urna feíta de acordo com a lmagem (Divina), e a ourra moldada da
(Fílon 1929, 107)
terra ( ...). Ao segundo homem é associado urna ajudante. Para comec;ar, a
ajudame é criada especialmente com este propósito, pois está escrito:
"Fac;amos urna ajudante para ele". Além disso, ela é subseqüente áquele que A segunda história estaria se referindo, entao, a humanidade como a conhe-
será ajudado, pois Ele já havia formado a mente e agora ia criar a sua auxiliar. cemos e marca a mulher explicitamente como um suplemento. Esta dupla
(Bloch 1929b, 227) criac;ao fornece a Fílon urna das fontes de "idéias" platónicas nos ensina-
mentos de Moisés, que, segundo o pensador, teria sido um precursor da filo-
O que Fílon procura fazer aqui é solucionar esta contradic;ao hermeneuúca. sofia de Platao (Tobin 1983, 132). 16
Ele encara as duas passagens como narraúvas de dois atos criadores de A interpretac;ao de Fílon nao representa urna idiossincrasia. Como Tho-
1
Deus 4, que produzem duas rac;as diferentes de "homem"15 . Urna vez que os mas Tobin demonstrou, Fílon se refere a urna tradic;ao mais amiga (1983,
dois textos (Genesis 1 e Genesis 2) estariam se referindo a duas espécies 32; ver também Mack 1984, 243). O ponto fundamental é que, para os ju-
completamente distintas, ele podia dizer que apenas a primeira devia ser deus helenistas, a unidade do espirito puro ocupa urna posic;ao omologica-
identificada com a "imagem de Deus" - isto é, apenas a criatura-Adao sem mente superior na formac;ao da humanidade. Fraade faz um resumo elegante
corpo e única teria sido criada a imagem de Deus; neste contexto, a masculi- desta antropología platónica do judaísmo, no que diz respeito a Fílon: "Fí-
nidade e a feminilidade devem ser entendidos num sentido espiritual. Em lon herdou de Platao urna concepc;ao radicalmente dualista do un iverso. De
outras palavras, o fato de esta criatura ser designada como hornero e mulher acordo corn o seu ponto de vista, o mundo material da percepc;ao sensual é
na verdade significa que ela nao é nem masculina, nem feminina. O versícu- um reflexo irnperfeito da ordem inteligível que emana de Deus. A alma hu-
lo " ¡ ao é bom que um homem fique sozinho" estaria se referindo as duas mana atinge a sua realizac;ao máxima ao se separar do mundo dos desej 0s
espécies de homem: o andrógino puramente espiritual e o ser corpóreo, do materiais (um mundo que nao possui urna realidade verdadeira), ingressan-
sexo masculino. No caso do primeiro, o versículo possui um significado ale- do na vida espiritual e entrando em contato com o intelecto divino; assim, a
górico, que aponta para a necessidade que a alma tem de Deus; quanto ao alma se reúne ao seu verdadeiro eu, a sua fonte divina, alingindo a imortali-
segundo, o texto diz que um ajudante é necessário. Outra passagem de Fílon dade" (Fraade 1986, 263-64; o grifo é meu). Se a androginia espiritual repre-
toma este ponto mais explícito: senta o estado original (urna condi~ao em que a expressao "homern e
mulher" significa nao ser nem homem, nem mulher), esta realizac;ao implica
13 A ambigüidade, ou até mesmo a comradic;ao presente no meu próprio discurso ao me refe- o retomo a urn estado de androginia nao-corpórea - urna noc;ao que traz
rir ao primeiro Ada.o como um "homem" e um "ser assexuado" nao é casual. Se nao há um irnplicac;óes sociais para Fílon, que ele discute ao descrever a irnagem da
outro genero, entao nao há diferenc;a entre os sexos e Adao é assexuado. Por outro lado, vida humana perfeita.
quando Adao se refere a sua situac;ao antes da criac;ao de Eva, ele ve a si mesmo como um
homem. Ver Bal (1987) e Boyarin (1990d). Em Sobre a Vida Contemplativa, Fílon descreve urna seita judaica chama-
14 Fíloa se comradiz ero vários pontos a este respeito. Nao me interessa aqui apontar para as da Terapeutas, que, na época do filósofo, habitava as margens do lago Ma-
diversas interpretac;óes de Filon e suas fontes. De qualquer maaeira, Tobin (1983) já fez reoús, perto de Alexandria. O tom da descric;ao que faz desta seita e de su as
isso com grande eficiencia. A minha preocupac;ao aqui é mostrar como esta interpretac;ao
passa a fazer parte de urna determinada tradic;ao de discursos sobre o corpo.
15 Para uma discussao mais detalhada desta passagem na obra de Fílon e de seus seguidores,
ver Tobin (1983, 108-19) e Jeremy Cohen (1989, 74-76 e 228). 16 Meu amigo e colega, Albert Baumganen, chamou a minha atenc;ao para este pomo.
52 "Considerai o Israel Segundo a Carne" "Considerai o Israel Segundo a Carne" 53

práticas deixa claro que Fílon a considerava urna comunidade religiosa crianc;as"' (1973, 194). 19. Estas noc;óes, muito comuns no cristianismo primi-
ideal. A associac;:ao consistia de homens e mullieres celibatários, que viviam tivo, estao por trás do privilégio quase universal que se dá ao celibato e a
em celas individuais e dedicavam sua vida a orac;ao e ao estudo contemplati- virgindade em todos os ramos da igreja primitiva, ainda que nem sempre
vo de interpretac;óes alegóricas das escrituras (semelhantes as que o próprio com a mesma profundidade.
Fílon produzia). Urna vez por ano, toda a comunidade se reunía para urna Havia, é claro, urna enorme variedade dentro das diversas visóes que os
celebrac;ao religiosa peculiar. Depois de urna refeic;ao simples e um dis- cristaos primitivos tinham da sexualidade e do casamento - indo desde a
curso, todos os celebrantes cantavam hinos juntos. De inicio, os homens total rejeic;ao até um aprec;:o entusiástico Qeremy Cohen 1989, 221-70). Os
e as mulh eres se mantinham separados em dois coros, mas quando a ceri- montanistas mais radicais, assim como outros grupos semelhantes, simples-
mónia atingia um ceno extase, todos se juntavam, formando um único mente negavam a legitimidade do sexo e do casamento. Para eles, o "homem
coro em que "a voz aguda das mulheres se fundia a voz grave dos ho- e mulher" de Genesis 1,27 só podía ser entendido alegoricamente como a
mens"17. O modelo de urna uniao extática entre homem e mulher num ritual androginia do espirito liberto do carpo. Antigos cristaos autores menos radi-
místico reproduz, na prática social, a imagem de um primeiro ser humano cais também interpretavam esta passagem da mesma maneira. Assim, Oríge-
másculo-feminino, puramente espiritual, a que Fílon se refere em seu co- nes encarava a dupla criac;:ao de urna maneira muito parecida com a de
mentário. De fato, este ritual dos terapeutas é um retomo ao Adao original Fílon. O ánthropos de Genesis 1 consistía de urna alma criada a imagem de
(Meeks 1973, 179) 18 Deus (Crouzel 1989, 94), mas "diferencia,oes dentro da espéc1e humana sub-
Quer a comunidade dos terapeutas tenha realmente existido ou nao, esta verteram esta perfei, ao original" Qeremy Cohen 1989, 236). Orígenes permi-
descric;ao é um testemunho do esforc;o de Fílon para converter a sua antro- tia o casamento, "porém urna série de textos considera impuras as relac;óes
pología numa prática social. Se esta comunidade realmente ex:istiu, ela seria sexuais, mesmo quando legitimadas pelo matrimonio" (Crouzel 1989,
mais um indicio de que Fílon representava tradic;óes e grupos religiosos 138)20 . Por outro lado, Clemente (assim como outros que se opunham aos
mais amplos. o entamo, mesmo que os terapeutas de Fílon fossem apenas encratitas, por apoiarem o casamento) ve no versículo "homem e mulher Ele
um ideal, certamente havia outros grupos no mundo cristao primitivo que os criou" a pressuposic;ao da criac;ao da mulher e, portanto, urna defesa do
acreditavam na noc;ao de que o primeiro ser humano era um andrógino nao- casamento (Alexandre 1988, 198). Da mesma maneira, um pouco mais tar-
corpóreo e que a expressao "homem e mulher'' ero Genesis 1,27 significava, de, joao Crisóstomo escreveu com grande entusiasmo sobre a criac;ao da hu-
na verdade, "nem homem, nem mulher". Como seria de se esperar, todos es- manidade com dois sexos e...sobre o desejo e as relac;óes sexuais como urna
tes grupos - fossem eles gnósticos, encratitas ou cristaos sirios "ortodoxos" restaurac;ao do "hornero e roulher" do Genesis, ou até mesmo do "nem ho-
- mantinham um rigido ideal celibatário. Dennis Macdonald demonstrou rnero , nem mulher" de Gálatas 3,28 (1986, 43). Muitas das formulac;óes que
como era comum entre estes grupos urna sentenc;a dominicana (apócrifa?), Crisóstomo incluí em seus escritos mais tardios sobre o desejo sexual e o ca-
segundo a qual a salvac;:ao em Cristo implicava despir as vestes da vergonha samento sao praticamente identicas as dos rabís: "Desde o inicio, Deus foi
(o carpo e a sexualidade), "convertendo o dais em um", além de eliminar as revelado como o criador, através de Sua providencia, desta uniao entre ho-
distinc;oes entre homem e mulher (Macdonald 1987 e 1988). A perda da vir- mem e mulher, e Ele falou dos dais como um: 'hornero e mulher Ele os
gindade seria um equivalente da Queda, representando a perda ou a adulte- criou' e 'nao há nem homem, nem mulher'. Nunca há entre dais homens a
rac;ao da perfeic;ao na unidade. Como afirma Meeks, "o batismo devolve o mesma intimidade que há entre marido e mulher, se estes estao unidos
iniciado a inocencia virginal de Adao, que 'nao sabia como eram geradas as como <leve ser". Ou entao, numa passagem ainda mais comovente: "Supóe
que o casal nao tenha filhos; oeste caso eles permanecem como dais, e nao
17 Um anigo de Ross Kraemer (1989) apresenta a descrii;ao mais recente e completa dos tera-
peutas.
18 Esta hipóte~e ~plica a re~er~nci~ aparentemente gratuita no texto de Filon ao Simpósio de 19 Meeks discute rituais gnósticos que consistiam de urna restaurai;ao da androginia do pri-
Platao_e, pnnc1 palrne~te, a h1stóna contada por Aristófanes sobre criaturas duplas (nao ne- meiro ser humano e, no mesmo ensaio, estuda a interpretai;ao dt! várias passagens de Paulo
cessanamente andróginas) que estariam na origem da humanidade. F!lon contrapOe a esta a luz destas cerirnOnias (Meeks 1973, 188-96). Evitei propositalmente qualquer discussao
irnagem "repugnante" de corpos materiais duplos a irnagem ideal de seres humanos duais em LOmo de Paulo nesta se~o. urna vez que a interpretai;ao de sua doutrina é sempre mui-
ma~ de caráter espiritual. A inversao de Filon, por sua vez, seria novamente invertida pelo~ LO contestada.
rab1s, como argurnentarei mais adiame. 20 Ver também o excelente capitulo de Peter Brown sobre Orlgenes (Brown 1988, 160-78).
54 "Considerai o Israel Segundo a Carne " " Considerai o Israel Segundo a Carne" 55

Como um? ao; a sua relac;ao efetua a uniao de seus corpos e eles se tornam E Deus disse: Fa~amos um ser humano etc. ( ... ) R. Yermia, filho de EI·azar,
um, assim como quando se mistura perfume com ungüento" (1986, 76)21 . imerpretou: quando a Sanúdade (Louvada Seja) criou o primeiro ser humano,
Ele o criou andrógino , pois está escrito, "homem e mulher Ele os criou"24 . R.
o entanto, até os padres que se enquadravam nesta categoria aponta-
Samuel, filho de ahman, disse: quando a Sanúdade (Louvada Seja) criou o
vam a virgindade, e nao o casamento, como um estado mais elevado Qeremy
primeiro ser humano, Ele o fez com dois rostos, depois o serrou ao meio e fez
Cohen 1989, 231-35, 237-38, 243-44). Dentre os padres, Clemente é 0 que as costas de um e as costas de outro. Opuseram-se a ele: mas está escrito, "Ele
se mostrava mais amigável ao matrimonio, mas "quando estabeleceu 0 seu tomou urna de suas costelas (tsela')". Ele respondeu !que isto significa] "um
ideal de casameitto, ele nao passava de um matrimonio sem sexo, de urna de seus lados", como está escrito: "e o lado (tsela') do tabernáculo" !Ex 26,20].
convivencia semelhante aquela que existia entre irmao e irma" (Fox 1987, (Theodor e Albeck 1965, 54-55)
359; mas ver também Ford 1989, 21). Gregório de azianzo, no meio de um
panegírico ao casamento, diz: "Irei vos unir em casamento. Vestirei a noiva. este texto há duas explicac;óes para a origem dos sexos na humanidade. A
ao desonramos o casamento apenas porque atribuimos urna honra ainda primeira interpreta<;ao é que o primeiro ser humano, aquele que é chamado
maior a virgindade" (citado em Ford 1989, 25). O mesmo Joao Crisóstomo de "o Adao", era andrógino. Ele possuía a genitália dos dois sexos e o ato de
que elogia com tanta eloqüencia o desejo e a intimidade entre marido e mu- criac;ao descrito em Genesis 2 simplesmente separou-os, colocando-os em
Lher permaneceu virgem durante toda a sua vida e dava um valor maior a dois corpos humanos diferentes. A segunda afirmac;ao (a de Rabi Samuel)
virgindade do que ao casamento, ao contrário dos rabis, que condenavam a aparentemente deve ser entendida como urna explicac;ao e interpretac;ao da
22
virgindade a princípio. Assim, apesar de alguns <lestes padres se aproxima- primeira, ou seja, o primeiro ser humano era como um par de gemeos sia-
rem da apreciac;ao que os rabís fazem da sexualidade humana, nunca deixa meses que mais tarde foi separado através de urna operac;ao cirúrgica. As
de haver urna diferenc;a básica irredutível entre as duas antropologias. A di- duas interpreta<;óes empregam a terminologia grega (androgynos, dyproso-
ferenc;a, as vez es, nao está tanto na ética, mas sim na compreensao funda- pos) para descrever o Adao de dois sexos (ou dois rostos) original. O uso de
mental da essencia humana. palavras estrangeiras, é claro, nao é inocente dentro desta cultura.
O mito de que o primeiro ser humano era um andrógino, ridicularizado
no Simpósio de Platao, já era bastante conhecido na literatura grega, desde
O Andrógino Corpóreo: o Midrash Palestino os tempos de Empédocles, um dos pré-socráticos (Macdonald 1987, 25). É
mais provável, por!m, que os rabis tenham se deparado coro este mito sob a
O midrash palestino também cita o mito do andrógino original como urna forma com que passou a ser conhecido por judeus e gentíos no final da An-
solm;ao para a contradic;ao entre as duas histórias da criac;ao no Genesis, tigüidade: o mito do andrógino originário, de caráter espiritual. Para Fílon e
mas t~ansforma o seu significado e praticamente invene a interpretac;ao da seus congeneres, como já vimos, o retorno ao estado original da humanida-
narranva. Segundo estes textos midráshicos, o Adao original era urna criatu-
ra de dois sexos num só corpo 23 . A narrativa do segundo capítulo contaria
mente entendía o andrógino original como urna criatura material, da mesma maneira que
como as duas metades equivalentes do corpo original se dividiram:
os rabis fariam um pouco mais Larde. Por outro lado, apesar de compreende r as implica-
c;óes da androginia espiritual do gnosticismo e de algumas imagens cristas "onodoxas",
21 Ver Lai:r1bém Ford_(1989, 43-49). Ver, conmdo, a nota a seguir. !del (1989, 211-12) nao percebe que Filon esta muito próximo desee ponto de vista. Além
22 A par~1r ~a descm;áo que For~ faz da ideologia mais Lardia de jmi.o Crisóstomo a respeito disso, apesar de compreende.r como a ideología sexual rablnica era diferente daquela que
da ~exuahdade, eswu convenado de que a sua visao madura nao dife ria muito daquela dos procurava restaurar urna androginia assexuada, ele nao cita o midrash que melhor confirma-
r~b1s ( Fo'.d 1989, 49 e pass1m). Contudo, mais urna vez é importante observar que, apesar ria esta hipólese, ou seja, aquela que fo¡ discuúda aquí.
d1sso, _Cnsóst~m~ era celibatário e, como lembra Ford, "até morrer, conúnuou a considerar 24 A inconsistencia do uso dos pronomes na traduc;ao desta sentenc;a reílete algumas
urna vida de v1rgmdade dedicada a Deus como urna vocac;ao mais elevada" (73) ambigüidades que percebi no texto (e na cultura que o produziu). Por ourro lado, nao há
23 Nem Macdonald (1?87, 38), nem Daube (1973), Meeks (1973, 185) e Stiegman .(1977, 517) dúvida de que o titulo de Deus que costuma ser trad uzido como "o Sanússimo, Louvado
parec~m ter perceb1do como o mito rabínico do andrógino diferia da visao de filon e dos Seja" deveria ser traduzido de ourra maneira, pois o termo apresentado como "Santissimo"
gnósucos. Por_outro lado, Daube (1973, 71-73) apresema argumentos convincemes defen- na verdade significa "Samidade", como se pode ve'r através de versóes desta fórmula em
dendo urna lenura de Marcos 19,3 et seq. baseada na interpretac;ao andrógina deste versí- aramaico anúgo. Por ourro lado, é muito difícil uúlizar outro pronome em relac;ao a Deus,
culo, a~nnando qu~ a senteac;a de j esus ("O que Deus uniu, nenhum homem pode urna vez que, na minha opiniao, esta cultura o imaginava como se.ndo do sexo masculino
separar ) só faz se~udo dentro desta leitura. Se a sua teoria for aceita , emao jesus cena- (com alguns atributos femininos).
56 "Considerai o Israel Segundo a Carne" "Considerai o Israel Segundo a Carne " 57

de envol~e a renúncia do corpo e da sexualidade e a volea a urna androginia culo nao poderla ser lido de outra maneira. Assim, até mesmo Shmuel, que
puramente espiritual (Macdonald 1988, 282-85 e King 1988, 165). Para os interpreta a mulher como urna construc;ao secundária, ve a sexualidade e a
rabís que acreditavam na existencia de um andrógino físico original, que diferenc;a como aspectos indispensáveis, e nao suplementares, da constitui-
mais tarde foi dividido para criar os dois sexos, a uniao física entre marido e c;ao do ser humano. O c~amento rabínico tradicional, onde sao recitadas as
mulher restaurarla a imagem do ser humano completo 25 • De acordo com a benc;aos a seguir, também adota a interpretac;ao que fala da costela e encara
minha interpretac;ao, os rabis se apropriaram de um tema da cultura judaica a sexualidade como um fatpr essencial:
helenista, apenas para inv.erter o seu significado. A própria alusao a esta cul-
tura aponta para urna resistencia contra ela. [Abenc;oado sois, ó Senhor Reí do Universo J. que criastes o Adao a vossa
A noc;ao do primeiro ser humano como um andrógino que mais tard e fo¡ imagem, a imagem da aparencia de vossa forma, e criastes para ele, a partir
dividido em dais carpos é motivada explícitamente pela mesma questao her- dele, urna criac;ao eterna. Abenc;oado sois, Ó Senhor, o criador da
meneutica que levou á interpretac;ao de Fílon: o desejo de tomar os dois re- humanidade.
latos coerentes e de convene-los numa única narrativa. o entamo, além da A Mulher Estéril ficará contente e alegre quando reunir dentro de si os seus
visao rnidráshica de que o Adao original era um andrógino físico, muito co- filhos com felicidade. Abenc;oado sois, ó Senhor, que dá alegria a Siao através
mum na época, também havia leituras que o colocam como um homem, a de seus filhos .
Dai felicidade aos amigos que se amam, assim como, no inicio, <lestes
partir do qual teria sido criada a mulher, como na interpreta<;ao que esta
felicidade a vossas criaturas no jardim do Éden. Abenc;oado sois, Ó Senhor,
história costuma receber na cultura ocidental:
que dais felicidade ao noivo e a noiva.
Abenc;oado sois, ó Senhor Reí do Universo, que criastes a alegria e a
E Ele tomou uma de suas costelas/lados (tsela'): Rabi Samuel, filho de ahman, felicidade, o noivo e a noiva, a bem-aventuranc;a, o júbilo, o gozo e a festa, o
diz, "um de seus lados, como se diz: e o lado (tsela') do tabernácu lo do Norte" amor, a fraternidade, a paz e a amizade. ó Senhor, nosso Deus, que logo se
[Ex 26,20]. E Shmuel disse: "Ele tomou urna costela que estava entre duas
ouc;a nas colinas dajudéia a voz da alegria e a voz da felicidade, a voz dos
outras costelas".
cantos dos noivos na sua camara nupcial e dos jovens na celebrac;ao do
(Theodor e Albeck 1965, 157) casamento. Abenc;oado sois: ó Senhor, que faz o noivo se deleitar com a sua
noiva.
Primeiro, faz-se urna rápida recapitulac;ao da interpretac;ao de Rabi Samuel,
filho de Nahman, segundo a qual o primeiro ser humano era um andrógino O texto do ritual é urna interpretac;ao da criac;ao dos generas e do sexo nar-
e a costela era, na verdade, um de seus lados. Logo a seguir, porém, esta lei- rada no Genesis. Como o ritual dos terapeutas descrito por Fílon, trata-se da
tura é contestada por Shmuel, que entende a costela em seu sentido literal e conversao de um momento ~nte rpretativo transmitido pelo midras}1 numa
acredita, portanto, que o primeiro ser humano era do sexo masculino e a prática social explícita. Na primeira benc;ao, agradece-se a Deus por ter cria-
mulher, urna criac;ao secundária. Todos os rabís partem do princípio de que do Adao e, a partir dele, Eva. Na segunda benc;ao, a terra de Israel abandona-
os dois relatos descrevem a criac;ao de urna única humanidade, e nao de da é representada por urna mulher estéril. a terceira, faz-se urna orac;ao aos
duas espécies diferentes. De acordo com o Talmude, Shmuel, que acredita noivos recém-casados para que tenham a mesma felicidade juntos que Adao
na criac;ao posterior da mulher, interpreta o versículo "Homem e mulher Ele experimentou com a criac;ao de Eva. O último momento do ritual é a afirma-
os criou" como urna indicac;ao de que Deus tinha a inten~iio de criar os dois c;ao de que Deus faz o noivo se deliciar com a sua noiva. Este "deleite", que
desde o início. Urna vez que a antropología antidualista dos rabís rejeitaria a sem dúvida se refere ao ato sexual (Anderson 1989, 133-36), é o motivo
teoría de urna criac;ao dupla (como a que foi proposta por Fílon), este versí- pelo qual Deus é o alvo de tantos agradecimentos ao longo da cerimónia. É
na uniao entre marido e mulher que a felicidade concedida por Deus a sua
25 Compare esta afirmao;ao com o pensamento de Agostinho, que "defende a humanidade da criatura no jardim do Éden será restabelecida por um momento no presente
mulher, desde que el~ esteja unida a um hornero, "de modo que a substancia completa se
e para sempre no éschaton. o éschaton, esta uniao será a marca da maior de
torne urna só 1magem . O casamento se torna um pré-requisito para a humanidade das mu-
lheres. O homem, por outro lado, representa por si só o divino" (von Kellenbach 1990 todas as redenc;oes. Se mesmo um texto que encara Eva como urna criac;ao
207~. '.ª<;~ questao de frisar que a posic;ao de Agostinho de nenhum modo representa tod~ secundá-ria realiza urna celebrac;ao tao festiva do sexo no casamento, imagi-
o cnsuamsmo.
58 "Considerai o Israel Segundo a Carne "
"Considerai o Israel Segundo a Carne " 59

ne o que deve se esperar da visao mais comum entre os rabis, segundo a


na qual foi criado o andrógino original 27 • ao é de se admirar, entao, q~e
qua! Adao e Eva (ou pelo menos a sua genitália) estavam incluidos fisica-
mente no primeiro ser humano. Agosúnho e outros escritores cristaos discuú~sem es~ di_fere~c;a entre o JU-
daísmo e o crisúanismo e considerassem os JUdeus mdtscunvelmente car-
Pode-se ver, entao, que na cultura rabínica a rac;a humana é marcada
desde o inicio pela corporalidade, a diferenc;a e a heterogeneidade. Para os nais".
rabis, a sexualidade faz parte do estado original da humanidade, e nao de
urna degenerac;ao sofrida depois da Queda. De acorde coro o judaísmo rabí-
OS RABIS E O SEXO:
nico, a humanidade nao teria sido rebaixada de urna condic;ao metafísica,
PALESTINA E BABlLO lA
nem sofrido urna Queda em direc;ao á sexualidade (Fardes 1989). A interpre-
tac;ao midráshica do texto citado acima apresenta o ser humano original
Os j udeus desdenhavam a beleza da virgindade, o que nao é de se admirar,
como urna pessoa de sexo dual, onde os dois sexos estao unidos num único
urna vez que cobriram de ignominia o próprio Cristo, que nasceu de urna
corpo. É a divisao do corpo andrógino que dá início á sexualidade: virgem. Os gregos admiravam e reverenciavam a virgindade, mas apenas a
Igreja de Deus a adorava com ardor.
Assim, o homem deixa pai e mae Qoao Crisóstomo, Sobre a Virgi ndade 1, 1)
se une a sua mulher
e os dois se Lornam urna só carne
esta passagem, o padre do século IV chama atenc;ao para a diferenc;a bási-
ca entre o judaísmo rabínico e o crisáanismo, além das origens gregas da va-
Nao há nada no texto bíblico, ou na interpretac;ao apresentada pelo midrash, lorizac;ao da virgindade. Mais urna vez, eu gostaria de frisar que esta visao
que aponte para o casamento como urna Queda ou urna concessao. A decla- está calcada numa realidade cultural. O casamento tem um valor positivo na
rac;ao definitiva dos rabis acerca do casamento encontra-se no Genesis Rabá: cultura rabínica, enquanto a virgindade tem uro valor negaávo. Dentro desta
estrutura, contudo, os rabis talmúdicos possuíam várias ideologias diferen-
E Deus disse: nao é bom que o lwmem fiqu e sozinho: assim nos fo¡ ensinado:
tes a respeito da sexualidade. Num dos extremos está Rabi Eliézer, que, se-
aquele que nao tem esposa, Cica sem bem, sem ajuda, sem alegria, sem
beneficio e sem expiai;ao. ( ...) R. Hia, filho de Gumadi, disse que, além disso,
gundo se diz, fazia amor coro a sua mulher "como se estivesse tomado por
nao é um ser humano completo, pois está escrito: "E Ele os abeni;oou e lhes deu o um demonio, descobrindo uro pedacinho (do corpo dela) e cobrindo-o logo
26
nome de Addo" [Gn 5,2). Há ainda aqueles que dizem que ele reduz a depois". Ele acreditava que o único objetivo do sexo era a procriac;ao. A sua
semelhani;a (com Deus], pois está escrito: "A imagem de Deus, Ele criou 0 visao de sexualidade estava muito próxima á de Clemente, cuja atitude mais
Adao" [Gn 9,6). E o que está escrito a seguir? "E quamo a vós, sede fecundos e positiva em relac;ao a este assunto era a mais posiúva dentre os Padres da
multiplicai-vos" [Gn 9,7). Igreja (Clemente 1989a, 259-63; Brown 1988, 133). Estas culturas nao de-
(Theodor e Albeck 1965, 152) vem ser encaradas como urna língua monolíáca, mas como urna colec;ao po-
lifónica de dialetos. o entanto, o leque de altemaávas dentro de cada
Este texto midráshico liga explicitamente a ideología dos rabis em tomo do formac;ao nao é o mesmo. A renúncia sexual simplesmente nao é urna opc;ao
casamento á sua interpretac;ao das histórias da criac;ao no Genesis. o objeú- viável dentro da ideologia e da formac;ao cultural rabínicas. Para alguns ra-
vo_ do casa~ento é o retorno á condic;ao de completude ou mesmo de imago bís palesúnos, porém, era possível assumir urna espécie de práúca sexual as-
de1 concreuzada pelo ato do matrimonio, que restabelece a Imagem Divina cética. Dentro do judaísmo rabínico, esta aútude é a que mais se aproxima
dos judaísmos helenistas de Fílon e Paulo. a verdade, há muitos indicios
que apontam para o fato de que o judaísmo palesáno dos rabis dos séculos
26 '? _grifo é n:ieu. Este é o exemplo mais claro de urna anUtese do pensamento de alguns
filosofos cnstaos, segundo os quais apenas urna pessoa virgem seria um ser humano
n e III estaria bem próximo da ideologia dos judeus helenistas em relac;ao a
com~le~o. Qualquer que seja a "condii;lio" das mulheres no judaismo rabinico. a ~mulher" sexualidade (apesar de os dois nunca se fundirem), enquanto que, á medida
nao e VlSta como urna carencia (como em Freud, por exemplo), mas como o preenchimento
de urna ~arencia. Retomarei este ponto no capitulo 3 e na conclusao, mas enquanto isso.
ver du8015 (1988). 27 Urna implicat;ao posslvel desta afirmat;ao é que a própria procriat;ao seria a imago dei. Há
outros textos rabinicos que certamente a interpretariam desta maneira.
60 "Considerai o Israel Segundo a Carne"
"Considerai o Israel Segundo a Carne" 61

que nos afastamos no tempo e no espar;o, esta ideología vai ficando cada vez que caracterizava a vida das escolas filosóficas helenistas - mas, sendo um
mais distante.
rabi, nao podia optar pelo celibato. O fato de ser casado, apesar de sua per-
sonalidade ascética, é um reforr;o <leste argumento.
O ponto de vista de Rabi Eliézer, porém, é apenas um dos pólos da dia-
Varia(óes Históricas do lética do discurso sobre a sexualidade no casamento dentro da literatura ra-
Discurso Rabínico sobre a Sexualidade bínica. Se é possível interpretar as opinióes <leste rabi da mesma maneira
que David Biale - "o objetivo ( ... ) era um casamento em que o hornero p~­
Como já mencionei acima, a figura rabínica cuja atitude em relar;ao ao sexo desse cumprir as suas tarefas de reprodur;ao , ao mesmo tempo que se man~1-
parece mais negativa é Rabi Eliézer (isto é, a figura de Rabi Eliézer descrita nha fiel a um ideal sexual ascético" (Biale 1989, 26) - nao é possível segutr
em boa parte dos escritos rabínicos e que pode representar ou nao a verdade
0 raciocinio <leste autor e ver neste asceticisroo o "objetivo dos rabis" ero ge-
histórica). O relato de como tinha relar;óes sexuais com a sua esposa é um ral. Mesmo nas histórias palestinas, Rabi Eliézer é apresentado como urna fi-
locus classicus da prática sexual ascética:
gura radical e nos textos talmúdicos da Babilonia, a su~ yrática _é
enfaticamente rejeitada. Como o próprio Biale observa, a prescnr;ao de nao
Perguntaram a Ima Shalom [Mae Paz], a mulher de Rabi Eliézer: "Por que tens se despir durante as relar;óes sexuais, implícita na história, é vigorosamente
filhos tao bonitos"? Ela respondeu: "Ele nao tem relai;óes comigo no inicio da
combatida por urna declara<;ao no Talmude da Babilonia:
noite, nem no final, mas apenas a meia-noite. Quando tem relai;óes comigo,
descobre apenas um pedacinho e lago depois o cobre de novo, e parece estar
tomado por um demonio". Rav Yossef citou urna tradi.;ao tanaitica: "Carne: isso significa a intimidade da
carne, ou seja, que ele nao deve se comportar com ela como os persas, que
(Talmude da Babilonia Nedarim 20a)
fazem amor vestidos". lsto confirma a opiniao de Rav Huná, pois Rav Huná
disse: "Aquele que diz, 'eu nao desejo isso, a nao ser que ela esteja vestindo as
A história apresenta urna atitude extremamente negativa em relar;ao ao pra-
suas roupas e eu as minhas', deve se divorciar de sua esposa e pagar-lhe o
zer sexual. O comportamento de Rabi Eliézer, que parece estar sendo condu- que foi estipulado no pacto de casamento".
zido por um demonio, aparentemente representa a sua convicr;ao de estar (Ketuvot 48a) 29
apenas cumprindo urna obrigar;ao que nao <leve ser desfrutada, mas executa-
da o mais rápido possível. O ponto de vista do texto (semelhante ao dos es- Entre as tres dividas que o hornero tern para com a sua esposa, estao "a car-
tóicos, de Fílon e de Clemente, entre outros) é o de que o sexo é legítimo, ne, a coberta e as épocas" (Ex 21,10). Apesar do último ítem geralmente ser
mas apenas com fins de procriar;ao. Quando o único objetivo do sexo é a re- interpretado como relar;óes sexuais e o primeiro como alime~to, Rav Yos_sef,
produr;ao, entao o resultado sao filhos bonitos 28 • Rabi Eliézer sente urna for- o babilónico, conhece urna tradir;ao tanaítica (talvez de ongem palesnna,
te atrar;ao pelo asceticismo como mod elo religioso - o mesmo asceticismo a pesar de nao ser citada nos textos desta regiao) em que o primeiro termo é
entendido como um sinónimo de intimidade corporal - o toque de pele du-
rante a relar;ao sexual. O rabi ve neste termo urna exigencia para que h aja
28 A continua~ao da história, comudo, torna esta interpreta~ao problemática:
nudez durante o sexo. Outros indicios desta diferenr;a entre a Palestina e a
~u perguntei a ele: "Qua! é o motivo [<leste comportamento estranho]"? E ele respondeu: Babilonia sao revelados pelo fato de um texto palestino relatar que Rabi Shi-
Para que eu nao pense em outra mulher e os meus filhos sejam bastardos". m'on, filho de Yohai, afirmou que Deus odiava aquele que tem relar;óes se-
xuais nu (Vayihrá Rabá 21,8), enquanto na versao babilónica do mesmo
Lendo este texto com cuidado, vemos que nao se trata de urna representa~ao clara de
urna atitude negativa em rela~ao a sexualidade. Apesar do comportamento de Rabi Eliézer
sem dúvida reduzir drasticamente o prazer sexual, este nao seria o seu objetivo, mas sim se 29 Nao se pode deixar de observar que no Talmude da Babilonia Berahhot Bb, Raban Gamaliel,
tomar a ex~ressao prática da severa proibi~ao rabinica de fazer sexo com urna rnulher que um fariseu palestino do século 1, cita os persas como um exemplo de comportamento
nao se deseJa completamente ou de imaginar outra parceira durante o ato sexua l. Foi urna sexual. Se esta rradi~ao realmente tem urna origem persa (ainda que nao possa ser
aluna_minha, Dr. Dalia Hoshen. que chamou minha atern;ao pela primeira vez para este an- atribuida historicamente a Raban Gamaliel}, é fascinante reparar como os rabis sassanidas
gulo mterpretauvo na sua tese de doutorado sobre a personalidade religiosa de Rabi Elié- rejeilavam urna prática oriunda de urna regiao próxima, enquanto os palestinos a
zer. Pa ra urna discussao mais detalhada desta leitura do texto, ver capítulo 4.
aprovavam.
62 "Considerai o Israel Segundo a Carne ..
"Considerai o Israel Segundo a Carne" 63
texto, a afinnai;ao passa a se referir aquel e ue 1 - .
quer outra criatura (Talmude da Babilonia ~idá t~;:.re ai;oes_<liante de qual- acostumada a seguir a opiniao do venerável sábio Rabi Yehuda, filho de
discute esta passagem). Quaisquer e v::
'. capitulo 4, onde se
da Palestina elas nao reíleu·am o qu: . ossdem as opm1oes de alguns tanaim
Betaira, no que diz respeito as palavras da Torá, de acordo com aquilo que
Rabi Yehuda, filho de Betaira, disse: 'as palavras da Torá nao sao suscetíveis a
' espmto e todo o jud · b' · impureza'". Quando Zeiri veio, ele disse: "anularam a imersao, seguindo a
várias passagens da literatura talmúdica pode-se a1smo ra . imco. Em
cético da sexualidade que mais ta d r . b . ~ncontrar um discurso as- opiniao de Rabi Yehuda, filho de Betaira''.
. . r e io1 su snrmdo por um d . .
ascenco, principalmente na Babilonia U d . . . lscurso ant1-
ambigüidade palestina sobre o . m os _sma1s ma1s claros da antiga Rabi Yehuda, filho de Betaira, urna antiga autoridade da Palestina, é apresen-
carpo e a sexuahdade é di - . . tado como um oponente do principio de imersao como um pré-requisito
ca a respeito da necessidad d . - a scussao talmud1-
e e 1mersao num banh · ¡ para o estudo da Torá depois do sexo. Ele defende a sua posii;ao através de
dar a Torá depois do aro sexuaPº: o ntua ames de se estu-
urna leitura técnica do texto, onde argumenta que, se as palavras da Torá
sao como fago , nao serao maculadas ao entrar em cantata com urna pessoa
~abi Yehoshua, filho de Levi, disse: Como podemos saber
nveram urna emissao seminal - d que aqueles que impura, nao havendo motivo, portanto, para que alguém que tenha se tom a-
nao po em estudar a To · 7 p · .
Ensina-as aos teus filhos fDt 4
91 El . ra . 01s esta escrito: do impuro através de urna emissao seminal nao estude a Torá. De acordo
diante do Senhor, teu Deus n; He b~ acrescemou ~ Isto: No dia em que escavas com a lei rabínica, a passagem pelo fago é urna das maneiras de purificar os
. - . , ore . ass1m como la aqueles que .
em1ssoes semmais estavam proibidos
.
. b' . uveram
, aqm tam em aqueles que ti
objetos. Assim, a Torá purificaría aquele que a estuda. A proibii;ao do estu-
emissoes seminais estao proibidos. veram do da Torá neste caso de impureza, porém, nao tinha um fundamento técni-
co nas leis. a verdade, estava baseada em principios morais/ psicológicos:
(Berahhot 2lb)
se a Torá devia ser recebida num estado de total concentrai;ao e espirituali-
Rabi Yehoshua, filho de Levi tra a dade, ela devia ser estudada nas mesmas condii;óes. Se nao fosse assim, se-
no monte Sinai e o estudo d; T i;_ um paralelo entre a transmissao da Torá
ria impossível explicar por que as mulheres menstruadas, cuja estado de
d enado aos judeus que nao ti ora em qualquer gerariio As · r
.,.... · sun como 1oi or-
vessem re 1ai;oes sexuais du - d. impureza técnica é identico ao dos homens que tiveram urna emissao semi-
d e receberem a Torá qualque rante tres ias antes nal (ou ainda mais severo), podem estudar a Torá sem passar pela imersao,
outro tipo de emissa~ semi Ir um que te~~a tido relai;óes sexuais ou algum
na estava pro1b1do de estud 1. . como se pode ver em vários pomos da literatura palesúna (ver p. 180). Além
rificado com um banho ritual. ar a e1 ate ter se pu- disso, a noi;ao de impureza relacionada ao culto únha sido abolida por cau-
No entamo, o Talmude (depois de urna discussao mais d sa da destruii;ao do Templo. É óbvio, portanto, que a idéia de que o homem
ponto, que nao nos interessa aquí) ind. 1 etalhada <leste devia passar por um banho ritual depois do sexo nao estava baseada em al-
nho ritual fo¡ anulada mais tarde A i~ade ~ramente que a exigencia do ba-
guma impureza técnica ligada ao culto, mas sim na noi;ao de que o sexo era
sente nesta idéia de irnpurez . . ans1e ~ e em tomo da sexualidade pre-
ª era mcompauvel com as · · -
teriam mais tarde a respeito do carpo: opm10es que os rabís
incompatível de alguma maneira com as atividades sagradas. A única con-
clusao a que se pode chegar, entao, é a de que a objei;ao de Rabi Yehuda, fi-
lho de Betaira, a necessidade da imersao ames do estudo da Torá constituí
Assim nos fo¡ ensinado: Rabi Yehuda filh . urna rejeii;ao da moral que o texto palestino representava. Esta opiniao é de-
palavras da Torá nao sao s . . ' . o de Beta1ra, costumava dizer: "as
usceuve1s a impureza" Hou d fendida mais tarde por Rabi 1 ahman, filho de Itzhak, urna autoridade da Ba-
que estava hesitando em falar . ve o caso e um aluno
Este lhe disse: "meu filho ab na bpreseni;da _de Rabi Yehuda, filho de Betaira. bilonia, e pela tradii;ao palestina de Rabi Zeiri. Estas rradii;óes mais tardías
, re a oca e eJXa que tuas pal b 'lh sao urna indica<;ao da mudani;a de ponto de vista que havia acorrido diacro-
as palavras da Torá nao sao suscetíve· . . ª':ªs n em, pois
minhas palavras sdo como fi is a unpureza. Está escnto: Eis que as nicamente - urna mudani;a que o texto torna explícita ao afirmar que a prá-
fogo nao é tocado pela . ogo - uma Jala do Senhor Ur 23,29). Assim como o tica anterior únha sido revogada. O fato de ter tido relai;óes sexuais nao era
impureza, as palavras da T · - -
impureza".( .. .) Rav ah fi ora nao sao tocadas pela mais considerado um obstáculo para o estudo sério da Torá, assim como a
man, ilho de ltzhak, diz: "a comunidade está
menstruai;ao nao fara considerada um obstáculo num momento anterior, na
Palesúna. É mais plausível interpretar esta mudani;a como um sinal da exis-
JO Para urna outra leicura dest · ¡ tencia de discursos diferentes sobre a sexualidade do que como urna altera-
e matena , ver Eilberg-Schwartz ( 1989).
i;ao do status da Torá.
64 "Considerai o Israel Segundo a Carne "
··considerai o Israel Segundo a Carne " 65

P~~e~se perceber o_utros indicios da incompatibilidade entre a aceita~ao do ao mundo. Pois está escrito: Eu disse: sois anjos e criaturas celestiais, mas
em_u st_asuca ~a sexuahdade e a exigéncia do banho ritual depois de toda
tivestes um comportamento indigno; por isso morrereis como Adao [SI 82,6)'"
em1ssao semmal em alguns relatos curiosos, que falam de tentativas anterio-
(Talmude da Babilónia Avodá Zará 5a). O aforisma de Resh Lakish é sutil e
res de reduz~r (talve~) as conseqüéncias da necessidade de imersao depois
complexo. A primeira vista, parece dar um valor altamente negativo á sexua-
do se~o na v1da_senumemal dos estudiosos da Torá. O Talmude apresenta a
narrauva a segurr: Jidade, permitindo a sua presen~a apenas como um meio de procria~ao; tra-
ta-se, entao, de urna posi~ao semelhante ás ideologias de Fílon e Clemente.
Urna leitura mais atenta, porém, revela uro significado mais complexo e so-
Os rabis ensinaram: aquele que reve urna emissao toma-se puro depois que se
derrama s_obre ele nove celamins de água. Nahum, 0 homem de Guimzó,
fisticado. Primeiro, é preciso nao esquecer que a afirma~ao de Resh Lakish
segredou 1sro a Rabi Akiva, que segredou a Ben Azai, que foi e ensinou no nao apresenta nenhuma alusao direta á sexualidade. O salmo que ele cita se
mercado. refere apenas a males sociais, como o fato de os pobres serem maltratados
Dois a111~rai111 [auro_ridades posteriores] discordaram a este respeito no nos tribunais que favorecem apenas aos ricos. Assim, Resh Lakish estaría
oeste [Palesnna). Os d01s eram Rabi Yosse, filho de A·"~ .... ., e Ra bº1 y osse, r·1
1 110 afirmando que deveríamos ser gratos por nossos ancestrais terem pecado
d~ Zevidá. ~m diz "ensinou" e outro "segredou". Aquele que diz "ensinou", (ainda que nao sexualmente), pois trouxeram a morte para o mundo, sem a
d1z [que _fez_1sso para evitar] a negligencia do estudo da Torá e a negligencia qua! nao haveria novas gera~oes e nao existiríamos. De acordo coro esta in-
da pr~cnac;ao , enquanto aquele que diz "segredou" nao queria que os terpreta~ao, Resh Lakish nao estaría chamando explicitamente a rela<;ao se-
estudiosos da Torá avanc;assem em suas mulheres como galos. xual de pecado. No entanto, ao partir do principio de que antes do pecado
os ancestrais eram como anjos, nao morriam e, portanto, nao procriavam, o
É d~fíci~ imaginar urna representa~ao rnais perfeita desta ambivaléncia. Ben apotegma apresenta a mesma associa~ao entre sexualidade, pecado e morte
Az~1 fo1 ao mercado e d_eclarou que bastava tomar banho depois de fazer que está por trás do ideal cristao a respeito da Queda e do Pecado Original.
sexo para estudar a Tora, ou entao fez o contrário, segredando como seus Mesmo levando isso em considera~ao, a declara<;ao de Resh Lakish, ao de-
professores.
_ Estava .tentando evitar que os estudi·osos negl.tgenc1·assem a fender a vinda ao mundo, está longe de ter um espirito crista o. É difícil ima-
Tora ou as suas obnga~óes sexuais, ou entao pretendia evitar que fizessem ginar uro escritor da igreja primitiva argumentando que deveríamos estar
sexo_~om urna freqüéncia exagerada. De qualquer maneira, este texto toma gratos a Adao e Eva por terem pecado. O Talmude da Babilonia, porém, nao
exphcna .ª tensao entre a polu~ao seminal e a defesa da sexualidade31. o Tal- aceita sequer estas associa<;óes ténues e irónicas, pois o texto continua:
mude deixa esta questao em abeno, mas a halaká mais tarde é codificada de
acord~ com a opiniao de Rabi Yehuda ben Betaira, apoiada por Rav Nah- Entao podemos dizer que se nao óvessem pecado, nao teriam procriado? Mas
man, ft!ho de Itzhak, segundo a qua! a questao da impureza seminal é irrele- está escrito: E quanto a vós, sede fecundos e multiplicai-vos. Até o Sinai. Mas
vante para o _estudo da Torá. Já vimos alguns indicios de que no~óes [isso nao pode estar correto, pois) no Sinai também se diz: Voltai ds vossas
altamente a~btvalentes a respeito do sexo eram mantidas por amigas autori- tendas, [ou seja,) para a alegria do amor. ( .. .) ao digas que nao teríamos
da~e~ palestma: e de que esta ambivaléncia sofreu urna redu~ao no período vindo ao mundo, mas sim que seria como se nao óvéssemos vindo.
rab1 mco postenor (principalmente na Babilonia). Veremos que este padrao
se repete em outros textos. Rashi, um intérprete do século XI, entendeu esta passagem da seguinte ma-
Alg~~a: velhas autoridades palestinas parecem manter urna atitude alta- neira: "pois teriam vivido para sempre e, enquanto vivessem, nao teríamos
mente nenhuma importancia". O Talmude da Babilónia nao podía tolerar as impli-
. . 1romca e ambigua em relar-ao .. á sexualidade. Urna d as expressoes -
mats ca~óes irónicas e ascéticas da afirma<;ao original de Resh Lakish, nem a sua
d pttorescas desta atitude é urna declarar-ao
.. de Resh Lakish , u rn palesnno
· ct-·
ta o (e contestado) no Talmude da Babilonia· "Disse Resh Laki h ' · possível associa~ao a doutrina crista. Para evitar estas implica~oes, o Tahnu-
. . · s . : sejamos
gratos aos nossos ancestra1s, p01s se nao tivessem pecado, nao teríamos vin- de distorceu o significado mais óbvio da senten~a , fomecendo-nos indicios
importantes de urna outra maneira de se encarar a sexualidade, através da
31
expressao "a alegria do amor". Em oposi~ao a urna determinada opiniao ra-
0
ca pítulo 4 explicarei por que substituo o iertno "procriai;ao" por "sexualidad " d bínica (segundo a qual o sexo destinava-se apenas á procria~o) , havia outro
crever esta cultura. e ao es-
ponto de vista que clava um grande valor ao prazer sexual por si só. Este
66 "Considerai o Israel Segundo a Carne "
"Considerai o Israel Segundo a Carne " 67

dado nao se encaixa na descrü;ao que Brown faz da sexualidade para "os ra- ele acordou. Quando passou o efeito do vinho, perguntou a ela: "Minha filha,
bis" como "um aspecto irritante, mas necessário da existéncia". onde estou"? Ela respondeu: " a casa do meu pai''. Ele perguntou: "O que
Além disso, há alguns textos rabinicos que reconhecem o valor emocio- estou fazendo na casa de teu pai''? Ela !he disse: "Nao me disseste, esta noite
nal do sexo no matrimonio. Assim, quando é preciso decidir se 0 casamento mesmo: 'qualquer objeto precioso que houver nesta casa, pegue-o e vá para a
~eve_ ser consumado para se tomar válido, isso se dá nos seguintes termos: casa de teu pai'? Nao há nenhum objeto neste mundo que eu ache mais
Rav1~ pergun~ou: se ela entra no teto conjugal, mas nao tem relac;oes, qual precioso do que tu"! Foram a presern;a de Rabi Shimon, filho de Yohai. Ele se
é a lei. É a afe1c;ao do teto conjugal que efe tu a o casarnento, ou a afeic;ao das ergueu e rezou pelos dois, e eles foram lembrados [i.e., ela ficou grávida).
relac;oes"? (Talmude da Babilonia Ketuvot 56a). Este texto revela duas coisas. (Shir Hashirim Rabá 1,31 )
Primeiro, a validade do ato formal do casamento depende de um sentimento
de ~ntimidade; segundo, este sentimento de intimidade é produzido pela re- Há um ponto completamente ilógico nesta narrativa, que do contrário apre-
lac;ao sexual (urna vez que este é um de seus objetivos)32 . sentaria urna estrutura perfeita. Por que dizer que "ela fez com que o marido
Os argu~entos mais fortes de que a procriac;ao nao era o único objetivo -ficasse bébado demais" e, mais adiante, "quando recuperou os sentidos, ele
do s~o no Judaísmo rabinico vém de textos e situac;oes em que 0 sexo e a disse ..."? Qual é a func;ao desta embriaguez, u rna vez que a única coisa que
procnac;a_o sao colocados como fatores separados, ou em que chega a haver sabemos sobre ela é que o marido recuperou os sentidos mais tarde? Por
um confino entre os dois, como na situac;ao da mulher estéril. Na história a que era importante que ele estivesse bébado demais? Repare que n ao é pos-
seguir, a procriac;ao e a parceria erótica entram em confuto, mas é 0 amor sível interpretar esta embriaguez como a causa do marido dormir a ponto de
que vence: nao perceber que estava sendo carregado, pois isso só ocorreu depois de ele
ter recuperado os sentidos. Creio que a maneira mais plausível de se preen-
Exultaremos e nos alegraremos contigo [Cllntico dos Cllnticos 1,4). A este cher esta lacuna seria supor que a história insinua delicadamente que os
respeito ensinamos: se um homem se casou com urna mulher e ficou com ela dois fizeram amor enquanto ele estava bébado, e que durante este ato se de-
durante dez anos sem ter filhos, ele nao pode se abster da procriac;ao [i.e., ram conta de que seu amor era grande demais para permitir que a halaká os
<leve divorciar-se dela e se casar com outra]. separasse. Este parece ser o plano original da mulher, urna ve.z que "ela fez
Disse Rabi Idi: houve o caso de urna mulher em SidOnia que viveu dez com que o marido ficasse bébado demais", bébado demais para resistir.
anos com o marido sem dar a luz. Eles foram a presenc;a de Rabi Shimon Além disso, este também parece ter sido o plano do rabi. Se nao, qual seria a
filho de Yohai; queriam se divorciar. Ele !hes disse: "Pelas vossas vidas _·
sua inten~ao ao sugerir que fizessem um banquete de casamento para cele-
assim como vos casastes com banquetes e bebidas, vos separareis com
brar o seu divórcio? Na verdade, as próprias palavras que emprega sao su-
banquetes e bebidas". Os dois seguiram a sua sugestao e prepararam urna
gestivas, pois diz literalmente: "assim como vos unistes com um banquete,
festa e um banquete, onde ela fez com que o marido ficasse bebado demais.
vos separareis com uro banquete". A palavra que traduzimos como "se unir"
Q~ando re~uperou os sentidos, ele disse: "Minha filha, escolhe qualquer
ob~;to precioso desta casa e leva-o contigo quando fores para a casa de teu (ni_zdavagtem) tem urna óbvia conotac;ao sexual. É possível que ele nao pre-
pat · O que ela fez? Enquanto ele dormia, chamou os criados e as criadas e visse como a mulher seria inteligente na realiza~ao de seus desígnios, nem
disse: "Carregai a cama dele e levai-o para a casa de meu pai''. A meia-noite, quais seriam os meios que empregaria. De qualq uer maneira, a história só
faz sentido se o rabi estivesse tentanto afastá-los com cuidado e de forma in-
direta da intenc;ao devota de se divorciar. Quer esta interpretac;ao esteja cor-
32 Ver Brown a respeito da noc;áo d~ chdris proposta por Plutarco: "a 'amabilidade' criada pela reta ou nao, o texto opóe o "amor" a procriac;ao como o objetivo básico do
relac;:lo sexual - esia qualidade mdefinlvel de confianc;a mútua e afeic;.á o obtida através do
casamento, e é ele que acaba vencendo no final. É óbvio que, dentro <leste
prazer na cama", noc;áo aparentemente t:lo estranha a Ftlon quamo a Clemente (Brown
1988, 1?3). De fato, eu diria que o principio rabinico do amor conjuga! t muito semelham e contexto, a história <leve recuperar a halaká através do deus ex macltina da
a doum?a de Plutarco descrita por Foucault (1986a, 207-08). Estas semelhanc;as abarcam gravidez milagrosa. No entanto, ao decidirem ficar juntos durante o tempo
referénc1as favoráveis as leis de Sólon que regulam a freqüéncia com que 0 marido deve ter que fosse necessário para que a orac;ao do rabi fizesse efeito, os dois já esta-
relac;Oes com urna esposa casta como um "sinal de estima e afeic;áo". Compare esia passa-
gem com o Talmude Yevamot 62b: "aquele que ~abe que a sua esposa t tememe a Deus e vam violando a halaká, atitude que obviamente é aprovada pelo narrador da
n~o do~e com ela é chamado de pecador". Ver, contudo, Fox (1987, 349) para urna des- história. Esta lenda pode representar uro momento de tensa.o entre a opiniao
cnc;áo diferente da posic;áo de Plutarco.
de que a procriac;ao era o único (ou o mais importante) objetivo do casa-
68 "Considerai o Israel Segundo a Carne" "Considerai o Israel Segundo a Carne " 69

mento e urna voz que acreditava na importancia crescente do companheiris- humana e "um aspecto permanente da personalidade". Rabi Eliézer talvez
mo. Esta tensao apresenta urna semelhanc;a tipológica coro urna transforma- seja o exemplo mais radical deste discurso. A opiniao transmitida pela tradi-
c;ao no mundo romano descrita por Paul Veyne: " o velho código civil, a c;ao posterior, principalmente na sua variante babilónica, nao admitia sequer
esposa nao passava de um acessório para o trabalho do cidadao e pater Ja- esta ambigüidade. Os dois pontos de vista dao urna importancia central a
milias. Ela produzia filhos que aumentavam o patrimonio da familia. o procriac;ao, mas apenas as modalidades mais tardias parecem encarar a se-
novo código, a esposa era urna amiga, urna 'companheira para a vida"' xualidade como um benefício de Deus para o prazer e o bem-estar dos seres
(1987, 37)33. Em termos históricos, a prática dos judeus de fato se modifi- humanos.
cou e a halaká que obrigava todo hornero casado com urna mulher estéril a Eu gostaria de propor urna hipótese que talvez possa explicar historica-
se divorciar deixou de ser observada na prática34 . A parceria sexual passou a mente a relac;ao entre estes dais discursos sobre a sexualidade. Como afir-
ser valorizada por si só, mesmo nos casos em que a procriac;ao era impossí- mei acima, no século 1 nao havia urna distinc;ao clara entre o judaísmo
vel, ou contra-indicada por motivos de saúde. Há outros fatos que corrobo- helenista e o farisaico. Fílon, Paulo e Josefa sao urna prava disto; apesar de
ram esta conclusao: a prática rabínica recomenda que o sexo continue a ser serem judeus urbanos altamente aculturados e falantes do grego, todos pos-
praticado durante a gravidez e depois da menopausa; recomenda-se aos viú- suíam um grande conhecimento da cultura judaica (ou mesmo hebraica) e
vos que se casem novamente (no Talmude da Babilonia Shmuel Yevamot aparentemente nao há como distinguí-los de outros judeus palestinos no
6lb), mesmo depois de terem cumprido a obrigac;ao da procriac;ao - os viú- que diz respeito as suas práticas religiosas36 . Há indicios de que os judeus
vos, aliás, podem se casar até mesmo com urna mulher comprovadamente de língua semítica que habitavam as cidades da Palestina também sofriam
estéril. Compare esta posic;ao, mais urna vez, com o pensamento de Filan e urna influencia considerável da cultura grega. Paulo, contudo, criou o cris-
Clemente, segundo os quais a procriac;ao era a única justificativa para o ato tianismo gentilico, que, além de sua cristologia, apresenta urna grande afini-
sexual (Clemente l 989b, 391-92, 394; Clemente l 989a, 261 35; Brown 1988, dade com cenas tendencias alegorizantes e espiritualizantes do judaísmo
133; Winston 1981, 368). helenista, cuja influencia platonicista se fazia sentir com muita forc;a no Egi-
O quadro geral que posso pintar - ainda que com alguma cautela - é o to e, provavelmente, também na Palestina. Afinal, Fílon atacou várias vezes
de uro discurso mais amigo sobre a sexualidade, originário da Palestina e aqueles que afirmavam que um significado alegórico tinha substituido a prá-
aparentemente mais próximo da filosofía dos estóicos, pensadores que de tica material dos mandamentos, o que confirma a existencia destes grupos,
fato consideravam o sexo urna parte irritante, mas necessária, da existencia que provavelmente nao diferiam muito do cristianismo de Paulo37. Com a
crescente ameac;a a integridade física do pavo judeu que estas tendencias
platonicistas representavam dentro do judaísmo - e que culminaram no
33 uDuas coisas os uniam, ele [Ovidio] dizia: o 'pacto matrimonial' e 'o amor que nos transfor- surgimento do cristianismo pós-paulino - os rabis passaram a rejeitar de
ma em parceiros'. Era possivel surgir alguns conflitos entre o dever e estes sentimentos ca-
rinhosos que brotam por acaso. O que fazer, por exemplo, quando a mulher é estéril? forma cada vez mais enfática qualquer visao dualista da relac;ao entre carpo
Segundo as palavras do moralista Valério Máximo, 'o primeiro homem que repudiou a mu- e alma. Esta rejeic;ao - que os padres classificaram como carnalidade -
lher por ela ser estéril tinha um motivo aceitável, mas náo pode fugir á censura [reprel1 en- acabou se tornando a marca registrada da formac;ao rabínica. A tentativa de
sio], pois nem mesmo o desejo de ter filhos deveria ser mais forte do que a eterna devoc;ao
á esposa'" (Veyne 1987, 42). Proponho que a história escudada acima represente ao menos
se afastar o máximo possível do dualismo platónico e do estoicismo trazia
urna acomodac;ao parcial a esta moral romana, amecipada por certas idéias "nativas" a res- consigo urna lógica que desembocaria na afirmac;ao da sexualidade per se. É
peito do papel da sexualidade e da intimidade do casal. esta afirmac;ao da sexualidade que procurei registrar aqui. Durante a ldade
34 Ver o texto extraordinário de um rabino ortodoxo do século XIX, citado por Winston
(1981, 369): "Os sabios das gerac;oes passadas náo tinham coragem de permitir na prática
Média, porém, haveria urna inversao desta tendencia histórica, quando o
o divórcio á revelía da mulher, nem o casamento com outra esposa por motivos de esterili- pensamento grego voltou a influenciar o amago da prática cultural judaica.
dade".
35 Clemente proíbe explícitamente que se tenha relac;óes sexuais com urna mulher grávida ou
lactante, assumindo urna posic;ao contrária a dos rabís. Filon também proibia re.lac;oes se-
xuais com urna mulher estéril (Fllon 1937, 497). É impressionante o puritanismo dos edito-
res vitorianos da obra dos padres pré-nicenos, que houveram por bem expurgar os escritos 36 Até a "conversáo" de Paulo, é claro.
de Clemente, traduzindo-os do grego para o latim, e nao para o ingles. O que os teria feito 37 Esta é apenas urna das explicac;oes possiveis para a posic;ao de Paulo. No entanto, é a que
acreditar que deviam ser mais píos do que um santo Padre da lgreja? me parece mais convincente, como argumentarei num trabalho a ser publicado.
70 "Considerai o Israel Segundo a Carne" "Considerai o Israel Segundo a Carne" 71

A VOLTA DO DUALISMO: urna mulher casada, nunca deixa de procurar outro homem que substitua o
A INTERPRETA\:ÁO QUE MAIMÓ IDES DÁ A EVA seu marido, enganando-o e seduzindo-o de todas as maneiras, até que ele
obtém dela aquilo que o marido obtinha antes.
(Maimonides 1963, 431 )
A religiao e a cultura dos escolásticos medievais, liderados por Maimónides,
sao bem diferentes daquelas dos rabis38 . A leitura que Maimónides faz da
A imagem da "mulher" e do "homem" enquanto matéria e forma, e o princí-
história da criac;ao de Adao e Eva introduz na cultura rabínica posterior a
mesma dualidade que os rabis midráshicos tanto evitavam. Maimónides pio físico segundo o qual a matéria sempre busca urna forma em constante
mudanc;a, condena a mulher (enquanto um termo alegórico) a prostituic;ao
aceita e interpreta a visao rabínica tradicional, segundo a qua! a criac;ao de
Eva representava a divisao em duas partes de um único ser andrógino. No ontológica. Costumamos nos referir a este tipo de alegoría como urna perso-
entanto, esta narrativa deixa de ser entendida literalmente como a criac;ao de nificac;ao, esquecendo que ela também representa urna reificac;ao das pes-
soas. Quando estas pessoas nao sao personagens fictícios, e sim categorías
um corpo andrógino que sofre urna divisao física em dois corpos diferentes,
um masculino e ourro feminino; pelo contrário, ela passa a ser vista como de seres humanos reais, as implicac;óes sociais desta tendencia podem ser
muito graves - ou até mesmo catastróficas. Maimónides leva ainda mais
urna alegoría. Mais urna vez, o conteúdo desta imagem fundamental temati-
za e justifica a própria forma da alegoria 39 . longe as suas afirmac;óes acerca da relac;ao entre matéria e forma:
Maimónides justifica a sua guinada em direc;ao a urna interpretac;ao ale-
Por exemplo, a percepcao que o hornero tem de seu Criador, a representac;ao
górica ao citar um exemplo explícito de Platao: "pois ocultaram o que ti-
mental que faz de tudo aquilo que é inteligivel, o controle sobre o seu próprio
nham dito sobre os primeiros princípios e o apresentaram através de desejo e sua raiva ( ... ) sao conseqüencias diretas de sua forma. Por outro
enigmas. Assim, Platao ( ... ) designou a Matéria como o feminino e a Forma lado, o ato de comer, beber e copular, assim como seu desejo ardente de fazer
como o masculino" (Maimónides 1963, 43; ver Klein-Braslavy 1986, 198). estas coisas, além de sua raiva e todos os maus hábitos que possui, sao urna
Este exemplo, apresentado aparentemente ao acaso, acaba se tornando a ale- conseqüéncia direta de sua matéria. Visto que este postulado é obviamente
goría central da obra de Maimónides. A conexao da matéria com o feminino verdadeiro e levando em conta aquilo que fo¡ estabelecido pela sabedoria
segundo este pensador, está baseada no fato de que "mulher" é o nome qu~ divina, a matéria nao pode existir sem a forma, nem as formas podem existir
se dá aquilo que precisa ser unido a outra coisa, e a matéria, na física plató- sem a matéria. Assim, é necessário que a nobre forma do homem - que,
nico-aristotélica, deseja se unir a urna forma. O estarrecedor é a facilidade como explicamos, é a imagrni de Deus e Sua srnielhan~a - esteja ligada a
com que a ontologia de Maimónides e a sua conseqüente prática hermenéu- matéria grosseira, turva e sombría, que atrai para o homem todo tipo de falta
tica o levam a exprimir lima misoginia virulenta, bem mais forte do que e corrupc;ao.
(1963, 431)
qualquer exemplo encontrado na formac;ao mais antiga do judaísmo midrás-
hico:
A afirmac;ao de Maimónides, com o seu horror a matéria e sua repulsa a
Como é extraordinário aquilo que Salomdo disse em sua sabedoria vida corporal, é digna de qualquer neoplatonista. Como seria de esperar, a
comparando a matéria a urna prostituta casada. Pois a matéria nun~a é sua doutrina a respeito da sexualidade é muito diferente daquela imposta
encontrada desligada da forma e, portanto, é como urna mulher casada que pelos rabís talmúdicos: "Quanto a cópula, nao preciso acrescentar mais
nunca fi ca separada de um homem e nunca está livre. Contudo, apesar de ser nada aquilo que afirmei no meu Comentário sobre Avot, a respeito da aver-
sao com que ela é encarada por aquilo que está escrito na nossa pura e
sábia Lei, e da proibic;ao de que seja mencionada ou se tome, por algum
38 Fac;o quesLao de frisar a palavra "escolasúcos", pois também havia outras tendéncias apos-
motivo, assunto de conversa" (1963, 434). Para ver como o rabino medieval
tas no JUdaismo medieval. Na época em que fo¡ elaborada, na verdade, a filosofía de Mai-
mónides era considerada herética por rnuitas - se nao a rnaioria - das autoridades estava distante dos rabis do Talmude e do midrash, basta confrontar a afir-
judaicas. A sua alegorizac;ao do mito rabln ico e do antropomorfismo biblico de Deus ern mac;ao de que a Torá teria "aversao" ao sexo e ao corpo em geral com a his-
pani cularm~nte combatida. Além disso, neste periodo tarnbém foram escritos textos que se tória talmúdica do discípulo que se escondeu embaixo da cama do professor
opunham d1retamente a visao negativa que únha do corpo e da sexualidade.
39 Boa pane das afirmac;óes que se seguem estao baseadas em Klein-Braslavy (1986, 193 et para ve-lo fazer amor com a sua esposa, "pois isso é Torá e eu devo apren-
seq.).
72 "Considerai o Israel Segundo a Carne"

d er "~º . Enquanto os ra b1s


. mostravam aceitar com tranqüilidade corpo e
0
sexo no casamento, chegando a discutir estes assuntos com toda a liberda-
0 2
de, Maimónides os encara como motivo de vergonhat1.
Maimónides aceita e perpetua a interpreta~ao midráshica segundo a
qua! a mulher teria sido criada ao mesmo tempo que 0 homem. Contudo A Dialética do Desejo
. d . ' ªº
mtro uz1r urna concep~ao platónica da linguagem, aliada a conceitos da físi- "O Instinto do Mal é Muito Bom "
c~ arist~télica, consegue minar o significado cultural do próprio midrash.
S1m, Adao e Eva foram criados num só, apenas porque a matéria e a forma
n~o p~dem existir isoladamente. Quanto a narrativa do segundo capítulo do
Ge_nes1s - que,. de acordo com o midrash, descreveria a separa~ao desees
d~1s seres - Ma1mónides afirma que, na verdade, ela descreve apenas 0 con- Longe de fazer parte de sua heran~a cultural, o valor positivo que os rabis
fino entre forma e matéria. Ainda que para Maimónides a matéria estivesse atribuíam á sexualidade parece ter encontrado urna enorme resistencia. O
em harmonía com a forma antes da separa~ao da mulher, isso deixa de ser Talmude conta urna estranha história sobre aqueles que voltavam do exilio
verdade ~ais tarde. ~aí a matéria - o corpo - ser chamada de "um ajudan- na Babilonia:
te que esta contra ele . Neste momento, o judaísmo rabínico descreve um cír-
c~lo completo. Maimónides nao parece nada mais do que urna retomada de [l] "E eles invocaram Deus em voz alta" [Ne 9,4). O que disseram? Rav (e
F1lon. alguns dizem Rabi Yohanan) diz: "Ai, ai: este é aquele que destruiu o templo,
N~ p~óximo capítulo,_~eremos a tensao que estava embutida no esfor~o queimou o local Sagrado, matou todos os justos e exilou Israel de sua terra.
de atnbu1r um valor pos1t1vo ao desejo sexual, num ambiente cultural em Ele ainda dan<;a entre nós. Por que Tu o enviaste? Nao foi para recebermos
que ele era bastante problemático. urna recompensa [por resistir-lhe]? Nao o queremos, nema sua recompensa"!
Caiu do céu um pedac;o de madeira em que estava escrito a palavra "verdade".
Rav Hanina disse: isso é para aprrnderes que o selo do Santissimo, Louvado seja,
é a verdade! Eles se sentaram de jejum durante tres dias e tres noites, até que
ele !hes fo¡ entregue. Urna figura como um lea.o de fogo saiu do Santo dos
Santos. Um profeta disse para Israel: "Aquele era o Desejo de adorar deuses
estranhos, como está escrito: Este é o mal" [Zc 5,7). Enquanto o prendiam
novamente, arrancaram um fio de e.abeto de sua cabec;a. Ele gritou e sua voz
podía ser ouvida a urna distancia de cem parasangas [A distancia total entre o
céu e aterra é de 500 parasangas!]. Disseram: "O que faremos? Pode ser -
que Deus nao permita - que tenham pena dele nos céus". Um profeta !hes
disse: jogai-o dentro de um pote de chumbo e fechai sua boca com o
chumbo, pois este material absorve o som, como está escrito: Este é o mal, e
ele colocou um peso de chumbo em sua boca" [loe. ci t )
(2) Disseram: "Já que esta é urna época de grac;a [divina], rezemos contra o
Desejo do pecado sexual". Rezaram, e ele foi entregue em suas maos. Ele lhes
disse: "Cuidado, pois se matarem este, o mundo vai acabar". Aprisionaram-no
durante tres dias e quando foram procurar um ovo fresco em toda a terra de
40 Talmude da Babilonia, Berakhot 62a. Farei urna leitura mais profunda des1a história e seus
congéneres em outra se~ao deste rrabalho. Israel, nao conseguiram encontrar nenhum. Disseram: "O que faremos? Se o
41 É ve~~ade que se poderia reunir várias semen~as rablnicas que defendem a posi~ao de Mai- matarmos, o mundo vai acabar. Se rezarmos pela metade [i.e., para que as
~O~i es. De qualquer maneira, a aJirma~o de que a Leí, Leria aversao a cópula nao tem pessoas só tenham desejo pelo sexo permitido; Rashi ], no céu nao respondem
un _amen~o dentro das fontes 1almúclicas. De fato, os oponentes mais Lradicionais de Mai- a orac;óes feítas pela metade. Cegai-o e deixai-o partir". Pelo menos, o homem
mo1~1des (1.e., os nao-aristotélicos) atacavam-no diretamente neste ponto, ou em outros se- nao fica excitado pelas mulheres que sao suas parentes.
me ames, como a corporalidade de Deus e a ressurreii;ao corporal.
{Talmude da Babilónia Yoma 69b)
74 A Dialética do Desejo A Dialética do Desejo 75

Este talvez seja o melhor exemplo, em todo o Talmude, do pensamento e da concomitantes negativos. Estes elementos devem ser controlados, o que só é
expressao essencialmente míticos desta cultura. Creio que esta narrativa é ossível com alguma dificuldade. O desejo é chamado de "Desejo do Mal"
uro mito verdadeiro - um relato que nao é ficticio, nem histórico (Boyarin por causa dos elementos negativos e anárquicos que ele necessariamente
1993a), mas que articula a visa.o de mundo e os significados mais profundos ~az consigo. Para os rabís, entao, o desejo sexual lícito e sua expressao nao
de urna coletividade. No entanto, mesmo que este texto seja !ido como urna eram absolutamente maléficos. Esta interpretai;:ao nos oferece indicios im-
simples alegoria, os resultados sera.o os mesmos dentro dos nossos propósi- portantes para entender várias senteni;:as rabínicas aparentemente misterio-
tos. sas.
É através desta história estranha e sombria que os rabis do Talmude co- Muitos ditas rabínicos parecem identificar paradoxalmente o "Desejo do
municam as suas opinióes mais profundas a respeito da psicologia humana Mal" como bem. O exemplo mais claro talvez seja o trecho a seguir:
e, principalmente, da complexa noi;:ao de Yetser Hara', que é o tema <leste ca-
pítulo. O conceito de Yetser Hara', que costuma ser traduzido como "Inclina- Nahman, em nome de Shmuel [disse]: Eis que era bom [Gn 1,31 ]. Este é o
<;:ao do Mal", é urna das mais fascinantes formai;:óes da cultura talmúdica e, Desejo do Bem. Eis que era muito bom [ibid.]. Este é o Desejo do Mal!
na minha opiniao, urna das mais mal compreendidas. O Desejo do Mal na verdade é bom? Absurdo!
A primeira metade da história é um mito etiológico que explica por que Nao, pois sem o Desejo do Mal, o homem nao construirla sua casa, nao se
casarla com urna mulher, nem terla filhos .
os judeus da era rabínica nao se sentiam mais atraídos pela adorai;:ao de ído-
{Theodor e Albeck 1965, 73)
los. Depois de voltar do exilio na Babilonia, os judeus rezaram a Deus para
que o desejo <leste tipo de culto fosse eliminado e suas preces foram atendi-
Trata-se de urna óbvia rejeii;:ao do dualismo ético, ou seja, da doutrina de
das. Conseguiram capturar o Desejo da idolatria e executá-lo. a segunda
metade da narrativa, os judeus tentaram se Livrar do desejo da transgressao que há duas fori;:as num combate constante dentro do ser humano, urna n?
sexual (i.e., adultério e incesto) da mesma maneira. Capturaram a personifi- lado do bem e a outra no lado do mal. Ao contrário de outras formai;:óes reli-
giosas do ambiente em que viviam os rabís (incluindo algumas que perten-
cai;:ao do Desejo, mas ele próprio avisa que a sua existencia é necessária
para a continuai;:ao do mundo. Cheios de prudencia, ao invés de matá-lo re- ciam ao judaísmo), segundo as quais havia fori;:as apostas para o bem e o
solvem prende-lo por tres dias e descobrem que nao existe mais nenhum mal, os rabís acreditavam que tuda vinha de Deus; e se tudo vinha de Deus,
entao tuda era bom. Esta interpretai;:ao da passagem citada é confirmada
ovo em todo o mundo. O ovo, é claro, é o maior símbolo da procriai;:ao e da
renovai;:ao. Ao se dar canta de que a situai;:ao nao tero remédio, pois ora<;:óes pela existencia de textos paralelos que aparecem no mesm~ context~; on_d e
0 sofrimento, a punii;:ao e até mesmo o inferno sao considerados multo
feitas pela meta de nao sao atendidas, decidem cegá-lo e deixá-lo partir. O
bons". É preciso, entao, interpretar o Desejo do Mal <lestes rabís de forma
ato de cegá-lo faz com que o desejo de cometer incesto com parentes próxi-
mos diminua, mas isso é tudo 1. dialética, como um elemento composto de fori;:as construtivas e destrutivas
A afirmai;:ao central da história é que ora<;:óes feitas pela metade nao sao que fazem parte de sua própria essencia. A minha hipótese é que os rabis
herdaram o termo "Desejo do Mal" de urna modalidade do judaísmo do sé-
atendidas. É isso o que nos fornece a pista mais importante para compreen-
culo I que era bem mais hostil a sexualidade. ao podendo simplesmente ig-
dermos a psicologia dos rabis e a sua noi;:ao de Desejo do Mal. Para que haja
norar este termo, passaram a ironizá-lo ("O Instinto do Mal é muito bom"),
desejo e sexualidade - parecem afirmar - também é preciso que haja a
tomando o próprio conceito dialético - cego de um olho, por assirn dizer.
possibilidade de desejos ilícitos. Na verdade, há apenas um único desejo, e
A sexualidade, segundo eles, nao era um mal por si só (como vários judeus
matar o desejo do sexo ilícito também destruirla o desejo do sexo permitido,
do século l pareciam acreditar), nem um bem sem complicai;:óes - apesar
que é necessário para a continuai;:ao da vida. Ao contrário do desejo da ido-
do fato de levar a construi;:ao de casas, ao casamento e a procriai;:ao, além de
latria, que nao serve a nenhum propósito útil além de testar a resistencia
garantir um suprimento constante de ovos frescos! Ela é chamada de Desejo
dos fiéis, o desejo sexual é produtivo e vital - apesar de possuir elementos
do Mal por causa de seu lado destrutivo, que é inevitável. Ao mesmo tempo,
nao há como deixar de reconhecer a necessidade do desejo, nem seus aspec-
Meu innao antropólogo chamou minha ateni;ao para o fato de que para Lévi-Strauss (e tos positivos.
Freud), este ato de cegaré um componente básico do milo. Esta interpretai;:ao é confirmada pelo seguinte texto: "Rabi Meir disse:
A Dialética do Desejo 77
76 A Dialética do Desejo

Amareis a Deus com todo o vosso cora,ao [Dt 11,13] - A palavra 'corac;ao' c;am 0 mal. o bem nao pode ser separado do mal, pois ambos representa~ a
está escrita coro urna letra a mais, para mostrar que se deve amar a Deus mesma forc;a. Quando um fica mais forte, o mesmo acontece coro o outro.
com os dois Desejos, o Desejo do Bem e o Desejo do Mal" (Mishná Berakhot
9,5). Os dois midrashim tem uro toque de provocac;ao e de paradoxo. Em Afastarei de vós aquele que vem do norte (ou que está "oculto"] Ul 2,20]: Este é o
ambos, o termo "do mal" na expressao "desejo do mal" sofre urna total inver- Desejo do Mal que está oculto e presente no corac;ao d~ homem. ( .._.) Po_r que
sao: ele deixa de ser algo condenável para ser louvado acima de tudo. Só se ele foi [onge demais (ibid.): Disse Abaie: "Entre os. estud10so~ d a Tora ma1s do
pode entender estes textos dentro da interpretac;ao que apresentei acima, ou que em qualquer um". Como na história de Aba1e, que ouvm um home~
dizer a urna mulher: "Vamos nos levantar cedo e viajar juntos". Ele (Aba1e)
seja, a de que o Desejo do Mal só tem este nome porque apresenta necessa-
disse: "Vou impedi-los de fazer aquilo que é proibido". Ele os seguiu po~ trés
riamente um potencial para o mal, e nao porque o desejo seja essencialmen-
parasangas ao longo de urna campina. Quando s~ separ~ra~, ele os .º~~u
te maligno. Seria impossível amar a Deus com uro sentimento do mal, assim dizer: " osso caminho é longo e nossa companh1a doce . D1sse Aba1e. Se
como Deus jamais diria que isto é "muito bom''. Em outras palavras, da mes- estivesse no lugar dele, nao conseguiría me controlar". Ele f~i, ficou .
ma maneira que o termo "Desejo do Mal" sofre urna inversao através da ma- balanc;ando no umbral da porta [um sinal de depressao], p01s es~ava _m uno
nipulac;ao midráshica, o seu próprio aspecto malévolo é transformado num triste. Um velho se aproximou e lhe ensinou: "Todo aquele que e maior do
bem, através de urna manipulac;ao psico-religiosa. Um texto rejeita o mal ab- que 05 seus companheiros também possui um Desejo maior".
soluto do Desejo do Mal porque a sua fonte está em Deus, enquanto o outro (Talmude da Babilónia Suká 52a)
afirma que a sua forc;a pode ser canalizada para a adorac;ao.
Porém, algumas questóes permanecem em aberto. Se o papel do Desejo Abaie percebe que uro homem e urna mulher sol~e-ir.os vao ~iajar juntos e
do Mal pode ter um papel benigno, entao o que é o Desejo do Bem? E mais: erteza de que isto só pode conduzir ao sexo 1hcito. Ele Ílea surpreso e
tem C bl ·
se os rabís consideravam o Desejo positivo e importante, por que continua- deprimido ao descobrir que os dois viajam j untos sem pro emas, aprove1-
ram a se referir a ele como o Desejo do Mal, e nao como um elemento neu- tam a companhia um do outro e se separam ao c.hegar a bi~rca<;ao qu~ leva
tro que podia ser dirigido tanto para o bem, quanto para o mal? as suas respectivas aldeias. A depressao de Aba1e se deve a constatac;ao de
que nao conseguirla se separar dela sem fazer se~o (ou pelo_ menos te~tar~
_ isso apesar de ele ser uro grande rabi e eles simples aldeoes. A tensao e
Duas Concep,oes de Desejo do Mal solucionada (e a depressao eliminada) pela explicac;ao apresent~da p or u~
velho anónimo _ um tipo de personagem que, assim como as cnanc;as, mm-
Na minha opiniao, a cultura rabínica apresenta duas psicologías parcialmen- tas vezes serve para comunicar a verdade nos textos talmúdicos. A paixao
te contraditórias. A primeira tem um caráter mais dualista2 , partindo do que impele Abaie a estudar a Torá e se tornar um "~ande h ornero·: - ~ue
principio de que a vontade humana é composta por instintos bons e maus para os rabís é sempre alguém dedicado ao conhec1mento da Tora - e a
que se encontram num conílito constante; a outra psicologia, que tenho dis- mesma que 0 teria impedido de dizer adeus a mulher e se separar dela se~
cutido até agora, acreditava que o ser humano possuía urna natureza monís- fazer sexo. o desejo é um só e há urna única maneira do hornero que possu1
tica que, no entamo, tinha urna estrutura dialética3 . A mesma forc;a interna um grande desejo ficar longe do pecado: sair de seu caminho. O impulso
que impele os seres humanos a criar, também faz coro que destruam e fa- que na casa de estudo faz com que o homem estude a Torá é o mesmo_qu:
na cama faz com que tenha relac;óes sexuais com a sua mulher. Tambero e
este impulso que 0 leva ao pecado quando está sozinho com urna mulher
2 Poner ( 1901, 115 e, principalmente, 120) já. percebia que havia duas ideologias diferentes com quem nao é casado. A paixao é urna só.'I
a respeito do yesser.
3 Repare que ao empregar a palavra "dualista" ndo estou me referindo ao dualismo entre car-
po e alma, ou entre matéria e espirito. Poner (1901, 98-105 e, principalmente, 133) já. de- 4 Urna outra interpretac;ao desta história, complementar a prime~~ª· ~ncau:a-se com perfeic;ao
monstrou com grande elegancia que, ao contrá.rio de interpretac;oes anteriores, os desejos ao paradigma de Foucault. O que Abaie está dizendo é que os mgenuos .' aq~eles que nun-
bons e maus nao estariam localizados respectivamente na alma e no carpo. Gammie (1974) ca estudaram a Torá. e, portante, nao conhecem o terrtvel poder do DeseJO, sao menos ator-
nos ajuda a distinguir os diversos tipos de dualismo, termo que se refere a um fenOmeno mentados por este poder. o estudo da Torá., coro o seu.:ist_e ma de conrr~les _sob:e a
variado e que emprego aquí por urna questao de comodidade taxonOmica. sexualidade, desperta e fortalece o desejo coma mesma efic1enc1a (ou urna efic1énc:1a amda
78 A Día/ética do Desejo A Día/ética do Desejo 79

o entanto, outras senten~as na mesma página do Talmude (e em várias nao se arrependeu de ter criado este Desejo e, mais do que isso, o mundo
outras passagens [Poner 1901, 128)) indicam que a Torá é a cura para o De- nao poderia existir sem ele. _.
sejo do Mal, o que aponta para urna no~ao dualista segundo a qual o Desejo Mais urna vez, a minha hipótese é que os textos rabm1cos que falam do
nao é a for~a impulsora do estudo da Torá, e sim seu inimigo. A minha hi- Desejo do Mal como um elemento necessário, ou até mesmo benigno, repre-
pótese é que a maioria dos judeus <leste período acreditavam numa antropo- sentam urna tradi\:ao dialética que se opoe a urna posi\:aO dualista. Essa tra-
logía dualista; a visa.o dialética seria urna antítese desta concep~ao di~ao dialética afirma que o bem e o mal sao componentes interligados do
generalizada (Poner 1901, 125). O uso do termo Desejo do Mal para se refe- humano e principalmente, da sexualidade. Há urna forte tendencia n a
ser • d l"
rir a forr;a dialética composta pelo Bem e o Mal seria um resquicio da outra tradi~ao dialética de abandonar completamente o termo "Desejo o Ma •
estrutura e, em parte, urna maneira propositalmente paradoxal de com- passando a chamar esta entidade simplesmente de "Desejo", como na lenda
preende-la5. O que poderia ser mais dramático do que a afirmai;ao de que do Talmude da Babilonia que abre este capítulo. Urna vez que esta lenda tal-
Deus considerava o Desejo do Mal "muito bom"? De fato, há vários textos ra- vez seja a representa\:ªº mais clara da impossibilidade de separar o bem do
bínicos que refletem urna psicología dualista, segundo a qual 0 ser humano mal na sexualidade, a linguagem que ernprega confirma a minha sugestao de
possui duas inclina~oes opostas (urna má e outra boa) que se encontram que textos que se referem apenas ao Desejo estao ligados a ideología dialéti-
num conflito permanente dentro de seu peito. A frase "que o homem estimu- ca, e nao a dualista.
le sempre o seu Desejo do Bem contra o seu Desejo do Mal" (Berahhot Sa) é
típi~a. desea maneira de pensar. Foi ao se basear neste modelo de psicologia
rabm1ca que o Talmude pode declarar: "Há quatro coisas que Deus se arre- O "Desejo do Mal" em Textos Nao-rabínicos
pendeu de ter criado: o exilio, os caldeus, os ismaelitas e o Desejo do Mal"
(Talmude da Babilonia Suhá 52b; Talmude da Palestina Ta'ani·t 66a, mas Estas duas tradi\:oes psicológicas também aparecem em textos judaicos ante-
neste texto a senten~a é atribuida ao antigo R. Pinhas ben Yair e nao apre- riores ao período r abínico. A sabedoria de Ben Sirac, talvez o texto mais anti-
senta a palavra "exilio"). Urna afirma~.ao desee tipo seria impossível na tradi- go da literatura hebraica pós-bíblica, nao apresenta nenhum sinal de urna
~ao que estudei acima (Poner 1901, 120-21), pois de acordo com ela, Deus antropología dualista. No famoso trecho em que se desenvolve a metáfor~
dos dois carninhos, o livro afirma explicitamente que a natureza humana e
livre e de valor neutro:
maior) co~ que o restringe e reprime. Assi m, aquele que é maior na Torá do que os seus
~o ~panhe1ros também P?Ssui um maior desejo sexual. lsso é um exemplo perfeüo dos Foi ele, desde o inicio, quando criou a humanidade,
efellos de recusa, bloque10 e negai;ao, mas também de estimulo e imensificai;ao: em suma que fez com que obedecessem a sua própria narureza.
as 'técnicas polimorfas do poder'" discutidas por Foucault (Foucault 1980, 11 ). ' Se quiseres, podes seguir este mandamento;
5 Nao pretendo colocar os dois conceitos em ordem cronológica. A visl'lo monls1ica e dialéti-
(Skehan 1987, 267; tradut;ao levemente modificada)
ca pode ser o ves~gio de um~ concepi;ao blblica anterior. Por outro lado, pode ser urna rea-
i;ao contra o dualismo helen1Sta ou persa - ou ainda os dois ao mesmo tempo! Vejamos a
opm1ao de Poner: A palavra yetser, que foi traduzida aqui como "natureza", na _ve~~ade é o
mesmo termo que os rabís empregariam mais tarde corn o s1gmficado de
Raramente se fala no ~mpulso bom, do qual nao há indicios tao anúgos. O yesser muitas ve-
~es aparece sem modificadores e sempre no sentido maléfico. lsso indica que seria errado "desejo" e que, na tradi~ao dualista, vem acompanhado dos adjetivos "bom"
hgar o yesser ao corpo e o bem a alma, convenendo-os na expressao de caráter de dois e "maléfico"6 . o entamo, outros textos um pouco mais tardíos já apresen-
compone~tes essenciais do hom~m. Ao comrário, é a natureza do homem por imeiro que carn noc;óes bem desenvolvidas de elementos em combate dentro do p eico
está em discussao, e nela predomma a tendénc:ia ou disposii;ao para o mal.
humano. Um dos exemplos mais mareantes é o Testamento dos Doze Patriar-
(190 1, 109)

Creio que urna boa monografia poderia estabelecer urna cronologia mais precisa, mas is1o
~t~ fora do escopo deste trabalho. O único pomo em que nao concordo com Poner é a sua
idé1a de que dentro da posii;ao "dialéúca", ou monlsúca, o mal é claramente a fori;a domi- 6 Skehan uaduz esta palavra como "livre escolha", o que nao se justifica em termos filológi-
nante. De qualquer maneira, a obra de Pon er é excelente e deveria ser consultada mais ve- cos, apesar de Ben Sirac obviamente estar se referindo a vontade humana. Quamo a esta
zes. passagem, ver também Poner ( 1901, 136-46).
A Dialérica do Desejo 81
80 A Día/ética do Desejo

os espíritos do erro nao tem poder sobre ele [o bornero puro), que nao incluí
cas , um texto judaico-helenista escrito aproximadamente no final do século
a beleza feminina em seu angulo de visao" (Kee 1983, 803). "Pois a pessoa
U a.E.C. (Kee 1983, 778), onde encontramos a passagem a seguir:
que tem a mente purificada pelo amor nao olha para urna mulher com o
Deus estabeleceu dois caminhos para os filhos do homens, duas maneiras de propósito de ter relar;óes sexuais" (Kee 1983, 827).
pensar, duas linhas de ai;ao, dois modelos e dois objetivos. De falO , tudo está Outras passagens do mesmo texto, contudo, parecem antecipar a con-
em pares, um contra o outro. Os dais cam inhos sao o bem e o mal; há duas cepr;ao dialética que os rabís desenvolveriam mais tarde a respeito da sexua-
disposii;oes no nosso peito que escolhem entre um e outro. Se a alma quer seguir !idade. O trecho a seguir se aproxima desta doutrina, apesar de ainda
o caminho do bem, todos os seus atos sao executados com vircude e ela manter a distinr;ao entre o bem e o mal e nao encará-los como elementos in-
imediatamente se arrepende de todos os pecados. Ao contemplar feitos juslOs separáveis.
e rejeitar a perversidade, a alma vence o mal e erradica o pecado. Mas se a
mente está inclinada para o mal, todos os seus alOs sao perversos; ao expulsar Agora prestai ateni;ao, meus filhos, pois falarei sobre as coisas que vi durante
o bem, aceita o mal e é dominada por Beliar, que, mesmo quando se procura a minha penitencia, sobre os sete esplrilOs do engano. Pois sete espíritos se
fazer o bem, for<;a o desenlace da !uta de modo que o objetivo da a<;ao passe a erguem contra a humanidade e sao a fome dos feitos da juventude. Outros
ser o mal, pois o armazém do diabo está cheio do veneno do espirito maligno. sete espíritos foram dados ao hornero na criai;ao, de modo que é através deles
(Kee 1983, 817) que todo feito humano (é realizado). O primeiro é o espirito da vida, através
do qua! o hornero foi criado como um ser composto. O segundo é o espirito
Nao há nada de extraordinário na afirmar;ao de que Deus fomeceu ao ser da visao, através do qua! vem o desejo . O terceiro é o espirito da audii;ao,
humano duas linhas de ar;ao; afina!, isso nao passa de urna paráfrase da pró- através do qua! vem a instru<;ao. O quarto é o espírilO do olfato, através do
pria Torá, no momento em que Deus coloca a vida e a morte <liante dos se- qua! se tem gosto ero aspirar o ar e respirar. O quinto é o espirito da fa\a ,
res humanos e ordena que eles "escolham a vida" (Dt 30,15; ver também Js através do qua! vem o conhecimento. O sexto é o espirito do paladar para
24,15 ejr 21,8-14). Na verdade, esta noc;ao também está presente no trecho consumir comida e bebida; através dele vem a fon;a, que tem·na comida a sua
substancia. O sétimo é o espirito da procriai;ao e da cópula, que traz o pecado
do Ben Sirac citado acima. Aqui, porém, esta idéia bíblica é expandida pela
através do gosto pelo prazer. Por este motivo, é o último da cria<;ao e o
nor;ao de que a escolha entre a vida e a morte se dá através da luta entre
primeiro da juventude, pois está cheio de ignorancia; ele guia o jovem como
"duas disposir;óes no nosso peito"7 . Trata-se de urna psicología moral com- uro cego para um buraco e como um animal para um precipicio.
pletamente diferente daquela presente em Ben Sirac, que chama atenr;ao Além <lestes há um oitavo espirito: o sono, através do qual se cria o atase
para um único yetser que tem o poder de escolher entre o bem e o mal da natureza e a imagem da morte. Nestes estdo misturados os espiritas do erro.
(Gammie 1974, 380). Trechos <leste tipo nao sao raros nos Testamentos; pelo Primeiro, o espirito da promiscuidade se encontra na natureza e nos sentidos.
menos outros doze capitulos <leste texto relativamente curto defendem esta Há ainda um ourro espirito de insaciabilidade que reside no estómago.
visao dualista da psicología moral humana. As vezes isso se dá com toda a (Kee 1983, 782-83)
clareza, como na passagem a seguir: "Entao compreendei, meus filhos, que
dois espíritos aguardam a sua oportunidade com a humanidade: o espirito Apesar de este texto manter urna estrutura em que se opoern dois grupos
da verdade e o espirito do erro. Entre os dois está a consciencia da mente de espíritos, ele também afirma que ambos estao misturados. O desejo se-
que se inclina de acordo com a sua vontade. ( .. .) E o espirito da verdade xual é encarado como um elemento problemático, mas nao deixa de fazer
atesta todas as coisas e faz todas as acusar;oes" (Kee 1983, 800). Além disso, parte do primeiro grupo, entre os "sete espíritos [que] foram dados ao ho-
em algumas destas passagens, o "espirito maligno" é definido explícitamente mem na criar;ao, de modo que é através deles que todo feíto humano [é
como a sexualidade, combatida por um "espirito bom" que é anti-sexual: "E realizado)". Porém, o desejo sexual tem urna forr;a tao grande, que pode
empurrar o jovern para huracos e precipicios. Esta forrnulac;ao antecipa a
nor;ao rabínica de um único espirito formado pelos dois fatores poten-
7 As referéncias que Kee ( 1983, 816) e Leaney (1966, 48) fazem a Didaqut e a Ep!stola de
Barnabt sao totalmente irrelevantes, pois apesar de estes documentos mencionarem "Dois ciais ao mesmo tempo.
Caminhos", eles nao falam de "Dois Esplritos". O segundo texto chega a afirmar que os Por outro lado, a nor;ao oposta de que o ser humano é composto por
Dois Caminhos sao presididos por dois anjos, mas estes nao parecem lutar pela hegemonía
dentro do espirito do individuo.
82 A Día/ética do Desejo A Día/ética do Desejo 83

dois espíritos, um bom e outro maléfico, também pode ser encontrada numa - e da filiac;ao - carnal como um elemento mesquinho e separado da vida
passagem famosa do Manual de Disciplina do Mar Morto: espiritual.
(Mopsik 1989, 49)
Ele criou o homem para dominar a terra; e colocou dois espirilos dentro dele
para guiá-lo até a hora de sua visitac;ao. Trata-se dos espíritos da verdade e da A característica mais mareante do discurso sobre a sexualidade na literatura
perversidade. ( ... ) Foi ele quem criou os espiritos da luz e da escuridao, e talmúdica talvez seja o fato de que o desejo está quase sempre ligado a pro-
fundou sobre eles todas as obras e sobre a sua natureza estabeleceu todos os
cria<;ao. Veremos um excelente exemplo disto nos textos citados no capítulo
atos. Deus ama um deles por toda a eternidade e para sempre se alegrará em
4, onde a atividade sexual "imprópria" está sempre relacionada ao nascimen-
seus feitos; o outro, ele detesta a sua formac;ao e jamais deixará de odiar a sua
to de crian<;as problemáticas, enquanto a intimidade e o comportamento se-
natureza. ( ... )Mas o espirito da perversidade possui urna mente gananciosa,
urna indolencia no servic;o da virtude, o mal, a mentira, o orgulho, um xual adequado conduzem ao nascimento de crian<;as belas de corpo e
corac;ao altivo, o engano e a traic;ao cruel; muita hipocrisia e pouca espirito. Na verdade, a palavra "procria<;ao" [piriya uriviya, em hebraico]
moderac;ao, mas urna insensatez sem limites e um enorme zelo pela muitas vezes é empregada como um sinónimo para a sexualidade. A "nossa"
insolencia; atos abomináveis num espirito de luxúria e hábitos imundos a cultura 9 ve nesta conjun<;ao urna contamina<;ao, um empobrecimento da se-
servic;o da impureza. xualidade, como se, através dela, o corpo fosse encarado apenas como um
(3,13-4.10; Leaney 1966, 144) instrumento. Esta posi<;ao costuma ser considerada repressora <liante do
próprio erotismo, em parte porque a associamos a doutrina da igreja medie-
Este talvez seja o exemplo mais perfeito de urna concep<;ao dualista da psi- val segundo a qual o sexo era essencialmente pecaminoso e só podía ser re-
cología moral em toda a literatura judaicaª. O aspecto mais significativo <les- dimido através da procria<;ao (Gardella 1985, 10). Proponho que a nossa
te texto, que o afasta da doutrina mais amiga e comum dos Dois Caminhos, leitura desta conexao <leve ser estudada antropologicamente, para que ela
é o fato de que os "dois espíritos" sao colocados dentro do peito humano. deixe de ser encarada como urna tendencia natural e possa ser explicada.
Descobrimos, entao, que a tensao entre duas no<;óes opostas de desejo den- Concordo com Mopsik ao afirmar que transferimos ao corpo do desejo a
tro da literatura rabínica já existía num período anterior do judaísmo pales- mesma divisao entre o carnal e o espiritual que determina a maneira como
tino e que ela foi perpetuada pelos rabís. a próxima se<;ao, discutirei outro encaramos o corpo físico. A brilhante intui<;ao de Mopsik leva a duas con-
aspecto da concep<;ao que os rabís tinham do nexo entre o desejo sexual e o clusóes. A primeira é que na cultura moderna tendemos a separar as fun<;óes
corpo. do prazer sexual e da procria<;ao, imaginando-as como parte de dois corpos
isolados. A segunda é mais complexa (e está ligada de forma mais direta a
tese por trás deste livro ). A divisao que fazemos entre o desejo e a procria-
O Sexo Enquanto Alimento: O Corpo do Desejo <;ao é urna perpetua<;ao do cisma entre carne e espirito que tornou-se hege-
É o Corpo da Procriat;do mónico no mundo ocidental arravés do cristianismo 10 . Esta equa<;ao nao tern
nada de óbvio, pois o atual dualismo dos dois corpos aparentemente serve
As sociedades modernas tendem a separar cada vez mais o corpo que se como um instrumento de libera<;ao sexual, como urna valoriza<;ao do prazer
reproduz (elo de urna interrninável aventura genealógica) do corpo que deseja em oposi<;ao aos seus objetivos utilitários. A divisao crista, ao contrário, é ao
(um consumidor de rápidos encontros prazerosos). Assim, o homem mesmo tempo o resultado e a causa de urna violenta desvaloriza<;ao da se-
moderno [sic) possui dois corpos distintos, utilizando ora um, ora outro, de xualidade. Preferimos, enrao, encarar as duas tendencias como urna antítese,
acordo com a sua vontade. Esta cisao talvez nao seja mais do que a
permanencia de um cisma criado há dois mil anos atrás com a vitória
ideológica, sobre metade do mundo habitado, da concepc;ao crista da relac;ao
9 Utilizo a express<lo "nossa cultura" num sentido semelhante aoque Mauss (1979) emprega
em toda a sua obra, referindo-me á cultura genérica da Europa (Ocidental). Vér também:
"Mas pode haver outro motivo para o fato de nós acharmos t<lo agradável definir a relac;<lo
entre o sexo e o poder em termos de repress<lo" (Foucault 1980, 6; o grifo é meu).
8 Para urna rápida discussao desta passagem e da sua relac;<lo com o "dualismo éúco", ver
10 O leitor deve reparar que ao longo <leste livro nao atribuí a origem desta divisao ao cristia-
Grammie (1974, 381 ).
nismo, mas apenas a sua propagac;.a o.
84 A Dia/ética do Desejo A Dialética do Desejo 85

e nao como aliadas discursivas. Ao estudar a imagem da sexualidade na cul- levam ao nascimento de crianr;as atraentes, os rabís estao simplesmente inte-
tura rabínica, pretendo mostrar como a análise de Mopsik pode nos ajudar a grando vários aspectos da vida erótica num todo harmonioso. Quando por
perceber o que está em jogo, em termos culturais, na dissociar;ao entre o de- algum motivo o sexo perdía o seu caráter procriador, seus outros objetivos
sejo e a reprodur;ao 11 . ainda eram considerados válidos e importantes (como já vimos, as determi-
Urna das metáforas mais comuns para o sexo na literatura talmúdica na<,:oes normativas desta cultura permitiam, ou até mesmo encorajavam, que
é aquela que o relaciona a comida (ver também o capítulo 4) . Urna leitura se fizesse sexo coro mulheres grávidas ou estéreis). Nos casos em que agra-
cuidadosa <leste campo metafórico pode nos dar pistas importantes sobre videz acarretava problemas de saúde, era permitido o uso de métodos anti-
o discurso rabínico da sexualidade em comparar;ao com outras formar;oes concepcionais para o prazer e a saúde do corpo 13 • A sexualidade estava
culturais, que incluem a sexualidade no campo semantico da eliminar;ao. voltada antes de tuda para as necessidades do ca rpo , e a sua necessidade
As mulheres mencionadas nos textos talmúdicos a serem estudados mais primordial era perpetuar a sua existencia através do alimento e, num ou-
adiante, por exemplo, descrevem a sua prática sexual com os maridos tro nível, da reprodur;ao.
como "pór a mesa" e "virar a mesa". O próprio Talmude estabelece urna Interpretando o comentário de Mopsik, eu diría que a causa do nosso
comparar;ao entre a sexualidade e a comida - pode-se "cozinhar" as duas desconforto com a conexao indissolúvel entre o sexo e a reprodur;ao, e
ao gasto de cada um, desde que seja sempre kosher. Esta associar;ao meta- com as metáforas que comparam o sexo a comida, é o nosso desejo de es-
fórica é muito produtiva dentro des ta cultura, criando ( ou corroborando) piritualizar a própria sexualidade. Sem sair do universo platónico do dua-
determinar;óes normativas de vários tipos. Creio que interpretá-la nos lismo, onde o carpo é desvalorizado em relar;ao ao espírito, a nossa
ajudará a compreender a conexao genética que Mopsik detecta nas duas cultura descobriu urna estratégia poderosíssima para valorizar a sexuali-
divisoes discutidas acima. dade. Boa parte da nossa cultura espiritualizou o desejo, isolando-o de
Pensemos um pouco na funr;ao de comer na nossa cultura. Creía que processos físicos como a gravidez: o carpo do desejo quase deixou de ser
todos concordariam que o seu objetivo básico seria a manutenr;ao da vita- um carpo material para se tornar um apéndice do espírito. O efeito é a
lidade do carpo. Mesmo assim, também podemos reconhecer outras fun- rransferéncia para o desejo daquele impulso espiritualizante que, segun-
<,:óes e valores importantes relacionados a alimentar;ao, como, por do Judith Butler, transcende o desejo: "o fato de que a sexualidade agora
exemplo, o prazer da boa comida, a criar;ao de vínculos sociais ao se encarna este impulso religioso sob a forma da busca do amor (considera-
compartilhar da mesma refeir;ao, ou até mesmo propósitos rituais lig~dos da urna busca 'absoluta'), diferente da necessidade e do desejo (urna es-
ao ato de comer. Todas, no entamo, estao subordinadas a funr;ao primá- pécie de transcendencia extasiante que acaba por eclipsar a sexualidade),
ria de se alimentar, de manter a vida do carpo. Consideramos absurdas, dá mais credibilidade ao Simbólico como o elemento que, nos seres hu-
ou simplesmente enojantes, práticas culturais como a dos romanos que manos, opera como urna divindade inacessível, mas que a tuda determi-
supostamente provocavam o próprio vómito para poder comer de novo 12• na" ( 1990, 56). a divisao dos dais carpos, a sexualidade acaba por
Creio que os rabis encaravam a sexualidade de forma semelhante. Para eclipsar a si mesma ao se descorporificar. lsso faz parte do mesmo pro-
eles, nao havia dúvida de que o propósito primordial para a existencia da cesso moralizante em relar;ao a sexualidade que Foucault estudou com
sexualidade era a continuar;ao da criar;ao - em vários sentidos, mas an- tanta profundidade na sua obra (apesar de representar, de certa maneira,
tes de tuda através da procriar;ao. Havia, porém, propósitos secundários a sua inversao ). Peter Gardella apontou para a presenr;a <leste processo
da sexualidade que também eram muito valorizados: o prazer, a intimida- na cultura americana: "finalmente, alguns sexólogos herdaram a sua fé na
de e o bem-estar corporal. Quando afirmam que o prazer e a intimidade libertar;ao através do orgasmo de cristaos que se libertavam do pecado
em momentos de éxtase religioso. A busca do éxtase no orgasmo acabou

11 Esta seria mais urna oportunidade para questionar a "hipótese repressiva", como Foucault
( 1980) faz de forma tao brilhante. 13 O mais interessante é que no inicio do periodo moderno, quando os métodos anti-concep-
12 Na ldade Média, alguns pensadores rabinicos retomariam este aspecto da metáfora de urna cionais se tomaram mais acesslveis, as autondades rablnicas rejeitararn o uso do preserva-
maneira que nunca tinha ocorrido aos rabís talmúdicos, passando a encarar qualquer tipo tivo, apesar de aceitare.ro dispositivos como o pessário. A e.xplicac;ao apresentada por um
de ato sexual que nao fosse destinado a procriac;ao como o equivale.me de comer e depois grande rabino do stculo XVII foi que o preservativo interferia no "prazer de um corpo com
vomitar (Biale 1992). o outro", que era o propósito natural do sexo.
86 A Dialética do Desej o A Dialética do Desej o 87

levando as pessoas a se esquecerem da sexualidade. A tradic;:ao mística nas em relac;:ao ao sexo ilícito. Por outro lado, havia urna ideologia segun-
ocidental sempre acreditou que a ac;:ao dos sentidos é suspensa pelo exta- do a qual os seres humanos eram feitos de um único tipo de Desejo. Ape-
se. Na América, a busca do orgasmo como um equivalente do extase reli- sar de esta tradic;:ao empregar algumas ve.zes o termo "Desejo do Mal", ela
gioso logo se tomou urna prática ascética" (1985, 7 e 117). Segundo faz isso de forma paradoxal, subvertendo a sua associac;:ao ao mal em si e
Gardella, entao, o mesmo impulso cristao que criou a doutrina da sen- fazendo com que ele passe a se referir aos aspectos destrutivos que sao
sualidade como pecado fo¡ perpetuado na doutrina paradoxal do sexo indissolúveis dos elementos criadores da sexualidade. As vezes, o adjeti-
descorporificado. vo "maligno" chega a se~ abandonado por completo nesta tradic;:ao; fica-
Para os rabis, a sexualidade era um impulso poderoso que apresentava mos, entao, apenas com o Desejo, Desejo que impele os seres humanos a
grandes possibilidades destrutivas, mas que era, antes de mais nada, urna gigantescos feitos de criatividade e amor, ao mesmo tempo que ·:>s leva a
forc;:a criadora da vida neste mundo. Ao ser praticada de forma adequada, cometer grandes atos de violencia e destruic;:ao. "Na mesma medida em
era tao natural quanto o ato de comer. Violar esta prática equivalia a nao que urna pessoa é superior aos seus companheiros, o seu Desejo também
consumir comida kosher: um desrespeito as leis da Torá, nada mais, nada será maior". Apesar da segunda tradic;:ao (a dialética) ainda empregar a
menos do que isso (com a excec;:ao, é claro, de cenas rransgressóes sexuais linguagem da tradic;:ao dualista, ela faz isso com o objetivo de subverte-la.
que tinham algum impacto sobre a sociedade, como aquelas que provoca- Dentro desta corrente, o uso do termo Yetser Hava' nao marca o desejo
vam o nascimento de crianc;:as bastardas)H. O funcionamento oculto do de- como um elemento negativo, servindo apenas para indicar o potencial
sejo ainda nao tinha se tomado - como aconteceria na ldade Média com para o mal embutido na sexualidade.
muitos pensadores judeus - objeto de um exame pessoal intenso e o marca- No pensamento rabínico, entao, a procriac;:ao nao é o "propósito", nem a
dor do estado em que se encontrava a alma. A teoria de Foucault, segundo a justificativa da sexualidade, mas a sua própria essencia. Assim como, para
qual a "sexualidade", no sentido moderno da palavra (isto é, no sentido de os rabis, a essencia do ato de comer era a perpetuac;:ao da vida do carpo, a
que alguém possui urna sexualidade) é culturalmente específica a nossa for- essencia da sexualidade era perpetuar a vida do carpo coletivo. De qualquer
mac;:ao moderna, poderia ser corroborada pelo exemplo da cultura judaica maneira, outros valores e objetivos da sexualidade nao sao excluidos, nem
do final da Antigüidade, ou da cultura grega e romana. marginalizados. Nao deixa de haver, contudo, urna forte imagem do desejo
Em suma, o que estou querendo dizer é que o juqaísmo rabínico era como algo problemático e perigoso. Ao assumir esta maneira de encarar o
marcado por do is discursos diferentes sobre o bem e o mal no ser huma- sexo, a cultura rabínica nao se encaixa na teologia crista medieval que pre-
no 15. o pnme1ro
. . estava calcad o numa psicologia moral em que o Instinto do gava o caráter E_ecaminoso de toda relac;:ao sexual, nem na concepc;:ao mo-
Mal se encontrava numa disputa constante contra o Instinto do Bem, dentro derna de que todo desejo é inocente. Na verdade, ela ocupa urna outra
do peito de cada ser humano. O objetivo, é claro, era que o Instinto do Bem posic;:ao, que lhe é peculiar.
acabasse derrotando o Instinto do Mal. Neste pensamento antropológico, há A "camalidade" do judaísmo rabínico nao permitía que os fiéis sim-
urna tendencia - e nada mais do isso - de identificar o Instinto do Mal plesmente ignorassem as ansiedades sexuais cujas dimensóes espirituais
com a sexualidade, apesar de alguns textos estabelecerem esta ligac;:ao ape- e sociais Peter Brown discutiu tao bem em sua grande obra (1988). Ao con-
trário, as soluc;:óes que o cristianismo encontrou para lidar com estas.ansie-
14 lronicamentc, Gardella ainda observa: "Marabel Morgan, autora evangélica do livro The To- dades nao eram viáveis: era impossível renunciar ao carpo - e principalmente
tal Woman , aconselha as mulheres a seduzirem seus maridos todo dia durante urna sema- ao carpo sexualizado - pois os rabis acreditavam na procriac;:ao como um
na. o entanto, ela tambérn ilustra o abismo que o extase inocente coloca entre 0 sexo e a princípio religioso e, portanto, no relacionamento sexual sancionado pelo
sensualida~e ao afi.rmar que 'sexo é tao limpo e puro quanto comer ricota'" (1985, 7). A
dessensualiza~ao do sexo, neste caso, nao se dá através da metáfora da comida mas da es- casamento. Esta crenc;:a unia os homens as mulheres e as mullieres aos ho-
0

c~lha do cardápi~. _Tarnbém se poderla dizer que "o sexo é polpudo e suculent 0 corno um mens, impossibilitando os diversos modelos de separac;:ao que Brown detec-
bife ":1ª'
passado , 1magem que alguns de meus leitores provavelmente acharao grosseira, o tou dentro do cristianismo e em diversas vertentes do judaísmo helenista. A
que ajuda a provar as minhas conclusóes.
15 ao consegui encontrar nenhuma maneira de separar estes dois discursos em termos cro-
necessidade do acasalamento, porém, nao implicava urna modificac;:ao na
nológicos ou geográ~icos.' ou entre autoridades e documentos diferentes. É posslveJ escre- distribuic;:ao desigual de poder que carac~rizava praticamente todas as so-
ver urna monografia mtetra sobre o Yetser Hara', que discuú apenas de passagem aqui. Cf. ciedades do final da Antigüidade. Além de continuar a fazer parte da realida-
Leaney ( 1966, 42).
88 A Dialética do Desejo

de cotidiana do judaísmo rabínico, esta desigualdade era corroborada por


todo um aparato conceitual, aliado a urna rede intrincada de narrativas ilus-
3
trativas, sistematizadas pela literatura rabínica 16 . No entanto, como mostra-
rei no próximo capítulo, a maneira como os homens encaravam e tratavam
as mullieres nao estava calcada num desprezo cultural do corpo feminino. Diferentes Evas
Mitos Sobre as Origens da Mulher e o Discurso
do Sexo no Casamento

Karen King observou que quando produtos culturais masculinos falam


das mulheres, geralmente o que está em questao é a sexualidade, e n ao o
genero feminino. Os homens muitas vezes pensam "com as mulheres"
como um meio de pensar sobre o seu próprio corpo e suas emoc;óes -
seus medos, desejos e ideologías a respeito da sexualidade. Assim, uma
representac;ao misógina da mulher nao pode deixar de incluir p elo menos
um componente de negac;ao do próprio corpo masculino, urna n egac;ao
que na verdade o estigmatiza como sendo feminino. Este repúdio ao cor-
po talvez seja o fator dominante do di scurso misógino, que historicamen-
te sempre foi acompanhado pela misogami a (ódio ao casamento), como
no caso de juvenal e de toda a Idade Média (Bloch 1987; Wilson e Ma-
kowski 1990). Pretendo testar esta tese histórica ao comp arar duas for-
mac;óes culturais cujas ligac;óes sao complexas: o helenismo e o judaísmo
rabínico, que age basicamente como urna espécie de movimento de resis-
tencia contra o helenismo. Procurarei demonstrar algumas negociac;óes
culturais intrincadas que ocorreram entre os rabis e a cultura que os cer-
cava, a respeito das ideologías em torno da sexualidade codificadas pelos
relatos sobre a primeira mulher. Ao longo desta discussao, tentarei mos-
trar que a idéia de que o discurso rabínico a respeito dos sexos seria uni-
formemente misógino nao é exata, devendo ser relativizada.
O judaísmo do final da Antigüidade estava dividido em dois tipos de for-
... mac;ao social androcentrica: o(s) judaísmo(s) helenista(s), onde havia urna
profunda repulsa pela carne e o medo da sexualidade e da mulher era um
tema central da cultura, e o judaísmo rabínico, onde se dava um grande va-
lor a carne, e onde as mullieres e a sexualidade eram controladas como ele-
mentos essenciais e altamente estimados 1. O ódio e o medo em relac;ao a

a minha opiniao, a distini;ao entre o judaísmo rabinico e o helenista nao se dá em termos


16 Parte dos tennos utilizados nas frases acima foram adaptados de urna cana de Stephen geográíicos (i.e., judeus da Palestina versus Diáspora), mas sim cronológicos. Vejo o moví-
Greenblatt, dirigida a University of California Press em novembro de 1991 . memo rabínico em grande parte como urna rejeír;ao ao processo de helenizar;ao por que
90 Diferentes Evas Diferentes Evas 91

mulher assumiram urna posic;:ao central no judaísmo helenista a partir de cisava que lhe fosse criada urna contraparte feminina, que pudesse aliviar a
urna maneira de ver a procriac;:ao relacionada a certas fontes culturais gregas sua solidao e garantir a perpetuac;:ao da espécie. Este caráter secundário é
essencialmente diferentes da fonte bíblica2 . Apesar de forc;:as apostas esta- muito importante para Fílon, pois de acordo com o seu pensarnento plato-
rem em jogo dentro da própria cultura grega, os temas representados e ca- nista, o elemento que ocupa urna posic;:ao secundária no tempo apresenta
nonizados pelo helenismo - principalmente a história de Pandara urna condic;:ao ontológica inferior. Assim, a rnulher corporal havia caído
parecem dar enfase á rejeic;:ao da reproduc;:ao e, a partir daí, da mulher3. duas vezes: a primeira, do Adao de espirito puro, e a segunda, do homem
concreto, que no esquema de Fílon representa a "mente". Corno enfatiza
Bloch, tudo isso ocorre antes de a "rnac;:a" ser comida. O próprio surgimento
A EVA DE FÍLON da mulher já significa urna Queda5 . Ao descrever a existencia do segundo
homem, Fílon afirma:
Urna etapa crucial para a compreensao da narrativa bíblica sobre a origem
dos dois sexos é a constatac;:ao de que Genesis 1 e Genesis 2 apresentam re- Mas já que nada criado permanece constante, e todas as coisas monais estao
latos contraditórios, como já vimos no capítulo 1. O primeiro dá a entender sujeitas a mudam;as e revezes, o primeiro homem nao podia deixar de sofrer
que a humanidade estava dividida entre homens e mulheres desde o início, algum infortúnio. E a mulher se toma para ele o inicio de urna vida censurável.
Pois enquamo estava sozinho e em conformidade com esta solidao, continuou a
enguanto o segundo sugere que o primeiro ser humano era do sexo masculi-
crescer em harmonía com o mundo e com Deus, recebendo em sua alma as
no e a mulher foi criada depois. A maioria dos comentadores antigos procu-
impressóes deixadas pela natureza de cada um, nao por inteiro, mas na
ra resolver esta contradic;:ao de maneiras diferentes, e as soluc;:oes encontradas
tem urna enorme significac;:ao ideológica. Segundo Fílon, havia dois seres
distintos que a Biblia chama de "ser humano", correspondendo as duas nar- continuar;ao de "a imagem de Deus, Ele o criou". De fato, na passagem citada por Wegner,
rativas da criac;:ao em Genesis 1 e Genesis 2. O primeiro seria puramente es- Filon aftrma: "E quando Moisés chamou este genero de 'hornero', ele conseguiu distinguir
de forma admirável as duas espécies que o compóem, acrescentando que este tinha sido
piritual e andrógino na sua natureza incorpórea, enguanto o segundo criado como 'hornero e mulher', apesar de seus membros individuais ainda nao terem se
possuía um corpo e era do sexo masculino4 . Este ser humano corpóreo pre- formado" (1929b, 61). Creio que Wegn er faz urna leitura equivocada de F!lon neste ponto.
Ao utilizar os termos "genero" e "espécie", creio que ele está se referindo a entidades lógi-
cas, e nao biológicas. Apesar de nao equivaler as passagens que citei acima, esta interpreta-
passou urna boa parcela do judaísmo durante o século 1, inclusive na Palesúna. Este pro- r;ao impede que este trecho seja considerado urna contradir;ao direta da afirmar;ao de Filon
cesso de helenizar;ao, ao contrário daquele promovido pelos Seléucidas, nao acarretava a de que o primeiro ser humano, feito a imagem de Deus, era andrógino (rratava-se, é claro,
ador;ao de aspectos uhedonistas" da civilizar;ao helenista, limilando-se a seus elementos da androginia das almas, que eram masculinas e femininas ao mesmo tempo, pois nao
dualistas, espiritualistas e anticorpóreos, como atestam figuras tao diversas quanto Filon, eram nenhum dos dois). Apesar desta pequena divergencia, nao deixo de concordar plena-
josefo e Paulo, além dos escritos de Qumra. A minha hipótese é que, quando os efeitos cul- mente coro a tese proposta pelo ensaio de Wegner.
rurais deste processo de espiritualizar;l\o se tomaram mais aparentes, principalmente den- 5 Como Bloch afirma (sem se referir específicamente a F!lon, apesar de suas palavras se apli-
tro do crescente movimento cristao, eles passaram a enfrentar urna fone rea<;ao. carem a ele com perfeir;ao):
2 O excelente ensaio de Judith Romney Wegner (1991), publicado quando este livro já estava
praticamente pronto, apresenta o mesmo argumento a partir de urna perspectiva ligeira- A precedencia cronológica de Adao implica urna série de relar;Oes que fazem lembrar nao
mente diferente. lsto nao implica, é claro, afirmar que a misoginia nao é urna caracterlstica só a teoría medieval dos sinais, mas também certas questóes ontológicas que deixam claro
judaica verdadeira". Este tipo de argumento é interrninável, infrutífero e impossivel de ser que a Queda, considerada na maioria das vezes o momento de origem - a causa e a justifi-
refutado. De qualquer man eira, pode nos ajudar a distinguir diversas correntes culturais cativa - do antifeminismo medieval, nada mais é do que o cumprimento ou conclusao ló-
dentro do juda!smo do final da Antigüidade, a fim de constatarmos quais adotavam ou re- gica daquilo que já está implicito na criar;ao de Adao e Eva. A mulher da versao javista -
j.eitavam os s!mbolos e os temas da cultura grega, além de avaliarmos o efeito que estes fa- considerada desde o inicio um elemento secundário, derivado, subserviente e suplementar
tores exerciam sobre a prática cultural. - carrega, dentro da articular;ao dos géneros desenvolvida nos primeiros séculos do cris-
3 Quanto á disseminar;áo da história de Pandora no final da Antigüidade, ver Panofsky e Pa- tianismo, o fardo de rudo aquilo que é inferior, adulterado, escandaloso e perverso.
nofsky (1956). (Bloch 199la, 25)
4 Veremos que o tema de um andrógino puramente espiritual - homem e mulher ao mesmo
tempo, justamente por nao ser nenhum dos dois - volta á tona em algumas obras cristas Gostaria de ressalvar, porém, que Bloch ignora aqui a necessidade de urna interpretar;ao
de vários estilos. Este é o único ponto ero que nao concordo coro o ensaio de Wegner que possa explicar o surgimento <leste conjunto de valores. O texto da Biblia nao sugere
(1991 ). Para ela, Filon sugere que o hornero e a mulher penencem a espécies diferentes, in- automaticamente as nor;oes ontológicas ou axiológicas destacadas por ele. Discutirei este
terpretando "hornero e mulher Ele os criou" como urna frase independeme, e nao como a assunto com maiores detalhes num artigo a ser publicado na Paragraph. Ver também n . 6.
92 Diferentes Evas Diferentes Evas 93

propor~ao que a composi~ao humana pode aceitar. Mas quando a mulher


demonstrar a diferen<;a hermeneutica entre a Eva de Fílon e a dos rabis tal-
também foi criada, ao ver urna figura de forma semelhante a sua, ele se
vez seja estudar o papel que cada um atribui a serpente. Em Fílon, a serpen-
alegrou, aproximou-se e a cumprimentou. Ela, ao perceber que nao havia
te representa urna encarnac;ao do prazer, principalmente do prazer carnal
nenhuma ourra criatura tao parecida consigo mesma, ficou cheia de júbilo e,
que o homem sente ao ter relac;oes com a mulher 7 . Fílon se refere a serpente
sem o menor pudor, respondeu ao cumprimento. Veio entao o amor para unir
as duas panes divididas numa só criatura, colocando em cada urn deles o como "a serpente de Eva" (Fílon 1929, 275). A mulher nao é sua vítima; ao
desejo da cornpanhia do outro com vistas a produ~ao de seus semelhantes. E contrário, a serpente é seu agente, seu séquito8 . Urna vez que Eva fora cria-
este desejo também gerou o prazer corporal, este prazer que é a origem de todos os da, era inevitável que a serpente (= o prazer) ameac;asse a felicidade de Adao
males e da viola~do da leí, prazer pelo qua! os homens se atiraram d mortalidade e ao ("o primeiro homem nao poderia deíxar de sofrer algum infortúnio") e o en-
sofrimento, abandonando a imortalidade e a felicidade. redasse ("este prazer que é a origem de todos os males"). A mulher, que para
(Fílon l 929b, 121; o grifo é rneu ) Fílon é urn sinónimo da sexualidade, representa urna desventura9 . Quando
Fílon cornbinou estas noc;oes coro o dualismo platónico, passando a limitar
Esta passagem de Filon combina dois temas diferentes, que representam os a mulher, enquanto um símbolo da corporalidade, ao dominio dos sentidos
ingredientes típicos do discurso misógino. O primeiro é o da mulher como (na verdade, ela passa a ser encarada como o dornínio dos sentidos), o cená-
um infortúnio - nao porque tivesse cometido urna falha (ou seja, por um rio estava armado para a criac;ao da misoginia sistemática que tem infestado
acidente), mas porque representa necessariamente (essencialmente) urna as culturas ocidentais desde entao. Fílon teve urn efeito dramático sobre a
desventura. O segundo é o da condü;ao ontológica secundária do ser huma-
no sexuado e de "mulher" como o nome da entidade que introduz a diferen-
<;a entre os dois generos. enhum dos dois temas está presente na Bíblia, 7 Fílon afirma isso explicitamente (1929a, 271). Dorothy Sly observou que a traduc;ao que se
nem na literatura rabínica posterior, mas possui antecedentes em textos ca- cosruma dar a esta passagem obscurece o fato de que e.la se refere ao prazer do homem
nónicos gregos e, principalmente, em Hesíodo. coma mulher, como fica claro no texto em grego (Sly 1990, 109).
8 Repare que nem o texto midráshico citado mais adiante afirma que a serpente e um atribu-
to ou urna companheira de Eva, mas sim que esta funcionou como a tentadora de Adao, as-
sim como fora tentada pela serpente. O segundo texto citado, onde se afirma que Sata foi
A EVA DOS RABIS criado ao m~mo tempo que a mulher, esta bem mais próximo do pensamemo de Filon.
9 Observe, porém, que no próprio texto bíblico Eva é chamada de "Mae de todos os viven-
tes"; Filon nao pode, portanto, atribuir a ela ou ii sexualidade apenas um valor negativo.
A imagem que os rabis tinham da origem e do papel da mulher é bem dife- Além disso, o termo "Ajudante", apesar de todas as suas conota<;óes de subserviencia, só
rente daquela de Fílon, mas nao deixa de apresentar urna grande variac;ao pode ser interpretado como urna palavra de valencia positiva, pois o ato de ajudar tem um
interna. Em boa parre da tradic;ao midráshica, Genesis 1,27 é interpretado carater claramente positivo. Dillon faz o seguinte comen tario a este respeito: "aparentemen-
te se pode dizer que o pensamento de Filon inclui o reconhecimento de um principio vital
como urna afirmac;ao literal a respeito da criac;ao do primeiro ser humano fe.minino que assiste o Deus supremo em seu trabalho de criac;ao e administrac;ao, mas que
como homem e mulher. O primeiro ser humano é apresentado como um an- tambem assume, de certa maneira, o papel de mae de toda a cria<;ao. Se este conceito apre-
drógino físico e Genesis 2,22 nos ensina que este andrógino precisou ser di- se.ata algumas contradic;óes, isso talvez se deva ao fato de o próprio Filon nao saber muito
bem o que fazer coro ele" (1977, 164). Da mesma maneira, dentro da interpretac;ao alegóri-
vidido para formar os dois sexos6 . Urna das maneiras rnais elegantes de se
ca de Fílon, a "mulher" representa os sentidos; a ímplicac;ao disto é que nao se pode passar
sem os sentidos, que desempenham um papel positivo na vida humana, por mais que pos-
sam ser perturbadores. Esta compreensao, que se dá no nivel simbólico, possui um parale-
á Bloch comenta que "a supressao da nistória da criac;ao simultanea do homem e da mulhe.r lo no nivel literal e até mesmo prático, pois creio que, para Filon, as mullieres concretas
traz implicac;óes profundas para a história da se.xualidade no Ocideme. Quem sabe? Se o ocupam a mesma posic;ao que aquilo que elas representam (os sentidos) ocupam no plano
espirito desta versao 'perdida' da Criac;ao tivesse se tornado dominante, a história da rela- alegórico. Ou seja, como afirma Brown, "sao um aspecto irritante, mas necessário, da exis-
c;ao entre os dois sexos - comec;ando, por exemplo, com a Queda - te.ria sido completa- tencia" (1987, 266-67). Quanto a opiniao de Filon sobre as mullieres em geral, ver Sly
mente diferente. o entanto, o Genesis sacerdotal ficou praticamente esquecido, com a (1990). Neste ponto, assim como em outras áreas, Filon representa urna posi<;ao relativa-
excec;ao de estudiosos feministas da Biblia que procuraram se utilizar recentemente da for- mente moderada que mais tarde seria radicalizada. Assim, apesar de atribuir um significa-
c;a daquilo que costuma ser encarado como urna intenc;ao igualitária original" ( l 99la, 23). do espiritual aos mandamentos, ele também exige que sejam cumpridos ao pé da letra e
Assi m, ele perpetua urna exclusao tao completa quanto a da mulher e da história de urna critica aqueles que deixam de fazer isso em troca de urna interpretac;ao puramente alegóri-
origem igualitaria dos dois sexos. Refiro-me, e claro, a exclusao dos judeus e do discurso ca. Além disso, nao ataca a necessidade de procriac;ao, apesar de ter urna grande admirac;ao
he.rmeneutico judaico da "história da sexualidade no Ocidente". pela vida celibataria dos terapeutas.
94 Diferentes Evas Diferentes Evas 95

formac;ao mental do cristianismo primitivo. É no judaísmo helenista, repre- mens, quanto mullieres. Porém, isso já nao se aplicava áqueles que se en-
sentado por Fílon que se devem encontrar as origens da Eva européia 1º. contravam no Sinai e seus descendentes. Apesar da implicac;ao xenofóbica
Nos textos midráshicos, Eva é quase sempre apresentada como urna víti- de que aqueles que nao foram ao Sinai permaneceram impuros, esta tradi-
ma da serpente, e nao como urna enganadora do hornero 11 . De acordo com 0 c;ao nao tem um caráter misógino 12. Na Biblia e no midrash, a "Mulher" qua-
midrash, a serpente nao tentou Eva a fazer sexo coro Adao - ela já tinha se nunca é caracterizada como um ser maléfico e perigoso, como urna
tido relac;óes coro Adao, como veremos mais adiante - ao invés disso, a se- armadilha para o homem 13.
duziu para que cometesse adultério. Assim, urna sentenc;a de Rabi Yohanan Segundo os rabis, nao houve urna Queda para o ambito da sexualidade
repetida tres vezes afirma que "quando a serpente teve relac;óes com Eva, ele no j ardim do Éden. De acordo coma interpretac;ao rabínica, Adao tinha rela-
colocou sujeira dentro dela. Quando os israelitas foram ao monte Sinai a c;óes sexuais com Eva desde o inicio. Em nenhum momento este comporta-
sua sujeira foi retirada" (Talmude da Babilonia Yevamot 103b). Apesar de mento é associado á serpente, ao "fruto proibido", ou á Queda e expulsao do
esta sentenc;a parecer apenas mais urna versao do Pecado Original, ela parte Jardim (Anderson 1989 e Pardes 1989). A sexualidade licita, isto é, o conta-
de um ponto de vista completamente diferente. A mulher é apresentada to sexual entre homem e mulher depois do casamento, nao faz parte do rei-
como urna vítima da agressao sexual da serpente, que a toma, juntamente no demoníaco da serpente, mas sim do reino de pureza do jardim da
com seus descendentes, temporariamente impura. Esta impureza, contudo, Inocencia. De acordo coro Génesis Rabá 18,6 (Theodor e Albeck 1965, 168),
nao tem nenhuma relac;ao com a sexualidade lícita. Na tradic;ao midráshica, a serpente fo¡ tomada de desejo por Eva porque a viu fazendo sexo com
Ada o teve relac;óes sexuais com Eva antes e depois de ela ter feito sexo com Adáo e, em 19,3 (171-72), dirige-se a ela enquanto Adao está dormindo de-
a serpente. Ele nao fo¡ contaminado pela intimidarle com urna mulher, nem pois de os dois terem tido relac;óes sexuais. Urna explicac;ao plausível para
tampouco aqueles que voltaram ás suas tendas logo depois de receberem a esta idéia narrativa é a de que ela representarla urna inversao de leituras pré-
Torá no monte Sinai, como único objetivo, segundo os rabis, de experimen- rabínicas, segundo as quais a serpente teria ensinado o sexo a Adao e Eva,
tar a "alegria do amor" (Talmude da Babilónia Avodá Zará 5a). A sujeira mandando-os imitar os animais. Estas leituras associam á sexualidade ele-
transmitida temporariamente aos descendentes de Eva, entao, nao é a do mentos bestiais e degradantes (Brown 1988, 94 n.43). A interpretac;áo ofere-
sexo, mas sim a do desejo de sexo ilicito - adultério, bestialidade ou am- cida pela cultura rabínica age como um movimento de resistencia a forc;as
bos. Se houve um "pecado original", ele foi redimido pelo recebimento da oriundas da formac;ao helenista dominante. Na verdade, há indícios explíci-
Torá no monte Sinai. A relac;ao sexual, mesmo neste mundo, nao traz impu- tos desta inversao, pois outra passagem do mesmo texto midráshico afirma
reza (como já nao trouxera no caso de Adao e Eva). Entre o momento da se- que o versículo "Adao conheceu Eva, sua mulher" significa que os dois ensi-
duc;ao da serpentee a redenc;ao através do recebimento da Torá, existía urna naram lfizeram com que conhecessem] o sexo aos animais (204-05). A serpente
impureza que era transmitida a todos os descendentes de Eva, tanto ho- é o agressor. Se tudo gira em tomo da sexualidade ilícita - "a serpente teve
relac;óes com Eva" - nao há urna identificac;ao da sexualidade ferninina com
10 Ou seja, ao contrário do que afirma Bloch (199la, 33), nao se trala de "um desenvolvimen- a serpente, como ocorre em Fílon.
to 'simple~·· quase evidente, da versao 'javista' da criar;ao, por exemplo". Foi preciso urna
pr~~unda mt~rvenylo hermentmica para dar este passo. Na verdade, apesar da posir;ao de
su1enos dominados que as mulheres ocupam na sociedade rabínica, nao conher;o nenhum
texto desta cultura onde se afmne que esta condir;ao é urna conseqüt!ncia do fato de a mu-
l~er ter sido criada d~pois do homem e, ponanto, de ocupar urna posir;ao ontológica infe-
nor (como afirmam Tunóteo 2,11 ou Fllon e seus seguidores). Este raciocinio está calcado 12 De fato, estou indinado a encarar a afirmar;ao de Rabi Yohanan, um palestino do século lll,
em ideais helenistas, e nao semíticos. Nao pretendo afümar que Fllon estava sendo influen- como urna resposta a doutrina do Pecado Original, como que para dizer que só aqueles que
ciado _por um t~to grego especifico (como a obra de Heslodo, por exemplo), mas sim que acreditam nesta falha se tomam seus portadores. Por outro lado, pode significar apenas
o con1umo ~e 1de~loge.mas a respeito da "Mulher" que ele aplica na sua interpretar;ao de urna declarar;ao triunfante de que os paga.os sao mais suscetlveis a imoralidade sexual do
Eva está ma1s próxuno da literatura canOnka grega tradicional, do que da Biblia. Quanto a que os judeus - urna acusar;ao que os rabis faziarn com ~ma certa freqüéncia. Esta inter-
outras versoes judaico-helenistas do mito de Eva enquamo a fome do mal e da morte no pretar;ao é confirmada pelo fato de o Talmude citar a sentehr;a de Rabi Yohanan para corro-
mundo, ver as citar;Oes em Sly ( 1990, 17), retiradas de textos como Ben Sirac, A vida de borar urna afirrnar;ao de Mar Ukba bar Hama, segundo a qua\ os pagaos freqüemam as
Addo e Eva, e 2 Enoque. esposas de seus vizinhos e, quando nao as encontram, acham um animal para ter relar;Oes
11 ~ema Harrison me informou que alguns textos patrtsticos apresentam o mesmo ponto de sexuais (Talmude da Babilonia Avodd Zard 22b. Ver também Romanos 1)
VlSta.
13 Quanto a outras opiniOes, ver Bal (1987). Ver também Mordechai A. Friedman (1990).
96 Diferentes Evas Diferentes Evas · 97

O jarro de Pandora 110 Midrash: Eva enquanto Vítima e de doenc;as dolorosas, que provocam a mone.
Sob o poder <lestes males, os homens logo envelhecem.
Apesar de vários textos rabínicos (veremos alguns exemplos mais adiante) Mas a mulher, erguendo a grande tampa do vaso,
colocarem a culpa do pecado e de sua punic;ao na mulher, há urna quantida- soltou seu conteúdo e trouxe grandes sofrimentos para os homens.
(Frazer 1983, 99)
de equivalente de textos que af.irmam justamente o contrário. O caso mais
interessante é o de urna narrativa que parece urna alusao a história do jarro
O texto parece apresentar urna contradic;ao interna. Primeiro, a narrativa
de Pandora, mas onde quem assume o papel de Pandora nao é Eva - mas
afirma explícitamente que a própria mulher é um mal:
sirn Adao. Urna comparac;ao da história de Hesíodo (o provável modelo ou
fon te do nosso texto) com a narrativa midráshica fornecerá um rico material
Filho dejapeto, que superas a todos com tuas maquinac;óes,
de análise. Os principais elementos da história de Pandora, contada em Teo-
regozija-te por teres roubado o meu fogo e me enganado,
gorlia e Trabalhos e Dias 11, de Hesíodo, sao os seguintes: Zeus se irrita com trazendo grandes dores para ti e para os homens no futuro.
Prometeu e esconde o fogo celestial. o entamo, Prometeu rouba o fogo de Como pagamento pelo fogo darei um mal que todos
Zeus e o entrega aos homens. A fim de puni-los por terem recebido este pre- abrigarao no corac;ao, um mal para amar e abrac;ar
sente ilícito, Zeus cría o anti pyros, o antifogo, um "mal de grande beleza" (Frazer 1983, 98)
que será urna fome de danos constantes para os homens (perna méga thnetoi-
si) (Tg. 561-91). Em Trabalhos e Dias, este mal é chamado de Pandora (De- Por outro lado, o final da história dá a entender que Pandora soltou os ma-
tentora de todos os dons), pois os deuses !he dao várias dádivas para les sobre o mundo apenas por ter aberto o jarro, nao porque fosse maléfica.
torná-la urna arrnadilha irresistível para os homens. "A sua beleza extraordi- Além disso, pode-se dizer que o próprio Epimeteu, ao contrariar os conse-
nária, realc;ada pelos adornos que os gregos consideravam sinais externos lhos do irmao e aceitar o presente de Zeus, é tao culpado por ter lanc;ado o
dos atrativos sexuais, nao é mais do que urna cilada e urna ilusao" (Zeitlin mal sobre os homens quanto Pandora. Esta elisao fornece fortes indícios
1990). Depois, de acordo com Trabalhos e Dias, ela é enviada ao irmao de para corroborar a interpretac;ao (Sissa 1990, 154-55; Zeitlin 1990) de que o
Prometeu, chamado Epirneteu (Percepc;ao Tardía), que ingenuamente a acei- jarro é Pandora - ou melhor, o útero/ vulva de Pandora - aquilo que, ao
ta como um presente de Zeus. Ela abre o jarro do mal, "libertando todos os ser aberto, traz todos os males ao mundo 15 . a leitura persuasiva que Zeitlin
ma les e doenc;as que agora caminham sobre a terra, sem serem vistos, nem faz do texto, a abertura do jarro representa a perda da virgindade de Pando-
ouvidos" (TD, 56-104). Só a Esperanc;a (Elpis) permanece dentro do jarro. ra, que é considerada a única responsável por este ato! O texto se recusa a nar-
Eu gostaria de comparar a última parte de Trabalhos e Días com o seu para- rar o primeiro ato sexual entre um homem e urna mulher, pois neste caso
lelo midráshico. Primeiro, apresentarei o texto de Hesíodo: seria obrigado a revelar aquilo que parece fazer tanto esforc;o para esconder,
ou seja, o simples fato de que os homens também sao agentes participantes
E Epimeteu nao deu atenc;áo ao conselho de Prometeu do ato sexual, tornando-se igualmente responsáveis por qualquer efeito per-
para náo aceitar nenhum presente do Zeus Olimpico, nicioso que o sexo possa ter.
mas sim rejeitá-lo antes que algum mal caísse sobre os mortais.
De acordo com esta interpretac;ao, a sexualidade feminina é a raíz de to-
Entáo o recebeu e aprendeu com a experiencia o mal que possuia.
dos os males. O fato de Pandora abrir o jarro, ao invés de Epimeteu, repre-
Pois antigamente as tribos dos homens viviam sobre a terra
livres e longe do infortúnio, livres do trabalho
senta, mais urna vez, a transferencia da culpa pela "condic;ao humana" do
homem para a mulher. A parábola narrada no midrash parece depender dire-
tamente da história de Pandora (Lachs 1974), ou de elementos folclóricos
14 Há LOdo um ramo da literatura dedicado ao estudo das "contradi~óes" entre as duas versóes semelhantes, em que a mulher é apresentada como a origem de todos os ma-
- principalmente no século XIX, quando boa parte dos estudiosos tentou provar que urna
e ra espúria e a outra, verdadeira. Porém, como Zeitlin observa, "apesar de as duas versóes
apresentarem certas divergencias em alguns pontos importantes e serem uúlizadas para
servir aos propósitos de cada autor, ( ...) elas podem ser encaradas como panes diferentes
da mesma narraúva, cada urna fazendo urna glosa da outra" (Zeillin 1990). O resumo que 15 Para urna interpreta~ao semelhante, mas resultante de um raciocinio diferente, ver Sissa
apresento aqui, entao, é urna síntese das duas. (1990, 154-56).
98 Diferentes E vas Diferentes Evas 99

les no mundo. Há, no entanto, enormes incongruencias entre este texto e as Deus acusa Ada.o porque sabia que o fato de ele estar com medo e enver-
histórias em que estaria baseado: gonhado significava que nao tinha cumprido as suas ordens. A figura de
Pandara na parábola é comparada ao Ada.o da narrativa bíblica. Esta inter-
"E ele disse: ouvi Tua voz e tive medo porque estava nu, entao me escondí. E pretac;:ao é confirmada pela afirmac;:ao embutida no texto midráshico de que
ele disse: quem te ensínou que estavas nu"? [Gn 3,9-10) "Da mesma maneira [Deus disse a Ada.o): 'Comeste da árvore que te proibi"'?
Rabi levi disse: Deve-se comparar isso a mulher que vem pegar vinagre
urna parábola midráshica, a expressao "da mesma maneira" aponta para a
emprestado e que entra na casa da esposa de um colega.
analogía existente entre a história da parábola e a narrativa bíblica. A per-
[A visitante] pergunta a ela [a esposa]: "Como te trata o teu marido"?
[A esposa) respondeu a ela [a visitante]: "Tudo o que ele me faz é bom, gunta do marido na parábola ("Entao mexeste no jarro em que mandei que
com a e.xce~o <leste jarro, que está cheio de cobras e escorpioes, e que ele nao tocasses"?) equivale a pergunta que Deus faz a Ada.o ("Comeste"?). Ao
nao me deixa controlar". estabelecer um paralelo entre esta frase e o versículo dirigido a Ada.o na Bi-
Ela [a visitante] disse: "Todas as jóias dele estao guardadas lá. Ele blia, o midrash indica que foi ele quem abriu o jarro e foi mordido, revelan-
pretende se casar com outra mulher e lhe dar todas elas". do a sua desobediencia ao marido (Deus). Ao colocar Ada.o como o
O que ela [a mulher] fez? Enfiou a mao no jarro. equivalente da figura de Pandara na parábola (ao invés de Eva), o texto sub-
Comec;:aram a morde-la. verte o mito do mal demoníaco da mulher que a história de Pandara defen-
Quando o marido chegou, ouviu os seus gritos e disse: "Entao mexeste no de explícitamente. Além disso , ele indica que pelo menos para o autor destc
jarro"? midrash, Ada.o nao consegue imputar a culpa de seu comportamento a mu-
Da mesma maneira [De.us disse a Adao]: "Comeste da árvore que te lher. lsto, é claro, nao isenta Eva de seu pecado, mas ela deixa de ser a r~s­
proibi"?
ponsável pelo de Ada.o. Por outro lado, apesar de subverter o discurso
(Theodor e Albeck 1965, 179-80)
misógino, este texto é um forte exemplo de androcentrismo, pois ainda par-
te do principio de que o momento mais significativo em termos culturais é
Comparemos este texto com o seu "modelo". Se esta narrativa realmente é
aquele em que Ada.o come a fruta, e nao Eva. Ou seja, ao mesmo tempo em
urna nova versa.o do mito de Pandara - ou pelo menos segue um desenvol-
que, ao deslocar a figura de Pandara da mulher para o homem, o mídrash
vimento paralelo, como o tema do jarro parece indicar - ela apresenta in-
anula urna leitura que "póe a culpa" em Eva, ele toma a· sua influencia na
consistencias surpreendentes. Onde Lachs ve urna adulterac;:ao do mito
história pra.ticamente imperceptível. lsso poderia servir como um paradigma
grego (Lachs 1974), eu vejo urna subversao paródica deste texto. Quando le-
para a maneira como os rabís viam a relac;:ao entre os sexos: se por um lado
mos apenas a parábola em si, ela parece urna cópia fiel do exemplar grego.
eram extremamente solícitos, de forma patemalista, com as mullieres (ao
A mulher, que desempenha o papel de Pandara, é tentada a abrir o jarro e,
contrário de culturas que apresentam um comportamento violentamente mi-
ao fazer isso, liberta um mal. Contudo, se aplicarmos a parábola as escritu-
sógino), eles as marginalizavam por completo.
ras, o quadro muda completamente de figura, pois o equivalente da mulher
Há, porém, urna versa.o paralela <leste midrash onde nao há urna subver-
da parábola nao é Eva, e sim Adao!
sao tao completa dos papéis dos dois sexos. Depois de contar a parábola
A func;:ao da parábola midráshica ( mashal) · geralmente é preencher urna
mais ou menos nos mesmos termos que em Genesis Rabá, o midrash concluí:
!acuna na narrac;:ao bíblica ao apresentar urna situac;:ao análoga, que serve
"Ela estendeu a mao, abriu o jarro, os escorpióes a picaram e ela morreu. O
como um exemplo retirado do intertexto cultural. Neste caso, o problema
[marido] é o Ada.o Primitivo, a mulher é Eva e aquele que vem pegar vinagre
exegético é a motivac;:ao por trás das perguntas acusatórias que Deus dirige a
emprestado [que muda de sexo em cada versa.o) é a serpente, pois está escri-
Ada.o: "Como sabias que estavas nu"? e, logo depois, "Comeste da árvore
to: 'E a serpente era o mais astuto animal dos campos"' (Schechter 196 7
que te proibi de comer"? A maslwl indica que, para Deus, a prova da má
7) 16. É preciso
.
observar que mesmo nesta versa.o da história, rnais próxima•
condura de Ada.o é justamente o fato de ele ter vergonha de estar nu, conec-
tando as duas partes do versículo. A história de "Pandara" é apresentada
como um modelo para esta interpretac;:ao. Assim como nesta história o mari- 16 É preciso lembrar que mesmo neste texto há urna versa.o que mantém a inversao efetuada
no Gtn~is Rabd, onde a esposa insensata é Adao, ao invés de Eva. Fiquei surpreso com o
do acusa a mu~her porque seus gritos mostram que ela !he desobedecera, fato de, ao citar este texto, Aschkenasy chamar ate.n~áo para "a tentativa dos rabis de redu-
zir Eva a urna dona-de-casa ciumenta e inconseqüente", sem perceber que na maioria da.s
100 Diferentes Evas
Diferentes Evas 101

do modelo de Pandora, o papel da mulher tem urna importancia completa-


hebraico) estaria ligado ao aramaico Hivía (serpente). Segundo ele, Adao te-
mente diferente do que na narrativa de Hesíodo. Assim como Pandora, ela é
ria dito a mulher: "A serpente foi tua serpente, e tu foste a minha serpente",
urna vítima de sua própria curiosidade e da serpente, que obviamente tinha
0 que explicaria a origem do nome (Theodor e Albeck 1965, 195). Ha outra
inten~óes maldosas. Por outro lado, nao é apresentada como um castigo
passagem no mesmo contexto que segue mais ou menos o mesmo racioci-
para o seu marido nem para o mundo, pois é a única a ser mordida. Ela nao
nio: "Rabi Hanina, filho de Rabi Idi, disse: 'Do inicio do livro até agora, nao
espalha o mal sobre a terra. A "autodefesa" de Adao, que (no texto bíblico)
aparece a letra s. Quando a mulher foi criada, o Sata foi criado com ela"'
coloca a culpa de tudo em Eva, nao é aceita 17. Ela é punida pela sua curiosi-
(ibid.)2º. Estas exce~óes dentro do padrao cultural, apesar de nao poderem
dade, mas ele é o único responsável pela sua própria má conduta. De fato,
ser ignoradas, apenas dao um maior destaque para o discurso mais generali-
de acordo com urna passagem do Genesis Rabá, a sua tentativa de colocar a
zado que as combate. O Bereshit Rabá apresenta o mais longo texto de des-
culpa de tudo em Eva é citada por Deus mais tarde como um grande exem-
prezo pela mulher, mas mesmo neste caso o discurso nao é simples. Apesar
plo da ingratidao dos seres humanos (Theodor e Albeck 1965, 359). Em ou-
da misoginia explícita desta passagem, ela passa a ter um caráter positivo
tro midrash clássico, a sua falta de gratidao é o motivo pelo qua! Deus o
quando fa la da procria~ao:
expulsa do jardim (Mandelbaum 1962, 284). Como Rashi observa, "Porque
é urna vergonha ele tentar pór a culpa no presente que Deus lhe deu" (Rashi
Perguntaram a Rabi Yehoshua: "por que o homem nasce com o rosto para
ad Genesis 3,13; o grifo é meu) 18 . Tanto para Hesíodo quanto para os rabís, babeo e a mulher como rosto para cima"? Ele disse: "o homem olha para o
a primeira mulher é um presente divino para o homem; no entanto, o pri- lugar de onde foi criado [a terra] e a mulher olha para o lugar de onde foi
meiro ve no presente urna armadilha, enquanto os outros o encaram como criada [a costela]".
urna verdadeira dádiva. "E por que a mulher tem que se perfumar e o homem nao tem que se
perfumar"? Ele disse: "Ada.o foi criado da terra e aterra nunca cheira a podre,
mas Eva foi criada de um osso. Se a carne fica tres dias sem salgar, ela
Os Midrashím Misóginos sobre Eva come<;a a cheirar mal".
"E por que a voz da mulher é mais alta"? Ele respondeu: "É como um pote
Outros textos midráshicos apresentam urna visao diferente da cumplicidade que, cheio de carne, nao faz um som alto; mas se colocas um osso dentro, o
ou culpa de Eva. Alguns sao bastante virulentos, apesar de serem raros os som fica mais forte". 21
"Por que é mais fácil apaziguar um homem do que urna mulher"? Ele disse:
que atribuem a Eva o aspecto maléfico e demoníaco que Fílon lhe confere ao
"Ada.o foi criado da terra; quando se derrama água na terra, ela a engole
equipará-la a sexualidade, origem de todos os males desde o início 19 • As úni-
rapidamente. Eva foi criada de um osso; mesmo que fique dentro d'água dias
cas exce~óes que conhe~o nos textos rabínicos primitivos sao de um único a fio, ele nao absorve a água".
trecho do Genesis Rabá, onde Rabi Aha explica que o nome Eva (Hava , em "Por que o homem corre atrás da mulher e a mulher nao corre atrás do
homem"? Ele respondeu: "Com que isto se parece? Com alguém que perdeu
alguma coisa; ele procura o objeto perdido , mas o objeto perdido nao o
versOes é Adao que é retratado desta maneira ( 1986, 43). A análise de Aschkenasy, contu-
do, é mais equilibrada do que a maioria ao reconhecer explicitamente como é raro a "mu-
procura".
lher" ser identificada com a "encarnac;ao do mal" nos textos rabinicos (ibid.). Ao contrário "Por que o hornero deposita sua semente na mulher, mas a mulber nao
de Caro! Meyers (1988, 74-75), que confunde a tradic;ao interpretativa dos rabis primitivos deposita sua semente no homem"? Ele respondeu: "É como alguém que
com a dos judeus nao-rabinicos e dos cristaos, Aschkenasy observa: "Como já vimos, ao possui um objeto valioso; ele procura alguém confiável para guardá-lo".
contrário da exegese bíblica dos cristaos, a figura de Eva na tradic;ao judaica nao tomava o (Theodor e Albeck 1965, 158-59)
aspecto de um mal cósmico" (Aschkenasy 1986, 50).
17 Mais adiante, no entamo, discutirei outra tradi<;ao da hermenéutica rablnica que "coloca a
culpa de tudo" em Eva.
18 Este padrao da literatura midráshica clássica possui urna excec;ao mareante, que será discu- 20 Seria um equivoco, contudo, ler esta passagem a luz de noc;Oes mais tardías a respeito de
tida mais adiante. Compare este trecho, por exemplo, com Ambrósio: "A Escritura faz bem Sata. Agradec;o a llana Pardes por ter chamado minha atenc;ao para este trecho.
em omitir em que ponto Adao foi enganado; pois ele nao caiu por culpa sua, mas pelos vi- 21 Para ter urna idéia de como a presenc;a dessa temática misógina foi duradoura, ver o texto
cios de sua mulher" (citado por Higgins [1976, 644)). medieval francés citado por Bloch (1987, 18): "Por que as mulheres sao mais barulhentas,
19 Fllon (1929a, 275), entre outros exemplos. Ver também Sly ( 1990, 109). cheias de palavras tolas e mais tagarelas do que os borneos? Porque elas sao feítas de ossos.
enquanto a nossa pessoa é feíta de barro: os ossos fazem mais barulho do que a terra".
102 Dife rentes Evas Diferentes Evas 103

Até este ponto, os comentários de Rabi Yehoshua, apesar de terem um tom "Os Trés Pecados que Causam a Morte da Mulher
ofensivo, nao transmitem necessariamente um desprezo violento pela mu- no Parto" e a Divergéncia entre os Rabis
lher. De fato, a última sentenc;a se encaixa no argumento geral proposto por
este capítulo, segundo o qual a maneira como os rabis encaravam a mulher A idéia nascente em Rabi Yehoshua de que Eva representa a origem da mor-
estava ligada ao seu desejo de assegurar que o seu papel reprodutor nao fos- te é ampliada pela leitura que o Talmude da Palestina faz de urna famosa
se ameac;ado de maneira nenhuma. A diatribe de Rabi Yehoshua, porém, nao passagem mishnaica: "Há tres pecados que causam a morte da mulher no
pára por aqui. parto: o descuido com a separac;ao menstrual, com a oferta da massa de pao
e com a luz da vela [do Shabat]" (Shabat 2,6). Estes sao exatarnente os mes-
"Por que o homem sai com a cabec;a descoberta, enquanto a mulher só sai mos mandamentos a que Rabi Yehoshua se refere, o que aponta para urna
com a cabec;a coberta"? Ele disse: "é como alguém que cometeu um pecado e origem comum para as duas sentenc;as. Urna delas, porém, considera estes
tem vergonha <liante dos outros; por isso ela sai coberta". tres mandamentos "femininos" urna espécie de punic;ao, e nao um privilégio.
"Por que elas sao as primeiras a se juntar aos mortos"? Ele disse: "já que . a interpretac;ao do Talmude da Palestina, esta afirmac;ao da Mishná está as-
trouxeram a marte para o mundo, sao as primeiras a se juntar aos mortos". sociada a um midrash semelhante ao de Rabi Yehoshua: "O primeiro Adao
"E por que ela recebeu o Mandamento da separac;ao menstrual"? "Porque
era o sangue do mundo ( .. .) e Eva lhe trouxe a morte; por isso, o manda-
derramou o sangue do primeiro Ada.o, e entao recebeu o Mandamen to da
mento da separac;ao menstrual foi imposto a mulher. Adao era a primeira
separac;ao menstrual". "E por que recebeu o Mandamento de sacrificar a
primeira porc;ao da massa do pao"22 ? "Porque destruiu o Primeiro Ada.o, que
oferta de pao puro do mundo ( ...)e Eva provocou sua morte; por isso ela re-
era a primeira porc;ao d o mundo, e por isso recebeu o Mandamento de cebeu o mandamento da oferta da massa do pao. Adao era a vela do mundo,
sacrificar a primeira porc;ao da massa". "E por que recebeu o Mandamento de pois está escrito: 'a alma de Adao é a vela de Deus', e Eva lhe trouxe a morte;
acender a vela do Shabat"? "Por que apagou a alma do Primeiro Adao, e entiio por isso o mandamento de acender a vela foi imposto a mulher (Talmude da
recebeu o Mandamento de acender a vela do Shabat". Palestina Shabat 2,68 b) 21 . No entanto, apesar de esta tradic;ao colocar toda a
(ibid; cf. Schechter 196 7, 117) culpa pelo pecado e pela morte em Eva, ela nao atribuí esta culpa a sua se-
xualidade. O ato de Eva de fato fo¡ um pecado e criou a necessidade de que
É muito raro encontrar urna atitude explicitamente misógina, como a de suas "filhas" tivessem um meio de compensá-lo, mas nao há a menor indica-
Rabi Yehoshu a, na literatura rabínica (pelo menos em comparac;ao com Fí- c;ao de que este pecado seja repetido, ou perpetuado, na vida sexual. Além
lon, de um lado, e a cultura patrística, de outro) 23 • Este tipo de catálogo mi- disso, o fato de os tres mandamentos estarem interligados desta maneira re-
sógino se tomaria endemico no j udaísmo medieval, ao mesmo tempo que vela outro detalhe importante. A separac;ao menstrual nao recebe urna enfa-
influenciava a cultura medieval como um todo (Bloch 1987). De qualquer se especial, nem é tratada de fo rma diferente do que os mandamentos do
maneira, nem mesmo este texto projeta urna conceitualizac;ao da sexualida- sacriCício da massa e do ato de acender as velas do Shabat. Esta seria a me-
de feminina como um elemento perigoso e amear;ador, apesar de 'm anter lhor ocasiao para iden tificar a priori a sexu alidade da mulher com a morte,
esta possibilidade em aberto no pano de fundo. com o perigo ou com poderes demoníacos. Contudo, mesmo no texto misó-
gino que acabamos de ler, esta opc;ao é descartada.
O Talmude da Babilonia vai ainda mais longe, neutralizando o discurso
de assimetria entre os sexos da Mishná e rejeitando o midrash misógino de
Rabi Yehoshua. Antes de mais nada, o Talmude levanta a possibilidade de se
fazer urna in terpretac;ao sexual da Mishná - urna interpretac;ao que, a pri-
22 Ao se fazer o pao, urna pane da massa é separada como urna ofe.n a aos sacerdotes. Urna meira vista, parece óbvia:
vez que as ofenas aos sacerdotes sao sempre reúradas das primicias da massa e Adáo era o
primeiro homein, ele é comparado ás primicias do pao.
Para [nao ter cuidado] coma separac;ao menstrual, qua) é o motivo? Rabi
23 Pelo que eu saiba,. os dois texl os citados acima, retirados do mesmo ponto do Gtnesis Rabd,
sao os únicos exemplos de diatribcs misóginas deste úpo em toda a literatura rablnica clás-
sica. Apresenuarei mais adiante um catálogo de outras expressóes misóginas que aparecem
nestes textos. Espero náo ter deixado escapar nada imponante. 24 É possivel que este texto seja urna simples cita~ao do midrash de Rabi Yehoshua.
104 Diferentes E vas Diferentes Evas 105

Yitzhaq disse: "Ela destruiu tudo com a sua sexualidade [lit., suas entranhas]; tanto aos bornens quanto as rnulheres e a puni~ao a ser aplicada nos casos
por isso, será castigada por suas entranhas". em que nao sao cumpri.dos. Assi.m, até mesmo uro discurso que apenas insi-
nua urna rela~ao essencial entre a sexuali.dade feminina e a morte é combati-
Esta opiniao, é claro, canonizaria a interpreta~ao misógina de Rabi Yehos- do pelo texto clássico desta cultura, o Talmude, justamente no ponto em
que esta liga~ao poderi.a ser explicitada (a menstrua~ao) •
27
hua. O Talmude, porérn, rejeita irnediatarnente este ponto de vista (urna vez
que ele nao se adapta aos outros mandamentos citados, ou seja, a oferta da Este tipo de obje~ao nao ocorri.a apenas na Babilonia. O midrash palesti-
massa e o ato de acender as velas do Shabat) e oferece outra leitura. De fato, no sobre o Eclesiastes também faz urna "emenda" ao texto, que passa a di-
este comentári.o hegemónico se afasta por completo da questao dos sexos: zer: 'Tres coisas causam a morte das mulheres no parto, e tres coisas
causam a morte dos homens" (Qohelet Rabá 3,3). Além disso, no midrash so-
Como um ceno galileu interpretou: coloquei dentro de vós urna porc;ao de
sangue; por isso vos dei um mandamento ligado ao sangue. Chamei a vós os
27 Pelo menos no periodo rablnico clássico, a menstrua,ao nao era entendida como urna ma-
"primeiros"; por isso vos dei um mandamemo ligado ao primeiro [pao]. A
nifesta<;Ao do mal demoniaco ligado ao sangue, a morte, ao nascimemo e a sexualidade,
alma que vos dei é urna vela; por isso vos dei um mandamento ligado as nem servia para associar a mulher em si a impureza e a comamina,ao, como afirma Weg-
velas. Se cumprirdes estes mandamentos, muito bem; se nao, tomarei vossas ner (Shayej. D. Cohen 1991, 281).
almas. Outro indicio citado por Wegner para corroborar a afirma<;Ao de que o judaísmo rabl-
(Talmude da Babilonia Shabat 3lb-32a) nico apresenta um medo atávico da mulher também me parece se apoiar numa leirura equi-
vocada, ou pelo menos permiúr outra imerpretai;ao. O fato de a lei proibir o hornero de
ficar sozinho com duas mulheres, enquanto a mulher pode ficar sozinha com dois homens,
Segundo o Talmude da Babilonia, estes mandamentos pertencem a pri.ncí- nao é o bastante para afirmar que "a perspecúva androctntrica dos sabios atribuí os peri-
pio, como todos os outros, ao povo como uro todo, tanto homens quanto gos de um encomro privado entre os sexos a frouxidao moral das mulheres, e nao a '.11aior
suscetibilidade dos homens ao estimulo sexual" (Wegner 1988, 159-61). Pode-se apbcar o
mulheres. o entanto, sao atribuidos as mulheres em particular porque per-
mesmo argumento a outras "barreiras" sexuais rablnicas, como, por exemplo, a proibii;ao
tencem a esfera feminina da cultura rabínica: o seu carpo, a cozinha e o con- de que o homem om;a urna mulher cantar, caso ela nao seja sua esposa. Mais urna vez, nao
forto da casa; outros mandarnentos, ligados a esfera "masculina" da vida há como afirmar que a frouxidao moral das mulheres, ao invés da excitabilidade dos ho-
pública e do culto, restringem-se aos homens 25 • O Talmude entao pergunta: mens, seja o pomo em queslAo aquí. a verdade, a segunda possibilidade é refori;ada se
lembrarmos que os homens nao devem olhar para as roupas coloridas das mulheres pendu-
"Por que, entao, na hora de dar a luz"? A resposta é que a virtude das pes- radas no varal, pois se.nao poderiam ficar excitados. urna situa~o como esta, nao há
soas é testada nos momentos de perigo. A seguir, o texto pergunta quando como dizer que a frouxidao moral das mulheres é o problema a ser evitado. Estas práticas
os homens sao testados e a resposta é que sao testados quando passam por talmúdicas nao deixam de estabelecer urna difereni;a essencial entre os homens e as mullie-
res e de pressupor a existtncia de urna hierarquía social, mas m\o apresentam indicios con-
urna ponte e ero outros momentos de peri.go sernelhantes26 • Nas duas pági- vincentes de urna mentalidade que encara a mulher como um perigo e urna fome de
nas seguintes, o Talrnude apresenta urna lista dos rnandamentos que cabero contaminai;ao.
Da mesma maneira, nao creio que os indicios citados por Nehama Aschkenasy justifi-
cam a afirma<;iio de que na cultura rablnica "a mulher é ene.arada basicamente como um ser
25 Compare a afirma,ao acima coma interpreta, ao feíta por Wegner (1988, 155-56). ao vejo sensual, c~ja fraque.za moral está aliada a um poder sexual que ela uúliza para fins maléfi-
nenhum fundamento para a afirma,ao da autora de que "os rrts deveres ligados ao culto cos" ( 1986, 40), e muito menos a idéia de que "a mulher em geral é condenada pelo Mi-
que sao Listados aquí, assim como outros preceitos blblicos, cabem primariamente ao ho- drash como um ser despudorado e cheio de volúpia, principalmente no que diz respeito á
mem" ( 155). Ao com.rário, eles sao justamente exemplos de deveres ligados ao culto que, na história da Criai;ao" (ibid., 74). Aschkenasy cita trts referéncias para justificar a sua imer-
leí mishnaica, cabem tamo as mulheres quanto aos homens. Assim, a viola,ao das leis de pretai;ao do "Midrash". O exemplo retirado do Gtnl!Sis Rabá é relevante, mas atlpico. Ele já
separa~o menstrual pesa sobre as mulheres da mesma manei.ra que sobre os homens - o fo¡ citado acima e seu conteúdo avaliado. ao vejo nada em Socá 19b que possa referendar
mesmo ocorre quando se come um alimento do qual nao se reúrou urna oferenda ou se co- urna afirma<;.a o deste úpo; só posso chegar a conclusao, emao, de que esta referéncia repre-
rnete urna viola,ao do Shabat. Nao se trata, nem em termos técnicos, de preceitos positivos senta, na verdade, um erro de impressao. O terceiro texto citado é Os Patriarcas segundo
conú ngentes que recaem apenas sobre os homens. Rabi Nathan l. Urna leitura cuidadosa deste texto mostra apenas que Eva podía ser engana·
26 A afirma~o de Wegner, segundo a qual "o bom desempenho da mulher é encorajado pela da pela serpente com maior facilidade do que Adao. Além disso, o texto culpa Adao expli<:i-
amea<;a de que morrerá no parto caso nao cumpra os ritos citados" (155). apesar de se apli- tamente por este fato: "O que fez c.om que Eva tocasse na árvore? Foi a cerca que Adao
car perfeitarnente a Mishná, nao descreve de forma adequada a prática geral dos rabís. As ergueu em torno de suas palavras" - isto é, o exagero com que relatou a im~rdic;ao de
mulheres, é claro, passam por urna "dose dupla" de lestes, pois certamente atravessam as Deus para que nao cornessem da árvore fez com que Eva fosse enganada. Deus d1ssera ape-
pomes com a mesma freqüt ncia que os homens, mas isso nao tira a validade do argumento nas que nao deviam comer de seu fruto, mas o fato de Adao afirmar que nao deviam sequer
de que este perigo nao está ligado a um elemento essencialmeme feminino. tocá-la colaborou para que Eva fosse ludibriada pela serpente (Goldin 1955, 9-10).
Dife rentes Evas Diferentes Evas 107
106

bre o versículo ginecofóbico de Eclesiastes 7,26 ("E descobri que a mulher é nificados sociais28 • Os antropólogos Buckley e Gottlieb chegam a conclusoes
mais amarga do que a morte"), onde esperaríamos encontrar mais urna vez o semelhantes a respeito dos tabus ern torno da menstruac;:ao:
tema da mullier enquanto um mal ou um perigo, há apenas a afirmac;:ao de
que ds vezes a mullier exige tanto de seu marido, que acaba provocando a Na maior parte da literatura. quando se fala da proibi<;ao das mulheres
sua morte - teoria que é acompanhada por urna anedota ilustrativa ( Qohelet tocarem ero alguma coisa que pertem;a a esfera do hornero - o seu
Rabá 7,37). Trata-se, sem dúvida, de urna afirmac;:ao androcentrica, mas nao equipamento de cac;a, por exemplo - isso é encarado como urna indicac;ao da
dominac;ao masculina através da exclusao das mulheres de atividades de
ginecofóbica. Estes rabis nao veem a mulher em si, nem a sua sexualidade,
maior prestigio. Por outro lado , quando se proibe que os homens tenham
como um elemento negativo e ameac;:ador. Contudo, toda hierarquia social,
contato com algum elemento da esfera feminina - como o sangue menstrual
por mais "benigna" que seja, parece trazer consigo as sementes de um dis- - este fato recebe a interpretac;ao oposta, passando a ser considerado um
curso de desprezo. Este discurso provavelmente se esco ndia logo abaixo de sinal da inferioridade feminina. Os dois tipos de ac;ao, ou tabu, parecem
urna tentativa por parte dos rabis de produzir urna fala que defendesse o paralelos, mas recebem urna interpretac;ao antropológica binária.
confinamento das mullieres, sem cair na misoginia. De fato, como vários es- (Buckley e Gottlieb 1988, 14)
tudiosos já argumentaram (e Bloch dernonstrou recentemente), qualquer
discurso masculino que pretenda revelar a essencia da mulher - dando a ela Apenas urna análise de situac;:oes históricas especificas pode revelar o signifi-
um valor "positivo" ou "negativo" - sempre acaba levando a misoginia. cado preciso de urna prática que pertence a urna formac;:ao em particular -
Bloch, no entamo, formularia este argumento de outra maneira: ele afirma e mesmo dentro de urna determinada formac;:ao cultural, a mesma prática
que qualquer predicac;:ao do tipo "as mullieres sao" ou "a mullier é" já é mi- pode, é claro, possuir vários significados contraditórios. Se, como argumen-
sógina (Bloch 1991, 4-5). Este raciocinio me causou urna forte impressao. tei, no judaísmo rabínico do período talmúdico nem mesmo os tabus mens-
Esta abordagem tem o efeito salutar (na minha opiniao) de eliminar qual- truais representavam um ódio e um medo da mulher enquanto um agente
quer fundamento para um ceno tipo de discurso apologético que também de impurezas, este tipo de interpretayio sem dúvida estava latente na sua
estou tentando evitar aqui, ou seja, o de que o judaísmo rabínico nao era cultura e podia ser derivado de outras práticas.
machista, pois rnuitas ve.zes "elogiava" as mulheres. Por outro lado, ela difi- Há outro conjunto de mitos judaicos sobre a origem da mulher onde
culta a percepc;:ao e a descric;:ao de divergencias culturais verdadeiras no que esta assume as características de urna figura demoníaca. Estou me referindo,
diz respeito a representac;:ao da mullier, do corpo e da relac;:ao entre os sexos é claro, aos mitos de Lilit, que só surgem na literatura posterior ao período
em diferentes culturas. Prefiro, en tao, relativizar um pouco esta afirmac;:ao e rabínico: o primeiro registro de mitos <leste tipo se encontra no Alpha-Beta
sugerir apenas que qualquer predicac;:ao "positiva" <leste tipo pode se conver- d 'ben Sirah, um texto do século VUI (Yassif 1984). A narrativa conta a histó-
ter prontamente ern seu oposto. O ato de "colocar a mullier num pedestal", ria de urna primeira mullier criada para Adao, de quem ele se divorciou de-
como no período vitoriano, por exemplo, leva facilmente a violencia contra pois que ela quis ficar "por cima". Ela continua a viver sob a forma de um
a mulher; da mesma maneira, o discurso rabínico que dava um grande valor súcubo, que dorme com os homens a noite (o seu nome significa "Demónio
a sexualidade e ao corpo feminino também pode descambar sem grandes di- da Noite"), gerando crianc;:as demoníacas comas suas emissóes masturbató-
ficuldades na misoginia escancarada que caracterizava boa parte do discur- rias notumas. Como observa Yassif, os textos midráshicos clássicos estao fa-
so rabínico medieval, como veremos mais adiante. miliarizados com o tema de urna "Primeira Eva", que "voltou a sua poeira"
(Theodor e Albeck 1965, 213). Este pode ser o último resquicio de urna nar-
rativa mais longa a respeito da criac;:ao de urna mulher que mais tarde se re-
A "Outra Mulher": Lilit e a Sexualidade Feminina belou, exigindo paridade sexual com o hornero, mas continua a existir como
Enquanto um Elemento Demoníaco um demónio. Os indicios de urna construc;:ao <leste tipo, porém, sao muito
escassos. O Génesis Rabá de fato menciona demonios sexuais que vem a noi-
Foucault urna vez disse, no que quase seriarn as suas últimas palavras: "N~o
pretendo dizer que rudo é ruim, mas sim que tudo é perigoso" (Dreyfus e
28 N;io sei até que ponto esta afima<;;io é verdadeira. A minha imuii;ao me diz que ela náo se
Rabinow 1983, 232). Praticamente toda prática cultural pode ter vários sig-
aplica as práticas que causam a morte ou graves danos físicos.
Diferentes Evas 109
108 Diferentes Evas
- · do mundo bíblico do que do mundo helenista. Mais urna vez, a
proximos - d
te, mas num contexto que corrói a valencia cultural que a história adquiriría compara~ao de mitos sobre a origem da mulher - desta vez entre _:ies10 o e
mais tarde. Quando Ada.o e Eva foram expulsos do jardim do Éden, decidi- a Bíblia _ pode fornecer pistas importantes para a sua compreensao.
ram se abster de rela~óes sexuais durante 130 días. Ao longo desee período,
ele foi visitado por súcubos e ela por íncubos, e os dois geraram c rian~as de-
moníacas (Theodor e Albeck 1965, 195). De fato , o Talmude se refere a "Li- Eva e Pandora
lin e Liliot" muito antigos (ver Milgrom 1988, 226-29 e a literatura citada),
demonios masculinos e femininos da noite, que também eram citados em A esar de Pandora algumas vezes ser chamada de "a Eva g~ega"_ (Séchan
1~29), esta compara~ao é enganosa. A divergencia_e~tre os d01s mnos pode
encanta~óes do mesmo período (ibid., 231). Na Idade Média, este tema foi
modificado: "Sabei e compreendei que quando Ada.o se separou de Eva du- ectada logo de inicio, pois como Froma Ze1tlm demonstrou num en·
ser det d E ·· -
rante 130 dias para dormir sozinho, a primeira Eva, isto é, Lilit, veio ao seu saio recente (Zeitlin 1990), a própria versa.o bíblica da origem e va Jª ~?
encontro e, sentindo desejo pela sua beleza, dormiu com ele. A partir daí, fo- bastante para diferenciar as duas histórias30 . Zeit~in f~z ~ma excelente anah-
rarn criados demonios, espíritos e demonios da noite" (Yassif 1984, 65 e lite- das diferen~as existentes entre este mito e o mito b1bhco de Eva: na narra-
ratura citada aquí). Urna declara~ao neutra (no que se refere aos dois sexos) ~:a escrita por Hesíodo, a mulher nao é um ser natura~, . f~ito da m:sma
a respeito de como os demonios se aproveitam dos celibatários acabou se substancia que 0 homem, mas urna criatura fabricada arnf1cialmente, urna
tomando, através de urna altera~ao sutil, urna representa~ao da sexualidade inven~ao técnica, resultado de urna a~ao premeditad~·- ~m produto artesan~l
demoniaca da mulher. ou até mesmo urna obra de arte - ero suma, um aruf1c10 em ~od~s os senu-
o período rabínico, estas lendas, medos e terrores a respeito da sexua- dos da palavra" (Zeitlin 1990). Além disso, "a mulher nao e cnada ~o~o
lidade ferninina aparentemente conseguiram sobreviver sob a superficie dos urna companheira para aliviar a solida.o do hom~m, como no ~ela~o bibhco
textos e da cultura o[iciais. A existencia deseas lendas na cultura rabínica, de Adao e Eva, mas siro como um castigo". E ma1s, a mulher nao e apresen-
porém, só pode ser percebida através de sua nega~ao e repressao nos "textos tada como urna parceira na "condu~ao da existencia mortal", mas como ~m
oficiais". A cultura rabínica (encarada aqui apenas como a cultura dos pró- arasita que drena 0 hornero, sentada "dentro de casa, 'enchendo a barnga
prios rabís) nao apoiava a existencia <lestes mitos. A partir do inicio da Ida- ~om 0 produto do trabalho alheio' [Tg. 599]" (Zeitlin ~990). Es~e c~ntraste
de Média, no encanto, a sua presen~a se toma cada vez mais forte n a cultura entre a produ~ao de Pandora e a cria~ao de Eva tambero se aphca a repre-
rabínica e na religiao oficial. Esta tendencia é acompanhada por mudan~as senta~ao da vida sexual em cada mito. Assim:
semelhantes no discurso da menstrua~ao , que deixa de ser apenas um fator
que descompatibiliza a mulher para o culto, para ser encarada como urna es- Podemos observar que em Hesiodo, ao invés de "se unir, tomando-se urna só
pécie de contamina~ao quase demoníaca (Shaye]. D. Cohen 1991, 281 e carne", como no relato da Biblia, ou de "se juntar no amor-(philotes)", como
284-85). Durante a Idade Média judaica, a cria~ao de imagens demoniacas no eufemismo canónico utilizado nos textos gregos (e em outros pontos_da
da mulher e a repulsa <liante da menstrua~ao também sao acompanhadas Teogonia), 0 hornero e a mulher permanecem entidades distintas, env~IVIdas
por urna ansiedade crescente ero tomo da sexualidade (Biale 1992). Pode-se numa transac;ao desigual, onde a mulher literalmen:e suga a substan_cia do
hornero (alimenticia e sexual) e, coro seus apetites, assa o hornero ~w_o _e o
argumentar, entao, que a misoginia era um efeito latente e previsível da posi-
condena a urna velhice prematura" (TD 705). A sua beleza exuaordinana,
~ao inferior imposta a mulher e dos próprios tabus da menstrua~ao . ao po-
realc;ada pelos adornos que os gregos consideravam sin_ais ~ternos dos .
demos, contudo, ler os textos da literatura rabínica clássica sob a ática do
medo e ódio a mulher que caracterizou o período posterior, pois sena.o esta-
atrativos sexuais, nao é mais do que urna cilada e urna ilusao. ( ...) ?s
pengos
da sexualidade como urna viola<;ao da autonomia do corpo masculino, o
ríamos correndo o risco de canonizar esta atitude misógina 29 • A este respei- desequilibrio que provoca em seus humores, as limita<;óes imp_ostas para o
to, nao me parece possível haver dúvida de que os rabís estavam bem mais seu gozo, 0 fato de nao estar ligada a um objeto de amor especifico e ~s
apetites sexuais descontrolados (extravagan~es) atribuídos a mulher sao
29 Quanto a este caso especifico, eu gostaria de citar H. . Bialik, um poeta hebraico moder·
no, notoriameme misógino, que ao organizar urna antologia da doutrina rabinica sobre o
casamento, praticameme citou apenas os textos mais misóginos produzidos por esta cultu· 30 Gostaria de agradecer a Zeitlin por ter me enviado urna cópia deste artigo.
ra.
110 Diferentes Evas
Diferentes E vas 111

características recorrentes da atitude dos gregos. Textos médicos e filosóficos da mulher e do papel que ela tem a desempenhar, além de tentar explicar o
posteriores exporiam com todas as letras os perigos do prazer sexual para a "fato de os textos de Hesíodo terem assumido um caráter canónico dentro
saúde do homem ( .. .) mas esta eslrutura já está montada em Hesíodo,
do pensamento grego".
principalmente no contexto da criac;ao da mulher como um anti pyros, um
"fogo" que tomarla o lugar daquele que fora roubado.
As particularidades da atitude extremamente negativa de Hesíodo em relac;iio
(Zeitlin 1990) a mulher, apesar de estarem sujeitas a cenas atenuac;óes em outros textos e
esferas de interesse, continuam a ser a pedra de toque de urna cena atitude
Zeitlin chega a outra conclusao importante. O texto de Hesíodo apresenta
subjacente em relac;iio a este "outro" intromissor e ambiguo, que é carregado
urna ambigüidade extraordinária até mesmo ao fala r do papel da mulher para dentro da casa de um homem e permanece para sempre sob a suspeita
como agente reprodutor. Nao há nenhum elemento na narrativa para indicar de ter causado urna mistura que ameac;a a pureza e a univocidade da
que a mulher tinha urna fun<;ao ligada a fecundidade, ao contrário de "repre- idemidade masculina, quer isso se de através das relac;óes sexuais ou da
senta<;oes ortodoxas gregas da fertilidade" (Loraux 1981). Talvez 0 sinal gerac;iio de crianc;as.
mais mareante da diferen<;a entre as duas histórias seja o fato de Eva ser (Zeitlin 1990)
chamada "A Mae de Todos os Viventes", enquanto Pandora é apenas a an-
cestral da ra<;a das mulheres (genos gynaihln ). Como observa Zeitlin, Hesío- o que diz respeito ao nosso campo de interesse aquí, o contraste mais sig-
do chega a inverter o significado de seu nome, que deixa de ser "Aquela que nificativo que Zeitlin estabelece entre Hesíodo e a forma<;ao bíblica é a extre-
Dá Todas as Dádivas", um epíteto de Géia, para se tornar "Aquela que Rece- ma ambigüidade com que é tratada a reprodu<;ao. Esta ambigüidade parece
be Todas as Dádivas". Finalmente, nao há qualquer referencia a dolorosa endémica a "economia de escassez, parcimónia e aten<;ao aos bens que o ho-
produtividade da mulher ao parir seus filhos 31 • mem acumula pacientemente por sisó e para sisó", na Grécia, em oposi<;ao
Zeitlin chama aten<;ao para o fato de que, apesar da assimetria entre os ao entusiasmo ilimitado que é típico da "economía de abundancia, prolifera-
dois sexos, na história bíblica o quadro é completamente diferente. Depois <;ao e expansividade" da cultura hebraica33.
~a expulsao do Jardim , há urna certa complementa<;ao (ainda que nao urna O argumento de Zeitlin é importante para evitar urna tendencia a esque-
igualdade) entre as posi<;óes do homem e da mulher. Eles sao apresentados cer o fato de que, apesar de todas as sociedades mediterraneas conhecidas
como parceiros, ambos lutando e sofrendo para perpetuar a vida humana. apresentarem urna estrutura altamente androcéntrica, elas possuíam ideo~
Esta diferen<;a entre o Génesis e a história de Hesíodo torna-se ainda mais logias a respeito dos sexos extremamente variadas. A p resen <;a destas
clara ao lermos a narrativa bíblica a luz de alguns intérpretes feministas im- ideologías, contudo , nao aponta necessariamente para diferen<;as em ou-
portantes, que nos ensinaram que nem mesmo Génesis 2, onde Eva é criada tras categorías da prática social. Nao pretendo, entao, estabelecer distin-
a partir de um peda<;o de Adao, deve ser entendida como um mito criado <;óes essenciais entre as práticas sociais das culturas representadas "n o
com o objetivo de justificar a subordina<;ao da mulher32 • De qualquer manei- pano de fu ndo" de obras literárias específicas, e muito menos entre for-
ra, a sexualidade de Adao e Eva é descrita como a uniao de urna única carne ma<;óes culturais como um todo. Assim, o fato de afirmar que nos textos
e a reprodu<;ao é encarada como um bem sem limites, urna bén<;ao ou até canón icos de urna determinada cultura a mulher é representada como um
mesmo um mandamento. Em seu ensaio, Zeitlin ainda procura descobrir os ser maléfico, assustador , fraco, gentil, acalentador, etc. , enquanto nos de
motivos que levaram Hesíodo a fazer urna descri<;ao tao negativa da origem ourra isso nao acontece, ensina-nos muito pouco a respeito da vida das
mulheres em cada cultura. Como john Winkler observou, estas repre-
senta<;óes podem ser apenas "léria dos homens". Caroline Bynum tam-
31 Caro) Meyers ( 1988, 100-109) nao concorda com as interpretac;óes de Gfnesis 3 16 que
bém chama aten<;ao para o fato de nao p odermos tomar ao pé da letra
vfem neste versículo urna me nc;ao as dores do pano. Seus argumentos, porém nao :ne con-
venceram. Na .minha opiniao, o esforc;o do hornero para obter os frutos da le;a é proposlo aquilo que os textos afirmam sobre a posi<;ao da mulher na socied ade
co~o um equivalente do. esfo~c;o_ da mulher para dar a luz os frutos da reproduc;ao. Nao
cre10 que esta pequena dwerge~c_ia p~ssa afetar a impon:tncia das correc;óes propostas por
Meyer para outros os erros trad1c1ona1s de interpretac;ao.
33 Nao ílea claro no texto de Zeitlin se ela vt nesta supereslrutura urna diíerenc;a concreta na
32 Ver Trible ( 1978), Bal (1987), Meyers (1988, 85 e, principalmente 114-17) e Boyarin base econOmica, ou se os termos econOmicos que emprega se.rvem como metáforas de fenO-
( 1990d). . .. •
menos culturais/ ideológicos.
Diferentes Evas 113
112 Diferentes Evas

(Bynum 1986, 258). De qualquer maneira, aquilo que os textos canónicos "medo atávico das mulheres", como fez um escritor há pouco tempo; de
dizem já é urna prática social importante por si só e é esta prática que pro- qualquer maneira, ela nao deixa de demonstrar urna subordinac;ao quase to-
curo compreender aqui. Há grandes diferenc;as entre a Biblia e os textos ca- tal das mulheres as necessidades dos homens.
nónicos da cultura grega (ou que pelo menos eram transmitidos como tal no De acordo com a lenda, Rabi Akiva é o mesmo que deseja dar a sua ama-
mundo antigo ), principalmente no caso da história de Pandora (Panofsky e da - que é um símbolo de abnegac;ao - urna "tiara de ouro com a forma de
Panofsky 1956, 3-13). jerusalém", quando os dois estao deitados dentro de um celeiro (ver capít~­
O papel das mulheres na literatura bíblica é subordinado, dominado lo 5). Assumindo urna posic;ao praticamente aposta, Clemente de Alexandna
e dependente, mas as suas func;óes (sociais ou sexuais, produtivas ou re- _ o padre primitivo mais "favorável" ao casamento - afirma: "Assim como
produtivas) sao altamente valorizadas. Elas nao sao encaradas como um a serpente enganou Eva, a tentac;ao do ornamento dourado com a forma de
mal que caiu sobre o "homem", mas como um sinal da beneficencia de urna serpente despena um furor enlouquecido no corac;ao das outras mullie-
Deus. a versao da cultura grega representada por Hesíodo (que, apesar res, fazendo com que elas usem imagens de lampreias e cobras como enfei-
de nao ser universal, é a que foi transmitida do final da Antigüidade para te". A oposic;ao entre os dois discursos nao poderia ser mais clara. Na
a ldade Média), a mulher é a marca de um mal e urna fome de perigo opiniao do padre, a jóia tem a mesma aparencia dos animais perniciosos
para o homem; na verdade, a sua própria natureza é maligna. Em ambos que sao um símbolo da tentac;ao de Eva, enquanto na formac;ao rabinica, o
os casos, estamos <liante de urna economía masculina; a diferenc;a está no ornamento feminino é a Cidade Sagrada.
lugar que a mulher ocupa dentro desta economia. Creio, entao, que a lite- Urna passagem do rnidrash palestino sobre o Genesis, o Genesis Rabá,
ratura rabínica reteve o padrao cultural bíblico, enquanto os judaísmos demonstra este ponto com enorme clareza, pois é quase um análogo perfeito
helenistas aceitaram e cultivaram os componentes básicos da ideologia de um tema de Hesíodo ( ou da cultura grega e helenista, num ambito mais
helenista a respeito da mulher. Pode-se dizer que nas raizes da ideologia geral), apesar de inverter completamente o seu valor. Citarei primeiro o tex-
ocidental sobre a mulher encontraremos a figura de Pandora sobreposta a to de Hesíodo:
de Eva.
E a deusa Atená, de olhos cinzas, cingiu-a e a cobriu
com uro vestido prateado e colocou uro véu em sua cabec;a,
tecido corn urna seda maravilhosa, urn prodigio de se olhar;
Os Ornamentos das Mulheres :
sobre isso, urna guirlanda de Oores, alegres e frescas.
Dádiva ou Armadilha Divina?
Palas Atená colocou em sua cabec;a uro bellssimo adorno;
e urna coroa de ouro, cercando-lhe a fronte, pos em seu lugar,
A diferenc;a entre Eva e Pandora enquanto símbolos de duas configurac;óes diadema fabricado pelo famoso deus coxo.
androcentricas divergentes pode ser delineada com urna clareza ainda maior Com a habilidade de suas maos, obedecendo a Zeus Pai.
pelos discursos dos rabis e de Tertuliano sobre a vestimenta e os cosméti-
cos. Ao contrário das investidas dos padres contra os adornos femininos, na Quando terminou esta beleza, este mal para compensar um bem,
cultura rabínica o hábito de usar roupas atraentes, enfeites e cosméticos era Hefesto a levou a presenc;a dos outros deuses e homens,
considerado perfeitamente adequado ao papel da mulher enquanto parceira envaidecida pelos adornos oferecidos pela filha do Grande Zeus.
sexual. Assim, mesmo urna noiva de luto pode usar maquiagem, pois senao Entao os deuses e os roortais ficaram cheios de pasmo
correria o risco de nao ser atraente para o seu marido. Também é permitido ao ver esta armadilha de que os homens nao poderiam fugir.
(Frazer 1983; os grifos sao meus)
as mullieres usar maquiagem nos feriados (apesar de ser proibido pintar e
desenhar), pois o uso dos cosméticos é considerado um prazer e nao um tra-
balho (Talmude da Babilonia Mo 'ed Katan 9b). Na opiniao de Rabi Akiva, O midrash aborda o mesmo tema que a história de Pandara, ou seja, os or-
até urna mulher menstruada pode usar maquiagem e jóias. lsto é, a sua se- namentos divinos da primeira mulher:
xualidade e os sinais externos de seus atrativos sexuais nao sao suprimidos
R. Aibo, alguns dizero em norne de R. Banaya e alguns em nome de R.
nem mesmo durante a menstruc;ao. É difícil descrever esta atitude como um Sirneon, filho de Yohai: "Ele a ornarnentou como urna noiva e a conduziu até
114 Dife rentes Evas Diferentes Evas 115

ele. Há lugares onde a tranca é chamada de "constru<;ao"34 • R. Hama disse em além dos adornos de Eva serem um presente positivo de Deus para o ho-
nome de R. Hanina: "Credes, entao, que ele simplesmente a largou embaÍ.lCo mem, eles sao alvo do simbolismo mais positivo que esta cultura poderia
de urna alfarrobeira ou de um sicómoro? Nao, ele a eníeitou coro 24 adornos criar. O "tu" do versículo de Ezequiel é o próprio Israel, que neste ponto é
e depois a levou até ele, como está escrito: 'Quando estavas no Éden, o Jardim
identificado com Eva, e a época do jardim é encarada como um período de
de Deus, tu te enfeitavas com todas as pedras preciosas: cornalina, crisólito,
!ua-de-mel na rela<;ao de Deus com esta na<;ao. Os adornos femininos - i.e.,
ametista, berilo, lápis-lazúli, jaspe, safira, turquesa, esmeralda e ouro"' [Ez
a sexualidade - sao descritos praticamente da mesma maneira que na histó-
28,13).
(Theodor e Albeck 1965, 161) ria de Rabi Akiva citada acima, ou seja, tornam-se um símbolo de rudo aqui-
lo que é mais sagrado para os rabis, assumindo um valor oposto aquele que
Apesar de nao haver nenhum indicio de que este midrash depende da narra- tinham nas culturas helenista e judaico-helenista37 • Para o texto rabínico, a
tiva de Hesíodo, a compara<;áo da maneira como o tema dos adornos da mu- sexualidade é a imagem de jerusalém, enquanto que para Clemente, ela é a
lher é tratado em cada texto nos fornece um contraste bastante nítido entre imagem de urna cobra.
as duas culturas. É fácil perceber que este tema sofre urna inversáo de valor Para Tertuliano, jerónimo e outros homens ligados a tradi<;ao patrística,
no texto rabínico. Deus nao enfeita a mulher para atrair o homem a urna ar- a Mulher é identificada com rudo aquilo que é artificial, cumprindo apenas
madilha, mas sim para real<;ar a beleza da primeira noite nupcial, do primei- urna fun<;ao decorativa que vai contra os propósitos de Deus (Bloch 1987,
ro encontro erótico entre marido e mulher. Mais urna vez, como no tema do 11-12; ver também Lichtenstein 1987):
presente divino, vemos o mesmo elemento narrativo ter o seu valor comple-
tamente alterado. ao agrada a Deus aquilo que Ele próprio nao produziu, a nao ser que nao
fosse capaz de fazer coro que as ovelhas nascessero coro o velo púrpura, ou
Como Zeitlin já comentou numa passagem citada acima, nao pode haver
azul como o céu! Se era capaz, entao nao estava disposto a fazer isso: Deus
muitas dúvidas de que estes ornamentos sao "sinais externos de atrativos se-
nao criaría, é claro, aquilo que nao desejava. Estas coisas, entao, nao tem urna
xuais". Assim, os valores atribuidos a eles em cada discurso representam natureza mais elevada, pois nao vieram de Deus, o Autor da natureza. Assim,
avalia<;óes apostas da sexualidad e fe minina nas duas culturas. O texto de só podem ter vindo do deroónio, aquele que corrompe a natureza: pois nao
Hesíodo reflete urna prática discursiva em que fica patente o desprezo pela podem ser .de mais ninguém, se nao sao de Deus; pois o que nao é de Deus só
vestimenta, pelos cosméticos e pelas jóias, muito comum na literatura grega pode ser de seu rival.
e romana. Esta tendencia nao é comum na cultura rabínica e sua origem nao (Tertuliano 1989b, 17)
está na Biblia, mas ela está presente no pensamento de um judeu como Fí-
lon, em textos judaico-helenistas, como os Testamentos dos Doze Patriarcas35 , A associa<;ao dos enfeites femininos com o demonio já nos é familiar. Para
e na obra de cristaos, como Tertuliano e Clemente36 . No texto midráshico, Tertuliano, o mal dos enfeites da mulher está justamente no fato de que nao
sao apropriados a "ignomínia do pecado original" (Tertuliano l 989b, 14),
ou seja, aquela que, afina!, é "o portao de entrada do demonio" (ibid.)38. O
34 [- banay ta ). Em ourras palavras, quando a Torá diz: "E ele construiu a mulher", também se
pode dizer que "ele fez urna tram;:a na mulher".
35 Pois as mulheres sao más, meus filhos, e urna vez que nao tem poder, nem autoridade so-
bre os homens, planejam traii;oeiramente como seduzi-los com a sua beleza. E todos aque- que atribuí esta maneira (de agir) aos anjos, nao é aceita por todos, pois nao é admitida no
les que nao conseguem enfeitii;ar com a sua beleza, elas os conquistam com algum cllnone judaico. ( ... ) Pelos judeus, ela agora parece ter sido rejeitada" (Tertuliano l 989b,
estratagema. De fato, o anjo do Senhor me ensinou que as mulheres sao dominadas pelo es- 15-16).
pirito da promiscuidade com maior facilidade do que os homens. Elas conspiram em seus 37 A partir de urna questao colocada por Froma Zeitlin é posslvel especular que o número 24,
corai;óes contra eles, depois se enfeitam para transtornar a sua mente. Com um único olhar ligado as jóias, talvez seja urna alusao aos 24 livros da Biblia, ou as jóias do peitoral do
injetam seu veneno e, finalmente, como ato em si fazem-nos cativos. ( ... ) Sumo Sacerdote, que estavam arranjadas em fileiras de doze, correspondendo as doze cri-
Por isso, meus filhos, procurai fugir da prosmicuidade sexual e ordenai lis suas mulhe- bos.
res e lis suas filhas que nao adomem a cabei;a, nem a sua aparencia, de modo a nao enga- 38 Cf. um comentário semelhante de R. Yehoshua, em que compara aspectos da vestimenta fe-
narem a mente sa dos homens. minina ao "pecado de Eva", numa tentativa paradoxal de explicar por que as mulheres se
(Kee 1983, 784) enfeitam (ele é o único rabi que assume esta posii;.ao). O seu argumento é igualmente ofen-
36 Tertuliano parece estar ciente da natureza controversa deste tema, que ele cita ao falar dos sivo, mas nao deixa de indicar os papéis opostos que a transfonnat;ao das mulheres em ob-
livros de Enoque, para depois fazer o seguinte comentário: "Sei que a Escritura de Enoque, jetos desempenha nas duas culturas.
116 Diferentes Evas Diferentes Evas 117

ponto mais importante para a minha argumentac;:ao é um:i afirmac;:ao de Ter- amor que se opóe a raiva e ao ciúme de Zeus. A própria insistencia da repe-
tuliano, segundo a qual os adornos femininos sao um presente dos anjos tic;:ao, na minha opiniao, serve para mostrar a quantidade de energía mobili-
caídos para as mullieres: zada para inverter o significado do tema proposto por Hesíodo. Além disso,
no midrash, tanto os homens quanto as mulheres sao objeto e sujeito da
Pois aqueles que os criaram estao condenados a morte - estes anjos que gra~ de Deus no casamento.
mergulharam dos céus sobre as filhas dos homens; de modo que esta A func;:ao da mulber no casamento é servir apenas de parceira do ho-
ignominia também cabe a mulher. ( ... ) Eles convenientemente concederam mem, mas a sua atratividade e seu prazer, longe de serem considerados ar-
apenas as mulheres o principal instrumento da ostentac;ao feminina: o brilho madilhas e fraudes, sao elementos bem vindos ao cumprimento de seu papel
das jóias que formam os maúzes dos colares, os circulos de ouro que
- assim como seus ornamentos e enfeites. O próprio Deus assume o papel
comprimem os seus brac;os, as tinturas de urzela com que se tingem as las e
de dama-de-honra e prepara a noiva para a noite de núpcias. A mulher nao
aquele pó preto que é utilizado para destacar os cilios e as sobrancelhas. A
representa um desvío da humanidade, mas sim a sua complementac;:ao.
qualidade destas coisas pode ser declarada agora mesmo, baseando-se apenas
na qualidade e na condic;ao daqueles que as ensinaram; pois pecadores Como dedaram os rabís, "aquele que nao se casa nao é um ser humano
jamais poderiam revelar ou oferecer alguma coisa que levasse a integridade. completo". O pecado e o castigo, segundo o pensamento rabínico, nao de-
(Tertuliano 1989b, 14-15) ram origem a sexualidade, mas sim a vergonha sexual. Urna série de distin-
c;:óes estabelecidas pela antropóloga Sherry Ortnet, apresentadas num ensaio
Nao creio ser exagero ver nestes anjos caidos um eco dos deuses e deusas que boje já é um dássico (1974), será muito útil para descrever a ideología
que, na história de Hesíodo, enfeitaram Pandora como urna armadilha para dos rabís a respeito do sexo e das diferenc;:as entre o homem e a mulher. Ela
o homem. O desprezo pelos adornos femininos e sua natureza ilusória é co- aponta para a existencia de tres modalidades diferentes de inferioridade fe-
mum em toda a mentalidade grega, mas o elemento narrativo das jóias como minina em diversas culturas:
um presente enganoso de seres divinos, creio eu, aparece apenas na história
de Pandora. (1) elementos da ideología cultural e declara<;Oes de depoentes que
Pode-se perceber urna inversao de valores semelhante, mas ainda mais desvalorizam explicitamente a mulher, atribuindo a ela, a seus papéis, suas
forte , num texto paralelo ao midrash citado acima, onde se mostra como tarefas, seus produtos e seu ambiente social um prestigio menor do que é
conferido ao hornero e seus correlatos masculinos; (2) aparatos simbólicos,
Deus conduziu Eva pela mao até Adao. Pode-se comparar esta cena a versao
como a atribui<;iio de impurezas, que podem ser interpretados como a
do mito de Pandora narrada em Trabalhos e Dias, em que a primeira mulher
afümac;ao implícita de urna condic;ao inferior; e (3) arranjos sócio-estruturais
também é conduzida até Epimeteu. No entamo, no texto midráshico, este que excluem a mulher da participac;ao, ou mesmo do contato, com o dominio
fato é citado como urna prova do amor que Deus tem ao casal humano - em que se acredita estarem depositados os poderes da sociedade. Estes tres
"Feliz é o cidadao que ve o rei tomar a sua noiva [do cidadao) pela mao e tipos de dados podem estar inter-relacionados num único sistema, mas isso
conduzi-la até a sua casa [do cidadao) para ele" (Tanhuma Buber Hayye Sa- nem sempre acontece.
rah). Em Hesíodo, por outro lado, "depois de preparar esta armadilha de (1974, 69-70)
que os homens nao poderiam fugir, o Pai Zeus a conduziu como um presen-
te para Epimeteu" (Frazer 1983, 98-99). Mais urna vez, creio que o texto mi- Creio que um estudo etnográfico da cultura rabínica revelaria que as duas
dráshico é urna alusao ao tema da mulher conduzida até o homem por um primeiras categorias nao sao dominantes nesta formac;:ao, i.e., a depreciac;:ao
deus como um truque, urna armadilha e um castigo. No texto midráshico, explícita da mulher, apesar de estar presente nos textos, nao é um de seus
porém, o valor <leste mito sofre urna inversao explícita; Deus nao é um tra- símbolos mais mareantes (Ortner 1973). Além disso , como já tentei demons-
paceiro e as suas ac;:óes sao benéficas. Na economía androcentrica do mi- trar aquí, até mesmo práticas como a da impureza menstrual nao refletem
drash, a mulher é o maior presente de Deus para os homens, e nao sua necessariamente a atribuic;:ao de urna impureza geral as mulheres ou a se-
vinganc;:a. O midrash faz questao de enfatizar em vários pontos que a criac;:ao xualidade feminina. No período rabínico clássico - ao contrário do judaís-
da sexualidade e a participa~o de Deus no casamento, por assim dizer, sao mo r;iedieval - isso de fato nao acontecía. No entamo, se por um lado as
um sinal de seu "amor inabalável" pelos homens e pelas mulheres - um duas primeiras categorías de inferioridade feminina propostas por Ortner (a
118 Diferentes Evas

depreciac;ao das mulheres e a atribuic;ao de urna natureza impura) nao se 4


aplic~riam de forma dominante a cultura rabínica, a terceira categoria ("ar-
ranjos sócio-estruturais que excluem a mulher da panicipac;ao, ou mesmo
do cantata, com o dominio em que se acredita estarem depositados os pode-
res da sociedade") [azia-se sentir com toda a sua forc;a.
A Produc;ao do Desejo
Em suma, a cultura rabínica apresenta urna fone assimetria entre os Maridos, Esposas e a Rela{:tio Sexual
dais sexos. As mulheres sao encaradas como agentes que facilitam a vida
dos homens, cuidando de suas necessidades sexuais e reprodutoras (o que
nao significa negar a mulher urna subjetividade independente, nem os seus
direitos enquanto ser humano em várias áreas, incluindo o direito ao pra-
zer). Contudo, como espero ter demonstrado aqui, esta imagem androcentri- O objetivo, em suma, é defmir o regime de poder-conhecimento-prazer que
sustenta o discurso da sexualidade humana ( ...), explicar por que se fala
ca (ou mesmo egocentrica) dos papéis desempenhados pelos dais sexos nao
sobre ela, descobrir quem fala , o seu ponto de vista, as instituic;óes que
implica a atribuic;ao de características demoníacas e de urna impureza essen-
impelem as pessoas a falar e que armazenam e distribuem aquilo que é dito.
cial a mulher. O casamento e a sexualidade apresentam um valor absoluta- A questao, portanto, é o "fato discursivo" mais amplo, ou seja, a maneira
mente positivo nesta formac;ao , ao contrário do que acontece em Filan e na como o sexo é "colocado no discurso". O meu principal interesse, entao, será
igreja patrística e medieval. Os rabis representam a manutenc;ao do ideal bí- localizar as formas do poder, os canais que ele escolhe e os discursos que
blico do bem essencial trazido pelo sexo e pela procriac;ao, enquanto o ju- permeia a fim de atingir as mais ténues modalidades do comportamemo
daísmo helenista e seus sucessores cristaos, ao atribuir um valor negativo a individual, os caminhos que lhe da.o acesso as raras, ou quase imperceptíveis,
sexualidade e ao carpo (principalmente o carpo da mulher), perpetuam e formas do desejo , a maneira como ele penetra e controla o prazer cotidiano -
desenvolvem a clássica ambivalencia grega em tomo da sexualidade e da os efeitos que o acompanham, e que podem ir desde a negac;ao, o bloqueio e
procriac;ao. A tradic;ao rabínica rejeita o movimento ontológico típico do dis- invalidac;ao, até a excitac;ao e intensificac;ao: em suma, as "técnicas polimorfas
curso ocidental sobre os sexos, segundo o qual "o masculino representa do poder".
urna universalidade sem carpo, enquanto o feminino é encarado como urna (Foucault 1980, 11 )
corporalidade rejeitada" (Butler 1990, 12). Urna vez que os rabis nao rejei-
tam a sua corporalidade, eles nao precisam encará-la como um atributo fe- Minha intenc;ao neste capítulo é iniciar um mapeamento das operac;oes
minino. No próximo capitulo, iniciarei urna análise do discurso do desejo do poder nas formas de prazer e desejo na cultura talmúdica, do poder <la
sexual e da interac;ao dentro do casamento, principalmente no que diz res- classe rabínica sobre a prática sexual dos casais e do poder dos homens so-
peito a maneira como ele pode afetar a diferenc;a de poder entre os home ns bre as mullieres na vida sexual. A crítica foucaultiana da "hipótese repressi-
e as mulheres nesta cultura. va" pode nos ajudar a estudar as complexas modalidades de poder e
produc;ao dentro das quais atuam os textos rabínicos sobre a sexualidade.
' foram interpretados até agora como o ponto
Examinarei a seguir textos que
de origem de um discurso repressor, mas o meu objetivo será demonstrar
que a sua func;ao real é bem diferente daquela que lhes costuma ser atribui-
da. Um texto citado várias vezes como um marco do controle exercido pelos
rabis sobre a conduta sexual no casamento pode ser interpretado justamente
como urna renúncia a este poder. Através de vários dispositivos textuais, os
rabís conseguiram afastar do escapo da Torá a prática concreta dos casais
no leito conjuga!. Ao postular enfaticamente a necessidade de privaéidade
durante a atividade sexual, os rabís tornam invisível a conduta sexual con-
creta, impedindo que ela possa ser controlada. A única área que os rabís de-
120 A Produ~ao do Desejo A Produ~ao do Desejo 121

sejam controlaré, paradoxalmente, o estado emocional e afetivo de marido e f azer tudo o que havia de maléfico aos olhos do Senhor, pois a isso o incitava sua
mulher na hora do cantata sexual, .que para eles exige intimidade, desejos mulher ]ezebel (1 Reis 21,25).
harmónicos, além de estímulos e prazeres mútuos. Neste ponto surgirao No entamo, Rav Papa disse a Abaie: entao as pessoas nao dizem: "Se tua
muitas questóes a respeito de um conceito muito comum, segundo a qual a mulher é baixa, curva-te e sussurra com ela"?!
mulher é um objeto sexual, e nao um sujeito, na cultura rabínica. Apesar de Nao há dificuldade: um caso se refere a questóes materiais e o outro a
questóes domésticas, ou como alguns dizem, um caso se refere a questóes
os textos midráshicos e talmúdicos transmitirem apenas a fala dos homens,
celestiais e o outro a questOes materiais.
algumas destas vozes masculinas sao capazes de ter urna empalia sincera
com as necessidades e o desejo das mulheres.
O mesmo Rav que incentivava os maridos a nao magoarem as suas espo-
Na verdade, esta posic;ao ironicamente ambígua, dividida entre urna em-
sas, agora lhes recomenda ignorar os conselhos que elas lhes dao. Este é
patia genuína para com as mullieres e urna rígida estrutura hierárquica que
um símbolo quase perfeito de urna formac;ao que se caracteriza pela
as relega a urna posic;ao inferior, é urna característica endémica do discurso
condescendencia benigna. Por outro lado, esta afirmac;ao é contestada por
rabínico. O seu momento mais sardónico talvez seja um texto que analisarei
Rav Papa, que se apóia, curiosamente, num <litado popular segundo o qual o
no próximo capítulo, onde um homem que passou mais de urna década lon-
homem <leve dar urna grande atenc;ao aquilo que a sua mulher tem a dizer.
ge de casa estudando a Torá se refere a esposa como "aquela pobre mulher",
As duas soluc;óes que o Talmude apresenta para esta aparente contradic;ao
justamente porque se ausentou por mais de dez anos para estudar a Torá! De
também sao muito reveladoras, pois enquanto urna limita a influencia da
modo geral, contudo, as mulheres sao encaradas como seres praticamente
mulher a assuntos domésticos, a outra lhe dá autoridade sobre todos os as-
indefesos, que devem ser tratados com solicitude. Assim, numa passagem
suntos seculares, proibindo-a apenas de se imiscuir em questóes religiosas.
talmúdica que fala do poder moral irresistível dos injustic;ados ao orar para
Apesar de nos depararmos com falhas neste padrao ao longo dos próximos
Deus, a maioria dos exemplos lida com o tratamento que os homens dispen-
capítulos, esta estrutura é típica do discurso rabínico em tomo dos sexos.
sam as suas esposas:
As mulheres sao despidas de quase todo o seu poder; depois , os mesmos ra-
bís que (como Rav) produziram o discurso da dominac;ao masculina ate-
Disse Rav: o homem sempre <leve ter cuidado para nao magoar a sua esposa,
pois se as suas lágrimas estilo próximas, [a puni~ao pela! sua mágoa também nuam os seus efeitos ao induzir os homens a nao se aproveitarem da
se aproxima. fraqueza de suas esposas e, ao contrário, serem extremamente solícitos com
Rabi El'azar disse: desde o dia em que o Templo foi destruido, os portóes elas. O mesmo padrao se aplica a prática sexual.
da ora~ao esta.o fechados, como está escrito: Por mais que eu grite, ele nao
deixa passar a min.ha ora(:do [Lm 3,8]. Mas apesar de os portóes da ora~ao
estarem fechados, os portóes das lágrimas nao estilo, como está escrito: Ouve O DESEJO MASCULINO
a minha prece, ó Deus; ouve a minha súplica. Ndo fiques silencioso [diante das]
minhas lágrimas [Sl 39,13). No Talmude da Babilónia Nedarim 20a-b, podemos encontrar um texto bas-
(Baba Metzi'a 59a) tante famoso, onde a questao de "como o sexo é colocado no discurso" é te-
matizada explicitamente. Aquilo que costuma ser apresentado como o
As mulheres sao apresentadas como criaturas praticamente indefesas, cuja argumento central da repressao rabínica sobre a prática sexual, mesmo den-
única arma sao as lágrimas - lágrimas que, é claro, garantem urna resposta tro do casamento, será interpretado justamente como o seu aposto:
divina imediata. De qualquer maneira, o objetivo <leste discurso é encorajar
os homens a serem solícitos (ou até mesmo condescendentes) com as mu- Foi-nos ensinado: Para que o Seu temor caia sobre vós [Ex 20,20) - lsso é o
lheres, e nao autorizá-los a maltratá-las como se fossem sua propriedade. O recato. Para que ndo pequeis [ibid.] - ensina que o recato leva ao temor do
texto nao pára aquí: pecado. Por isso dizem: quando a pessoa é recatada, é um bom sinal. Outros
dizem: aquele que é1'ecatado nao peca com facilidade , e quanto aquele que
E Rav (também) disse: aquele que segue os conselhos de sua esposa cairá no nao tem recato, este é um sinal de que os seus ancestrais nao estavam no
Infemo, pois está escrito: Mas ndo houve ninguém como Ahab, que se dedicou a monte Sinai.
122 A Produ~ao do Desejo A Produ~ao do Desejo 123

Rabi Yohanan, filho de Dabai, disse - os Anjos OficiaDles me disseram: Excluirei do meio de vós os rebeldes e os criminosos [Ez 20,38) - Disse Rabi
Por que há crianr;as aleijadas? Porque eles [seus pais] viram a mesa l. Levi: Estes estao divididos em nove categorias:
Por que há crianr;as mudas? Porque eles beijam aquele lugar. Filhos do medo; filhos do estupro; filhos de urna mulher desprezada;
Por que há crianr;as surdas? Porque eles falam durante o ato. filhos da excomunhao; filhos da troca; filhos da !uta; filhos da embriaguez;
Por que há crianc;:as cegas? Porque eles olham para aquele lugar. filhos daquele que se divorciou em seu corar;ao; filhos da mistura; filhos de
E nós contestamos [esta tradi,ao com a seguinte tradi,ao]: Perguntaram a urna mulher sem pudor.
Ima Shalom [Mae Paz], a mulher de Rabi Eliézer: "Por que tens filhos tao Verdade? Mas Shmuel, filho de Nahmani, disse que Rabi Yohanan3 , havia
bonitos"? Ela respondeu: "Ele nao tero relar;oes comigo no início da noite, dito: Qualquer homem que for abordado sexualmente por sua mulher terá
nem no final, mas apenas a meia-noite. Quandd tem relar;óes comigo, filhos como nao se via nem mesmo na gerar;ao de Moisés. ( ... )
descobre apenas um pedacinho e logo depois o cobre de novo, e parece estar lsso se refere ao caso em que ela o excita [mas nao pede para fazer sexo
tomado por um demonio". Eu perguntei a ele: "Qua! é o motivo [<leste verbalmente].
comportamento esrranho] "? E ele respondeu: "Para que eu nao pense em
ourra mulher e os meus ftlhos nasr;am bastardos"2. Este talvez seja o texto mais longo e imponante a respeito das técnicas sexuais
Ndo há contradi,do. Um se refere a questoes de sexo e o outro a questoes que do casamento na literatura talmúdica. É também um excelente exemplo dos pe-
ndo dizem respeito ao sexo. rigos de se citar urna passagem do Tal.mude fara do contexto dialético em que
Rabi Yohanan [um rabi posterior - nao se trata de Yoh~nan, filho de Dabai] ela está inserida. A leitura do texto deve se dar em dais níveis. É preciso dar
afirmou: estas sao as palavras de Rabi Yohanan, filho de Dabai, mas os sábios
atenc;:ao a ideología do(s) redator(es), mas, ao mesmo tempo, levar em conside-
dizem: "Tudo o que o homem quiser fazer com a sua mulher lhe é permitido,
rac;:ao as ideologías das fontes citadas e discutidas por estes redatores.
assim como com a carne que vem do mercado. Se ele prefere come-la com sal,
pode; cozida, pode; assada, pode. Da mesma maneira com o peixe do peixeiro".
Neste caso, o Talmude aborda dais tipos de controle sobre o comporta-
Arnemar disse: quem sao os Anjos Oficiantes? Os rabis, pois se dizes mento sexual no leito conjugal. Um diz respeito as práticas concretas utiliza-
literalmente "Anjos Oficiantes", entao por que Rabi Yohanan disse que a leí das e o outro ao estado afetivo do casal. O texto renuncia ao primeiro tipo
nao é como Rabi Yohanan, filho de Dabai, afirmara? Afina!, eles sem dúvida de controle, enquanto o segundo é enfaticamente reforc;:ado. Além disso,
sabem embriología! E por que ele os chama de "Anjos Oficiantes"? Por que como veremos mais adiante, os dais tipos de controle sao considerados
sao tao bons quanto os Anjos Oficiantes. opostos um ao outro. Depois de urna declarac;:ao geral afirmando a necessi-
Urna certa mulher fo¡ a presen<;a de Rabi [um título honorário de Rabi dade de recato para o povo judeu (tanto homens, quanto mullieres), o Tal-
Yehudá, o Príncipe) e !he disse: Rabi, eu lhe pus a mesa e ele a virou. Ele mude cita urna fonte que aparentemente oferece urna receita para a
respondeu: minha filha, a Torá te permitiu, e eu, o que posso fazer por ti? manuten<;ao de um comportamento pudico. Este texto tem urna característi-
Urna certa mulher fo¡ a presen<;a de Rabi. Ela !he disse: Rabi, eu lhe pus a ca surpreendente: ele é apresentado como urna conversa com os Anjos Ofi-
mesa e ele a virou. Ele disse: Como o caso é diferente do que com um peixe? ciantes. Em nenhuma parte do Tal.mude é narrada alguma tentativa dos
Nao seguireis os desejos de vossos corar;oes [Nm 15,39) - Por isso Rabi
Anjos Oficiantes de impor aos seres humanos as suas idéias sobre a halaká e
disse: Que o hornero nao beba de um copo enquanto pensa em outro.
a moral. Na verdade, quando a fala dos anjos é citada no Talmude como
Ravina disse: Nao era preciso [dizer isso], a nao ser no caso em que as
duas sao suas esposas [i.e., se a outra nao é sua esposa, é óbvio que ele nao
parte do conhecimento de um sábio, este saber é colocado no fim da lista,
deve pensar nela enquanto dorme com a sua mulher; esta sentenr;a, porém, como se equivalesse a conhecer a fala dos demonios. Os vários ramos de es-
ensina que mesmo quando é casado com as duas, ele nao pode pensar numa tudo da Torá, incluindo o conhecimento da Torá Oral e da agadá, ao contrá-
enquanto faz sexo coma outra). rio, sao colocados no topo da lista 4 • Ao pór as suas afirma<;óes na boca dos
anjos, o texto citado nao as apresenta como parte do conhecimento da Torá,
ou seja, como afirmac;:óes normativas, mas como um conhecimento "científi-
"Virar a Ínesa" pode ~e referir ao coito anal, ao c~ito vaginal por rrás, ou ao coito vaginal co" ou prático. A própria maneira como estas declarac;:óes sao formuladas in-
~om a mulh:r por cn~a. O homem, que é sempre encarado como o parceiro ativo, é 0
resp~nsável . As próximas frases deixam claro que o sujeito aqui é o homem, pois "aquele
lugar sempre se refere á genitália feminina.
2 ~sta pane do texto fo¡ citada no capitulo l. O componamemo de Rabi Eliézer, que nao me 3 Variante: Yonathan.
mteressa no momento, fo¡ analisado naquele capitulo. 4 Ver Suká 28a e Baba Batra 134a.
124 A Produr;ao do Desejo A Produr;ao do Desejo 125

dica a sua orienta<;ao pragmática, pois ao invés de dizer que atividades <leste simetria entre os sexos presente neste texto. Estas vozes rabínicas - i.e., as
tipo sao proibidas e listar o castigo daqueles que as praticam, elas apenas que sao atribuidas a Rabi e Rabi Yohanan - levam em considera<;ao apenas
afirmam que estas práticas sexuais trazem urna prole indesejável. O tipo de a vontade do homem, e nao a da mulher. A interpreta<;ao "recíproca" que es-
controle que se procura impar aqui está mais próximo da forma como Fou- tas afirma<;óes receberam até agora tendero a obscurecer os efeitos da desi-
cault descreve os discursos modernos para o controle medicinal da sexuali- gualdade entre os generas na sexualidade, assim como em ourras áreas da
dade, do que do modo como a igreja medieval exercia este controle através cultura. Pode-se até mesmo imaginar que estes textos representam urna per-
da lei canónica e de seu sistema de penitencias (Foucault 1980, 37-38). missao para que o homem exer<;a a sua vontade sobre o carpo da mulher,
No entamo, Rabi Yohanan se opóe ao conteúdo da declara<;ao de Rabi Yo- sem levar em considera<;ao os seus desejos. Esta interpreta<;ao misógina pa-
hanan, filho de Dabai, ao mesmo tempo ero que rejeita implicitamente o seu ca- rece ser justificada pela passagem citada: afinal, ela apresenta urna metáfora
ráter científico. Ele deixa de encará-la como um "bom conselho" oriundo de em que a mulher é comparada a um peda<;o de carne ou um peixe, como um
urna fome confiável, para colocá-la no mesmo nível do discurso sobre a Torá objeto destinado a satisfa<;ao do hornero. Além disso, Rabi declara explicita-
isto é, do discurso a respeito daquilo que é proibido e permitido pela religiao'. mente que nao pode fazer nada pelas mulheres que vem pedir que seus ma-
O objetivo do rabi, porém, é justamente rejeitar a sua validade religiosa. A ex- ridos sejam censurados, urna vez que a Torá permite a prática sexual que
plica~o fornecida por Amemar parece fon;ada, mas se tornou necessária de- eles desejam. No entanto, a opiniao de Rabi e de seu aluno, Rabi Yohanan, é
pois da interven~o de Rabi Yohanan, pois este introduziu urna bem diferente - ou até mesmo aposta - do resto do discurso talmúdico a
descontinuidade na estrutura discursiva ao dizer que "a halaká nao é como este respeito. O Talmude proíbe todo tipo de coer~o sexual (ainda que ape-
Rabi Yohanan, filho de Dabai, afrrmara", urna vez que na verdade nao se tratava nas verbal) do marido sobre a esposa e dá um alto valor a compatibilidade
de urna afinna<;ao a respeito da halaká. De qualquer maneira, o resultado final dos desejos e das vontades na higiene da rela<;ao sexual.
da declara~o de Rabi Yohanan é desqualificar duas vezes a afirma<;ao de Rabi Ao contrário da situa<;ao mais comum, em que identifico urna opiniao con-
Yohanan, filho de Dabai: ela deixa de ter o caráter científico do saber angélico e trária e procuro mobilizá-la para estabelecer urna nova política entre os sexos,
a autoridade do conhecimento da Torá. A Torá se abstém de interferir na práti- desta vez prefiro deixar a opiniao contrária inativa. A voz dominante neste caso
ca sexual privada dos casais, que podem ter o comportamento que desejarem - tanto em termos do texto em si, quando da sua "recep<;ao" - é claramente
um como outro. Além disso, como se Rabi Yohanan já nao tivesse prestigio o aposta a no~o da mulher como um objeto na rela~o sexual. Assim, ao contrá-
bastante, o Talmude refor~ o seu veredito com urna autoridade ainda maior: rio do que acontece com as interdi<;óes angélicas a várias práticas sexuais, que
Rabi, o próprio autor da Mishná, que numa situa~o prática revela a duas mu- apontam para o perigo de urna prole com defeitos físicos e sao rejeitadas, o Tal-
llieres que nenhuma delas pode reclamar junto aos rabis pelo fato de seus ma1i- mude aceita a afrrma<;ao de Rabi Levi segundo a qual desordens afetivas na re-
dos desejarem formas incomuns de coito - com a mulher por cima ou, o que la~o sexual provocam falhas morais nos filhos. Os distúrbios afetivos citados
seria menos provável, sexo anal (ver mais adiante) - pois isso era permitido dao urna grande importancia ao desejo da mulher. Os dais primeiros da lista
pela Torá. Repare que, segundo Rabi Yohanan, nem mesmo atos que nao levam sao os filhos do medo e os filhos do estupro - isto é, crianc;as geradas em si-
a reprodu~o sao condenados pela Torá. Em outros textos talmúdicos, pode- . tua<;óes em que o marido for<;a a sua esposa a fazer sexo, demonstrando uma
mos ver que o sexo anal também era permitido. De acordo com este ponto de tamanha agressividade que ela tem medo de dizer nao ou, piar ainda, chegando
vista, entiio, o "desperdicio de sementes" só acorre na masturba<;ao, e nao em realmente a estuprá-la. Esta observa<;ao é refor~da por urna passagem paralela
práticas sexuais que nao estao ligadas a procria<;ao. no Talmude Eruvin lOOb, onde se faz a seguinte declara<;ao:
Rami bar Hama disse que Rav Assi afirmara: t proibido o hornero for~ar a sua
mulher a realizar um ato sagrado 5 , pois eslá escrito: Qurm f or~a o passo é um
O DESEJO FEMININO

Evitei até agora tocar num assunto que <leve ser encarado de frente neste
5 A ttadu<;llo literal é "numa questllo de mandamento". Nllo ha dúvida, porém, de que o texto
momento. Ao afirmar que Rabi Yohanan e Rabi permitem que os casais ado- se reíere a rela<;llo sexual, como indica Rashi. É interessante ver como o discurso do
tem qualquer prática sexual que desejarem, ignorei tacitamente a enorme as- Talmude emprega a palavra mandamento sem explicar que ela se refere a rela<;llo sexual, e
transgressdo, sem dizer que ela se refere ao pecado sexual.
126 A Produr;iio do Desejo A Produr;iio do Desejo 127

pecador [Pr 19,2]. E Rabi Yehoshua ben Levi disse: Aquele que fon;a a sua mesmo se o casal brigou e ainda nao fez as pazes direito, entao os dois
esposa a realizar um ato sagrado lerá filhos desonestos. nao podem ter relac;;óes sexuais e o fruto de urna uniao <leste tipo sera.o
Disse Rav lka, filho de Hinena: Como é o versiculo? Onde nao ha vontade, crianc;;as rebeldes e más. Mesmo no caso em que ele pensa estar dorrnin-
a alma ndo é boa [ibid.]. Urna tradir;ao tanaitica também nos ensina: O que do com urna de suas esposas, mas na verdade está com outra, isso já é o
significa Onde ndo há vontade, a alma ndo é boa? Esle é aquele que forr;a a sua bastante para gerar urna prole <leste tipo, pois o relacionamento emocio-
esposa a realizar um ato sagrado. E quem fon;a o passo é um pecador? Este é nal íntimo que é indispensável para o verdadeiro encontro sexual nao
aquele que tem duas relar;oes seguidas.
está presente. Isso fica ainda mais claro num texto paralelo, que acrescen-
Será? Mas Rava nao disse: Se alguém quer que todos os seus filhos sejam
ta "os filhos de urna mulher adormecida" á lista. Nada disso se encaixa
homens, <leve ter duas relar;oes seguidas?
Nao há dificuldade: um se refere ao caso em que ela nao concorda, o na noc;;ao de que a mulher seria um objeto sexual, e nao um sujeito, na
outro ao caso em que ela concorda. cultura talmúdica.
A interpretac;;ao mais óbvia para as afirmac;;oes de Rabi Yohanan e
Urna vez que nas duas passagens o Talmude condena aquele que fon;;a a Rabi é a de que estas passagens tratam a mulher explicitarnente como um
mulher a ter relac;;oes contra a vontade e afirma que este comportamento é instrumento e um objeto da sexualidade masculina. este ponto, as suas
"proibido", mesmo quando leva á procriac;;ao, entao a interdic;;ao contra a declarac;;óes sao a opiniao contrária dentro do texto talmúdico e, assim, é
coerc;;ao <leve ser ainda mais forte em situac;;oes em que isto nao acontece, possível que representem urna ideologia minoritária que ve a esposa
corno no sexo oral ou anal. A noc;;ao de que nao se deve forc;;ar a mulher nao como um objeto. O método interpretativo que adotei neste livro exige a
representa a opiniao isolada de urna minoria: é a posic;;.ao normativa geral do identificac;;ao de pontos de tensa.o entre os diversos conceitos citados pelo
Talrnude e da lei judaica posterior. Na verdade, longe de tratar a mulher Talmude e os interesses ideológicos de seus redatores. Se aceitarmos a in-
como urna propriedade ou um mero objeto para a satisfac;;ao do homem, a terpretac;;ao que considero mais óbvia, entao estaremos <liante de um pon-
lei talmúdica talvez seja o primeiro sistema legal ou moral onde se reconhe- to de grande conflito. Enquanto o resto do texto discutido aquí - assirn
ce que quando o marido forc;;a a esposa, ele está simplesmente cometendo como outras fontes do Talmude - afirma que a prática sexual <leve res-
urn estupro, tao condenável e desprezível quanto qualquer outro6 ! O Talmu- peitar a vontade e o desejo da mulher, estas declarac;;oes parecem defen-
de também converte outra tentativa de controlar o ato sexual em si - a proi- der urna posic;;ao diferente, encarando a mulher mais como um pedac;;o de
bic;;ao de ter duas relac;;óes seguidas, provavelmente porque a segunda nao carne ou peixe do que um ser humano. Assim como identifiquei várias
seria reprodutiva - numa outra interdic;;ao, ainda mais enfática, ao rapto vezes a presenc;;a no Talmude de opinióes divergentes que considero inte-
conjugal. Mesmo que a mulher tenha concordado a ter urna relac;;ao, nao se ressantes, vejo aqui um ponto de vista que considero simplesrnente ater-
pode partir do principio de que ela concordarla com urna segunda, a nao ser rador. É possível que isso seja um sinal de que a ideología talmúdica
quando dá explicitamente o seu consentimento. passou de urn estágio anterior, onde nao se reconhecia o valor do desejo
Além disso, vários outros elementos na lista de Rabi levi tarnbérn da.o feminino, para um outro em que ele adquiriu urna importancia central. O
urna importancia primordial a relac;;ao afetiva entre marido e mulher durante fato de o Talmude citar estas opinióes - como urna rejeic;;ao da posic;;ao
o ato sexual. Se o marido detesta a sua esposa, res¿lveu divorciá-la, está be- repressora de Rabi Yohanan, filho de Dabai, e, por outro lado, corno um
bado e "nao pode dar atenc;;ao ás necessidades de sua rnulher" [Rashi], ou até reforc;;o antecipado da enfática interdic;;ao ao estupro apresentada por
Rabi Levi - pode ser entendido, dentro desta linha de interpretac;;ao,
como urna tentativa de neutralizar a implicac;;ao de que as mulheres sao
6 Quanto a simac;ao atual da lei americana, ver Chamberlain (1991 , 122). Lembro-me de ter
meros objetos sexuais, ao mesmo tempo em que se mantém a conclusa.o
lido em algum lugar (infelizmente, nao me recordo onde) que um tribunal americano citou
o Talmude como um precedente legal para lratar o estupro conjuga[ de fato como um estu- de que o ato sexual em si nao deve ser controlado pela Torá.
pro. Neste contexto, eu gostaria de observar que Wegner esta enganada ao insisúr que, na Por outro lado, assim como leituras "apologéticas" podem falsear o sen-
lei talmúdica, a sexualidade da mulher é considerada urna propriedade do marido (Wegner
tido do texto, é preciso levar em conta a possibilidade de que a interpreta-
1988, 19 e passim), principalmente no contexto j urídico em que se dá a sua discussao. Ne-
nhuma das defmil;óes legais da propriedade se aplica neste caso. O marido nao pode se c;;ao que torna as opinióes <lestes rabis ta.o desagradáveis também pode ser
a~roveitar da sexualidade da mulher sem a sua permissao; nao pode ignorá-la; mlo pode um anacronismo resultante dos nossos próprios pessupostos culturais. Seria
d1spor dela. Na minha opiniao, portanto, esta definic;ilo é totalmente inválida.
128 A Prodw;ao do Desejo A Pr1Jdur;ao de Desejo 129

possível interpretar afirmac;óes de Rabi Yohanan e Rabi de outra maneira? sim, na Mishná Ketuvot 5,9 está escrito que a mulher tero o direito de comer
Talvez sim. Rabi Yohanan simplesmente nao menciona o desejo da mulher, com o seu marido toda sexta-fe.ira a noite e os dois Talmu~es interpretam
pois, para ele, nao é isso o que está em jogo aqui. Ele pretende apenas rejei- esta passagem c;omo urna referencia ao ato sexual7. Além disso, 1há trechos
tar a tentativa de Rabi Yohanan, filho de Dabai, de promulgar um rígido có- do Talmude em que se emprega a metáfora da comida em relac;ao as crian-
digo de comportamento sexual entre marido e mulher, em que rudo é c;as, que certamente nao sao encaradas como objetos de consumo. O uso
proibido fora da posic;ao "normal".* A qüestao do consentimento da mulher complexo deste e.ampo metafórico conrradiz a noc;ao de que a sua func;ao se-
nao é levantada, mas isso nao significa que ela seja irrelevante. Algumas li- ria definir a mulher como um "objeto sexual"ª.·- '
nhas mais adiante, o Talmude faz urna declarac;ao enfática a respeito do es- A história de Rabi comas duas mulheres é bem mais refoatária as tenta-
tupro conjuga!. A afirmac;ao de Rabi Yohanan Cala dos homens e se dirige tivas de reinterpretac;ao, pois realmente aborda a quest.ao do .de,sejo femini-
aos homens - "rudo o que o hornero quiser" - mas isso é apenas mais um no e faz isso de forma negativa. Rabi de fato parece indicar quei a Torá· nao
sinal do androcentrismo exarcebado que caracteriza este discurso como um proíbe ceitas práticas sexuais, mesmo quando envolvem atos que nao agra-
todo; nao se trata necessariamente de urna defesa da noc;ao de que os mari- dam a mulher. Curiosamente, o redator do Talmude aparentemente nao per-
dos nao precisam se preocupar com as necessidades de suas esposas. Em cebeu nenhuma tensao enrr.e esta história e a enfática proibic;.a o ao estupro
outras palavras, é possível que se trate apenas de urna forma androcentrica conjugal que se segue. Apesar de o Talmude sempre .buscar a "harmoniza-
de dizer que os maridos e as esposas tero a liberdade de fazer o que ambos c;ao" no nivel redacional, diminuindo tacitameme as tensóes qu1t eu gostaria
quiserem no leito conjuga!, assim como se pode cozinhar carne hosher do de enfatizar, nos casos eJn que há .urµa contradic;ao· direta (percebida), ele
jeito que se desejar (e sexo, é claro, é hosher entre os dois). De qualquer ma- tema eliminá-la explicitamente. · Neste caso, levando-se ·em considerac;ao a
neira, nao se pode negar a forc;a da metáfora, nem da equiparac;ao do corpo enorme forc;a ·retórica d.a proibic;ao da estupro conjugal, o redator aparente-
da mulher a comida. No entamo, nem mesmo esta declarac;ao altamente mente nao considerou estas histórias. exemplos de estupro. Em ambas as si-
ofensiva se convene numa ideo logia em que a mulher nao passa de um obje- tuac;,óes, a mulher indica que estava disposta a fazer sexo; mas a s ua única
to sexual, um mero "pedac;o de carne" para a satisfac;ao do desejo de seu ma- objec;ao era a posi~ao. Na minha opiniao, a leitura destas ·histórias depende .
rido. Ela serve apenas para mostrar que aquilo que se passa no leito do significado da expressao "virar a mesa", que é obscura quando aplicada a
conjugal nao diz respeito a Torá. A metáfora da comida deve ser interpreta- prática sexual. A interpretac;ao mais plausível em termos filológicos é que
da dentro do vasto campo metafórico em que o sexo e o ato de comer se de- ela significa ter relac;óes sexuais com a mulher por cima e, neste caso, a res-
lineiam mutuamente na cultura talmúdica. O ato de comer é o símbolo posta de R~bi é relativamente. inócua: a Torá permite esta pr.ática, entao é
típico de tudo aquilo que é prazeroso e necessário para a saúde e o bem-es- rpelhor entrar num acordo com o marido. Um indicio que confirma esta in-
tar do corpo. Dentro <leste campo, a noc;ao de consumir ou de devorar pare- terpretac;ao - ou que pelo menos indica que ela era compartilhada pelos re-
ce ocupar urna posic;ao dominante, mas o sentido básico da metáfora neste datores do Talmude - é o fato de nao haver nada na retórica ou na
caso é que, apesar de vários tipos de comida serem proibidos, aqueles que estrutura do texto que indique que .a posic;ao de Rabi era considerada oposta
sao permitidos podem ser desfrutados de qualquer maneira. Do mesmo a opiniao dos redatores, que obviamente eram conrrários ao esnipro conju-
modo, apesar de certos contatos sexuais serem proibidos, aqueles que sao ga!. Se era proibido ter relac;óes sexuais com a mullrer pela segunda vez sem
permitidos podem ser gozados conforme se desejar. Nao se pode negar ou sua permissao explícita, urna vez que isto erá. cor:tsiderado estupro conjuga!
encobrir as implicac;óes de dominac;ao masculina presentes neste texto, mas pelo Talmude, entao é pouco provável que forc;á-la a fazer sexo anal, por
de acordo com esta interpretac;ao, elas nao seriam o objetivo primordial da exemplo, fosse permrtido9 • É possível, entao, que Rabi tivesse entendido que
metáfora, assim como o propósito desta sentenc;a nao é afirmar que os ho- ,.
mens podem fazer o que quiserem com as suas esposas. A metáfora da co-
mida nao é o bastante para transformar a mulher em alimento. O Talmude 7 Eu gostaria de agradecer a Mordechai Friedman por ter me lembrado de.sta passagem.
emprega a mesma metáfora para Calar da experiencia sexual íeminina. As- 8 Chana Kronfeld chamou minha ai.en~ao para este uso da metáfora. Observe que as mulhe-
res e as crian~as sao representadas de cena maneira como urna "propriedade" do patriarca,
a ser desfrutada. Cpntudo, ele só pode desfrutá-las como seres humanos que fazem parte-
de seu mundo, e nao como objetos a serem manipulados
* Missionary position, vulgarmente chamada de posi~ao "papai e mamae". (N.R.) 9 Um leitor do manuscrito deste livro observou que o meu raciocinio era falho neste ponto,
130 A Produ9ao do Desejo A Produ9ao do Desejo 131

a preocupac;ao das mullieres estava relacionada ao medo de que o ato sexual Se adotarmos a prirneira interpretac;ao - ou seja, a de que a rnulher de-
corn a rnulher por cima fosse proibido - medo que talvez nao fosse completa- sejava ter relac;óes sexuais, corno ela mesma indica, e a única coisa que o
mente infundado, urna vez que em algurnas tradic;oes o pecado de Lilit foi dese- marido fez fo¡ propor que ela ficasse por cima - entao fica claro por que
jar fazer sexo desta rnaneira. Repare na ironia: os hornens exigern urna prática Rabi nao se refere a halahá que proíbe que o marido force a mulher a ter re-
sexual que ern outras circunstancias seria encarada corno urn slrnbolo da insu- lac;oes sexuais. Se adotarmos o outro ponto de vista, entao o trecho estuda-
bordinac;ao feminina; as suas esposas reclamarn, mas o rabi lhes garante que a do talvez seja um resquício de urna posic;ao que nao proibia o estupro
posic;ao é permitida. Na verdade, Rabi lhes assegura que esta prática sexual nao conjugal. Nao posso afirmar que a ínterpretac;ao rnais generosa seja "me-
é proibida e que, portanto, nao devern temer nenhum castigo de Deus. Por ou- lhor" ou mais verdadeira d o que a segund a 10 . As s1rn
. como em outras. situa-
.
tro lado, tambérn se pode interpretar a sua atitude de forma menos generosa e c;óes, neste ponto provavelmente havia urna divergencia dentro da cultura
partir do principio de que, para ele (e para os redatores do Talrnude), quando a rabínica. De qualquer maneira, o Talmude cita enfaticarnente a halaká con-
rnulher consente em ter relac;oes sexuais, o fato de ela nao concordar corn urna tra o estupro conjuga! para um grupo de leitores que seria do sexo masculi-
determinada posic;ao nao caracteriza urn estupro. Repare que, de acordo corn a no. Assim, nao há como estes leitores cornpreenderern mal esta passagern,
primeira interpretac;ao, "te permitiu" deve ser entendido corno urna permissao vendo nela urna perrnissao para tratar as suas esposas como objetos. Pode-
da Torá para que se adote esta prática. Se, por outro lado, a prática ern questao se dizer, entao, que qualquer que seja a opiniao de Rabi ou de Rabi Yoha-
for o sexo anal, entao realizá-la sern o consentimento explicito da rnulher apa- nan, o Talrnude mostra corn toda a clareza que o hornern nao pode forc;ar a
rentemente seria considerado urn estupro - nao pelo fato de o sexo anal ser sua esposa a ter relac;óes sexuais contra vontade e que fazer isso caracteriza
"anormal", mas sirnplesrnente porque a penetrac;ao ern urn outro orificio parece urn estupro. O Talmude nao cita a opiniao dos dois rabis para permitir que
urna violac;ao bem maior da vontade da mulher do que o posicionamento dos a mulher seja tratada co~o urn objeto sexual - como deixa claro o contexto
corpos. Segundo esta leitura, "te permitiu" significarla que a Torá permitiu a - mas para indicar que a Torá nao interfere nos detalhes da prática sexual,
rnulher ao homem - as duas interpretac;oes sao possíveis no hebraico. De acor- nas posü;oes e nos prazeres cornpartilhados pelos casais, assirn corno nao
• do com esta leitura, entao, a posic;ao de Rabi volta a ser completamente oposta prescreve se a comida (kosher) deve ser cozida ou frita. De qualquer rnanei-
a do resto do texto. ra, a escolha de nao intervir nurna situac;ao que é potencialmente repressiva
rnantém implícitamente o status quo. Apesar de banir o estupro, o texto dá a
entender que o dornínio masculino em questóes de ordem sexual é protegi-
pois o motivo pelo qual os rabís nao proibiam estes atos cometidos contra a vontade da
mulher era porque nao se tratava de atos que visavam a procriac;ao e, portanto, nao eram do pela lei, que nao interfere para lhe irnpor restric;oes, nem para oferecer a
de seu interesse. Esta lcitura parte de dois pressupostos: (1) a única preocupac;ao dos rabis mulher protec;ao e urna maneira de satisfazer os seus próprios desejos e
em relac;ao 4 scxualidade girava em tomo da qualidade da prole; e (2) eles acreditavam que exercer a sua livre escolha. O fato de o Talrnude prescrever várias ·vezes a
o estupro só era problemático porque nao levava ao nascimento de crianc;as saudáveis. Ela
deixa de lado, entao, aquela que considero a interpretac;ao mais óbvia, ou seja, a de que o criac;ao de urna situac;ao de estímulo, inúrnidade e satisfac;ao mútuos é o
estupro representa urna falha moral e, portanto, a sua punic;ao é o nascimento de crianc;as bastante para excluir a possibilidade das histórias de Rabi terem sido cita-
imorais. Apesar de nenhuma dessas suposic;óes ser imposslvel, nao há nada no texto talmú· das para permitir o estupro conjugal, que é condenado enfaticamente algu-
dico que possa fundamentá-las. A questao é saber por que se deve partir de premissas que
atribuem os piores motivos posslveis a qualquer grupo de pessoas, violando assim o princl·
pío hermentutico da caridade. Há ainda mais dois argumentos que contradizem esta ínter· 10 Para urna excelente discussao a respeito dos critérios que orientam a interpretac;ao num
prc:tac;áo. Primeiro: ela também quebra o principio da economia. Dentro da minha contexto critico feminista, ver Bal (1987, 11-15). A minha interpretac;ao mais generosa obe-
interpretac;4o, é posslvel entender por que o estupro produziria crianc;as indesejáveis, ou dece a convenc;ao da unidade, convenc;ao a que me oponho em outros contextos e que, por·
seja, como uma punic;ao. No entanto, se partirmos do principio de que o estupro só é proi· tanto, nao pode ser utilizada como um critério a seu favor. Por outro lado, ela pode tomar
bido porque produz crianc;as indesejáveis, entao de onde vem a idéia de que ele leva ao sur- o texto mais útil no sentido proposto por Bal: "um objetivo modesto e legitimo sempre foi
gimento de urna prole ruim? Terlamos que atribuir isto a alguma outra noc;4o cultural que chegar a urna compreensao mais profunda do texto que seja sofisticada, reproduzlvel e
nao fo¡ registrada, nem contextualizada. Estarlamos violando, entao, o principio de que se acesslvel a um público mais amplo. Urna vez que se entende por urna "compreensao mais
deve buscar sempre a explicac;ao mais simples. Finalmente, a idéia de que urna ac;4o conde· profunda" urna maneira mais satisfatória de integrar a experitncia da leitura a vida do indi-
nável produz resultados daninhos está firmemente calcada naquilo que talvez seja o tema viduo (a possibilidade de fazer mais coisas a partir desta experitncia), esta abordagem é
mais comum da cultura rablnic.a : a noc;4o de olho por olho. A nao ser que consideremos es· urna prática critica justificavel. ( ...) Estes critérios sao basicamente pragmáticos. Longe de
tas estruturas de crime e castigo em geral urna cortina de fumac;a, por que deverlamos fazer remeter aos padróes da 'cientificidade', eles se referem aquilo que sera de alguma utilidade
isto neste caso especifico? para o leilor" (12-13).
132 A Produ<;iio do Desejo A Produ<;iio do Desejo 133

mas linhas depois. De qualquer maneira, o homem continua a ter um-con- mais nada, o leitor precisa saber que a palavra que Ima Shalom emprega
trole absoluto da situac;:ao. Vale a pena obseivar que esta interpretac;:ao do para "ter relac;:óes" é "conversar". O que ela diz aos rabís é, literalmente:
texto passou a ser adotada pela lei judaica a partir da Idade Média; o estu- "quando ele conversa comigo, nao conversa comigo no inicio da noite, nem
pro conjugal passou a ser proibido e reconhet:ido como um pecado: tudo o no final, mas apenas a meia-noite". Creio que a evocac;:ao lingüística é signifi-
que se aprendeu de Rabi Yohanan e Rabi foi que a Torá nao prescreve ou cativa, pois esta história, assim como toda a passagem do Talmude em que
proíbe nenhum tipo de prática sexual entre marido e mulher. está inserida, é sobre o discurso do sexo ou, como neste caso, sobre o ato de
A necessidade de intimidarle entre marido e mulher durante a relac;:ao se- conversar sobre sexo 1". A comunicac;:ao de Rabi Yohanan ben Dabai com os
xual é expressa de diversas maneiras nesta passagem11 . Assim, mesmo na anjos é citada como um exemplo do principio de que o recato é importante.
história ambígua que lma Shalom conta a respeito da prática sexual de Rabi Segundo esta tradic;:ao, a conversa que ocorre entre marido e mulher durante
Eliézer 12 , ao mesmo tempo em que é preciso levar em conta a ambivalencia a relac;:ao sexual (que em ingles também é representada por uma palavra que
da atitude do rabi, nao podemos esquecer que o objetivo explícito de seu significa conversac;:ao!) é um exemplo de falta de pudor. O texto de Ima Sha-
comportamento era impedi-lo de pensar em outra mulher. Ou seja, qualquer lom é citado aquí justamente para contestar esta opiniao.
que fosse o "verdadeiro" significado da prática sexual de Rabi Eliézer, o nar- A primeira vista, no entanto, tem-se a impressao de que ao invés de se
rador se utiliza da fala de lma Shalom para inscreve-lo no código da intimi- opor a tradic;:ao de Rabi Yohanan ben Dabai, o relato a respeito da vida se-
darle. Além disso , a narrativa é coerente com pelo menos mais tres xual de Rabi Eliézer parece apoiá-la. Se ele nao se despia, nem a sua mulher,
momentos do texto. Primeiro, a história de Rabi Eliézer e lma Shalom é cita- e descobria apenas o mínimo necessário, entao certamente nao olhava "para
da explicitamente como urna objec;:ao a declarac;:ao de Rabi Yohanan, filho de aquele lugar" e muito menos o beijava. Ele também nao teria tempo de falar
Dabai, de que o casal nao pode conversar durante o ato sexual 13. Os rabis com ela, urna vez que agia como se estivesse tomado por um demonio. Qual
que citaram esta fonte partiam do .princípio de que a conversa entre Rabi era a intenc;:ao do Talmude, entao, ao citar esta história como urna objec;:ao a
Eliézer e lma Shalom ocorreu durante a relac;:ao. Além disso, a maneira como Rabi Yohanan ben Dabai? A lógica do Talmude é que Ima Shalom pediu ao
é resolvido o aparente conílito entre os textos também é altamente significa- marido que explicasse o seu estranho comportamento (e repare que é assim
tiva. De acordo com a soluc;:ao encontrada pelo Talmude, aquilo que os an- que se marca a sua estranheza) durante o próprio ato e que ele respondeu
jos pretendiam proibir era falar de outros assuntos durante o ato sexual. Até na mesma hora. Eles conversaram durante a relac;:ao sexual, o que constituí
mesmo os anjos permitem que se fale de assuntos relacionados ao sexo, urna aparente refutac;:ao de Rabi Yohanan ben Dabai. De qualquer maneira,
como no caso de Rabi Eliézer e Jma Shalom. No nível redacional do texto de acordo com a soluc;:ao que o Talmude encontra para esta contradic;:ao apa-
talmúdico, entao, pode-se falar de sexo durante a atividade sexual, pois isso rente, este problema deixa de existir: o único tipo de discurso proibido é
ajudaria na criac;:ao de um clima de intimidarle e carinho entre os parceiros. aquele que desvía a atenc;:ao do ato sexual, e nao aquele que aumenta a sua
Assim, esta interpretac;:ao seria coerente com o motivo que o rabi apresenta intensidade - e até mesmo esta restric;:ao é abandonada no final com a total
para o seu comportamento. rejeic;:ao da declarac;:ao de Rabi Yohanan ben Dabai. Segundo esta passagem
Vamos agora ler esta história com um pouco mais de atenc;:ao. Antes de do Talmude, a Torá nao pretende controlar os aspectos fisicos do sexo den-
tro do casamento, mas apenas o seu lado emocional.
11 A minha interpretacáo <leste texto fo¡ muito influenciada pela tese de doutorado de Dalia
Hoshen (Hoshen 1990), urna aluna minha de quem aprendí muito. Ela nao é responsável,
obviamente, pelas nuances da minha interpreta~o. que muitas vezes entram em conílito A Contradi~iio dos Discursos
com as suas posicoes.
12 É preciso enfatizar que nao nego a existencia de conllitos ideológicos e de urna ambivalen-
cia a respeito da sexualidade entre os rabis. A minha posicao está entre aquela dos "apolo- Como o Talmude afirma explícitamente, as duas tentativas de controlar o
gistas", que afirmam com otimismo que o judalsmo rablnico é a favor do sexo, além de ter sexo dentro do casamento se opóem mutuamente, pois a repressao da inti-
um caráter mundano e antiascélico, e a dos "revisionistas", segundo os quais ele apresenta-
ria as mesmas ansiedades sexuais do mundo pagao e cristao onde estavam inseridos os j u-
deus. Expliquei o meu ponto de vista com maiores detalhes no capitulo l. 14 ao concordo com David Biale (1989), que ve aqlli uma má interpretacao da palavra e afir-
13 Ou seja, mirabile dictu, o texto é citado como se o seu conteúdo tivesse um caráter permis- ma que o Talmude cita este trecho como urna objecao, baseando-se numa interpretacao lite-
sivo! ral do termo "conversar".
134 A Produr;ao do Desejo A Produr;ao do Desejo 135

midade visual, tátil e conversacional dificultaría a compatibilidade das von- Na verdade, há indícios explícitos de que o comportamento de Rav era
tades e do desejo entre os parceiros, que a outra tradic;:ao procura incentivar. considerado normativo. No Talmude da Babilonia Hagigá Sb, está escrito:
Estamos <liante de dais discursos contraditórios: o discurso do controle so-
bre o leito conjuga! e o discurso da intimidarle sem restric;:oes. Ao colocar a Rabi Ila estava subindo as escadas da casa de Raba, filho de Shila, quando
ouviu urna crianc;a recitar: Pois é Ele quem cria a montanha e cria o vento,
história de Rabi Eliézer e Ima Shalom numa posi<;ao dialética, o Talmude se
quem revela ao homem sua conversa [Am 4,13]. Ele disse: Um escravo a
certifica de que percebemos este fato; de outra maneira, esta citac;:ao seria ir-
quem seu mestre revela a sua conversa tem algum remédio?
relevante, nada além de urna objec;:ao e urna modificac;:ao localizadas da afir. O que "sua conversa" significa? Rav disse: Até a fala supérílua entre marido
mac;ao de Yohanan ben Dabai, que o Talmude acaba rejeitando por e mulher é relatada ao homem na hora de sua marte.
completo. De qualquer maneira, ela consegue transmitir a sua mensagem: o Isso é possfvel? Mas Rav Kahana estava escondido debaixo da cama de Rav e
controle e a intimidarle estao em oposic;:ao direta. o ouviu conversar, rir e ter rela,óes. Ele disse: "Parece até que a boca de Rav
Em outro ponto do Talmude, é citada outra história que demonstra a na- nunca provou deste prato". Ele [Rav] lhe disse: "Kahana, sai dat; ruJo estds te
tureza contraditória <lestes dais discursos, além de apresentar um episódio comportando bem "!
da "vida real" de um rabi que era urna das figuras de maior prestigio dentro Nao há dificuldade. Há uro caso em que ele tem que estimulá-la e há um
desta cultura: caso em que ele nao tem que estimulá-la.

Rav Kahana entrou e se escondeu debaixo da cama de Rav. Ele o ·ouviu falar e Citei a história inteira novamente porque acho interessante o fato de o argu-
rir, e percebeu que estava tendo relac;óes sexuais. Ele disse: "Parece até que a mento de Rav Ka hana ("Isso é Torá e eu <levo aprender") ter sido omitido
boca de Aba [nome de Rav] nunca provou <leste prato"15 . Ele [Rav] !he disse: nesta versao (ou ter sido acrescentado na outra). O que é apresentado como
"Kahana, sai daí; nao estás te componando bem"! Ele [Kahana] !he disse: um elemento de valor normativo é o comportamento de Rav com a sua mu-
"lsso é Torá e eu devo aprender". lher, que é citado como urna objec;:ao ao argumento de que toda fala supér-
flua , inclusive a que faz parte da intimidarle do homem com a sua esposa,
Este é um texto extremamente rico, complexo e fascinante. Ele quase chega terá de ser explicada na hora da marte. A resposta do Talmude é que quan·
a levantar explícitamente a questao do "panóptico", da vigilancia que a cul- do ele precisa excitar a mulher, quando ela nao está "disposta para.o amor",
tura exerce sobre o comportamento sexual privado. Apesar de a observac;ao é justificável ou até mesmo necess:trio fazer isso com palavras de intimida-
se dar numa direc;:ao surpreendente - de baixo para cima, do aluno para o rle. Isso se encaixa perfeitamente a concfüsao a que havia chegado basean-
professor - este fato nao altera o seu mecanismo, pois se o aluno observa o do-me apenas na passagem de Nedarim: o Talmude passa a entender a
professor fazer sexo; entao o sexo está senda controlado com a mesma efi- necessidade de despertar o desejo da mulher, além de estimular a intimida-
ciencia caso a situac;:ao fosse invertida. Esta vigilancia, porém, é enfaticamen· rle e a harmonía do casal, como o campo de atuac;:ao da Torá, que deixa os
te rejeitada. Nao há o menor sinal de que Rav ou o Talmude aceitam a detalhes do ato sexual em si a cargo dos desejos do casal.
explicac;:ao de Rav Kahana de que "isso" é Torá e ele <leve aprender. Ao mes- No entanto, de acordo com o método de leitura que adotei neste livro,
mo tempo, no entanto, o texto consegue revelar aquilo que aparentemente nao podemos ignorar o fato de que o texto também incorpora a afirmac;ao
procura ocultar, ou seja, que Rav "falava e ria" íntimamente com sua mu- de Rav Kahana de que isso é Torá e ele tem o direito (o dever, a obrigac;:ao)
lher, enquanto os dais tinham relac;:oes. O texto reforc;:a, assim, a noc;:ao apre- de observar. A sua voz equivale aquela de Rabi Yohanan ben Dabai e seus
sentada em Nedarim de que o comportamento verbal que aumenta a interlocutores angélicos, que também desejam manter os detalhes da prática
intimidarle e o prazer durante o sexo é permitido e louvável. sexual entre marido e mulher sob vigilancia e controle 16• Além disso, dentro

15 lsso serve como mais um argumento para a conclusao a que cheguei acima, ou seja, a de 16 Nao sabemos qua! aspecto do componamento sexual Rav Kahana desejava observar, nem o
que no uso figurativo do ato de comer para se referir ao ato sexual, a comida é o sexo, e que ele acreditava ser Torá. Nao pretendo afirmar, entao, que Rav Kahana companilhava
nao a mulher. Rav Kahana sem dúvida estava se referindo ao enmsiasmo de Rav pelo sexo, da mesma opiniao de Rabi Yohanan ben Daoai, mas sim que o próprio fato de ele querer
e nao insinuando que ele estava se comportando como se fosse a primeira ve.z que tinha observar o comportamento sexual implica a existtncia de urna maneira cena ou errada de
rela~óes com a mulher. fazer "isso". Talvez se possa dizer que a maneira carreta seria justamente aquela que, na mi-
136 A Produ~iio ao Desejo A Produt;áo do Desejo 137

do próprio texto, ela·é colocada em contradir;:ao direta com o desejo de Rav dar algumas surpresas. O Talmude da Babilonia apresenta o discurso a ·se-
de garantir a intimidarle e a espontaneidade de suas relar;:óes sexuais com a guir em Nidá 16b-l 7a:
· esposa. De fato, talvez seja possível detectar urna tensao entre os dois mo-
mentos em que esta lüstória é citada dentro do próprio Talmude. Cómo ob- Disse Rabi Shim'on, filho de Yohai: Há quatro coisas que o Santíssimo,
servei acima, a resposta de Rav Kahana - "lsso é Torá e eu devo aprender" Louvado seja, detesta, e também nao gasto delas: aquele que entra em sua
- nao aparece na versao 'citada em Hagiga, onde o comportamento de Rav casa de repente - e nem é preciso dizer "na casa qe seu colega" - aquele que
parece inquestionável. ·Pode-se argumentar, na verdade, que esta 'frase foi segura o pt!nis ao urinar, aquele que urina nu diante de sua cama 18 e aquele
acrescentadá na versao de· Berakhot. O relato citado nesta ser;:ao do Talmude que tem relac;:oes na frente de outra criatura viva.
é precedid9 por duas histórias 'tanaíticas sobre p~pilos' que seguem seus Rav Yehuda disse a Shmuel: Mesmo na frente dos ratos.
Ele lhe d isse: Espertinho 19 . Nao, ele se refere aqueles que se componam
mestres ao b~n~eirÓ e.' dep?is .de 'terem sido repre~ndidos pela sua falta de
corr:o o pessoal da casa de Fulano, que tinha relac;:oes diante dos seus
respeito, respon~em: "lsso é Torá e eu devo aprende(. Et;n ambos os .casos, 1
escravos e escravas.
o pupilo nao é mais repreendido depois des ta resposta. É. provável, .entao, E quamo a eles, como justificavam a sua prática em termos bíblicos?
que o, editor que incorporou a história de Rav Kahana a este texto e acres- Permanecei aquí como jumento [Gn 22,5] - como povo que é como um
centou (de acordo coma minha hipótese) a resposta do aluno nos mesmos jumento.
moldes das tradir;:óes tanaíticas anteriores, procurasse dar um peso maior a Rabá, filho de Rav Huná, costumava tocar os sinos ero tomo da cama
ati~ude de Rav Kahana,. -estabelecendo, assim, urna espécie de censura ao [outra leitura : espantar mutucas]. Abaie espantava as moscas. Rava espantava
comportamento de Rav; pois, como·já-vimos, os dais assumem urna posic;ao os mosquitos.
de conflito. De qua.Jquer maneira, podernos perceber que havia duas idéias
opostas a respeito do discurso da sexualidade dentro desta forma~o cultu- Rabi Shim'on, um homem santo da P.alestina, estabelece urna rigorosa regra
ral, ou pelo menos dentro· do Talmude da Babilonia. A mais hegemónica, de privacidade. durante a rela~ao sexual: nenhuma criatura viva deve· estar
contudo, era a que renunciava a vigilancia e, porta~to, ao controle das práti- presente. Apesar de Shmuel (urna antiga autoridad.e da Babilonia) aparente-
cas sexuais dQ c;asal, mas que insistía na necessidade do desejo mútuo e da mente procurar atenuar esta norma, os1rabis babilónicos posteriores a leva-
intimidade na condur;:ao das snas relar;:óes. A temativa de Rav Kahana de, es- vam muito a sério. Shmuel a encara simplesmente como urna crítica a
tabelecer' um panóptico para o sexo é rejeitada. prática romana de ter relar;:óes <liante dos escravos, um hábito que se basea-
1 ••• va na suposir;:ao de que estes nao eram exatamente seres humanos (Veyne
1987, 72-73 ). No entamo, os seus sucessores entendiam a expressao "criatu-
Sexo no Escuro ra viva" ao pé da letra e disputavam quem conseguía espantar as menores
criaturas vivas antes de ter relar;:óes com a sua esposa. A primeira p·osir;:ao, a
Ainda no mesmo tema da passagem em que o rabi é expulso do quarto do. de Rabá, füho de Rav Huná, permanece ambigua por cáusa de diferenr;:as en-
professor, o mais. insistente.tipo de controle sobre a prática sexual no éasa- tre os diversos manuscritos do Talmude. De acordo com o texto que chegou
mento é ·aquele que exige o máximo de privacidade durante o ato sexual1 7 • até nós (referendado e interpretado por Rashi), ele espan~ava os seres huma-
Mesma. estas r~gras , que a .primeira vista parecem repressoras, podem nos nos tocando um sino para indicar que ia dormir com a sua ~ulher, o que
mostra que tinha urna opiniao semelhante a de Shmuel. Segundo os manus-
critos ori~ntais, porém, ele espantava as mutuca~ e apoiava, portanto, a posi-
nha opinHio, os rabis procuravam defender, ou seja, onde o aspecto afetivo e Intimo da re-
la~o sexual era muito iniportante.'Qualquer tipo de vigilancia, porém, tomaria isto impos-
sivel. Estamos diante de urna espécie de principio da incerteza de Heisenberg levado ao
extremo. Assim, é este aspecto do comportamento sexual do professor que o aluno avalia 18 A primeira regra aparentemente tinha o objetivo de impedir que o homem surpreendesse as
de forma negativa. Para garantir a intimidade, os rabís devem estar dispostos a nlio interfe- mulheres de sua casa nuas; a segunda procuraria evitar urna possivel te.nta<;ao de se
rir no comportamento sexual. As vezes, o poder só funciona ao se retrair. O resto da n\inha masturbar; já o propósito da terceira e.stá além da minha compre.ens.io.
argumenta~o confrrmará esta interpreta~o. 19 Trata-se aparentemente de um ape.lido levemente pejorativo que Shmuel e.mpregava em
17 David Biale chamou minha atenc;lio para a importancia que este material assume neste con- relac;ao ao seu aluno, que as vezes era inteligente de.mais. O te.rmo literal srgnifica
texto. "dentuc;o" e pode se referir a dentes escolásócos extremamente afiados.
138 A Produ<;oo do Desejo
A Produ<;oo do Desejo 139

c;ao de Rav Yehuda. De qualquer maneira, dois de seus colegas concorriam por que seriam louváveis por isso? [i.e., isso seria, no máximo, um
entre si: Abaia espantava as moscas e Rava ia ainda mais longe, espantando comportamento neutro].
os mosquitos. N;Io há como saber, é claro, qual seria exatamente a opiniao Porque coro a fon;a do sono, ela nao seria atraente ao hornero.
de Rabi Shim'on (ou o que ele teria dito na verdade), mas é possível que a
sua afirmac;ao fosse urna reac;ao a prática romana de tratar os escravos como Trata-se, de fato, de um trecho notável, pois consegue retratar urna disputa
se eles nao fossem seres humanos, podendo, assim, testemunhar o compor- explícita dentro do próprio texto hegemónico desta cultura. Mais urna vez,
tamento sexual de seus senhores. As interpretac;oes dos outros rabis repre- fica praticamente óbvia a existencia de urna tradic;ao que defendía urna no-
sentariam urna versao exagerada desta reac;ao 20 . Nao pode haver a menor c;ao de recato exagerada, segundo a qua! só se deveria ter relac;óes sexuais a
dúvida de que estas regras procuravam garantir o ideal rabínico do "recato"; noite. No entanto, esta idéia é combatida no nivel haláquico por Rava, que
por outro lado, a privacidade exagerada embutida nesta prática também esti- limita esta condic;ao a qualquer quarto escuro, mesmo que seja fechado ape-
mulava as noc;óes de intimidade e liberdade no comportamento sexual. Vey- nas por cortinas (no caso de estudiosos da Torá!). Contudo, é no nivel inter-
ne observa que a prática romana equivalia a urna vigilancia constante pretativo que a oposic;ao ideológica se toma mais clara. Rav Hisda
(ibid.). A reac;ao rabinica a esta prática, ao contrário, produziu (inevitavel- (implicitamente) e Abaia (explicitamente) convertem esta regra aparente-
mente?) urna total renúncia a vigilancia do comportamento do casal no Jeito mente inibitória em mais urna prescric;ao para aumentar a intimidade entre
conjuga!. A prática de Rav Kahana, segundo a qua! "isso é Torá", também es- marido e mulher. Se eles fizessem amor a plena luz do dia, é possível que
tava excluida pelo mesmo principio. ele percebesse algum defeito no corpo da esposa e perdesse o seu interesse.
A mesma passagem introduz outra lei que parece prescrever urna atitude Como de costume, a pers~ctiva androcentrica simplesmente nao é questio-
e urna higiene sexual "puritana", mas que é novamente reinterpretada pelo nada, mas de qualquer maneira pode-se perceber novamente que o objetivo
Talmude da Babilónia e passa a comunicar o ideal de intimidade que venho e o pré-requisito básico para a relac;ao sexual entre marido e mulher é a har-
estudando aqui. Nao pretendo, é claro, negar a presenc;a de urna voz ascéti- monía, o desejo, o prazer e a intimidade. O mesmo tema é repetido em ou-
ca no texto, mas apenas demonstrar que ela é sistematicamente questionada tro ponto do Talmude, onde está escrito que o hornera só pode se casar com
por outra voz dentro da mesma cultura, que pode ser considerada tao hege- urna mulher depois de ve-la, para ter certeza de que ela é atraente; caso con-
mónica quanto a primeira. O mesmo texto continua: trário, estaria violando o mandamento de "amar o próximo como a ti mes-
mo" (Kidushin 4 la) 21 . A intimidade recebe urna enfase ainda maior ao longo
Rav Hisda disse: O hornero nao pode ter relar,;oes durante o dia, pois está do texto, quando se analisa a tradic;ao segundo a qua! os rabis aprovavam a
escrito: E amard.s o próximo como a ti mesmo [Lv 19,18). Disse Abaie: O que prática da casa de Munbaz. Um dos interlocutores nao consegue acreditar
isto significa? Talvez ele veja nela algo de feio e ela deixará de lhe ser atraente.
que os rabís considerassem louvável ter relac;oes sexuais durante o dia. Ele
. Rav Huná disse: Os israelitas sao puros e nao t~m relar,;oes durante 0 dia.
afirma, entao, que o texto dizia [ou significava] outra coisa, mas logo retru-
Disse Rava: Mas se for num quarto escuro, é permitido. O estudioso pode
escurecer o quarto corn as suas roupas e ter relar,;oes. ( ...) cam que de fato era louvável ter relac;óes durante o dia, pois assim o homem
Mas venha ouvir [urna posir,;ao contrária]: "Os rnembros da casa de nao ficava com sono. Se ele tivesse relac;óes com sono, a mulher talvez nao
Munbaz, o Rei, costumavam fazer tr~s coisas, pelas quais eram louvados: lhe fosse atraente, i.e., ele poderia fazer sexo por obrigac;ao, e nito por prazer,
tinharn relar,;oes durante o dia ( . ..)". o que destruiría a intimidarle entre os dois. Como observa Rashi, "urna vez
Vimos que nos é ensinado que eles tinham relar,;oes durante odia [e que ·que está cheio de sono, ele nao a deseja tanto e faz amor apenas para cum-
isso era considerado louvável]! prir o mandamento de ter relac;oes regulares, para agradá-la. Assim, acaba
Far,;o a ernenda de que examinavam as camas durante o dia e tenho sendo repelido, e esta é uma das nove categorias mencionadas em Nedarim". A
pravas disso. Pois se pensas que o texto significa que eles "tinham relar,;oes", interpretac;ao de Rashi parece ser confirmada por todo o contexto e princi-
palmente pelo tema de amar o próximo como a si mesmo. O desejo e o pra-

20 !': possível, no enlanto, que os rabís da Babilonia, que nao conheciam o cosLume dos roma-
21 AJiás, este é o oposlo de um lema misógino que é repetido diversas vezes no discurso roma-
nos de fazer sexo na present;a de seus escravos, inLerpreLassem mal a senten~a de Rabi
Shim'on, tomando-a ao pé da letra. no e cristao contra o casamemo: o homem nao deve casar, pois a mulher é o único liem
que se adquire sem se examinar primeiro (Bloch 199la, 20).
A Produ<;iio do Desejo 141
140 A Produ<;iio do Desejo

22
zer masculinos sao tao importantes quando o desejo e o prazer femininos na Rav Shmuel, filho de ahmani, disse em nome de Rabi Yohanan : Todo
hornero cuja mulher vier pedir para ter rela<;óes sexuais terá filhos como nao
conduc;ao das relac;óes conjugais, pois o sexo só é apropriado quando é o re-
se via nem mesmo na gera<;áo de Moisés, pois na gera<;ao de Moisés está
sultado (e, ao mesmo tempo, o propiciador) da intimidade. Ao longo destes
escrito: Escolhei homens inteligentes, sábios e de boa repu ta~do [Dt 1,13], e
textos, o discurso da vigilancia e do controle é colocado várias vezes em depois: Tomei entdo como chefes das tribos homens renomados e inteligentes [Dt
opÓsic;ao ao discurso da intimidade e do prazer sexual, aliado ao desejo mú- 1,151, mas ele nao conseguiu encontrar "homens sábios". Mas a respeito de
tuo. A vigilancia é abandonada a favor do desejo (o desejo legítimo entre Lia, está escrito: E Lia foi ao seu encontro e disse: 'Donnirás comigo esta noite,
marido e mulher, é claro). Levando-se em considerac;ao a nature.za andro- pois paguei por ti' [Gn 30,16] e está escrito: Os filhos de Issacar conhecem a
centrica destes textos e desta cultura, no entanto, ainda é preciso examinar sabedoria (1 Cr 12,33] ( ... ).
com mais cuidado a posic;ao que ocupa o desejo feminino.
A rradic;ao de Rav Shmuel elogía a mulher que pede abertamente para ter re~
lac;óes sexuais. Para isso, emprega os termos mais vívidos de que dispóe a
A Fala e o Desejo Feminino: rradic;ao rabínica: urna mulher deste tipo terá filhos ainda melhores do qu~
A Preocupa~do Patriarcal com o Bem-estar da Mulher os homens da gerac;ao ideal de Moisés. Este principio é derivado de urna le1-
tura midráshica típicamente inteligente da Biblia. Deus manda Moisés pro-
O verbo erhpregado a funde dar permissao ao marido para "excitar" a sua rnu- curar um ceno tipo de pessoa para ocupar o cargo de líder das tribos, mas
lher através da fala é exatamente o mesmo que o Talmude utiliza para mostrar quando se relata os resultados de sua busca, urna das qualificac;óes está Í~l­
como a mulher pode pedir sexo sem ser "despudorada". O Talmude rejeita a tando. o midrash, com a sua tendencia natural de tomar todos os enuncia-
noc;ao de que urna "mulher despudorada" - ou seja, urna mulher que pede dos ao pé da letra, 'Chega a conclusao de que ele nao conseguiu ~nc~ntr~r
abertamente para ter relac;óes sexuais - tem filhos problemáticos: "Verdade? pessoas que tivessem esta qualidade: sabedoria. Por ourro lad~, a Blbha afir-
Mas Shmuel, ftlho de Nahmani, disse que Rabi Yohanan havia dito: Qualquer ma explicitamente que Lia pediu abertamente para ter relac;oe~ com Jacó,
homem que for abordado sexualmente por sua mulher terá filhos como nao se pois tinha pago a sua irma pelo direito de passar aquela n01te ~º1:° ~le.
via nem mesmo na gerac;ao de Moisés". A resposta é que "isso se refere ao caso Quanto aos seus filhos, somos informados em outra passagem da Bibha _q~e
em que ela o excita". Ela nao é considerada despudorada se excita e atrai o seu eles possuíam exatameme a característica que faltava a gerac;ao de M01ses.
marido através de sinais que despertam o seu desejo; de acordo com este texto, Chega-se a conclusao de que foi o fato de sua mae ter exposto abertameme o
iss·o só acontece quando pede explícitamente para ter relac;óes sexuais. O dese- seu desejo a seu pai que gerou tamanha sabedoria.
jo feminino em si nao é estigmatizado, mas sim o uso direto da linguagem para o emanto, o Talmude levanta urna objec;ao a esta interpretac;ao:
expressar este desejo. Por outro Lado, o homem é estimulado a usar a fala justa-
mente com o propósito de excitar a esposa. Ele deve recorrer a expressao verbal Isso é possivel? Mas Rav Avdirni disse que Eva fr,i amaldii;oada com dez
para despertar o desejo da mulher, pois se ela nao estiver excitada, os dois nao maldi<;óes, pois está escrito: E d mulher Ele disse: multiplicarei [Gn 3,16]: estes
devem ter relac;óes. A assimetria entre os sexos, portanto, nao se dá no n1vel do sao os dois íluxos de sangue, o sangue da rnenstrua<;ao e o sangue da
direito ao prazer sexual, mas sim no direito a fala, entre aquele que controla a virgindade; cua dor: este é o esfori;o de criar os filhos; e a tua concep,~o: esu~_ é
situa<;ao e aquela que deve ser "protegida". 0 esfor<;o da gravidez; na dor darás d luz os teus filhos; corno está escnto; teras
desejo pelo teu homem: ensina que a rnulher deseja o seu marido mesmo
Nao se costuma questionar o fato de que o desejo feminino é sempre si-
quando ele viaja; e ele te dominará: a mulher implora [por sexo] como
lenciado na cultura talmúdica. Os escritos rabínicos costumam en carar isso
corac;ao, enquanto o hornero implora corn a boca.
como a "maldic;ao de Eva". Sendo as?irn, é surpreendente descobrir que os O que considerarnos [louvável] é quando ela o excita.
rabís nao eram unanimes ao afirmar que o desejo feminino deveria se ma'n-
ter calado: havia pelo menos urna voz que acreditava ser importante que ele Mais urna vez, como na passagem de Nedarim, a opiniao de Rav Shmuel ~
fosse expresso. Já vimos urna alusao a esta voz no final da passagem de Ne-
darim. O mesmo texto citado acima que condena o estupro conjuga! aborda
esta questao diretamente:
22 Variante: Yonathan.
142 A Produr;O.o do Desejo A Produr;O.o do Desejo 143

atenuada pelo Talmude. O rabi declara audaciosamente que o ideal seria magnanima, mas sufocante. Como o Talmude afirma com todas as letras um
urna mulher que pede abertamente_por sexo. Em ambas as passagens, o Tal- pouco mais adiante, "Ela é o colchao de seu marido".
mude tem dificuldades em aceitar este ponto de vista e o diluí, adotando a
interpretac;.ao de que ela pode despertar o interesse de seu marido com ou-
tros sinais que deem a entender que deseja ter relac;óes, mas nao <leve falar VERDADE E DESEJO
abertamente de seu desejo. Nao estamos presos pelo afa do Talmude de har-
monizar todos os pontos de vista sempre que possível; assim, a partir da No fundo <leste complexo (inter)textual há, na minha opiniao, urna estraté-
nossa perspectiva, podemos perceber que nem mesmo neste assunto esta gia intricada para "montar o discurso do sexo", ao mesmo tempo em que se
cultura tem um caráter monolitico. Havia determinados pontos de vista que impóem limites ao discurso do controle sexual. Foucault estabelece um con-
negavam as mulheres a possibilidade de falarem de seu desejo, mas de acor- traste entre as maneiras como a sexualidade está relacionada a verdade em
do com outra opiniao, elas nao só tinham este direito, como também eram duas formac;óes culturais diferentes, a antiga sociedade grega e a "nossa":
louvadas entusiasticamente por exerce-lo. De qualquer maneira, a tradü;ao
Na Grécia, a verdade e o sexo estavam ligados, sob a forma da pedagogía,
dominante continuou senda aquela que proibia as mulheres de expressarem
através da transmissao de um conhecimento valioso de um corpo para o
abertamente o seu desejo.
outro; o sexo servia como um meio para a iniciac;ao ao aprendizado. No
O que é mais típico da ideología dos sexos na cultura rabínica é o fato nosso caso, é na confissao que a verdade e o sexo esta.o ligados, através da
de a interdic;ao a mulher de falar de seu próprio desejo nao ser encarada revelac;ao exaustiva e compulsória de um segredo individual. Desta vez é a
como um motivo de sofrimento e privac;iio para ela, mas sim como urna exi- verdade que serve como um velculo para o sexo e suas manifestac;óes.
gencia especial imposta ao seu marido, que <leve estar sempre atento aos (Foucault 1980, 61)
seus sinais sutis. O fato de ela desejá-lo com mais forc;a quando ele está
prestes a viajar - urna das maldic;óes rogadas contra a mulher - nao signi- Qua! é, entao, a ligac;ao entre a verdade e o sexo no complexo textual que es-
fica que ela <leve se resignar a frustrac;ao, e sim que o marido é abrigado a tamos estudando neste livro? Ou melhor, como poderíamos descrever a cul-
dormir com a sua esposa antes de viajar: tura talmúdica dentro da taxonomía de Foucault? Nenhuma das alternativas
que ele apresenta para descrever as duas formac;óes com que trabalha po-
Rabi Yehoshua, filho de Levi, disse: "O homem é obrigado a dormir coma sua dem ser aplicadas a esta cultura, pois nela o sexo nao é o meio de urna pai-
mulher antes de viajar, pois está escrito: Saberds que a tua tenda é a tua paz, déia , nem a confissao é empregada como um método para extrair a verdade.
dards aten~do d tua morada e assim ndo pecarás" Uó 5,24].
O Talmude parece nos dizer que a verdade do sexo (isto é, a Torá do sexo)
Esta obrigac;ao realmente es tá cakada neste versículo? Será que ela nao
!ida apenas com dois aspectos da sexualidade: os objetos da interac;.ao se-
existe por causa de E terd desejo pelo homem [Gn 3,16], que ensina que a
mulher deseja o seu marido quando ele viaja? xual devem ser adequados e a ligac;ao entre marido e mulher <leve ser marca-
Rav Yossef disse: "Nao era necessário [citar o outro versículo], a nao ser da pelo carinho, a intimidade, a exclusividade (mesmo dentro da poligamia!) e
na situac;ao em que ela está peno da menstruac;ao [quando costuma ser o respeito pelo desejo e o prazer da parceira, que ocupa urna posic;.ao subor-
proibido ter relac;óes sexuais, proibic;ao que é cancelada quando ele vai dinada. A organizac;ao dos carpos e do prazer no ato sexual em si está fora
viajar)" [Yevamot 62b] do campo de influencia da Torá.
A cultura rabínica, portanto, ocupa urna posic;ao "intermediária" entre os
As "maldic;óes" da mulher fazem parte de sua esfera, mas nao representam o gregos e cristaos de Foucault. Por um lado, há urna rejeic;.ao quase explicita
seu estado. Além de nao ser urna justificativa para fazer com que ela sofra, a ao modelo de vigilancia panóptica do comportamento sexual entre marido e
maldic;.ao abriga o marido a "tomar conta" dela. Mais urna vez, porém, fica mulher; por outro lado, a sexualidade em si nao é considerada urna área to-
claro que a relac;ao entre os sexos é assimétrica, que a mulher ocupa urna talmente excluida da legislac;ao sócio-cultural. O Talmude atinge objetivos
posic;.ao de inferioridade no que diz respeito a sexualidade e que a posic;ao discursivos variados (e nem sempre compatíveis) através desta estratégia
dos homens é a dominante. O próprio fato de ele ser obrigado a ter urna complicada. O discurso "repressor" permanece acessível - e, de fato, forc;as
grande considerac;ao com ela mostra como esta estrutura patriarcal pode ser culturais posteriores se utilizariam dele - mas perde seu caráter normativo
144 A Produ~ao do Desejo

e é marginalizado. O resultado final desta tática textual é que das cinzas da 5


scientia sexualis rejeitada surge o embriao de urna ars erotica23 • O leitor
(masculino) do texto agora sabe que pode ter prazer em olhar para os órga-
os sexuais da esposa, em beijá-los, em "virar a mesa" e, o que é mais impor- O Desejo Pelo Saber
tante, em conversar com ela, rir e brincar enquanto faz amor. Este é um A Torá enquanto "a Outra "
exemplo perfeito da afirmac;:ao de Foucault: o poder/ conhecimento "penetra
e controla o prazer cotidiano - os efeitos que o acompanham, e que podem
ir desde a negac;:ao, o bloqueio e invalidac;:ao, até a excitac;:ao e intensifica-
c;:ao" (Foucault 1980, 11). Além disso, ensina-se ao marido que respeitar o
desejo e o prazer da mulher faz parte da conduc;:ao de urna vida sexual ade- Rabi Akiva diz: Todo aquele que comete um assassinato diminui a imagem de
quada e que sua considerac;:ao será recompensada coro o tipo de filho que Deus, pois está escrito: Quem derramar o sangue de um ser humano, terá o seu
desejar. A leitura que fac;:o desee discurso, porém, nao <leve ser interpretada sangue derramado, pois d imagem de Deus o ser humano foi criado [Gn 9,6).
como um elogio á relac;:ao entre os sexos que ele pressupóe e defende. Rabi El'azar ben Azariá diz: Todo aquele que evita a procriac;ao tliminui a
Ao examinar o complexo de textos que lidam coro a possibilidade de a lmagem Divina, pois está escrito: A imagem de Deus o ser humano foi criado
mulher Calar de seu próprio desejo, podemos perceber urna continuac;:ao do [Gn 9,6) e também está escrito [logo a seguir]: E quanto a vós, sede fecundos e
mesmo padrao cul~ral de política sexual que escudamos ao longo <leste li- multiplicai.
vro. Por um lado, há um enorme respeito pelo direito da mulher ao seu bem- Ben Azai diz: Todo aquele que evita a procriac;iio é um assassino e
estar físico, a ausencia de violencia masculina contra ela e á satisfac;:ao de diminui a lmagem Divina, pois está escrito: Quem derramar o sangue de um ser
suas necessidades físicas (principalmente a necessidade de sexo); por ourro humano, terá o seu sangue derramado, pois d imagem de Deus o ser humano foi
lado, ela sempre ocupa urna posic;:ao subordinada <liante do homem domina- criado. E quanto a vós, sede fecundos e multiplicai.
Rabi El'azar ben Azariá lhe disse: "Ben Azai, as palavras só valem alguma
dor (ainda que átencioso). O exemplo mais típico desta situac;:ao é a regra
coisa quando sao acompanhadas pela ac;ao. Há aqueles que imerpretam bem
haláquica ( estudada no próximo capítulo) que estipula a freqüencia com
e se comportam bem , e há aqueles que se comportam bem, mas nao
que os homens sao abrigados a dormir com as suas esposas - apenas nos interpretam bem. Tu interpretas bem, mas nao te comportas bem". Ben Azai
casos, é claro, em que ela deseja ter relac;:óes, pois sempre se parte do princi- lhes disse: "O que posso fazer? A minha alma deseja a Torá. Que o mundo se
pio de que o homem esta no controle e a mulher deve ser protegida de for- perpetue pelo esforc;o dos outros"!
ma patemalista. Apesar desea aP,tude paternalista, esta maneira de pensar se (Tosefta Yevamol 8,7; comparar com
opóe diretamente a outra forma de tratar as mulheres, onde simplesmente si~ Talmude da Babilonia Yevamot 63b)
afirma que as suas necessidades sao irrelevantes. No próximo capítulq, exa-
minaremos um complexo textual em que a preocupac;:ao com a satisfac;:ao do A contradic;:ao entre as exigencias incondicionais do casamento e da total de-
desejo feminino e com a sua legitimidade é enfraquecida em outra área do dicac;:ao ao estudo da Torá sempre foi urna das tensóes mal resolvidas da
mundo rabínico, urna vez que parece entrar em conflito com outro valor da cultura rabínica. O texto aborda esta tensao ao "personificar" seus dais pó-
mesma cultura: a total devoc;:ao ao estudo da Torá. Ao mesmo tempo, pode- los 1. Os rabis estao comentando um texto bíblico: "Quem derramar o sangue
mos encontrar u~a voz que se opóe enfaticamente a esta perda de empalia de um ser humano, terá o seu sangue derramado, pois á imagem de Deus o
pelas necessidades, desejos, ou até mesmo pela subjetividade das mulheres ser humano foi criado. E quanto a vós, sede fecundos e multiplicai". R. Aki-
rabínicas. . · va e R. El'azar discordam a respeito da interpretac;:ao de seu contexto. Para
Rabi Akiva, a sentern;a que se refere á "imagem de Deus" <liria respeito ao as-

23 Estes termos, é claro, sao utilizados por Michel Foucault, cujo pensame.nto iufluenciou
Esta aHrmai;ao nao deve ser encarada como urna conclusao a rcspcito da '\•craciclade" b:o-
todo este capitulo (Foucauh 1980, 67). Eles nao se aplicam com perfeii;ao a este contexto,
gráfica e histórica <lestes rabis e de seu discurso, mas apenas como uma interprct.ii;ao ,: l
• mas o própno Foucault admite que é posslvel desconslruir a oposii;llo binária entre os
dois.· funi;ao que, na minha opiniao, este texto desempenha na culrnra rabinica.
146 O Desej o Pelo Saber O Desejo Pelo Saber 147

sassinato, que diminui a imagem humana de Deus. já para Rabi El'azar, ela recorrente dos textos rabínicos, mostra nao só que os rabis eram muito feli-
remete ao resto do texto e se refere, portanto, a procriac;ao. Ben Azai inter- zes com suas mulheres, mas também que havia urna enorme pressao contra
preta o texto inteiro como um único contexto e, assim, chega ao principio 0 casamento no ambiente em que viviam. O celibato oferecia urna "fuga"
radical de que a falta de procriac;ao equivale ao assassinato e ambos dimi- atraente das dores <leste mundo. Além disso, a vida do sábio puramente es-
nuem a Imagem Divina. Rabi El'azar, como seria de se esperar, critica Ben piritual era um dos grandes ideais da cultura que os cercava, fosse ela judai-
Azai, que era celibatário, pela sua atitude hipócrita. Ben Azai, por sua vez, ca ou nao 5 .
responde que gostaria de cumprir o mandamento, mas está impedido de fa- A cultura rabínica é atormentada por urna tensao permanente - quase
zer isso porque sua alma tem um desejo descomunal pelo saber (o verbo urna antinomia - entre a obrigac;ao de se casar e a obrigac;ao de se dedicar
empregado aquí é o mesmo que aparece em contextos eróticos). Toda a sua totalmente ao estudo da Torá (Fraade 1986, 275). Ao contrário de outras
energía erótica está voltada para o amor a Torá; nao sobra nada para urna formac;óes culturais (tanto judaicas, quanto nao-judaicas), que apresentam
mulher. Esta leitura, contudo, parece insinuar apenas que Ben Azai era um este problema como um conflito entre o corpo e o espírito, os rabis nao in-
hipócrita complicado. Na verdade, o que ele estarla dizendo é que sabia ter seriam as duas opc;óes numa hierarquía de valor. As atividades do corpo "in-
a obrigac;ao de cumprir o mandamento e se casar; mais do que isso, sabia ferior" (reprodutor) eram consideradas tao importantes quanto as do carpo
que era um assassino e que estava diminuindo a imagem de Deus, mas o "superior" (falante), mas ao mesmo tempo se reconhecia que havia um con-
seu desejo pela Torá o impedía de obedecer ao mandamento. O seu argu- ílito entre as duas, pelo menos na medida em que ambas ocupam urna deter-
mento é ide.ntico ao do libertino que sabe que deve abandonar o seu com- minada quantidade de tempo e energía6 • Se nao levarmos sempre em
portamento devasso, mas nao consegue evitá-lo3 . Na verdade, a defesa de considerac;ao os dois pólos desta tensao, será difícil explicar muitas das ca-
Ben Azai está calcada neste tipo de afirmac;ao e a terminología erótica que racterísticas da cultura rabínica. Os textos rabínicos apresentam diversas
emprega, a terminología do desejo, fortalece esta interpretac;ao. Esta história, tentativas de criar práticas sociais que aliviariam a tensao entre o casamento
entao, é urna representac;ao perfeita do enorme confuto interno causado pela e o estudo da Torá, entre o sexo e o texto. No entamo, como veremos mais
exigencia de que o hornero se case e tenha filhos, ao mesmo tempo em que adiante, todas as soluc;óes propostas encontraram urna grande resistencia
se dedica integralmente á Torá. A acusac;ao feíta contra Ben Azai e a sua jus- dentro da cultura, como podemos perceber através dos discursos de oposi-
tificativa permanecem no texto, mostrando como esta questao estava viva na c;ao reproduzidos pelos próprios textos que apresentavam estas "soluc;óes".
época dos rabís. No entamo, é preciso ressaltar que Ben Azai é um caso-limi-
te, um exemplo da excec;ao que prova a regra. Praticamente todos os outros
rabís eram casados; o casamento era quase urna norma tanto para os rabís, UM ROMANCE RABÍNICO
quanto para o resto da populac;ao, mas no caso dos primeiros havia outra
obrigac;ao: a atenc;ao constante a Torá. A "biografía" a seguir faz parte do Talmude da Babilonia e narra a história
A importancia que a Igreja e alguns grupos religiosos judaicos do final de um de seus maiores heróis, Rabi Akiva, urna autoridade palestina do sé-
da Anúgüidade davam a virgindade acabou permitindo a divisao da humani- culo II:
• dade em duas classes diferentes: os religiosos, que podiam se dedicar total-
mente ao espírito, e os chefes de familia, que se casavam e se reproduziam Rabi Akiva era o pastor de Kalba Savua'. A filha de Kalba Savua' ficou noiva
(Fraade 1986, 266-68; Anderson 1989, 140). Esta soluc;ao também estava ao de Rabi Akiva. Quando soube disso, Kalba Savua' tir ou-lhe o direito a todas as
alcance dos rabís, mas eles simplesmente a rejeitavam. A história de Ben
Azai é um indicador da energía necessária para resistir aos atrativos da vida t;Ao ligeiramente diferente. Ele aponta para outros indicios da atra~ao que o celibato e até
celibatária'I. O elogio exagerado da vida conjugal, que é urna característica mesmo a castra~llo exerciam sobre os judeus do final da Antigüidade.
S O livro de Peter Brown é o retrato mais mareante desta da r e da maneira como os crislllos
primitivos reagiam a e.la. Ver tambérn os importantes comentarios de j eremy Cohen (1 989,
2 Quanto a justificativa de Ben Azai, ver Daube (1977, 37-38). 114, n . 177).
3 Para exemplos semelhantes da contradii;llo entre a teoria e prática dos sábios helenistas 6 Para urna abordagem um pouco diferente desta questao, que em parte complementa e em
(estóicos), ver Griffin (1976, 340). parte contradiz o que está escrito aqui, ver Eilberg-Schwartz (1990b, 229-34). Ver também
4 Cf. David Biale ( 1989), que segue um raciocinio semelhante, mas chega a urna interpreta· David Biale ( 1989) e Eilberg-Schwartz ( 1990a).
148 O Desejo Pelo Saber
O Desejo Pelo Saber 149

suas propriedades. Ela foi e se casou com ele no inverno. Os dais


outro lado, nao se trata apenas de um romance, de urna história ficticia so-
costumavam se deitar no celeiro e ele tirava o feno dos cabelos da mulher. Ele
bre personagens inventados, mas sim de urna narrativa repleta de significa-
!he disse: "Se pudesse, eu te daria urna '.Jerusalém de Ourom7 ! O profeta Elias
apareceu diante deles sob a forma de urna pessoa que gritava na porta. Ele do sobre um herói central desta cultura. Por que se coma esta história a
disse: "Dai-me um pouco do vosso feno, pois a minha mulher está prestes a respeito de Rabi Akiva? Qual é o propósito cultural de fazer coro que o herói
dar a luz e nao tenho onde deitá-la". Rabi Akiva disse a mulher: "Vés? Existe do "romance" seja um grande estudioso e um mártir, e, mais específicamen-
alguém que nao possui nem feno". Ela lhe disse: "Vai e te senta na Casa de te, Rabi Akiva? Para tentar responder estas questóes, é preciso examinar al-
Estudo". Ele foi e ficou lá durante doze anos, escudando com Rabi El:iézer e gumas práticas discursivas dos rabís que poderao orientar a nossa leitura
Rabi Yehoshua. Depois de doze anos, voltou para casa. Ao chegar, ouviu de desta nanativa biográfica e nos ajudar a compreender o genero literário da
trás de sua casa um mau-caráter dizer a sua mulher: "O teu pai te tratou da contro ~r:.sia haláquica (disputa em tomo da lei ritual).
maneira carreta. Para come<;ar, ele [Rabi Akiva] nao é do teu nível. Além
disso, ele te deixou sozinha durante todos estes anos". Ela !he disse: "Se ele
fosse seguir a minha vontade, ficaria lá outros doze anos". Ele disse: "Como
HALAKÁ
ela me deu permissao, voltarei". Ele [icou fora durante mais doze anos. Voltou
O Que Vem Antes: o Casamento ou a Torá?
com 24 mil pares de discípulos. Todos foram recebé-lo e ela também veio
encontrá-lo. Aquele mau-caráter disse para ela: "Onde pensas que vais"? Ela
disse: "'O justo conhece as necessidades de seu bicho de estima<;ao' [Pr O primeiro texto haláquico que parece relevante para a narrativa do roman-
12,10)"8 . Ela foi se apresentar diame dele. Os rabis a empurraram para o lado. ce de Rabi Akiva é urna discussao no Talmude da Babilonia Kidushin 29b so-
Ele !hes disse: "Deixai-a em paz. Tuda aquilo que é meu e rudo aquilo que é bre o momento adequado do matrimonio; a questao é saber o que vem
vosso, na verdade penence a ela"! Kalba Shavua' foi e pediu para quebrar o primeiro, o estudo ou o casamento:
seu voto, e assim foi. Rabi Akiva ficou rico de seis maneiras com a
propriedade de Kalba Shavua'. Os sábios ensinaram: esrudar a Torá ou desposar urna mulher? O homem
(Talmude da Babilonia Ncdarim 50a) deve estudar primeiro a Torá e depois se casar, mas se nao consegue ficar
sem urna mulher, emao deve se casar e depois estudar a Torá. Disse Rav
Pode-se encontrar várias características do romantico neste texto. Há o casa- Yehuda que Shmuel afirmou: "Segundo a halahá , ele deve se casar e depois
mento por amor impedido por restric;:óes sociais e a objec;:ao do pai, o triun- estudar a Torá". Rabi Yohanan disse: "Com urna pedra amarrada no pesco<;o
fo dos jovens amantes que enfrentam os obstáculos para o seu desejo e sua ele ainda vai estudar a Torá"!? Mas eles ndo discordam; um é para nós e o outro
é para eles.
justificac;:ao até mesmo aos olhos daquele que se opunha ao seu amor. É im-
possível, emao, ler esta história como a representac;:ao fiel de urna realidade
histórico-biográfica, ou como urna versao literária de fatos verdadeiros9 . Por Antes de mais nada, um rápido cornentário. O texto abre com urna baraita
- isto é, urna velha tradic;:ao haláquica da Palestina - que, na ausencia de
outro texto do mesmo periodo que a contradiga, costuma ser considerada
7 Um tipo de úara parúcularmente precioso. normativa. Apesar desta afirmac;:ao teoricamente definitiva, Shmuel, urna au-
8 "Bicho de estimar;ao" nao é urna tradur;ao literal, pois a criar;ao de animais domésticos é
urna caracteristica da cultura moderna. No entamo, esta é a tradur;ao que mais se aproxima toridade babilónica posterior, declara que o jovem estudioso deve se casar
das conotar;óes da relar;ao entre pastor e ovelha na cultura pastoral judaica, incluindo as antes de estudar a Torá. Rabi Yohanan, um contemporaneo palestino de
suas implicar;óes eróticas. Quanco ao aspecto erótico da criat;ao de animais de estimar;ao, Shmuel que exercia urna influencia semelhante, defende a opiniao contrária.
ver Shell ( 1985). "Animal" seria urna tradur;ao mais literal, mas apresentaria urna
conotar;ao enganosa. O uso <leste versículo indica o cuidado solícito (condescendente) que
Ele se expressa através de urna sentenc;:a que parece ter se originado de um
urna enlidade superior tem para com o seu infe.r ior hierárquico e nao tem o objetivo de provérbio, segundo a qua! as responsabilidades do casamento sao como
equiparar a mulher a um animal. Assim, ele também é empregado em Tanhuma sobre Noé
7, parágrafo 1, para mostrar que Deus sabia que Noé era o mais justo de todos os seres
humanos que existiam naquela época. Desenvolverei este ponto com maiores detalhes ao
interpretar esta história. enquanto estudava a Torá. Esta pane da narrativa é repelida com urna freqüéncia suficiente
9 A leitura histórica é problemática, e nao pode ir além do fato de que exisliu um Rabi Akiva, para ser considerada urna verdad e hislórica (se bem que, levand 1-Se em considerac;ao a na-
ele era casado e aparentemente teve que enfrentar urna grande pobreza jumo com a esposa, tureza de todos os boatos, até isso é questionável). No entamo, se só dermos imponancia a
"verdade"-histórica, restará multo pouco para estudarmos na literamra rabinica.
O Desejo Pelo Saber 151
150 O Desejo Pelo Saber

A diferenc;a entre os babilonios e os palestinos estarla ligada a maneira


urna pedra amarrada no pescoc;o do jovem estudioso, que nao está livre, como as duas culturas encaravarn a sexualidade masculina. Enquanto os pa-
portanto, para estudar a Torá. O Talmude - ou melhor, um de seus estratos lestinos parecem ter adotado o principio helenista de que a sexualidade era
posteriores - observa que na verdade nao há nenhuma contradic;ao entre dispensável para o ser humano, bastando ter autocontrole (so phrosyne), os
eles, pois cada um se refere a situac;ao de urna comunidade diferente, prova- babilonios nao compartilhavam da mesma opíniao (Gafni 1989, 20-21) •
11

velmente as de suas respectivas regioes de origem (isto é, Shrnuel estarla fa- Esta possibilidade é confirmada pela própria continuac;ao dest~ texto, onde
lando da Babilonia e Rabi Yohanan, da Palestina). Tentarei explicar esta é narrada urna história que deixa claro o entusiasmo dos babilonios pelo há-
diferenc;a m ais adiante, mas por enquanto basta observar que, como seria de
bito de se casar cedo e o motivo desta atitude:
se esperar, nao há nenhuma divergencia em tomo da obrigac;ao de os estu-
diosos da Torá se casarem, mas sim da época em que deveriam fazer isso. Rav Huná (um babilonio] disse: "Aquele que tem vinte anos e nao é casado,
Além disso, nem Rabi Yohanan, que defende de forma tao radical a prece- todos os seus dias sao cheios de pecado". Acreditas mesmo que ele é um
dencia da Torá, ve urna contradic;ao essencial entre a pureza ou a espirituali- pecador? Na verdade, eu diria: "Todos os seus dias sao cheios de
dade do estudo da Torá e a sexualidade; ele aponta apenas para urna pensamentos pecaminosos". Rava disse, como também ensina Aquele da Casa
contradic;ao pragmática (apesar de expressá-la em termos extremamente de Rabi Ishmael: "Até o vigésimo aniversário, a Sanúdade, Louvada Seja,
cáusticos) entre as responsabilidades do casamento e a total dedicac;ao ao espera pelo hornero; entao ele se casa. Se aos vinte anos ele ainda nao se
estudo da Torá. Pelo contrário: ser casado e ter urn escape para a sua tensa.o casou, Ele diz: 'Um raio que o parta'"! Rav Hisda disse: "Sou melhor que os
sexual é um elemento produtivo para "aquele que estuda a Torá com pure- meus colegas, pois me casei com dezesseis anos e se úvesse me casado com
za", como se afirma explicitamente no Talmude da Babilonia Yoma 72b (ver quatorze, poderla dizer a Sata: 'Urna flecha em teus olhos'" 12!
também Pessahim 112b e Menakhot llOb). Quem ndo é casado nao pode es-
tudar a Torá com pureza. Esta idéia é defendida por outros textos rabínicos, O discurso <lestes dais grandes rabís da Babilonia dá a entender que a moti-
como aqueles que exigem que apenas homens casados conduzam as orac;oes vac;ao básica ( ou, pelo menos, uma das motivac;oes básicas) por trás da ma-
(Talmude da Babilonia Ta 'anit 16a) 1º. neira como os babilonios encaravam o casamento era a noc;ao de que a
atividade sexual é necessária a partir da puberdade (14 anos). Sem praticar
o sexo, os jovens estudiosos mlo conseguiriam se concentrar em seus estu-
10 Isso nos permite compreender melhor urna passagem (citada acima) de Afraates, padre da dos 13. Pode-se perceber no texto urna insinuac;ao de que um adulto solteiro
igreja persa, que intrigou Gary Anderson: acabará se masturbando ou tendo poluc;oes notumas, o que levaria a impu-
Afraates afirma que uma vez um judeu considerou os cristdos impuros porque ndo se casavam.
Ele diz: 11 i: interessante como Gafni, cuja artigo foi publicado enquanto este livro estava senda escri-
to, chegou a conclusOes muito parecidas com as minhas a respeito das dife.ren~s entre os
Escrevi para vós, meus quuidos, para Jalar da virgindade e da santidade, pois soube de um ju- palestinos e os babilonios no tocante a sexualidade.
deu que insultou um de nossos irmdos, os membros da igreja. Ele disse: "Sois impuros, pois ndo 12 Rashi: "Eu poderla tt-lo desafiado (e Sata é a lnclinac;ao para o Mal) sem ter medo de que
tomais esposas. Mas nós somos mais santos e virtuosos, pois temos filhos e multiplicamos nossa ele me fizesse pecar".
semente pelo mundo". 13 o texto se refere apenas aos homens. Observe a diferern;a entre esta passagem e a noc;ao do
casamento enquanto urna defe.sa contra a luxúria proposta por Paulo em 1 Corintios 7.
A no,ao de santidade defendida por Afraates é. significativa. Ele consegue fazer uma distin,do Para Paulo, isso é urna concessao para aqueles que nao sao "prendados" com a capacidade
entre a defini~o judaica deste termo (que pode ser reconstituida atravé.s da documenta,ao rabl- de transcender a sexualidade. Ele argumenta que o fato de estas pessoas se casare.m nao
nica) e a crista. Para os judeus, o termo se refería ao casamento. já para os cristdos siríacos, o deve ser considerado um pecado, enquanto para os babilonios todo mundo é vulnerável a
termo implicava a contintncia sexual Pode causar estranheza o fato de Afraates ligar a absti- luxúria e de.ve se casar. A capacidade de abandonar a sexualidade, entao, nao pode ser en-
nencia sexual a impureza. Os rabis nunca incluíram o indivíduo que praticava a abstintncía se- carada como urna espécie de medida do mérito do individuo (estou ciente, é claro, que al-
xual na categoría legal dos impuros. gumas pessoas acreditara que os comentários de Paulo se reicrem apenas a situac;ao
(Anderson 1989, 122-23) apocaltptica; creio, porém, que as suas implicac;Oes psicológicas e antropológ1cas perrnane-
cem inalteradas). Ver a nota a seguir. Anne Drafthom Kilmer me informou que a no~ao de
Pode-se perceber, contudo, que a alusao de Afraates está correta. Para os rabís da Babilonia que o sexo é necessário para todos faz pane dos Kulturgebiet da Babilonia desde tempos r~­
(comos quais a congrega~ao de Afraates teria maior cantata), qualquer um que fosse soltei- motos. No épico Atrahasis, os sacerdotes e sacerdotisas sao proibidos de ter filhos depo1s
ro era impuro, pois cenamente teria perisamentos impuros ou - o que era mais provável do dilúvio, mas nio de ter re.lac;óes scxuais!
- emissóes seminais que provocariam impurezas no senódo técnico.
152 - O Desejo Pelo Saber O Desejo Pelo Saber 153

reza moral, ao contrário das relac;oes conjugais. Deve-se entender esta histó- co-romana (Brown 1988, 5-7). David Da ube demonstrou como a noc;ao da
ria como um comentário sobre a passagem talmúdica que a precede. A co- procriac;ao como uro dever e a negac;ao de qualquer valor ao sexo fora da re-
munidade rabínica da Babilonia defende enfaticamente a idéia, fru~ de urna produc;ao sao um resultado da fusao do platonismo com o estoicismo na
autocompreensaó, de que os homens adultos nao podem viver ,sem -sexo e, cultura helenista (1977, 29. Ver também David Biale 1989, 7). Os palesti-
portanto, o jovem estudioso <leve se casar antes de comec;ar seus ~'s.[udds 14 nos, entao, apresentam urna soluc;ao parcial para a antinomia entre a dedica-
Resta agora explicar a posic;ao e a prática "deles" - os palesunos - yue c;ao total ao casamento e a Torá, colocando-os em estágios diferentes da vida
também estao presentes no nosso texto. Parte-se do principio de que "eles" do estudante. Já que é impossível cumprir os dois requisitos ao mesmo tem-
tem urna visao diferente da "nossa" em relac;ao a natureza do homem e da po, mas é possível cumpri-los em estagios consecutivos, é exatamente isso o
func;ao do casamento. Os argumentos de Rabi Yohanan para adiar o casa- que se propoe 15 .
mento estao calcados na impossibilidade de se dedicar totalmente ao estudo Esta soluc;ao nao podía ser aceita na Babilonia, pois acreditava-se que
da Torá ao mesmo tempo em que se exercem as responsabilidades do matri- todo homem desprovido de um escoadouro para a sua tensao sexual acaba-
monio. Além disso, ele nao parece compartilhar do receio dos babilonios de va pecando, ou era tomado por "pensamentos pecaminosos". Enguanto os
que o homem solteiro nao poderia estudar a Torá "com pureza". Se os babi- palestinos afirmam que o estudo da Torá se dá coro maior eficiencia quando
lonios viam no casamento um meio de satisfazer urna necessidade universal se permanece solteiro durante um ceno período de tempo, os babilonios ar-
e urna defesa contra a poluc;ao - opondo-se, portanto, a que ele fosse adia- gumentam que o celibato toma quase impossível fazer isso "com pureza". O
do - entao os palestinos que defendiam o casamento tardio tinham urna texto propoe, entao, urna espécie de soluc;ao utópica que possibilita o casa-
concepc;ao diferente da teleologia conjuga!. A principio, seria de se esperar mento e, ao mesmo tempo, a dedicac;ao total ao estudo da Torá: casar-se
que o candidato mais provável para ocupar esta posic;ao fosse a procriac;ao, cedo e depois sair de casa por longas temporadas para estudar. Em suma, a
pois ela pode ser adiada sem deixar de ser realizada mais tarde. A enfase hi- soluc;ao imaginada pela cultura da Babilonia foi criar urna classe de monges
potética na procriac;ao se enquadraria numa tendencia geral da cultura gre- casados, homens que gozavam do prazer e dos beneficios do casamento du-
rante partes de sua vida, mas que se ausentavam de casa por longos interva-
los para se dedicar aos estudos. Esta "soluc;ao", contudo, cria problemas em
14 O termo "autocompreensao" rellete urna avaliac;ao dos rabis da Babilonia a respeilo de si relac;ao a outra exigencia da halaká.
mesmos e dos outros. Apesar de este postulado, por si só, nao representar urna apreciac;ao
positiva da sexualidade em si, em oposic;ao a procriac;ao, ele nao permite que a capacidade
de se abster do sexo seja entendida como urna medida do espirito, como acontece em diver-
sas tradic;óes helenistas: Obriga,oes Conjugais no Estilo Rabínico
(Ketuvot 61b et seq.)
Stneca adverte que o homem ndo deve rratar a esposa como se fosse a sua amanee e Sdo jeróni-
mo o cita com admira~do. O seu sobrinho, Lucano, tinha a mesma opinido. Ele escreveu um épi-
co, uma espécie de romance histórico realisra, onde descreve d sua maneira a história da guerra Além de a sexualidade ser urna obrigac;ao que o bomem <leve a seu próprio
civil entre César e Pompeu. Numa das cenas da narrativa, Caldo, o modelo do escóico, despede- corpo, a leí talmúdica colocava o marido sob a obrigac;ao legal e contratual
se de sua esposa (a mesma que linha emprestado durant e algum tempo a 11111 amigo) antes de ir
para a guerra. Nem mesmo ds vésperas de uma separaQ2o tdo prolongada eles fazem amor,
de dormir com a sua esposa regularmente, para prazer e beneficio da mu-
como Lucano faz questdo de frisar, explicando a importdncia doutrinária desee fato. Nem Pom- lher. Os rabís baseavam esta obrigac;ao num versículo da Torá sobre a possi-
peu, praticamente um dos maiorts homens da época. darme com a sua esposa na noite de despe- bilidade de o homem tomar urna segunda esposa, onde está escrito que ele
dida (apesar de ndo ser-<Stóico). Por que esta abstin t ncia? Porque o hom em bom ndo vive para
pequenos prazeres e toma cuidado com todas as suas a~óes. Ceder ao desejo é imoral. Só há um
motivo razoável para que um casal durma junto: a procria~do. Ndo era uma quescdo de asceli-
cismo, mas de raci.onalismo. 15 Rashi e Tossafot , os grandes comentaristas medievais desta passagem talmúdica, acreditam
(Veyne 1987, 47) que a divergtncia entre os babilonios e os paleslinos estaria ligada a possiveis diferenc;as
de distilncia entre a casa do estudioso e as suas yeshivot (locais de estudo). Além do fato de
Além do fato de o marido judeu ser obrigado a dormir com a sua esposa na noite de despe- os dois comentaristas chegarem a teorias opostas a respeito da base material e de sua in-
dida, a diferenc;a fundamental neste caso é que, segundo a formac;ao cultural rablnica, a llutncia sobre a superestrutura neste caso, esta diferenc;a geográfica nao parece ser temati-
realizac;ao do desejo (dentro dos limites daquilo que é permitido) nao é de modo algum zada pelo Talmude, enquanto a diferenc;a ideológica, na minha opiniáo, certamente está
censurável e nao pode, entao, ser utilizada como urna medida da virrude. presente.
154 O Desejo Pelo Saber
O Desejo Pelo Saber 155

nao deve "reduzir a carne, a coberta ou as épocas" da primeira (Ex 21 ,10). disse: um mts aqui (estudando] e um mfs em casa, pois está escrito: "No que
Esta lista, que apresenta um enigma filológico , é interpretada de várias ma- se refere aos mutiroes, pode-se ir e vir de mts a mes, durante todos os meses
neiras no midrash, mas a opiniao hegemónica é que "carne" significa comi- do ano" (1 Cr 27,1). Rabi Yohanan diz: um mts aqui e dois em casa, pois está
da, "coberta" se refere a roupa e "épocas", a regularidade da rela~ao sexual1 6 • escrito: "Passarao um mts no Líbano e dois meses em casa" (1 Rs 5,28).
Esta obriga~ao também fazia parte do contrato de casamento padrao aprova-
do pelos rabis, onde se estabelece o seguinte: "Prometo te alimentar, te vestir A questao aquí é que, apesar de a mulher ter o direito de permitir ou nao
e ter rela~óes contigo, de acordo com o costume dos maridos judeus". Den- que o marido se ausente durante o tempo que ficar combinado, nunca se
tro deste contexto, a Mishná discute a defini~ao precisa de "regularidade", deixa de reconhecer que existe urna rela~ao desigual de poder entre os dais.
i.e., como o marido deve cumprir suas obriga~óes sexuais com a esposa. O marido provavelmente conseguirá persuadir a sua esposa a lhe dar "per-
O texto da Mishná afirma o seguinte: m issao" para partir por períodos maiores de tempo e assim, nas palavras de
Rashi, estará "pecando" contra a sua mulher 19 . Mesmo sem estabelecer urna
Se alguém faz um voto de nao dormir com a sua mulher; Beit Shamai diz duas proscri~ao legal, o Talmude impóe urna forte restri~ao moral a que os mari-
semanas e Beit Hilel, urna semana 17. Os estudantes podem sair de casa sem dos se afastem de casa por mais de trinta dias. Duas das mais influentes au-
permissao por trinta dias para estudar a Torá, e os trabalhadores, por urna toridades do Talmude sao citadas com este objetivo e a única diferen~ entre
semana. A "época" [a freqüencia exigida das relai;oes] que é mencionada na
elas diz respeito a quantidade de tempo que o marido <leve passar em casa
Torá: para os tayalin 18 , é todo dia; para os trabalhadores, duas vezes por
ao voltar. De acordo com Rav, que é proveniente da Babilonia, o homem ca-
semana; para os condutores de jumento, uma vez por semana; para os condutores
sado <leve passar metade do tempo estudando a Torá, mas segundo a autori-
de camelo, urna vez a cada trinta dias; para os marinheiros, uma vez a cada seis
meses; estas sdo as palavras de Rabi Eliézer. dade palestina, Rabi Yohanan, ele deve passar dois ter~os de seu tempo com
a esposa.
O comentário do Talmude a respeito desta passagem da Mishná é bastante O resto do texto do Talmude, que continua na página seguinte, muda
revelador pelas suas hesita~óes e pela maneira como contradiz a si mesmo. completamente de dire~ao e passa a assumir urna posi~ao aposta a da se~ao
Assim, urna leitura cuidadosa deste texto nos fomecerá indicios sintomáti- anterior:
cos da impossibilidade de se resolver o problema cultural da tensao entre 0
[Os estudantes podem sair de casa sem permissdo por trinta dias para estudar a
casamento e o estudo da Torá dentro do sistema rabínico da Babilonia.
Torá ... ]; estas sdo as palavras de Rabi Eliézer: Rav Bruna afirmou que Rav
O Talmude discute a "permissao" especial que a Mishná concede ao es-
disse: A halahá está de acordo com a opiniao de Rabi Eliézer. Rav Ada, filho
tudante para se afastar de sua mulher durante trinta días sem 0 consenti-
de Ahva, afirmou que Rav disse: Estas sao [apenas] as palavras de Rabi
mento dela:
Eliézer, mas os sábios afirmam que o estudante pode partir para estudar a
Torá durante dois ou trfs anos sem permissao. Rava disse que os nossos rabis
Os estudantes podem sair de casa sem permissdo por trinta dias para estudar a se apóiam em Rav Ada, filho de Ahva, e pautam a sua prática de acordo com a
Torá, e os trabalhadores, por uma semana: Com permissao, quamo tempo? sua opiniao.
Quanto tempo ele quiser. Mas qual é o componamento mais correto? Rav
Estamos diante de urna tradi~ao babilOnica relativamente tardia que, ao con-
16 A base ling~ística ~~sta i~terpretai;ao é complexa. A raiz 'ny, da qua! deriva a palavra 'onah trário de autoridades anteriores, inverte o veredito de Rabi Eliézer , segundo
(que traduz1 como epoca ), é empregada muitas vezes num contexto sexual com o signifi- o qual o estudioso casado nao poderia se ausentar por mais de trinta d ias,
cado de "ter relai;oes com". Neste sentido, cla nao apresenta nenhuma ligai;ao lingüística passando a permitir urna ausencia de vários anos 20 • Esta inversao mostra
com a pal~vra que significa "épocas". Creio, porém, que os rabis fundiram estes dois signi·
ficados, cnando, assim, o significado complexo de "relai;oes regulares".
17 lsto é, trata-se do periodo de tempo máximo em que ele pode se abster de ter relai;oes com
a sua _mulh_e r. Se ele faz um voto mais longo, é obrigado a se divorciar dela e a pagar-lhe a
quanua estipulada.
19 Esta nao é a única imerpretai;ao posslvel para esta passagem, masé, curiosamente, a que
18 Este _é um termo dificil de se traduzir e significa algo como "ociosos"; também pode se
reJenr aqueles que passam o tempo todo estudando. lhe dao Rashi e os tossafistas, os comentaristas canOnicos do Talmude.
20 "Dois ou trfs" é urna expressao semltica que significa "vários".
156 O Desejo Pelo Saber O Desejo Pelo Saber 157

como a exigencia haláquica de que o marido dormisse regularmente com a Qualquer que seja a solu~ao encontrada para esta contradi~ao estrutu-
sua mulher exercia urna forte pressao sobre todo o sistema sócio-cultural. ral, a tradi~ao dissidente baseada na declara~ao de Rav passou a ser conside-
Aqui aparentemente surge urna conrradi~ao. Baseando-me em textos ba- rada definitiva, numa oposi~ao direta ao resto do discurso até este ponto,
bilónicos relativamente explícitos, afirmei que estes homens acreditavam que se preocupava principalmente com a responsabilidade do marido de sa-
que os adultos nao podiam viver sem sexo e, assim, tinham que se casar tisfazer a sua rnulher regularmente. Sem querer sugerir que a tradi~ao de
cedo. Por ourro lado, estou argumentando que para solucionar os problemas Rav Ada seja pura inven~ao, nao deixa de ser surpreendente que ela tenha
causados por estes casamentos precoces, alguns deles defendiam um siste- sido considerada normativa, pois contradiz a Mishná e se afasta de outra rra-
ma em que os maridos se ausentavam de suas esposas por ·u m longo perío- di~ao sobre a posi~ao de Rav13 . O Talmude da Palestina, por outro lado, nao
do de tempo. Esta contradi~ao, na rninha opiniao, é interna ao sistema e nao apresenta nenhum "questionamento" <leste tipo á posi~ao da Mishná e afir-
urna ilusao criada por um erro de leitura. Várias solu~óes sao possiveis. ma de acordo coro a lei, o marido nao pode se ausentar por mais de trinta
Urna era a no~ao de que um casamento precoce refrearia o desejo sexual días sem permissao.
21
para sempre . Urna sugestao mais plausível talvez seja a de que nao se espe- O comentário do Talmude da Babilonia sobre a declara~ao de Rava -
rava que os homens mantivessem o celibato durante estas longas ausencias "nossos rabis se apóiam em Rav Ada, filho de Ahva, e pÁutam a sua prática
de casa. Há duas histórias dentro do próprio Talmude sobre dois rabinos de acordo com a sua opiniao" - é urn indício de urna. mudan~a na prática
importantes que, ao chegar numa cidade desconhecida, iam direto para o social associada a Rava, urna grande autoridade b~ilonica do século IV,
mercado procurar urna "esposa" para a noite (Yoma 18b; Yevamot 37b). apesar de esta conexao nao dever ser tomada necessariamente ao pé da le-
Como Gafni já argumentou (1989, 24-25), esta prática é muito semelhante á tra. No entanto, esta tentativa de estabelecer urna mudan~a na prática conju-
institui~ao iraniana posterior do casamento temporário por prazer (Haeri ga! aparentemente se deparou com urna forte oposi~ao , apesar do enorme
1989). Esta institui~ao é muito bem documentada e parece indicar a perma- prestigio de Rava. Ao mesmo tempo ern que registra o apoio dado a esta ino-
nencia, nesta área cultural, da no~ao de que é preciso haver um escoadouro va~ao, o texto do Talmude revela urna ferrenha resistencia a ela. O fato de
para a tensao sexual. Se de fato era comum os estudantes rabínicos recorre- estas vozes discordantes serem colocadas lado a lado na mesma passagem é
rem a casamentos temporários enquanto estavam longe de casa (e isso nao um reílexo, na minha opiniao, do conílito social que ocorria fora do texto_
passa de especula~ao), entao é bem mais fácil explicar por que o Talmude
coloca as necessidades sexuais da mulher como sendo o problema básico, e
nao as do marido! Outra possibilidade seria ver aqui mais um exemplo do
ato de "pensar com as mulheres", ou seja, a no~o de que muitas vezes ao fa-
lar das mulheres, os homens na verdade estao se referindo á sua própria se-
xualidade. Assim, a exigencia de urna certa freqüencia nas rela~óes por
causa das necessidades da mulher toma-se, ipso Jacto, urna maneira de os
do a este respeilo.
homens terem permissao para desfrutarem desta freqüencia eles mesmos.
(Rabi Moshe Feinstein, citado por Rache! Biale (1984, 134))
o entanto, é importante frisar mais urna vez que, ao menos na forma ~ao ra-
bínica, a necessidade de sexo para as mulheres nao é descrita em termos pe- O mais fascinante neste texto e que apesar de nao reconhecer abenarnente que as necessi-
jorativos2-2. dades sexuais dos homens podern ter mudado por causa da promiscuidade desta gerai;ao,
ao invés de deíender urna rnaior abstinencia sexual, ele prega, em hannonia com a prática
rabínica clássica, urna maior satisfa<;ao sexual para todos, disfar<;ada como urna obriga<;ao
21 Para indicios de no<;óes <leste tipo entre judeus de um período posterior ver David Biale dos home.ns diante das mulheres.
( 1986). • 23 Ela também contradiz a afirrna<;ao atribuida a Rav e Rabi Yohanan de que mesmo com a per-
22 Num contraste parcial corn esta posi~ao, um rabino ortodoxo moderno ernprega os seguin- missdo da mu/her, o homem 11do deve ficar longe de casa por mais de um mts sem voltar para
tes argumentos ao defender urna ma1or freqüencia de rela<;óes para os estudiosos da Torá uma visita. Concudo, é posslvel interpretar esta afirrna<;ao de outra maneira: ficar trinta días
do que aq uela estabelecida pelo Talmude: fora de casa era considerado urna prática normal, ou entao a discussao na verdade girava
ern tomo do que acontece quando o homern que partiu durante trínta dias sem perrnissao
Por ~a usa da_ promiscuidade desta gera,do e a inveja pela sorte das outras, a nrnlher senre volta para casa. Neste caso, Rav e Rabi Yohanan estariam apenas discutindo quanto tempo
dese10 e a paLXdo erótica mais do que uma vez por semana. Assim, o seu marido está abriga- ele <leve ficar em casa antes de partir novamente. Este argumento nao é definitivo.
158 O Desejo Pelo Saber
O Desejo Pelo Saber 159

A CONTESTA(AO INTERNA DOS TEXTOS comparavam "ao sexo apertado da gazela, para cuja marido toda vez é como
O Conjlito na Babilónia: Contesta~do Velada a primeira" (Talmude da Babilonia Eru:in 54b); pa~a aqu~les que estuda~ a
Torá, toda vez também é como a prime1ra25 • Numa mversao do tema helems-
O Talmude narra urna história que, apesar de ser apresentada como um pre- da mulher e das tentai;óes deste mundo como um perigo para o filósofo, a
cedente para a prática dos "rabis" que se afastam de suas mulheres durante Torá é apresentada como urna amea<;a para o cumprim~nto da~ re~pons~bi-º
ta
dais ou tres anos, pode ser entendida como um sinal de ambigüidade e opo- lidades do sábio neste mundo, principalmente no que diz respelto as obnga-
sii;ao a esta tendencia:
<;óes sexuais com a sua esposa. De acordo com esta interpretai;ao, .ª história
deixa de ser urna condenai;ao moral do rabi, para se tomar um av1so contra
Rava disse que nossos rabis se apóiam em Rav Ada, filho de Ahva, e
os perigos de se deixar tomar pelos prazeres eróticos do estudo da Torá2 ~. .
conduzem a sua prática de acordo com a sua opiniao. É este o caso de Rav
De qualquer maneira, a empatia com que o narrador descreve a ans10s1-
Rehume, que era um disclpulo de Rava em Mahoza. Ele visitava regularmente
sua mulher na Véspera de Iom Kipur. Um dia, ficou completamente absorco
dade com que a mulher espera o seu marido tem o propósito de fazer com
em seus estudos. A sua esposa estava esperando: "Agora ele vem. Agora ele que 0 leitor/ ouvinte desta história se identifique ~om ela: Este julgamento
vem". Ele nao veio. Ela ficou abalada e urna lágrima caiu de seu olho. Ele moral é confirmado explícitamente quando o rabi é pumdo com a marte.
estava sentado no telhado. O telhado desabou e ele morreu. Nao há nada na narrativa que condene abertamente a prática de ficar longe
de casa. A implicai;ao é que se ao menos o marido mantivesse o hábito de vi-
Como indiquei acima, este texto é apresentado pelo Talmude como urna cor- sitar a mulher urna vez por ano, nao haveria nenhuma objei;ao ao seu com-
roborai;ao da alegai;ao de Rava, segundo a qua! os rabis acreditavam na tra- portamento. Mesmo assim, creio que a maneira como a história é_ narrada
dii;ao de Rav Ada e pautavam a sua prática de acordo com ela. Contudo, nao condena esta prática, ao mesmo tempo em que parece corrobora-la. Este
é preciso um hermeneuta muito desconfiado para dar-lhe urna interpretai;ao conflito entre apoio explícito e contestai;ao velada também está presente em
diferente. A história, na verdade, realiza urna critica impiedosa a prática dos outros textos.
rabis que se afastam de suas esposas por um longo período de tempo. Antes O Talmude continua o seu discurso haláquico com outra afinnai;ao apa-
de mais nada, é preciso lembrar que a história deixa claro que o rabi nao es- rentemente dirigida contra Rava, que defende a ausencia do estudante da
tudava muito longe de casa, caso contrário o fato de passar um dia estudan- Torá por um longo período de tempo:
do até mais tarde nao faria muita difereni;a, nem impediría que voltasse a
tempo para o Iom Kipur. Este detalhe aumenta a irania que Yonah Friinkel Quais sao as "épocas" dos disclpulos dos Sábios? Rav Yehuda afirmou que
detectou na frase "visitava regularmente sua mulher na véspera de Iom Ki- Shmuel disse: da Véspera do Shabat até a Véspera do Shabat [i.e., o estudante
da Torá deve voltar para casa e dormir coma sua mulher pelo menos toda
pur" (Frankel 1981, 101). Além disso, o fato de ser tao desatento a ponto de
sexta-feira a noite] . Aquele que dd o seu fruto no tempo devido [Sl 1,3). Disse Rav
esquecer a única ocasiao do ano em que ia visitar a esposa só pode ser inter-
Yehuda - e alguns dizem Rav Huná, outros, Rav Nahman - isso se refere
pretado como urna crítica extremamente irónica ao compórtamento deste
aquele que dorme coma sua mulher toda Véspera do Shabat.
rabi. É possível que o próprio nome do protagonista seja urna representai;ao
irónica de seu caráter, pois Rehume significa "amante" ou "misericordioso",
A seguir, o Talmude narra a história de um homem que seguía regularment~
coisa que obviamente ele nao é. Urna outra interpretai;.ao interessante para
este esquema, mas que se deparou com conseqüencias funestas quando de1-
este texto é que Rehume de fato é um amante, um amante da Torá24• Ou
xou de cumprir o seu compromisso urna vez:
seja, o texto nos apresentaria outra versao do tema introduzido por Ben
Azai, em que a vida do estudante das leis é representada como um abando-
no erótico á Torá e a mulher é encarada como urna rival a este amor. Para os 25 Repare que a palavra utilizada para se referir ao sexo, ou vagina, da gazela vem da mesma
raiz de Rehume, o amante! .
rabís, a sua ligai;ao á Torá sem dúvida tinha urna natureza erótica, pois a
26 Em Boyarin ( 1992), estudo algumas conota<;Oes claramente p~sitivas da. natur~a eróuca d a
vida religiosa. Quando este livro eslava indo para o prelo, Mtcbael Whne me mfonnou so-
bre a exist!ncia de textos gregos em que conesas reclamam de filósofos que roubaram ~s
24 Este nome aparece pelo menos oito vezes no Talmude. Sugiro que esta figura nao fo¡ esco- scus amantes. As histórias estudadas aqui podem ter sido escritas, mais urna vez, a parur
lhida por acaso para ser o protagonista desta história.
de paródias destas narrativas.
160 O Desejo Pelo Saber O Desejo Pelo Saber 161

Yehuda, filho de Rabi Hia, era genro de Rabi Yanai. Ele fai e se sentou na sua marte. Como mostra a citac;ao do Eclesiastes, a sentenc;a capital decreta-
Casa de Estudo. Toda sexui-feira, a noitinha, ele vinha para a sua mulher e ao da pelo rei nao pode. ser revogada em cenas situac;oes legais, mesmo que te-
se aproximar, todos viam diante dele urna coluna de fago. Um dia, ficou
nha sido passada por engano. este caso, a realizac;ao de um rito fúnebre é
absorto em seus estudos e nao veio. Quando nao viram o sinal [a coluna de
fago), Rabi Yanai !hes disse: "Virai a cama dele, pois se Yehuda estivesse vivo,
considerada a causa da marte. Como Frankel observa, o fato de este rito ser
nao deixaria de cumprir a sua obrigac;ao sexual". Foi como um erro na boca de virar a cama de Yehuda é altamente significaúvo: aquele que ignorou as res-
um soberano [Ecl 10,5) e Yehuda morreu. ponsabilidades da cama é punido pela cama. Nao há a menor dúvida, como
afirma Frankel, de que o objetivo da história é mostrar que o rabi foi subme-
Além de s_e opor á prática de os rabis se afastarem de suas mulheres por um tido a urna sentenc;a capital divina, por nao conseguir entender que a obriga-
l~ng? ~enodo _de tempo, esta história coloca em forma de narraúva a impor- c;ao de dormir com a esposa é um mandamento tao sagrado quanto estudar
tancia ideológica da sexualidade, que está por trás desta oposic;ao (Frankel a Torá. Esta história, como a anterior, mostra com eloqüencia que a soluc;ao
198 1, 102-04). Frankel observa que a coluna de fogo funciona como urna utópica proposta pela halaká, segundo a qual o marido que estuda a Torá
chave hermeneutica dentro da história. Se este elemento esúvesse ausente <leve voltar para casa regularmente, é totalmente inviável. A tensao e a con-
seria possível entender a narrativa apenas como um conflito entre 0 sagrad~ tradic;ao continuam vivas.
e o secular, numa questao de dar a César o que é de César. No entamo, 0 É neste ponto do Talmude da Babilonia que a história de Rabi Akiva e
fato de Yehuda ser precedido por urna coluna de fogo ao caminhar para de seu romance com Raquel é narrada28. Agora ternos melhores condic;óes
casa, o mesmo símbolo que guiou os judeus no deserto e os conduziu a Ter- para interpretá-la. Tanto o contexto textual imediato quanto o contexto cul-
ra Prometida, é urna forte indicac;ao de que nao <levemos ler a narrativa tural mais amplo indicam que esta narrativa romantica é a maior tentativa
como um confuto de valores. Tanto o estudo da Torá, quanto 0 sexo no ca- da comunidade babilónica para impar a sua soluc;ao utópica e justificar a
samento s~o ato~ sagrados. Além disso, a "coluna de fogo" está carregada de prática local, atribuida a Rava, de os maridos passarem urna enorme quanti-
um forte srmbohsmo erótico, pois além de ela possuir a forma de um falo 0 dade de tempo longe de casa para estudar a Torá. Nao se pode esquecer que
fogo costuma ser a:s_ociado ao erotismo. Enquanto a história anterior apo~ta esta prática se opunha a explícita injunc;ao moral das antigas autoridades
pa~a ª. natureza erouca do estudo da Torá, esta narrativa a complementa ao palestinas e babilónicas, que afirmavam que mesmo partindo com a autori-
atnbmr um caráter sagrado ao sexo no casamento. A ligac;ao entre 0 Shabat zac;ao das esposas, os maridos nao deveriam se afastar por mais de um mes
e a relac;ao sexual aprofunda esta conexao. Em termos estruturais 0 sexo e a sem voltar para urna visita29 . Ela também representava urna contradic;ao á
Torá, ou o casamento e a casa de estudo, sao apresentados com'o altemaú- opiniao de Shmuel, outra grande autoridade babilónica, segundo o qual o
vas equivalentes, mas apostas, distribuidas de forma complementar27 _ rabi devia dormir com a sua mulher pelo menos urna vez por semana. Le-
_Yeh~da, q_u~ deveria ter a mesma disposic;ao para cumprir ambas as vando-se em considerac;ao o peso da halaká e da autoridade moral a ser ven-
?bngac;~es religiosas, dedica-se ao estudo com zelo e felicidade, mas parece cida, nao é de se admirar que fosse necessário mobilizar símbolos que
I.r dormir com sua mulher contra a vontade, por pura obrigac;ao. É isso 0
exercessem urna enorme influencia cultural. O maior <lestes símbolos sem
que o derru~a _e o le~a á morte. O seu sogro tem cene.za de que apenas a dúvida era Rabi Akiva. O romantismo da história de seu casarnento com Ra-
marte podena 1mped1-lo de cumprir o mandamento e realiza um ritual de quel é um sinal de como esta prática causava conflitos dentro desta comuni-
luto - virar a sua cama. A realizac;ao <leste ritual, porém, acaba causando a dade - conflitos que aparecem nas outras histórias, mas sao completamente

28 Para urna análise senslvel das difereni;as entre as duas versoes (irrelevante para a miilha in-
27 Devo esta ~ormulai;.:ao a Alan Dundes. Apesar de este texto atribuir, por assim dizer, 0 mes- te.rpretai;ao aquí), ver Weller (1989, 101-05). Acho improvável, porém, a sua suposii;.:ao de
mo status a mulher e á Torá, esta distribuii;ao complementar afasta completamente as mu- que haveria urna "história central", que mais tarde teria sido elaborada pelos dois textos.
lheres da esf~~a da Torá. Em outras palavras, a mulher é elevada á mesma posii;ao da Torá 29 Esta contradii;ao já era percebida pelos tossafistas, comentaristas talmúdicos do século XII,
e, portanto, ~ impedida de se dedicar ao seu estudo (isso equivale a posi~o das mulheres que ficaram intrigados pelo fato de os rabís se ausentarem de casa durante dois ou trts
~nquanto _objeto~ anlsucos na culci:ra "ocide~tal ", que as impediu de se tomarem artistas). anos, numa oposii;ao direta as opinioes de Rav e Rabi Yohanan. Eles reinterpretaram o sig-
er tambem M01 (1990, 6). No proxtmo capnulo, analisarei urna descontinuidade no dis- nificado mais explícito do texto para fugir desta contradii;.:ao. Na minha opiniao, porém, o
curso d~s géneros que permite ás mullieres o acesso ao estudo da Tora, além de explicar objetivo destas histórias era justamente neutralizar Rav e Rabi Yohanan, como afirma explí-
com ma1ores detalhes esta questao estrutural.
citamente o próprio Rava, que cita a primeira narrativa.
O Desejo Pelo Saber 163
162 O Desejo Pelo Saber

mais precisa do que esta rela<;ao poderia evocar na cultura rabínica. Trata-se
apagados da narrativa sobre Rabi Akiva. A história mostra duas vezes que o
rabi tinha recebido a "permissao" de sua noiva para se ausentar durante tan- da famosa parábola da ovelha do pobre em 2 Samuel 12:
to tempo. A "solw;ao" proposta pelo Talmude da Babilonia é criar um siste-
Deus enviou Nata a Davi. Ele foi e lhe disse: "Havia dois homens na mesma
ma caracterizado por urna enorme pressao sócio-cultural para que as cidade, um rico e 0 outro pobre. (2) O rico possuia urna grande q~antidade de
mulheres renunciem "voluntariamente" a seus direitos. Como veremos mais ovelhas e de gado. [3] O pobre nao tinha nada além de urna ovelhinha que
adiante, esta inovac;ao babiÍónica foi contestada enfaticamente na Palestina > tinha comprado. Ele a criara e ela cresceu em sua cas~, junto com os seus
a partir de pressupostos quase feministas. 30 filhos· ela comia de seu pao, bebia de seu copo, dormta ern seus brac;os e era
Urna leitura mais atenta desta história pode revelar como ela cumpre, corno,sua filha. (4) Um hóspede veio a casa do rico, que nao quis tirar urna de
sob a forma de urna narrativa, a sua fun<;ao ideológica e cultural de subjugar suas ovelhas ou urna de suas vacas para servir ao viajante de visita. Ele tomou
a mulher, além de mostrar como a adoc;ao do genero do romance é impor- a ovelha do pobre e preparou-a para o seu convidado". (5) Davi ficou
tante para atingir os seus objetivos. A chave da rninha leitura é o nome Ra- horrorizado e disse a Nata: "Este homem deveria ser mono".
quel, que a tradic;ao atribui a mulher de Rabi Akiva (com plena justificativa
nos textos, como veremos mais adiante). Este nome, apesar de ser muito co- Trata-se de um quadro extraordinário, do ponto de vista de nossa posic;iio
mum entre as mulheres hebraicas, é a mesma palavra com que se chama a cultural. o animal é adotado pela família como urna crian<;a aband?nada.
ovelha 31 . Toda a história do romance entre Rabi Akiva e Raquel é gerada a Observe também a divisao de classes descrita pela história: o pobre alimenta
partir de urna única metáfora: Akiva representa o pastor e Raquel, a ovelha. e trata 0 animal como se ele fosse humano; já o rico pensa no animal (e no
A relac;ao de Rabi Akiva com a sua mulher é equiparada de várias maneiras pobre!) apenas como um instrumento para a~ngir os seus objetivos econ~
a relac;ao do pastor com a sua ovelha favorita; o próprio lugar e~ que os micos. Há também um forte tom erótico na imagem do homem comparn-
dois temo seu idilio romántico é um celeiro. O momento em que Raquel diz lhando a sua cama com a ovelha, urna nuance que os rabís talmúdicos nao
que "o [pastor) justo conhece a alma [as necessidades) de seu bicho de esti- deixaram passar despercebida: "Dormindo em seus brac;.os, ela é s~a filha?!
mac;ao" é, na verdade, o ponto central da narrativa. A metáfora do amante Nao, é sua mulher" (Megilá 13a). O comentário do m1drash esta calcado
como um pastor e da amada como urna ovelha é muito comum no discurso numa sutileza lingüística; a palavra para filha é bat, enquanto a palavra para
casa, que muitas vezes é empregada para se referir a esp~sa, .é ba!~ • O co~­
2

bíblico, principalmente para representar a relac;ao entre Deus e Israel; ela


também aparece muitas vezes no Cántico dos Cánticos. A história de Rabi texto em que esta parábola é contada toma este tom erótico mevitavel: DaVl,
Akiva e Raquel, portanto, é urna narrativa plausivel, desenvolvida a partir de um reí que possui várias esposas, é acusado de rou~a: a adorada mulher de
um modelo metafórico erótico derivado da Biblia. seu servo, Urias. o texto bíblico cria urna imagem v1Vlda em que o cas~men­
No contexto da cultura pastoral, a relac;ao entre pastor e ovelha é extre- to ideal é como 0 amor de um pastor por sua única ovelha. A mulher e urna
mamente comovente. Ainda que a condi<;ao da mulher transmitida por esta ovelha na parábola bíblica, assim como nesta mistura de parábola e biogra-
metáfora possa nos parecer ultrajante, nao poderíamos compreender o seu fia em que se conta o romance de Rabi Akiva e Raquel. . ,
poder persuasivo sem levar a sério o contexto cultural em que ela foi criada. Há outra ligac;ao importante entre este texto e a Biblia: trata-se da histo-
A leitura de um texto mareante da Biblia pode nos ajudar a ter urna idéia ria de ] acó e seus casamentos. Mais urna vez, estamos di ante de um pastor
apaixonado pela filha de seu mesrre. Mais urna vez, o pai é contra o :a~a­
mento. Mais urna vez, o pastor trabalha durante dois períodos de van?s
anos para conquistá-la, e, mais urna vez, o nome da filha é ~quel. Além d1s-
30 Em outras palavras, o conílito está calcado numa determinada representa~o da subjetivi-
dade feminina (e nao da apresentat;;ao de sua verdadeira subjetividade). Ver também n. 40.
so, 0 nome deste pastor, Ya'qov, é quase um anagrama perfe1to do nome do
31 Urna vez que o pai de Raquel, o protótipo do magnata, também tem um nome emblemático
("Cao Satisfeito"), nao creio ser um exagero atribuir ao nome Raquel um caráter simbólico.
32 A passagem de esposa para filha nao se dá por a:aso; era ~uito comum os rabís chamare~
Repare que este nome é apenas insinuado no texto talmúdico, mas isso se dá de forma tao suas esposas e outras mulheres de "minha filha . Além disso, como observa .Chana Kr~n
mareante, que toda a tradit;;ao passou a acreditar que a mulher de R. Akiva charnava-se Ra- feld 0 amor erótico é representado na fraseologia blblica (e em textos hebraicos P?steno-
quel. A própria falta de referfncias explícitas se toma quase urna maneira de destacar o va- res)' como urna espécie de parentesco. Dai a expressao ª minha irma, minha no1va" no
lor simbólico do nome. Apresentarei outros indicios que confirmam esta conclusao mais
adiante. Ca.ntico dos Ca.nucos.
164 O Desejo Pelo Saber O Desejo Pelo Saber 165

nosso herói, que em hebraico se escreve 'Aqyva. Assim, ternos vários indí- Urna conclusao acrescentada a versao da história de Rabi Akiva apresen-
cios de que o padrao do casamento de Rabi Akiva e, principalmente, da rela- tada em Ketuvot torna ainda mais explícita a func;ao política destas histórias:
<;ao entre pastor e ovelha é utilizado nesta história como um ideal de
casamento para os judeus. A íilha de Rabi Akiva se componou da mesma maneira com Ben Azai. Como
Fiz um certo esfor<;o para descrever o pano de fundo cultural em que se diz o <litado popular: "a ovelha segue a ovelha - tal mae, tal filha"!
dá a associa<;ao do marido ao pastor e da mulher a ovelha, sobre a qual está
montada a história apresentada no Talmude. Apesar de seu papel subser- Este comentário torna explícito pela primeira vez o trocadilho com o nome
viente, a mulher-ovelha nao é denegrida, nem desprezada, nesta narrativa. "Raquel" e a palavra hebraica para "ovelha". Mais importante, porém, é opa-
De fato, ela é amada e honrada quando sabe o seu lugar. O texto reconhece pel ideológico <leste epílogo. Para come<;ar, a história soluciona o problema
a sua subjetividade: ela tem o poder de aceitar ou rejeitar a ausencia de seu do recalcitrante Ben Azai, que rejeitava o matrimonio porque sua alma dese-
marido para estudar, pelo menos em teoría. Ela prefere, é claro, aceitar. a java a Torá. Ele é domesticado e acaba se casando, tornando-se um monge
verdade, ela é a forc;a que o motiva a partir para estudar a Torá. Este mo- casado. O texto dá a entender que nao existe nenhuma tensao entre o casa-
mento representa urna crise, além de ser um ponto crucial da história33. Até mento e o desejo pelo saber; basta encontrar o tipo certo de mulher. A histó-
entao, Raquel é o agente da narrativa. É ela quem "ficou noiva de Rabi Aki- ria apresenta o modelo exagerado de Raquel como um ideal para todas as
va" e quem se casou com ele no inverno, e nao o contrário. lsso é um reflexo mulheres judaicas, e nao como urna exce<;ao. De fato, a prática de os mari-
do código de classes embutido na história. Ela é a proprietária de terras, en- dos abandonarem as esposas por um longo período de tempo, a fim de estu-
tao é quem ocupa a posi<;ao dominante. Ele é um pobre pastor, enquanto ela dar a Torá, era comum em muitas comunidades (e um tema discutido na
35
é a filha de seu mestre. No entanto, a partir do momento em que ele revela o literatura) até o início do século XX, quando parece ter sido abandonada .
seu potencial para o estudo da Torá ao deduzir o ensinamento moral correto De qualquer maneira, a história de Raquel continua a ser urna for<;a ideoló-
de seu encontro com Elias, ela exerce a sua influencia pela última vez, dei- gica poderosa em muitos círculos judaicos tradicionais, como se pode perce-
xando-a de lado. Ela o manda estudar. A partir daí, o código de dasses é su- ber por urna declara<;ao recente de um importante professor de Oxford: "boa
perado pelo código do saber, que é (de forma quase inevitável) um código parte do que aconteceu com Raquel permanece obscuro, como ela própria
de diferencia<;ao entre os sexos. Neste ponto ele se torna, por assim dizer, o preferiu. A sua alegria estava no triunfo do marido, que em vinte anos supe-
pastor dela. Nao há a menor dúvida de que aquilo que urna esposa judía rou rudo o que ela imaginava" (Steinsaltz 1988, 165). O romance de Rabi
mais deseja é um marido que conhec;a profundamente a Torá 34 • O amor de Akiva e Raquel, portanto, tem o mesmo caráter histórico que Eva Cantarella
Rabi Akiva por sua mulher é indicado duas vezes ao longo desta história, atribui aos épicos homéricos:
sempre de forma mareante. Primeiro, no desejo comovente do pobre pastor
de dar a sua noiva um presente muito caro e, depois, na dramática declara- Durante os séculos que formaram a chamada Idade Média Helenica, os aidoi e
c;ao que faz a seus alunos: "Tudo aquilo que é meu e tudo aquilo que é vos- os rhapsodoi, ao canlar os feilos de seus ancestrais, desempenhavam nao só
so na verdade pertence a ela"! É este efeito duplo - de um lado, defendendo urna furn;ao recreativa, mas também urna importante func;ao pedagógica. Eles
a abnega<;ao das mulheres e, de outro, recompensando esta abnega<;ao com ensinaram aos gregos o que sentir e o que pensar, como deviam ser e como
um enorme prestigio - que permitiu a história exercer urna influencia nor- deviam se comportar. Assim como os homens aprenderam com o épos a se
mativa na cultura judaica. Urna forma<;ao que nao oferecesse grandes recom- adaptar ao modelo do herói, as mulheres que ouviam os poetas também
aprenderam o tipo de comportamento que deviam adotar e aquele que
pensas sociais por este comportamento nao conseguiría atingir a hegemonía
deviam evitar. É neste sentido que a Llíada e a Odisséia sao consideradas
que este modelo feminino adquiriu entre os judeus.
documentos históricos.
(Cantarella 1987, 25)

33 Alguns estudiosos sugeriram que dois textos isolados foram fundidos aqui. Dentro de urna
boa tradii;ao formalista, eu diria que esta história representa urna unidade e que esta que-
35 Repare que a afirmai;ao de que a ftlha de Raquel se casou com Ben Azai contradiz o texto
bra no desenvolvimemo de seu tema equivale a urna brusca transii;ao na fábula.
citado acima além de ourras tradi<;óes em que Ben Azai teria permanecido solteiro. Esta
discrepancia ~nfatiza ainda mais a fun <;ao ideológica destas histórias.
34 Ver também1'rankel (1981, 113) no que diz respeito a este ponto.
166 O Desejo Pelo Saber O Desejo Pelo Saber 167

Esta ficc;ao romantica é um documento histórico exatamente neste sentido. mareante do conflito despertado pela inovac;ao associada ao nome de Rava
O romance de Rabi Akiva e Raquel representa um elemento básico para a na Babilonia, sua comunidade de origem. O fato de este conflito ser repre-
faca de ~ois gumes da cultura patriarcal judaica na Europa, que muitas ve- sentado como urna luta entre Rava e seu próprio filho o toma ainda mais vi-
zes <lava um enorme poder e prestigio as mulheres no ambito "secular", ao vido e real.
mesmo tempo em que lhes negava a participac;ao na esfera religiosa. A mi-
nha bisavó administrava urna grande serrarla, enquanto o marido se dedica-
va ao estudo da Torá. Este é o poder cultural da figura de Rabi Akiva 36 . A Critica de Fora: a Rejeir,:ao Palestina
No entanto, nem tuda era tranqüilo na nova prática dos monges casa-
dos. O próprio Talmud e mostra as fissuras que se escondiam por baixo des- As duas comunidades rabínicas (na Babilonia e na Palestina) nao estavam
ta solm;ao utópica. O confuto que esta nova prática social provocava é isoladas. Correntes culturais originárias de urna afetavam a outra como urna
marcado pela última história desta colec;ao, que é urna das mais estarrecedo- onda. Já vimos que o Talmude da Palestina nao admite a possibilidade de
ras narrativas sobre o comportamento de um rabi no Talmude. Depois de padróes conjugais tao radicais quanto os da Babilonia. De fato, há outros in-
nos depararmos C?m ela, nao é de se estranhar a energia cultural mobilizada dícios que indicam que o ideal babilónico de casamento nao era sequer tole-
para estabelecer urna prática tao radical, nem a necessidade de se utilizar a rado. O texto do Talmude da Babilonia apresenta mais trés narrativas sobre
figura de Rabi Akiva para introduzi-la: rabinos que se casam e deixam suas mullieres por um período de doze anos
(ou mais). Urna destas histórias também possui urna versao palestina, que é
Rav Yossef, filho de Rava, foi enviado por seu pai a Casa de Estudo para contada no Bereshit Rabá. Ela oferece urna boa oportunidade para testar a
estudar com Rabi José. Ficou estabelecido que estudaria durante seis anos minha hipótese de que a prática de abandonar a mulher por um longo inter-
!i.e., ele tinha se casado e decidiram que se afastaria de casa por este. valo depois do casamento encontrava urna resisténcia bern maior na Palesti-
pertod9]. Depois de tres anos, na Véspera de Iom Kipur, ele disse: "Vou e na do que na Babilonia. Para facilitar a comparac;ao, apresentarei as duas
visitarei minha mulher". O seu pai soube disso e fo¡ encontrá-lo com urna histórias lado a lado:
arma. Ele Ihe disse: "Lembraste de tua puta"37 ? Eles lutaram, e nenhum dos
dois pode comer a última refeii;ao antes do jej um.

Versdo palestina Versao babilónica


Esta história chocante, que apresenta urna linguagem de violéncia única - Hanania, filho de Hakinai, e Rabi Hanania, filho de Hakinai,
para nao falar do comportamento violento entre pai e filho - é um indicio
Rabi Shirnon, füho de Yohai, foram ia para a Casa do Rabi [a casa de
estudar a Torá com Rabi Akiva ern estudo] depois do casamento de
36 O meu bisavo pelo menos vivia ·em .casa, mas no século XIX (!) muitos jovens ficavam longe
Bnei Berak. Eles ficararn lá durante Rabi Shimon, filho de Yohai. Ele
de suas mulheres para estudar, ass1m como na história de Rabi Akiva (Biale 1992). (Eu me
pergunt~ at~ que pont~ o hábito de a mulhe.r "ajudar" o marido durante a sua passagem treze anos. [Shimon] lhe disse: "Espera por mim
pela un~vers1dade , pr~ucad~ ~té na época da minha própria formac;ao (e por nós mesmos) Rabi Shimon, filho de Yohai, até que eu possa ir contigo". Ele nao
nao. ~ena um res~ulc10 foss1bzado desta ve.Iba tradic;ao cultural judaica. A contribuic;ao - escrevia cartas para a sua rnulher e espero u.
posmva. ou negauva - da cultura judaica para a prática do casamento na Europa pós-Re·
forma amda nao foi escudada. Levando-se em conta o fato de que alguns gentíos do inicio
sabia tuda o que acontecia com a Ele foi e se sentou durante doze
do periodo moderno, como Milton, possulam um vasto conhecimento da literatura rablni- sua familia. Hanania, filho de anos na Casa do Rabi.
ca, creio que esta questao tem alguma importancia). Hakinai, nao escrevia nenhurna Quando voltou, as ruas da
Finkelstein ( 1964, 80) concorda que a história de Rabi Akiva fo¡ essencial para estabe-
cana para a sua mulher e nao sabia cidade tinham mudado e ele nao
lecer a ~rá~c~ dos estudan~es ~sados se afastarem de casa durante anos a fio, mas ele par-
te do ?nnap10 de-que Rabi Akiva realmente introduziu esta prática, enquanto cu encaro a o que acontecia corn a sua familia. sabia o caminho de casa. Foi e se
narra uva .:orno urna criac;ao babilOnica posterior, que reforc;a os costumes instituidos na- A sua mulher rnandou um recado sentou na margem do rio. Ouviu
quel_a r~gtao_. Para um oucro exernplo da forc;a de histórias sobre Rabi Akiva na formac;ao da para e.le: "A tua filha está crescida. chamar~ urna moc;a: "Filha de
práuca judaica, ver Boyarin ( 1989).
37 Há urna variante do ~to em que está escrito: "Lembraste de cua pamba"? A diferenc;a em Vem escolher urn noivo para ela". Hakinai, Filha de Hahinai, vem e
hebraico é de urna úmca letra. Como seria de se esperar, o editor nao suportou que 0 texto Rabi Akiva percebeu com o Espirito enche teu jarro, e vamos embora".
ficasse como se cncontrava.
168 O Desejo Pelo Saqer O Desejo Pelo Saber 169

Santo e disse: "Todo aquele que tem Disse (a si mesmo]: Deduz-se disso versao. Agora, os elementos da crítica contra Rabi Hanania sao relativamen-
uma filha crescida deve ir encontrar que esta moc;a é minha filha". te apagados. O texto nao diz se ele manteve cantata com a família, nem se
um noivo para ela". Ele a seguiu. A sua mulher decidiu voltar para casa por pressao da esposa ou do professor. Quando a
[Ele quis entrar em sua casa, estava sentada, peneirando farinha. sua mulher marre, ele fica horrorizado e pede aos céus que ela volte a vida.
mas decobriu que ela estava em Ela levantou os olhos, viu-o e ficou Afirmo, entao, que a versao babilónica representa urna revisao da história,
outro lugar]. O que ele fez? Foi e se cheia de desejo; a sua alma partiu. cuja estrutura oferece explícitamente urna soluc;ao utópica para as enormes
sentou perta do poc;o. Ouviu as Ele disse <liante Dele: "Mestre do contradic;óes morais e haláquicas envolvidas na prática de os maridos se
vozes das mulheres que tiravam a Universo, é esta a recompensa desta afastarem de suas mullieres durante anos a fío para estudar a Torá. É como
água dizerem: "Filha de Hakinai, pobre mulher"? Orou pela esposa e se a narrativa procurasse dizer, na linguagem atual da utopía, que fosse pos-
enche teu jarro e sobe". ela viveu. sível ter de tuda. O narrador babilónico, ao se deparar com urna história pa-
Ela foi, e ele foi atrás dela, até lestina que, como seria de se esperar, reílete a posic;ao extremamente hostil
chegar a sua casa. Assim que a sua que esta cultura tinha em relac;ao a esta prática, atenua dramaticamente o
mulher o viu, a sua alma a seu caráter crítico ao excluir alguns elementos da narrativa. A introduc;ao do
abandonou. deus ex machina de urna ressurreic;ao milagrosa no final serve apenas para
{Alguns dizem que mais tarde enfatizar o fracasso da soluc;ao utópica da história. Este final feliz soa ainda
ela voltou}. mais falso do que o final de A Tempestade ou de Sonho de urna Noite de Ve-
(Theodor e Albeck rilo , em que todos os personagens se casam e ficam felizes. Nao pretendo fa-
1965, 1232)38 zer um comentário estético com esta comparac;ao, mas apenas mostrar como
os desfechos encontrados por textos literários cómicos muitas vezes des-
O fato de estarmos <liante da mesma história em duas versóes diferentes nos rroem, ao invés de defender, certas soluc;óes para os conílitos sócio-culturais
ajuda a perceber o papel cultural de cada urna, revelando algumas pistas a que !hes sao subjacentes 39 •
respeito das duas culturas que as produziram. Voltando nossa atenc;ao pri- Se na Babilonia a prática do rabi abandonar a sua esposa por um longo
meiro para a versao palestina, veremos que ela condena completamente o período de tempo era contestada, na Palestina ela parece ter sido simples-
comportamento de Hanania (que nem recebe o título de "Rabi" nesta ver- mente rejeitada. Nao pretendo afirmar que o asceticismo era mais forte na
sao!). A narrativa descre\le um caso extremo, o de um homem casado que Babilonia do que na Palestina; pelo contrário, creio que na Palestina era
fica tao absorto em seus estudos, que nem sabe da existencia da filha - ou mais comum a noc;ao de que os homens deviam evitar, ao menos em parte,
se sabe, esquece-a por completo. Mesmo quando a esposa escreve para ele
- depois de treze anos - e pede a sua ajuda para cuidar do futuro da filha,
39 Um editor também acrescentou urna [rase a versa.o palestina, onde afirma que a alma da
ele só responde ao receber ordens explícitas do diretor da yeshivá, ninguém mulher voltou. ao há dúvida, porém, de que se trata de um acréscimo posterior ao texto,
menos do que Rabi Akiva, cuja prestígio cultural é utilizado aquí com um talvez baseado na história babilónica. Frankel chega a mesma conclusao. A versao do texto
propósito completamente diferente daquele do texto babilónico. A história de Vayihrd Rabd 21 ,8, igualmente originário da Palestina, também inclui um final em que a
indignac;ao de Rabi Hanania provoca urna ressurreic;ao milagrosa, mas tenho ceneza de que
original termina coro a amarga conseqüencia de seu comportamento: a mar- isso também é urna adic;ao tardia, imitando a versao do Talmude da Babilonia. Há tres indi-
te da esposa. Nao há nada nesta versao que atenue de alguma maneira a crí- cios que me fazem chegar a esta conclusao. Primeiro, o fato de os dais textos palestinos,
tica contra as longas ausencias do marido para estudar a Torá, a nao ser que praticamente id!nticos em todos os outros aspectos, apresentarem desfechos completamen-
te diferentes sugere que os dais finais sao acréscimos posteriores. Esta possibi\idade parece
se leve em considerac;ao o contraste implícito com Rabi Shim'on, que pelo ser confirmada pelas enormes variac;Oes entre os diversos manuscritos do Vayikrá Rabá, o
menos manteve um cantata constante com a mulher. que costuma apontar para urna adic;ao posterior. Além disso, nao há nenhum elemento na
Ao reescrever esta história, os babilonios se opóem diretamente a esta versao palestina que nos fac;a esperar a súbita demonstrac;ao de preocupac;ao e compaixao
do rabi. Finalmente, a expressao "esta pobre mulher" é úpica da linguagem empregada no
texto babilónico e aparece pela primeira vez na passagem do Talmude da Babilonia, de
onde provavelmente foi copiada, primeiro no Talmude e, depois, no midrash palestino. De
38 As chaves indicam que a última frase é um acréscimo posterior ao texto. Ver a nota a se- fato, esta expressao nao surge em nenhum outro pomo da literatura palestina, mas aparece
guir. empelo menos outra passagem do Talmude da Babilonia (Hulin 7b).
O Desejo Pelo Saber 171
170 O Desejo Pelo Saber

o desejo sexual. Para isso, eles permaneciam solteiros por uro longo período O midrash procura explicar urna anomalía presente no texto bíblico: apesar
de tempo, ou tinham urna prática sexual ascética dentro do casamento. Con- de o verbo ter dais sujeitos - um homem e urna mulher - a forma verbal é
tudo, os palestinos também pareciam acreditar que depois do casamento a do feminino singular-n. O midrash ve nisto um sinal de que a queixa con-
este asceticismo nao podia ser imposto á mulher'*º. Esta afirmac;ao é corro- tra Moisés partiu de Míriam e continua a interpretar a história:
borada pelo midrash tanaítico sobre a reclamac;ao de Míriam contra seu ir-
mao, Moisés (Números 12 e Sifre ad loe.). Esta narrativa fala de urna queixa Míriam e Aardo falaram a respeito da mulher etíope: e como Míriam podía
que Míriam faz a Moisés e da terrível punic;áo que recebe de Deus por seu saber que Moisés deixara de ter rela<;óes sexuaisH? Ela viu que Séfora nao se
enfeitava mais com os adornos femininos . Ela lhe disse: "Qual é o problema
comportamento insolente. Ao interpretar a reclamac;ao como urna queixa a
contigo? Por que nao te enieitas mais com os adornos femininos"? Ela
favor da mulher de Moisés, e nao contra ela (como o texto bíblico dá a en-
respondeu: "Teu innao nao está mais interessado naquele assunto". Foi assim
tender), o midrash faz urna crítica contundente ao casamento celibatário. que Míriam soube. Ela falou como seu irmao [Aarao] e os dois falaram contra
A história bíblica comec;a com a afirmac;ao de que Míriam e Aarao fala-
ele.
ram contra Moisés a respeito da mulher etíope que tinha desposado (Séfora, Rabi Natan disse que Mlriam estava ao lado de Séfora no momento em
de acordo como midrash'* 1 ): que está ese.rito: "O jovem correu ( ...)e disse que Eldad e Medad estavam
profetizando no acampamento" [Nm 11,27). Quando Séfora ouviu, ela disse:
Mfriam e Aardo falaram contra Moisés [Nm 12,l]: lsto mostra que os dois "Ai das mullieres desses dois'>44! E foi assim que Míriam soube. Ela falou com
. falaram contra ele, mas foi Míriam quem come<;ou, pois Míriam nao Aarao, e os dois falaram contra ele .
costumava falar na presen<;a de Aarao, a nao ser por urna necessidade
imediata. Ao conrrário de tradic;óes interpretativas mais anúgas, segundo as quais Mí-
riam e Aarao fizeram urna queixa contra a mulher de Moisés, o midrash
acredita que estas reclama<;óes eram a seu favor. A versao midráshica da his-
40 A famosa declarai;ao em 1 Corintios 7, segundo a qua( o marido e a mulber nao devem re- tória, como acontece muitas vezes nos midrashim mais antigos, é urna res-
cusar um ao out.ro, estarla ligada a esta noi;ao, apesar de Paulo dar um enorme valor ao ce-
libato. Em termos haláquicos, esta obrigai;ao também cabía a mulher, apesar do posta a urna lacuna no texto bíblico que deve ser interpretada. A história
androcentrismo endemico <leste discurso fazer com que os textos se dirijam apenas aos ho- comec;a com Míriam reclamando "a respeito da mulher etiope". Na elabora-
mens. Tanto marido quanto mulher podiam se recusar a ter relai;oes sexuais, mas nao por <;ao da narrativa, porém, a queixa de Míriam e Aarao é completamente dife-
um longo período de tempo.
41 A palavra "etiope" é explicada como urna metáfora: rente: "Por acaso Deus só falou com Moisés? Nao falou conosco também"?
Ao invés de urna críúca contra a mulher coro quem Moisés havia se casado,
A mulher etiope: mas ela realmente era elfope? Ela era midianita, como está escrito: "E o sa-
cerdote de Midid tinha sete filhas" {Ex 2,16}. Entdo por que a escritura diria "etíope", a ndo ser
que fosse para nos dizer que assim como o etíope possui urna pele incomum, Séfora possuia urna
belez.a i11comum, maior do que ad.e codas as mulheres ( ... ). 42 A análise gramatical moderna nao reconhece este fato como urna anomalia, argumentando
Pois desposara urna mulher etiope: Por que d.izer isso novamente? Ele já ndo d.issera "a res- que em hebraico, assim como em out.ras línguas semlticas, quando um verbo aparece na
peito da mulher etíope"? Por que a escritura d.iz: "pois desposara uma mulher etíope"? Há mu- frente de dois sujeitos coordenados, ele concorda com o primeiro. No entanto, como argu-
lheres que sdo belas na sua apartncia, mas ndo em seus atas, ou sdo belas em seus acos, mas mentei em outro livro (Boyarin 1990c), a exegese midráshica deve ser compreendida atra-
ndo em sua apartncia, coma está escrito: "como um anel d.e ouro no focinho d.e um parco t a vts da percepcao que os rabís linham da gramálica hebraica, e nao do nosso conhecimento
mulher bela sem sabedoria" {Pr 11 ,22}. Mas esta era bela em sua apartncia e em seus atas, por da lingua. O fato é que sempre que esta escrutura aparece, ela é uatada pelo midrash como
isso está escrito "pois se casara com uma mulher etiope". se tivesse um significado especial. Além disso, a conlinuac;ao da bistória indica que ao
identificar Mlriam como a instigadora <leste episodio, os rabis nao estavam fazendo urna
Urna v.ez que é impossível enquadrar Séfora no ·significado normal do termo "etiope", esta leitura exagerada.
palavra só pode ter urna func;ao metafórica, ind.icando como ela era especial. Trata-se de 43 A t.raduc;ao literal seria "procriacao"; contudo, como este e oucros textos indicam, este
um dispositivo midráshico bastante comum. O midrash faz um grande esforc;o para dar ao termo era muitas vezes empregado pelos rabís para se referir as relac;óes sexuais, ainda que
adjetivo a conotac;ao mais positiva posslvel, afirmando que Séfora era bela e virtuosa, o que elas nao resultassem na gravidez, nem seu objetivo básico fosse a procriac;ao. As
dá mais l!nfase a injustic;a que Moisés cometera com a sua devoc;ao exagerada. Como o Tal- implicac;óes <leste hábito Lingülstico já foram estudadas no capítulo 2.
mude comenta em outro contexto, "Rabi Yehoshua ben Levi disse: Aquele cuja esposa é te- 44 lsto é, ao saber que os dois bomens estavam profetizando, ela ficou com pena de suas
mente aos céus e nao darme com ela é um pecador, pois está escrito: Saberás que a tua mulheres, pois achava que nao dormiriam mais com elas, assim como Moisés tinha
tenda está em paz' Uó 5,24)" (Yevamot 62b). deixado de procurá-la.
O Desejo Pelo Saber 173
172 O Desejo Pelo Saber

louvá-lo, nem para reduzir a procria<;ao, mas para estimulá-la, e fez rudo isso
esta queixa parece se opor a urn poder ou privilégio que ele teria. Alérn disso, a em particular, mas mesmo assim foi punida, maior ainda será a puni<;ao
defesa de Moisés por Deus e a punic;ao de Míriarn nao térn nenhuma relac;ao daquele que fala de seu companheiro para repreende-lo, e nao para louvá-lo,
com a esposa, sendo apenas urna reafirma<;ao da santidade especial de Moisés. para reduzir a procriac;ao, e nao para estimulá-la, em público, e nao em
Há urna contradic;ao interna na história: Míriam reclamou porque Moisés nao panicular.
se casara com a pessoa adequada, ou porque tinha inveja de sua posic;ao? A
narrativa midráshica preenche esta lacuna ao fundir as duas reclamac;óes numa Muitos dos que cometem o pecado da difamac;ao fazem isso para reduzir a
só. Ela reclama a favor da mulher de Moisés, argumentando que este se com- procriac;ao, impedindo que certos casamentos se realizem, ou provocando
portara de forma arrogante e autoritária. Ela e seu irmao mais velho ocupavam desavenc;as entre marido e mulher. Míriam fez o contrário. A sua inten<;ao
a mesma posic;ao de Moisés, mas nao tratavam seus parceiros da mesma manei- era fazer o bem ao restabelecer a harmonia entre Moisés e Séfora, e a prova
ra. O midrash sabe exatamente qual era a queixa da esposa, mas apesar de ser disso é que nao fez a sua acusac;ao ern público. O midrash faz um grande es-
esta urna solu<;ao plausível para a contradic;ao, nao explica diretamente o "signi- forc;o para reduzir a culpa de Míriam, apesar da punic;ao severa que ela rece-
ficado" do texto bíblico. Como acontece muitas vezes no rnidrash, a interpreta- be na narrativa da Torá: urna lepra temporária (de acordo com traduc;óes
<;ao parece envolver a sinergia de dois fatores: ela procura responder a urna convencionais, ainda que nao muito precisas), o mesmo castigo divino para
dificuldade interpretativa verdadeira, ao mesmo tempo em que cumpre urna a difamac;ao no sistema moral rabínico. O seu único pecado foi ter um zelo
func;ao ideológica45 . O midrash age duas vezes como um ventríloquo da mu- exagerado pelo cumprimento do mandamento. Ao minimizar a crítica a re-
lher, transmitindo a sua queixa: primeiro, ao fazer de Míriam a sua porta-voz e clamac;ao de Míriam contra Moisés e ao atribuir-lhe as intenc;óes mais louvá-
a iniciadora da ac;ao e, depois, ao relatar em seu nome o comentário que ouvira veis, o midrash expressa urna atitude negativa ern relac;ao ao celibato no
de Séfora e que revelara o seu sofrimento16. O texto registra duas maneiras de a casamento, dentro de urna leitura possível do texto bíblico.
esposa se queixar de seu marido. A primeira é mais sutil, pois a mulher apenas o midrash ainda explica o resto da história. A queixa de Míriam e Aarao
insinua urna crítica contra Moisés por nao ter relac;óes com ela, enquanto no se- estava ligada ao fato de Moisés estar se comportando como se fosse superior
gundo caso o ressentimento é profundo, direto e claro: "Ai das mullieres desses - mais santo do que os outros - com a sua prática celibatária:
dois"! Ai da mulher daquele que se toma um santo e em sua santidade ignora
as necessidades sexuais de sua esposa. Ao mesmo tempo em que Míriam é con- E disseram: "Por acaso Deus só falou com Moisés"? : Por acaso Ele nao falou
denada pelo texto bíblico e pelo midrash por causa de sua acusac;ao desrespei- comos Patriarcas, e nem por isso eles se abstiveram [do sexo]? Por acaso a
tosa a Moisés, o texto serve como um ventríloquo da voz da mulher cujo Santidade nclo falou conosco também, e nem por isso nos abstivemos?
marido se dedica de forma exagerada ao estudo da Torá, deixando de ter rela-
c;óes sexuais. A partir daí vem a resposta de Deus:
O midrash acentua ainda mais as boas intenc;óes de Míriam, apesar de
reconhecer que a sua a ti tu de é punida no texto da Torá: Se há entre vós um profeta: talvez assim como falo com o profeta em sonhos e
visóes, falo diretamente com Moisés. Assim, a escritura nos diz: "Nao é assim
com meu servo Moisés" - coma excec;ao dos anjos oficiantes. Rabi Yosse diz:
Esta questao pode ser discutida do caso mais brando para o mais grave: urna
vez que Míriam nao reclamou de seu irmao para Lhe repreender, mas para mais até do que com os anjos oficiantes.
De boca para boca falo com ele: de boca para boca !he disse para se afastar
de sua mulher.
45 Esta afirmac;ao, é claro, simplifica ao extremo a hermenéutica do midrash. Ela está ligada á
minha teoria a respeito do midrash, desenvolvida em Boyarin (1990c). A primeira vista, este midrash parece defender a santidade do celibato, ou
46 Utilizei o termo "ventrlloquo" para indicar que nao estamos <liante da expressdo da subjeli- até mesmo do casamento celibatário - urna prática bastante comurn em al-
vidade da mulher; há, no entamo, a represenla,do de urna subjetividade feminina imaginá-
ria, um esfon,;o de criar urna empalia com as mulheres que tem pelo menos um efeito guns círculos cristaos primitivos (Brown 1988). Afinal, Moisés é o modelo
potencial na prálica concreta do casamemo (compare esta afinnac;ao com Bloch, que ve mais elevado daquilo que o ser humano pode atingir na sua vida religiosa.
aqui apenas seus perigos em potencial). As mulheres muitas vezes sao representadas como Ele opta pelo celibato num determinado momento de sua vida e recebe a
sujeitos nos textos rablnicos. No entamo, a sua subjetividade, como neste caso, só é repre-
sentada como um objeto do discurso.
174 O Desejo Pelo Saber O Desejo Pelo Saber 175

aprovac;ao incondicional do próprio Deus pela sua escolha. Assim, a sua a tradic;ao de que Moisés era um ~arido celibatário. Para neutralizar a forc;a
prática celibatária servirla como um exemplo para os próprios rabís - e, de <leste tema, que tinha urna enorme influencia dentro da cultura judaica, o
fato , é assím que Fínkelsteín (1964, 80) e David Biale (1989) ínterpretam midrash o cita, ao mesmo tempo em que o marginaliza como urna prática re-
esta passagem, argumentando·que o midrash apóia a prática de longas sepa- servada apenas a Moisés em toda a história. Assim, o midrash consegue se
rac;óes conjugais. manter fiel a urna tradic;ao anterior poderosa, sem deixar de contestá-la. Se
a minha opiniao, contudo, ao contrário de defender o ideal do celibato combinarmos este fato a vivida expressao de simpatía pela mulher despreza-
ou do casamento celibatário entre os rabís, este texto representa um argu- da pelo "profeta" que opta pelo celibato, ternos um forte argumento contra a
mento poderoso contra esta prática ou ideal. Para descobrír por que, será prática adotada pelos rabís da Babilonia (ou que eles pelo menos defen-
47
preciso ler esta passagem com mais atenc;ao. Prímeiro, é preciso lembrar que diam) de deixar as suas mullieres por anos afio sem um parceiro sexual .
o midrash explicitamente remete a urna tradic;ao anterior a respeito do celi- Mais urna vez, se compararmos o texto palestino com a versa.o babilóni-
bato de Moisés. Repare que o texto nao pergunta como nós sabemos que ca, poderemos confirmar se esta conclusa.o está carreta. No Talmude da Ba-
Moisés se afastou da mulher depois do Sinai, mas apenas como Míriam bilonia, a história é apresentada da seguinte maneira:
sabe. O midrash dá a entender, assim, que o mariage blanc de Moisés era
urna prática comum na tradic;ao judaica primitiva (e sabemos que isto é ver- Moisés se separou de sua mulher. Qual foi o seu raciocínio? Ele pensou
dade). Para Fílon, por exemplo, Moisés é o modelo dos terapeutas, que re- arravés de uro silogismo (Ka! ve-homer). Ele disse: Se para Israel, coro quema
nunciaram completamente ao sexo e que ele tanto admirava (Fraade 1986, Shekiná falou rapidameme e apenas numa hora marcada, a Torá diz: "Por tres
dias nao vos aproxiroeis de mulher", para rnim, com quero a Shekiná fala
264 ). A minha tese é que o midrash cita esta tradic;ao bastante difundida
sempre e sem hora marcada, isso deve ser o tempo todo. E como sabemos que
apenas para contraclize-La. Ao introduzir este tema tradicional justamente
Deus concordou com Ele? Está escrito: "Vá dizer a eles: voltai para vossas
neste ponto do texto (e nao, por exemplo, no contexto dos relatos a respeito
tendas"; e logo depois: "Mas ficarás aqui comigo". E alguns dizem que
da d'evoc;ao de Moisés), o midrash consegue neutralizar e contestar a ideolo- [sabemos disso) porque "de boca para boca falarei com ele".
gía da tradic;ao, sem, contudo, negar completamente a sua validade - coisa (Shabat 67a)
que os rabis aparentemente nao podiam fazer, devido a sua aceitac;ao gene-
ralizada. A versa.o babilónica desta história é marcada por suas ausencias, que fazem
A forma como Deus pune Miriam e Aarao é descrita com termos que en- com que as presenc;as na versa.o palestina se tomem ainda mais salientes.
fatizam explicitamente a natureza excepcional da relac;ao entre Moisés e Agora, nao há nenhurna representac;ao dos sentimentos da mulher. Na ver-
Deus. Míriam e Aarao parecem acreditar que, urna vez que também falaram dade, ela nem é encarada como urna parte interessada na decisao. Além dis-
com Deus e ocupam a mesma posic;ao de Moisés, também deveriam se abs- so, apesar de a diferenc;a entre Moisés e as pessoas comuns também ser
ter do sexo, ou entao que seu irmao deveria largar o celibato. A reprimenda citada aqui, isso nao leva explícitamente a conclusa.o de que, para os outros,
de Deus consiste de urna afümac;ao enfática de que Moisés é especial - ou a possibilidade de renunciar ao sexo matrimonial está excluída, senda enca-
melhor, de que ele é único. Haverá outros profetas, como Míriam e Aarao, rada como urna arrogancia e um erro, como acontece no midrash. Pode-se
mas Deus Calará com eles através de sonhos e visóes. De· fato, eles nao sao ler este texto como mais urna aprovac;ao do costume aparentemente corrium
abrigados a evitar as relac;óes sexuais. Nem mesmo os Patriarcas (Abraao, entre os babilonios de praticar longas separac;óes conjugais para o estudo da
Isaac e jacó) tinham a obrigac;ao ou o direito de praticarem o celibato. Moi- Torá, enquanto a versa.o palestina, estudada acima, condena veementemente
sés, com quem Deus fala "de boca para boca" - um atributo altamente eróti- este hábito.
co - era o único que devia se desligar da vida conjugal. Ele ocupa urna
posic;ao ligeiramente inferior a dos anjos, ou tem urna condic;ao espiritual
47 Nao há um consenso em torno da data em que foi escrito este midrash. Paradoxalmente,
ainda mais elevada do que a deles: nunca houve um ser humano como ele.
fa<;o parte do grupo que acredita que ele precede o Talmude da Babilónia. Neste caso, ele
Concluí-se, entao, que mortais inferiores aos Patriarcas, aos profetas e aos nao poderla ser um argumento contra a prática que afirmei ter sido instituida pelos rabis
irmaos de Moisés, por mais que aspirem a santidade, nao devem adatar o talmúdicos; na verdade, ele atacarla ourras práticas bem documentadas de mariage blanc
celibato. Interpreto o texto midráshico, entao, como urna forma de oposic;ao enrre judeus e n:i-rjudeus já no século l. Trata-se, ent;lo, de um argumento contra a institui-
<;;}o babilOnica antes mesmo de ela ter sido criada.
O Desejo Pelo Saber 177
176 O Desejo Pelo Saber

ticas culturais que, arravés da análise, podem revelar o papel cultural que
O CASO DO MONGE CASADO desempenham.
A mirtha leitura do complexo textual a respeito do casamento rabínico
mostra que um dos grandes objetivos do discurso hegemónico entre os rabis
Ao comparar os textos talmúdicos, entao, sugeri urna explicac;ao para o caso
era atribuir um papel abnegado as esposas judias (pelo menos aquelas que
do monge casado. Esta cultura apresentava exigencias sociais que eram dia-
pertenciam a urna determinada dasse social) - um papel em que a sua po-
metralmente apostas: por um lado, a maior de todas as realizac;óes era se de-
sic;ao ou prestigio era definido através das realizac;óes espirituais ou intelec-
dicar totalmente ao estudo da Torá; por outro, havia a exigencia
tuais de seus maridos. Um extremo desta maneira de pensar foi a criac;ao
incondicional para que todos se casassem e procriassem. Os palestinos re-
(real ou ideal) da instituic;ao dos monges casados, isto é, estudantes da Torá
solveram esta tensao ao adatar urna prática helenista comum, onde o ho-
que, apesar de casados, passavam anos longe de suas esposas para estudar.
rnero se casava tarde, depois de um longo período dedicado ao estudo da
Já vimos como a oposic;ao a privac;ao sexual imposta as mulheres por esta
"filosofia" - no caso dos judeus, a Torá. Os babilonios, por outro lado, pos-
prática foi registrada dentro dos próprios textos rabínicos. No próximo capí-
suíam um forte modelo cultural em que se acreditava na necessidade de os
tulo, veremos que também havia urna oposic;ao interna a atitude de limitar a
homens terem atividades sexuais depois da puberdade, o que os impedia de
mulher ao papel de parceira sexual e ser reprodutor, por mais que estas fun-
adatar o mesmo sistema. Eles criaram, entao, a "soluc;ao" irnpraticável de os
c;óes fossem consideradas honrosas.
homens se casarem cedo e depois abandonarem as suas esposas por um lon-
go período de tempo para estudar, fazendo com que surgisse urna classe de
"monges casados". A narrativa romantica do casamento de um símbolo hege-
mónico desta cultura, Rabi Akiva, foi escrita a fim de estabelecer urna solu-
c;ao prática para este dilema social. A literatura talmúdica, por outro lado,
também apresenta urna forte oposic;ao (muitas vezes encoberta) a prática
que esta história procura instituiri8 . Estas técnicas literárias de contextac;ao
assumem formas diferentes na literatura de ourros países, incluindo a apro-
priac;ao irónica (Chambers 1991, 117). Apesar de nao podermos saber com
certeza até que ponto a prática dos monges casados foi adotada "na verda-
de", os indicios literários de que dispomos podem ser tomados como um si-
nal do conflito sócio-cultural em tomo da tentativa (pelo menos) de
implementá-la. A análise literária pode funcionar, entao, como um meio de
se expor de forma hipotética a realidade cultural. Depois de urna leitura
atenta (e contextualizada), a superficie do texto revela tensóes e conflitos
nao solucionados dentro da esrrutura social. É o fracasso da narrativa ao
tentar estabelecer urna uniformizac;ao que é mais significativo, e nao 0 seu
sucesso. Nao é preciso ler estas histórias como um reflexo da prática social,
como no velho historicismo, nem como "textos" fechados e autónomos,
como nas diversas táticas formalistas da crítica literáría, mas sim como prá-

48 Eu gostaria de deixar clara a diíeren<;a entre a minha prática interpretativa e as leituras es-
truturalistas deste mito, que também vC!em nesta narrativa urna tentativa de solucionar cer-
tas tensóes existentes na cultura. No estruturalismo, as tensóes estariam no nivel da
esu:utura profunda e o mito é interpretado como urna solu<;lio perfeita; a superficie do texto
ml~co, portanto, nao é relevante. Para um exemplo de uma excelente interpretac;ao estrutu-
rahsta, ver Vernant (1990), que faz uma análise do mito de Prometeu.
6

As Mulheres Estudantes
A Resistencia Interna ao Discurso Masculino

No final da sociedade antiga, os estereótipos que atribuíam cenas virtudes a


um sexo, mas nao ao outro, sem dúvida acabaram se tornando um obstáculo
para a completude humana, principalmente no caso das pessoas que
procuravam as formas de perfeic;ao mais amplas e profundas concebidas por
alguns filósofos, tanto judeus quanto cristiios. Resta, emao, a seguinte
pergunta: foram encontradas maneiras significativas dentro da cultura de se
vencer estes obstáculos?
(Harrison 1992)

Vários autores que estudam a história da religiosidade feminina chegaram a


conclusao perturbadora de que nas formac;óes religiosas ascéticas, as mulhe-
res obtem urna autonomía e um poder que nao parecem possuir em nenhum
outro momento do final da Antigüidade, ou em outros períodos históricos.
Ross Kraemer ( 1989) discutiu este fato em relac;ao aos terapeutas e Clark
( 1986, 180 et passim; ver também McNamara 1976), em relac;ao ao cristia-
nismo latino primitivo. Acreditava-se que a virgindade tornava possível as
mulheres ser "como homens", ou abolir totalmente a disúnc;ao entre os se-
xos. Este era um dos grandes objetivos da abstinencia sexual para as mulhe-
res, assim como a obtenc;ao de outro tipo de liberdade era para os homens
(Harrison l 990b e texto a publicar; Aspegren 1990; Meyer 1985; Castelli
1986 e 1991; Clark 1986; Fiorenza 1983, 90; Warner 1976, 72). Esta ten-
dencia nao se limitava ao cristianismo, pois o mesmo mecanismo estava pre-
sente no caso daquela que talvez seja a única judia pós-bíblica a agir como
urna autoridade religiosa independente, no mesmo nivel dos homens: a fa-
mosa "Donzela de Ludmir", que viveu no século XIX. De fato, assim que ela
se casou, aos quarenta anos de idade, devido a pressao exercida por autori-
dades religiosas do sexo masculino, o seu poder religioso desapareceu -
pois, apesar de seu casamento ser puramente celibatário, tinha revelado que
realmente era uma mulher, e nao um homem no corpo de uma mulher (Rapo-
port-Alpert 1988; David Biale 1991). Há tamb¿m grupos religiosos moder-
nos em que o celibato é um pré-requisito necessário para que as mulheres
180 As Mulheres Estudantes As Mulheres Estlldantes 181

obtenham sua autonomia e a igualdade política. O exemplo mais claro de no monumental The Body and Society: Men, Women and Sexual Renunciation
um grupo deste tipo seria os Shakers (Kitch 1989). O pm;o que as mulheres in Early Chri.stianity (1988, 118 e, principalmente, 145). É mais raro reco-
pagam pela autonomia e o poder é o da sua própria sexualidade, o que pare- nhecer, porém, a presen<;a de vozes dentro do texto que se opóem a esta ex-
ce confirmar as teorias de cenas feministas radicais, segundo as quais a se- clusao. É possível enquadrar estas vozes numa determinada regiao
xualidade (ou, pelo menos, a heterossexualidade) é sempre urna forma de geográfica e num período específico da cultura rabínica; a própria exclusao
dominac;ao. Por outro lado, como eu espero ter demonstrado, o judaísmo ra- possui urna história. Brown demonstra a sua grande habilidade enquanto es-
bínico defendia com tanto afinco a vida conj ugal - incluindo a vida do car- tudioso ao fazer a seguinte observac;ao:
po sexual - que praticamente nao havia como fugir do casamento nesta
cultura. lsso se aplicava tanto aos homens, quanto as mulheres. Urna vez O leitor <leve sempre levar em canta a natureza composta de qualquer
representa<;ao geral do judaísmo, que costuma estar calcada nos Talmudes da
que o casamento parece ter sempre levado a dominac;ao androcentrica, o
Palestina e da Babilonia - ou seja, em obras escritas em periodos e regióes
prec;o do corpo seria a perda da autonomia, principalmente para as mulhe-
bastante diferentes. Estas fontes podem servir para delinear cenos horizontes
res - o que sem dúvida representa um quadro muito sombrio. este capítu-
gerais e enfatizar algumas das op<;óes tomadas por rabis da Palestina e da
lo, estudarei alguns indicios internos da formac;ao rabínica que apontam Babilonia durante o final da Antigüidade; contudo, elas devem ser utilizadas
para a possibilidade de fugir deste dilema implacável1. com um enorme cuidado.
O judaísmo rabínico clássico nega as mulheres o acesso a prática mais (Brown 1988, 35, n. 7)
prestigiada pela cultura: o estudo da Torá 2 . O significado desta exclusao já
foi discutido por muitos estudiosos e, mais recentemente, por Peter Brown, No entamo, é preciso ressalvar que se pode aprender muito mais a respeito
destas questóes através dos textos talmúdicos. Urna leitura cuidadosa e sin-
Para um esfori;o (impressionante) deste tipo, onde se procura encontrar urna brecha no tomática do Talmude e seus textos correlatos pode revelar trac;os de diversas
monolito crist.ao, ver Harrison (1990b e 1991). Harrison afirma que para cenos pensadores linhas ideológicas sobre esta questao vital. Como no caso do casamento de
crist.aos, o ato de transcender os géneros se dava dos dois lados, pois para isso era preciso
que os homens superassem a sua condii;ao masculina e assimilassem caracteristicas femini- Rabi Akiva, estudado no capítulo anterior, o pressuposto básico por trás
nas, e vice-versa. o entamo, a posii;ao mais comum parece ter sido o esquema de Fílon, <leste capítulo é que a energia mobilizada pela cultura para suprimir ou mar-
segundo o qual a perfeii;ao representava vencer o lado feminino, tarefa bem mais árdua ginalizar urna determinada ideologia é um indicador confiável da amear;a
para as mulheres do que para os homens (Genevieve Lloyd 1984, 26-27). De modo geral, o
excelente trabalho de Harrison irá nos ajudar a evitar equai;Oes simplistas que identificam que esta ideologia representa para as as suas práticas hegemónicas (Mache-
a abstinéncia sexual com um desprezo pelo corpo, a sexualidade e as mullieres. Mesmo o rey 1978).
asceticismo mais radical nao t necessariamente o produto de urna ideologia deste tipo. O A minha tese neste caso é que havia urna diferenc;a significativa entre o
fato de horneas e mulheres renunciarem igualmente a sexualidade nestes grupos religiosos
tambem nao pode ser ignorado.
Talmude da Babilonia e o da Palestina no que diz respeito ao direito (ou a
2 Esta formulai;ao já aponta para o paradoxo da minha investigai;ao: a pressuposii;ao de que proibic;ao) de as mulheres estudarem a Torá. Tanto no texto palestino, quan-
o judalsmo é "masculino" e pode negar ou conceder as mulheres algum "privilégio". Quan- to no babilónico, o discurso dominante fechava a Casa de Estudo a voz das
do apresentei este capitulo na Universidade da Califómia, em Berkeley, Naomi Seidman
mulheres. Estes textos, contudo, apresentam cenos indicios de que na Pales-
questionou a importancia histórica deste fato, do ponto de vista da historiografia feminista.
Em suma, a questiio era a seguinte: por que devemos partir do principio de que o estudo da tina era tolerada urna voz discordante, enquamo na Babilonia esta questao
Torá tinha aJguma relev:1ncia para as mulheres? Levando-se em conta o androcentrismo do parecia tao ameac;adora, que até mesmo urna voz minoritária tinha que ser
conteúdo da Torá, supor que as mulheres se sentiriam atraídas pelo seu estudo, que isto completamente silenciada. Porém, é preciso ressaltar que este indicio, por si
era algo em que desejavam ser "admitidas", nao seria reproduzir o mesmo sistema de valo-
res? Plaskow (1990) levanta a mesma quest:1o. Para que urna historiografia feminista tenha só, nao sugere urna única interpretac;ao. A repressao desta voz na Babilonia
algum significado, talvez seja preciso reconstruir modelos completamente diferentes da de- pode ter dois sigrtificados: as mullieres nunca tinham acesso ao estudo da
voi;ao judaica. A questao é complexa e pertinente, mas em vez de tentar respondé-la aquí, Torá, ou entao era comum que elas estudassem a Torá nesta regiao; se a se-
prefiro me limitar a análise que fiz dos textos e discutir a sua impon:1ncia para a prática fe-
minista num outro ensaio (Boyarin 1993). A resposta mais cuna seria que muitas mulheres gunda alternativa é verdadeira, ela sem dúvida teria causado a rea<;ao de pa-
acham essencial manter urna conexao vital com a cultura histórica de seu povo (neste caso, nico evidente no texto. No entanto, o efeito histórico do texto babilónico,
os judeus) e que garantir um lugar onde as feministas (e seus companheiros do sexo mas- que se tornou hegemónico na cultura judaica européia, foi suprimir por
culino) possam dar a esta identidade um sentido positivo nao só é importante, como tam-
bém pode fortalecer este povo.
completo a possibilidade de as mulheres estudarem a' Torá até os tempos
182 As Mu/heres Eswdantes As Mulheres Estudantes 183

modernos. A minha esperanc;:a é que a própria estrutura dialogal e a disper- que tem ciúrnes de sua mulher, pois acredita que ela teve relac;:óes sexuais
sao da autoridade dos textos talmúdicos (ainda que esta autoridade seja ex- com outro. É preciso, entao, realizar urna prova ritual elaborada, onde a mu-
clusivamente masculina) possa nao só nos fornecer indicios a respeito do lher deve beber a água ondeé dissolvido exatamente este trecho da Torá. Se
discurso hegemónico, mas também revelar alguns sintomas da existencia de ela for inocente, nao acontece nada e a mulher é recompensada por Deus. Se
vozes e realidades dissonantes dentro da sociedade que concedam as mulhe- for culpada, porérn, ela terá terríveis problemas físicos (também enviados
res o poder da fala dentro do estu do da Torá. por Deus) ao beber as águas amargas.
Examinaremos tres textos em busca dos sintomas de um discurso oposi- A Mishná, como de costume, descreve em grandes detalhes as condic;:óes
tor na Palestina e de sua repressao na Babilonia. Cada um pertence a um ge- em que o ritual deve ser realizado e os seus efeitos. Logo depois de indicar o
nero literário diferente, mas todos apontam para a mesma direc;:ao. Na que acontece com a mulher depois de beber a água, o texto afirma:
primeira sec;:ao, interpretarei textos haláquicos (ligados a lei ritual) e suas di-
ferentes versóes no Talmude da Palestina e da Babilonia; na segunda sec;:ao, Se tiver mérito, o seu mérito aliviará [o castigo] para ela.
examinarei urna narrativa obviamente ficticia que conta o final trágico de Baseando-se nisso, Ben Azai disse: "O homem deve ensinar a Torá a sua
urna estudiosa que realmente existiu, a legendária Berúria. filha, pois se beber [a água amarga]. ela saberá - pois o mérito alivia".
Rabi Eliézer diz: "Aquele que ensina a Torá a sua filha, ensina-lhe a
lasclvia"3 .
( Mishná Sotá , cap. 3, parag. 4)
HALAKÁ
"O pai deve ensinar a Torá a sua filha"
Os dois Talmudes apresentam interpretac;:óes completamente diferentes para
este texto. De acordo com os palestinos, o mérito que alivia a punic;:ao é o
O primeiro texto ritual é urna passagem na qual, um importante rabino, Ben
Azai, afirma que o pai tema obrigac;:ao religiosa de ensinar a Torá a filha, em mérito de ter estudado a Torá; assim, o pai que deseja proteger a sua filha
oposic;:ao a opiniao hegemónica. Ternos a sorte de ter acesso as respostas ju-
rídico-hermeneuticas que duas culturas bastante próximas deram a este tex- 3 Para maiores indicios de que esta é a leitura correLa, ver Epstein (1964, 536). A palavra que
to, pois ele foi interpretado tanto pelo Talmude da Palestina, quanto pelo da traduzi por "lasclvia" (tijluth) significa, literalmente, "coisas de crian<;a" ou "besteiras",
Babilonia. Ao examinar as diferem;as entre as técnicas que cada urna destas como se pode ver no midrash Bamidbar Rabd 4,20, onde se menciona urna crianc;a que fal a
tijluth durante a orac;ao, a que o pai responde: "O que posso fazer? Ele é urna crianc;a, entao
sub-culturas empregou para lidar com a opiniao de Ben Azai, creio que po- brinca"! No entamo, o termo muitas vezes é empregado como um eufemismo para a
deremos aprender um pouco sobre o grau de ameac;:a que a sua visao repre- lascivia, como se pode perceber no texto a seguir:
sentava para as práticas sociais destas duas culturas judaicas. É preciso
Para trazer diance do rei a rainha Vasti com a coroa real (Est 1.111. Rabi Aibo disse: É a
ressaltar que a declarac;:ao de Ben Azai, como logo veremos, é (na melhor expia<;¡lo de lsrael que quando eles comem, bebem e ficam alegres, abenc;oam e toam
das hipóteses) extremamente ambivalente, do ponto de vista feminista. Nao louvas a Deus; quando as nai;:óes do mundo comem e bebem, elas tratam de questóes de
atribuo as suas palavras, entao, o valor de urna prova. Na minha opiniao, a tijluth: Um diz que as mulheres medas sao belas, e outro diz que as mulheres persas sao
betas. Aquele imbecil (Assuero) lhes disse: "o vaso que eu uso nao é meda, nem persa, e
única prova que ternos de urna diferenc;:a cultural entre a Palestina e a Babi- sim caldeu! Quereis ve-la"? Eles responderam: "Sim, sob a condii;:ao de que eta esteja nua"
lonia é a maneira como os dois Talmudes reagem a afirmac;:ao do rabi. O (Ester Rabd 3,13).
modo como o Talmude da Babilonia procura invalidar este texto é sintomáti-
Neste contexto misógino (que na verdade se opoe ll. misoginia do rei, como se pode ver
co da ameac;:a que até mesmo urna defesa ambigua de um poder maior para
acima), fica claro que tijluth tem o sentido de lascivia; ver também Tanhuma sobre o fxodo
as mulheres representava para esta cultura. A tradic;:ao palestina, por outro 28, onde estll. escrito que "todos os beijos sao tijluth , com a exct<;¡lo do beijo da despedida,
lado, era bem mais otimista em relac;:ao a possibilidade de as mulheres se o beijo da homenagem e o beijo do encontro". Finalmente, o próprio contexco da Mishná
tornarem estudiosas da Torá e do Talmude. corrobora esta interpreLai;:ao, pois ¡\ passagem se segue a afirmac;ao de Rabi Yehoshua de
que a mulher "prefere urna medida de comida com tijluth a nove medidas com abstinencia
Curiosamente, o contexto em que é formulada a declarac;:ao de Ben Azai sexual". i.e., ela prefere um marido pobre, mas cheio de desejo. Aliás. o contexto em que
é urna discussao na Mishná a respeito da prova da "mulher infiel". O texto Rabi Yehoshua usa este termo indica que ele nao está sendo empregado de forma
bíblico está em Números 5,11-31. Esta passagem trata do caso do homem pejorativa. mas é preciso estudar este ponto com maior cuidado. Ver também Epstein
( 1964. 670).
184 As Mullieres Estudantes
As Mulheres Estudantes 185

deve ensinar-lhe a Torá. O Talmude da Babilonia, por outro lado, apesar de "Convoca o povo, os homens, as mulheres e as crian~as [Dt 31,12)".
nao interpretar diretamente a afirmai;:ao de Ben Azai, dá a entender que, se- "E o que ele disse sobre isso"?
gundo ele, o pai <leve ensinar a filha apenas o fato específico de que o méri- 'Já que os homens vem estudar e as mulheres para ouvir, para que vem as
to alivia-+. Em nenhum momento se explica por que este ensinamento seria crian<;as? Para servir de recompensa aqueles que as carregam".
importante e por que Ben Azai descreveria a transmissao de um conheci- Disse R. Yehushua: "A gera<;ao que possui R. El'azar Ben Azariá nao está
mento tao limitado como "ensinar a Torá". Além disso , de acordo com esta órfa"?
interpret~~ao, o mérito que alivia nao é o mérito de saber a Torá , mas algum
outro mento completamente diferente. Segundo a interpretai;:ao palestina, A declarac;ao de Ben Azai é questionada ao se mostrar que urna opiniao con-
~or outr~ lado, o. conhecimento que a filha <leve ter da Torá nao se restringe trária fora expressa. R. El'azar Ben Azariá afirma que a única razao pela qua!
as questoes relac10nadas ao ritual da mulher infiel e é o próprio mérito de as mulheres erarn obrigadas a comparecer a grande convocai;:ao para a leitu-
ter estudado a Torá que se encontra a seu favor. Esta visao acabaría levando ra da Torá, que ocorria de sete em sete anos, era para ouvir a leitura, e nao
a urna prática em que as mullieres estudariam a Torá tanto quanto os ho- para estudá-la, ao contrário de seus maridos. Fica claro, entao, que a sua
rneas, pois numa situai;:ao em que é necessário ter mérito, quanto mais, me- opiniao se opunha á de Ben Azai, nao atribuindo nenhum mérito á mulher
lhor. J á que o discurso rabínico tinha um enorme poder normativo na por estudar a Torá. A partir daí, deduzo que, para o Talmude da Palestina,
cultura judaica, esta interpretai;:ao traria conseqüencias radicais para a situa- Ben Azai de fato dizia que o mérito que protegería a esposa seria justamente
i;:ao_ das m~~eres numa sociedade em que o estudo da Torá era a prática o mérito de estudar a Torá. Isto se enquadra na teología rabínica mais geral,
ma1s prestigrnda. Ela leva a urna maneira de encarar os sexos onde 0 papel segundo a qua! os pecadores eram protegidos de sua punii;:ao caso tivessem
do homem e da mulher na vida simbólica nao é dividido de forma tao nítida estudado bastante a Torá.
quanto nas sociedades tradicionais da Ásia ocidental, incluindo 0 judaísmo. A jogada dialética de citar urna opiniao contrária, tao "normal" no Tal-
mude, serve de base á minha conclusao de que, para o Talmude da Palesti-
A interpretai;:ao palestina de Ben Azai O Talmude da Palestina comenta na, a possibilidade de as mulheres estudarem a Torá, ainda que incomum,
exp_lic_itame~t~ a afirmai;:ao de Ben Azai. O seu ponto de vista é que, para 0 nao estava completamente fora de questao; ao questioná-la desta maneira, o
rabi, e o mento de estudar a Torá que defenderá a mulher, caso ela tenha Talmude da Palestina aceita a afirmac;ao de Ben Azai no universo de seu dis-
que passar pelo teste de fidelidade. Cheguei a esta conclusao ao observar curso. Como veremos mais adiante, o Talmude da Babilonia oferece urna
como o Talmude contradiz a posii;:ao de Ben Azai: grande resistencia a esta estratégia5 . Mais um sinal de que o Talmude da Pa-
lestina considera normal a posii;:ao de Ben Azai é o fato de que, na passagem
Talmude da Palestina: a opiniao de R. El'azar Ben Azariá contradiz Ben Azai paralela da Mishná que cita R. El'azar Ben Azariá, o Talmude observa casual-
pois nos fo¡ ensinado que houve urna ocasiao em que R. Yohanan ben Brok~ e mente que Ben Azai nao concorda com ele, num paralelismo perfeito ao tex-
R. El'azar Hismá es1avam a caminho dejavne para Lida, e foram visitar R. to em que Ben Azariá nao concorda com Ben Azai (Talmude da Palestina ad
Yehoshua em Peki'in. Ele lhes perguntou: Qual fo¡ a inovar;ao na Casa de Hagigá 1,1). Pode-se perceber, entao, que apesar de o Talmude da Palestina
Es1udo hoje? Eles responderam: "Somos teus disclpulos e bebemos de tua
nao atribuir um caráter normativo a posic;ao de Ben Azai, ele nao a conside-
água". Ele lhes disse: "Mesmo assim, nao é posslvel que nada de novo tenha
sido dito na Casa de Estudo. Quem discursou hoje"?
"R. El'azar Ben Azariá". 5 Cí. Simha Friedman (1983), cuja interprela<;ao é exalameme o oposlo da minha, ou seja, o
"E qual foi o seu texto"? Talmude da Palestina apresemaria urna rejeii;ao extrema a Ben Azai, pois cila urna autori-
dade que lhe é contrária. De fato , o Talmude da Palestina narra urna história que mostra
como R. Eliézer era misógino, mas isso nao significa que estivesse apoiando a sua posi<;ao,
pois nesla hislória até mesmo seu filho fica chocado com seu componamento (assim como
4 t ~reciso ad"'.itir, com lod~ a honestidade, que es1a é a tradui;ao mais simples para 0
texto,
lma Shalom ficara chocada com a sua prática sexual - ver acima) e R. Eliézer é encarado
po1s ele tambem pode ser hdo da seguinte mane.ira: "ela saberá que 0 mérilo alivia". No en-
como urna personalidade he1erodoxa e radical. Por este motivo, ao citar repetidas vczcs
tamo, ~orno afirmo no corpo desle capitulo, esta interpretac;ao toma a declara<;ao pratica-
esla figura, Brown ( 1988, 118 e 145) nao consegue fazer urna descric;ao adequada da cultu-
mente mco~ente. O hebraico empregado nesla passagem pode perfeitamente ser entendido
ra rablnica como um lodo. O anigo de Friedman é imponame por documentar as aulorida-
como na mmha lraduc;ao - os palestinos, aliás, parecem ter-lhe dado a mesma interpreta-
<;ao. des rablnicas medievais e modernas que deram pareceres favoráveis a prática de se ensin:ir
a Torá as mulheres.
186 As Mulheres Estudantes As Mulheres Estudantes 187

rava chocante a ponto de tentar suprimí-la. De fato, se o Talmude da Palesti- protege por urna hora [i.e., no momento em que está sendo cumprido}.
na fosse a única fome normativa disponível, nao seria inconcebível que a Porém, assim como a luz protege para sempre, a Torá protege para sempre.
opiniao de Ben Azai viesse a ser adotada. ao se pode esquecer que, de ( ...)
Ravina disse: É o mérito da Torá, e quanto ao fato de dizeres que ela nao
acordo com o próprio Talmude, a Mishná cita opinióes rejeitadas ou mino1i-
é obrigada a fazer isso - de fato ela nao é obrigada, mas pelo mérito de levar
tárias justamente para preservá-las, de modo que elas estejam a disposic;ao
os filhos para estudar a Torá e a Mishná, e de esperar que o marido volte da
de futuras autoridades que desejem resgatá-las. A posic;ao de Ben Azai apa- casa de estudo [ela é protegida]7.
rentemente fo¡ rejeitada (ou pelo menos questionada) através da citac;ao de
urna autoridade que possuía urna opiniao aposta; no entamo, ela recebe O Talmude estabelece explícitamente a sua hierarquía de valores. Apesar de
urna interpretac;ao direta: o pai <leve ensinar a Torá a sua filha , pois o mérito 0 estudo da Torá ser considerado a at;ividade mais prestigiada na cultura
que ela obtém ao estudar poderá lhe servir de defesa. dos rabís, o Talmude da Babilonia se re~usa a acreditar que a Mishná possa
afirmar que o mérito de ter estudado protegerá a esposa no momento do jul-
A Interpreta~do Babilónica de Ben Azai Esta manobra dialética também es- gamento - rejeitando, como já vimos, urna conclusao que se enquadraria
tava a disposir;ao dos rabís babilónicos, que adotaram este estilo em vários perfeitamente na opiniao geral de que a Torá pode proteger os pecadores
outros casos. No entamo, a estratégia escolhida pelo Talmude da Babilonia (como o próprio texto observa). Se os rabís nao tivessem evitado o caminho
para rejeitar Ben Azai é bem mais radical, pois nao permite nem mesmo que mais simples, a via tortuosa para encontrar o mérito que alivia a pena teria
o significado de sua afirmac;ao permanec;a inalterado, ainda que na condir;ao sido evitada. Como conseqüencia, o Talmude é abrigado a substituir o méri-
de urna opiniao minoritária rejeitada. Assim, o Talmude da Babilonia apaga to da própria mulher que es tuda a T orá pelo mérito de dar apoio ao marido
por completo a sua voz.
e aos filhos enquanto eles estudam8 .
O Talmude parte de urna discussao a respeito do mérito que aliviaria o Urna das conseqüencias da abordagem adotada pelo Talmude da Babilo-
castigo da mulher - sem, contudo, se referir diretamente a Ben Azai, apesar nia é tornar quase incompreensível a afinnac;ao de Ben Azai de que o ho-
de procurar responder a afirmac;ao inicial de que o mérito alivia. o entan- mem deve ensinar a Torá a sua filha, para ajudá-la caso tenha que passar
to, a possibilidade de que este mérito seja o estudo da Torá é descartado pelo teste de fidelidade. Quando, ao interpretar a Mishná, o Talmude final-
lago de saída:

Mishná: Se tiver mérito, o seu mérito aliviará [o castigo] para ela. 7 Para ourra interpreta<;ao da última frase, ver mais adiante. É este tipo de texto que dá
Ta/mude: Que ti po de mérito? Talvez diríamos, o mérito do estudo da fundamentos a afirmai;ao de Judith Plaskow: "a mulher é objeto da leí, e nao sua cnadora
Torá, mas nao há nenhum mandamento que a obrigue a fazer isso 6 ! Entao só ou age nte. As h.alahot a respeito da esfera religiosa partem de urna visa.o de mundo em que
as mulheres sao simples 'facilitadores'. As mulheres criam as condi<;óes básicas para que os
pode ser o mérito de [cumprir] os mandamentos. O mérito dos mandamentos
homens e as crian<;as do sexo masculino possam louvar e estudar a Torá, mas nilo podem
nao pode proteger ninguém a tal ponto, pois nos fo¡ ensinado: uAssim Rabi se dedicar a estas atividades sem desempenhar o seu papel relacional com menos
Menahem, íilho de Yossi, explicou: Pois o mandamento é uma vela e a Torá é a eHciéncia" (Plaskow 1990, 63).
luz [Pr 6,23)". A escritura comparou o mandamento a urna vela e a Torá a luz 8 É preciso ressaltar que o Talmude da Babilonia nunca chega a discuti r direta ment~ a posi-
para dizer que, assim como a vela só protege por urna hora, o mandamento s~ <;áo de Ben Azai. Esta é urna das grandes premissas do meu argumento .. Pod~-se d1zer'. ~n­
tilo, que primeiro os rabis chegaram á condusao de que, para Ben Azat, hav1a um. mento
nas mulheres estudarem a Torá, para depois rejeitarem esta opiniao; assim, o úmco ele-
6 O que nao signmca que ela é proíbida de escudar a Torá. Até onde eu sei , nem mesmo 0 mento da Mishná em que estaría calcada a interpreta<;ao de que as mulheres nao tém méri-
Talmude da Babilonia afirma que as mulheres nilo podem escudar a Torá. Na verdade, mdo to ao escudar a Torá é a posic;áo normativa (do primeiro falante), segundo a qua] "o mérito
indica que esta proibii;ao tenha surgido na ldade Média, através de urna leirura que de u á alivia". No entanto, ao discutir a formula<;i!o do primeiro falante , o Talmude rejeita a possi-
aíirmac;ao de Rabi Eliézer um caráter normativo em termos haláquic:os, consistente com 0 bilidade interpretativa de que é o mérito da Torá que protege a mulher, contribuindo, as-
desenvolvimemo diacrónico da ideología sobre os generos (ver capítulo 3 e a continuac;ao sim, para que a voz dissidente de Ben Azai seja totalmente suprimida. Portanto, mesmo que
deste capítulo). Da mesma manei ra, a cita<;ilo do midrash que aparece tamo no Talmude da se queira afirmar que ao interpretar a declara<;ao do primeiro falante.' o Talmu?e nao esta-
Babilonia, quanto no da Palestina, e onde se e..xige que "Ensinarás a teus filhos - a teus rla fazendo nenhuma afirmac;ao a respeito das palavras de Ben Aza1, o própno fato de a
filhos, e nao cuas filhas", significa apenas que o pai nao é obrigado a easinar a suas filhas. oposi<;ao de Ben Azai ter sido silenciada já equivale a um juizo deste tipo. O Talmude igno-
mas nilo que isto seja proibido (ver Talmude da Babilonia Kidushin 29b e Talmude da ra a opiniao de Ben Azai ou procura assimilá-la a sua própria interpreta<;ilo: de qualquer
Palestina Berak/1ot 2,3; 3,3 e Eruvin 10,1). maneira, a voz deste rabi acaba sendo anulada.
188 As Mulheres Estudantes As Mulheres Estudantes 189

mente chega a declarac;:ao de Ben Azai, ele nao tem nenhum comentário a fa- No entamo, é importante observar que mesmo que o Talrnude lesse a
zer a seu respeito e simplesmente a deixa de lado. O Talmude cita toda a afirmac;:ao de Ben Azai de acordo com a interpretac;:ao que propus aqui, os
passagem da Mishná como um tema para a interpretac;:ao: rabis talmúdicos nao seriam abrigados a adatar este ponto de vista. Eles
também tinham acesso a opiniao de R. Eliézer e, além disso, havia outros
Mishná: Ben Azai disse: "O hornero deve ensinar a Torá a filha, pois se beber textos que poderiam corroborar esta posic;:ao contrária. A estratégia de inter-
[a água amarga], ela saberá - pois o mérito alivia". pretar urna determinada passagem, para depois rejeitar a sua autoridade
Rabi Eliézer diz: "Aquel e que ensina a T orá a sua filha , ensina-lhe a dentro da lei religiosa, também é muito comum nos Talmudes (como já vi-
lascívia" mos no texto paralelo do Talmude da Palestina). Contudo, a tática babilóni-
ca de interpretar o mérito que a Torá dá as mulheres como o mérito de
O Talrnude da Babilonia cita as duas opinióes registradas na Mishná, mas apoiarem o estudo dos homens, ignorando por completo a afirmac;:ao de Ben
nao faz nenhum comentário a respeito de Ben Azai, indo direto para a inter- Azai, fez com que a opiniao <leste rabi fosse quase esquecida. Tuda leva a
pretac;:ao das palavras de Rabi Eliézer, segundo o qual aquele que ensina a crer, portanto, que o texto babilónico fazia um esforc;:o bem maior para sim-
sua filha, ensina apenas a indecencia sexual: plesmente eliminar a possibilidade de as mulheres serem consideradas can-
didatas ao estudo da Torá.
Talmude: Ele realmente se refere a lascívia?! Nao, [ele disse que] é como se ele Pode-se perceber um motivo para isso na maneira como o Talmude da
lhe ensinasse a lascívia. Babilonia interpreta a opiniao de Rabi Eliézer citada na Mishná. A interpreta-
c;:ao que o Talmude da Palestina dá a afirmac;:ao de Ben Azai - o mérito que
Retomarei a interpretac;:ao que o Talmude dá a posic;:ao de R. Eliézer mais protege é o mérito de estu dar a Torá - dá urna cena lógica a declarac;:ao
tarde, mas o que me interessa por enquanto é a maneira como ele lida com aparentemente paradoxal de Rabi Eliézer, segundo o qual o estudo da Torá
Ben Azai. As duas opinióes apostas sao citadas como um texto a ser inter- leva as mulheres a imoralidade sexual. De acordo com esta interpretac;:ao, ele
pretado, mas o discurso interpretativo do Talrnude rnarginaliza Ben Azai, concorda que há um mérito nas mulheres estudarem a Torá, mas na sua opi-
sirnplesrnente ignorando a sua afinnac;:ao e passando imediatamente para a niao isto teria urna conseqüencia negativa, pois protegería as mulheres dos
discussao da sentenc;:a de R. Eliézer. A pesquisa moderna reproduz o gesto efeitos de beber a água do teste. Em outras palavras, Ben Azai e Rabi Eliézer
do Talmude, quando, por exemplo, Brown "apaga" a opiniao de Ben Azai: discordam a respeito daquilo que deve ser protegido nesta situac;:ao: Ben
Azai obviamente dá urna importancia primordial ao amparo da filha, en-
a memória do judaísmo, os rabis declaravam que n ao havia lugar para as
quanto Rabi Eliézer está mais preocupado em defender a integridade do tes-
mulheres na atmosfera de concentrai;;ao e intimidade em que os homens
te <litado pela Torá. Se a mulher sabe que a Torá protege e adquiriu o
estudavam a Lei: ensinar a Torá a sua filha equivalía a ensinar-lhe a
conhecirnento necessário para garantir esta protec;:ao, entao a tentac;:ao de
imoralidade.
(Brown 1988, 118) cair na licenciosidade fica mais forte, pois ela nao precisa mais ter medo de
10
que o seu pecado seja descoberto e punido pela prava da água . Segundo
A primeira assertiva está carreta em termos gerais, mas a segunda só se apli-
ca a urna determinada corrente dentro da cultura - que, apesar de hegemó- excec;ao deste fato , o seu arúgo é bastante útil. Há pouco tempo, apresentei este material a
um grupo bem informado de judías ortodoxas em Israel, que náo conseguiam acreditar que
nica, era questionada por urn discurso interno de oposic;:ao. O estudioso eu estava citando a Mishná corretamente. Para elas, era inconceblvel que urna autoridade
contemporaneo, ao invés de criticar a ideologia imposta pelo nível superfi- rablnica declarasse que o pai devia ensinar a Torá á sua filha. Tinham certeza de que o tex-
cial do texto, acaba por reiterá-la inadvertidamente, cooperando corn o esfor- to correto dizia que o pai nao devia ensinar a Torá a filha. Esta pequena anedota mosu a
c;:o do editor babilónico para silenciar a voz de Ben Azai9 . como a opiniao contrária foi sistematicamente apagada da consciéncia do judaismo moder-
no.
10 Esta interpretac;áo da opiniiio de R. Eliézer é aceita por R. Israel Danzing. Além disso, ela se
9 Eu gostaria de chamar atenc;ao para a modéslia de Brown ao falar do j udaísmo e de seu adequa a opiniao de outro Rabi, R. Shim'on, segundo o qual é impossivel argumentar que o
convite aos especialistas para corrigirem suas afumac;Oes sobre este assunto. Um u abalho mérito alivia, pois isso destruiría a validade do teste de castidade. De acordo coro esta no-
que, na minha opiniao, reproduz de forma acriúca a ideologia dominante dos textos, sem c;ao, Ben Azai simplesmente estaría mais preocupado com o destino da mulher do que com
examinar os discursos de oposil;iio que se enconrram em seu bojo, é Archer (1983). Coma a infalibilidade do teste. O fato de Ben Azai ser o celibatário por exceléncia da cultura rabi-
As Mulheres Esrudances 191
190 As Mullieres Estudantes

cessário, eram eles que declaravam a pureza ou a impureza de urna determi-


esta interpretac;.ao, R. Eliézer é urna anótese direta e lógica de Ben Azai. Por
nada mulher. Até mesmo este poder estava em suas maos. Para urna repre-
outro lado, o Talmude da Babilonia, depois de ter rejeitado a noc;ao de que
sentac;ao explícita (e atormentada) de como funcionava este poder, ver a
as mulheres obtem algum mérito através do estudo da Torá, precisa encon-
história de Rabi Shim'on ben El'azar narrada no próximo capítulo. O fato da
trar outra explicar;ao para a afirmac;ao de Rabi Eliézer de que o estudo leva
tradic;ao palestina ao menos admitir a possibilidade de que este poder per-
ao pecado sexual:
manecesse nas maos das mulheres seria urna explicac;ao plausível (ou pelo
menos parcial) para os esforc;os do Talmude da Babilonia de negar esta pos-
Disse R. Abahu : Qua! é o motivo da afirmai;ao de R. Eliézer? Como está
sibilidade.
escrito, Sou a Sabedoria, vivía com a malicia [e o conhecimemo encontrará
intrigas] 11 [Pr 8,12). Assim que a sabedoria entra no hornero[!], com ela vem a É preciso lembrar que nao há urna única maneira de explicar as diferen-
malicia. c;as entre o Talmude da Palestina e o da Babilonia. Os Talmudes foram com-
postos por vários autores e é possível que urna determinada passagem nao
Assim, a interpretac;ao que o Talmude da Babilónia 12 dá as palavras de R. fac;a mais do que reproduzir a prática ou a teoria social dos redatores <leste
Eliézer coloca a Torá como causa direta da lascívia nas mulheres. Repare trecho em particular. Além disso, mesmo ao encontrarmos divergencias con-
que este tipo de raciocinio também é muito comum em outras culturas. Mui- sistentes entre os dois Talmudes, nao podemos partir do principio de que
tas vezes, quando as mulheres assumem publicamente urna atividade inte- elas estariam calcadas em diferenc;as geoculturais, pois o Talmude da Babilo-
lectual ou política dentro da cultura patriarcal, elas sao acusadas de terem nia apresema urna grande quantidade de material que pode ter sido escrito
um comportamento sexual licencioso Qones 1990, 786). Proponho que esta séculos depois do Talmude da Palestina. De fato, o consenso entre os acadé-
estratégia cultural seja um meio de impedir que o capital intelectual dos ho- micos hoje em dia é que o material discutido aqui (comentários anónimos
mens - e, conseqüentemente, o seu poder - seja apropriado pelas mulhe- sobre a Mishná) provavelmente é oriundo de estratos mais recentes do Tal-
res, além de indicar urna verdadeira ansiedade por parte dos homens para mude da Babilonia, ou até mesmo de um estrato acrescentado depois do pe-
controlar a sexualidade de "suas" mulheres e garantir que ela esteja sempre ríodo rabínico, entre os séculos Vl e VU1 13 . Além disso, como já vimos no
a sua disposic;ao. Como um único exemplo de como este mecanismo funcio- capítulo 3, aparentemente houve um desenvolvimento cronológico dentro
na, basta lembrar que ao assumir o monopólio do estudo da Torá, os ho- do judaísmo rabínico em direc;ao a urna essencializac;ao da mulher e um
mens passam a ter controle sobre a separac;ao menstrual, o que lhes dá um medo crescente de sua sexualidade no inicio da ldade Média. As divergen-
enorme poder para dispor da sexualidade da mulher e de sua capacidade de cias entre o texto da Palestina e o da Babilonia, entao, podem estar relacio-
reproduc;ao. Explicarei este ponto com maiores detalhes. Mesmo admitindo nadas a diferenc;as cronológicas, tanto quanto geográficas. É possível que
a existencia de urna prática ritual de separac;ao sexual durante a menstrua- urna pesquisa mais aprofundada pudesse esclarecer melhor esta questao;
c;ao, isso nao aponta necessariamente (ou apenas) para um exercício do po- por enquanto, porém, ela <leve ficar em aberto. De qualquer maneira, como
der masculino sobre as mulheres. Teoricamente, esta prática poderia veremos na próxima sec;ao, a interpretac;ao que aponta para a existencia de
funcionar como um espac;o de autonomía feminina, ou até mesmo de poder diferenc;as entre os dois textos (qualquer que seja a sua origem) se encaixa a
das mtdheres sobre os homens. Dentro da comunidade rabínica, porém, outras indicac;óes dentro do Talmude da Babilonia de que esta comunidade
urna vez que os homens eram os únicos que detinham o conhecimento ne- considerava a idéia das mulheres estudarem a Torá, mais do que urna possi-
bilidade incomum, um verdadeiro anátema.

~ica e de _
s er o defensor mais fervoroso do casamento (ver o capitulo anterior), torna a sua
1magem amda mais complexa. Parturientes e Mulheres Menstruadas Podem Estudar a Torá
11 A. palavra do .t~to blblico trad~ida por "intrigas", mqimot, costuma ser empregada no
discur~o talmud1co para se refenr a cransgressao sexual. Creio que esta associac;ao esteja
por tras do fato de R. Abahu citar este versículo num contex10 em que se discute a A Tosefta, um grande texto palestino sobre a leí ritual (escrito pouco depois
licenciosidade sexual.
12 P~rad~xalmente, R Abahu é palestino. No entamo. isso nao impona aqui, pois o que estou
d 15cunndo sao as posic;óes ideológicas adotadas pelos editores dos dois Ta1mudes. Esta 13 David Kraemer (1990) apresenta urna boa incroduc;ao para a história literária do Talmude.
opiniao fo¡ preservada e transmitida na Babilónia, enquanto na Palestina ela foi ignorada.
192 As Mulheres Estudantes As Mullieres Es111da111es 193

da Mishná), apresenta fortes indicios que corroboram a teoria de que havia diam estudar a Torá na Palestina. lsso é mais urna prava de que a idéia de
urna diferenc;a fundamental entre a Palestina e a Babilonia no que diz respei- as mulheres estudarem a Torá nao era inaceitável nessa regiao. a verdade,
to a possibilidade de as mulheres estudarem a Torá. A Tosefta declara expli- a casualidade com que a Tosefta revela que as mullieres estudavam a Torá e
citamente que "pessoas com gonorréia, mullieres menstruadas e parturientes com que o Talmude da Palestina menciona esta atividade (quase de passa-
podem ler a Torá, estu dar a Mishná, o midrash, a lei religiosa e a agadá, mas gem, por assim dizer) já é um sinal de que esta era urna possibilidade aceita
os homens que úveram urna ernissao seminal estao proibidos" (Tosefta Be- nesta regiao. Um dos principios que aprendi com meu mestre, Saul Lieber-
rakhot, cap. 2, parag. 12). R. Eliezer Waldenberg, urna importante autorida- man, o maior estudioso crítico do Talmude do nosso século, é que os pres-
de rabínica ainda viva, observa que este texto aceita como óbvio o fato de as supostos de urna afirmac;ao talmúdica sao um indicador mais confiável da
mulheres poderem estudar todos estes ramos da Torá, discutindo apenas a realidade social do que o seu conteúdo explícito. Neste caso, ao declarar que
possibilidade de elas fazerem isso em cenas condic;oes fisiológicas (Walden- as mulheres menstruadas e as parturientes podem estudar a Torá, a Tosefta e
berg, cap. 3). Waldenberg levanta a questao de como a lei religiosa posterior o Talmude da Palestina partem tacitamente do principio de que as mullieres
proibiu que as mullieres estudassem a Torá; a sua resposta é que esta fonte de fato estudavam. Eles fomecem , assim, um indicio mareante de que o es-
palesúna adota a opiniao de Ben Azai, enquanto o Talmude da Babilonia se- tudo da T orá, pelo menos ocasionalmente, estava aberto as mulheres daque-
gue o pressuposto de R. Eliézer (e, é claro, foi o Talmude da Babilonia que la época e lugar. No Talmude da Babilonia, por outro lado, qualquer voz
passou a ter um caráter normaúvo para o judaísmo posterior). que discordasse da proibic;áo de as mulheres estudarem a Torá era sirnples-
De fato, há indícios quase explícitos de que o Talmude da Babilonia dis- mente eliminada do texto. Depois de estabelecer este contexto, podemos co-
cordava dos palestinos nesta questao. O Talmude da Palestina (Shabat 3,4) mec;ar a estudar a lenda de Berúria, a sábia estudiosa da Torá, como parte
cita esta passagem da Tosefta na sua forma original. No Talmude da Babilo- de urna prática cultural e de um desenvolvimento histórico significativos.
nia, por outro lado, está escrito: "Pessoas com gonorréia, leprosos e aqueles
que tiveram rela(óes com mulheres menstruadas podem estudar a Torá, mas
homens que tiveram urna emissao seminal estao proibidos" (Talmude da Ba- A LE DA DE BERÚRIA
bilonia Berakhot 22a). A fonte palestina foi simplesmente reescrita nesta pas-
sagem do Talmude da Babiléinia11 : "Urna vez que o [Talmude da Babilonia) Se acreditannos na possibilidade de que as mullieres de Atenas possuíam
adota a opiniao de R. Eliézer de que é proibido as mulheres estudar a Torá, algum tipo de poder informal, também deve ficar claro que os homens únham
descartando a posic;ao de Ben Azai, ele omiúu as mullieres menstruadas da a necessidade social de nao reconhecé-lo - de lidar com ele apenas de forma
lei, que passa a incluir apenas os homens" (Waldenberg). ao há pratica- indireta, através de milos como o das amazonas e das fantasias culturais
mente a menor dúvida de que Waldenberg está correto, pelo único motivo sobre mullieres rebeldes na tragédia e na comédia.
(Winkler 1989, 7)
de que a versao babilónica <leste texto é incoerente e contraditória: aqueles
que tiveram relac;oes também tiveram urna emissao seminal; o texto, entao,
O status intelectual de Berúria já foi citado várias vezes por comemários
acaba dizendo que eles podem e, ao mesmo tempo, nao podem estudar a
apologéticos que procuravam minimizar a misoginia rabinica. Porém, parto
Torá 15 . A emenda da baraita, que o Talmude da Babilonia adota mesmo do principio de que a cultura rablnica era profundamente machista, ou até
caindo em contradic;ao, é um sinal da enorme preocupac;ao que a possibili- mesmo misógina. Os textos sobre Beruriah e o modo como apresentam a
dade de as mulheres (menstruadas!) estudarem a Torá despertava nos auto- figura da mulher devem ser entendidos como urna fonna de atenuar esta
res do Talmude. misoginia, que nao era urna tendéncia monolítica, mas variada. Em algumas
Como veremos mais adiante, este mesmo texto - a Tosefta - cita urna áreas, ela era mais severa e em outras, menos. Em cada periodo havia sempre
mullier como urna autoridade em leí religiosa. As mullieres menstruadas po- alguns dissidentes e anticonfom1istas: rabinos qtte ensinavam a Torá ds suas
esposas e filhas, esposas e filhas que naturalmente desejavam exibir seu
conhecimento para outras mulheres. O maLerial a respeito de Beruriah, criado
14 Digo explícitamente "Talmude da Babilonia", ao invés de "Babilonia", para nll.o descartar a
possibilidade de que esta modificat;ll.o tenha ocorrido na Babilonia algum tempo depois de
ao longo de mil anos, representa um discurso sobre os sexos cuja existéncia
o texto ter chegado a esta regill.o. aponta para a possibilidade de imaginar as mulheres de maneiras inesperadas.
15 Comparar com Lieberrnan, Toseflll Ki-fshuta, ad loe. (Davis 1991; o grifo é meu)
194 As Mulheres Est11da11tes As Mullieres Estudantes 195

o conjunto da literatura talmúdica e midráshica há diversas narrativas so- O Talmude da Babilonia também narra a lenda de Berúria, a mulher cul-
bre urna mulher extremamente culta, que costuma ser chamada de Berúria e ta. De acordo com o texto, ela conseguru aprender "trezentas leis rituais de
é apresentada como a esposa de um dos maiores sábios tanaíticos, Rabi
trezentos rabinos em um d ia" (Pesahím 62b). Além disso, ela chega a dar
Meir. Nesta sec;ao, procurarei ler este complexo narrativo como urna "fanta- urna lic;ao de moral em seu marido, o grande Rabi Meir, ao superá-lo na in-
sía cultural", de acordo coma definic;ao de Winkler - isto é, como um reco- terpretac;ao midráshica de mp versículo:
nhecimento/ negac;ao de pelo menos um acesso parcial das mullieres ao
estudo da Torá. Apesar de nao poderrnos saber com certeza se esta mullier Havia dois arruaceiros na vizinham;a de Rabi Meir que o incomodavam
realmente existiu, as histórias a seu respeito sem dúvida sao muito significa- profundamente. Ele rezava para que os dois morressem. A sua mulher,
tivas, pois transmitem alguns dados "reais" sobre a cultura dos Talmudes. Berúria, !he disse: "Qua! é a sua opiniao? É porque está escrito: 'Que os
O texto palestino da leí ritual, a Tosefta, o mesmo texto onde se afirma peiversos sejam eliminados da terra' (SI 104,35)? O texto diz 'pessoas
que as mullieres podem estudar a Torá, cita dais exemplos de mulheres cul- peiversas'? O que está escrito é 'atos perversos'! Além disso, interpreta de
tas que dao pareceres aceitas e sancionados pelos rabís a respeito da pureza acordo com o final do versículo: 'que nao existam mais aqueles que fazem o
ritual. O primeiro caso envolve urna filha anónima de R. Hanina: mal'. Se a primeira parte significa que os perversos estao monos, entao
porque tenho que rezar para que nao haja mais pessoas que fai;am o mal? Na
Um forno ( ... ) que recebeu seu reboco com pureza, mas depois se tornou verdade, isto significa que quando nao houver mais atos perversos, aqueles
impuro - como ele pode ser purificado? R. Halafta de Kefar Hananya disse: que fazem o mal deixarao de existir". Ele rezou pelos dois e eles se
"Perguntei a Shim'on ben Hanania, que perguntou ao filho de R. Hanania ben arrependeram.
Tradion, e ele disse que isso se dá quando o forno é tirado do lugar. Mas a (Beraklwt lOa)
sua filha disse que é quando o desmontam. Quando contaram isso a R. Yehuda
ben Baba, ele disse: "a filha falou mellwr do que o filho ". Diante do contexto extremamente positivo em que Berúria e seu conheci-
(Tosefta Kelim Baba Kama 4,17)

A outra história citada pelo texto fala de Berúria:


ao primeiro argumento, estou disposto a concordar que a sua afirma<;ao é plausível , mas
discordo quanto ao segundo. Estas situa<;óes rituais nao sao comuns a ponto de serem co-
Um ferrolho - R. Tarfon o declara impuro, mas os sábios declaram que ele é
nhecidas por qualqucr rnembro de urna familia rablnica - na verdade, os dois casos (prin-
puro. E Berúria diz: ele é removido de urna porta e pendurado em outra. Estas cipalmente o prirneiro) sao apresentados como situac;óes extraordinárias. Além d isso, a
coisas sao repetidas para R. Yehoshua no Sabá. Ele disse : "Berúria falou bem". primeira narrativa apresenta argumentos internos que podem invalidar a afirma<;ao de
(Tosefta Kelim Baba Met.zia 1,6 ) Goodblatt. Se a filha estava apenas relatando a prálica de sua familia, por que o seu irmao
tinha urna sugestao diferente? É possivel, é claro, que a fílha nao tivesse obtido o seu co-
nhecimento através de uma instru<;ao formal, mas apenas por ter assistido aulas ou discus-
Estes textos, ainda que tenham outros significados, sao indiscutivelmente sóes conduzidas pelo seu pai em casa. Jsso já seria o bastante para abrir caminho para urna
representac;óes de urna mullier culta. Isto é, eles reconhecem a possibilidade oposi<;ao ao discurso que exclui as mulheres do escudo. Alérn do mais, trata-se de urna pos·
estrutural dentro d esta cultura de urna mullier atingir um profundo conheci- sibilidadc completamente diferente da sugestao de Goodblau de que a opini ao da filha re·
íletiria apenas o seu conhecimento prático da cozinha, o que creio ser improvável, pelas
mento da Torá, a ponto de ser citada numa questao importante da prática ri- razoes apontadas acima. Há ainda urna versao deste texto (que. aliás, é muito importante
tual. Assim, eles podem ser entendidos como parte da mesma forc;a social - R. Yehuda ben Kalonimos), onde ela supera o seu proprio p ai; esta versao, ponanto, in·
representada por Ben Azai e a Tosefta citada na sec;ao anterior: urna voz anti- validaría o argumento de Goodblau de que a mo<;a teria obtido este conhecimemo ao ob-
servar a prática de sua casa. A historia sugere que nos dois casos, a rnulher (ou a mo<;a) em
hegemónica que reconhece o fato de algumas mulheres obterem grandes rea-
queslao dominava os principios da lei religiosa e era capaz de aplicá-los a situac;óes hipoté-
lizac;óes intelectuais e espirituais 16 . ticas especificas. Em ambos os casos, o texto dá urna grande enfase ao fato de seu conheci-
mento ser sancionado, o que tem urna grande importancia, como veremos mais adiante.
Levando em conta estas duas tradic;óes, é mais fácil entender por que os babilonios
16 Goodblau desenvolve dois argumentos a respeito desles textos: o primeiro é que eles nao
acreditavam que as duas histórias se referiam a mesma mulher (ver Davis 1991). Na verda·
apresentam nenhum indicio para a identifka<;ao dessas duas personalidades (Goodblau
de, eu diría que as semelhan<;as literarias entre as duas narrativas indicam que elas podem
1975, 77); o segundo é que eles nao provam que esla mulher (ou mulheres) era culta (ibid., ser variantes da mesma história. O texto também dá a entender que Berúria era urna figura
83). Ele afirma que a füha de qualquer rabi podia ter um conhecimento deste tipo. Quanto bastante conhecida na tradi<;ao palestina.
196 As Mullieres Estudantes As Mulheres Estudantes 197

mento sao sempre apresentados, nao há como deixar de ficar chocado <lian- cínio e com a sua prática interpretativa ("Ao recontá-lo a partir do mundo em
te da narrativa de seu fim: que vivemos, podemos perceber como a personagem Juta contra o contexto,
como ela abala os nossos pressupostos a respeito do que sigrtifica ser urna mu-
Urna vez Berúria ridicularizou o velho <litado rabínico: "As mulheres tem a lher, urna judia, um ser sexualizado"). No entanto, eu gastaría de apresentar
cabei;a oca" [i.e., sao lascivas). Ele [seu marido , R. Meir) disse: "Toma
aquí outra leitura <leste texto, que também procura recontá-lo a partir do mun-
cuidado! Acabarás dizendo que eles estao cenos". Ele mandou que um de
do em que vivemos, mas que tenta descobrir um pouco mais sobre o mundo
seus alunos a tentasse para cair em transgressao [sexual). O aluno a
importunou dias a Cio, até que ela concordou. Quando soube do que tinha se em que ele foi escrito. A principal diferenc;a entre as nossas interpretar;óes parte
passado, ela se esrrangulou e R. Meir fugiu de vergonha. da afirma<;ao de Adler de que "eu chamo isso de urna história, apesar de na ver-
(Rashi ad Talmude da Babilónia Avodá Zará 18b) dade serem várias histórias, narradas em vários textos e em várias épocas dife-
rentes" (28), o que gera necessariamente urna fusao entre a "Palestina de 200
O Talmude em si informa apenas que Rabi Meir fugiu da Babilonia por cau- a.E.C. [sic] 18 e a Babilonia de 500 E.C." (29). Apesar de Adler demonstrar ter
sa do "incidente de Berúria". O Talmude nao revela mais nada. Esta narrati- um bom conhecimento das distinc;óes entre estes momentos históricos, a sua
va só é encontrada num texto escrito na Idade Média por um importante intenc;ao parece ser a de relatar o efeito que a fusa o das histórias de Berúria
comentarista frances do Talmude, Rabi Shlomo Itzhak, o famoso Rashi. O exerceu sobre os homens e as mullieres da cultura rabínica, que se tomou he-
relato canta urna horrivel história de engano e suicídio. Rabi Meir, para pro- gemónica a partir do início da Idade Média. Espero que ao dar atenr;ao as dis-
var urna determinada afirmar;ao a sua mulher, faz com que ela seja seduzida crepancias existentes entre as histórias narradas em vários textos de épocas
e desgrar;ada (desgrac;ando a si mesmo e a um de seus alunos neste proces- diferentes, seremos capazes de obter urna compreensao histórica mais precisa
so ). Esta lenda aberrante sobre a maneira como um dos maiores rabinos do das diversas leituras que o significante "mulher" recebeu em culturas rabínicas
Talmude ataca urna mulher apresentada como urna pessoa pía, sábia, respei- diferentes, abrindo um espar;o, talvez, para novas possibilidades no futuro.
tada e amada deve ser historicizada e explicada. De fato, já se escreveu mui- Apresentarei outra interpreta<;ao para este texto, partindo do contexto intertex-
to a respeito <leste texto, tanto na literatura tradicional, quanto na tual da discussao legal analisada na sec;ao anterior <leste capítulo. Ela aponta
academica. Rache! Adler apresentou urna interpretar;ao feminista comovente para urna diferenc;a existente entre os dais momentos históricos da Palestina,
desta história (1988, 28 et seq.) 17• Concordo com a linha geral de seu racio- em 200 E.C., e da Babilonia, em 500 E.C. 19•

cessidade existe e o ser amado a satisfaz. Ver também Aspegren (1990, 45), que discute
17 H<\, contudo, um ponto do texto de Adler que eu gosLaria de questionar diretamente. Trata- urna idéia-eemelhante de Aristóteles. A história de Amnon e Tamar, na verdade, é urna boa
se da leitura que ela faz do texto de Mishn<\ Trarndo Avot 5,10. Adler sugere urna tradui;ao ilustrac;ao deste raciocinio. De acordo com a Biblia, Amnon deixou de amar a sua irrn<\ de-
para este texto:
pois de es1upr<\-la, passando a odi<\-la. Um comentarista da Mishná, R. Israel Danzig, obser-
va com grande perspicácia que na verdade Amnon amava a si mesmo, pois buscava apenas
Em todo amor que depende do desejo sexual, quando o desejo acaba, o amor acaba. O amor que o prazer de seu próprio corpo.
ndo depende do desejo sexual ndo acaba nunca. Qual to amor que depende do desejo sexual? O
Este texto nao é um exemplo da atitude positiva que a cultura talmúdica costuma de-
amor de Amnon e Tamar. E o amor que ndo depende do desejo sexual? O amor de Davi e)ilna- monstrar em relac;ao as relai;óes sexuais entre marido e mulher, enquanto urna expressao e
tas.
um reforc;o de seu amor. Existe até mesmo um termo técnico rabínico que se refere ao
(Adler 1988,32) "amor causado pela relai;ao sexual" (Talmude da Babilonia Ketuvot 57a) e que só é empre-
gado em contextos positivos, para indicar que só depois da consumai;ao do casamento há
A partir dai, Adler faz o seguinte coment<\rio: "Se Amnon e Tamar, por um lado, e Davi
um verdadeiro compromisso entre marido e mulher. Afinal, jamais apontariamos o desejo
e JOnaLas, por outro, represenLam os dois pólos da mesma escala, o fato de um deles ser
do estuprador como um modelo de amor erótico valido. Por outro lado, os coment<\rios de
represenrndo por um estupro incestuoso e o outro por urna relac;ao despida de qualquer ca-
Adler sobre os aspectos homo-sociais da instituii;ao da havruta, a pr<\tica de os homens es-
ráter sexual de fato sugere urna dicotomia entre o desejo sexual e o amor verdadeiro".
tudarem em pares, e da relac;ao entre Davi e jOnaLas como um modelo para este costume,
Creio que esta é urna interpretac;ao equivocada do texto, que afeta seriameme a manei- sao muito importantes e apontam para cami.nhos a serem percorridos por pesquisas futu-
ra como devemos entender o dominio legitimo de Eros na cultura rabinica. Na Mishná nao
ras. Por enquanto, ver capitulo 7.
está escrito "todo amor que depende do desejo sexual", mas sim "amor que depende de al-
18 Neste contexto, ela provavelmente se refere ¡\ Palestina de 200 E.C., a época em que Berúria
guma coisa", isto é, o amor que tem motivos ulteriores, em oposic;ao ao "amor desinteressa-
teria vivido; "a.E.C." deve ser apenas um erro de impressao.
do". O objetivo deste comentário é mosi:rar que o amor que busca apenas a realizai;ao de
19 Goodblau ( 1975) também defende a exisU!ncia desta difere.nc;a histórica, mas num sentido
urna determinada necessidade do amante nao é verdadeiro, durando apenas enquanto a ne-
diferente da incerpretac;ao proposla aqui. Mais urna vez, estou evitando deliberadamente in-
198 As Mulheres Estudantes As Mullreres Escudantes 199

O final da história de Berúria, narrado apenas a margem do texto tal- Rabi Meir costumava se sentar e ensinar nas noites de Shabat. Urna cena
múdico da Babilonia (ai nda que uma margem muito importante), é urna mulher estava lá para ouvi-lo. Urna vez o seu discurso foi comprido demais e
anomalia extraordinária, nao só pela maneira como o caráter da mulher é ela esperou até que ele acabasse de falar. Quando voltou para casa, a vela já
apresentado, mas tarnbém pelo retrato que se faz de seu marido. De acor- tinha se apagado. O seu marido lhe disse: "Onde estavas?" Ela respondeu:
do com Adler, a anomalia representa o próprio significado <leste texto. Ao "Estava sentada, ouvindo o professor." Ele disse: "juro que nao entrarás aqui
comparar com perspicácia esta narrativa aos textos haláquicos que evo- até que vás cuspir no rosto do professor." Ela ficou fora urna semana, duas e
cam situac;oes irreais pa ra testar sua teoria legal, Adler faz a seguinte afir- urna terceira. As suas vizinhas lhe disserarn: "Ainda estais zangados um com
mac;ao: o outro?! Iremos contigo até o professor." Quando Rabi Meir as viu, ele viu
através do Espirito Santo. Ele !hes disse: "Há alguma dentre vós que conhece
a cura mágica para os olhos?" As vi.zinhas disseram a ela: "Agora vai e cospe
O que estas situa<;óes surreais representariam, além de urna tentativa
no rosto dele, e poderás voltar ao teu marido". Quando se sentou <liante dele,
apaixonada de captar urna verdade esquiva ao anular todo contexto? O ato de
ela procurou se afastar. Ela lhe disse: "Rabi, nao conhe<;o a cura mágica para
imaginar Berúria <leve ser encarado como um esfor<;o deste tipo - a busca de
os olhos." Ele lhe disse: "Cospe no meu rosto sete vezes e ficarei curado." Ela
um contexto mais abrangente, de um caso que desafie todos os pressupostos cuspiu em seu rosto sete vezes. Ele lhe disse: "Vai contar a teu marido:
razoáveis dentro do contexto existente: o que aconteceria se existisse uma
'Disseste urna vez, cuspi sete vezes!' "Os seus discípulos lhe disseram: "Rabi,
mullter que fosse como nós?
é permitido desonrar a Torá desta maneira?! ao deverias ter pedido a um de
(Adler 1988, 29) nós que recitasse um encantamento?" Ele respo ndeu: "Nao basta a Meir que
ele seja como seu Criador? Pois Rabi lshma'el disse: 'A paz é tao importante,
A ambivalencia da história d e Berúria, portanto, é interpretada por Adler que um norne escrito coro santidade pode ser apagado com água para
como urna única unidade cultural que representa a ambigüidade: "Apesar de estabelecer a paz entre marido e mulher'".
ser assustador imaginar a possibilidade de ser ridi.cularizado e exposto por (Vayi11rá Rabá 9,9; ver tarnbém
urna mulher culta e poderosa d emais para ser controlada, também é excitan- Talmude da Palestina Sotá 1,4)
te imaginar a possibilidade de ser amado por ela. Assim, ao descrever a vida
doméstica d e Berúria e Meir, os rabis retratam Berúria como urna versa o fe- Por um lado, esta história confirma a anomalia estrutural a que Adler se re-
minina do parceiro de estudos ideal" (32). A história de sua queda, entao, é fere. O marido obviamente tem ciúme por causa d o interesse de s ua mulh er
urna solw;ao para o pólo negativo desta ambivalencia. Além disso, de acordo pela Torá e pelo fato <leste interesse privá-lo d e sua companhia na noite do
com a leitura de Adler, a própria in timidade do relacionamento com o par- Shabat. a verdade, ele parece suspeitar que ela estava apaixonada por Rabi
ceiro de estudos ideal, quando este parceiro é potencialmente urna mulher, Meir. Se nao fosse assim, entao por que mandar que ela demonstrasse des-
torna impossível que Berúria se encaixe no sistema. " o judaísmo rabínico, prezo pela sua figura? lsto serve para ilustrar o erotismo subjacente ao estu-
a au toridade fluía através das relac;óes rabínicas. Os rabis nao conseguiriam do d a Torá, além de mostrar por que as mulheres eram afastadas desta
imaginar como dar autoridade a Berúria sem incluí-la na teia de relac;óes ra- prática. Simbolicamente, elas romperiam a pura conexao erótica entre os es-
bínicas - a teia formada por professores, estudantes e parceiros de estudo. tudantes e sua amante, a Torá. Além disso, perturbariam a mediac;ao homos-
E eles também nao conseguiriam fazer isso sem ver na sua sexualidade urna sexual desta relac;ao, um aspecto da cultura que será mais bem explorado no
fonte de destruic;ao" (32). próximo capítulo. Por outro lado, se o objetivo desta história era servir
Podemos encontrar um excelente exemplo para a tese cultura l de como urna advertencia contra as mulheres que desejavam estudar a T orá,
Adler num texto qu e aparece d iversas vezes no corpus palestino da litera- isso se d á de forma muito curiosa. A mulher é a heroína da história; o mari-
tu ra rabínica - mas que, significativamente, n unca aparece na Babilonia. do é, no máximo, um idiota - em algumas versóes, inclusive, os estudantes
Curiosa mente - e ta lvez nao por acaso - a história ta mbém envolve querem aplicar-lhe urna punic;ao severa. Nao há a menor sugestao d e que o
Rabi Meir : amor da mulher pelo aprendizado fosse impróprio; na verdade, a narrativa
se enquadra no pressuposto palestino de que algumas mulheres tinham u m
interesse legítimo em estudar a Torá. Finalmente, ela se encaixa na noc;ao ra-
dicar qu~I . seria a influencia de terminante neste caso: a diferenca cronológica ou a diíeren-
ca geograf1ca. É possivel que ambas fossem fatores igualmente importantes. bínica de que a func;ao do teste <litado pela Sotá nao era descobrir e punir as
200 As Mullieres Estudantes As Mullieres Estudames 201

mulheres culpadas de traic;ao, mas siro acabar com o ciúme de maridos pa- radigma da filha que aprendeu a Torá. Se a sentenc;a de R. Eliézer estava cor-
ranóicos - afina!, o marido desta história é análogo ao marido ciumento reta, dentro do sentido que o Talmude da Babilonia lhe atribuí - a de que
dos tempos bíblicos e o ato de cuspir nos olhos do rabi é análogo ao teste. haveria urna conexao intrínseca entre o fato de a mulher estudar a T orá e a
Assim como Rabi Meir estava disposto a que !he cuspissem nos olhos para imoralidade sexual - entao a queda de Berúria na licenciosidade passa a
acabar com o ciúme estúpido do marido, Deus também estava disposto a ter ser urna necessidade estrutural. Qualquer ourro desfecho para a sua biogra-
seu nome apagado para terminar com o ciúme idiota dos maridos em geral. fia seria urna refutac;ao de R. Eliézer. lsso equivale a dizer que as mesmas
Ainda que nao se possa afirmar que este era o sentido "original" do teste bí- forc;as culturais da comunidade rabínica da Babilonia, que nao permitiram
blico, nao deixa de ser fascinante e significativo que estes rabis o tenham in- que a voz de Ben Azai permanecesse sequer como urna opiniao rninoritária,
terpretado desta maneira, pois é difícil imaginar o propósito apologético que nao podiam tolerar o caso excepcional de urna mulher versada na Torá. O fi-
eles teriam ao modificar o seu significado desta forma. Tudo indica, portan- nal terrível de Berúria e os extremos a que se lanc;a o texto, chegando ao
to, que será preciso encontrar urna explicac;ao estrutural específica para a ponto de difamar um de seus maiores heróis para atingir os seus objetivos, é
história da morte de Berúria, ao invés de atribuí-la a um horror genérico e mais um síntoma do enorme perigo que a mulher culta representava para a
fundamental a possibilidade de as mullieres estudarem. cultura rabínica babilónica (e, mais tarde, européia), um poder que ameac;a-
Ao contrário da interpretac;ao que Adler propóe para a história de Berú- va virar a mesa das relac;óes entre os sexos e da organizac;ao social. Era pre-
ria, segundo a qua! ela seria urna tentativa de solucionar urna anomalia da ciso, entao, recorrer a meios extraordinários para reprimí-lo. O melhor
cultura rabínica em geral, prefiro encará-la como a ilustrac;ao de um princí- contexto para esta lenda, na minha opiniao, é a discussao sobre a lei ritual
pio específico e localizado: a afirmac;ao de R. Eliézer de que "aquele que en- que estudamos acima. A diferenc;a entre os textos da Palestina e da Babilo-
sina a Torá a sua filha, ensina-lhe a lascivia", de acordo coma interpretac;ao nia é reproduzida pelas diferentes maneiras como Berúria é interpretada nas
que esta sentenc;a recebeu no Talmude da Babilónia. 20 Berúria, afinal, é opa- duas tradic;óes - em ambas, ela é considerada um caso atípico, mas em ape-
nas urna delas se toma um escandalo.
o resto desta sec;ao, procurarei aprofundar a interpretac;ao que dou ao
20 Compare a obseiva<;áo acima á interpreta<;ao de Aliza Shenhar (1976), que argumenta que
a história é urna tentativa de exemplicar o grande zelo de R. Meir para provar a verdade texto que narra o firn de Berúria, segundo a qual ele seria um produto espe-
dos <litados rabinicos (neste caso, o de que "as mulheres tém a cabe<;a oca"). Ou seja, de cífico da teia intertextual da tradic;ao talmúdica da Babilonia. Apesar de a
acorde com esta leitura. o texto estaria disposto a difamar a mulher para apresentar um re- história da seduc;ao e do suicidio de Berúria só ser contada no comentário
trato positivo I!] do marido. o entamo, só um narrador muilo peculiar poderia acreditar
que a história <leste engodo descreve o rabino de forma positiva. Creio, portante, que a mi- que Rashi escreveu sobre o Tal.mude da Babilonia na Franc;a do século XI,
nha interpretai;áo - segundo a qual o narrador difama marido e mulher para preseivar a creio poder demonstrar que ela foi criada naquela regiao e que nao se trata
fori;a da opiniao de R. Eliézer - é bem mais plausivel. Cynthia Ozick chegou bem peno de urna invenc;ao casual de Rashi. A história que contarei a respeito da cria-
desta leitura ao afirmar que "para puní-la pela sua ousadia. um narrador rabinico que tinha
a tendencia de denegrir as mulheres cultas recriou Be.rúria como urna sedutora. Assim, ela c;ao <leste texto fortalecerá a ligac;ao entre ele e seu hipograma, a sentenc;a de
chega até nós com duas famas distintas: primeiro, como urna espécie de intelectual e, de- R. Eliézer. De acordo coro o Talmude, Berúria possuía urna duplicata, ou
pois, como urna mulher licenciosa. Nao há dúvida de que se espera que vejamos urna cone- melhor, urna irma. Depois do martirio de seu pai, executado por ensinar a
xao entre as duas" (Ozick 1979, 44). <lo entendo, porém, por que Ozick piara ainda mais
as coisas, transformando Berúr!a na sedutora, ao invés da seduzida que sucumbe depois de
Torá, os romanos condenaram a irma de Berúria a urna vida de prostituic;ao
muita resisténcia. Ver também Schwarzbaum (1983, 69-70), que argumenta que a história é em Roma. Berúria enviou Rabi Meir a Roma para salvá-la. Eis o que aconte-
urna atualiza<;ao do tema folclórico internacional da mulher superior que é seduzida. Este ceu, segundo o Talmude da Babilonia:
elemento sem dúvida está presente na história, mas nao é o bastante para explicá-la de for-
ma satisfatória, nem há como justificar a sua preseni;a aqui. Ver Boyarin (1990a) .. enhum
dos intérpretes que estudei, com a exce<;ao de Adler, apomou para o paralelo entre as histó- Ele pegou urna tarqeva de moedas e paniu, dizendo que se ela nao civesse
rias das duas irmás (ver mais adiante}, mas ela as interpreta de maneira diferente: "Nao é feito nada de errado haveria um milagre; se ela civesse feito coisas proibidas,
por acaso que Rashi sobrepóe esta história a narrativa da aventura de Meir em Roma. As nao haveria nenhum. Ele íoi disfarc;ado como um oficial de cavalaria e <lisse a
duas histórias Lém vários pontos em comum. Em ambas, Meir conduz um teste de castida- ela: Fique comigo. Ela respondeu: Mas eslOu mensrruada. Ele disse: EslOu
de. Em ambas, a sexualidade feminina traz vergonha para Meir e o abriga a sair de casa.
Em ambas, parte-se do principio de que as mulheres sao as únicas responsáveis pelo seu
comportamento se.xual, mesmo quando sao pressionadas e enganadas pelos homens" da maneira como a primeira se espelha para a criar a segunda apenas refor~a as conclusócs
( 1988, 103). Creio que a minha análise da estrutura contrastante entre as duas histórias e de Adler a respeito de como a mulher é representada nesta narrativa.
As Mulheres Estudantes
As Mulheres Estudantes 203
202

ardendo de paixao. Ela respondeu: Há muitas aqui mais betas do que eu. Ele monogamia, de que urna mulher como Berúria nao poderla ser amada pelo
disse [a si mesmo[: Pelo que eu vejo, ela nao fez nada proibido; a todos os que seu marido e o marido que amasse urna mulher <leste tipo, corno R. Meir,
chegam ela diz a mesma coisa. também deveria acabar no exílio. Consideradas como um todo, as histórias
(Avodá Zará 18b) das duas irmas formam um só exemplo, um caso paradigmático que ilustra
a sentenc;a de R. Eliézer - de acordo, é claro, com a maneira como foi com-
R. Meir, o milagreiro, faz o seu milagre (urna alusao ao milagre realizado preendida e vivida no campo cultural do Talmude da Babilonia. Procurava-
para a esposa inocente) e a irma de Berúria é salva. Como conseqüencia, po- se, assim, demonstrar que havia urna conexao intrínseca entre a mulher
rém, R. Meir acaba rendo que fugir para a Babilonia. De acordo com outra culta e a sexualidade descontrolada. 2 1 Esta horno logia detalhada entre as
tradic;ao talmúdica, contudo, ele nao fugiu por causa disso, mas por causa duas narrativas pode ser representada como urna série de oposic;oes estrutu-
da "história de Berúria". lsso é tudo o que o Talmude conta a respeito da rais.
vida da mulher de R. Meir. o entamo, ele revela um pouco mais da bistória
da outra filha de R. Hanina. O Talmude pergunta o que ela teria feito para A Irma Berúria
merecer este castigo e responde que nao teria sofrido se nao o tivesse provo-
cado de alguma maneira: "R. Yohanan disse: Urna vez a sua filha estava an- age com frívolidade (-) estuda a Torá (+)
dando diante de nobres romanos. Eles disseram: 'como sao graciosos os é enviada a um bordel (-) casa-se com um estudioso (+)
passos desta jovem!' Ela passou a ter muito cuidado com os seus passos." passa no teste de R. Meir (+) fracassa no teste de R. Meir (- )
Como sempre acontece no discurso rabínico, "o castigo se enquadra ao cri- é salva por milagre (+) comete suicidio (- )
me." Ela queria atrair os romanos; agora esta é a sua "profissao". Podemos
comec;ar a delinear um quadro: o comportamento desta filha encarnava o <li- Os paradoxos criados por estas oposic;oes e a inversao das expectativas de
tado rabínico de que as mulheres sao frívolas e lascivas. Ela passa por urna castigo e recompensa mostram de forma contundente a importancia desta
experiencia terrivel, mas através de sua forc;a de caráter tem sucesso n o teste narrativa como um exemplo dos perigos de se ensinar a Torá a urna filha.
de R. Meir e é salva por um milagre. Depois disso, provavelmente viveu feliz Mais urna vez fac;o questao de frisar que esta explicac;ao da narrativa só se
para sempre. aplica a interpretac;ao que o Talmude da Babilonia dá a Mishná. Esta histó-
A história de sua irma, Berúria, segue o caminho oposto. Berúria comec;a ria nao é contada no Talmude da Palestina, nem se encaixa na interpretac;ao
como a anótese da moc;a frívola e lasciva; de fato, desde a infancia se inte- em que Ben Azai afirma haver um mérito verdadeiro no fato de as mulheres
ressava pela Torá e pela sua sabedoria. Ela é representada diversas vezes estudarem a Torá. Além disso, de acordo com a visao palestina, até mesmo
como urna encarnac;ao da moral. Quando chega a hora, ela também é testa- R. Eliézer acredita que existe um mérito nas mulheres estudarem a Torá e
da por R. Meir, mas, ao contrário de sua irma, nao passa no teste. A conse-
qüencia de sua vida exemplar é um suicídio vergonhoso. A sua história, que
é mencionada rapidamente no Talmude e contada apenas a sua margem, é 21 Laurie Davis interpreta a ligac;ao entre as duas irmas de forma ligeiramente diferente. Ela
chama atenc;ao para o fato de que é apenas nesta passagem do Talmude que as duas mulhe-
criada através da inversao de todos os elementos da história da irma, que é res sao identificadas como irmas (seguindo a leitura de Goodblau 1975). Depois de desli-
narrada pelo texto do Talmude. Urna irma se toma o modelo do comporta- gar Berúria da famil ia de Rabi Hanania ben Tradion , ela sugere que a moc;a desta lüstória,
mento exemplar feminino, pois, dentro dos preceitos de Rabi Eliézer, nao ti- antes de receber Berúria como sua irma, equivale a filha culta da Tosefta. Depois:
nha estudado a Torá e nao foi vitima da lascivia. A outra irma morre como
Além disso , a vida da filha anónima é uma imagem espelhada de como seria a vida de Berúria.
urna libertina, pois tinha violado o tabu, caído em tentac;ao e aprendido a Trata-se de histórias paralelas sobre mulheres virruosa.s, de grande caráter moral e estud iosas
Torá. da Torá, a quem se "fom ece" um crime sexual que contradiz todas as outras histórias a respeiro
A minha teoria é que a história de Berúria foi criada como urna réplica de seu cará1er. O paralelismo entre as suas vidas só pode ser percebido depois de Rashi narrar a
se:dw;do e a morte de Berúria, no século XI.
pervertida da história de sua irma, a partir da interpretac;ao que os babilo- (Davis 1991 )
nios davam as palavras de R. Eliézer - ou seja, a de que havia urna ligac;ao Admito que esta leitura é tao plausivel quanto a minha, mas nao altera profundamente o
essencial entre o fato de a mulher estudar a Torá e a quebra da estrutura da quadro que procuro trac;ar aquí. Ao invés de urna e:strutura de oposir;ao binaria, as mulhe-
res estariam se reproduzindo urna na outra.
As Mullieres Estudantes 205
204 As Mu/Iteres Estudantes

que este mérito as protegeria da punic;:ao pelo adultério, removendo o obstá- (posterior ao período talmúdico), Berúria é neutralizada de outra manei-
culo criado pela Torá ao estabelecer o teste das Águas Amargas. Esta inter- ra: ela se transforma na esposa e mae judía ideal (Midrash Mishle 31 ,10).
pretac;:ao nao aponta para urna relac;:ao causal necessária e essencial entre 0 A sua maternidade jamais é mencionada nos textos talmúdicos. Ela repre-
fato de a mulher estudar a Torá e a licenciosidade sexual. De fato, os textos senta, entao, urna maneira menos violenta e, calvez, mais insidiosa de eli-
palestinos nao fazem a menor censura ao fato de Berúria estudar a Torá ou minar a ameac;:a da filha que estuda a Torá. De fato , esta Berúria acaba
de seu pai ensinar a Torá a filha. Ela também é considerada urna anomalía muito parecida com Raquel! Repare que estes indicios se encaixam na hi-
na Palestina, mas a sua opiniao haláquica é citada como a de urna autorida- p ótese - e trata-se apenas de urna hipótese - de que ocorreu urna mu-
de e nao há nenhuma história para condená-la. danc;:a na ideología dos sexos no judaísmo do inicio da ldade Média, urna
Outra autoridade rabínica, que viveu urn pouco depois de Rashi , inter- mudanc;:a que resultou numa visao mais estanque das mulheres como um
preta o "incidente de Berúria" de forma completamente diferente. De acordo perigo e urna ameac;:a.
com esta rradic;:ao, nao se trata do "inicidente" de Berúria, mas sim do "prece- É difícil encontrar um contexto histórico para a filha que estuda a Torá,
dente" de Berúria. A "história verdadeira" é que R. Meir teria sido exilado por justamente porque, como já vimos, urna energía enorme foi mobilizada para
nao dar ouvidos á sua esposa numa questao em torno da lei ritual! 22 Além suprimir até mesmo esta autonomia limitada. No entanto, o material discuti-
disso, segundo a mesma autoridade, nao foi ao seu irmao que ela superou do por Bernadette Brooten (1982) pode nos fornecer algumas pistas. Broo-
em conhecimento e sagacidade (ver n. 16), mas ao próprio pai, o grande es- ten demonstra que em cerca de doze inscric;:óes encontradas em sinagogas
tudioso, R. Hanina. lsso fortalece ainda mais a sua posic;:ao como urna verda- do período talmúdico, algumas mullieres sao citadas com o titulo de "chefe
deira autoridade haláquica (Kalonimos 1963, 31-34). De acordo com as da sinagoga". Esta prova costuma ser desprezada pelos estudiosos que acei-
tradic;:óes de R. Yehuda ben Kalonimos, entao, a história de Berúria repre- tam ao pé da letra as afirmac;:óes do Talmude onde se defende a ignorancia
senta urna refutac;:ao definitiva da sentenc;:a de R. Eliézer. Vejo estas divergen- forc;:ada das mulheres <liante da Torá. Brooten argumenta, coro toda raza.o,
cias quanto ao fim de Berúria como um sinal de que o conflito em torno da que estes indicios devem ser levados a sério, pelo menos a principio, e que
possibilidade de as mulheres estudarem a Torá continuou até os séculos XI se as inscric;:óes da.o ás mulheres o titulo de "chefe da sinagoga", isso signifi-
e Xll, chegando até a regia.o aslthenazim. A luz destas conclusóes, as lendas ca que elas realmente desempenhavam esta func;:ao, o que exigía grandes es-
de que a filha de Rashi era urna "Berúria" medieval (mas sem o final trágico) tudos (Brooten 1982, 5-37, princ. 30-31).
adquirem um significado especial. A relevancia da obra de Brooten tem sido alvo de várias discussóes. O
A lenda de Berúria é um exemplo da ambigüidade entre o reconhecimen- historiador Shaye Cohen, apesar de aceitar a leitura que ela faz dos indicios
to e a negac;:ao da autonomía e da realizac;:ao intelectual feminina, que Wink- encontrados, argumenta (1980, 27-28) que por serem oriundas das comuni-
ler percebe em algumas pec;:as gregas e na lenda das amazonas - se bem dades nao-rabínicas de Creta, Trácia, ltália e África do orte, as inscric;:óes
que (e isto é importante) é apenas no final grotesco acrescentado á história nao sao relevantes para o desenvolvimento da modalidade de judaísmo que
pelo comentarista medieval que a negac;:ao efetuada pelo Talmude da Babilo- acabou se tornando hegemónica: o judaísmo talmúdico. Para judith Plas-
nia em relac;:ao aos outros textos estudados finalmente atinge Berúria. Davis kow, por outro lado, a presenc;:a de indicios que comprovam a existencia de
(1991 ) observa com perspicácia que em outro texto do período dos gueonim formas nao-rabínicas do judaísmo antigo "nos fazem questionar a posic;:ao
da autoridade rabínica como único árbitro do jadaísmo autentico". Plaskow
argumenta que "os textos podem refletir tensóes existentes dentro da cultur~
22 Mais prec:isamente, a obriga~lio de se estudar em voz alta. Ver Talmude da Babilonia EruviJt patriarcal, que procura manter urna determinada visa.o de mundo em opos1-
53b-54a, onde Berúria repree nde (ou chuta) um disclpulo que nlio estudava em voz alta. c;:ao a mudanc;:a social, política ou religiosa" (Plaskow 1990, 45). ao preten-
~avis ~tá absolmamente correta ao afirmar que esta passagem, assim como outras que ela
cita, nao apresenta nenhum sinal de ansiedade ou rancor pelo fato de ser a mulher que re- do tocar nas questóes teológicas envolvidas nesta discussao, mas é
preende o homem, citando o capitulo e o verslculo em que baseia o seu argumento. A no- importante frisar que as interpretac;:óes feítas aqui colocam, por assim dizer,
~lio de Adler de que estas passagens falam de urna inversao de papel entre os sexos atribui estas tensóes em seu devido lugar, inserindo-as nos textos talmúdicos e no
aos textos cen as idéias que simplesmente nao est.ao la. De qualquer maneira, quase todas
as história~ _sobre Berúria (incluindo aquetas em que cla adquire urna valencia inequívoca-
próprio discurso e estrUtura de poder dos rabís. Sem dúvida, elas podem
mente posmva e se comporta como qualquer rabi, como neste caso) a apresentam superan- nos ajudar a responder as questóes levantadas por Brooten: "As mulheres ju-
do um homem em algum feíto haláquico/ midráshico.
206 As Mulheres Estudantes As Mulheres Estudantes 207

días de fato podiam se tornar estudiosas? Podiam opinar a respeito da leitu- dos aquí para ocultar estas divergencias sao síntomas de urna diferenc;a cul-
ra que se faz da Biblia na sinagoga"? (Brooten 1982, 55). tural entre a Palestina e a Babilonia. Enquanto na Babilonia (pelo menos no
Contudo, a irrelevancia geográfica das inscrit;óes para o judaísmo rabí- final do período rabínico) era inconcebível, ou até mesmo assustador, que
nico também é frustrante em outro aspecto, pois nao nos permite avaliar os urna mullier estudasse a Torá, na Palestina isso era um fato incomum, mas
indicios que apontam para urna maior ansiedade a respeito da existencia de louvável. 21 Creio que os textos talmúdicos tem mais a nos ensinar sobre a
mu~eres cultas na Babilonia do que na Palestina. lsso seria um sinal de que história cultural do que Brown acredita. É preciso detectar com cuidado os
havla urna quantidade maior de mullieres estudando a Torá na Babilonia do diferentes elementos de discurso e contra-discurso que estes textos preser-
que na Palestina, ou o contrário? Há, porém, um indicio interessante que tal- vam ou eliminam, ou que as vezes preservam justamente ao tentar eliminá-
vez aponte para a primeira possibilidade (i.e., a de que as mulheres estuda- los - o que, ao invés de simplificar a nossa leitura da ideología antiga,
vam mais na Babilonia). O texto talmúdico que interpreta a Mishná em Sotá torna-a ainda mais complexa.
e afirma que o_estudo da Torá nao traz nenhum mérito as mulheres chega a Assim como no caso de Raquel, discutido no capítulo anterior, Berú-
conclusao de que o mérito da mullier está em "levar os fillios para estudar a ria continua a ser um paradigma para as judías tradicionais até hoje.
Torá e a Mishná". o entamo, também é possível traduzir este trecho como Como prava do poder de Berúria para instituir urna determinada prática,
"_ensinar a Torá_ e a Mishná aos filhos" - na verdade, esta é a interpretac;ao basta observar que, já no nosso século, a sua história (palestina) foi cita-
literal e gramaucal desta orac;ao. Para ensinar, elas obviamente tinham que da como um precedente para dar as mulheres o direito de estudar a Torá
23
aprender antes. Assim, o fato de os babilonios negarem enfaticamente e que este argumento foi rejeitado por outros rabinos, que citaram a len-
qualquer mérito as mulheres que estudam a Torá e de apagarem do Talmu- da de sua marte como um contra-precedente (Waldenberg ad loe). A n ar-
d~ qualquer men~ao palestina as mulheres estudantes seria mais a expres- rativa de Berúria, entao, pode ser considerada histórica no mesmo
sao de um dese30 do que o reflexo de condic;óes sociais verdadeiras. sentido que a história de Raquel escudada no capítulo anterior. Senda as-
Podemos, entao, interpretar a ameac;a evidente dos textos que retratam mu- sim, ternos a possibilidade de reescrever a história fu tura, ao dar urna
lheres estudando como um sinal de que as mulheres de fato estudavam na- nova interpretac;ao a estas narrativas.25
quela cultura. lsso explicaría a enorme ansiosidade dos rabís babilónicos a De acordo com a minha hipótese, o principal motivo para que as mulhe-
este _res~eit_o. De qualquer maneira, isso nao invalida a sugestao de que a res fossem confinadas ao papel de procriadoras e parceiras sexuais na cultu-
amb1valenc1a crescente a respeito da possibilidade de as mulheres estuda- ra rabínica era o medo de que, caso isso nao acontecesse, este papel
rem a Torá, refletida pelas proscric;óes haláquicas e pelas alterac;óes nas tra- fundamental nao fosse desernpenhado. O que preocupava os rabís, entao,
dic;óes sobre Berúria, representa um paralelo para a introduc;ao de nao era a contarninac;ao por urna forc;a ameac;adora e corrompida, mas sim a
~re~sóes ginecofóbicas no judaísmo rabínico do mesmo período, como já perda de controle sobre um recurso valioso. Além disso, como já vimos nos
d1scuu no capítulo 3.
Dentro de urna tradic;ao cultural literária há sempre forc;as lutando pela
hegemonía. lsso se aplica tanto aos textos heterogeneos do Talmude, escri- 24 Nao estou me esquecendo, é claro, da misoginia de R. Eliézer, que era palestino. A minha
tos ao longo de centenas de anos em duas regióes geográficas diferentes, imem;ao nao é encarar cada urna destas culcuras como um bloca monolítico, muito menos
afirmar que a cultura palestina era igualitária; pretendo apenas mostrar que as divergéncias
quanto a Shakespeare, onde estudos culturais também podem encontrar a em tomo desta questao eram mais toleradas por esta cultura do que pela outra.
presenc;a da hegemonía patriarcal e de forc;as que lutam contra ela. A tradi- 25 Podem me acusar de estar tentando derrubar urna porta que já está abena, pois em muitos
c;a~ ~abilónica , que teve em Rashi o seu intérprete definitivo, tornou-se hege- circulas ortodoxos hoje em día (ainda que nao todos), a possibilidade de as mulheres estu-
mo~1ca na cultura judaica medieval e pós-medieval. os textos judaicos darem a Torá já foi plenamente aceita. já ouvi um sociólogo descrever este fato como a
maior transformac;ao sofrida pela ortodoxia moderna - ou seja, esta é a primeira gerac;ao
anugos, porém, também há grandes divergencias em tomo da exclusao das da história judaica em que as jovens sentadas em tomo da mesa do Shabat podem ser tao
mullieres do escudo da Torá. As maneiras encontradas pelos textos estuda- versadas no Talmude quanto os homens. Na Stem College, a faculdade feminina da univer-
sidade rabínica, as mulheres podem estudar o Talmude durante vários anos. Pode-se dizer
o mesmo de Bar-llan, a universidade ortodoxa de lsrael, urna instituic;ao que nao tem nada
de progressista em outras áreas. Espero que a minha análise histórica/ literária possa ajudar
23 ls~o é, t;mos aquí formas causativas dos verbos traduzidos como "lera Biblia" e "estudar a a firmar estas tranformac;Oes, que, na minha opiniao, sao um exemplo de como urna cuhu-
Mishná . Esta observac;ao imponame me fo¡ feíta por Milan Sprecher. ra tradicional pode passar por modificac;Oes saudáveis, sem perder a sua integridade.
208 As Mullieres Estudanres

dois capítulos anteriores, o ambiente ero que se <lava o estudo da Torá esta- 7
va organizado como urna comunidade homossocial, cuja vida girava em tor-
no de urna liga~ao erótica á figura femin ina da Torá. A Torá e a mulher sao
alomorfos estruturais e ocupam domínios diferentes dentro desta cu ltura _
a norma dita que ambas devem ser altamente estimadas, mas devem se man-
(Re )produzindo os Homens
ter isoladas. o próximo capítulo, veremos que nenhum <lestes pólos era A Construc;ao do Corpo Masculino Rabínico
completamente estável dentro da cultura; ambos constituíam urna área de
significados conflitames.

Disse Rabi Yohanan: "O membro de Rabi lshma'el, filho de Yosse, era como
um odre de nove kav; o membro de Rabi El'azar, filho de Rabi Shim'on, era
como um odre de sete kav". Rav Papa disse: "O membro de Rabi Yohanan era
como um odre de tré.s kav". E alguns di.zem: como um odre de cinco kav. Rav
Papa tinha um membro que era como os cestos de Hiparenum.
(Talmude da Babilonia Baba Metzi'a 84a) 1 .

Urna discussao academica comparando o tamanho do penis do nosso herói


com os de outros santos rabís seria a última coisa que esperaríamos encon-
trar no Talmude 2 . este capítulo, estudaremos uro longo texto narrativo que
gira em torno da co nstru~ao da masculinidade - constru~ao que, por sinal,
está repleta de ansiedade. A presen~a de falos enormes, principalmente nos
clérigos, fazem-nos lembrar de Rabelais 3 , um sinal de que o nosso texto per-
tence á tradi~ao do grotesco, que Bakhtin associa a questóes culturais liga-
das á procria~ao (Bakhtin 1984). De fato, um exame mais aprofundado do
texto revela que a questao do corpo físico, do corpo reprodutor, é um de
seus temas centrais4 . Tudo o que lemos neste livro até agora sobre o judaís-

Esta passagem, assim como todos os 1extos citados aqui, fo¡ traduzida do melhor
manuscrito desta sec;ao do Talmude, Hamburg 19.
2 lsso é tao inesperado, que quase todos os comentaristas "interpretam" esta passagem a pon-
lo de mudar completamente o seu senúdo. A palavra aramaica 'evrd1 significa exatamente
'"membro" e, assim como em ponugués, pode se referir a várias panes do corpo. Assim, al-
guns intérpretes afirrnam que o termo se refere as visceras, enquanto outros dizem que se
refere aos brac;os ou as pernas. Porém, assim como em portugues, quando esta palavra é
empregada sem qualifícaúvos, ela geralmeme significa o membrum virile. Como veremos,
esta interpretac;ao é a mais adequada dentro <leste contexto. Gesta.ria de [risar, comudo,
que mesmo que a minha interpretac;ao desta palavra fosse quesúonável, as afírmac;oes que
fac;o neste caplculo nao seriam prejudicadas, pois ainda restam indicios suficientes no texto
para corroborar a minha leitura geral.
3 Esta associac;ao aparentemente nao é inevitável, pois um leitor anOnimo allrmou nao ter en-
contrado nada de grotesco no texto!
4 Outros trabalhos académicos sobre este texto se preocuparam basicamente'em encontrar o
chamado "cerne de verdade [históricar que supostamente estaria preservado nesta narraú-
210 (Re}produzindo os Homens
(Re)produzindo os Homens 211

mo rabínico corrobora a conclusao de que a reproduc;ao tinha urna impor-


Rabi El'azar, filho de Shim'on, é escollúdo pelo govemo romano para
tancia vital dentro da cultura rabínica, sendo que a genealogía servia como
prender ladróes judeus. Rabi Yehoshua, o Calvo, encontra-se com ele e o
urna fonte crucial de significado. De acordo com Bakhtin, o corpo grotesco
chama pelo epíteto ofensivo de "Vinagre, filho de Vinho", dando a entender
representa o triunfo da vida sobre a morte:
que ele é indigno de seu grande pai. El'azar dá urna explicac;ao canhestra
É o carpo conjunto das pessoas, em constante crescimento e sempre
para as suas ac;óes. o entamo, quando um tintureiro se dirige a ele nos
vitorioso, que se sente "em casa" no cosmo. Ele é a carne e o osso do cosmo, mesmos termos, fica furioso e manda prende-lo. Depois de se acalmar, fica
com o qual companilha da mesma fon;a elemental, apesar de ser mais bem arrependido e tenta libertar o homem, mas nao consegue. De pé <liante do
organizado. O carpo é a última palavra do cosmo, a sua forc;a condutora. tintureiro crucificado, ele comec;a a chorar, mas um judeu que passava por
Portanto, ele nao tem nada a temer. A marte nao !he traz horror. A marte do ali lhe dizque nao era preciso se preocupar, pois o crucificado e seu filho ti-
individuo é apenas um momento na vida triunfante das pessoas e da nham tido relac;óes com urna mulher casada no Dia da Expiac;ao, cometendo
humanidade, um momento indispensável para a sua renovac;ao e vários crimes capitais. O rabi fica contente e, colocando a mao na barriga,
aperfeic;oamento. diz: "Alegrai-vos, minhas tripas. Se acertais tao bem quando nao tendes urna
(341) informac;ao segura, imaginai como podereis acertar quando tiverdes certeza.
Nao tenho dúvidas de que jamais apodrecereis, nem os vermes poderao vos
este capítulo, pretendo estudar a dinamica cultural de um texto talmúdico vencer". Contudo, apesar <leste arroubo de confianc;a, o rabi ainda nao tinha
onde a temática do grotesco está presente de forma obsessiva, como em Ra- firmeza nas suas convicc;óes, entao resolve testar a teoria de que as suas tri-
belais. A biografía do virtuoso Rabi El'azar, filho de Shim'on, narrada no pas sao invulneráveis antes mesmo de morrer. Ele manda remover vários
Talmude da Babilonia (Baba Metzia 83b-85a) é certamente urna das mais es- cestos de gordura da barriga, com os vasos sanguíneos, e as coloca ao sol
tranhas "hagiografías" da literatura. Com urna preocupac;ao mínima com a para ver se apodreciam (o que nao acontece). Depois de algumas "digressóes"
consistencia da trama, o texto é composto por urna série de incidentes cuja significativas (que discutirei com maiores detalhes mais adiante), a história
principal característica é quase sempre lidar com o corpo do personagem. continua: o rabi, ainda inseguro, impóe a si mesmo urna penitencia que aca-
Além disso, o texto é interrompido pela história do corpo de outros rabis. ba resultando numa doenc;a. Toda manha, sessenta toalhas de feltro enchar-
a minha opiniao, o tema <leste texto é o corpo masculino, a sexualidade e a cadas de sangue e pus sao removidas de baixo de seu corpo. A sua esposa,
reproduc;ao; a narrativa também apresenta urna grande ansiedade em rela- temendo que os outros rabís reprovassem o comportamento do marido, im-
c;ao a procriac;ao dos homens na cultura rabínica. Por um lado, o texto con- pede que ele vá a Casa de Estudo, até que, enojada pelo seu comportamento
firma a interpretac;ao de Bakhtin, segundo a qua! o grotesco estaría ligado ascético, acaba abandonando-o. Ele volta, entao, a comunidade rabínica,
essencialmente ao corpo reprodutor e, portanto, a reproduc;ao. Por outro onde seu primeiro ato é permitir que sessenta mulheres, suspeitas de esta-
lado, porém, ele nao fala do corpo que nao tem nada a temer, mas sim do rem menstruadas, tenham relac;óes sexuais. Como conseqüencia, nascem
corpo cheio de terror e ansiedade. sessenta meninos que recebem o seu nome. A sua mulher volta para casa
A fábula da narrativa é a seguinte: (apesar de o texto nunca dizer quando, como, nem por que) e quando ele
está prestes a morrer, diz a ela que os outros rabis ainda estao zangados e
va. o enlanto, há outras obras que desafiam o modelo do "cerne de verdade". Tanto
maltratarao o seu corpo. Ordena, entao, que seu corpo fique guardado no
Shammma Friedman (1985 e 1989), quanto Meir (1988) e Yassif (1990, 114-19) questio- sótao, onde permanece sem apodrecer durante cerca de vinte anos. Final-
nam as interpretac;óes históricas dominantes. Estas obras aprofundam o nosso conhecimen- mente, um día alguém ve um verme saindo da orelha do mono. O pai do
to a respeito do processo de composic;ao <lestes textos e de suas propriedades literárias rabi manda dizer do outro mundo que deseja que seu [ilho seja enterrado ao
formais. Apesar de nenhuma delas procurar lidar com os textos como documentos de signi-
ficado cultural, o trabalho que realizam é um prelúdio necessário para a anális e que condu- seu lado; depois de algumas peripécias, o seu desejo é atendido e o carpo é
zo aqui, pois de acordo com o paradigma dominante da Cit ncia do Judaísmo (estabelecido enterrado. Seguem-se entao alguns acréscimos a história que, como vere-
no século XlX e dominante até hoje, apesar de ter perdido muito de sua forc;a na última dé- mos, ampliam ainda mais o seu significado.
cada), as histórias nao eram encaradas como documentos literários, mas sim, mirabile dic-
lu , como crOnicas históricas mais ou menos exatas. Os escudos de Friedman,
Nem este rápido resumo do enredo, nem a extensa análise que se segue
panicularmente, desafiam ctiretamente o paradigma da pesquisa histórica.
(Re}produzindo os Homens 213
212 (Re)produzindo os Homens

cheira mal. Isso só acontece se ela tem va.sos sangüineos vermelhos; mas esta,
podem abranger o carpo vastíssimo <leste texto. Urna traduc;ao completa
apesar de ter vasos sangüíneos vermelhos, nao cheirou mal. Ele aplicou a si
está a disposic;ao do leitor no final da discussao. mesmo o versículo: "até minha carne será preservada" (SI 16,8-9).

O rabino é recrutado pelas autoridades romanas como urna espécie de cola-


A POLÍTICA E O GROTESCO borador, que entrega os judeus que nao pagam impostas. Esta atitude é con-
denada abertamente na narrativa. Rabi El'azar recebe o apelido de "Vinagre,
A primeira vista, parece possível ler o texto como urna espécie de sátira polí- filho de Vinho" (i.e., Filho Iníquo de um Santo Pai) e lhe perguntam: "até
tico-social, um ataque contra certos rabís que eram gordos a ponto de beira- quando continuarás a enviar o pavo de nosso Deus a marte"? o entamo,
rem o grotesco e, por implicac;ao, eram indisciplinados e gulosos, além de se seria urna simplificac;ao grosseira do texto dar-lhe apenas urna interpretac;ao
deixarem recrutar pelas autoridades romanas para trair outros judeus: política. Na verdade, o próprio texto contradiz repetidas vezes esta leitura. É
verdade que o rabino é chamado de "Vinagre, filho de Vinho", o que a prin-
Trouxeram Rabi El' azar, filho de Shim'on, e ele comei;ou a pegar ladróes
cípio justifica urna interpretac;ao do texto em termos políticos. Contudo, o
[entregando-os aos romanos]. Ele se encontrou com Rabi Yehoshua, o Calvo,
que lhe disse: ''Vinagre, filho de Vinho: até quando continuarás a enviar o
teste a que sua carne é submetida com sucesso e o forte testemunho a res-
povo de nosso Deus a morte?!" Ele [El'azar] respondeu: "Estou retirando os peito da culpa do tintureiro (que merecía a pena de marte por diversos cri-
espinhos da vinha". Ele [Yehoshua] retrucou: "Deixe que o Dono da vinha mes) prejudicam esta leitura. Além disso, em outro momento da narrativa,
venha retirar os espinhos". Um dia, um ceno tintureiro 5 se encontrou com ele ele é citado como um santo Uustamente quando o seu filho é representado
[El'azar] e o chamou de "Vinagre, filho de Vinho." Ele disse: "Se ele é ta.o como um pecador!). Sao necessários modelos culturais mais complexos para
descarado , enl.3.o tarnbém deve ser iníquo". Ordenou: "Prendara-no." Ele foi compreender um texto tao contraditório. Bakhtin pode nos oferecer estes
preso. Quando se acalmou, ele [El'azar] foi soltá-lo, mas nao conseguiu. modelos. Ele discute ambivalencias semelhantes na tradic;ao européia do
Aplicou entao a ele [o tintureiro] o versículo "Quem guarda a boca e a língua grotesco:
se guarda de problemas" (Pr 21 ,23)6 . Penduraram o tintureiro na cruz. Ele
[El'azar) ficou <liante do crucificado e chorou. Alguém lhe disse: " ao te A alma do povo como um todo nao pode coexistir com o corpo privado,
angusties; no Iom Kipur, ele e seu filho úveram relai;óes com urna moi;a que limitado e ganancioso. A mesma característica complexa e conrraditória está
estava noiva." aquele instante, ele colocou a mao na barriga e disse: presente nas imagens corporais ligadas ao banquete: a barriga enorme, a boca
"Alegrai-vos, minhas tripas, alegrai-vos! Se é assim quando estais com aberta, o falo gigantesco e a imagem positiva, na consciencia popular, do
dúvidas, quando tiverdes certeza será melhor ainda. Tenho certeza de que "homem satisfeito". A barriga enorme dos demonios da fertilidade e dos
nema podridao e os vermes poderao vos atingir. " Mas nem assim conseguiu glutóes que assumem o papel de heróis populares (como o Gargantua do
ficar tranqüilo. Deram-lhe urna poi;ao para dormir, levaram-no para urna sala folclore , por exemplo) é transformada na panc;a do abade simoníaco
de mármore e abriram a sua barriga, de onde tiraram cestos de gordura, que insaciável. Esta imagem, dividida entre estes dois extremos, tem urna vida
colocararn no sol de julho; a gordura nao cheirou mal. Mas a gordura nunca complexa e contraditória.
(292)

5 O tintureiro espeno, que várias vezes se opóe aos rabis e em algumas ocasiOes os supera, é
uro dos temas recorremes da lenda talmúdica. Quamo a urna confrontac;l'io semelhante na
É justamente esta associac;ao complexa e contraditória do carpo grotesco
Literatura grega, ver a disputa entre Cléon e o "fazedor de salsicha" nos Cavalefros de com a explorac;ao e, de outro lado, com as imagens positivas da fertilidade e
Aristófanes (877-80; citado por Winkler 1989, 54). da fecundidade, que fomecerá urna entrada importante para urna leitura
6 Apesar de, no nivel superficial, o rabi aplicar este verslculo ao condenado, que nao teria se
metido nesta enrascada se nao fosse tao descarado, num outro nivel (mais irOnico?), o
mais rica desta história.
verslculo poderia se aplicar ao próprio Rabi El'azar. este ponto da história, ele já está O texto apresenta claramente vários elementos do grotesco identificados
sentindo grandes remorsos e terá enormes problemas mais tarde por náo ter "guardado a por Bakhtin. Como este teórico demonstrou, o carpo grotesco é o carpo sem
boca e a lingua" - por nao ter mantido o silencio, condenando, assim, o tintureiro junto
limites. o tema do tamanho exagerado, dos órgaos destacáveis, da enfase
aos romanos. De acordo com um manuscrito importante (o MS de Florenc;a), o texto cliz
que "ele aplicou a si mesmo o verslculo", levantando explicitamente esta possibilidade nos orifícios e das histórias de desmembramento s~o representac;óes do cor-
hermeneutica.
214 (Re)produzindo os Homens (Re)produzindo os Homens 215

po em interar;ao com o mundo, e nao comido em si mesmo, como o corpo trabalho sernelhante para o govemo romano e também é citado como o filho
clássico: inferior de um grande pai:

Estas convexidades e orificios tem urna característica em comum; é através Com Rabi lshma'el, filho de Yose, também ocorreu um episódio semelhante.
deles que os limites entre os corpos e entre estese o mundo sao superados: Eliahu (o profeta Elias) se encontrou com ele e Lhe disse: "Até quando
há urna troca e urna inter-orienta<;ao. É por isso que os principais continuarás a enviar o povo de nosso Deus a morte"?! Ele respondeu: "O que
acontecimemos da vida do corpo grotesco, os atos do drama corporal, posso fazer? Sao as ordens do rei". Ele lhe disse: "O teu pai fugiu para a Asia
ocorrem nesta esfera. Comer, beber, defecar e outras formas de elimina<;ao Menor; foge para Lídia".
(suar, assoar o nariz, espirrar), assim como a cópula, a gravidez, o Quando Rabi lshma'el, filho de Yose, e Rabi El'azar, o filho de Rabi
desmembramemo, o ato de ser engolido por um outro corpo - todos estes Shim'on, se encontravam, um boi podía passar entre os dois sem tocá-los.
atos sao realizados na fronteira do corpo com o mundo, ou na fronteira do
velho corpo com o novo. Em todos estes eventos, o início e o fim da vida Estes rabinos sao de fato proto-Gargantuas, pois quando ficam juntos, as
estao Ligados e entrela<;ados. suas barrigas formam um arco tao grande, que um boi pode passar por bai-
(Bakhtin 1984, 317) xo dele. É interessante ver como o texto do Talmude confirma a extraordiná-
ria conclusa.o de Bakhtin, combinando num único momento a barriga
Como seria de se esperar, a tradir;ao cultural do grotesco apresema urna gigantesca que "esconde os membros norrnais do corpo" e o desmembra-
grande ambivalencia no que diz respeito a este aspecto do corpo. Os princí- mento <leste órgao monstruoso. De fato, a imagem do que acontece com o
pios opostos da fecundidade e da degradar;ao na doenr;a e na morte sao urna corpo do rabino pode ser comparada ao parto, a urna espécie de cesariana
das fontes desta ambivalencia e ambos sao evocados com energía pela histó- lunática. Esta associar;ao se encaixa perfeitamente na lógica do corpo grotes-
ria contada no Talmude. lmagens de deteriorar;ao, desmembramento e mor- co, pois é justamente da relar;ao entre fertilidade e morte que o grotesco tira
tificar;ao do corpo permeiam toda a narrativa. o seu poder (Bakhtin 1984, 238). O próximo episódio da narrativa tematiza
O rabino impóe a si mesmo um bizarro teste de pureza. Para demonstar explícitamente esta relar;ao.
que a sua atitude em relar;ao ao judeu que condenara á morte estava correta,
procura provar (a si mesmo) que possui um corpo clássico, invulnerável. Ele
afirma que assim como tem certeza de ser justo, também tem certeza de que A REPRODU(:ÁO E O CORPO GROTESCO
seu corpo nao será atingido pela destruir;ao causada pelos vermes depois da
morte. Ou seja, ele ve a si mesmo como um corpo clássico, puro e fechado O tema da reprodur;ao comer;a a se impor explícitamente na continuar;ao da
ao mundo externo. lronicamente, o teste que o rabino inventa para provar a anedota dos dois rabinos gordos. Assim, o tema da obesidade grotesca passa
sua auto-imagem acaba por solapá-la. Ele viola a integridade de seu corpo a ficar ligado ao tema da fecundidade:
em plena vida na bizarra operar;ao em que retira cestos de gordura da barri-
ga, colocando-os ao sol para ver se de fato resistirao á deteriorar;ao. Ternos, Urna certa matrona Lhes disse: ''Teus filhos nao sao teus". Eles responderam:
entao, um momento extremamente sarcástico, em que a apoteose do grotes- "As delas sao maiores do que as nossas". "Se isso é verdade, pior ainda"!
co é apresentada como urna prova do clássico! Alguns afinnam que os dais lhe disseram : "Assim como é o homem, também é a
Como Bakhtin já observou, a irpagem de partes do corpo que crescem sua virilidade". E outros afinnam que os dais lhe disseram: "O amor comprime a
de maneira desproporciona! é "na verdade um retrato do desmembramento, carne".
de áreas isoladas do corpo que atingem dimensóes gigantescas" (328). Se é
possível retirar cestos de gordura de seu corpo, entao o rabino <leve ser gro- Ao ver os dois rabinos obesos, a matrona romana nao consegue acreditar
tescamente gordo. Da mesma maneira, a sua atividade é apresentada como que eles podiam ter relar;óes sexuais, entao questiona a legitimidade de seus
urna violar;ao grotesca da integridade do corpo do povo judeu. A associar;ao filhos. Segue-se entao urna breve farsa lingüística. Eles lhe dao urna resposta
do corpo grotesco ao comportamento grotesco é enfatizada ao ser reproduzi- enigmática ("As delas sao maiores do que as nossas"): para eles, aparente-
da em outra figura rabínica, Rabi lshma'el, o filho de Rabi Yose, que faz um mente, a matrona quería dizer que o tamanho gigantesco de seus penis os
216 (Re)produzindo os Homens (Re)prod11zindo os Homens 217

impedía de ter ter relac;óes; eles respondem, entao, que as suas esposas tem plo da grande habilidade de Rabi El'azar, entao, é um forte indicador do "as-
vaginas ainda maiores 7 . A matrona interpreta mal esta resposta e pensa que sunto" do nosso texto9 :
eles se referem á barriga de suas mulheres; daí o seu comentário: "se as suas
mulheres sao ainda mais gordas, entao é ainda menos provável que voces Um dia ele fo¡ a casa de estudo. Levaram até ele sessenta úpos de sangue e ele
possam ter relac;óes". este ponto, os rabinos gordos finalmente compreen- declarou que todos eram puros. Os rabis murmuraram a seu respeito,
dem a preocupac;ao da matrona e dao urna nova resposta: de acordo com dizendo: Será possível que nao haja nenhum caso duvidoso entre estes todos?
urna tradic;ao, afirmam que os órgaos genitais do homem sao proporcionais Ele disse: "Se eu estiver correto, que todas as criarn;as sejam meninos, senao,
ao resto de seu corpo; de acordo com outra, que o desejo consegue superar que haja urna menina entre elas". asceram apenas meninos. Todos
receberam o nome de Rabi El'azar. O nosso Rabi disse: "Quanta procriac;:ao
a obesidade.
aquela mulher perversa impediu em Israel"!
É neste momento de ansiedade em relac;ao á paternidade que se introduz
o relato a respeito dos falos gigantescos dos rabinos. A partir <leste inciden-
Ao invés de culparem a si mesmos por urna possível queda na procriac;ao -
te, o texto produz urna série fantástica de histórias que enfocam a ansiedade
urna vez que, devido ao rigor excessivo com que aplicavam as suas leis, im-
em tomo dos sexos e da reproduc;ao. O sinal mais óbvio desta preocupac;ao
pediam que as mullieres tivessem relac;óes com os maridos - os rabinos
temática é o fato de Rabi El'azar, logo depois de voltar á Casa de Estudo,
deslocam esta culpa para a esposa de Rabi El'azar, cuja única falta foi prote-
permitir que sessenta mulheres tenham relac;óes com seus maridos, depois
ger o marido de possíveis maus-tratos nas rnaos <lestes mesmo rabís. Além
de examinar o seu íluxo sangüíneo e declarar que nao estavam menstruadas.
disso, o "crédito" pela procriac;ao que acabou ocorrendo é reivindicado pe-
De acordo com a prática rabínica, quando a mulher emite sangue e fica com-
los próprios rabís ao dar ás crianc;as o nome de El'azar 10 • Esta leitura indica
provado que se trata da menstruac;ao, ela e o marido estao proibidos de te-
rem relac;óes sexuais até que termine a emissao e seja feíto o ritual de urna fome provável para a enorme tensao presente no texto em tomo do car-
po reprodutor masculino: ansiedade em relac;ao ao papel da comunidade ra-
purificac;ao. o entanto, caso nao se saiba com certeza se esta emissao se
binica na reproduc;ao e na genealogía de Israel e, principalmente, em relac;ao
<leve á menstruac;ao, mostra-se um pedac;o de pano manchado de sangue ao
á sua própria genealogía, á sua propria conti nuac;ao através de seus filhos.
rabino, que dá um veredito de acordo com o seu conhecimento8 . Na nossa
Outra conexao particularmente forte e perturbadora entre o corpo gro-
história, sessenta manchas <leste tipo sao apresentadas a Rabi El'azar, que
tesco de Rabi El'azar e o corpo reprodutor feminino fica evidente na descri-
chega á conclusao de que nenhuma delas era resultante da menstruac;ao. Ele
c;ao de sua doenc;a: "A noite, dobravam sessenta toalhas de feltro embaixo
permite, entao, que as sessenta mulheres tenham relac;óes sexuais. As ses-
dele e, de manha, encontravam sessenta vasos cheios de sangue e pus". O
senta crian<;as concebidas nas relac;óes autorizadas por R. El'azar recebem o
texto se utiliza de um recurso formal para trazer á tona a questao relaciona-
seu nome - o que, num certo sentido, coloca-o na condic;ao de pai delas.
da aos sexos discutida aqui. Nao é possível separar os sessenta vasos de san-
Creio que o próprio fato de esta passagem ter sido introduzida de forma tao
gue p odre das sessenta amostras de sangue fe minino a presentados ao
gratuita na narrativa é um sinal de sua importancia como um síntoma da en-
rabino na passagem estudada acima. Como seria de se esperar, o texto sobre
fase temática do texto. O rabino podía realizar qualquer ato de grande enge-
o corpo grotesco acaba se voltando explícitamente para questóes temáticas
nhosidade haláquica (leí rabínica) para provar que os anos em que esteve
afastado da Casa de Estudo representaram urna grande perda para a Torá,
mas o feíto haláquico que executa está ligado justamente á sexualidade e á 9 Isto é, de sua func;ao cultural. Repare que o texto paralelo na tradic;ao palestina apresenta
reproduc;ao. A escolha desta questao haláq4ica em particular como um exem- praticamente a mesma história, mas todos os Lemas relacionados ao sexo e :l. reprodm;ao
estao ausentes. Para urna comparac;ao dos dois textos, ver Boyarin (1991). Mesmo o Lema
da perda da forc;a causada pelo estudo da Torá, que também aparece no texto palestino,
nao possui as mesmas implicac;óes ligadas ao sexo e :l. questao dos g~neros que apresenta
7 Devo esta interpretac;ao a David Satran. A idéia brilhante de que a matrona e os rabinos no Talmude da Babilónia. Ver Mandelbaurn ( 1962, 194 et seq.). O texto palestino, ponan-
nao estavam falando da mesma coisa foi sugerida por Christine Hayes, urna de minhas alu- Lo. é sobre outro "assunto".
nas. 10 Reftro-me, é claro, ao narrador ou autor da nossa história, e nao aos rabis da narrativa.
8 Esta prática, é claro, tem aspectos preocupantes no que diz respeito :l. relac;ao entre os se- Comparar com Os Patriarcas segundo Rabi Natan , Versao A, parag. 12: "Alérn disso, quan-
xos e ao poder sobre o corpo e a sexualidade da mulher. Esta questao será abordada com tos milhares em Israel receberam o nome de Aar:l.o! Pois se nao fosse por Aarao, estas c:rian-
maiores detalhes numa pesquisa futura , dv. c;::is nao Leriam nascido [pois foi ele quem reconc:iliou os seus pais)" (Goldin 1955, 64).
218 (Re}produzi11do os Home11s (Re)produzi11do os Homens 219

relacionadas a sexualidade, aos generos e a reprodw;ao. O conceito bakhti- com a sua própria "continua<;ao através da reprodu<;ao". A provoca<;ao da
niano do corpo grotesco e de sua liga<;ao complexa e ambivalente com a matrona, segundo a qual os filhos dos dois rabinos obesos na verdade sao
mone e o nascimento fornece, emao, um modelo conceitual que nos permite bastardos, apenas acentua com a sua ironía o fato de que estes nao sao rea~­
relacionar, num único sistema textual complexo, passagens que costumam mente filhos de seus país. Este tema é retomado mais urna vez na extraord1-
ser encaradas como urna série de pomos isolados ll. nária continua<;ao desta história, na página seguinte do Talmude:

Rabi passou pela cidade de Rabi El'azar, o filho de Rabi Shim'on [depois que
VINAGRE, FILHO DE VINHO: ele já tinha marrido]. Ele perguntou: "Este homem virtuoso tem um filho"?
O PROBLEMA DA REPRODUTIBllIDADE Responderam: "Ele tem um íilho, e qualquer prostituta que é comprada por
duas [moedas) pagaria oito por ele". Ele [Rabi] foi, ordenou-o e o entregou a
Rabi Shim'on, filho de lssi, filho de lakonia, o irmao de sua mae [para
O apelido de Rabi El'azar ben Shim'on, "Vinagre, filho de Vinho", ao invés
ensinar-lhe a Torá].
de ser encarado apenas como o fruto de um juízo político, agora pode ser
!ido como urna expressao do problema da reprodutibilidade, que é a ques-
12 O filho de Rabi El'azar, aquele que já havia sido chamado de ''Vinagre, filho
tao básica do texto • Rabi Shim'on, o pai do nosso herói, era um dos mais
de Vinho", também é apresentado como um filho indigno de seu pai. ~pro­
santos e ascéticos de todos os rabis, um homem famoso pela sua total devo-
blemática da continuidade através da procria<;ao é colocada de forma mten-
<;ao ao estudo da Torá e pela sua oposi<;ao implacável aos romanos. O seu fi-
sa neste rápido incidente. Por um lado, ternos um pai feio, cuja filho possui
lho, como mostra a sua obesidade e a sua disposi<;ao para agir como um
um carpo tao bonito, que as prostitutas pagariam quatro vezes o seu pre<;o
servi<;al dos romanos, nao é "Vinho", como seria de se esperar, mas "Vina-
de costume para dormir com ele. Por outro lado, ele é apresentado como o
gre", um produto bem inferior. Pode-se dizer o mesmo de Rabi lshma'el, o fi-
filho ímpio de um pai subitamente santificado. Assim, a cren<;a confor_tável
lho de Rabi Yosse, mais um filho ignóbil de um pai nobre. Com urna grande
na sobrevivencia através da reprodu<;ao é questionada duas vezes atraves da
ironía (dramática), estes dais homens sao questionados pela matrona roma-
mesma figura: ele nao se parece com o pai, nem segue o mesmo caminho. A
na, que insiste: "teus filhos nao sao teus". Segundo ela, a obesidade os impe-
história também propóe urna solu<;ao para este desespero trágico: a reprodu-
diría de ter rela<;óes com suas esposas. o entamo, eles encontram urna . d a ed uca<;ao
- 13 .
<;ao atraves
maneira convincente de dizer que sao de fato os país de seus filhos, de
Esta história é reproduzida por outra ainda mais extraordinária:
modo que estes nao sejam ridicularizados mais tarde. A matrona interpreta
mal o significado de seus carpos e pensa que a sua gordura grotesca repre-
Rabi veio á cidade de Rabi Tarfon. Ele perguntou: "Este homem virtuoso tem
senta um rompimento da conexao genealógica entre eles e seus filhos. Con- algum filho"? [pois Rabi Tarfon] tinha perdido os filhos. Disseram: "_Ele nao
tudo, nós, os leitores, sabemos que a conexao genealógica mais importante tem nenhum filho , mas possui o filho de urna filha e qualquer prosmma que
nao é a rela<;ao física que liga estes homens a seus filhos, mas sim a espiri- é comprada por quatro o compra por oito". Ele !he disse: "Se voltares [á Torá),
tual que os une a seus país. Os país sao vinho; os filhos, vinagre. darei minha filha para ti". Ele voltou.
A questao central do texto, entao, parece ser a preocupa<;ao dos rabís
o trecho representa urna recapitula<;ao de vários temas que estudamos até
agora. Rabi Tarfon nao possui nenhum filho vivo e, além disso, seu (únic~?]
11 Esta declarac;:ilo nao deve ser tomada como um raciocinio estruturalista, ou baseado na
ova Crítica, onde se procura totalizar o significado da narrativa. Pretendo apenas afirmar neto está completamente afastado da Torá. Rabi o coloca sob a sua ~r~te<;~o
que o texto lida com um grande núcleo temático. Outros núcleos temáticos també.m podem através de urna rela<;ao eróáca deslocada, urna situa<;ao que se repeura ma1s
estar presemes no mesmo texto.
adiante e que será discuáda mais tarde 14 • Vejo aquí urna tensao extraordiná-
12 Mais urna vez, este tema já aparece na "fome" palestina. Nao pretendo afirmar, ponamo,
que havia um conllito absoluto entre a ideologia palestina e a babilónica, mas sim que na
regiilo da Babilonia, relativamente livre da iníluéncia helenista, houve um desenvolvimemo 13 Nao deixe.i de perceber a presenc;:a de oulra questilo envolvida aquí, a saber, a rela~a o entre
mais profundo de conflitos internos que já estavam presentes na cultura. É interessante ob- os cunhados. Este tema será esboc;:ado mais adiante e merece ser estudado com ma1ores de-
servar que urna das justificativas para o celibato na filosofia Shaker é que muitas vezes as talhes.
críanc;:as geradas saíam ruins (Kitch 1989, 52). 14 A análise cultural de Sedgwick ( 1985) é sem dúvida a mais relevante neste caso e será de-
220 (Re)produzindo os Homens (Re)produzindo os Homens 221

ria na cultura rabínica entre o desejo de transmitir o manto da Torá de pai lhado neste texto e, principalmente, o desfecho grotesco do verme saindo da
para filho e a ansiedade trazida pelo fato de que, num sentido mais profun- orelha do rabi nao sugerem urna hagiografia, mas urna sátira ou paródia de
do, as pessoas ndo reproduzem umas as outras e a reprodu(do nao é uma solu- hagiografía. Apesar de 0 texto reduzir a forc;a da imagem ao atribuir-lhe urna
(do para a morte. moral, 0 poder "perturbador" nao desaparece. Se um verme sai da orelha de
Depois da morte de Rabi El'azar, a invunerabilidade de seu corpo é testa- um corpo, a conclusao lógica é que a cavidade. está cheia de ven:ies. P~ra
da mais urna vez. O texto produz outra imagem mareante de um nascimento compreender melhor este ponto do texto, é pre~1so lem~ra~ que ate o peno-
grotesco a partir da carne de um corpo moribundo masculino ferninilizado. do moderno acreditava-se que o corpo produzia os propnos vermes que o
Esta associac;ao se enquadra perfeitamente na lógica do corpo grotesco, pois devoravam. Dizia-se que o corpo "gerava" os vermes, ou seja, era dele que os
é j ustamente n a conexao da fertilidade com a morte que o grotesco en contra vermes nasciam. É difícil imaginar, portanto, um ícone mais poderoso da
o seu poder (Bakhtin 1984, 238). Além disso, a obesidade, por sisó, já urna morte em vida e da vida na· morte, da imbricac;ao da morte na produc;ao da
questao associada ao genero, pois está ligada ao corpo grotesco maternal1 5 : vida11. Esta presenc;a do grotesco no Talmude difícilmente representa a "últi-
ma palavra do cosmo". . .
Quando estava morrendo, ele disse a esposa: "Sei que os rabinos estao Também tenho as minhas dúvidas a respeito de Rabela1s. A imagem de
furiosos comigo e nao vao me tratar direito. Deixa-me ficar no sótao e nao um bebe gigantesco a ponto de sufocar a própria mae ª?
nascer e_stá ta~. l?n-
tenhas medo de mim". Rabi Shmuel, o filho de Rabi Nahman, disse: "A mae ge de corroborar os comentários entusiásticos de Bakhtm a respello da ';da
de Rabi Yohanan me contou que a mulher de Rabi El'azar, o filho de Rabi triunfante", quanto· um corpo que é consumido pelos verm~s que .~le ge-
Shim'on, contou a ela que 'nada menos de dezoito anos e nada mais de vime
e dois [anos] ele ficou no sótao. Eu ia lá todos os dias e olhava para os seus rou ". De fato , quando Bakhtin fala da "morte que trazo nasetmento (392), ,, 18
creio que muitas vezes é preciso pensar no "nascimento que traz a morte .
cabelos; quando se arrancava um fio, saía sangue. Um dia vi um verme saindo
de sua orelha. Fiquei muito transtomada e tive um sonho em que ele me dizia Na verdade, eu diría que a questao da reproduc;ao como o elemento ~ue ga-
que nao era nada, pois um dia ouvira um esrudante rabínico ser difamado e rante "a vida triunfante das pessoas", a conquista sobre a morte descnta por
nao protestara, como deveria'". Bakhtin, é a fome da tensao interna <leste discurso. Para o Rabelais de Bakh-
tin nao há a menor dúvida de que os filhos repetirao o pai [sic], tomando-o
Mais urna vez nos deparamos com o auge do grotesco justamente num pon- im~rtal19, e, mais ainda, de que "o novo florescer do pai no filho nao se dá
to em que o texto afirma estar fazendo urna representac;ao do clássico. O no mesmo nivel mas num patamar mais elevado do desenvolvimento huma-
tema do corpo do santo que nao apodrece depois de sua morte é muito co- no. Quando a ~ida renasce, ela nao se repete: ela se aperfeic;oa" (Bakhtin
mum na hagiografía clássica 16. Mas a forma aberrante com que ele é traba- 1984, 406 et seq.). Este desejo utópico parece se opor ao medo ex~resso
pelo Talmude de que o "novo florescer do pai'' saia es~ragado , u~ ~m.agre,
sem·olvida por mim em ouLro ponto do meu Lrabalho. Ver Lambém os comentários de R. filho de Vinho. A reproduc;ao, entao, ao invés de connnuar a existencia do
Howard Bloch sobre um grupo de estudiosos baslanle diferenle: "Mais do que um clube só individuo no futuro, apenas realc;a a desintegrac;ao trazida pela morte. O
de homens, esla exclusao [das mulheresl imagina como seu limile exlemo a possibilidade
de urna panenogénese quase sem a presenc;a feminina, que além de estrulurar a comunida·
de académica, garantiria a sua continuidade dinástica" (Bloch 199lb, 81). Esles comenlá-
rios podem ser aplicados em bloco á comunidade rabínica. que Loma estas histórias urna espécie de "Urna rosa para Emily" primitiva. Ver Hadas
15 No mundo clássico, os gordos eram considerados afeminados. Ver a discussao fascinante
(1953, 151). . . B kh · (1984
conduzida por Nicole Loraux (1990, 31-33). Ver Lambém Paglia ( 1990, 91) e Traub ( 1989, 17 Compare esLa passagem com o nascimento de PanLagruel, d1scuudo por a un •
461-64). 328). .
16 Quanlo a associac;ao da hagiografia ao clássico, ver Brown (1983). Há pouco Lempo, a im- 18 EsLas imagens se aplicam melhor a concepc;ao de fecundida~e de Pag~1a como um elemento
prensa israelense relaLOu que um grupo de judeus franceses enterrados em Paris, em mea- aLerrorizame, um símbolo da natureza feminina ensande~1da (Paglia 1990~. .º enlanto,
dos do século XIX, foi sepultado novamente numa cova comum em jerusalém, pois seus discorde desLa aULora em dois pontos cruciais, que estao 1merhgados: o pnme1ro_é a sua
restos morLais tinham sido penurbados. Descobriu-se que o corpo de um deles eslava imac- pressuposic;ao de que esLas represemac;oes Leriam urna origem n_acural, e nao social; ~ s~~
Lo e, por isso, recebeu um túmulo panicular, pois a sua preservac;ao "milagrosa" era urna gundo é 0 entusiasmo com que aceila os valores decorrentes da 1magem do ho mem class1
prova de sua santidade. Urna comparac;ao mais relevante para urna reílexao satírica sobre co e da mulher grOLesca. . . .
este Lema seria a hislória de padre Zósima em Os irmdos Karama<ov. Outra fome cultural 19 Segundo Elisheva Rosen, pode-se remeter a Víctor Hugo a mLerpreLac;ao oum1sla que Bakh-
desle Lema Lalvez seja o mole, nos romances helenisLas, da preservac;ao do amante mono, o tin dá ao grotesco (Rosen 1990, 129).
(Re)produzindo os Homens 223
222 (Re}produzindo os Homens

reprodu<;ao genética fosse idéntica a reprodu<;ao pedagógica persistia. Para


princípio reprodutor aparentemente nao era o bastante para assegurar a esta vermos um exemplo de como este desejo e este fracasso sao marcados na
cultura que a "morte nao tern dominio". história, basta lermos o trecho a seguir:
o entamo, ao rejeitar o caráter utópico da reprodu<;ao defendido por
Bakhtin, o nosso texto procura encontrar a sua própria solu<;ao utópica para Quanto a Torá, o que ele quería dizer? Quando Raban Shim'on, filho de
este problema, substituindo o penis pela boca fálica. Esta substitui<;ao foi Gamliel, e Rabi Yehoshua, o Calvo, sentavam-se nos bancos, Rabi El'azar, o
documentada e analisada de forma brilhante por Howard Eilberg-Schwartz filho de Rabi Shim'on, e o nosso Rabi sentavam-se no chao <liante deles e
(1990b, 229-34). O texto, contudo, mostra que ela nao resulta de um des- faziam perguntas e respostas. E os rabinos diziam: "Estamos bebendo de sua
conforto com o corpo e a reprodu<;ao genealógica, mas sim de um desespero água e eles semam no chao"!? Construíram bancos para os dois se sentarem.
<liante do fracasso <leste ideal. Os rabís sao, num sentido bastante forte, os Raban Shim' on ben Gamliel disse: "Tenho um pintinho emre vós e desejais
herdeiros da fun<;ao sacerdotal em Israel. Esta transferencia é representada que eu o perca"! 23 Tiraram Rabi do banco. Rabi Yehoshua ben Korha clisse:
"Será que aquele que tem pa i <leve viver e aquele que nao tem deve morrer"?!
pelo Talmude (Yoma 76b) no momento em que as pessoas que seguiam o
Também tiraram Rabi El'azar do banco. Ele ficou perturbado. Disse: "Acharn
Sumo Sacerdote ao sair do Santo dos Santos, no Dia da Expia<;ao, mudam
que n ós somos iguais. Quando o levantaram, também me levantaram; quando
de dire<;ao e vao atrás de Shemaia e Avtalion, figuras sernilegendárias que te-
o abaixaram, também me abaixaram". Até aquele dia, quando Rabi dizia
riam fundado o movimento rabínico 20 • Repare que a atividade a que Rabi algurna coisa, Rabi El' azar, o filho de Rabi Shim' on, costumava dizer: "Há
El'azar se dedica (distinguir o sangue da menstrua<;ao do sangue que nao urna tradir;ao que confirma a tua opiniao". A partir daquele clia, quando Rabi
causa impureza) é a tarefa por excelencia dos sacerdotes. A preocupa<;ao dizia: "Esta é a minha resposta", Rabi El'azar, o filho de Rabi Shim'on, passou
com a procria<;ao e a genealogia é um elemento central da cultura sacerdotal a dizer: "lsso é o que queres ·responder; tu nos cercaste de palavras vas,
na Bíblia; urn sacerdote sexualmente incapacitado chegou a ser impedido de respostas vazias". Rabi ficou irritado. Ele foi e contou a seu pai. Ele disse:
servir no altar e de aben<;oar as pessoas 21 . O significante da filia<;ao biológi- " ao fiques triste. Ele é um leao, filho de um leao, e tu és um leao, filho de
ca ocupa um lugar importante nos valores desta cultura. Sendo assim, o urna raposa".
manto rabínico devia passar de pai para filho, como ocorria com a coroa do
sacerdote. Mas nao é isso o que acontece, pelo menos nao diretamente. Por Raban Shim'on ben Gamliel, o patriarca, pode tomar coma de seu filho nes-
um lado, os rabis criaram urna espécie de meritocracia para substituir a aris- te mundo - "Raban Shim'on ben Gamliel disse: 'Tenho um pintinho entre
tocracia religiosa <litada pela Bíblia. A filia<;ao nao se dá mais entre pai e fi- vós e desejais que eu o perca"'! - mas nao pode garantir que o seu fill1o
lho, mas entre professor e discípulo 22 . No entanto, o desejo de que a terá um conhecimento superior ao dos filbos daqueles que lhe sao inferiores
em poder. Por outro lado, a injusti<;a de urn pai ter poder para promover o
seu filho inferior oeste mundo recebe urna solu<;ao utópica no texto, pois o
20 A questao fica ainda mais fone aquí pelo fato <lestes dois rabís nao serem sacerdotes here- outro Shim'on, que nao tinha nenhum poder enquanto vivo (chegando ao
ditarios e, pior ainda, serem judeus convertidos. Agradec;o a joshua Levinson por ter me
lembrado desta fonte. ponto de ser considerado inexistente: "Será que aquele que tem pai <leve vi-
21 Para urna excelente discussao desta questao, a partir de urna perspectiva comparaúva an- ver e aquele que nao tem deve morrer"?!) pode tomar conta de seu filho do
tropológica, ver Eilberg-Schwartz (l 990b, 141-76). outro mundo: "Alguns dizem que seu pai apareceu aos rabinos num sonho e
22 Ver Eilberg-Schwartz (1990b, 206-16 e 229-34). A interpretac;ao rabínica do "pai" e "filho"
bíblico como "mestre" e "disclpulo" é muito comum. Ver, por exemplo, Sifre Deuc. 34
(p.61), 182 (p.224), 305 (p.327) e 335 (p.385). O Novo Testamento levanta urna polémica
contra os fariseus por voltarem seus seguidores contra os pais biológicos. Tomar-se um narrador. o entanto, a instituic;ao do patriarcado e sua natureza hereditária foi urna fonte
"discípulo dos sábios" muitas vezes significava aceitar um pai rabínico em lugar do pai na- de conílitos políticos e culturais ao longo de toda a etapa inicial do período rabínico. As di-
tural. Ver a história de R. Eliézer b. Hircano em Os Patriarcas segundo Rabi Nalhan , parag. 6 mensóes políúcas <leste conílito cultural sao, é claro, muito importantes, mas estao além do
(Goldin 1955, 43), e seus paralelos. Esta meritocracia, porém, nao era um sistema simples, escopo desta obra. Quanto a passagem da func;llo rabínica de pai para filho e a tensao que
pois a instituic;ao do patriarcado, que possula um enorme prestigio temporal e religioso, este principio causava <liante da meritocracia da Torá, ver Alon ( 1977, 436-57), Moshe Beer
está calcada justamente na hereditariedade. A questao desta insútuic;ao e de sua natureza (1976), resumido por Moses Beer (1980) e Gafni (1986). Agradec;o a Steven Fraade por es-
hereditária é levantada no nosso texto através da história de Rabi El'azar e Rabi enquanto tas referéncias.
crianc;as (que estudaremos logo a seguir). 23 Ele era pai de Rabi. A sua preocupac;ao é que o fato de apontarem o seu filho como um
o final, é Rabi, e nao Rabi El'azar, quem carrega o manto do poder político em sua menino especial possa atrair o Olho Grande sobre ele.
época e assume o papel de figura cultural central para o judaismo talmúdico da época do
224 (Re)produzindo os Homens (Re)produzindo os Homens 225

disse: 'Tenho um pintinho que está entre vós e nao quereis traze-lo até mim"'. medo do Olho Grande"? Ele respondeu: "Sou da semente de José, nosso pai, a
Ao repeúr a mesma frase , o texto poe em relevo o conllito causado pelo de- respeito do qual se diz: 'Um füho fecundo éjosé, um füho fecundo junto a
sejo de que o mérito e o prestigio fossem transmitidos de forma homóloga fonte'" [Gn 49,22]; e Rabi Abahu disse (a respeito deste versículo): "Nao o
de pai para filho , frisando mais urna vez que isto nao acontece no mundo interprete como 'junto a fonte', mas como 'Livre do Olho Grande'". Rabi
real. Yossef, o filho de Rabi Hanina, aprendeu daí: "'Que eles cresc;am e se
O texto apresenta urna conclusao reconfortante: "Disse Rabi Pamak, em mulúpliquem sobre a Terra como os peixes' [Gn 48,16]. Assim como os
nome de Rabi Yohanan: 'Aquele que é um discípulo dos sábios, cujo filho é peixes do mar, que estao cobenos pela água e o Olho Grande nao pode
afetá-los, o mesmo acontece coma semente de José: o Olho Grande nao pode
um discípulo dos sábios e cujo neto é um discípulo dos sábios, a T orá nun-
afetá-la".
ca deixará a sua progenitura"'. De acordo com este apotegma, a própria rela-
<;ao de duplicai;ao através do aprendizado garante, paradoxalmente, que a
Num nível superficial, o que ternos aquí é apenas um tema da literatura fol-
progenitura física do individuo será urna réplica sua. A própria fanfarronice
clórica, segundo o qual a aparencia do embriao é afetada por imagens que a
desta afirmai;ao, porém, revela a ansiedade para que isto seja verdade, e nao
mae ve durante a gravidez ou no momento da concepc;:ao 25 . Se isso fosse
urna confiani;a de que isso de fato ocorria no mundo reaF".
tudo, esta nao seria urna história muito interessante. No entamo, de acordo
com a moralidade talmúdica, pensar em outra pessoa enquanto se tem rela-
<;óes com o marido é considerado urna espécie de adultério. A importancia
O HOPLITA QUE PERDEU A LAN(A
de os parceiros sexuais nao possuírem nenhuma imagem de outra pessoa no
momento da rela<;ao é enfatizada diversas vezes na literatura rabínica. Isso
O texto também apresenta outro episódio - que geralmeme é considerado
chega a afetar prescri<;oes haláquicas a respeito do ato sexual: por exemplo,
isolado do primeiro - que refor<;a esta preocupa<;ao com a virilidade e a re-
só se deve ter relai;oes sexuais numa hora em que nao se escuta nenhuma
produi;ao. Este subtexto toma praticamente explicita a ansiedade quase ob-
voz vindo da rua. A violai;ao deste principio provocarla o nascimento de
sessiva em torno das relai;oes entre os homens e de sua reprodutibilidade:
criani;as que possuem urna espécie de genealogia mista e nao sao atraen-
tes26. Há também trechos como este: "Nossos rabis disseram: Quando urna
Disse Rabi Yohanan: "Dos belos dejerusalém, fui eu que permaneci". Aquele
mulher tem relai;oes com seu marido, mas pensa em outro homem que viu
que deseja ver a beleza de Rabi Yohanan deve pegar um copo de prata novo,
enché-lo de sementes vermelhas de roma, colocar a sua beira urna guirlanda pelo caminho - nao há adultério maior do que este" (Buber 1964). No nos-
de rosas vermelhas e deixá-lo no lugar em que o sol se encontra com a so caso se faz urna excei;ao. Na verdade, creio que esta é a maneira correta
sombra: esta visao é a beleza de Rabi Yohanan. É verdade?! Mas o mestre nao de interpretar a objei;ao dos rabis a Rabi Yohanan, isto é, eles estariam ques-
nos ensinou que "A be/eza de Rabi Kahana é como a be/eza de Rabi Abal1u. A tionando a sua posii;ao a parúr destes principios morais:
beleza de Rabi Abalm é como a belez.a do nosso pai, jacó. A belez.a do nosso pai
]acó é como a beleza de Adiio", e Rabi Yohanan niio é mencionado. Rabi Yohanan "Nao tens medo do Olho Grande"? Ele respondeu: "Sou da semente de José,
niio tinha esplendor de rosto. Rabi Yohanan ia e se sentava a porta do banho nosso pai, a respeito do qual se diz: 'Um filho fecundo éjosé, um filho
ritual. Ele dizia: "Quando as filhas de Israel saem do banho, elas olham para fecundo junto a fome'" [Gn 49,22]; e Rabi Abahu disse (a respeito deste
mim, para ter filhos tao bonitos quamo eu". Os rabís lhe disseram: "Nao tens versículo): "Nao o interprete como 'junto a fome', mas como 'livre do Olhq"'27

24 lronicameme, a única pessoa neste texto que parece ter transmitido as suas qualidades
para o filho é o limureiro: "no Iom Kipur ele e seu filho tiveram relac;óes com urna moc;a 25 "Os hipocráticos e os discípulos de Serano recomendam que se fac;am cenos preparativos
que eslava noiva"! Este trecho, além disso, corrobora o meu argumento contra as interpre- antes da relac;ao: o sentido de sóbrio bem-estar da futura mae concentra os seus pensamen-
tac;óes político-históricas que véem neste texto urna crltica ao colaboracionismo. O tinturei- tos em seu hornem e faz com que o seu filbo se parec;a com ele. Estes temas vao bem além
ro transgrediu as leis da genealogia, as leis do casamento e o calendário sagrado, numa dos círculos médicos" (Hanson 1990, 315-16. Ver também Huet 1983 e G. E. R. Uoyd
total justificac;ao de Rabi El'azar diame de Rabi Yehoshua ben Korha, que Lhe aplicara 0 1983, 174).
mesmo apelido que o tintureiro inlquo empregara para atacá-lo. Rabi El'azar tern as caracle- 26 Ver, por exemplo, Talmude da Babilonia, Ne.darim 20b.
risticas físicas de um "oriental" e é amiclássico; em termos politicos, é apresentado como 27 As palavras para "fome" e "olho" sao homónimas em hebraico, e a preposic;ao rraduzida
um "colaborador" dos romanos. Contudo, acaba sendo justificado ern ambos os aspectos! por "jumo a" também pode significar "aciJna, forado alcance".
226 (Re)produzindo os Homens (Re)produzindo os Homens 227

Aparentemente, os rabís fazem urna objeylo a Rabi Yohanan nos seguintes ter- sexo, dos géneros e da reprodur;ao. O primeiro tem urna beleza extraordiná-
mos: vocé nao tem medo que ao chamar atenc;ao para a sua beleza, acabará ria, quase andrógina. Ele é imberbe e exerce urna atrar;ao sexual tao forte so-
atraindo o Olho Grande? A resposta do rabi significaría apenas que ele é da se- bre o másculo Resh Lakish, que este está disposto a executar feítos atléticos
mente de José, que é invulnerável ao Olho Grande. o entamo, tenho certeza de impressionantes para chegar até ele. Além disso, em comparac;ao coro os ou-
que há outro sentido por trás das palavras de Rabi Yohanan, que o Talmude pode rros rabís, Yohanan era quem possuía o menor pénis, o que no mundo hele-
ter escondido propositalmente ou por acidente. O versículo completo citado por nista era considerado um sinal de beleza masculina30 • Para nao
Rabi Yohanan é o seguinte: "Um filho (oujovem) fecundo éJosé, umjovem fecun- compreendermos mal o sentido do texto, o narrador revela imediatamente
do junto a fome; e as jovens andavam sobre o muro". A última palavra, porém, que Resh Lakish confundira Rabi Yohanan com urna mulher:
pode ser interpretada como um verbo que significa "olhar". O versículo, assim,
passa a ser urna autorizaylo perfeita para a prática de Rabi Yohanan: "um jovem Um dia, Rabi Yohanan estava tomando banho no j ordao. Resb Lakish o viu e
fecundo éJosé, ele é um jovem fecundo ao lado do banho ritual(= a fome]; as jo- pensou que fosse urna mulher. Atravessou o jordao atrás dele, colocando sua
vens passavam para ve-lo". É como se Rabi Yohanan afirmasse que se tornaria o lanc;a no rio e sallando para o outro lado. Quando Rabi Yohanan viu Rabi
pai espiritual de todas as crianc;as geradas por estas jovens, transferindo-lhes suas Shim'on, filho de Lakish [= Resh Lakish], ele lhe disse: "Tua forc;a para a
Torá"! Ele respondeu: "Tua beleza para as mulheres"! Ele lhe disse: "Se te
qualidades através do pensamento de suas maes no momento da relaylo com os
arrependeres, darei a ti a minha irma, que é mais bela do que eu".
seus país biológicos28 • Se a minha interpretaylo do midrash de Rabi Yohanan está
carreta, entáo a objeylo original deve ter sido a seguinte: " ao é imoral vocé se
Como na Paidéia grega, que ainda tinha urna grande influencia no final da
sentar peno do banho ritual, penetrando no pensamento destas mullieres quando
Antigüidade Qaeger 1961), Rabi Yohanan consegue fazer de Resh Lakish
elas vao dormir com os maridos"? Mas a resposta de Rabi Yohanan seria: "Sou ex-
urna cópia espiritual sua, da mesma maneira que quería produzir crianr;as
cepcional por causa da minha beleza e tenho um precedente para as minhas ac;&-
que fossem cópias de sua aparencia física. Assim como é afeminado e andró-
es: José, meu ancestral (!), se componava da mesma maneira". Esta leitura é
gino, ele feminiza Resh Lakish e, ao fazer isso, o reproduz como um "grande
confirmada pela própria declaraylo de Rabi Yohanan de que era originário da se-
homem":
mente de José, pois ele nao poderia estar afirmando literalmente que era uro de
seus descendentes físicos, urna vez que as tribos de José tinham sido exiladas há
Ele concordou. Queria atravessar o rio novamente [saltando coma lanc;a!]
muito tempo da Terra Sagrada e estavam desaparecidas. De acordo coma min..lia para pegar as suas roupas, mas nao conseguiu. Ele !he ensinou a Mishná e o
leitura, ele queria dizer o seguinte: "Sou da semente espiritual de José. Assim Talmude, e o transformou num grande hornero.
como ele era belo de forma e espirito, e se sentava peno do banho ritual para criar
urna progenitura espiritual, também eu far;o a mesma coisa". A beleza de José e a O aspecto feminizante da Torá é representado de forma mareante por esta
sua profunda pureza espiritual eram grandes temas desta cultura e a sua presenc;a história. Basta Resh Lakish concordar em estudar a Torá para nao conseguir
pode ser facilmente detectada na afirmar;ao de Rabi Yohanan. Assim, Rabi Yoha- mais saltar o rio com a vara! "A sua forc;a fo¡ sugada como a de urna mu-
nan passa a personificar o ideal do clássico 29• lher"31. Estamos diante, entao, de urna inversao quase perfeita do padrao da
A história de Rabi Yohanan e Resh Lakish dá continuidade ao tema do

30 "A estética grega prefere a genitália discreta, de tamanho reduzido" (Lissarrague 1990, 56 e
28 É possível que este também fosse o sentido original do comentário midráshico de Rabi Aba- textos citados). Quamo ao caráter andrógino da beleza masculina clássica, ver Paglia
hu, pois "subin do da fonte" seria urna maneira natural em hebraico de se referir á volta do (1990, 99 et seq.). Quanto ao penis reduzido em panicular como um padrao de beleza mas-
banho ritual. culina, ver Paglia (ibid., 114-15). Na verdade, levando-se em considerac;ao o tamanho de
29 Para que náo haja nenhum mal entendido, gostaria de deixar claro que ao Calar de "Rabi um kav, nao tenho certeza de que o pénis de Rabi Yohanan de fato seria considerado pe-
Yohanan", refiro-me ao personagem deste rabi neste texto em particular. Assim, nao preten- queno, mas a comparac;ao de nove e sete kav com tres aponta para isso. De qualquer ma·
do afirmar que a figura histórica de Rabi Yohanan sofreu urna influencia maior ou menor neira, nao podemos partir do principio de que os rabís se consideravarn castrados. Afina!,
da cultura grega do que os outros rabis, mas apenas que, ao ser encarado pelos babilónios Rabi Yohanan tem um penis de pelo menos tamanho normal.
como o grande símbolo do rabinismo palestino, ele passa a representar um determinado 31 O Talmude, em Sanedrin 26b, afirma explícitamente que a Torá "suga a forc;a do hoinem".
conllito cultural, que se dá num momento histórico especifico. Em outras narrativas a seu "A sua forc;a foi sugada como a de urna mulher" é urna frase muito comum na literatura tal·
respeito, ele é apresen tado com urna aparencia grotesca. múdica.
228 (Re)produzindo os Hom ens (Re)produzindo os Homens 229

32
pederastia grega, onde o hornero mais velho, caracterizado pela sua barba , carpo grotescamente masculino dos rabinos obesos. O homem ideal parece
coloca um adolescente sob a sua protec;ao e o educa através de urna relac;ao ser feminilizado por esta cultura, mas já que esta própria idealizac;ao é expli-
erótica, preparando-o para a sua plena participac;ao na vida civil. No final cita mente considerada efeminada, o texto - e provavelmente a cultura que
<leste processo, o jovem se toma um hoplita, um carregador de lanc;as. Neste o gerou - parece irremediavelmente ambiguo em relac;ao á identidade mas-
caso, porém, é o homem imberbe e andrógino que coloca o hoplita viril sob culina.
as suas asas, educa-o e o transforma num "grande hornero" - sugando, con- Na minha opiniao, a contestac;ao da importancia da virilidade fisica,
tudo, as suas grandes habilidades físicas e fazendo com que a sua "lanc;a" com a substituic;ao da reproduc;ao através da procriac;ao pela reproduc;ao
perca o poder ao longo <leste processo. Dentro da economia moral judaica, através do aprendizado, é urna tentativa (condenada ao fracasso) de reduzir
contudo, todas as implicac;óes homoeróticas tem que ser transferidas da rela- esta ansiedade. A criac;ao de filhos espirituais, cuja vontade segue os manda-
c;ao entre Resh Lakish e Rabi Yohanan para a irma <leste, um deslocamento mentos morais e religiosos de seu pai, é considerada mais importante pelo
que o texto toma expücito. O caráter quase andrógino de Rabi Yohanan é texto do que a produc;ao de fühos biológicos - nao porque houvesse um
realc;ado novamente em outro momento do texto, quando, na discussao em privilégio hierárquico do "espirito"31 sobre o carpo, mas por causa de um
torno da exclusao de seu nome de urna lista de rabís bonitos, observa-se profundo ceticismo quanto a possibilidade de as qualidades do pai serem re-
que, ao contrário dos outros, uRabi Yohanan nao tinha esplendor de rosto": produzidas pelos filhos. A excelencia espiritual é considerada superior a ha-
bilidade física. Numa inversao do padrao helenista, a figura masculina
É verdade?! Mas o mestre nao nos ensinou que "A beleza de Rabi Kahana é junta-se a figura "efeminada" e apesar de perder a sua virilidade física (ou
como ~ beleza de Rabi Abahu. A beleza de Rabi Abahu é como a beleza do
talvez por causa disso), torna-se um "grande homem"35 . Assim, a narrativa
nosso pai , jacó. A beleza do nosso pai jacó é como a beleza de Adao", e Rabi
parece questionar o culto da virilidade física e da beleza masculina, trocan-
Yohanan nao é mencionado. Rabi Yohanan nao tinha esplendor de rosto.
do estes elementos por urna reproduc;ao espiritual através da disseminac;ao
oral da Torá. No entamo, seria muito dificil afirmar que este texto substituí
o Talmude levanta urna objec;ao ao fato de Rabi Yohanan ser citado como
estes valores por um elemento claro e sem ambigüidades:
urna encarnac;ao da beleza, pois há urna tradic;ao que lista os rabís bonitos,
mas nao o menciona. A resposta é que Rabi Yohanan, apesar debelo, foi ex-
Urna vez, eles [Rabi Yohanan e seu pupilo/ filho Resh Lakish) estavam
cluido da lista por nao possuir "esplendor de rosto". Esta expressao se refere
discutindo na Casa de Estudo: "A espada, a lan~a e a adaga, a partir de
ao versículo bíblico onde se faz a seguinte injunc;ao: "darás esplendor ao quando se tomam impuras?" Rabi Yohanan disse: "A partir do momento em
rosto do anciao" (Lv 19,32), que é interpretado pelo midrash como urna exi- que sao forjadas no fago". Res h Lakish disse: "A partir do momento em que
gencia para que se deixe crescer a barba. O que faltava á beleza de Rabi Yo- sao polidas na água". Rabi Yohanan disse: "O bandido é um especialista em
hanan, entao, era urna barba, mas é justamente isso que o fizera parecer tao bandidagem". Ele lhe disse: "De que me adiantaste? Lá me chamavam de rabi
belo a Resh Lakish: a sua aparencia feminina! O texto parece entrar em con- e aqui me chamam de rabi?" Ele ficou zangado e Resh Lakish ficou doente. A
tradic;ao, afirmando que a ausencia da barba era um sinal de beleza e, ao sua inna foi procurá-lo e chorou <liante dele. Ela disse: "Olha para mim!" Ele
mesmo tempo, um defeito. Este texto apresenta, portante, urna ambivalencia nao lhe deu aten~ao. "Olha para os órfaos!" Ele lhe disse: "Deixa os teus
ou ansiedade a respeito do valor da virilidade; por um lado, os sinais de viri-
lidade sao aquilo que dao beleza ao hornero e, ao mesmo tempo, é a ausen-
34 a verdade, um dos grandes objetivos desle Livro é mostrar que esle tipo de dualid~de nao
cia <lestes sinais que o torna bonito33. Esta ambivalencia a respeito do carpo eslá presente na cultura rabínica.
efeminado de Rabi Yohanan, portante, reproduz a ambivalencia em torno do 35 jonah Frankel já chamou alenc;ao para esla inversao de expectaóvas (Frankel 1981 , 73-77).
A interpretac;il.o que Fránkel dá a histiria de Rabi Yohanan e Resh Lakish é muito interes-
sante, mas a retira de seu contexto Lilerário como parte de urna narrativa mais ampla, pro-
vavelmente por considerar que a sua inclusa.o aqui se deu num momemo poslerior, por
32 Fouca~h (1986b, 199) observa que o surgimento da barba é o sinal de que a relac;ao entre pura associac;il.o. o entanto, como Shamma Friedman (1985, 79-80, nolas 49 e 50) de-
o homem e o menino deve chegar ao fim e que agora o jovem deve se lomar o sujeilO, e monslrou, nao há dúvida de que o ediLOt fundiu cuidadosamente as duas fontes num único
nao o objelo da pedagogia (e da pederasóa}. Ver lambém Frontisi-Ducroux e Lissarraguc texto narrativo, e é este texto que eslou inteíP.retando. lsso nao invalida a leitura de Fran-
(1990, 217), e Gleason (1990, 405, n.63). kel; de fato , o seu trabalho é um complemento necessário para a interprelac;ao que desen-
33 Ver Gleason (1990, 400-401 ) para as fontes de um dos pólos desta ambivaléncia. volvo aquí.
(Re)produzindo os Homens 231
230 (Re)produzindo os Homens

urna cultura em que o corpóreo dá sentido ao ser humano, o problema do


órfaos, eu darei vida" Ur 49,11). "Pela minha viuvez! " Ele disse: "Coloca a tua
confian<;a de viúva em mim" [loe. cit.). Resh Lakish morreu e Rabi Yohanan carpo - masculino e feminino - continua sem soluc;:ao.
sentiu um enorme pesar por ele. Os rabis disseram: "O que podemos fazer
para trazer paz a sua mente? Vamos chamar Rabi El'azar, filho de Padat, cujas
tradi<;óes sao brilhames, e colocá-lo <liante dele [Rabi Yohanan]". Trouxeram APENDICE: A HISTÓRIA DE RABI EL'AZAR,
Rabi El'azar, filho de Padat, e o colocaram <liante dele. Para cada afüma<;ao O FILHO DE RABI SHIM'O (TALMUDE
que fazia, ele dizia: "Há urna tradii;ao que sustenta a tua opiniao". Ele disse: DA BABILÓ lA BABA METZIA 83b-85a)
"Preciso <leste aí?! O filho de Lakish levantava vinte e quatro obje<;óes para
cada afirma<;ao que eu fazia e eu apresemava vinte e quatro refuta<;óes, até a Rabi El'azar, o filho de Rabi Shim'on, encontrou um certo funcionário do reí
questáo ficar completamente esclarecida. Tudo o que sabes dizer é que há que costumava prender ladróes. Ele perguntou: "Corno triunfas sobre eles?
urna tradi<;ao que me apóia?! Entáo já nao sei que digo coisas boas?" Ele ao sao comparáveis aos animais, como está escrito: 'a noite rondam todos
costumava sair e gritar nos portóes: "Filho de Lakish, onde estás?", até que
os animais da floresta' [Sl 104,20]?" Alguns dizem que ele citou o seguinte ver-
ficou louco. Os rabís rezaram por ele e ele morreu.
sículo: "Ele arma urna emboscada de um esconderijo, como o ledo no mato" [Sl
10,9]. Ele lhe disse: "Talvez estejas levando os inocentes e deixando os cul-
Nem mesmo a filiac;:ao pedagógica deixa de apresentar problemas na nossa
pados." Ele respocl:u: "Como farei?" Ele disse: "Vem, vou ensinar-te o que fa-
narrativa; a maneira como o professor acaba tratando o aluno e o resultado
zer. Vai nas primeiras horas da manha a tavema onde se vende vinho. Se
trágico desta atitude sao um testemunho eloqüente da existencia de defeitos
vires alguém cair no sono depois de beber, pergunta a sua profissao. Se é
neste paradigma. O nível de ansiedade no texto atinge o seu clímax neste
um estudante rabínico, entao levantou-se cedo para estudar. Se é um traba-
ponto. De fato, o conceito de urna filiac;:ao espiritual que possa substituir a
lhador diurno, levantou-se cedo para o trabalho. Se trabalhou a noite [inves-
biológica recebe um tratamento irónico quando Rabi Yohanan responde a
tigue], talvez seja na fundic;:ao de metais [um tipo de trabalho silencioso]; se
sua irma que nao precisa se preocupar com a marte do marido (que o irmao
nao, ele é um ladrao e <leves prendé-lo". Este rumor chegou a casa do rei,
está matando com a sua maldü;ao) 36 , pois Deus é o "pai dos órfaos". Fica-
que disse: "Que aquele que leu a proclamac;:ao seja o mesmo a executá-la".
mos, entao, com urn veredito final inconclusivo: o texto nao consegue acei-
Trouxeram Rabi El' azar, filho de Shim'on, e ele comec;:ou a pegar ladróes.
tar, nem rejeitar, a importancia da filiac;:ao biológica como um símbolo de
Ele se encontrou com Rabi Yehoshua, o Calvo, que !he disse: "Vinagre, filho
valor. De fato, o texto nao parece saber com certeza até que ponto a nature-
de Vinho: até quando continuarás a enviar o povo de nosso Deus a marte?!"
za humana pode ser educada (ou moldada). Tanto Rabi Yohanan, ao afirmar
Ele respondeu: "Estou retirando os espinhos da vinha". Ele retrucou: "Deixe
que Resh Lakish ainda é, por assim dizer, um bandido, quanto o seu discí-
que o Dono da vinha venha retirar os espinhos." Um dia, um certo tintureiro
pulo, ao responder que "Lá me chamavam de rabi e aqui me chamam de
se encontrou corn ele e o charnou de "Vinagre, filho de Vinho." Ele disse: "Se
rabi", parecem levantar sérias dúvidas de que alguma coisa de fato mudou.
ele é tao descarado, entao também deve ser iniquo." Ordeno u: "Prendam-
Assim, apesar de o texto propor a criac;:ao de urna progenitura espiritual
no." Ele foi preso. Quando se acalmou, ele foi soltá-lo, mas nao conseguiu.
como soluc;:ao - na minha interpretac;:ao - para um problema profundo
Aplicou entao a ele o versículo "Quem guarda a boca e a língua se guarda de
desta cultura, esta soluc;:ao talvez fosse tao problemática quanto a questao da
problemas [Pr 21,23]". Penduraram o tintureiro na cruz. Ele ficou <liante do
procriac;:ao que ela procurava resolver. Apesar de ter perdido a fé nas conse-
crucificado e chorou. Alguém lhe disse: " ao te angusties; no Iom Kipur ele
qüencias da filiac;:ao genética, esta cultura ainda parece ter grandes dúvidas
e seu filho tiveram relac;:óes com urna moc;:a que estava noiva." aquele ins-
a. respei to da confiabilidade da filiac;:a~ a través da pedagogia37. A conseqüen-
tante, ele colocou a mao na barriga e disse: "Alegrai-vos, minhas tripas, ale-
c1a é o texto carregado de ansiedade e conflito que acabamos de estudar.
grai-vos! Se é assim quando estais com dúvidas, quando tiverdes certeza
será melhor ainda. Tenho certeza de que nema podridao e os vermes pode-
36 É fascinante observar que em ourro ponto do Talmude (Baba Metzi'a 60a}, também ternos rao vos atingir." Mas nem assirn conseguiu ficar tranqüilo. Deram-lhe urna
um_a história _e m q~e a maldi~o lan~ada por um cunhado mata o outro. Neste caso, porém, poc;:ao para dormir, levaram-no para urna sala. de mármore e abriram a sua
a s1~a~ao é mveruda: o i:nando mata o irmao da mulher, que ela tinha tentado proteger,
tambem por causa de um msulto (de grandes propor~óes) relacionado ao estudo da Torá. barriga, de onde tiraram cestos de gordura, que colocaram no sol de julho; a
3 7 Devo a David Resnick este comentário.
232 (Re)produzindo os Homens (Re)produzindo os Homens 233

gordura nao cheirou mal. Mas a gordura nunca cheira mal. Isso só acontece se filho fecundo junto a fome"' [Gn 49,22]; e Rabi Abahu disse [a respeito <leste
ela tem vasos sangüíneos vermelhos; mas esta, apesar de ter vasos sangüíneos versículo]: "Nao o interprete como 'junto a fome', mas como 'livre do Olho'."
vermelhos, nao cheirou mal. Ele aplicou a si mesmo o versículo: "até minha Rabi Yossef, o filho de Rabi Hanina, aprendeu daí: '"Que eles cresc;am e se
carne será preservada" (SI 16,8-9). multipliquem sobre a Terra como os peixes' [Gn 48,16]. Assim como os pei-
Com Rabi Ishma'el, filho de Yosse, também ocorreu um episódio seme- xes do mar, que estao cobertos pela água e o Olho Grande nao pode afetá-
lhante. Eliahu (o profeta Elias) se encontrou com ele e lhe disse: "Até quan- los, o mesmo acontece com a semente de José: o Olho Grande nao pode
do continuarás a enviar o povo de nosso Deus a morte"?! Ele respondeu: "O afetá-la."
que posso fazer? Sao as ordens do reí". Ele lhe disse: "O teu pai fugiu para a Um día, Rabi Yohanan estava tomando banho no jordao. Resh Lakish o
Ásia Menor; foge para a Lidia". viu e pensou que fosse urna mulher. Atravessou o Jordao atrás dele, colocan-
Quando Rabi lshma'el, filho de Yosse, e Rabi El'azar, o filho de Rabi do sua lanc;a no rio e saltando para o outro lado. Quando Rabi Yohanan viu
Shim'on, se encontravam, um boi podia passar entre os dois sem tocá-los. Rabi Shim'on, filho de Lakish (Resh Lakish], ele lhe disse: 'Tua forc;a para a
Urna certa matrona lhes disse: 'Teus filhos nao sao teus". Eles responderam: Torá!" Ele respondeu: 'Tua beleza para as mullieres!" Ele lhe disse: "Se te ar-
"As delas sao maiores do que as nossas". "Se isso é verdade, pior ainda"! Al- rependeres, darei a ti a minha irma, que é mais bela do que eu." Ele concor-
guns afirmam que os dois lhe disseram: "Assim como é o homem, também é a dou. Queria atravessar o rio novamente para pegar as suas roupas, mas nao
sua virilidade". E outros afirmam que os dois lhe disseram: "O amor comprime conseguiu. Ele lhe ensinou a Mishná e o Talmude, e o transformou num
a carne". E por que responderam a ela? Nao está escrito: "Nao responda a um . grande homem. Urna vez, eles estavam discutindo na Casa de Estudo: "A es-
1diota de acordo com a sua idiotice"? Para que seus filhos nao fossem difama- pada, a lanc;a e a adaga, a partir de quando se tomam impuras?" Rabi Yoha-
dos, para que nao fossem chamados de bastardos. nan disse: "A partir do momento em que sao forjadas no fogo." Resh Lakish
Disse Rabi Yohanan: "O membro de Rabi lshma'el, filho de Yosse, era disse: "A partir do momento em que sao polidas na água." Rabi Yohanan dis-
como um odre de nove kav; o membro de Rabi El'azar, filho de Rabi se: "O bandido é um especialista em bandidagem." Ele lhe disse: "De que me
Shim'on, era como um odre de sete kav". Rav Papa disse: "O membro de adiantaste? Lá me chamavam de rabi e aquí me chamam de rabi?" Ele ficou
Rabi Yohanan era como um odre de tres kav". E alguns di.zem: como um odre zangado e Resh Lakish ficou doente. A sua irma foi procurá-lo e chorou
de cinco kav. Rav Papa tinha um membro que era como os cestos de Hipare- <liante dele. Ela disse: "Olha para mim!" Ele nao lhe deu atenc;ao. "Olha para
num38. os órfaos!" Ele lhe disse: "Deixa os teus órfaos, eu darei vida" Or 49,11].
Disse Rabi Yohanan: "Dos belos de jerusalém, fui eu que permaneci". "Pela minha viuvez!" Ele disse: "Coloca a tua confianc;a de viúva em mim"
Aquele que deseja ver a beleza de Rabi Yohanan deve pegar um copo de pra- [loe. cit.]. Resh Lakish morreu e Rabi Yohanan sentiu um enorme pesar por
ta novo, enche-lo de sementes vermelhas de roma, colocar a sua beira urna ele. Os rabis disseram: "O que podemos fazer para trazer paz a sua mente?
guirlanda de rosas vermelhas e deixá-lo no lugar em que o sol se encontra Vamos chamar Rabi El'azar, filho de Padat, cujas tradic;óes sao brilhantes, e
coma sombra: esta visao é a beleza de Rabi Yohanan. É verdade?! Mas o mes- colocá-lo <liante dele [Rabi Yohanan]." Trouxeram Rabi El'azar, filho de Pa-
tre nao nos ensinou que "A beleza de Rabi Kahana é como a beleza de Rabi Aba- da4 e o colocaram <liante dele. Para cada afirmac;ao que fazia, ele dizia: "Há
hu. A beleza de Rabi Abahu é como a beleza do nosso pai, ]acó. A beleza do urna tradic;ao que sustenta a tua opiniao." Ele disse: "Preciso deste aí?! O fi-
nosso pai ]acó é como a beleza de Adao", e Rabi Yohanan nao é mencionado. lho de Lakish levantava vinte e quatro objec;óes para cada afirmac;ao que eu
Rabi Yohanan nao tinha esplendor de rosto. Rabi Yohanan ia e se sentava a fazia e eu apresentava vinte e quatro refutac;óes, até a questao ficar comple-
porta do banho ritual. Ele dizia: "Quando as filhas de Israel saem do banho, tamente esclarecida. Tudo o que sabes dizer é que há urna tradic;ao que me
elas olham para mim, para ter filhos tao bonitos quanto eu". Os rabís lhe apóia?! Entao já nao sei que digo coisas boas?" Ele costumava sair e gritar
disseram: "Nao tens medo do Olho Grande"? Ele respondeu: "Sou da semen- nos portóes: "Filho de Lakish, onde estás?", até que ficou louco. Os rabis re-
te de José, nosso pai, a respeito do qual ~e diz: 'Um filho fecundo éjosé, um zaram por ele e ele morreu.
E mesmo assim, Rabi El'azar, filho de Shim'on, nao ganhou total con-
fianc;a em si mesmo, pois - que Deus nao permita - um incidente como
38 Rav Papa lambém é um rabino legendariamenle gordo, como se pode perceber através de este poderla ocorrer de novo. Ele trouxe urna doenc;a dolorosa sobre si mes-
vários oulros lextos do Talmude da Babilonia.
234 (Re)produzindo os Homens (Re}produzindo os Homens 235

mo. A noite, dobravam sessenta toalhas de feltro embaixo dele e, de manha, o pavo da cidade estava preocupado e foi até o túmulo de seu pai. Encontra-
encontravam sessenta vasos cheios de sangue e pus. A sua esposa fez sessen- ram urna cobra em volta da abertura do túmulo. Disseram: "Cobra, cobra,
ta pratos deliciosos e ele comeu. A mulher nao deixou que ele fosse á Casa abre a boca, que o filho.Yirá se juntar ao pai". 40 A cobra abrí.u para eles. O
de Estudo, para que os rabis nao o rejeitassem. A noite, ele dizia: "Meus ir- nosso Rabi a chamou para pedi-la em casamento. Ela respondeu: "Um vaso
maos e companheiros [i.e., suas dores), vinde!" De manha, dizia: "Meus ir- que foi usado para o sagrado será usado para o profano?!" Neste ponto, di-
maos e companheiros, parti!" Um dia, a mulher o ouviu dizer isto. Ela disse: zem: "No lugar onde o mestre pendura o seu machado, o pastor irá pendurar
"É tu que os atrai.. Destruiste a heran~a da casa de meu pai." Ela se revoltou seu cajado?'!"4 1 Ele mandou dizer a ela: "De fato , ele era melhor do que eu na
e foi para a casa de sua familia. Sessenta mari.nheiros vieram do mar e foram Torá, mas seus feítos também eram melhores?" Ela mandou dizer a ele:
visitá-lo, carregando sessenta bolsas. Fizeram sessenta pratos deliciosos e ele "Quanto a Torá, nao sei nada, tu me contaste; mas quanto aos feítos, eu sei,
comeu. Um dia, ela disse á filha: "Vai ver o que o teu pai está fazendo." Ele pois ele aceitou o sofrimento."
lhe di.sse: "O nosso é maior do que o vosso". Aplicou a si mesmo o versícu- Quanto á Torá, o que ele quería dizer? Quando Raban Shim'on, filho de
lo: "De longe ela trazo pao" [Pr 31,14). Gañiliel, e Rabi Yehoshua, o Calvo, sentavam-se nos bancos, Rabi El'azar, o
Um dia ele foi á Casa de Estudo. Levaram até ele sessenta tipos de san- filho de Rabi Shim'on, e o nosso Rabi sentavam-se no chao <liante deles e fa-
gue e ele declarou que todos eram puros. Os rabis murmuraram a seu res- ziam pergumas e respostas. E os rabinos diziam: "Estamos bebendo de sua
peito, dizendo: "Será possível que nao haja nenhum caso duvidoso entre água42 e eles sentam no chao!?" Construíram bancos para os dois se senta-
estes todos"? Ele disse: "Se eu estiver correto, que todas as criarn;:as sejam rem. Raban Shim'on ben Gamliel disse: "Tenho um pintinho entre vós e de-
meninos, senao, que haja urna menina entre elas." Nasceram apenas meni- sejais que eu o perca?"H. Tiraram Rabi do banco. Rabi Yehoshua ben Korha
nos. Todos receberam o nome de Rabi El'azar. O nosso Rabi disse: "Quanta disse: "Será que aquele que tem pai <leve vi.ver e aquele que nao tem deve
procria~ao aquela mulher perversa impediu em Israel!" morrer?!" Também tiraram Rabi El'azar do banco. Ele ficou perturbado. Dis-
Quando estava morrendo, ele disse á esposa: "Sei que os rabinos estao se: "Acham que nós somos iguais. Quando o levantaram, também me levan-
furiosos comigo e nao va.o me tratar direito. Deixa-me ficar no sótao e nao taram; quando o abaixaram, também me abaixaram." Até aquele dia, quando
tenhas medo de mim." Rabi Shmuel, o filho de Rabi Nahman, disse: "A mae Rabi dizia alguma coisa, Rabi El'azar, o filho de Rabi Shim'on, costumava di-
de Rabi Yohanan me contou que a mulher de Rabi El'azar, o filho de Rabi zer: "Há urna tradi~ao que confirma a tua opiniao." A partir daquele dia,
Shim'on, contou a ela que 'nada menos de dezoito anos e nada mais de vinte quando Rabi dizia: "Esta é a minha resposta", Rabi El'azar, o filho de Rabi
e dois [anos] ele ficou no sótao. Eu ia lá todos os dias e olhava para os seus Shim'on, passou a dizer: "lsso é o que queres responder; tu nos cercaste de
cabelos; quando se arrancava um fio , saía sangue.39 Um dia vi um verme palavras vas, respostas vazias." Rabi ficou irritado. Ele foi e contou a seu
saindo de sua orelha. Fiquei muito transtomada e tive um sonho em que ele pai. Ele disse: "Nao fiques triste. Ele é um leao, filho de um lea.o, e tu és um
me dizia que nao era nada, pois um dia ouvira um estudante rabínico ser di- leao, filho de urna raposa." ( ...)44
famado e nao protestara, como deveria'." Quando duas pessoas vinham ser Rabi passou pela cidade de Rabi El'azar, o filho de Rabi Shim'on [depois
julgadas, paravam <liante da porta. Urna apresentava os seus argumentos e. que ele já tinha marrido]. Ele perguntou: "Este homem virtuoso tem um fi-
depois a outra apresentava os seus argumentos. Urna voz saía do sótao e di- lho?" Responderam: "Ele tem um filho, e qualquer prostituta que é compra-
zia: "Dou parecer favorável ao queixoso, e nao ao acusado." Um dia, a sua da por duas [moedas] pagarla oí.to por ele." Ele o trouxe, ordenou-o como
mulher estava discutindo com a vizinha. Ela lhe disse: "Que sejas como o
teu marido, que nao está enterrado." Alguns dizem que seu pai apareceu aos
40 A imagem de cobras protegendo o túmulo de um santo é urna caracterlúca comum das len-
rabinos num sonho e disse: ''Tenho um pintinho que está entre vós e nao quereis das rabinicas.
traze-lo até mim. " Os rabís foram cuidar de seu enterro, mas a popula~ao 41 A metáfora sexual empregada nestes dois provérbios é bastante crua.
nao deixou, pois durante o tempo em que Rabi El'azar ficou no sótao, ne- 42 Urna metáfora comum, empregada para se falar do aprendizado da Torá.
43 lsLo é, ao destacá-los como criam;as extremameme talentosas, os rabís estariam atraindo o
nhum animal selvagem entrou na cidade. Um di.a, era véspera de Iom Kipur, Olho Grande sobre eles.
44 Seguem-se entao rr~ histórias sobre os sofrimentos que Rabi impos a si mesmo para "com-
petir" com Rabi El'azar, que esrudarei em outro projeto de pesquisa sobre a mutilac;ao e a
39 Quanto ao crescimento do cabelo depois da mon e, ver Satran ( 1989, 119). monificac;ao da carne na cultura j udaica.
236 (Re)produzindo os Homens

"rabi" e o entregou a Rabi Shim'on, filho de Issi, filho de Lakonia, o irmao


de sua mae [para ensinar-lhe a Torá]. Ele lhe ensinou e colocou um manto
sobre a sua cabec;a. Todo dia ele dizia: "Quero voltar a minha cidade". Ele
lhe disse: "Chamam-te 'sábio', colocam urna coroa de ouro em tua cabec;a, Urna Conclusao para o Futuro
chamam-te 'rabi' e dizes: 'Quero voltar a minha cidade'?!" Ele lhe disse: "Juro O Estudo do Talmude enquanto Crítica Cultural
que nao falarei mais nisso." Quando se tomou um grande homem, foi estu-
dar na Yeshivá de Rabi Shemaia. Ele ouviu a sua voz e disse: "A voz deste
aqui é parecida com a de Rabi El'azar, filho de Shim'on:" Disseram: "É seu fi-
lho." Ele lhe aplicou o versículo: "O fruto do justo é urna árvora de vida; e
aquele que conquista as almas é sábio" [Pr 11,30]. "O fruto do justo é urna Em suma, a genealogia enquanto resistencia implica a utiliza~o da história
árvore de vida": este é Rabi Yosse, o filho de Rabi El'azar, filho de Rabi para trazer a tona as vozes marginalizadas e reprimidas que se encontram
Shim'on, e "aquele que conquista as almas é sábio": este é Rabi Shim'on fi- "um pouco abaixo da superficie da história" - as vozes dos loucos, dos
lho de Issi, filho de Lakonia. ' delinqüentes , dos anormais, dos impotentes. Ela detecta lutas descontinuas e
Quando morreu, levaram-no a tumba de seu pai. Urna cobra cercava 0 localizadas contra o poder, tanto no passado quanto no presente. Estas vozes
túmulo. Disseram: "Cobra, abre a porta, que o filho entrará para ficar com 0 sao as Comes de resistencia, os sujeitos criadores da história.
p_ai." Ela nao abriu para eles. Todos pensaram que era porque [o pai] tinha (Sawicki 1991, 28)
sido melhor do que o filho . Urna voz veio do céu e disse que era porque ¡0
pai] sofrera numa cavema45 e o filho nao sofrera numa caverna. Na introduc;ao <leste livro, esbocei várias metas culturais a serem atingidas.
Rabi veio a cidade de Rabi Tarfon. Ele perguntou: "Este homem virtuoso Há tres que eu gostaria de retomar nesta conclusao: (1) a noc;ao de dialética
tem algum filho?" [pois Rabi Tarfon] tinha perdido os filhos. Disseram: "Ele cultural, (2) a crítica generosa e (3) o desejo de mudar o mundo - dentro, é
nao tem nenhum filho, mas possui o filho de urna [ilha e qualquer prostituta claro, das minhas limitac;óes. Eu <liria (talvez com um otimismo exagerado)
que é comprada por quatro o compra por oito." Ele lhe disse: "Se voltares [a que se o livro conseguir realizar pelo menos em parte o seu terceiro objeti-
Torá], darei minha filha para ti." Ele voltou. Alguns di.zem que ele se casou vo, isso se deve ao sucesso dos dais primeiros enquanto modalidades da crí-
com ela, mas depois se divorciou, e outros dizem que ele nao se casou com ela, tica cultural.
para que nao pensassem que tinha voltado por isso. E Rabi, por que foi tao lon- Meu pressuposto básico é que nao podemos modificar o que passou. Po-
ge? Pois Rabi Yehuda disse que Rav afirmou - e alguns di.zem isso em nome demos apenas transformar o presente e o futuro , e parte <leste processo se
de Rabbi Hia, filho de Aba, em nome de Rabi Yohanan , e outros dizem isso em dá através de urna mudanc;a na maneira como entendemos aquilo que veio
nome de Rabi Shmuel, filho de Nahmani, em nome de Rabi Yonathan: antes de nós. Urna percepc;ao monolítica e negativa do passado, que o trans-
"Aquele que ensina a Torá ao filho de um amigo, terá o privilégio de sentar forma num objeto de ódio, parece dificultar qualquer tipo de mudanc;a (a
na Yeshivá das Alturas ... " Disse Rabi Pamak, em nome de Rabi Yohanan: nao ser, é claro, que ele seja encarado apenas como um fardo a ser abando-
"Aq~ele que é um discípulo dos sábios, cujo filho é um discípulo dos sábios nado, como fazem muitas pessoas). O fato de se ver nele apenas a misoginia
e CUJO neto é um discípulo dos sábios, a Torá nunca deixará a sua progeni- reproduz esta misoginia; ver apenas a falta de poder, de autonomia e de cria-
tura." tividade das mullieres cristaliza a sua passividade e a sua condic;ao de víti-
mas. Por outro lado, o resgate de forc;as do passado que se opunbam ao
androcentrismo dominante pode nos ajudar a trac;ar nossos passos em dire-
c;ao a urna meta de transformac;ao. Jana Sawicki chegou a urna conclusao
semelhante em outro contexto. Ela argumenta que algumas feministas des-
crevem o poder das tecnologías da reproduc;ao sobre o carpo das mullieres
de tal maneira, que "as nossas únicas opc;óes parecem ser a sua total rejei-
c;ao ou a colaborac;ao para a nossa própria dominac;ao" (Sawicki 1991,
45 Quando se escondeu dos romanos durante Lreze anos pelo crime de esrudar a Torá.
238 Urna Conc/usiio para o Futuro Urna Conc/usiio para o Futuro 239

14). Ao invés disso , Sawicki propóe urna outra estratégia: dar urna "atern;ao problemas a noc;ao de que o patriarcado é urna forma social monolítica e
constante as rupturas , descontinuidades e fissuras no sistema de poder", de rrans-histórica. Conseqüentemenre, dao a entender que o patriarcado é
inevitável; culpam o judaísmo antigo por ainda termos que carregá-lo nas
modo que se possam desenvolver "múltiplas estratégias para resistir as suas
costas; chegam mesmo a obscurecer a "diferem;a interna", as pluralidades da
implicar;óes negativas", sem colaborar para a dominar;ao ou rejeitar com-
sociedade moderna em relac;ao ao patriarcado. Mais especificamenre, as
pletamente o que ficou para trás. Urna vez que nao pretendo colaborar
rraduc;oes modernas do texto antigo sao comparáveis a narrativas ocidentais
para a domina<;ao e muito menos rejeitar o judaísmo, este tipo de pesquisa sobre o comportamenro oriental, exemplificadas pelo relato de Geertz. Em
pode se tomar urna poderosa ferramenta de redenr;ao. Um paradoxo: justa- ambos os casos, a nossa fonre de conhecimento é urna narrativa, o que por
mente nos pontos em que a cultura nao funcionou antes, será possível fazer definic;ao filtra de forma imperialista a fala do outro.
com que ela funcione agora. É esta a estratégia <leste projeto. (1990, 734)
Há duas linhas de investigar;ao a serem adotadas. A primeira tenta en-
contrar os indícios de poder, autonomía e criatividade das mulheres que o Esta pequena passagem defende duas conclusóes importantes. A primeira é
discurso dominante procura reprimir, mas nao consegue apagar por inteiro. que ternos a mesma obrigar;ao com textos e povos antigos do que com os
Esta linha de investigar;ao já teve bons resultados no estudo da Grécia antiga "orientais": evitar ao máximo urna filtragem imperialista da fala do outro. Na
e dos períodos bíblico e helenista 1• A segunda linha de investigar;ao, porém, década passada, fez-se urna crítica incisiva contra o "Orientalismo" na antro-
pode ser mais útil no caso do Talmude, pois se trata da busca, dentro do pró- pologia, comer;ando coro o trabalho paradigmático de Edward Said - o
prio texto, da oposir;ao masculina, ainda que rudimentar, ao discurso andro- Orientalismo entendido, ~ claro, como urna reificar;ao do "Outro" (Said
céntrico dominante. 1979). É essencial que a mesma crítica ao Orientalismo seja transferida ao
A estudiosa que mais influenciou a formar;ao dos aspectos claramente estudo do nosso passado. Ao descrevermos urna cultura antiga, é importante
feministas da minha prática crítica talvez tenha sido Mieke Bal, principal- manter os mesmos padróes éticos que os antropólogos tém feíto tanto esfor-
mente por causa de suas obras sobre a Bíblia Hebraica (Bal 1987, 1988a e r;o para desenvolver em rela<;ao ao seu trabalho junto a culturas vivas - isto
l 988b ). O mais produtivo fator teórico de seu trabalho, na minha opiniao, é é, evitar assumir urna posir;ao de superioridade cultural de onde se julga ou
a maneira como ela ataca explicitamente o suposto caráter monolítico do pa- culpa o "Ourro''. 3 No entamo, quando esta cultura antiga ainda consegue in-
triarcado e demonstra que a própria criar;ao desta imagem serve aos interes- fluenciar de forma decisiva (e dolorosa) cenos aspectos da nossa prática so-
ses daqueles que pretendem mantera hierarquia entre os sexos hoje em dia. cial cotidiana, parte do nosso trabalho descritivo é fazer urna crítica da
Mais importante ainda: esta imagem é um resquicio de leituras particular- cultura. Fingir objetividade ao descrever as práticas da Biblia e do Talmude
mente masculinistas 2 dos textos bíblicos. Num ensaio recente, Bal apresen- em relar;ao aos géneros, por exemplo, acaba reforr;ando os efeitos que estas
tou os objetivos culturais de sua obra de forma concisa e persuasiva: práticas ainda exercem (Boyarin 1990d). Na minha opiniao, portanto, a crí-
tica cultural envolve a habilidade de formular urna compreensao contextual
Em ourras palavras, estas traduc;oes pareciam endossar sem grandes e histórica das práticas de um "Outro" do passado - que é nós mesmos -
de tal maneira que esta cultura possa nos ser útil na formar;ao das nossas
Vários críticos e historiadores feministas já se deram canta disso e passaram a pesquisar a
próprias práticas sociais, oferecendo-nos a possibilidade de manter urna li-
Biblia e ourros textos amigos (além de ourros vestigios culturais) em busca de novas indi- gar;ao frutífera com o passado, sem impedir a criar;ao de práticas mais liber-
cios ou interpreta<;óes que apontem para a criatividade e o poder cultural das mulheres. Al- tárias e igualitárias no presente. Por crítica generosa entendo um modelo de
guns estudiosos feministas t!m aplicado esta linha de investiga<;ao ao judalsmo do final da
análise que nao é apologético, mas aprofunda o nosso conhecimento das ne-
Anágüidade, destacando-se Bemadeue Brooten, Ross Kraemer e Amy-Jill Levine. Este ápo
de pesquisa também pode ser adotado no estudo do Talmude, apesar de have.r poucos indi- cessidades e dos impulsos que motivaram um certo grupo de pessoas a to-
cios concretos sobre o periodo e a literatura talmúdicos. mar determinadas "decisóes" culturais. Os meus objetivos exigem que se
2 Por um lado, este termo é problemático, mas, por ourro, é bastante útil. É problemático far;a urna redenr;ao, e ao mesmo tempo, urna crítica da cultura. De certa ma-
porque parece ser um equivalente de feminista, mas o feminismo nunca foi um projeto de
domina<;ao Jemir1ina sobre os homens, enquanto o masculinismo, em termos históricos, é
um projeto de domina<;ao masculina sobre as mulhe.res. Por ourro lado, ele é um termo bas-
tante úúl, pois marca o "universal" e o "conhecimento comum" como um dominio de inte- 3 Depois de ter escrito este parágrafo, descobri que Page duBois defende esta idéia pratica-
resses masculinos. mente comas mesmas palavras (duBois 1988, 25-26).
240 Uma Conclusiio para o Futuro Uma Co11cl11siio para o Futuro 241

neira, a cultura talmúdica que espero ter descrito parcialmente aquí é a rni- primeiros séculos da nossa era tratava-se apenas de urna das modalidades
nha própria cultura, ao mesmo tempo em que me é alheia. Portanto, é essen- do judaísmo. Vários tipos de judaísmo helenista, grupos apocalípticos
cial que eu fac;:a duas coisas: facilitar urna crítica feminista da formac;ao (como a seita de Qumran) e o cristianismo primitivo disputavam a hegemo-
rabinica e, ao mesmo tempo, protege-la das acusac;:óes de que teria um cará- nía com o judaísmo dos rabís e seus seguidores, e o discurso do corpo era
ter irredirnivel por estar calcada numa profunda misoginia. Mais urna vez, urna grande área de discórdia. Para a maioria dos judeus do final da Antigüi-
gostaria de reiterar a afirmac;:ao que fiz na introduc;:ao: apesar de eu ter um dade (assim como para muitos nao-judeus), o ser humano era entendido
interesse pessoal nos resultados da minha pesquisa e apesar de estes resulta- como um espirito que se estava abrigado, vestido ou até mesmo aprisionado
dos sempre serem influenciados pelas nossas expectativas, este projeto só pela carne. Os rabís, por ourro lado, resistiam a esta noc;:ao e viam o ser hu-
terá tido sucesso na medida em que a minha leitura dos textos for aceita mano como um corpo animado por um espirito. Esta definic;.ao está por trás
como urna interpretac;ao plausível por outras pessoas - e isto, obviamente, de diversas práticas rabínicas, como a insistencia no caráter obrigatório do
é algo que nao posso julgar. sexo e da procriac;:ao, a interpretac;:ao midráshica em oposic;:ao á alegoría e o
O segundo postulado que retiro do texto de Bal é que a prática dos estu- foco na identidade corporal de Israel como urna unidade émica específica. A
dos culturais que procuram modificar o presente também <leve procurar e afirmac;:ao que procuro fazer neste livro é que cada urna destas formac;:óes
descrever urna diferenc;:a no passado. Se a cultura do passado é retratada apresenta problemas ético-sociais que a outra consegue resolver de forma
como um bloco monolítico, entao ela parece refletir um estado natural, mais satisfatória (do meu ponto de vista político). Assim, se os judaísmos
trans-histórico. As culturas calcadas na interpretac;:ao da Biblia procuram re- helenistas (incluindo, na minha opiniao, o paulinismo) apresentam um
duzir ou eliminar (ou melhor, reprimir) os indicios dentro do próprio texto atraeme modelo para a igualdade e a liberdade entre os homens - "Nao
bíblico que apontam para a diferenc;:a, com o objetivo de fazer com que a do- há judeu nem grego, homem nem mulher" - o prec;o disso é urna violen-
minac;:ao e a assimetria entre os generas sejam consideradas elementos natu- ta desvalorizac;:ao da sexualidade, da procriac;ao e da etnicidade. Por ou-
rais. lsto se aplica ao judaísmo helenista, a boa parte do cristianismo e ao tro lado, se o judaísmo rabínico apresenta urna orientac;:ao positiva em
judaísmo da Idade Média até o período moderno. No entanto, nao se pode relac;:ao ao prazer sexual e á diferenc;:a étnica, o prec;:o que ele paga sao de-
dizer que isso seja verdade no judaísmo rabínico, onde a heterogeneidade terminadas estratificac;:óes da sociedade. Urna prática de leitura dialética, en-
do texto bíblico é representada no diálogo canonizado e na dialética do mi- tao, coloca estas duas formac;:óes numa relac;ao de tese-antítese, trazendo á
drash. Se levarmos a sério a conclusao de Bal, segundo a qual a reduc;:ao da tona os problemas culturais que urna resolve e a outra nao. Vejamos dois
"diferenc;a" interna serve aos interesses do sistema monolítico da dominac;:ao exemplos desta dialética cultural.
masculina, entáo pode-se perceber que até mesmo urna pesquisa explícita-
mente feminista que nao consegue perceber a diferenc;:a interna dos textos e
da cultura estudada, acaba por se condenar ao fracasso. Assim, é essencial O Corpo e a Diferen~a
que os estudiosos do Talmude recorram á crítica cultural, assim como os
críticos da cultura interessados em utilizar materiais talmúdicos com eficien- Plotino, o filósofo do nosso tempo, parecia ter vergonha de h abitar um corpo.
cia devem aprender as práticas discursivas específicas que caracterizam este Como um resultado <leste estado mental, ele nao conseguia falar de sua rai;a,
tipo de texto. seus pais, nem de seu país natal.
(Porfírio, Vida de Plotino)

A DIALÉTICA CULTURAL Porfirio expóe com raro ardor a ligac;:ao intima entre a corporalidade do in-
E A DIVISAO ENTRE CORPO E ALMA dividuo e a sua "rac;:a", filiac;:ao e lugar, além da repulsa neoplatónica á mate-
rialidade e á identidade particular. Esta interpretac;:ao também nos ajuda a
O judaísmo rabínico é urna formac;ao judaica específica do final da Antigüi- compreender a resistencia dos rabis ao platonismo. Apesar de ser um judeu
dade. Apesar de este tipo de judaísmo ser o ancestral histórico de pratica- extremamente leal, Fílon, por exemplo, nao podía fugir ás conseqüencias de
mente todos os grupos posteriores que vieram a se chamar judeus, nos seu pensamento alegórico, que tomavam a forma de urna desvalorizac;:ao das
242 Uma Conclusiio para o Futuro Uma Conclusiio para o Futuro 243

práticas materiais e da genealogía de Israel. Sempre que a história material e significado e a sua esséncia, e o corpo do ser humano é o seu "eu", entao a
o ritual físico existem apenas para evocar significados espirituais, passa a história de Israel e as suas práticas sao a história e as práticas materiais do
existir tambérn a possibilidade de transcende-los. Como afirma Ronald Wil- corpo Israel. Esta resistencia ao dualismo da linguagem, do corpo e da no-
liamson: c;ao de povo é a característica que distingue o judaísmo rabínico, ao mesmo
tempo que o limita. A possibilidade universalizante do cristianismo pós-pau-
Para Fílon, além do judaísmo ortodoxo, tradicional, aparentemente havia urna Lino, contudo, também foi obtida por um alto prec;o.
perspecáva filosófica sobre a vida, que envolvia o reconhecimemo da A interpretac;ao alegórica que Paulo dá ao rito da circuncisao é um sím-
natureza puramente espiritual do Transcendente e da qual Fílon acreditava
bolo quase perfeito desta diferenc;a. Ao encarar a circuncisao como urna rea-
que a humanidade inteira compará lharia um dia. De.ste judaísmo, as figuras
lidade espiritual, e nao corpórea, Paulo conseguiu, num só golpe, criar a
idealizadas de Augusto, júlia Augusta e Petrónio (entre outros) já tinham
possibilidade de o judaísmo se tornar urna religiao mundial. ao que fosse
parúcipado.
(Williamson 1989, 13) dificil para os adultos gentios passar por este rito - isso nao seria uro obs-
táculo para os devotos do mundo antigo - mas ele simbolizava o momento
Para Fílon, este judaísmo espiritualizado e filosófico, que substitui os atos genealógico, genético, do judaísmo como a religiao de urna tribo em particu-
pela fé, é apenas urna possibilidade teórica." Já para Paulo, trata-se da reali- lar. Isto nao se aplica apenas ao aspecto físico do rito, calcado na prática da
dade concreta de urna nova formac;ao religiosa, que apresenta urna forte ten- tribo e na maneira corno os seus membros masculinos (nos dois sentidos da
dencia de descorporificar o judaísmo.5 Se o corpo da língua é o seu palavra) sao marcados; mais importante do que isso: ao marcar o órgao da
reproduc;ao, ele representa a afirmac;ao genealógica de urna memória históri-
ca concreta como elemento constituinte de lsrael. 6 Ao substituir o ritual físi-
4 Segundo H. A. Wolfson, Filon admitía a possibilidade de prosélitos "espirituais" que nao se co por urna interpretac;ao espiritual, Paulo estava afirmando que o Israel
submeteriam a circuncisao (1947, 369). Borgen ( 1980, 87) parece acreditar que Fílon acei-
genealógico, "segundo a Carne··, nao é o Israel definitivo; há também um "Is-
tarla sem reslric;Oes estes prosélitos incircuncisos como judeus, o que me parece extrema-
mente duvidoso. Também nao aceito a leitura que Borgen faz de Talmude Shabat 5la, rael do espirito". A Biblia nao fata das práticas do pavo judeu em particular,
segundo a qual Hilel nao acreditava que a circuncisao fosse um pré-requisito necessário mas sim da fé, do significado alegórico des tas práticas. Um sin al da geniali-
para a conversao. Os argumentos apresentados por eil McEleney (1974) também nao sao dade de Paulo foi transcender o "Israel da carne". De acordo com esta leitu-
convincentes, pois estao calcados em leituras equivocadas do Talmude, como mostrarei,
Deo volente, no trabalho que pretendo escrever sobre Paulo. A abrangente obra de Shaye ra, a "vitória" a que Mopsik se refere era i11evitável: "um cisma criado há dois
Cohen sobre o processo de conversao no judaísmo do final da Antigüidade pode esclarecer mil anos atrás com a vitória ideológica, sobre metade do mundo habitado,
muitas destas dúvidas. da concepc;ao crista da relac;ao - e da filiac;ao - carnal como um elemento
5 Numa carta recentemente enderac;ada a mim, john Miles faz os seguintes comentários:
mesquinho e separado da vida espiritual" (Mopsik 1989, 49).
A disputa entre os atos e a ft, que voct apresenta como um conjlito do cristianismo com o ju- Quando a cultura judaica, tanto na Palestina quanto na diáspora, entrou
daísmo, tem uma longa história, iniciada muito antes da Refomta, como uma querela dentro do em contato com outras culturas durante os períodos helenista e romano, ela
cristianismo. Mesmo o pagdo que se convertia ao cristianismo de Paulo era abrigado a seguir teve que enfrentar a questao de como a religiao bíblica se encaixaria num
um código de ética completamente diferente e tinha que abandonar uma série de costurnes que
eram incompatfveis com o monoteísmo. lsso ndo fazia com que se tomasse parte de judá en- mundo em que os judeus viviam entre outros povos. O dualismo do judaís-
quanto uma comunidade íribal e genética, mas tambtm se tratava de atos, e ndo apenas de ft. mo helenista oferece urna resposta para esta questao ao alegorizar signifi-
Na verdade, t a sobrevivtncia de pelo menos esta parte do programa concreto dos j udeus que cantes como "Israel", "história" e as práticas do judaísmo. Assim, segundo a
torna o cristianismo intolerável aos gnósticos. A frase a que me refiro t "já para Paulo, trata-se
da realidade concreta de uma nova fomia,do religiosa que descorporifica por completo o judaís- interpretac;ao de Fílon, estes significantes teriam urna aplicac;ao global. A Bí-
mo". O cristianismo pode parecer descorporificado em compara,do com o judaísmo rabínico, blia, as suas prescric;oes e as suas narrativas seriam universais, na medida
mas em compara,do com o gnosticismo t extremamente corpóreo. em que ensinam a todos verdades importantes. Paulo foi um passo a frente
(Miles 1991)

O leitor mais atento irá perceber que modifiquei a frase citada, numa resposta parcial as tos, estabelecendo muitas vezes urna diferenc;a entre a letra da Lei, que mata, e a letra do
advenencias de Miles. Repare que nao defendo a existencia de urna incompatibilidade fun- Evangelho, que dá vida (Caspary 1979, 50-55). No entamo, como Caspary observa na mes-
damental entre urna leitura lite.ral das escrituras e o cristianismo. Até um alegorista radical ma obra, em ourros momentos Orígenes afirma que a letra do Evangelho também mata.
como Orígenes é ambiguo a respeilo do significado Li teral dos Evangelhos e dos sacramen- 6 Ver a brilhante imerpretac;ao da circuncisao em Eilberg-Schwanz (1990b, 141-77; e 1991 ).
Uma Conclusiio para o Futuro Uma Conclusiio para o Futuro 245
244

de Fílon e concluiu que, sendo assim, nao havia mais a necessidade de per- ambas as opc;óes deixam algo a desejar. Por um lado, a insistencia na genea-
petuar o significado corpóreo da história e das práticas concretas; ele foi di- logia corporal e na prática de ritos e costumes tribais produz um discurso
reto para o ámbito espiritual e criou o cristianismo gentío como urna etnocentrico, um discurso de separac;ao e exclusivismo; por outro lado, a
ramificac;áo direta do judaísmo helenista. 7 alegorizac;áo, a descorporificac;áo destas práticas, produz o discurso da con-
Esta soluc;ao tinha a vantagem cultural de tomar a mensagem da Biblia versáo, do colonialismo, do Fardo do Homem Branco - a lrmandade Uni-
acessível a todo o mundo - e, de fato, o cristianismo se tomarla a formac;áo versal no "corpo ( ...)" de Cristo (Shell 1991).
religiosa dominante no mundo ocidental. No entamo, ela destruía a especifi- Os rabís insistiram em encarar a corporeidade da essencia humana, a fi-
cidade da experiencia cultural e histórica do povo judeu e, por implicac;áo (e liac;áo física e a memória histórica concreta como valores supremos. Coeren-
na prática) de todos os outros povos. A ideologia dos rabis pode ser inter- tes com a sua rejeic;áo do dualismo na antropologia, eles também rejeitavam
pretada, entáo, como urna crítica necessária a Paulo ( ou, caso a minha leitu- as teorias dualistas da linguagem. Assim, insistiam numa interpretac;áo lite-
ra de Paulo esteja equivocada, a pensadores cristáos um pouco mais tardios ral da escritura, de suas histórias e de suas práticas. Por mais que os eventos
que certamente defendiam as mesmas opinióes), pois se o movimento de reconstituidos pelo midrash possam parecer extravagantes, sempre se trata
Paulo trazia a possibilidade de romper as alianc;as tribais com a própria fa- de incidentes hipoteticamente concretos. Os rabís resistiram ao efeito desin-
milia, ele também carrega as sementes de urna prática missionária imperia- tegrador da alegoriza~o, mantendo viva a possibilidade da especificidade
lista e colonizadora. A própria enfase no universalismo, expressa numa cultural. O prec;o disso, contudo, foi um etnocentrismo que trouxe conse-
preocupac;áo com todas as familias do mundo, converte-se rapidamente ( ou qüencias infelizes ao longo da história, principalmente no momento em que
mesmo necessariamente) numa doutrina segundo a qual todas devem fazer os judeus recuperam o seu poder político no mundo. O universalismo incor-
parte da mesma grande familia espiritual, com todas as práticas horripilan- póreo do judaísmo helenista (e do cristianismo) também teve seus efeitos in-
tes que a Europa crista cometeu contra os judeus e outros grupos marcados felizes, pois levo u a conversáo forc;ada e outras práticas ainda piores. A
pela diferenc;a (Shell 1991). Olhando retrospectivamente de uro mundo que, noc;áo de dialética cultural nos permite colocar as duas formac;óes numa si-
no final do segundo milenio cristáo, tomou-se totalmente interdependente, tuac;áo em que urna pode criticar a outra. lsso talvez nos ajude a encontrar
soluc;óes mais adequadas para os problemas da individualidade cultural,
num contexto de solidariedade humana.8
1, Mais urna vez:, admito que esta é uma inte.r pretai;ao controversa da doutrina de Paulo. Pode-se descobrir urna estrutura dialética semelhante no que diz respei-
Creio que ele nao tinha o menor interesse em saber se os j udeus deveriam cumprir a Lei ou
nao. Defenderei esta posii;ao no trabalho que estou desenvolvendo, sob o Utulo provisório
to a questáo dos generos.
de Um judt u radical: Paulo e a polltica da identidade. Por enquanto, ver Sanders ( 1977 e
1983) e Sega! ( 1990). Na minha opiniao, Dunn está correto ao identificar a preocupai;ao de
Paulo com a diíereni;a ou o "nacionalismo" dos judeus: O Problema dos Generas e o Século I
O mais persistente de todos é o argumento a rtspeito da rela, ao entre a fé e a lei. Como (a e.x-
prtssdo inicial da) ft se liga ds "obras da lei"? A implica,ao de ( ... ) {Gálatas) 2,16a, principal- O corpo humano é dividido, obrigatoriamente, em dois tipos anatéimicos
mente por se referir d questdo das leis relacionadas ao alimento em Antióquia (2,11-14), é que que chamamos de sexos.9 Se adotarmos a definic;áo de que o ser humano é o
os cristdos judaicos acreditavam que a.s obras da lei (como a obediéncia ds leis alimentares)
eram compativeis com a f t. em Cristo, ao mtsmo tempo rn1 que eram uma obriga~o necessd ria
seu corpo, como afirmo ter feíto o judaísmo rabinico, entáo o sexo se toma
(ditada pela alian~ I) para os judeus que acreditavam no Mtssias ]esus. Paulo, contudo, trans- urna (se nao a única) categoria central da prática social. lsso apresenta cer-
f orma tsta d istin, do (ft em Cristo e as obras da lei) numa antlltse (2,16b-c; 3,2.5.10-12): enca- tas possibilidades interessantes, além de alguns problemas. o lado "positi-
ra r a lei (obediéncia d Alían~) como o cumprimento da f t reprtsenta um retr ocesso, urna perda
vo" da balanc;a, o judaísmo rabínico confere a sexualidade o caráter de um
da liberdade dos filh os de Deus, que regrtssam d imaturidade da infancia e d escravidáo (3, 23-
4, 11 ; 4, 21-31). O cumprimento dafé deve ser conubido em termos que diferem das obras da lei
(circuncisdo, etc.): isto t , em termos do Espiri to em oposi, do ds obras da carne (5, 16-26; 6,7-9),
d t nfase em caracteristicas físicas que incluiriam o valor nacionalista da circuncisdo (3,3; 4,21- 8 Discuúrei estas questóes com maiores detalhes no uabalho que estou escrevendo sobre
31 ; 6,1 2-13). Este cumprimento pode ser concebido nos termos da lei, mas ndo a lei que se preo- Paulo.
cupa com características judaicas como a circuncisdo, e sim aquela que gira em com o do amor 9 Esta é urna noi;ao positivista da qua\ nao consigo me livrar. A obra dejudith Butler, é claro,
ao próximo (5,6.13-14), e.xemplificado por Cristo (6,1-4). já me ajudou bastante a questionar este ponto de vista (Butler 1990, 25-26, 92-106 e, prin-
(Dunn 1991, 129). cipalmente, 110). Ver também Wittig (1992, 1-8).
246 Uma Conclusüo para o Fuwro Urna Conclusao para o Futuro 247

tra<;o permanente da personalidade e a encara como um beneficio ofereci- particularmente importante. Ela argumenta que a crítica ao dualismo está no
do por Deus a humanidade, destinado a seu prazer e bem-estar, assim cerne do texto fundador da teoría feminista moderna, O Segundo Sexo, de Si-
como para a propaga<;ao da espécie - que por si só é considerada um mone de Beauvoir:
bem absoluto. Além disso, proponho que esta posi<;ao excluía a repulsa
ginecofóbica das mulheres como "a carne", cuja presen<;a se torna mar- Apesar da opiniao geral ser que Beauvoir defende o direito de as mullieres se
eante no contexto dos judaísmos helenistas, de caráter dualista. o en- tomarem sujeitos existenciais e, portanto, a sua inclusao em urna
tanto, no lado negativo, esta constru<;ao definiu as f un<;óes de cada sexo universalidade abstrata, a sua posi<;ao também implica numa critica profunda
de forma rígida e absoluta. As mulheres praticamente se limitavam ao pa- a descorporifica«;ao do sujeito epistemológico abstrato do homem. Este
pel de filhas , esposas e maes. Apesar do estudo da Torá e da ora<;ao nao sujeito é abstrato na medida em que rejeita a sua materialididade, que é
marcada socialmente, e, além disso, projeta esta materialidade rejeitada e
serem atividades apostas a reprodu<;ao - como o espirito a carne - e
rebaixada para a esfera da mulher, dando ao corpo uro caráter feminino. Esta
apesar de eu nao conhecer nenhuma representa<;ao da procria<;ao em que
associa<;ao do corpo com a mulher age ao longo de relar;óes mágicas de
o homem contribuiría com o espirito e a mulher com a matéria, 10 nao há reciprocidade, a partir das quais o sexo feminino fica restrito ao seu corpo,
dúvida de que esta cultura <lava um valor maior ao "corpo elevado" do enquanto o corpo masculino , totalmente rejeitado, torna-se, paradoxalmente,
que ao "mais babeo". Ora, as atividades do corpo elevado eram pratica- o instrumento incorpóreo de urna liberdade aparentemente radical. A análise
mente urna exclusividade masculina (Eilberg-Schwartz 1991). Além disso, de Beauvoir levanta implícitamente a seguinte pergunta: através de que ato de
as mulheres que tinham urna cena habilidade intelectual quase sempre negar;ao e rejeir;ao o masculino assume o papel de urna universalidade
eram impedidas de ter acesso a satisfa<;ao trazida pelo escudo - apesar incorpórea e o feminino passa a ser encarado como urna corporeidade
de haver vozes contrárias a esta prática exclusivista, como já vimos. Os repudiada?
judaísmos helenistas (incluindo várias formas do cristianismo) inverte- (Butler 1990, 12)
ram esta situa<;ao sócio-cultural. O corpo, o sexo e a procria<;ao foram ra-
dicalmente desvalorizados em rela<;ao ao "espírito" - causando, na O que Butler demonstra aqui é que o discurso ocidental sobre os generas
minha opiniao, sérias deforma<;óes de vida. Por outro lado, as mulheres nao pode ser separado da metafísica ocidental em geral, a mesma conclu-
puderam ter acesso as atividades que eram definidas como o dominio do sao defendida por Genevieve Lloyd (1984, 7 e, sobre Beauvoir, 99). As-
espirito. Ao optar pelo celibato, elas podiam atingir um alto grau de satis- sim, Fílon diz: "Para comec;:ar, a ajudante é criada especialmente com este
fa<;ao e expressao espiritual ou intelectual. O pre<;o era a perda de sua se- propósito, pois está escrito: 'Fa<;amos urna ajudante para ele'. Além disso,
xualidade e do prospecto da maternidade, um pre<;o que muitas vezes ela é subseqüente aq uele que será ajudado, pois Ele já havia formado a
(mas nem sempre) era descrito como urna transforma<;ao num homem, mente e agora ia formar a sua ajudante." Nao há dúvida de que Fílon in-
ou num ser assexuado (Meyer 1985; Harrison 1990a e 1990b; Aspegren terpreta o "Homem = Adao" como a "mente", enguanto "Mulher =Eva" é o
1990; Castelli 1991 ). Como afirma Clemente de Alexandria, "Como neste "corpo", o ajudante da mente. Pode-se perceber com clareza as origens do
caso há urna igualdade [entre o homem e a mulher] no que diz respeito a ato de nega<;ao e rejei<;ao a que Butler se refere e a sua inevitável cumpli-
alma, ela atingirá a mesma virtude; mas como há uma diferen<;a no que cidade co m urna antropología dualista platónica - adotada por Platao a
diz respeito a forma <;ao es.pecífica do corpo, ela é destinada a cria<;ao das partir do pensamento grego mais amigo (Lloyd 1984, 6) - que identifica
crian<;as e aos trabalhos do r r ·os (Clemente 1989b, 420; citado por o ser humano com a sua mente (universal), e nao com o seu corpo, mar-
Ford 1989, 20). A implica<;ao ,. Cl?.. a: sem alma, nao há igualdade. cado socialmente e dotado de sexo. Lloyd mostra como este dualismo foi
Teorías recentes a respeito dos generas nos fornecem análises extraordi- reescrito historicamente, de modo que a mente universal passou a ser
nariamente sutis sobre. a maneira como o cisma entre corpo e alma está in- identificada com o homem, enguanto o corpo dotado de sexo tornou-se
trincado no discurso ocidental sobre os sexos. A obra de judith Butler é feminino (26). Esta dicotomia inscreve a oposi<;ao homem-mulher numa
série de oposic;:óes binárias de forre conteúdo cultural, que já estao pre-
sentes em Pitágoras, apesar de stla lista ter se modificado com o tempo
10 ~ m dos meus projetos de pesquisa acuais é dar respostas mais definitivas a questóes deste (3). Assim, o homem é para a mulher como:
upo.
248 Uma Conclusao para o Futuro Uma Conclusao para o Futuro 249

substancia: acidente coaduna a metafísica da substancia responsável pela produc;ao e a


forma: matéria naturalizac;ao da própria categoria de sexo.
univocidad e: divisao e diferen<;a (Butler 1990, 20)
alma: corpo
sentido: lingua A conclusao da análise incisiva de Butler é que Wittig acaba sendo um refle-
significado: significante xo quase perfeito da ideología patrística da liberdade como um elemento an-
natural: artificial terior ao sexo e da ausencia de genero como um sinónimo do masculino. A
essencial: ornamental 11 lésbica de Wittig é urna outra versao da mulher do judaísmo helenista (as te-
rapeutridas de Fílon, por exemplo) ou do cristianismo primitivo, que a través
É óbvio que em todos estes pares, o primeire termo é privilegiado pela nossa do celibato se transforma num homem e, assim, obtém a liberdade (Wittig
cultura pós-platónica e o segundo assume o caráter de um "complemento". 1980) - com a enorme diferern;a de que o prazer sexual nao é negado a lés-
Várias feministas que analisararo a questao dos generes parecero estar tao bica de Wittig. Em tennos metafísicos, nada mudou. Tecla e Perpétua nao
presas a esta metafísica quanto as práticas discursivas que pretendem com- sao mulheres, assim como a lésbica de Wittig nao é urna mulher. 13 No en-
bater.12 Butler demonstra a presem;a da mesma metafísica platónica nos es- tanto, o que acontece com o ser humano que nasce com urna vagina, mas
14
critos de urna importante teórica feminista, Menique Wittig: nao é lésbica, nem freira? Ela está condenada a ser urna mulher? O fato de
ser urna mulher deve sempre ser entendido como urna condenac;ao? O corpo
Assim, Wittig defende a destrui<;iio do "sexo", para que as mulheres possam feminino ainda é o termo secundário e desvalorizado. Aléro disso, de acorde
assumir a condi<;ao de um sujeito universal. Para realizar esta destrui<;ao, as com cenos pensadores, toda atividade sexual envolve a dominac,:ao, de modo
"mulheres" devem assumir um ponto de vista ao mesmo tempo particular e que a "destruic;ao do sexo" como urna taxonomía dos corpos humanos nao é
universal. Ao ser apresentada como um sujeito capaz de atingir a o bastante para preduzir a paridade; é preciso haver urna desrruic,:ao da pró-
universalidade concreta arravés da liberdade, a lésbica de Wittig confirma, ao pria sexualidade. Andrea Dworkin aborda diretamente esta situac;ao (ainda
invés de contestar, a promessa normativa dos ideais humanistas baseados na que inadvertidamente, creio eu) ao citar o Evangelho dos egipcios e fazer o se-
mei.afísica da substancia. Neste respeito, Wittig se distingue de lrigaray, nao guinte comentário: "seria condizente com o espirito do livro tomar Cristo
só por causa da oposic;ao familiar entre o essencialismo e o materialismo, mas como guia e dizer com ele: 'Quando pisares a vestimenta da vergonha; quan-
também por causa da adesao a urna metafísica da substancia que confirma o
do os Dois se tomarero Uro, e Horoem com Mulher deixarem de ser masculi-
modelo normativo do humanismo como urna moldura para o feminismo.
Apesar de Wittig aparentemente defender um projeto radical de emancipac;ao no e feminino"' (Dworkin 197 4, 173). Dworkin cita esta passagem para
lésbica e manter urna distin<;ao entre a "lésbica" e a "mulher'', ela faz isso ilustrar urna visao primitiva da igualdade entre os generes, aparentemente
através da perpetuac;ao da idéia de urna "pessoa" que antecede a criac;ao dos sem se dar conta de que a "vestimenta da vergonha" a ser pisada é o corpo
generes, e cuja principal característica é a liberdade. Este raciocinio nao só - masculino ou feminino (Macdonald 1987). Sem corpos, somos todos
confirma a condic;ao pré-social da liberdade humana, como também se iguais.
Citei estas passagens de judith Butler por extenso porque creio que e las
roostram como o dilema dos generes que a dialética entre o judaísmo hele-
15
11 Cf. Bynum (1986, 257): "Homero e mulher eram comparados e avaliados de forma nista e o judaísmo rabínico coloca <liante de nós ainda está presente. Esta-
assimétrica como intelecto/ corpo, ativo/ passivo, racional/irracional, razao/ emo<;ao,
aUlocontrole/ desejo, juizo/ misericórdia e ordem/ desordem".
12 Veja, por exemplo, a presen<;a deste dualismo na afirmac;ao a seguir: "Para eles [os Shahers] , 13 Repare que ao longo de sua obra, Fílon estabelece um conrraste explicito entre as "mulhe·
o celibato implicava a cria<;ao de sistemas familiares e económicos comunais, classes so- res" e as "virgens" (Sly 1990). Wittig também funde explicitamente as lésbicas as freiras:
ciais unificadas e, o que é mais importante para esta discussao, a igualdade em iorno de urna "Pode-se considerar que toda mulher, casada ou nao, passa por um período de servi<;o se-
unidade legítima, espiritual (ao con!rário de uma falsa , física ) enrre homens e mulheres" xual for<;ado ( ...). Algumas lésbicas e freiras conseguem escapar" (1992, 7).
(Ki1ch 1989, 3; o grifo é meu). Estou plenamente convencido pela demonstra<;ao de Kitch 14 Diana Fuss faz urna observai;ao sernelhante: "Uma conseqüencia desta no<;ao é que a 1eoria
de que há compromissos feministas genuinos enrre os Shakers, os coreshantistas e os santi- de Wittig nao é capaz de explicar a existencia de feministas heterossexuais, a nao ser enca-
ficacionistas, apesar de a oposic;ao enrre "legitimo, espiritual" e "falso, físico " nao me pare· rando-as como vltimas de urna falsa consciencia" (Fuss 1989, 44).
cer adequada. O meu "velho Adao" aparentemente nao fo¡ abandonado. 15 A mesma dialéúca esta presente no cristianismo, como mostrarei em um artigo a ser publi-
250 Uma Conclusiio para o Futuro Uma Conclusiio para o Futuro 251

mos vivendo ª. ~esma_ tensao. Se falamos de urna pessoa anterior aos gene- dos por john Winkler, que na sua obra sobre a Grécia clássica chegou a con-
ros, d~ um SUJ_euo uruversal - necessariamente incorpóreo, ao que parece clusao de que a situai;ao das mullieres nao era tao desesperadora quanto os
- entao valorizamos implicitamente a mesma metafísica que deu origem textos escritos pelos homens nos dao a entender :
aos _problemas em tomo dos dois sexos e, como se isso nao bastasse, proble-
~ª?1~mos a (hetero )sexualidade de forma irreparável. Se, por outro lado, Quamo mais aprendemos a partir da comparar;ao de sociedades
ms1snrmos na corporeidade e no caráter sempre sexual do ser humano en- pré-industriais que praticavam a segregar;ao entre os géneros, principalmente
tao parecemos prender a rai;a humana a categoria (necessariamente?) hi~rár­ na área do Mediterraneo, mais ternos ceneza de que as observar;óes e juízos
16 morais dos homens sobre as mulheres, o sexo, etc. tém um valor descritivo
quia dos generos. Há outra maneira de escaparmos desta armadilha? Creio
que qualquer so1ui;ao que procure transcender a noi;ao de genero está fada- mínimo e seriam mais bem entendidas como mera "conversa de bar," dirigida
aos próprios homens. É preciso enfaúzar que as mullieres de todas as idades,
da ao fracasso , enquanto aquelas que procuram alterar a sua estrutura hie-
regióes e classes podem apresentar grandes diferenr;as individuais ou ligadas
rárquica sao as que provavelmente transformarao a vida dos seres humanos.
a comunidade em que vivem, no que diz respeito a maneira como obedecem,
resistero ou até mesmo chegam a reparar na existencia do palavrório a que os
homens se dedicam em seus rituais de camaradagem. É tao difícil saber
A CRÍTICA GE EROSA: quando os homens que impóem as leis - quer atuem na área médica, moral
A DES-ORIENTALlZA(AO DA HISTORIA CULTURAL ou conjugal, quer sejam inteligentes ou idiotas - estao blefando, tecendo as
suas fantasias ou justificando as su as preferencias (para ser bastante direto ),
A gr~nde "recompensa" desta pesquisa, do ponto de vista da crítica, ·fo¡ des- que a maioria dos historiadores das idéias - incluindo Foucault, apesar de
cobnr que nem mesmo o androcentrismo da formai;a o social rabínica era todo o seu genio - nunca tenla fazer isso.
monolítico. ou completamente bem-sucedido (desconfío que isto seja verda- (Winkler 1989, 6)
d~ em pra~ca_men~e t~das as culturas). Em dois capítulos cruciais, argumen-
te1 ~ue ha s1gmf1canvas práticas de oposii;ao a hegemonia do discurso ao interessava a hegemonía masculina man ter registros da autonomia fe-
domma~te, preservadas pelos textos canónicos. Urna delas sugere que pelo minina. A descoberta desta autonomía, ou melhor, a sua reconstitui<;ao, tam-
menos as margens da prática social, ou até mesmo em sua área central ha- bém representa um ponto de resistencia contra as hegemonias dominantes
via maneiras importantes de as mullieres adquirirem a sua autonomi; ou no presente - neste caso, os diversos segmentos da ortodoxia rabínica (nao
partici~arem de atividades culturais altamente valorizadas, como 0 estudo todos) que ainda pretendem excluir as mullieres de urna total participai;ao
da _Tora. U1:°a vez que este tipo de participa<;ao ameai;aria a ideologia mas- na cultura.
c~lma dom_mante, houve urna tentativa específica de suprimir a sua memó- Além disso, mesmo textos androcentricos, escritos pelos homens, preser-
na, coi:no Vlmos na ~stória de Berúria, a estudiosa do Talmude apresentada vam memórias discordantes ou antitéticas. Eles representam, assim, a voz da
no capitulo 6 <leste hvro. Isso aproxima a minha análise dos métodos aplica- !uta masculina (ainda que nascente e equivocada, a partir da nossa perspec-
tiva) contra a ideología da assimetria entre os generos, "urna quebra do con-
texto [cultural]", para utilizar os termos mareantes de Rache! Adler (Adler
c~do,.entitulad~ "Paulo; a genealogia dos generos", Representations 41.
16 Digo necessanamente? porque, em termos empíricos, nao se encontrou nenhuroa socieda- 1988). É esta prática de oposii;ao rudimentar na cultura antiga que agora
de até hoJe em que º. ~enero_ nao sej_a urna categoria hierárquica. Tenho alguma esperanc;a nos dá o poder de redimir e resgatar um passado que pode nos ser útil. o
d_e _que este fato empmco seJa fact1c10, isto é, um produto de condir,;óes históricas e roate- segundo capítulo, em que abordei esta oposii;ao ao discurso dominante so-
na1s especificas. O fato, emao, de o judaísmo rablnico, segundo a roinha argumenta~o
bre os generos (capítulo 5), tentei mostrar que havia urna oposii;ao masculi-
nao b~sear a sua atitude em relac;ao aos gl!neros numa teoria que propóe a existencia d~
urna d1ferenc;a essencial_entre homem e mulher pode trazer maiores esperanr,;as de mudan- na significativa a instituii;ao de longas separa<;óes matrimoniais, urna prática
r,;a para o m~ndo material do que pensaríamos a principio. Mais urna vez, a questao de sa- que apaga quase por completo o reconhecimento da subjetividade e do dese-
ber se esta h1erarqu1a é urna conseqüencia necessária ou ap~nas contingente das "relar,;Oes" jo femininos. Esta oposii;ao estaria calcada numa empatia que conseguia ir
permanec_e em _aberto (pelo menos para mim). Espero que a última opc;ao seja a verdadeira
Ver tambero Kitch (198_9 , 23-73), principalmente o seguinte comentário: "De fato, a exclu: além do poder cultural masculino ou de urna hierarquia baseada na diferen-
sao da~ mulheres dos sistemas de prestigio social é um resultado direto de sua relac;ao re- <;a entre os generos. Esta oposii;ao nao chegou a derrubar esta hierarquia,
produuva/ sexual coro os homens" (32).
Uma Conclusiio para o Futuro 253
252 Uma Conclusiio para o Futuro

nem a imaginar urna alternativa para substituí-la, mas conseguiu propor fica claro no caso do Talmude, que é encarado até hoje por várias coletivida-
sub-versóes intemas. 17 ao pretendo afirmar aqui que a prática do Talmude des judaicas como urna orientac;ao oficial para a sua prática social.
em relac;ao a diJerenc;a entre os generas nao era problemática, urna vez que Na cultura rabínica, as mulheres sao encaradas como ajudantes dos ho-
havia urna Berúria e, portanto, podemos ver que as mullieres tinham acesso mens, suprindo as suas necessidades sexuais e de procriac;ao, como já vi-
ao estudo da Torá; ou entao porque podemos· mostrar que urna passagem mos no capítulo 3. Por outro lado, o ódio as mulheres e o medo da
agádica se opunha a urna prática com a qual nao concordamos, ou urna úni- sexualidade e do carpo sao temas menores nesta formac;ao, quando estuda-
ca voz no Talmude reconhecia a paridade das mulheres com os homens na dos em seu contexto textual e cultural. Como já demonstrei, a sua afirmac;ao
expressao de seu desejo sexual. Nao há a menor dúvida de que as mulheres como uro elemento central da cultura é um artificio de leituras posteriores,
nao costumavam estudar a Torá no período talmúdico, urna situac;ao que re- que apagam as discordancias entre os próprios rabís. Contudo, se os textos
vela urna série de definic;óes de func;ao que reforc;am a assimetria e a hierar- escritos pelos homens da cultura rabínica de modo geral nao apresentam a
quía entre os sexos. Muitos homens naquela época (e um número ainda sexualidade feminina como um elemento ameac;ador ou abominável, por ou-
maior mais tarde) abandonavam as suas esposas por anos a fio para se dedi- tro lado as mulheres nao possuem grande poder dentro desta formac;ao. A
carem as suas metas intelectuais e religiosas. As mulheres, por sua vez, eram recompensa desta análise nao é, portanto, a descoberta (ou resgate) de urn a
treinadas para serem pudicas e guardarem um silencio profundo a respeito era de ouro no passado e muito menos a atribuic;ao de valores relativos as
de sua sexualidade. As excec;óes servem apenas para comprovar a regra, por diferentes formas culturais do final da Antigüidade. a verdade, eu <liria que
assim dizer. o entanto - e este é o ponto crucial da minha argumentac;ao tentativas <leste tipo estao fadadas ao fracasso e tem um efeito necessaria-
- algo diferente estava acontecendo as margens <leste discurso hegemónico. mente triunfalista, quer procurem encontrar um Paraíso feminista no paga-
Algumas mullieres quebravam este molde e alguns homens nao se sentiam nismo anterior a vinda dos judeus, em Jesus ou Paulo em oposic;ao ao
bem dentro da ideología dominante, chegando a combate-la. Estes homens e judaísmo (ver von Kellenbach l 99Q para um extenso regis~o . de_práticas
mulheres, que talvez ocupassem urna posic;ao marginal, podem se tomar <leste tipo), ou na cultura judaica em compara<;ao com o cnsuarusmo. De
protótipos de urna reforma nas práticas judaicas tradicionais relacionadas qualquer maneira, mesmo que nao tenhamos descoberto formac;óes cultu-
aos sexos. Esta transformac;ao, porém, nao deixaria de estar calcada no texto rais no passado que davam o mesmo poder as mullieres e aos homens, o
e na tradic;ao talmúdicos. Mais urna vez, o discurso dominante procura co- próprio fato de podermos mostrar que formac;oes androcentricas diferen Les
brir estas fissuras e apagar as sub-versóes do registro cultural. o entamo, funcionavam de maneiras diferentes, em diferentes épocas e lugares, ofen:ce
ele nao consegue ser bem-sucedido, deixando-nos urna brecha que podemos urna espécie de historicizac;ao desmistificadora, mostrando que cada urna
voltar a ocupar. 18 Gostaria de propor que o mesmo principio se aplica a delas era específica e contingente, e nenhuma tinha a condic;ao de um fenó-
toda cultura antiga que exerce um grande poder formador sobre a nossa meno natural trans-histórico. Se tenho razao ao afimar que a assimerria en-
própria cultura. tre os generas na cultura judaica rabínica nao estava calcada num me_d o
Atribuir a um texto um significado puramente misógino também pode instintivo e atávico do carpo ou da sexualidade fernininos, entao é preciso
ser um gesto de misoginia; por outro lado, resgatar vozes "feministas", que procurar, de modo geral, novas origens para o androcentrismo em outras cul-
representam um ato de resistencia ou de oposic;ao dentro dos textos antigos, turas.19 Isto significa, pelo menos para mim, que a questao do caráter quase
pode levar a apropriac;ao <lestes textos para a transformac;ao política. lsso universal da assimetria cultural entre os sexos <leve ser respondida arravés
nao significa negar a presenc;a do patriarcado (ou da misoginia) nas práticas de modelos materialistas e históricos, e nao arravés de estruturas trans-histó-
hegemónicas da cultura. Ao desenvolvermos o tipo de leitura que propus ricas da psique humana. O projeto historicista, na minha opiniao, apresen-
aquí, os textos nao refletem apenas urna voz proto-feminista dissidente den- tas chances bem melhores de sucesso.
tro do judaísmo clássico; eles passam a perpetuar e a instituir esta voz. Isso Ao falar de condic;óes materiais, refiro-me as condic;oes da reprodu<;ao

19 Repare que isto nao excluí a possibilidade de que numa det~_inada formac;_ao cultural'. ou
17 Devo este neologismo brilhame a Chana Kronfeld. em várias formac;oes deste tipo, os borneos nao tenham soc1ahzado urna autude temc1osa
18 A fantástica imagem da mudanc;a cultural como a "ocupac;ao de urna brecha" na história fo¡
diame do corpo feminino; o meu argumento aqui é que este medo é específico a dete1mina-
proposta por Mieke Bal. das culturas, e nao urna característica da nossa espécie.
Urna Conc/usiio para o Futuro 255
254 Uma Conc/usiio para o Futuro
minino, originários da infancia, simplesmente nao se aplicam a esta cultura
humana e da criac;ao de crianc;as em sociedades cac;adoras/ coletoras e, mais _ e a nenhuma outra, pois estas teorias tiram a sua validade de sua suposta
tarde, agrárias. Certos discursos psicanalíticos tendero a tomar a misoginia aplicabilidade universal. Outros estudos inter-culturais também indicam q~e
um elemento natural, remetendo as suas origens a um eterno drama psíqui- a dominac;ao masculina nao se deve a psique universal dos homens ( duB01s
co da infancia. Sugiro, entao, que ao invalidar urna abordagem a dominac;ao 1988; ver também Gottlieb 1989). Eu simplesmente nao consigo ver nos tex-
masculina (talvez já obsoleta mesmo entre os teóricos da psicanálise) segun- tos talmúdicos urna cultura de homens aterrorizados <liante do poder ou da
do a qual ela seria o resultado do medo masculino universal <liante do corpo sexualidade femininos. Por outro lado, vejo urna cultura em que os homens
da rnulher, poderemos deixar de encará-la como um fenómeno natural, pas- dominavam as mulheres para garantir que as suas necessidades corporais
sando a entende-la como urna condic;ao produzida historicamente, urna con- de sexo e reproduc;ao fossem atendidas com eficiencia. Mais urna vez, nao
dic;ao que pode se transformar ao longo do tempo (Bloch l 99la, 1). A nossa pretendo afirmar que a misoginia nao estava presente na cultura. rabínica,
psique é formada em condic;óes históricas, sócio-culturais, através das práti- mas sim que ela nao parece ter sido um de seus símbolos centra1s (Ortner
cas discursivas em que se dá a nossa socializac;ao (isso inclui a ideac;ao. As- 1973), ao contrário do que acontecia em algumas formac;óes helenistas.
sim, as idéias também sao fatos rnateriais). 20 Tomamos certas inclinac;óes Urna conclusa.o para a discussao conduzida neste livro, entao, é que cenas
psíquicas como algo natural ou universal, quando na verdade pode-se de- estruturas de assimetria entre os géneros nao sao ta.o impermeáveis a um de-
monstrar que elas sao determinadas pela cultura.21 Os psicanalistas podem sejo de mudanc;a, como a sua presenc;a generalizada darla a e~t~nder. Elas
ter produzido, como tudo indica, urna explicac;ao para a formac;ao da psique foram produzidas por situac;óes materiais que, ao serem modificadas, po-
na nossa cultura; a sua' aplicabilidade transcultural, porém, nao é urn fato dem criar as condic;óes necessárias para invalidá-las. Espero ter mostrado
inquestionável. 22 Apesar de nao ter apresentado os elementos materiais espe- aqui como urna cultura pode encontrar em si mesma os recursos de qu~ pre-
cíficos que teriam determinado a dominac;ao masculina no judaísmo antigo, cisa para se preservar e manter a sua vitalidade, ao mesmo tempo que mtro-
creio ter demonstrado aqui que explicac;óes psicanalíticas que atribuem os duz modificac;óes indispensáveis. Na minha opiniao, esta é a tarefa de urna
sistemas de dominac;ao masculina a supostos medos universais do poder fe- critica social redentora e conscientizadora.

20 Esta frase está inspirada em comentários feítos por Caro! Delaney na Stanford University,
onde apresentei este texto num colóquio sobre estudos culcurais. Ela nao é responsável, é
claro, pela forma que as suas idéias adquiriram aquí.
21 A obra de Camille Paglia (1990) é um excelente exemplo de como este erro é comeádo
num contexto que nao está ligado explic.itamente a psicanálise; ela insiste em aplicar ele-
mentos encontrados na formai;áo cultural oc.idental (em seu senádo mais amplo) a huma-
nidade como um todo, partindo do principio de que eles representam urna realidade
pslquica essenc.ial.
22 Fui censurado a este respeilo por Ruth Stein (um pouco antes de este livro ser publicado),
que. numa carta de 25 de novembro de 1991, faz a seguinte observa<;áo:

Concordo com a afirmai;do de que tentar explicar fen/lmenos culrurais e hi.stóricos com ferra-
rnentas psicanalfticas é uma idiotice. De qualquer maneira, nas áreas da leoria lilerdria, da
teoria rnltural, etc., costuma-se Jalar da psicanálise de fornia imprecisa, ultrapassada e sem dis-
cernimenro. Sempre que !eio afirmai;óes tdo gerais a respeito da psicanálise, ndo consigo dei.xar
de me perguntar: "qual psicanálise"?

Stein sem dúvida está cerreta. Nao tenho a menor intem;ao de depreciar a psicanálise,
urna prálica que me trouxe beneficios indescritiveis. Procuro apenas questionar urna expli-
ca<;ao para a domina<;ao masculina que já fo¡ muito comum em círculos psicanalíticos e
que está viva até hoje: os homens temem, rejeitam, detestam o corpo feminino por causa de
suas experiencias no inicio da infancia. Estou convencido de que esta repulsa nao é um
universal psiquico, mas sim um produto culcural. Urna vez que boa parte dos pensadores
da psicanálise nao defende mais este pomo de vista, os termos que usei na minha descri<;ao
devem ser modificados.
Bibliografía

Adler, Rache!
1988 "The Virgin in the Brothel and Other Anomalies: Character and
Comext in the Legend of Beruriah". Tihhun 3
Alexandre, Monique
1988 Le Commencement di1 Livre Genése 1-V: La Version Grecque de la Sep~ante
et sa Réception. Ed. P. Nautin. Christianisme Antique. Paris:
Beauchesne Editeur.
Alon, Gedalyahu
1977 ]ews, judaism and the Classical World: Studies in ]ewish History in the
Times of tlie Second Temple and Talmud. Trad. Israel Abrahams.
Jerusalém: Magnes Press.
Anderson, Gary
1989 Celibacy or Consummation in the Garden? Reílections on Early jewish
and Christian lmerpretations of the Garden of Eden. Harvard
Theological Review 82: 121-48.
Archer, Léoniej.
1983 "The Role ofjewish Women in the Religion, Ritual and Cult of
Graeco-Roman Palestine", in lmages of Women in Antiquity, ed. Averil
Cameron e Amélie Kuhn, 273-88. Detroit: Wayne State University
Press.
Aschkenasy, Nehama
1986 Eve's]ourney: Feminine lmages in Hebraic Literary Tradition. Filadélfia:
University of Pennsylvania Press.
Aspegren, Kerstin
1990 The Male Woman : A Feminine Ideal in thc Early Church. Ed. Reneé
Kieffer. Uppsala Women's Studies: Women in Religion. EstoC01mo:
Almqvist &: Wiksell lntemational.
Aste!, Ann W .
1990 The Song of Songs in the Middle Ages. haca, ova York, Comell
University Press.
Agostinho
Tractatus adversus ]udaeos.
Bakhtin, Mikhail
1984 Rabelais and His World. Trad. Héléne lswolsky. Bloomington: Indiana
University Press.
258 Bibliografia
Bibliografia 259

Bal, Mieke
Boyarin, Daniel
1987 Lethal Love. Indiana Studies in Biblical Literature. Bloomington:
1987 Two Introductions to the Midrash on Song of Songs. Tarbiz 56:479-5 01.
Indiana University Press.
1989 Language lnscribed by History on the Bodies of Living Beings: Midrash
1988a Death and Dissymmetry. Chicago: University of Chicago Press.
and Martyrdom. Representations 25:139-51.
1988b Murder and Difference: Gender, Genre, and Scholarship on Sisera's
l 990a Diachrony Against Synchrony: The Legend of Beruria. ]erusalem Studies
Death. indiana Studies in Biblical Literature. Bloomington: Indiana
in ]ewish Folklore.
University Press.
1990b The Eye in the Torah: Ocular Desire in Midrashic Hermeneutic. Critica!
1990 The Point of arratology. Poetics Today 11:727-54.
lnquiry 16:532-50.
1991 Lots of Writing. 5emeia 54:77-102.
l 990c Jnterte.xtuality and the Reading of Midrash. Bloomington: Indiana
Beer, Mases
University Press.
1980 The Hereditary Principie injewish Leadership. lmmanuel 10:57-61.
l 990d The Politics of Biblical arratology: Reading the Bib!e Like/ As a
Beer, Moshe
Woman. Diacritics 20:31-42.
1976 The Sons of Mases in Rabbinic Lore. Bar-llan : University Yearbook of
1991 Literary Fat Rabbis: On the Historical Origins of the Grotesque Body.
]udaic Studies and the Humanities 13:149-57.
]oumal of the History of Se.xuality 1:551-84.
Biale, David
1992 "This We Know to Be the Carnal Israel": Circumcision and the Erotic
1986 Eros and Enlightenmem: Love Against Marriage in the East-European
Life of God and lsrael. Critica! lnquiry 18:4 74-505.
j ewish Enlightenment. Polín 1:49-67.
l 993a "Take the Bible for Example: Midrash as Literary Theory". In The Use
1989 From Intercourse to Discourse: Control of Sexuality in Rabbinic
and Abuse of Examples, ed. Alexander Gelley. Stanford: Stanford
Literature. Artigo apresentado no 60 11 Colóquio do Centro de Escudos
University Press.
Hermeneuticos, Berkeley.
1993b "Rabbinic Resistance to Mate Domination: A Case Study in Talmudic
1991 Ejaculatory Prayer: The Displacement of Sexuality in Chasidism.
Cultural Poetics". In Critica! jewish Hermeneutics, ed. Steven Kepnes.
Til1kun 6:21-28.
Nova York: New York University Press.
1992 Eros and the]ews: From Biblical Israel to Contemporary America. Nova
Brooten, Bernadette
York: Basic Books.
1982 Women Leaders in the Ancient Sy nagogue: lnscriptional Evidence and
Biale, Rache!
Bad1ground lssues. Brownjudaic Studies, n 11 36. Chico, Calif: Scholars
1984 Women and]ewish Law: An Exploration of Women 's lssues in Halakhic
Press.
Sources. ova York: Schocken Books.
Brown, Peter
Bialik, Haim Nahman
1983 The Saint as Exemplar in Late Antiquity. Representations 2:1-25.
1951 Sefer ha'aggadah [hebraico]. Tel-Aviv: D'vir.
1987 "Late Antiquity". In A History of Private Lije, ed. Philippe Aries e
Bloch, R. Howard
Georges Duby. Vol. 1, From Pagan Rome to Byzantiurn. Ed. Paul Veyne
1987 Medieval Misogyny. Representations 20:1-25.
e trad. Arthur Goldbammer, 235-311. Cambridge: Belknap Press of
199la Medieval Misogyny and the lnvention of Western Romantic Love. Chicago:
Harvard University Press.
University of Chicago Press.
1988 The Body and Society: Men, Women and Sexual Renunciation in Early
199lb "Mieux Vaut jamais que Tard": Romance, Philology, and Old Frcnch
Christianity. Lectures on the History of Religions, vol. 13.. ova York:
Letters. Representations 36:64-86
Columbia University Press
Borgen, Peder
Bruns, Gerald
1965 Bread from Heaven. Leiden: E. J. Brill.
1987 "Midrash and Allegory". In The Literary Guide lO the Bible, ed. Roben
1980 "Observations on the Theme 'Paul and Philo': Paul's Preaching of
Alter e Frank Kermode, 625-46. Cambridge: Harvard University Press.
Circumcision in Galatia (Gal 5:11 ) and Debates on Circumcision in
1990 "The Hermeneutics of Midrash". In The Boo11 and the Text: The Bible
Philo", in The Pauline Literature and Tiieology, ed. Sigfred Pedersen,
and Literary Theory, ed. Regina Schwartz, 189-213. Oxford: Basil
85-102. Teologiske Studier. Árhus: Forlaget Aros.
Blackwell.
Bowersock, G. W.
Bruns, J. Edgar
1990 Hellenism in Late Antiquity. jerome Lectures, n° 18. Ann Arbor:
1973 Philo Christianus: Tbe Debris of a Legend. Harvard Theological Review
University of Michigan Press.
66:141-45.
260 Bibliograjia Bibliografia 261

Buber, Solomon, ed. Charnbers, Ross


1964 Midrash Tanhuma. jerusalém: Ortsel Press. 1991 Room far Maneuver: Reading (the) Oppositional (in) Narrative. Chicago:
Buckley, Thomas, e Alma Gottlieb University of Chicago Press.
1988 "A Critica) Appraisal of Theories of Menstrual Symbolism". In Blood Crisóstorno, joao
Magic: The Anthropology of Menstruation , ed. Thomas Buckley e 1986 On Marriage and Family Lije. Trad. Catherine Roth e David Anderson.
Alma Gottlieb, 1-50. Berkeley e Los Angeles: University of Crestwood, N.Y.: St. Vladimir's Seminary Press.
California Press. Clark, Elizabeth A.
Buckley, Thomas, e Alma Gottlieb, eds. 1986 "Ascetic Renunciation and Ferninine Advancement: A Paradox of Late
1988 Blood Magic: The Ant11ropology of Menstruation. Berkeley e Los Angeles: Ancient Cliristianity". In Ascetic Piety and Women 's Faith: Essays in Late
University of California Press. Ancient Christianity, 175-208. ova York: Edwin Mellen Press.
Butler,Judith Clemente de Alexandria
1990 Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Thinking 1989a "The Instructor". ln The Fathers of the Second Century, ed. Alexander
Gender. Londres: Routledge. Roberts e james Donaldson, 207-98. The Ante-nicene fathers. Grand
Bynum, Caroline Walker Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans.
1986 "' .. .And Wornan His Humanity': Female Imagery in the Religious 1989b "The Strornata, or Miscellanies". ln Tite Fatliers of the Second Century,
Writing of the Later Middle Ages". In Gender and Religion: On the ed. Alexander Roberts e james Donaldson, 299-568. The Ante-nicene
Complexity of Symbols, ed. Caroline Walker Bynum, Stevan Harrell e fathers. Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans.
Paula Richrnan, 257-89. Boston: Beacon Press. Cohen, jeremy
1991 "Material Continuity, Personal Survival and the Resurrection of the 1989 "Be Fertile and lncrease, Fil! the Earth and Master It": The Ancient and
Body: A Scholastic Discussion in Its Medieval and Modem Medieval Career of a Biblical Text. Ítaca, Nova York, Cornell University
Contexts". In Fragmentation and Redemption : Essays on Gender and Press.
the Human Body in Medieval Religion, 239-98, 393-417. ova York: Cohen, Shayej.D.
Zone Books. 1980 Women in Synagogues in Antiquity. Conservative]udaism 34:23-29.
Cantarella, Eva 1991 "Menstruants and the Sacred injudaism and Christianity". In Women's
1987 Pandora's Daughters: T11e Role and Status of Women in Greek and Roman History and Ancient History, ed. Sarah B. Pomeroy, 273-99. Chapel
Antiquity. Trad. Maureen B. Fam. Baltirnore: johns Hopkins University Hill: University of North Carolina Press.
Press. Collins, John J.
Caspary, Gerard E. 1985 "A Syrnbol of Otherness: Circumcision and Salvation in the First
1979 Politics and Exegesis: Origen and the Two Swords. Berkeley e Los Cenrury". ln "To See Ourselves as Others See Us": Christiaris, jews,
Angeles: University of California Press. "Others" in Late Antiquity, ed.Jacob Neusner, Emest S. Frerichs e
Castelli, Elizabeth Caroline McCracken-Flesher, 163-86. Scholars Press Studies in the
1986 Virginity and Its Meaning for Women's Sexuality in Early Chistianity. Humanities. Chico, Calif.: Scholars Press.
]oumal of Feminist Studies in Religion 2:61-88. Conzelmann, Hans
1991 "'! Will Make Mary Male': Pieties of the Body and Gender 1976 "1 Corinthians: A Commentary on the First Epistle to the Corinthians".
Transformation of Christian Women in Late Antiquity". In Body In Hermeneia - a Critica! and Historical Commentary on the Bible,
Guards: The Cultural Politics of Ambiguity, ed. Julia Epstein e Kristina trad. James W . Leitch; bibliografia e referencias preparadas por
Straub, 29-49. Nova York: Routledge. James W . Dunkly; ed. George W. S . ]. MacRae. Filadélfia: Fortress
Chadwick, Henry Pres s.
1966 St. Paul and Phllo of Alexandria. Bulletin of the]ohn Rylands Library Crouzel, Henri
48:286-307. 1989 Origen: The Lije and Thought of the First Great Theologian . Trad. A. S.
Chamberlain, Lori Worrall. Edimburgo: T & T Clark.
1991 Consent After Liberalism? A Review Essay of Catharine MacKinnon's Daube, David
Toward a Feminist Theory of the State and Carole Pateman's The Sexual 1973 TI1e New Testament and Rabbinic]udaism. ova York: Amo Press.
Contract. Genders 11:11 1-25. 1977 The Duty of Procreation. Edimburgo: Edinburgh University Press.
Bibliografia 263
262 Bibliografia

192 9b "On the Creation". In Loeb Classics Philo, vol. l. Londres:


Davis, Laurie Heinemann.
1991 Beruriah: Exploring Gender in Rabbinic Writings. Artigo nao 1932 "The Migration of Abraham". In Loeb Classics Philo , vol. 4. Londres:
publicado, Berkeley. Heinemann.
Dillon, john 1937 "The Special Laws". In Loeb Classics Philo, vol. 7. Londres:
1977 The Middle Platonists: 80 B.C. to A.D. 220. ltaca, ova York, Comell Heinemann.
University Press. 1953 "Questions in Genesis". In Loeb Classics Philo, suplemento, vol. l.
Dodds, E. R. Londres: Heinemann.
1965 Pagan and Christian in an Age of Anxiety: Some Aspects of Religious 1981 "The Giants". In Philo of Alexandria: Tite Contemplative Lije, t11e Gian ts,
Experience Jrom Marcus Aurelius to Constantine. Cambridge University and Selections, ed. e trad. David Winston, 59-72. The Classics of
Press. Western Spirituality. Nova York: Paulist Press.
Dreyfus, Huben e Paul Rabinow Finkelstein, Louis
1983 Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics University of 1964 [1936] Akiba: Scholar, Saint and Manyr. Nova York:Macmillan
Chicago Press. [Atheneum].
duBois, Page Fiorenza, Elizabeth Schüssler
1988 5owing the Body: Psychoanalysis and Ancient Representations of Women. 1983 In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian
Women in Culture and Society. University of Chicago Press. Origins. Nova York: Crossroad.
Dunn, james D. G. Ford, David Carlton
1990 ]esus, Paul and the Law: Studies in Mark and Galatians. Louisville, Ky.: 1989 Misogyn.ist or Advocate? St. ]ohn Cltrysostom and His Views 011 Women.
Westrninster/john Knox Press. Tese de doutorado, Drew University.
1991 "The Theology of Galatians: The Issue of Covenantal Nomism". In Foucault, Michel
Pauline T1teology, ed.Jouette M. Bassler. Vol. 1, 125-46. Minneapolis: 1980 :¡he History of Sexuality. Vol. 1, An Introduction . Trad. Roben Hurley.
Fortress Press. Nova York: Random House, Vintage.
Dworkin, Andrea 1983 Posfácio. In Michel Foucauk Beyond Structuralism a11d Henneneutics,
1974 Woman Hating. Nova York: E. P. Dutton. ed. Hubert Drey fus e Paul Rabinow. Chicago: University of Chicago
Eilberg-Schwartz, Howard Press.
1989 Re-organizing the Body: The Demotion of the Penis in the Emergence 1986a The History of Sexuality. Vol. 3, The Care of tite Self. Trad. Roben
of judaism. Trabalho apresentado na American Ethnological Society, Hurley. Nova York: Random House, Vintage.
Nova Orleans. l 986b The History of Sexuality. Vol. 2, The Use of Pleasure. Trad. Roben
1990a Damned lfYou Do and Damned lfYou Don't: Rabbinic Ambivalence Hurley. Nova York: Random House, Vintage.
Toward Sex and the Body. Trabalho apresentado no 61 2 Colóquio do
Fox, Robín Lane
Centro de Estudos Hermenéuticos, Berkeley. 1987 Pagans and Christians. ova York: Alfred A. Knopf.
l 990b The Savage in ]udaism: An Anthropology of lsraelite Religion and Ancient
Fraade, Steven D.
]udaism. Bloomington: Indiana University Press. 1986 "Ascetical Aspects of Ancientjudaism". In]ewish Spirituulity, ed.
1991 The Nakedness of a Woman's Voice, the Pleasure in a Man's Mouth: Arthur Green. World Spirituality: An Encydopedic History of the
An Oral History of Ancientjudaism. Trabalho apresentado no colóquio Religious Quest. Nova York: Crossroad.
do Annenberg Research lnstitute, "Women in Religion and Society", 1991 from Tradition to Commentary: Torah and Its Interpretation,i11 tite
Filadélfia. Midrash Sifre to Deuteronomy. judaica: Hermeneutics, Mysticism , and
Epstein, jacob ahum Halevy Religion. Albany: State University of New York Press.
1964 Introduction to tite Text of tite Mishna. jerusalém: Magnes Press. Friinkel, Yonah
Fineman, j oel 1981 Readings in the Spiritual World of the Stories of the Aggada. Tel-Aviv:
1989 "The History of the Anecdote: Fiction and Ficúon". In The New United Kibbutz Press.
Historicism , ed. H. Aram Veeser, 49-76. ova York: Routledge. Frazer, R. M., trad. e ed.
Fílon 1983 The Poems of Hesiod. orman: University of Oklahoma Press.
1929a "Legum Allegoria". In Loeb Classics Philo, vol. l. Londres: Heinemann.
264 Bibliografia Bibliografia 265

Friedman, Mordechai A. Gleason, Maud


1990 Tamar, A Symbol of Life: The "Killer Wife" Superstition in the Bible 1990 "The Semiotics of Gender". In Befare Sexuality: The Construction of
and Jewish Tradition. A]S Review 15:23-62. Erotic Experience in the Ancient Greek World, ed. David M. Halperin,
Friedman, Shamma john J. Winkler e Froma Zeitlin, 389-415. Princeton: Princeton
1985 "Literary Development and Historicity in the Aggadic Narrative of the University Press.
Babylonian Talmud: A Study Based Upon B.M. 83b-86a". ln Community Goldin, judah, trad.
and Culture: Essays in jewish Studies in Honor of tite 90th Anniversary of 1955 The Fathers According to Rabbi Nathan . Yalejudaica Series, vol. 10.
Gratz College, ed. Nahum W. Waldman., 67-80. Filadélfia: Gratz College. ew Haven: Yale University Press.
1989 "Towards the Historical Aggada of the Babylonian Talmud". In The Goodblatt, David
Saul Lieberman Memorial Volume, ed. Shamma Friedman, 4-14. 1975 The Beruriah Traditions. ]oumal of ]ewish Studies 26:68-86.
jerusalém: Thejewisb Theological Seminary. Prova de prelo. Goshen-Gottstein, Alon
Friedman, Simha 1991 The Body as Image of God in Rabbinic Literamre. Trabalho
1983 "O estudo da Torá para a mulher contemporanea". In A mulher nas apresentado em People of the Body/ People of the Book, Berkeley.
fontes do judaísmo (em hebraico), 53-67. jerusalém: n.p. Gottlieb, Alma
Frontisi-Ducroux, Fran~oise e Fran~ois Lissarrague 1989 Rethinking Female Pollution: The Beng of Céite D'lvoire. Dialetical
1990 "From Ambiguity to Ambivalence: A Dionysiac Excursion Through Anth ropology 14:65-81.
the 'Anakreontic' Vases". In Befare Sexualily: Tite Construction of Green, William Scou
Erolic Experience in tite Ancient Greeh World, ed. David M. Halperin, 1978 "What's in a ame? The Problematic of Rabbinic Biography". ln
johnj. Winkler e Froma Zeitlin, 211 -56. Princeton: Princeton Approaches to Ancient]udaism: Theory and Practice, vol. 1, 77-96.
University Press. Brownjudaic Studies, no. l. Missoula, Mont.: Scholars Press.
Fuss, Diana Greenblatt, Stephen J.
1989 Essentially Speahing: Feminism, Nature & Difference. ova York: 1990 "Towards a Poetics of Culture". In Leaming ro Curse: Essays in Early
Routledge. Modern Culture, 146-60. ova York: Routledge.
Gafni, Isaiah M. Griffin, M. T.
1986/ 7 "'Scepter and Stafr: Conceming ew Forms of Leadership in the 1976 Seneca: A Philosopher in Polilics. Oxford: Clarendon.
Period of the Talmud in the Land of Israel and Babylonia". In Hadarshan, Shim'on
Priesthood and Kingdom: Die Relations of Religion and State in ]udaism 1960 Numbers Rabbah. Tel-Aviv: Moriah.
and the Gentiles, ed. l. Gafni e G. Motzkin, 84-91. jerusalém: Zalman Hadas, Moses, ed. e trad.
Shazar Center. 1953 Three Greeh Romances. Garden City, 1. Y.: Doubleday.
1989 "The Institution of Marriage in Rabbinic Times". In Tite Jewish Family: Haeri, Shahla
Metaphor and Memory, ed. David Kraemer, 13-30. Oxford: Oxford 1989 Law of Desire: Temporary Marriage in Shi 'i lran. Contemporary lssues
University Press. in the Middle East. Siracusa: Syracuse University Press.
Gager, john Handelman, Susan
1982 Body-symbolism and Social Reality: Resurrection, Lncarnation, and 1982 Tite Slayers of Mases : The Emergence of Rabbinic lnterpretalion in
Asceticism in Early Christianity. Religion 12:345-64. Modem Literary Theory. Albany: State University of New York Press.
1983 The Origins of Anti-Semitism. Nova York: Oxford University Press. Hanson, Ann Ellis
Gammie, J. G. 1990 "The Medica! Writers' Woman". ln Befare Sexuality: The Construclion of
1974 Spatial and Ethical Dualism injewish Wisdom and Apocalyptic Erotic Experience in the Ancient Greel1 World , ed. David M. Halperin,
Literacure. ]oumal of Biblical Literature 93:365-85. johnj. Winkler e Froma Zeitlin, 309-38. Princeton: Princeton
Gardella, Peter University Press.
1985 Innocent Ecstasy: How Christianity Cave America an Et/tic of Sexual Harrison, Yema E. F.
Pleasure. Oxford: Oxford University Press. 1990a Allegory and Asceticism in Gregory ofNyssa. Semeia 57:113-30.
Gastan, Lloyd l 990b Male and Female in Cappadocian Theology. ]ournal of Theological
1987 Paul and tite Torah. Vancouver: University of British Columbia Press. Studies 41:441-71.
266 Bibliografia Bibliografia 267

A ser publicado A Gender Reversal in Gregory of yssa's First Homily on Kalonymos, Yehuda ben
The Song of Songs. Trabalho apresentado na 11 ª Conferencia 1963 The Genealogy of the Tannaim and Amoraim. Ed. Y. L. Fischman.
Internacional sobre Estudos Patrísticos, Oxford, 19-24 de agosto, Jerusalém: Mossad Harav Kook.
1991. Scudia Patristica. Kee, Howard Clark, trad.
Heath, Stephen 1983 "Testaments of the Twelve Patriarchs, the Sons ofjacob the Parriarch".
1987 "Male Feminísmn. In Men in Feminism, ed. Alicejardine e Paul Smith, ln The Old Testament Pseudepigraplta and the New Testament. Vol l ,
1-32. Nova York: Methuen. Apocalyptic Literature and Testaments, ed.James H. Charlesworth.
Hecht, R. Cambridge, U.K.: Cambridge University Press.
1984 "The Exegetical Contexts of Philo's lnterpretalion of Circumcision". ln King, Karen L.
Nourished with Peace: Studies in Hellenistic judaism in Memory of Samuel 1988 "Sophia and Chri.st in the Apocryphon of johnn. ln lmages of the
Sandmel, ed. F. Greenspan, E. Hilgert e Burton Mack, 51-79. Chico, Feminine in Gnosticism , ed. Karen L. King, 158-76. Filadélfia: Fortress
Calif.: Scholars Press. Pres s.
Heinemann, joseph Kitch, Sally L.
1971 The Proem in the Aggadic Midrashim: A Form-critical Study. Scripta 1989 Chaste Liberation: Celibacy and Female Cultural Status. Urbana:
hierosolymita 22:100-122.jerusalém: Magnes Press. Uníversi.ty of Ulinoi.s Press.
Higgins, j ean M. Klein-Braslavy, Sarah
1976 The Myth of Eve: The Temptress. ]ournal of the American Academy of 1986 Maimonides ' Jnterpretation of the Adam Stories in Genesis: A Study in
Religion 44:639-4 7. Maimonides' Anthropology. jerusalém: Magnes Press.
Hirshman, Marc Knight, Chris
1992 Polemic Literary Units in the Classical Midrashim and justin 1988 "Menstrual Synchrony and the Australian Rainbow Snake". In Blood
Martyr's Dialogue with Tryplw . jewish Quarterly Review , a ser Magic: Tite Anthropology of Menstruation, ed. Thomas Buckley e Alma
publicado. Gottlieb, 232-55. Berkeley e Los Angeles: University of California Press.
Hodge, Roben Kraemer, David
1990 Literature as Discourse: Textual Strategies in English and History. 1990 The Mind of the Talmud: An Jntellectual History of the Bavli. Oxford:
Baltimore: johns Hopkins Uníversity Press. Oxford Uníversity Press.
Hoshen, Dalia Kraemer, Ross
1990 The Fire-Symbol in the Literature of the Sages. Diss., Bar-llan 1989 Monastic Jewish Women in Greco-Roman Egypt: Philo Judaeus on the
University. Therapeutrides. Signs 14:342-70.
Huet, Marie-Helen 1992 Her Share of the Blessings: Women's Religion Among Pagans, jews and
1983 Living Images: Monstrosity and Representation. Representations 4:73-87. Christians in the Greco-Roman World. Oxford: Oxford University Press.
Idel, Moshe Kugel, james
1989 "Sexual Metaphors and Praxis in the Kabbalah". In Thejewish Family: 1981 TI1e Idea of Bíblica! Poetry. New Haven: Yale Uníversity Press.
Metaphor and Memory, ed. David Kraemer, 197-224. Oxford: Oxford Lachs, Samuel Tobias
University Press. 1974 The Pandora-Eve Motif in Rabbinic Literature. Harvard Theological
1990 Golem: jewish Magical and Mystical Traditions on the Artificial Review 67:341-45.
Anthropoid. Judaica: Hermeneutics, Mysticism, and Religion. Albany: Leaney, A. R. C.
State Uníversity of lew York Press. 1966 The Rule of Qumran and lts Meaning: lntroduction, Translation and
Jaeger, Werner Commentary. The ew Testament Library. Londres: SCM Press.
1961 Early Cltristianity and Greek Paideia. Cambridge: Belknap Press of Lichtenstein, J acqueline
Harvard University Press. 1987 Making up Representation: The Risks of Femininity. Representations
Jardine, Alice e Paul Srnith, org. 20:77-88
1987 Men in Feminism. Nova York: Routledge. Lighúoot, j. B., ej. R. Harmer, trads.
jones, Kathleen B. 1956 [Londres: 1893] Tite Apostolic Fathers. la. ed. Rev. Michael W . Holmes.
1990 Citizenship in a Woman-friendly Polity. Signs 15:781-812. Grand Rapids, Mich.: Baker Book House.
268 Bibliografia Bibliografia 269

Lissarrague, Fram;ois Maimónides, Moisés


1990 "The Sexual Life of Satyrs". In Before Sexuality: The Construction 1963 The Guide of tite Perplexed. Trad. Shlomo Pines. Chicago: University of
of Erotic Experience in tite Ancient Greeh World, ed. David M. Chicago Press.
Halperin, John]. Winkler e Froma Zeitlin , 53-81. Princeton Mandelbaum, Bemard, ed.
University Press. 1962 Pesihta de Rav Kahana. ova York: Thejewish Theological Seminary of
Lloyd, G. E. R. Ame rica.
1983 Science, Folklore and ldeology: Studies in tite Lije Sciences in Ancient Mártir, Justino
Greece. Cambridge University Press. 1956 "Dialogue with Trypho ajew". In The Ante-nicenefatlters trad. e ed.
Lloyd, Genevieve Alexander Roberts e james Donaldson .. Grand Rapids, Mich.: Wm. B.
1984 The Man of Reason: "male" and "female" in Western Philosophy. Eerdmans.
University of Minnesota Press. Mauss, Marce!
Loraux, Nicole 1979 (1950] " Body Techniques". In Sociology and Psycltology :
1981 "Sur la race des femmes et quelques-unes de ses tribus". In Les enfants Essays , trad . Ben Brewster, 95-123. Londres : Routledge &
d'athena: idées athéniennes sur la citoyenneté et la division des sexes, Kegan Paul.
75-117. Paris: Franc;ois Maspero. Meeks, Wayne, ed.
1990 "Herakles: The Super-male and the Feminine". In Befare Sexuality: The 1972 The Writings of Si. Paul. orton Critica! Editions. Nova York:
Construction of Erotic Experience in the Ancient Greeh World, ed. David Norton.
M. Halperin, johnj. Winkler e Froma Zeitlin, 53-81 , Princeton Meeks, Wayne A.
University Press. 1973 The Image of the Androgyne: Sorne Uses of a Symbol in Earliest
MacAnbur, Harvey Christianity. journal of the History of Religions 13: 165-208.
1987 Celibacy injudaism at the Time of Christian Beginnings. Andrews 1983 The first Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul. New
University Seminary Studies 25:163-81. Haven: Yale University Press.
Macdonald, Dennis Ronald Meir, Ofra
1987 Tltere is No Male and Female: The Fate of a Dominical Sayi ng in Paul 1988 "Vinegar, Son of Wine": Between Tradition and Innovation. Leaves for
and Gnosticism. Harvard Dissertations in Religion . Filadé\fia: Literary Researclt 4:9-18.
Fortress Press. Meyer, Michael W .
1988 "Corinthian Veils and Gnostic Androgynes. In Images of tite Feminine in 1985 Making Mary Male: Tbe Categories "male" and "female" in the Gospel
Gnosticism, ed. Karen L. King, 2 76-92. Filadélfia: Fortress Press. ofThomas. New Testament Studies 31:554-70.
McEleney, eilj., C.S.P. Meyers, Caro!
1974 Conversion, Circumcision and tbe Law. New Testament Studies 1988 Discovering Eve: Ancient Israelite Women in Context. Nova York: Oxford
20:319-41. University Press.
Macherey, Pierre Milgrom, Jo
1978 A Th eory of Literary Production. Trad. Geoffrey Wall. Londres: 1988 "Sorne Second Thougbts About Adam's First Wife". In Genesis 1-3 in
Routledge and Kegan Paul. the History of Exegesis: Intrigue in die Garden, ed. Gregory Allen
Mack, Burton Robbins, 225-53. Srudies in Women and Religion. Lewiston, Nova
1984 Philo Judaeus and Exegetical Traditions in Alexandria. In Aufstieg und York, Edwin, Mellon Press.
Niedergang der Rómischen Welt: Geschichte und Kultur Roms in Spiegel Moi, Toril
der neueren Forscltung, vol. 1, 227-71. Berlim: W . de Gruyter. 1990 Simone de Beauvoir: The Making of an Intellecrual Woman. Yale
MacLennan, Roben S. journal of Criticism 4:1-24.
1990 Early Christian Texts onjews and]udaism. Brownjudaic Studies. Mopsik, Charles
Atlanta: Scholars Press. 1989 "The Body of Engenderment in the Hebrew Bible, the Rabbinic
Me amara, jo Ann Tradition and tbe Kabbalah". ln Fragments for a History of tite Human
1976 Sexual Equality and the Cult of Virginity in Early Christian Thought. Body, ed. Michel Feher, com Ramona addaf e adia Tazi , vol 1,
Feminist Studies 3 . 48-73. Nova York: Zone Books.
270 Bibliografia Bibliografia 271

eusner, Jacob Rii.isii.nen, Heikki


1988 The lncamation of God: The Character of Divinity in formative judaism. 1980 "legalism and Salvation by the law. Paul's Portrayal of the Jewish
Filadélfia: Fortress Press. Religion as a Historical and Theological Problern". In The Pauline
1990 The Canonical History of Ideas : The Place of the So-called Tannaite Literature and Theology, ed. Sigfred Pedersen, 63-84. Teologiske
Midrashim . Southern Florida Studies in the History ofjudaism. Atlanta: Studier. Árhus: Forlaget Aros.
Scholars Press. Rapoport-Alpert, Ada
Neusner, Jacob e Emest S. Frerichs, eds. 1988 "On Women in Hasidism". In]ewish History: Essays in Honour of
1985 "To See Ourselves as Otlters See Us": Cltristians, ]ews, "Others" in Late Chimen Abramsky, ed. Ada Rapoport-Alpert e Steven J. Zipperstein,
Antiquity. Scholars Press Studies in the Humaniúes. Chico, Calif.: 495-525. Londres: P. Halban.
Scholars Press. Robinson,John A. T.
Orígenes 1952 The Body: A Study in Pauline Theology. Studies in Bible Theology, n11 5.
1957 Origen, The Song of Songs: Commentary arul Homilies. Trad. R. P. Filadélfia: SCM Press.
lawson. Westminster, Md.: Paulist Press. Rosen, Elisheva
Ortner, Sherry B. 1990 lnnovation and Its Reception: The Grotesque in Aesthetic Thought.
1973 On Key Symbols. The American Anthropologist 75:1338-42. Sub-Stance 19:125-36.
1974 "Is Female to Maleas Nature Is to Culturen? In Women , Culture & Rosenzweig, Franz
Society, ed. Michelle Zimbalist Rosaldo e louise lamphere, 67-87. 1923 Apologetische Denkung. Der ]ude 7:457-64.
Stanford University Press. Rubín, Nissan
Ozick, Cynthia 1989 "The Sages' Conception of the Body and Soul". In Essays in the Social
1979 Women - Notes Towards Finding the Right Question. Forum 35. Scientific Study of judaism and]ewish Society, ed. Simcha Fishbane e
Pagels, Elaine jack . lightstone, 47-103. Nova York: Ktav.
1988 Adam, Eve a~d the Serpent. Nova York: Random House. Ruether, Rosemary
Paglia, Camille 1974 Faith and Fratricide: The Theological Roots of Anti-Semitism. ova York:
1990 Sexual Personae: Art and Decadence from Nefertiti to Emily Dichinson. Seabury Press.
ew Haven: Yale University Press. Said, Edward W .
Panofsky, Erwin e Dora Panofsky 1979 Orientalism. Nova York: Vintage Books.
1956 Pandora's Box: The Changing Aspects of a Mythical Symbol. Bollingen Sanders, E. P.
Series. Nova York: Pantheon Books. 1977 Paul and Palestinian judaism: A Comparison of Patterns of Religion.
Pardes, llana Filadelfia: Fortress Press.
1989 Beyond Genesis 3. Hebrew University Studies in Literature and the Arts 1983 Paul, the Law and the ]ewish People. Filadelfia: Fortress Press.
17:161-87. Satran, David
Pelikan, jaroslav 1989 Fingemails and Hair: Anatomy and Exegesis in Tertullian. journal of
1971 The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine. Tiieological Studies 40:116-20.
The Emergence of the Catholic Tradition (100-600), vol. 1, University of Sawicki, Jana
Chicago Press. 1991 Disciplining Foucault: Feminism, Power and the Body. Thinking Gender.
Plaskow,Judith ova York: Routledge.
1990 Standing Again at Sinai: judaism from a Feminist Perspective. ova York: Schechter, Solomon, ed.
Harper & Row. 1967 [Viena, 1887) Aboth de Rabbi Nathan. Nova York: Philipp Feldheim.
Porter, F. C. Schwarzbaum, Haim
1901 "The Yec;er Hara: A Srudy in thejewish Doctrine of Sin". In Bíblica! and 1983 "lntemational Folklore Motifs injoseph lbn Zabara's 'Sepher
Semitic Studies: Yale Historical and Critica! Contributions to Biblical Sha'ashu'irn'.' " In Folklore Research Center Studies, vol 7. jerusalém:
Science, 93-156. Yale Bicentennial Publications. Nova York: Charles Magnes Press.
Scribner's Sons. Séchan, l.
1929 Pandara, l'Eve grecque. Bulletin de l'Association Guilla u me Budé, 3-26.
272 Bibliografia Bibliografia 273

Sedgwick, Eve Koso(sky l 989b "On the Apparel o( Women". In Fatli ers of the Third Century, 14-26.
1985 Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire. Nova The Ame-nicene Fathers, vol. 4 . Grand Rapids, Mich.: Wm. B.
York: Columbia University Press. Eerdmans.
Segal, Alan F. l 989c "To His Wife". ln Fath ers of the TI1ird Centu ry, 39-49. The Ame-nicene
1990 Paul the Convert: TI1e Aposwlate and Apostasy of Sattl the Pharisee. New Fathers, vol. 4. Grand Rapids, Mich.: Wm . B. Eerdmans.
Haven: Yale University Press. Theodor, jehuda, e Hanoch Albeck, eds.
Shell, Marc 1965 Genesis Rabbal1. j erusalém: Wahrmann
1985 The Family Pet. Representations 15:121-51. Thomas, Brook
1991 Marranos (Pigs); or, From Coexistence to Toleration. Critica! lnquiry 1991 Tli e New Historicism and Other Old Fasliioned Topics. Princeton:
17:306-36. Princeton University Press.
Shenhar, Aliza Tobin, Thomas H., S.j.
1976 "The Figure of Rabbi Meir and Its Literary Characterization in the 1983 Tlie Creation of Man : Philo and tlie History of lnterpretation. The
Legends". ln Studies in judaism, ed. jacob Ba'at et al., 259-66. Haifa: Catholic Biblical Quanerly Monograph Series. Washington: The
Haifa University Press. Catholic Biblical Association of America.
Sissa, Giulia Torj esen, Karenjo
1990 Greeh Virginity. Trad. Anhur Goldhammer. Cambridge: Harvard 1986 Henneneutical Procedure and Th eological Method in Origen's Exegesis.
University Press. Patristische texte und studien. Berlim: Walter de Gruyt er.
Skehan, Patrich W. , trad. e ed. Tov, Emanuel
1987 Tlie Wisdom of Ben Sira. ova York: Doubleday. 1984 The Rabbinic Tradition Concerning the "Alterations" Insened into the
Sly, Dorothy Greek Pentateuch and Their Relation to the Original Text of the LXX.
1990 Philo's Perception of Women . Brownjudaic Series. Atlama: Scholars joumal Jor the Study of)udaism in tite Persian , Hellenistic and Roman
Press. Periods 15:65-89.
Spidlik, Tomás, S. J. Traub, Valerie
1986 Tite Spirituality of tl1e Christian East: A Systematic Handbooh. Trad. 1989 Prince Hal's Falstaff: Positioning Psychoanalys is and the Female
Anth.ony P. Gythiel. Cistercian Study Series, n 11 79. Kalamazoo: Reproductive Body. Shal1espeare Quarterly 40:456-75.
Cistercian Publications. Trible, Phyllis
Steinsaltz, Adin 1978 God and the Rlietoric of Sexuality. Ovenures to Biblical Theology.
1988 The Strife of the Spirit. Northvale, N.j.: j. Aronson. Filadél[ia: Forrress Press.
Stern, David Urbach, Ephraim E.
1985 "Midrash and the language of Exegesis". In Midrash and Literature, ed. 1971 The Homiletical Imerpretations of the Sages and the Exposition o f
Sanford Budick e Geoffrey Hartman, 105-27. New Haven: Yale Origen on Canticles, and the j ewish-Christian Disputation. Scripta
University Press. l1iersoly mita11a 22:24 7-75.
1988 Midrash and Indeterminacy. Critica! Inqu iry 15:132-62. 1975 The Sages: Their Concepts and Beliefs. Trad . Israel Abrahams. j erusalém:
Stiegman, Emero Magnes Press.
1977 "Rabbinic Anthropology". In vol. 19 of Aufstieg und Niedergang der Vernant, j ean-Pierre
riimischen Welt, ed. H. Temporini e W. Haase, 488-579. Berlim: Walter 1990 "Th e Myth o f Prom eth eus in Hesiod ". In My th an d Society in
de Gruyter. Ancient Greece, trad. J anet lloyd , 183-202. ova Yo rk: Zone
S\vinbume, Richard Books.
1986 The Evolution of the Soul. Oxford: Oxford University Press, 1991 "Psuche: Simulacrum of the Body or lmage of the Divine?" In Mortals
Clarendon. and lmmortals: Collected Essays, ed . e trad. Froma l. Zeitlin, 186-92.
Tertuliano Princeton: Princeton University Press.
1989a "The Chaplet, or de Corona". In Fathers of the Third Century, ed. Veyne, Paul
Alexander Robens e james Donaldson, 92-102. The Ante-nicene 198 7 "The Roman Empire". ln A History of Prívate Lije, ed. Philippe Arias e
Fathers, vol. 3. Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans. Georges Duby, 9-234. Vol. 1, from Pagan Rome to Byzantium. Ed. Paul
274 Bibliograjia Bibliograjia 275

Veyne. Trad. Anhur Goldhammer. Cambridge: Belknap Press of Wire, Antoinette Clark
Harvard University Press. 1990 The Corinthian Women Prophets: A Reconstruction Through Paul's
von Kellenbach, Katharina Rhetoric. Minneapolis: Fonress Press.
1990 Anti-judais m in Christian-rooted Feminist Writings: An Analys is of /\laj or Wittig, Monique
U.S. American and West German Femin ist Theologians. Diss., Temple 1980 The Straight Mind. Feminist lssues 1:103-11.
University. 1992 The Straight Mind and Other Essays. Boston: Beacon Press.
Wa\denberg, Eliezer Wolfson, Elliot R.
1985? The Responsa, Tzit.z Eliezer. Jerusalém. 1987a Circumcision and ilie Divine Name: A Study in ilie Transmission of
\ am er, 1arina Esoteric Doctrine. jewish Quarterly Review 78:77-112.
1976 Alone of Ali Her Sex: The Mytl1 and Cult of tlie Virgin /\ la ry. 'ova York: l 987b Circumcision, Vision of God, and Textual Interpretation: From
Knopf. Midrashic Trape to Mystical Symbol. History of Religions 27:189-215.
Wegner, judith Romney Wolfson, Harry Austryn
1988 Chattel or Person? TJ1e Status ofWornen in the Mishnah . 1ova York: 1947 Philo: Foundations of Religious Philosophy in ]udaism, Christianity and
Oxford University Press. Islam. Structure and Growili of Philosophic Systems from Plato to
1991 "Philo's Pomayal of Women - Hebraic or Hellenistic?" In ''\Vorntn Spinoza. Cambridge: Harvard University Press.
Lihe This": New Perspectives on j ewisl1 Women in the Greco-Ro rnan Wright, Witliam, ed.
World, ed. Amy-Jill Levine, 41-66. Society of Bib\ical Literature: Early 1869 The Homilies of Aphraates, the Persian Sage. Vol. 1, The Syriac Texts.
J udaism and lts Literature. Atlama: Scholars Press. Londres.
\Veller, Shulamith Yassif, Eli
1989 A cole<;:ao de histórias em Ketubbot 62b-63a. In Tura : estudos sobre o 1984 The Tales of Ben Sira in the Middle-ages: A Critica! Text and Literary
pensarnento judaico (em hebraico), ed . Meir Ayali , 95-103. Te\ Aviv: Studies. jerusalém: Magnes Press.
Hakkibbutz Hameuhad Publishing House. 1990 The Cycle of Tales in Rabbinic Literature. Jerusalem Studies in Hebrew
Whitman, Jon Literature 12:103-47.
1991 From the Textual to the Temporal: Early Christian "Allegory" and Early Zeitlin, Froma
Romanlic "Symbol". New Literary History 22:161 -76. 1990 The Origin of Woman and Woman as the Origin: The Case of Pandara.
Williamson , Ronald Artigo inédito.
1970 Pl1ilo and the Epistle to tite Hcbrews. ALGH, vol. 4. Leiden: Brill.
1989 j cws in tl1e Hellenis tic World: Pl1ilo. Comentários elaborados em
Cambridge sobre escritos do mundo judaico e cristao de 200 A.C. a
A.O. 200. Cambridge: Cambridge University Press.
Wilson, Katherina l., e Elizabet11 1. ~l akowski
1990 Wy hlied Wyves a nd the Woes of Marriage: MisogamotLS Litera tu re f rom
juvenal to Cltaucer. State University of ew York Series in Medieval
Studies. Albany: State University of ew York Press.
Winkler, John
1989 The Constrain ts of Desire: TJ1e Anthropology of Sex and Gender in Ancient
Greece. Londres: Routledge.
Winston , David, ed . e rrad .
1981 Pltilo of Alexandria: The Contem plative Lij e, the Gia nts, a nd Selections.
The Classics of Western Spirituality. ova Yo rk: Paulist Press.
1988 "Philo and the ContemplaLive Life". In j ewish Spirituality f rom die Bib le
Through the Middle Ages, vol. 13, ed. Artlmr Green, 198-231. World
Spiritualit:y: An Encyd opedic History of the Religious QuesL 'ova
York: Crossroad.
índice Geral

Aariio, 170-1 , 174 Aschkenasy, Nehama, 99-lOOn, 105n


Abaie, Rabi, 77 Autonomía feminina, 179-80, 238, 250-1
Adao: e a história de Pandara, 98-9; nas Avtalion, Rabi, 222
histórias blblicas da criac;ao, 49-51;
interpretac;ao palestina de, 54-57; Bakhtin, Mikhail, 209, 210, 213-14, 221
nos mitos de Lilit, 107-8; prioridade Bal, Mieke, 13ln, 238-9, 240
cronológica de, 90-1. Ver tb Histórias Banho ritual, 62-4
das criac;ao Bar-llan, 207n5
Ada, filho de Ahva, Rav, 157, 158 Batismo, 52-3
Adler, Rache!, 195-200 Beauvoir, Simone de, 247
Adornos femininos, 113-17 Ben Azai, Rabi : neutralizado pelo
Afraates, 18, 150n Talmude da Babilonia, 186-9;
Agadd (narrativa), 22-3, 27 conflito ideológico de, 64 , 145-6,
Agostinho, 13, 20, 56n 165; combatido pelo Talmude da
Aha, Rabi, 100-1 Palestina, 184-5, 186; e o estudo
Akiva, Rabi: e os adornos femininos, da Torá pelas mulheres , 182-3,
112-13; e o casamento, 167, 168 184-5
interpretac;ao da escritura, 145-6; Biale, David, 61 , 133n14, 146-7n4,
romance histórico de, 28, 147-9, 174
161, 163-3 Bialik, Haim Nahman, 108n
Alpha-Beta d'ben Sirah, 107 Bloch, R. Howard, 9ln5, 92n, 106,
Amor erótico, 196-7n. Ver tb 219-20n14
Casamento; Sexualidade The Body and Society: Men, Women and
Análise cultural: abordagem dialética Sexual Renunciation in Early
a, 34-5 , 241, 245 , 253; abordagem Christianity (Brown), 37, 180-1
do novo historicismo a, 24-6; Borgen, Peder, 242n4
padroes éticos para, 32-3, 239-40 Brooten, Bemadette, 205-6
Androcenstrismo: no judalsmo Brown, Peter, 14-15, 37, 66, 180-1 , 188,
rabínico, 106, 112-13, 116-18, 180, 188-9n9
250, 254-5 Bruns, Gerald, 39
Andrógino, mito do, 48-51 , 52-3, Buckley, Thomas, 107
54-5, 70. Ver tb Histórias da criac;ao. Butler, Judith, 85, 247, 248-9
Anjos oficiantes, 122, 123-4, 132 Bynum, Caroline Walker, 18n9, 44-5
Asceticismo, 46-7 n3, 111, 248nll
278 Índice Geral Índice Geral 279

Cantarella, Eva, 165 Crisóstomo, joao, 3711, 53, 59 judaísmo helenista, l 7n , 43-5, 51; de palestino em rela<;ao ao, 181-2,
Casamento: ausencia dos rabís durante Cristianismo: discórdias textuais Maiméinides, 70-2; do mito do 184-6, 190, 192-3, 199-200, 203;
o, 153-62, 166, 251 ; celibatário, internas, 38; ideologia sexual do , andrógino, 49-52; moderado, 45n4; práticas sexuais permitidas pelo,
146-7, 152n, 170, 170-6, 179-80; 14-15, 18-19, 52-4, 139n, 146, 147, de Paulo, 13, 17, 44-5, 242-3; 124-5, 128, 129, 131, 143; pelos
competindo com a Torá, 145-6, 180n1 ; ligado ao judaísmo helenista, resistencia dos judeus rabínicos, Rabis, 153, 154-6, 157-60, 161-2,
149-53, 158-61 , 172-3, 176, 207-8; 15-17; platonismo do, 16-17, 45, 17-18, 21 , 41, 69, 75, 79, 242-3, 245 168; reden<;ao através do, 94-5 , 185;
judaísmo babilónico e, 60-2, 151-2, 83-4, 87, 246; Dunn, James D. G., 28-9, 244n reprodui;ao através do, 219, 220,
166, 169-70, 174-8; juda!smo separado dosjudeus rabínicos, 14-15, Dworkin, Andrea, 249 222-4, 228, 229-30
palestino e, 61 , 152-3, 166-9, 170, 17, 18-19, 29 , 150-1, 241 , 242115, Estupro, 126, 128-32
172-5, 176; metáfora do pastor e da 243; universidade do, 244-5. Ver tb Eilbert-Schwartz, Howard, 222 Etnocentrismo, 244-5
ovelha, 163-4; obriga<;óes sexuais Agostinho; Clemente de Alexandria; El'azar ben Azariá, Rabi, 145-6, 184-5, Eva: desprezo rabínico por, 100-2; em
masculinas no, 153-7, l6ln29; jerónimo; joao Crisóstomo; Paulo 186 Filan, 90-2; nos mitos de Lilit, 107-8,
participa<;ao de Deus no, 116-17; Cultura americana, 85-6 El'azar, filho de Padat, Rabi, 233 e o mito de Pandara, 96-7, 109-11;
práticas sexuais no, 121-5; sem Cultura judaica medieval, 70-72, 108, El'azar, filho de Rabi Shim'on, Rabi: rela<;ao da serpente com, 93, 94, 95,
procriai;ao, 66-9; valor da 204,206 ansiedade em tomo da reprodui;ao, 100-1 , 105n; como vitima, 99-100.
sexualidade no , 47, 57-62, 65-7, 118; Cultura moderna, 83, 85-6 216-17, 218, 219, 223-4; história Ver tb Pandora; Mulher Evangelho dos
visao cristá no, 52-5. Ver tb Cultura ocidental, 83, 85-6 completa de, 231-6, enquanto sátira egipcios, 249
Sexualidade; Práticas sexuais sócio-polltica, 212-13; na tradi<;ao do Exílio da Babilonia, 73-4, btase
Caspary, Gerard E., 242 n5 Daube, David, 48n9 grotesco, 210, 213-15, 217-18, 220-1 religioso, 85-6
Celibato: e a autonomia feminina, 167-68; Davis, Laurie, 193, 203n, 20411, 204-5 Eliézer, Rabi: e o escudo da Torá para as
de Moisés, 171-4; posi<;ao do judaísmo Desejo. Ver Sexualidade mulheres, 183, 187-8, 189-90, 192, Falo, 209-10
rablnico em rela<;ao ao, 18-19, 58-60, Desejo do Mal (Yetser Hara'), 74-7, 78, 200-1 , 202-3, 203-4; ideologia sexual Fllon: dualismo platónico de, 20-1 ,
146-7, 150-2, 170-1, 173-6; valorizado 79-80, 86-7 de, 59-61, 68-9, 131-2, 207n24; e as 43-4, 50-2, 241-2; e a história da
pelo cristianismo, 18-19, 52-5, 58-9, Dillon, John, 43n, 93n9 obriga<;éies sexuais masculinas, 154, cria<;ao, 29, 49-52; liga<;ao como
Ver tb Sexualidade; Práticas sexuais Discurso feminista, 237, 238, 240, 247, 155 cristianismo, 16-17; e a mulher
Circundsao, 19-20, 232n4, 243 248-9 Épicos homéricos, 165 corpórea, 90-2, 93-4; universalismo
Clemente de Alexandria, 53-4, 59, Discurso sobre os generos: análise Epimeteu, 96-7 de, 243-4
68 , 113, 115, 246 feminista do, 248-9; aspecto Escrituras, interpreta<;ao das, 240, 245 Finkelstein , Louis, 174
Cohen, Shaye, 205 hierárquico do, 250; culturalmente Estóicos, 68 Fiorenza, Elizabeth Schüssler, 34
Coluna de fogo, 160 específico, 253; 254-5; e a divisao Estruturalismo, l 76n, 218n4 Ford, David Carlton, 37n
Comer. Ver Metáforas de comida entre corpo e alma, 247-8; do Estudo da Torá: acesso da mulher ao, Foucault, Michel, 23 , 77-8n, 86, 106,
Controle da natalidade, 85 j udaísmo rabínico, 245-6, 251-2; 160n, 180-2, 184-6, 187-8, 192-5, 119, 143-4 , 228n32
Conversai;ao: sexual, 132-3, 135, 140-2; perpetuai;ao do, 238-9 , 240, 251 ; Ver 200-1, 204-8; banho ritual antes do, Fraade, Steven, 47, 51
Ver tb Práticas sexuais tb Sexualidade 62-5; competindo com o casamento, Friinkel, Yonah , 158, 160, 161 , 229n35
Coreshantistas, 201114 Discurso lésbico, 248-9;Ver tb Discurso 145-6, 149-53, 158-9, 160, 172-3, Friedman, Shamma, 209-lOn, 229n35
Corpo: concepi;ao platónica do, 21, feminista 176-7, 207; erotismo do, 77-8, 199; Friedman, Simha, 185n
43-4, 241-3; como essencia humana, Discurso psicanalítico, 253-4 exigencia do casamento para, 150; e
17, 18, 46, 241 ; grotesco, 209-10, Donzela de Ludmir, 179 a lascivia feminina, 190, 200-1, Gafni, lsaiah, M., 1511111
213-16, 217-18, 220-1, 229; nas Dualismo: do conceito de Desejo 202-3; na Lenda de Berúria, 194, Gamaliel, Raban 16, 6ln
histórias da cria<;ao, 29-30, 48-51; do Maléfico, 76, 78, 79-81, 86-7; do 197-8, 207; mérito derivado do, 183, GardeHa, Peter, 85-6
homem ferninizado, 227-30; como conceito de ser humano , 43-4, 50-2, 185, 186-7, 189-90; posicionamento Genesis 1 e 2. Ver Histórias da cria<;ao
marca de diferen<;as culturais, 13-16, 76, 82; do discurso feminista, 248-9; babilónico em rela<;ao ao, 149-50, Génesis Rabá, 48
17-19; a mulher como, 60-72, 90-1, do discurso dos generos, 247-8; de 153, 154-5, 166-7, 181-2, 183, Gnoticismo, 54-5n23, 242115
93-4, 247-8. Ver tb Ser humano Fílon, 20-1, 43-4, 50-2, 241-2; do 186-91, 192, 206; posicionamento Goodblatt, Davi, 194-511
280 Índice Gera/ Índice Gera/ 281

Goshen-Gottstein, Alon , 45-6 justino, Mártir, 32 caráter camal do, 13-14, 17, 41 , babilónica da, 195, 201, 202-4; visao
Gottlieb, Alma, 107 judaismo babilOnico: e a ausencia 45-6 , 54-6, 57-8, 118, 241, 243; palestina da, 194-5
Greenblatt, Stephen, 25 conjuga! dos rabís, 156, 157-60, conceito de Desejo do Mal no, Levi, Rabi, 123, 125, 126-7
Gregório de azianzo, 54 167-9, 170; e o casamento precoce, 74-9, 86-7; condic;ao da mulher no, Lieberman, Saul, 193
Grotesco, corpo, 209-10, 213-16, 150-2, 156, 176; e o estudo da Torá, 89, 92, 94-5, 105n, 106, 108, lilit, mitos de, 107-8
217-18, 220-1, 229 149-50, 153, 154-5, 166-7, 184, 117-18, 120-1 , 144, 163-4, 246; literatura: abordagem do novo
186-8, 191-3, 206-7; e o judaísmo enquanto cultura colonizada, 28-9 , historicismo a, 24-5; interpretac;ao
Hagiografía, 221 palestino, 61-2, 69, 150-53, 155, 30; cultura sacerdotal do, 210-11 ; e da, 31-2, 13ln; enquanto processo
Halaká {leí religiosa), 23, 27-8, 157, 191-2, 207; lenda de Berúria o helenismo, 16-18, 19-20, 34, social, 23-6, 30, 111-12. Ver tb
Hanania, filho de Hahinai, Rabi, 166-7, no, 195, 200-1, 202-4; mandamentos 43-4, 58-60, 89-90, 113-15, 241 ; Literatura rabínica
169 femininos do, 103-5; neutralizac;ao ideología sexual do, 59-61, 84-5, Literatura rabínica: caráter dialético da,
Hanina, filho de ldi, Rabi, 101 de Ben Azai no, 185-9; e o sexo no 86, 87, 94-5, 103, 246; importancia 38-41 , 75-6, 79, 176, 185, 240, 250;
Harrison, Vema E. F., 18n9, 44,5n3, 180 casamento, 60-2, 65-6, 136-9, 153-5; do casamento no, 145-6, 147, caráter histórico do, 28-9, 148-9,
Hesiodo. Ver Pandora e a sexualidade masculina, 151-2; 149-50; MaimOnides comparado 165; documentos da, 23, 25-8, 35-6;
Hipótese repressora, 119 Ver tb judaísmo helenista, judaismo ao, 70, 71-2; misogina latente no, fontes da, 38-9; histórias da criac;ao
Hisda, Rav, 138-9, 151 palestino,judaísmo rabínico 107-9; oriental e ocidental, 36-7; e na, 28-30, 40, 48-9, 54-8, 98-100,
Histórias da criac;ao: em Genesis 1 e 2, judaísmo helenista: caráter dualista do, o papel sexual da mulher, 140-3; 107-8, 113-14, 116-17; imagem da
28-9, 49, 90-1 ; interpretac;ao l 7n, 43-6, 50-2; condic;ao da mulher proibic;ao a coerc;ao sexual, 125-7, mulher na, 92-3, 94-5 , 120-1;
femini.na das, 110; do judaísmo no, 89-90, 94, l l 4n35, 246; e a 128, 129-32; psicología dualista narrativas biográficas na, 22-3
rabínico 29-30, 39-40, 107-8; de história da criac;ao, 29, 51, 90-2, do, 76, 78-9; resistencia ao Lloyde, Genevieve, 24 7
Maimónides, 70-2; mito andrógino, 93-4; ligac;ao do judaísmo palestino dualismo, 17-18, 21 , 41 , 70, 75,
48, 52-3, 54-6; mito de Pandora, ao, 36, 59, 89-90n, 151; de Paulo, 79, 242-3, 245; separado dos McDonald, Den.nis, 52
96-100, 109-11; soluc;ao de Fílon 15-16, 21 , 69, 243-4; separado do cristaos, 14-16, 17, 18-19, Maimónides, 70-2
para, 49-52, 91-2 judaismo rabinico, 16-18, 19-20, 34, 29,150-1 , 242n5; sexualidade Manual de disciplina, 82
Hodge, Roben, 23 43-4, 89-90, 241; Ver tbjudaísmo ascética no, 59-61, 68-9; tabus da Maria, 170-1, 172, 173, 174, 175
Homero: feminizado, 227-8; enquanto babilónico; judalsmo palestino; menstruac;ao no, 190-1 , 192-3, Mártir, justino, 32
forma, 71, 247-8; Ver tb Andrógino, judaismo rabínico 216-17; tradic;ao dialética do, Massa do pao, mandamento da, 102,
mito do; Ser humano judaísmo palestino: sobre o casamento, 38-41, 76-9, 81, 86-7, 251-2; vozes 103
Huná, Rav, 61 , 138, 151 60-1 , 152-3, 167-9, 170, 172-5, 176; contrárias no, 251-2. Ver tb Meeks, Wayne, 16, 52
sobre o estudo da Torá, 181-2, judalsmo babilónico, judaísmo Meir, Ofra, 209n
ldade Média, cultura judaica na, 70-2, 184-6, 191, 192-3, 199, 203-4; helenista; judaismo palestino Meir, Rabi, 45n4, 75-6, 194-5, 202
108, 205, 206 ideología sexual no, 60-1, 62-5, 68-9; judaísmo radical, 15 Menstruantes: adornos das, 112; e a
!del, Moshe, 54-5n23 e o judaísmo babilónico, 61-2, 69, judeus do final da A.ntiguidade, 146, literatura da Torá, 192-3; separac;ao
ldolatria, 74 148-53, 155, 157, 191-2, 207; a 146-7n4 das, 103, 190, 216-17; tabus em
lnterpretac;ao alegórica, prática da, lenda de Berúria no, 194-5; ligado ao tomo das, 105, 107, 108
19-21 helenismo, 36, 59, 89-90n, 151; Kahana, Rav, 133-4, 135, 136 Metáfora da ovelha, 162-4
lnterpretac;ao das escrituras, 240, 245 mandamentos femininos no, 103, Kilmet, A.nne Drafthom, 15ln13 Metáfora do pastor, 162-4
lshma'el, filho de Yosse, Rabi, 215, 218, 105-6. Ver tb judalsmo babilónico; King, Karen, 89 Metáforas de comida, 84, 86, 87, 128,
232 judaismo helenista; judaísmo Kitch, Sally, L., 248n12 134
Israel, 13-14, 243 rabinico Meyers, Carol, 99-100n16, 110nJ1
judalsmo rabínico: androcentrismo do, Lachs, Samuel Tobías, 98 Midrash , 35-6, 37. Ver tb Literatura
jerónimo, 115 106, 112-13, 116-18, 180, 250, Lenda de Berúria: ambivalencia cultural rabínica
joao Crisóstomo, 37n, 53-4, 59 254-5; ansiedade sobre a reproduc;ao da, 198-9, 204; e o estudo da Torá Midrashim agádicos, 36
josefo, 69 no, 209-10, 216-17, 218, 220, 222-3; pelas mulheres, 207; visao Midrashim haláquicos, 35-6
282 Índice Gera/ Índice Gera/ 283

Miles, john, 242n5 eusner,Jacob, 23n19 140-3; enquanto prazer, 65-9; Santificacionistas, 20n14
Mishná, 35.Ver tb Literatura rabínica Novo historicismo, 24-5 , 25-6n19 proibidas, 125-7, 128, 129-32, 225-6 Sawicki, jana, 237-8
Misoginia: enquanto elemento Procriac;ao. Ver Reproduc;ao Schwarzbaum, Haim, 200n
culturalmente especifico, 253-5; de Oficiantes, anjos, 122, 123-4, 132 Séfora, 170-2
Fílon, 90-2; no Genesis Rabá, 100-2; Olho Grande, 225-6, 235n43 Queda, a, 52, 91 , 92, 94-5 O segundo sexo (Beauvoir), 247
do judaísmo helenista, 89-90, 94, Orac;óes diárias, 46 Séneca, 152n
114n35, 245; latente no judaísmo Orientalismo, 239 Rabá, filho de Rav Huná, 120 Ser humano: enquanto andrógino
rabínico, 107-9; de Maimónides, Orígenes, 20 , 53, 242n5 Rabís os: controle afetivo da corpóreo , 54-6; enquanto andrógino
71-2; da Pandora de Hesíodo, Ormer, Sherry, 117 sexualidade, 108, 113-15, 120-34, espiritual, 49-52, 90; caráter
109-10, 112; de Tertuliano, 115-16 Ozick, Cynthia, 200n 135n, 139, 143-4; cultura sacerdotal monístico do, 45-6, 76-7; conceito
Moisés, 169-74, 175 de, 222-3; estudo da Torá, 153, dualista do, 17-18, 43-4, 50-2, 76,
Moisés ben Maimon. Ver Maimónides Paglia, Camile, 22ln18, 254n21 154-5, 157-60, 161-2, 168; hábito de 82. Ver tb Corpo
Montanistas, 53 Parábola midráshica (mashal), 98 se ausentar das mulheres, 153, Serpente, 93, 94, 95 , 100-1, 195n
Monte Sinai, 94-5 Padres da Igreja. Ver Cristianismo 154-6, 157-60, 161-2, 166-7, 168, Sexualidade: ascética, 59-61 , 68-9;
Mopsik, Charles, 83, 243 Pandora: adornos de, 96, 113, 114, 116; 251; narrativas biográficas de, 22-3; enquanto conceito dualista, 80-2;
Moral iraniana, 156 e a Eva blblica, 109-12; versao obrigac;óes sexuais de, 153-7, descorporificada, 85-6 ;
Moral romana, 68 , 84, 137-8 midráshica de, 97-100, 113-14, 16ln29; prática interpretativa de, desvalorizac;ao da , 246, 24 7-8;
Morgan, Marabel, 86nl 4 116-17, Ver tb Eva; Mulher 39-40, 251-2; práticas sexuais de, 249; discurso babilónico da, 61-2 ,
Mulher: adornos da, 112-17; ausencia Papa, Rav,232 121-5 136-9, 151-2, 153-5; discurso
dos rabís, 153, 154-6, 157-60, 161-2, Paulo: e o casamento, 15ln13, l 70n40; Rabelais, Franc;ois, 209, 210, 221-2 feminista da, 237-8 , 247 , 248-9;
165-7, 251; auto-negac;ao sexual da, dualismo platónico de, 13, 16-17, Raquel, 161, 165-7 discurso de Maimónides sobre,
86-7, 162, 164, 165, 176-80; 44-5, 242-3; hermenéutica alegórica Rashi, 65 , 139, 15lnl2, 153n, 154n19, 70-2; discurso palestino da, 60-1,
autonomía da, 179-80, 238, 250-1; de 20; interpretando a circuncisao, ( 196, 201 62-5 , 68-9; discurso psicanalítico
corpo reprodutor da, 217-18, 220; 243; judaísmo helenista de, 15-16, Rav, 120, 121 , 134, 155, 157n23, sobre , 253 -4 ; espiritualizac;ao da,
deveres no culto, 102-5; e o estudo 21 , 69; universalismo de, 244-5 16ln29 85-6, 226 , 229; expressa pela
da Torá, 160n, 180-2, 183-6, 187-8, Pecado original, 94-5 , 96 Rava, 139, 157, 158 Linguagem , 133, 134, 135 , 140-2;
192-5, 200-1, 204-8, 252; enquanto Pederastia, 228 Relac;óes anais, 122n1, 124-5, 130. Ver ideología rabínica sobre a, 59-61,
figura demoníaca, 91, 92, 96-7, Plaskow, Judith, 187n7, 205 tb Práticas sexuais 65-9, 84-5, 86, 87, 94-5, 103 , 246;
105n, 107-9; nas histórias da Platonismo, dualismo do. Ver Dualismo Reproduc;ao : ansiedade rabínica sobre ligac;ao da etinicidade coro , 19-20;
criac;ao, 90-5 , 107-ll; judaísmo Platonismo médio, 43n. Ver tb Dualismo a, 209-10, 216-19, 222-3; e o ligada ao estudo da Torá , 77-8,
helenista e a, 89-90, 94, 114n35, Plutarco, 66n estupro, 129; pedagógica, 220, 143-4, 146, 199; marcada pelos
246; obrigac;óes sexuais masculinas Poética cultural, 25-6, 25-6n25, 30 222-3 , 224, 226-7, 229-31; e a adornos, 112-15, 117, masculina,
a, 152-7; enquanto ovelha Porfirio, 241 sexualidade, 65-9, 83-4, 87, 110-11, 151-2, 209-10, 229; metáforas
metafórica, 161-4; patemalismo Porter, F. C. , 76n3, 78n5 118, 130n, 152; na tradic;ao do para, 84, 86, 87, 128, 134-5,
rabínico em relac;ao a, 120-1, 144; Práticas sexuais: aceitas, 121-5; caráter grotesco, 209-10, 215-18, 221-2 163-4; e a procriac;ao, 65 -9 , 83-5 ,
posic;ao secundária da, 90-2, 106, obrigatório das, 153-7, 16ln29; Resh Lakish, 65 , 227-8, 229, 233 87, 110-11, 118, 153; renúncia
117-18, 253; enquanto ser corpóreo, controle dos rabís sobre, 119-20, Robinson, john, A. T., 44n2, 44-5n3 das mulheres a, 86-7, 162, 164,
71-2, 90-1 , 93-4, 246-8 , e o sexo no 123-4; dominac;ao masculina nas, Rosenzweig, Franz, 32, 33 165, 176, 180; visao crista da,
casamento, 126-32, 140-3; Ver tb 128, 132, 14 2, 144; estado afetivo Rubín, Nissan, 45n4 14-15, 18-19, 52-4, 167n1 , 246;
Casamento; Discurso sobre os durante, 120, 123, 125-6, 127, Ver tb Casamento
géneros . 131-4, 135, 139-40, 143; exigencia Sabedoria de ben Sirac, 79-80 Shakers, 20n14, 248n12
Mulher etiope (Séfora) l 70n41 de privacidade nas, 136-40; nao Said, Edward, 239 Shalom, lma, 122, 132
ahman, [ilho de Itzhak, Rabi, 63, 64 interferencia da Torá nas, 124-5, Samuel, filho de Nahman, Rabi, 55, 56 Shemaia, Rabi, 222
arrativas biográficas (agadá), 22, 27-8 128, 132, 143; papel da mulher na, Sanders, E. P., l 7n Shenhar, Aliza, 200n
284 Índice Geral

Shim'on , filho de Gamlilel , Rabi , 223, Urbach, Ephraim E., 45n4


224, 235
Shim'on, filho de Issi, Rabi, 236 Vay ikrá Rabá, 169n
Shim'on, filho de lakish , Rabi. Ver Resh Vela do Sabá, mandamemo da, 102-3
Lakish Veyne, Paul, 68, 137
Shim'on, filho de Yonai, Rabi, 61, 66 , Virgindade. Ver Celibato
Índice de Textos judaicos Primários
136-7, 167-8
Shlomo, Itzhak. Ver Rashi Waldenberg, Eliezer, Rabi, 192
Shmuel, filho de Nahmani , Rabi, 56-7, Wegner, judith Romney, 90n2 , 78-9n4,
137, 140, 141, 149-50, 161-2 104nn, 105n, 126116 Amós 4,13 135 Ezequiel 20,38, 123
Simpósio (Platáo), 55 Weller, Shulamith, 23n20 Avodá Zará 5a, 65
Sly, Dorothy, 93n7 Williamson, Ronald, 242 Avodd Zará 18b, 201-2 Gálatas 3,28 , 53
Sobre a vida contemplativa (Fílon), 51 Winkler, john, 111, 193, 251 Genesis 1,27-28, 49
Sobre a vingi11dade Qoáo CrisósLOmo), 59 Wittig, Monique, 248-9 Baba Metzi'a 59a, 120-1 Genesis 1,31, 75
Spidlik, Tomás, 43n Wolfson, Harry Austryn, 242n4 Baba Metzi 'a 83b-85a, 209, 212-13, Genesis 2,7 et seq., 49
Stein, Ruth, 254n22 215 , 217 , 21 9-20, 223, 225, 226, Genesis 3,9-10, 98
Stern, David, 39 Yassif, Eli , 107 227,228, 229, 230-6 Genesis 3,1 6, 141, 142
Stock, Brian, 13-14n2, 43n Yehoshua, filho de levi, Rabi, 62, 101, Bamidbar Rabá 4,20, 183n Genesis 5, 1-2, 49
ti
102, 115n38, 142, 148 Berakhot 2,12 (Tosef ta), 192 Genesis 5,2, 58
Talmude, 23, 25 , 26-7 , 36, 37, 191-2, Yehuda, Rav, 137-8, 160-1 Berakhot 5a, 78 Genesis 9,6, 58, 145
Ver tb judaismo babilónico, Yehuda ben Betaira , Rabi , 62 , 63 , Berakhot 9,5 (Mishná), 76 Genesis 9,7, 58
judaísmo palestino, Literatura 64 Berakhot lOa, 195 Genesis 22 ,5, 137
rabínica Yehuda ben Kalónimos, Rabi, 204 Berakhot 2lb, 62 Genesis 30,1 6, 141
Tarfon, Rabi, 219, 220, 236 Yetser Hara ' (Desejo do Mal), 74-7, 78, Berakhot 22a, 192 Genesis 48,16, 225,233
Teogonia (Hesíodo), 96 79-80, 86-7 Bereshit Rabá, 101, 102, 167-8 Genesis 49 ,22, 225,233
Terapeutas, seita dos, 51 Yohanan, Rabi : e o controle das Genesis Rabá, 54· 5, 56-7, 58-9, 75, 98,
Tertuliano , 16117, 112, 115-16 práticas sexuais, 127; e o estudo da Cántico dos canticos 1,4, 66 100-1, 113-14. Ver tb Beresliit Rabá
Testamentos dos doze Patriarcas, 79-80, Torá, 149-50, 151 ; e a imortalidade 1 Crónicas 12, 33, 141
114 paga, 95n12; enquanto misógino, 1 Crónicas 26,1, 155 Hagigá 5b, 135
Timureiro, 212, 224 94, 127; e as obriga<;óes sexuais do 1 Corintios 10,18, 13
Tobin , Thomas, 51 homem , 155, 157n23, 161 n29; 2 Corintios 5,1-4, 44 j eremías 49,11, 230, 233
Tossafistas, 153n reprodu<;áo espiritual de, 230 Jó5 , 24, 142,1701141
Tosefta , 35, 192; Ver Literatura rabínica Yossef, Rav, 61 Deuteronórnio 1,13, 141 joel 2,20, 77
Traball1os e dias (Hestodo). 96-7 Deuteronómio 1,15, 141
Tractatus adversus ]udaeos (Agostinho), Zeiri, 63 Deuteronomio 11,13, 76 Kelim Baba Metzi'a (Tosefta) 1,6, 194
13 Zeitlin, Froma, 96n , 97, 109-10, 111, Deuteronómio 30,15, 80 Kelim Baba Kama (Tosef ta) 4,1 7, 194
114 Ketuvot 48a, 61
Universalismo, 244-5 Zeus, 116-17 Eclesiastes 10,5, 160 Ketuvot 56a, 66
Universidade rabinica, 2071125 Eruvin 54b, 159 Ketuvot 6lb, 154, 155
Eruvi11 lOOb, 125 Kidushi11 29b, 149, 15 1
Ester Rabá, 3, 13, 183n Kidusl1 in 4la, 139
beodo, 2,16, 170n41 lamenta<;óes 3,8, 120
beodo, 20,20, 121 Levítico 19,18, 138
beodo, 21 ,10, 154 Levítico 19,32, 228
286 Índice de Textos Judaicos Primários

Marcos 19,3 et seq., 54n23 1 Reis 21,25, 118


Meguilá 13a, 163 Romanos 7,5-6 , 20
Midrash palestino, 171, 173, 174
Mishná Avot 5,16, 196nl 7 2 Samuel 12,1-5, 163
Mishná Sotá 3,4, 183 Salmos 1,3, 159
Salmos 10,9, 231
Nedarim 20a, 60 Salmos 16,8-9, 213, 231-2
Nedarim 20a-b, 121-3 Salmos 39,13, 120
Nedarim 50a, 148 Salmos 104,20, 231
Neemias 9,4, 73 Salmos 104,35, 195
Nidá 16b-l 7a, 136-7, 138, 140-1 Shabat 2,6 (Talmude da Palestina), 103
úmeros 11,2 7, 171 Shabat 3,4 (Talmude da Palestina), 192
úmeros 12,1, 170-1 Shabat 3lb-32a, 104
Números 15,39, 122 Shabat 67a, 174-5
Shir Hashirim Rabá 1,31, 67
Os Patriarcas segundo Rabi Natan, 105n Suká 52a, 77
Suká 52b, 78
Pessahim 62b, 195
Provérbios 6,23, 186 Talmude da Babilonia, 158, 159, 160,
Provérbios 11,22, 171 n41 167, 186-7, 188, 190
Provérbios 11,30, 236 Talmude da Palestina, 184-5
Provérbios 12,10, 148
Provérbios 19,2, 125-6 Vayikrá Rabá 9,9, 199
Provérbios 21,23, 212, 231
Provérbios 31, 14, 234 Yevamot 8,7 (Tosefta), 145
Yevamot 103b (Talmude da Babilonia),
Qohelet Rabá 3,3, 105-6 94
Qohelet Rabá 7,37, 106 Yoma 69b, 73
Yoma 72b, 150
Rashi ad Tal.mude da Babilonia Avodd
Zará lBb, 196 Zacarias 5 ,8, 73
Rashi ad Genesis 3,13, 100
1 Reis 5,28, 155

11
Cole<;ao Bereshit

O Moisés de Freud
Yosef Hayim Yerushalmi
Zakhor
Cole<;ao Bereshit Yosef Hayim Yerushalmi
Jesus dentro do Judaísmo
BERESHIT é o nome hebraico do livro do Genesis, e significa
james H. Charlesworth
"no princípio". A Bíblia, base de toda a literatura ocidental e de
sua vida religiosa e cultural, é o ponto de partida para urna série Judaísmo e Modernidade
de investigac;oes mais amplas e abrangentes que ultrapassam ou Bernardo Sorj e Monica Grin (orgs.)
inter-relacionam os vários domínios do saber e dos estudos aca-
A Palavra Crucificada
demicos atuais. Dr. Hugo Schlesin ger
A Colec;ao BERESHIT, portanto, se dedica a publicac;ao de obras Padre Humberto Porto
de história, filosofia, psicanálise, antropologia, arqueologia, ecolo-
gía, economia, teologia, religiao, línguas e literatura que partem de Anjos Necessários
análise e discussao de textos bíblicos. Visando o mundo bíblico em Robert Alter
sua totalidade, nela se pretende reunir as colaborac;oes mais recentes UmJudeu Marginal - V. 1
e significativas da crítica internacional sobre, por exemplo, aspectos John P. Meier
da traduc;ao, da poesia e narrativa bíblicas, sobre discussoes da mo-
derna pesquisa histórica a respeito de figuras do Antigo e do Novo O Evangelho de Tomé
Testamento, sobre nomes expressivos das várias religioes, ou ainda Marvin Meyer
sobre pessoas relacionadas ao estabelecimento e difusa.o dos textos A Técnica do Livro segundo
canónicos ou ausentes do canon. Sao Jerónimo
Com o objetivo de informar e esclarecer, participando da expan- Dom Paulo Evaristo Arns
sao do conhecimento da Bíblia e seu mundo, a Cole<;ao BERESHIT
adota urna postura laica, erudita e plural, onde os métodos sao Para Compreender os
modernos e científicos. Os autores, nacionais e estrangeiros, pro- Manuscritos do Mar Morto
vem de formac;oes e ambientes diversos - religiosos ou nao - e Hershel Shanks (org.)
sao escolhidos dentre os mais representativos especialistas. Um Rabino conversa comJesus
" jacob Neusner
O Jesus Histórico
john Dominic Crossan
O Evangelho segundo Jesus
Stephen Mitchell
1 -,1.1 llt'llCI urna 1h hllllll'll'> ·" 1111tlhere-..

e 1i.111 pl·11111t1.1 .1 ... di\ n ' · " 11wd.tl1d.1dc-, d1·


As Intrigas em torno dos
'>l'J'.ll.IC.l1l t'llll"l' 1h gt'lllTlh J'Lllll;td;1-.. pl·-
Manuscritos do Mar Morto l1h líhl.lll'> J'llllll(l\lh () llll11f'l\lllll'>'-.ll
Michael Baigent tlll11 .1 rr¡1111d111..l\l. J'lll"l'lll. 11.lll ;tltt'IPll ;1
Richard Leigh di--trthllh.• l\l dc-..1gu.tl de p11der que l ,11.ll -

ten:.l\.l ;1 rd.11..t11 e11tre ' " '>l''"" c111 tlltl.t-..


O julgamento e a Morte .1 ... """1rd.1de, dP 1111.tl d.1 :\11t1g111dadc .\-..
dejesus l·-..trutur.1-.. p.1t11.1rc.11-.. l \111111111.1111 .1 " " ' " '
Haim Cohn 1111 111d.11-,111" r.1h11111" r f'l'rl11l'1.1111 111d.1 a h-
1n.1tur.1 t.tl111ud1l .1_ ltll11 ;1 '>11.1 rnk tk 11.111.1-
Freud, Leitor da Bíblia ll\ .1-.. e111hk111.llll.I'> '\11 l'lll.111111. l\\l\,11111
Théo Pfrimmer .u~11111l·11t.1 que .1 111.111c11.1 , 11111" ' " lt\l-
111ni-, 1·1ll .ll.I\ ;1111 l' t1.1t.1L1111 ,1-, 11111lher1·-..
lsrad Carnal 1111 ¡11d.ll'-.ll1ll r.1hlllll1l ll;lll l''>l.l\,I 1.ti1.1d.1
Daniel Boyarin 1111111.1 ,l\el,,l1l lePrt!.l (1111 ¡H.1111.1) ,lll llll
I'" lc11111111111
¡,,,,..¡ ( 11111t1/ 11.i.1 r 11111.1 .1pnl11.~1.1 .1n 111-

No Prelo: d.11--111n 1.1hi1111 tl 1\11\ .11111 e e\lll'lll.lllll'llll'


111t11ll e111 el.11..1n .1-.. llllre11te-.. -..n111hr1.1-..
O Livro deQ d.1 d11111111.1l.lll ""'11.tl q11e 11r111.1-..-,.1111 11'-.
Burton L. Mack le\lll'> 1.tl11111d1l1h ( lllltlldll. de i.1: q111·-,

l.111 d.- lri--.11 q11e " 1ud.11-,111n 1.1h1111, ,, '"


Encabe~ar ¡11e--.-111.1\ .1 .1 '-.\'\ll.il1d.1,k 1111111.111.1 (' ll 11ll
André Chouraqui ¡1o1 lc11111111111 d.- lllll.I 1111111.1<11111pk1.1111c111e
.!1lr1e111.- d.1 di" 111.I.11--1111"' hek111--t.I'>" d,1
O Mundo da Literatura , 11 ... 11.1111--11111 p.1ttl11111 1 -..1.1 d1lrr.-11, .1. ,,. _
Bíblica g1111d11 ,, .111(111. ll'lll .d~,1 llllf'llll.lllle .1 11\h
Robert Alter .-11 ... 111.tr h11¡c e111 d1.1 . • tl.~11 q11e 1111dr 111"
11.1:.-1 11111 .~r.111de 1 rr,,·1111r11tP.
O Código dos Códigos
Northrop Frye
11 \ '\11 1 l\t 11 \l~I'\ e 1'r11lr..,...,11 de 111lttt1.t

jesus - Uma Biografía Revolucionária 1.tl111lld11 .l 11.1 l lll\n,1d.1de d.1 ( .tliln1111.1

john Dominic Crossan 1 l)e1 k.-ln) "r11 1111111'·1111 ll\ "'· /111"1 lt'\llld -
/111 ¡111,/ ¡/1¡ /\,.<1,/111.~ "' .\11,/1¡1,/1 1 l11d1.111.1.
l<l<l1\\ 1111 u111 d11, l111.1lr"1." 11.11.1 ,, l'1e111111
'\,11 illlt.il .¡,, l I\ l 1l l11d.1111'. /l<h 1 -,1.1d1h
l 1111l1,,

Você também pode gostar