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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
Título original
Racisms: From the Crusades to the Twentieth Century
Capa
Victor Burton
Foto de capa
Asian peoples, Gustav Mutzël, litografia, 1894
Preparação
Alexandre Boide
Revisão
Isabel Cury
Jane Pessoa
ISBN 978-85-545-1075-6
Figura 10.2. Espanhol e mourisca produzem albino, c. 1715, óleo sobre tela
de Juan Rodríguez Juárez, 80,7 × 105,4 cm.
mostrava que as castas não se encontravam presas a uma noção A verdadeira dimensão dessas criações interétnicas nas
inescapável de ascendência.17 Em suma, o sistema de castas é um sociedades coloniais ainda tem de ser estabelecida, pois o caso
caso interessante que chama a atenção para a classificação espanhol na América, mais concretamente no México, é bastante
precoce dos tipos de humanos interétnicos relacionados com a singular. É preciso abordar as idealizações raciais portuguesas,
natureza, mas não antecipa claramente as teorias de raças. britânicas, holandesas e francesas em diferentes continentes. Os
seus defensores levavam consigo diferentes experiências
europeias; viram-se confrontados com contextos específicos; e
acabaram por remodelar as suas ideias. O nome crioulo proporciona
uma chave para esses mundos diferentes. A palavra foi cunhada no
século XVI, nos impérios português e espanhol, pertencendo à série
de metáforas animais integradas na taxonomia racial. Num
dicionário português publicado no primeiro quartel do século XVIII, o
termo “crioulo” é usado para se referir a um escravo nascido na Porém, nas colônias francesas do oceano Índico, especialmente nas
casa do dono, como uma galinha nascida em casa e não comprada ilhas Maurício, o termo designava indivíduos “de cor”. O termo foi
fora.18 A origem da palavra é óbvia, vindo do latim creare — creare usado para se referir às novas línguas criadas pelos escravos ou
em italiano, crear em espanhol, criar em português, créer em pelos nativos em resultado do contato com as línguas europeias, tal
francês e to create em inglês — e significando, entre outras coisas, como aconteceu no Senegal, onde se identificaram formas de
“reproduzir”. A associação do escravo a uma galinha é marcante, crioulo de origem portuguesa, especialmente em Casamansa.20 No
mas o desenvolvimento do nome ao longo dos séculos reserva entanto, as línguas crioulas eram consideradas patoás, ou línguas
outras surpresas interessantes. Na América espanhola, por deturpadas — ideia que só viria a ser alterada na segunda metade
exemplo, de início, criollo tinha o mesmo significado que na América do século XX. O nome crioulo evoluiu com o tempo. No Brasil
portuguesa, embora lentamente começasse a ser usado para moderno, crioulo designa, em termos práticos, as massas populares
designar os espanhóis nascidos de pais brancos na América. com pele escura.21 Os mulatos das classes média e alta eram
Mantém-se a ideia de reprodução, mas sobe-se na hierarquia social, considerados brancos e viam-se como tais, embora as ações
do escravo para o espanhol, passando a designar brancos nascidos afirmativas recentes a favor dos negros tenham vindo a alterar esse
na sociedade colonial. padrão.22 Essa dupla classificação racial e social quanto à cor da
Embora o termo “creole” tenha sido introduzido na língua inglesa pele e ao status remonta ao período colonial. Por outro lado, na
no século XVII, ele não foi aplicado a brancos, e nem sequer a América do Norte contemporânea, o mulato não existe de um ponto
escravos negros, na América britânica, salvo no contexto das de vista taxonômico: em finais do século XVIII, os indivíduos eram
plantações das ilhas do Caribe, onde se importou bastante classificados como negros na vida diária, com exceção, mais uma
vocabulário das colônias espanholas e francesas. Era também vez, das ilhas do Caribe, ao passo que os mulatos eram rotulados
usado para designar os descendentes dos colonos franceses na como sendo “de cor”.
América do Norte, especialmente na Louisiana, onde, depois de os Preciso regressar ao caso português, já que se trata do mais
britânicos terem tomado a colônia, eles se viram obrigados a lidar próximo do caso espanhol em termos de complexidade de
com uma língua diferente falada pelas populações branca, escrava taxonomia racial. Encontramos os termos cruciais “mestiço” e
e nativa. Essas e outras experiências explicam a aplicação do termo “mulato” a partir dos séculos XIV e XVI, respectivamente, usados no
“crioulo” à reinvenção das línguas europeias num contexto colonial. império para designar os filhos resultantes da união entre brancos e
O conceito linguístico de hibridismo estava associado ao índios ou entre brancos e negros. O termo “pardo”, que
hibridismo social, já que crioulo se aplicava aos indivíduos nativos encontramos a partir do século XIV, era usado habitualmente na vida
de ascendência africana ou europeia, ou a indivíduos nativos de diária, chegando a ser acrescentado aos nomes pessoais para
ascendência mista europeia e negra que falavam uma língua designar um mulato ou um indivíduo de pele escura, entre o branco
crioula.19 Em francês, “créole” era um substantivo, introduzido e o negro. Algumas etimologias respeitadas indicam uma origem
também no século XVII, que designava um branco nascido nas ilhas grega e romana para o termo, mas um dicionário português de finais
caribenhas, tal como acontecia no contexto da América espanhola. do século XVIII o associava à ave pardal, conhecida não só pelas
suas penas escuras, mas também pelo tamanho diminuto e pela exclusivos ao ouro da região, e os forasteiros de outras partes do
vivacidade.23 O termo “moreno”, usado na Espanha desde o século Brasil e de Portugal, esses forasteiros eram designados
XII e em Portugal desde o século XVI, teve a sua origem em “moro” “emboabas”, um termo inspirado na palavra tupi para bando de
ou “mouro”, significando uma tez trigueira, entre o branco e o pardo, agressores. Em 1710, durante a guerra civil que estourou na região
embora em certos casos pudesse ser usado para designar uma cor de Pernambuco entre os senhorios de Olinda e os comerciantes do
escura, entre o pardo e o negro. Também indicava cabelo escuro, Recife, aqueles eram chamados “mazombos”, um termo retirado
entre o castanho e o preto, ou simplesmente preto, sendo diretamente do idioma africano quimbundo, que significava um
equivalente ao termo francês e inglês “brunette”. A palavra é hoje indivíduo taciturno, rústico, bruto ou retrógrado, enquanto estes
em dia usada habitualmente tanto no Brasil como em Portugal. eram chamados “mascates”, uma referência ao porto do golfo
O ambiente colonial estimulou o grande desenvolvimento da Pérsico concebida para diminuir o estatuto dos comerciantes,
taxonomia étnica ou racial: no Brasil, o descendente de pais de sugerindo que se tratava de vendedores de quinquilharias. O termo
origem branca e índia era também chamado de “mameluco”, uma “cafuzo”, outra designação para o filho de negro e índia encontrada
referência óbvia à elite militar egípcia composta de escravos cristãos no Brasil oitocentista, provavelmente se inspirou no quimbundo
caucasianos convertidos ao islã. A referência à traição das origens kufunzaka, que significa descolorir e que revela a visão africana do
era clara, já que muitos mamelucos eram caçadores ativos de processo de mistura racial.25
escravos índios para os portugueses. “Caboclo” significava, na sua O uso constante das línguas americanas nativas e africanas para
origem, índio, mas na bacia do Amazonas e no Nordeste do Brasil a taxonomia racial é uma das principais características do sistema
rapidamente passou a designar o descendente de branco e índia, ou português, mais desenvolvido do que o espanhol nesse aspecto,
um índio capaz de falar a língua geral homogeneizada, a porém ainda menos estável nos significados. Segundo estudos
padronização levada a cabo pelos jesuítas da língua tupi. “Carijó” recentes, em finais do período colonial, a nomenclatura racial no
era uma designação original dos índios guaranis que habitavam as Brasil designava mais de 150 categorias; o problema, no entanto, é
regiões do Sul do Brasil. Na língua tupi designava, situá-las nos seus contextos espaciais e históricos precisos, de
simultaneamente, o descendente de um branco e um pássaro forma que se compreendam a sua evolução ou desaparecimento.
pintalgado com penas brancas e pretas. Em Minas Gerais, no Nas colônias portuguesas não houve nada de semelhante à pintura
século XVIII, o termo aplicava-se ao descendente de índio e negra. de castas, mas é difícil dizer se isso se deveu aos ambientes
Nessa mesma região, o filho de branco e índia era chamado de interétnicos díspares ou à reconhecida deficiência portuguesa na
“curiboco”, significando um mestiço com pele acobreada e cabelo cultura visual no que diz respeito a temas seculares ou civis. Só com
preto liso.24 a ocupação holandesa da maior parte do Nordeste brasileiro, entre
Os portugueses (nascidos ou apenas residentes no Brasil) davam 1630 e 1654, houve as primeiras representações suntuosas de
bastante uso ao vocabulário nativo, em especial nos seus conflitos índios, negros e mestiços realizadas por pintores ilustres da Europa
internos. Em 1708-9, em Minas Gerais, durante a guerra civil entre Setentrional, como Frans Post, Albert Eckhout e Zacharias Wagener,
os habitantes de São Paulo, que reivindicavam os direitos convidados pelo conde Maurício de Nassau, governador-geral do
Brasil holandês entre janeiro de 1637 e maio de 1644. No entanto,
quando comparada com a mexicana, a tipologia que vemos nessas
pinturas é muito simples.
apenas a muito maior complexidade da estrutura interétnica, devido 1. María Concepción García Sáiz, Las castas mexicanas: Un género pictórico
americano. Milão: Olivetti, 1989; Ilona Katzew (Org.), New World Orders: Casta Painting
à integração dos nativos americanos como vassalos e ao modelo and Colonial Latin America. Nova York: Americas Society Art Gallery, 1996; Ilona Katzew,
político relativamente centralizado, o que forçou a conversão de Casta Painting: Images of Race in Eighteenth-Century Mexico. New Haven: Yale University
Press, 2004; Pilar Romero de Tejada (Org.), Frutas y castas ilustradas. Madri: Museo
escravos e transformou todos os cristãos em vassalos. Nacional de Antropologia, 2004.
2. Katzew, Casta Painting, pp. 12-6.
3. Jonathan I. Israel, Race, Class, and Politics in Colonial Mexico, 1610-1670. Londres:
Oxford University Press, 1975; R. Douglas Cope, The Limits of Racial Domination: Plebeian
Society in Colonial Mexico City, 1660-1720. Madison: University of Wisconsin Press, 1994.
4. Pintor anônimo (México, século XVIII), série de dezesseis castas, número 7, Museo de
América, Espanha. A mesma casta foi representada em muitas outras séries, sobretudo as
de José de Páez, c. 1770-80, neste caso legendada apenas “Torna atrás” e representada
como mulata; ver Katzew, Casta Painting, p. 27.
5. Tratado de frei Diogo de Santa Ana, c. 1632, Manuscritos da Livraria, n. 816, fl. 187r-
190v, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. Nesse tratado discutem-se os
problemas da Índia portuguesa.
6. Diccionario de la Lengua Española, 22. ed. (Madri: Real Academia Española, 2001).
A etimologia da principal taxonomia racial espanhola foi identificada com esse dicionário;
ver também Joan Corominas, Diccionario critico etimológico Castellano y hispánico (Madri:
Gredos, 1981, 7 v.).
7. Ver E. Wickberg, “The Chinese Mestizos in Philippine History”. In: Anthony Reid
(Org.), The Chinese Diaspora in the Pacific. Aldershot: Ashgate, 2008, pp. 137-75.
8. Para uma interpretação do padre José Gumilla, ver María Concepción García Sáiz,
“‘Que se tenga por blanco’: El mestizaje americano y la pintura de castas”, em Arqueologia,
América, Antropologia: José Pérez de Barradas, 1897-1981 (Madri: Museo de los
Orígenes, 2008), pp. 351-67.
9. María Elena Martinez, Genealogical Fictions: Limpieza de Sangre, Religion, and
Gender in Colonial Mexico. Stanford: Stanford University Press, 2008.
10. Tejada, Frutas y castas ilustradas, pp. 96-135.
11. Katzew, Casta Painting, p. 138.
12. Ibid., pp. 126, 131.
13. Jorge Klor de Alva, “El mestizaje, de Nueva Espana a Aztlan: Sobre el control y la
classificación de las identidades colectivas”, em Ilona Katzew (Org.), New World Orders:
Casta Painting and Colonial Latin America (Nova York: Americas Society Art Gallery, 1996),
pp. 132-40; ver também a revisão da literatura em Pilar Romero de Tejada, “Los quadros de
mestizaje del Virrey Amat”, em Pilar Romero de Tejada (Org.), Frutas y castas ilustradas
(Madri: Museo Nacional de Antropologia, 2004), pp. 13-23.
14. Tejada, Frutas y castas ilustradas; ver também Katzew, Casta Painting, pp. 148-61.
Aqui, porém, a associação acaba por ser relativamente dependente do Iluminismo europeu.
15. Ver Fermín del Pino Díaz, “Historia natural y razas humanas en los quadros de
castas hispano-americanos”, em Frutas y castas iustradas, org. de Pilar Romero de Tejada
(Madri: Museo Nacional de Antropologia, 2004), pp. 45-66.
16. Aparentemente, essa observação está de acordo com Jorge Cañizares-Esguerra,
Nature, Empire, and Nation: Explorations of the History of Science in the Iberian World
(Stanford: Stanford University Press, 2006). Ver a minha divergência infra.
17. Para uma pesquisa que sustenta essa ideia, ver Rebecca Earle, The Body of the
Conquistador: Food, Race, and the Colonial Experience in Spanish America, 1492-1700
(Cambridge: Cambridge University Press, 2012), pp. 187-216, sobretudo 215.
18. Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino. Lisboa, 1712-24, 8 v.
19. John A. Simpson e Edmund S. C. Weiner (Orgs.), Oxford English Dictionary. Oxford:
Clarendon, 1989, 20 v.
20. Alain Rey (Org.), Dictionnaire historique de la langue française. Paris: Le Robert,
1998, 3 v..
21. Antônio Houaiss (Org.), Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro:
Objetiva/ Instituto Houaiss, 2001). Usarei esse dicionário em todas as outras referência à
taxonomia racial no mundo de língua portuguesa.
22. António Sérgio Guimarães, “Colour and Race in Brazil: From Whitening to the
Search for Afro-Descent”. In: Francisco Bethencourt e Adrian Pearce (Orgs.), Racism and
Ethnic Relations in the Portuguese-Speaking World. Londres: British Academy, 2012, pp.
17-34.
23. António de Moraes Silva, Dicionário da língua portugueza. Lisboa: Simão Thaddeo
Ferreira, 1789, 2v.
24. Stuart B. Schwartz, “Brazilian Ethnogenesis: mestiços, mamelucos, and pardos”. In:
Serge Gruzinski e Nathan Wachtel (Orgs.), Le Nouveau Monde, mondes nouveaux:
L’expérience américaine. Paris: EHESS, 1996, pp. 7-27 (ver os comentários de Kátia de
Queirós Mattoso, ibid., pp. 67-73).
25. Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
26. Confrontei a minha primeira análise com estes artigos úteis: Dante Martins Teixeira e
Elly de Vries, “Exotic Novelties from Overseas”, em Albert Eckhout: A Dutch Artist in Brazil,
org. de Quentin Buvelot (Haia: Gabinete Real de Pintura da Mauritshuis, 2004), pp. 64-105;
Ernst van den Boogaart, “The Population of the Brazilian Plantation Colony Depicted by
Albert Eckhout, 1641-1643”, em Albert Eckhout Returns to Brazil, 1644-2002, org. de Jens
Olesen (Copenhague: Nationalmuseet, 2002), pp. 117-31.
27. Peter Mason, “Eight Large Pictures with East and West Indian Persons: Albert
Eckhout’s Marvellous Montage”. In: Jens Olesen (Org.), Albert Eckhout Returns to Brazil,
1644-2002. Copenhague: Nationalmuseet, 2002, pp. 147-54.
28. Francisco Bethencourt, “Low Cost Empire: Interaction between Portuguese and
Local Societies in Asia”. In: Ernst van Veen e Leonard Blusse (Orgs.), Rivalry and Conflict:
European Traders and Asian Trading Networks in the 16th and 17th Centuries. Leiden:
CNWS, 2005, pp. 108-30.
29. José Carlos Venâncio, A economia de Luanda e hinterland no século XVIII: Um
estudo de sociologia histórica. Lisboa: Estampa, 1996, p. 46; id., A dominação colonial:
Protagonismos e heranças. Lisboa: Estampa, 2005, p. 32.
30. Jack D. Forbes, Africans and Native Americans: The Language of Race and the
Evolution of Red-Black Peoples. Urbana: University of Illinois Press, 1993, pp. 79-83.
31. William George Smith (Org.), The Oxford Dictionary of English Proverbs. 3. ed. rev.
F. D. Wilson. Oxford: Clarendon Press, 1970, p. 550.
32. Ibid., pp. 63, 885.
33. Michel Pastoureau, Black: The History of a Color. Trad. de Jody Gladding. Princeton:
Princeton University Press, 2009.
34. É aqui que discordo de David Nirenberg, “Mass Conversion and Genealogical
Mentalities: Jews and Christians in Fifteenth-Century Spain”, Past and Present, v. 174, pp.
3-41, 2002.