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I

Texto Extraído das Aulas Teóricas da


Disciplina de Direito Penal I do Curso
de Direito da Escola de Direito da
Universidade

Fernando Conde Monteiro


Docente na Escola de Direito da Universidade do Minho
Doutor em Ciências Jurídico-Criminais

The European Law Students' Association


UMINHO
Direito Penal I
Texto Extraído das Aulas Teóricas da Disciplina de Direito Penal I
do Curso de Direito da Escola de Direito da Universidade do Minho

Autor
Fernando Conde Monteiro

Editor
ELSAUMINHO
Escola de Direito da Universidade do Minho,
Campus de Gualtar, 4710-057 Gualtar,
Braga, Portugal
www.elsauminho.com I editora@elsauminho.com

Coordenadores Técnicos
Rita de Sousa Costa- Investigadora do Núcleo de Estudos de Direito Ius Pubblicum
Tiago Sérgio Cabral- Investigador do Núcleo de Estudos de Direito Ius Pubblicum

Impressão
Empresa Diário do Minho, Lda. - Braga.
ISBN: 978-989-8783-16-5
Depósito Legal: 398717/15
1a Edição, Setembro de 2015

Toda a reprodução desta obra sem a prévia autorização do Autor e Editor é ilícita e passível de
procedimento judicial contra o infractor.

The European Law Students' Association


UMINHO
Nota prévia
Este texto constitui basicamente um embrião de umas futuras lições de
Direito Penal I. Por isso não dispensa a obra de Figueiredo Dias, Direito Penal
Parte Geral TI, adotada em anos anteriores.

Para se poder compreender juridicamente o crime é naturalmente necessário


entender aquilo que se repete como seus elementos fundamentais ao longo do
aparecimento das diferentes espécies de crimes.

Esta disciplina e o Direito Penal II ocupam-se deste aspeto (teoria geral da


infração penal).

Uma palavra antes de mais para os alunos, seus destinatários diretos.


Efetivamente é essencialmente para eles que este texto se destina. Espero por isso
que dele tirem o máximo proveito. O meu agradecimento, por outro lado, pelo seu
empenho e interesse até agora demonstrados.

Ao Mestre Pedro Freitas, os meus agradecimentos pelo seu alto desempenho


e dedicação postos ao longo destes anos.

À Mestra Ana Carneiro, gostaria também de manifestar o meu reconhecimento


pela sua total dedicação e alto nível de profissionalismo demonstrado.

Finalmente, the last but not the least, à ProP Dr. a Flávia Loureiro gostaria de
saudar igualmente a dedicação e proficiência dadas a esta disciplina.
Lista de Abreviaturas

al. -alínea
ais.- alíneas
art. - artigo
arts. - artigos
CC - Código Civil
CE - Código da Estrada
cf. - confrontar
CP- Código Penal
CPP- Código do Processo Penal
CRP- Constituição da República Portuguesa
CVM- Código dos Valores Mobiliários
DL- Decreto-Lei
DSM- V- The Diagnostic and Statistical Manual ofMental Disorders
,-
ERTPI - Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional
l.s. -lato sensu
n.- número
PET - Positron Emission Tomography
RGCO - Regulamento Geral de Contraordenações
RGIT- Regime Geral de Infrações Tributárias
s.s. - stricto sensu
TAC - Tomografia Axial Computadorizada
v.g. - verbi gratia
1. Introdução

A primeira questão que naturalmente se coloca a qualquer estudante desta


disciplina (como de qualquer outra) é a de saber do que trata a mesma. A resposta
a dar pode ser de duas espécies. Por un;t lado, afirrhar-se que tal será realizado
no final da mesma, deixando-se neste caso o assunto para esta parte ou pura e
simplesmente nada se referindo. Por outro ladq, procurando-se desde logo, no seu
início, dar uma noção breve da mesma, tal significará para o estudante em causa
ter à partida um quadro de referência da mesma e assim sàber antecipadamente
do que esta se ocupa. Naturalmente que defini~ões de disciplinas apresentam
problemas óbvios. Efetivamente, por serem genéricas, fica assim a questão de se
saber da sua real utilidade. Cremos no entanto que tal não retirará efetividade a
esta tarefa. Sempre o leitor obterá um quadro de referência sobre esta, que terá
deste modo a utilidade de a distinguir logo à partida de outras disciplinas, sem
que tal oblitere a possibilidade de com o continuar do estudo da mesma se poder
aprofundar o seu conteúdo.

2. Noção (provisód3) d~ J)in~ito .Penal


O direito penal, como qualquer outro ramo jurídico, apresenta ' um conteúdo.
'"''''''''·"''' ,, ,,,' ',, ,' ,,,,,,, ,, ', ,,,,

Este conteúdo apresenta-se fundamentalmente como um conjunto de normas.


Inerentes a estas encontramos uma intencionalidade geral de procurar fazer com
que os seus destinatários (os cidadãos em geral) não realize,Itl. ~~terminados atos
ou sob certas pressupostos realizem déterminad.as espécies"de comportamento.
Não realizar ou rêaiiz,ar deterffii1ladas condutas con~t111!i ym si uma das
essências do direitQyenal..Sem este propósito, o ramo jurídico em questão seria
desprovido de sentido. No entanto, se isto é pressuposto da sua existência, não
é condição suficiente da mesma. Efetivamente toda a ética tem na sua base uma
intencionaliciad,e semelha.nte. Este tipo de normas procura igualmente determinar
o que não se deve e o que se deve fazer. O que neste âmbito distingue o direito
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

(penal)da ética (1. s. considerada) é o seu lado}~Jil1ÜriS2:f\:1!1SlQUaL De facto, Compreende-se deste modo que a sanção máxima tenha que ver neste ramo
o direito penál não ..~~.limitª a·flefiníx.J;JISMl9.8.2~~~~.~.0J?.r?ibidos.o~ i~postos, jurídico com a impossibilidade de continuar no exercício de funções do respetivo
empresta a esta inte)}Ci()nalidR,çl~dacio§ da n~aliçlfisfeltull1ana,J10s~n.tidodepmcurar agente no âmbito em que as exerça e nunca tenha lugar a pena de prisão.
desta forma darplen~ exp,ressÊioàrefe;ida intenci~nf:lli~ad~.··~~ocura atravês dos
dados fomeddo§ pel~s cg)}gi~; ç!o.cQJilp()!!f:l~i~{z2~pel~·~xperiência comum
impedir ou em todo o caso diminuir a prática de condutas proibidas (negativa ou
3.2. Direito penal e direito das contraordenações
positivamente).
3.2.1. Critérios=- de distinção
Deste modo, o di~.eit.o penal apresenta :dua.s.Jaracterísticas fundamentais. _,.....-
~:::;;;;:;:;;:::

Por um lado, como já referimos, define componam~tltOS quepmíb~ QU e.m certos A distinção entre o direito penal e o direito das conn.:.a.ordenações é Upla das
casos exige. Por outJ:o, associa a estes.. CQ11Seqyênciaâ. jurídicas (globalmente questões mais debatidas e menos consensuais de todo o direito sanci<:~}ório. De
penas e medidas de segurança). De notar finalmente que o facto de existir um facto, à luz do direito positivo português (art. 0 1.0 do DL n. 0 433/82, de 27 de
lado empírico (particularwente no plano das .cQn~equ~.ncias ), tal não significa a Outubro que consagra o regime ge~al das contraQuLenações ), o que à primeira
ausência também aqui do lado ~tiço (~tjcq~jUI'ídico ). Efetivamente a ética Gurídica) vista distingue çrirriêde~ordena_ção é a ~~_Q.L.Qg_giéb--ª_elܧ!êncj_a_ ..<!e.
trespassa todo o direito (penal) e dela este não se poderá nunca separar, porque ela uma C()ip1a E..~~~~21!traosçlma.,0esJnexis1ent~<;i!g_ll~nal( Trata-se ~tm
pertence antes de mais ao inter-relf:lcionamentÓ humano, não deixando também de um critério form~YHipoteticamente todo o tipo de comportamento, uma vez
esta de naturalmente:pr~S§l!:RQ:raspet()s de fªcto (ética da existência). tiPificadQ, -P~Qg~rfi _cg~_s,titl!ir <:.o~Qrdenação, .hastando p,ªffi.,taL'l~-~oJ~gü>Jfidor
lheJàça.aruci~aÍJlJUa~i.<i!mÊ· D~r€sto, este entendimen~o ~ref9_r.@do p~f9
disposto no aJ,;t o 20.~deste mesmo diploma,.aQ.prever a possibilidasi~ deJJm mesmo
facto ser simultaneamente crime-•e• "contr<lordenação. Virtualmente todos os factos
3. Djr~!íQJ1~!!t!L~ ºj~çipUn!t~ ~fins • ""-
''v~·,-=-~""""''=-"-=-"""""',._.~~~·-~-~·~-.-=--·---"'·"---~~-··~-- .~ -·--~-. '-"-~--,~--~~··-

considerados como crimes poderiam assim ser igualmente qualificados como


3.1. O Direito Penal~. o .Qi:r:~it().J>i~~ipUnar contraordenações, já o mesmo não sucedendo naturalmente na hipótese inversa.
A utilidadé. práticà de tal atitude prender-se-ia com a possibilidade de aplicação
9 direito disciplinar t~m-O-.direito.J2etllil o facto çle ª]2!!,sentar dê sanções. acess~ia~ ... s:on!faorçl~nacjonais, d.ª-QQ_ q_YJLtl@JJF.1nJ~nte~JLS1l]).~ão
um conteúdo de normas de g~rácter ético-jurídico na sua natureza geral sel.ll~!mntes principal (coima) seria consumida pela pe..naç.t:irniiLal (como de resto decorre
~--~----•,,-<.< "-----~-~·, ~~~~-~-~·'-.•'~"-~'-•"'~·"'-'-~.e·-•··~···· • ' ,,, ' ,. • ,, '
à_§_@ direitopenal. Efetivamente trata-se em ambos os casos.Q_eyroibir <;gndutas
do citado art. 0 20. 0 ). 1 Por outro lado, se por qualquer motivo a responsll;hili<JY1de
o~ée~õs' casQ~:~s·~~,g}r: Por outro lado, existe também aqui um siStema
criminal soçobrasse, poderia eventualmente sobreviver }iisponsabiÍidade por
sa~Ei?i~formado desta meSJilf:l.íJ,l1f:l!i<if:lde (intencionalidade de py~yenir
contraordenação. De qualquer maneira, em termos político-criminais, seria pouco
delitos). Ind~pendentemente de múltiplas diferenças que agora não iremos analisar,
curial, no mínimo, que tal atitude fosse tomada por qualquer legislador. De resto, a
d~se referir o âmbito naturalmente mais específico do direito disciplinar
hipótese inversa de se considerar sem mais uma contraordenação como um crime,
(funcionários públicos, relações disciplinares desportivas, profissionais, de
choca desde logo com questões de inconstitucionalidade, pense-se assim no art. 0
alunos, etc.). Trata-se aqui, por outro lado, de um ilícito globalmente considerado
18. 0 da CRP (senão mesmo com problemas puramente doutrinais). Deste modo,
de menor significado do que acontece em geral no direito penal. Por consequência
a natureza das sanções é, genericamente, de menor relevo e não se trata sequer de
agir no sentido do tratamento (reeducação, socialização s. s.) do respetivo agente. 1
Pressup()ndo que ao caso nã.~ te_!ljl~~ aplicação de penas acessórias da mesma natureza
das sanções acessóriãs'contraor.5!~acionais. ---

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Fernando Conde 1Vfonteíro Direito Penal I

a degradação da noção de crime seria por conseguinte inevitável e estaríamos a social, axiológica, etc. O conteúdo da ilicitude criminal é, como de resto todo
regredir séculos na história do direito penal. Todo o edifício moderno deste ramo o conteúdo do direito, heterogéneo, como já deixámos dito, comportando assim
jurídico ruiria sem mais. Assim, se se trata de dois tipos de ilícito, naturalmente desiguais conteúdos ético-jurídicos e portanto protegendo-os de forma diferente.
que ao menos na sua maior parte deverá haver lugar a consequências jurídicas
diferentes. E se deste modo se deve encarar esta problemátíta1 fica então. s t ã o Neste sentido, as próprias consequências isto mesmo refletem, como é
i~icial_ de pé. ~m que se distinguem os d~is tipos de ~í.Q!:~? ~ critéri{fo~áp óbvio. Chegados aqui, importará densificar mais este entendimento. Em que
e obviamente msuficiente. Problema pertmente neste ambito e o que 'fespe1(a espécie de aspetos se traduz esta maior qualificação? Uma das características
assim aos critérios da distinção (materiais) a adotar neste plano. Desde logo, que desde logo surge como evidente é que a realidade jurídico-penal se ocupa
parece óbvio que a questão fundamental é a da importância ou significatividade de lesões efetivas de conteúdos comportamentais (princípio da lesividade)
dos ilícitos em causa. fp ilícito penal é, em geral, naturalmente mais importante particularmente importantes (vida, integridade física, saúde, etc.), especificados
do que o ilícito contraordenacional. Por isso as consequências jurídico-penais como tais (princípios da importância e da especificidade dos valores jurídicos
são globalmente mais graves. Por outro lado, parece também óbvio"(jüe' dada protegidos). Ao invés, muitas das disposições (a maioria) das contraordenações
a heterogeneidade das sanções penais, produto da própria heterogeneidaaeciõ ocupam-se de aspetos meramente preventivos, sem especificação de valores
respetivo ilícito, que possibilidades de encontro (casual) entre os dois ilícitos protegidos ou protegendo bens pouco significativos. Mas também há casos de
não serão de estranhar. O citado art. o(:~J da referida lei contraordenacional tem lesão de interesses no âmbito contraordenacional (por exemplo, entre outros, o CE
assim pleno sentido a esta luz. De qualquer maneira, fica uma larga margem de no art. 0 3. 0 n. 0 2 proíbe a prática "de atos que impeçam ou embaracem o trânsito
diferenciação entre estes dois ramos e a esta lúi também.6) que efetivamente e em ou comprometam a segurança ou a comunidade dos utentes das vias"), para além
""''-~"--~-~-,~-~--~ '"~__..,..
termos de ilicitude deve diferenciar estes dois ilícitos? Do ponto de vista penal, de se protegeram bens importantes e mesmo podenq~-se'\specificar estes.JPor
a questão a colocar é simples de enunciar. Tratar-se-á de especificar o que há de outro lado, também o direit9_genal. estabelece tiQo;G~gais Gl.e crime de carácter
mais essencial no plano criminal. Aqui, desde logo uma ideia surge primariamente. preventivo (tentativi;J., crimes de per~creto, abstrátÔ~creto, eventualmente
O ilícito penal é particularmente qualificado. Esta qualificação deriva antes de de perigo abstrato )-f2_fJ.ue aqui se~. oderi}'ef~rir~ que no direito penal abundam
mais da essencialidade de muito do conteúdo axiológico-normativo a ele inerente. mais os tipQ§ dQes~se especificam mais os ens objeto de proteção, estes são
Efetivamente o direito penal contém no seu âmbito consequências criminais em re&.ê:_ mais valiosos e que no direito das centraordenações têm lugar mais
destinadas a proteger determinados tipos de inter-relacionamento social, sem os largamente os tipos preventivos, sem especific~ção de valores a proteger ou
quais a própria sobrevivência do ser humano, num plano individual ou coletivo, protegendo-se bens meno~ sigilliicativosÍ De outr~···p~;rto de vista, também se
seria posta séria e diretamente em causa. E se é certo que o direito em larga poderá referir que a realidãde jurídíêô:crtlninal tem muito mãiSpi'es·ente a tutela
medida também comparticipa deste desiderato (basta pensar desde logo no direito de conteúdos relacionais de carácter ético em si mesmos considerados ~o que no
constitucional), o que específica a realidade criminal é, antes de mais e como já âmbito conffãordenacional. Igualmente aqui se trata de um critério não absoluto,
referimos, o ser portador de uma intencionalidade de proteção particularmente indiciário ga de~~g_ual importância dos ilícitos em causa. Efetivamente o direito
vincada, proveniente da espécie e conteúdo dos tipos de ilícito que comporta. penal é portador também de tipos legais "neutros eticamente" (basta pensar em
Daqui que se possa naturalmente concluir que o direito penal se configura como casos como o do regime da caça, posse e manutenção da armas, por exemplo) e o
o ramo jurídico, que, de um ponto de vista jurídico-protetivo, se configura como direito contraordenacional não é indiferente de todo à eticidade de per se de alguns
o mais importante de todo o ordenamento jurídico. O que se acaba de referir não dos comportamentos que este toma como ilícitos (o que acontece desde logo no
deve, por outro lado, deixar no estudante a ideia de que toda a realidade jurídico- próprio CE, por exemplo, na proibição de estacionamento nos termos do art. 0 50. 0 ).
penal trata efetivamente de inter-relacionamentos de transcendental importância Neste domínio, o significado do conteúdo relacional pode marcar definitivamente

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

a fronteira entre os dois ilícitos. O homicídio ou a violação, por exemplo, são carácter de relatividade e cabendo ao legislador uma área indesmentível de maior
em si mesmas condutas insuscetíveis de serem meramente consideradas como ou menor discricionariedade nesta tarefa.
relevando somente para efeito contraord~nacio_llaLH.:_atando-se de lesões diretas
dos bens que estas proteg_em, é portanto ao direito penal que cabe a mtervenção
fundafi!ental. Numa mesmaJinh~: mas de rm~em certa medida paradoxal,
3.2.2. As consequências jurídicas
sucede algo de semelhante quapdoi~o valor dà dano ~ considerado pelo legislador
como critério (automátic-o) de delimitação-do~tos (por exemplo, no caso Nêõiniâ)constitui, como dissemos, o elemento formal distintivo do direito
do art. 0 292. 0 n. 0 1 do CP, taxa de alcoolémia no sangue), em que umaquef!ão de das coritraonf~nações (art. 0 1. 0 do RGGQ). É uma sanção pecuniária (artigos
décimos de gram~transf~rm~~traordenação e111.~!ime ou vife-yersa;1Pense- 17. 0 e )8. 0 .do diploma em causa). Distingue-se, à parteg~ ser aplicatla por ente
se também no âmbito dos delitos tributários, caso entre outros do art. 0 n.o n. 0 administratiyo (arí:IL:',.J:d~m), da pena de multa, igualmente pecuniária, porque
1 do RGIT (valor da prestação tributária em falta), em que um mero cêntimo
pode ter uma importância desmesurada nesta mesma delimitaçãoAoe um ponto de .. --~-~--~· -
em caso de não pagamento, haverá só lugar à execução da me~ma (artigos 89.0 a
...
9 I_02 jde1J1), podendo o condenado, desde que tal faculdade seja prevista em lei,
-~

vista subjetivo (ética de interioridade), faria igualmente sentido uma delimitação req~e;er, que: em vez da sua execução, tenha lugar a prestação de trabalho a favor
de conteúdos de ilicitude. Ao princípio-regra da punibilidade de condutas da comunidade (art. 0 89. 0 -A, idem). Ora, se é verdade que também no caso de não
dolosas inerente ao direito penal (art. 0 13. 0 do CP), deveria ter lugar o princípio pagamento do conteúdo pecuniário inerente à pena de multa poderá ter lugar a
da equiparação entre dolo e negligência em termos de punibilidade de qualquer execução da mesma (veja-se os artigos 49. 0 n. 0 1 do CP e 491. 0 , 491. 0 -A do CPP) e
conduta sem mais no âmbito contraordenacional. De facto, o art. 0 8. 0 n. 0 1 do igualmente a possibilidade de esta ser substituída por trabalho (artigos 48. 0 do CP
RGCO estabelece o mesmo princípio vigente no CP para as contraordenações, e 490. 0 do CPP), o certo é que o não pagamento da coima em caso algum poderá
ou seja, a proeminência do carácter doloso das condutas tipificadas sem mais. De implicar a aplicação da prisão (sucedânea) ao contrário dq situação da pena de
qualquer maneira, não obstante isto, na prática sucede de forma muito frequente multa (art. 0 49. 0 do CP). nQ.! iolt\jí . .
o contrário, ou seja, a punibilidade, quer a título de dolo ou negligência, de 1
quaisquer condutas sem mais (veja-se neste sentido, entre outras, o disposto no Para além da coima haverá que ter em conta a possibilidade de nas
art. 0 133. 0 do CE). Algo naturalmente pouco coerente com o regime geral mas contraordenações se poderem aplicar sanções E~(art. 0 21. 0 e segs. do
também indiciador do pouco acerto do legislador nesta matéria. De qualquer RGCO), características deste tipo de ilícito. rr'lu \
maneira, sempre a prevalência de aspetos éticos (interiores) deve caber (e em certa
medida cabe) ao direito penal face ao direito das contraordenações, pense-se, por Neste plano iremos seguidamente ocuparmo-nos das finalidades inerentes a
exemplo, na restrição de determinados delitos erri função de elementos subjetivos estas (sanções tout court) e assim ao direito em causa. Negar ao caso a presença
(delitos de intenção), na ausência em maior número da punição da negligência no de necessidades preventivas não parece fazer a priori grande sentido. Num ramo
direito penal, punição em mais vezes da tentativa, etc. jurídico dominado por intervenções no plano da ilicitude fortemente preventivas
mal se poderá efetivamente delas abdicar. Assim, a consideração q~itos de
Em conclusão, dir-se-á antes de mais que a distinção entre estes dois ramos prevenção negativa especial e geral será aqui óbvia. Se alguém estacionou de
jurídicos não se apresentará como algo estanque. Haverá necessariamente zonas de forma incorreta o seu veículo e por tal foi objeto de aplicação de uma coima,
alguma convergência até porque o ilícito penal, como deixámos referido, é algo de naturalmente que implícito a isto se encontra uma óbvia consequência intimidatória
intrinsecamente heterogéneo, sem que no entanto se deva obliterar a possibilidade individual e que tal, na medida do seu conhecimerltQ~. erceiros, pode também
de utilização de critérios materiais de delimitação, como os expostos, sempre com em certo sentido implicar um efeito de prevenção geral. ais questionável é o
.......____ ~-~--~~-

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

facto de se saber se também aqui se poderão encontrar finalidades de prevenção possível pela subsidiariedade do direito penal, art. 0 32. 0 do RGCO), estabelecendo
positivas. Em termos especiais, tudo dependerá do que se considerar como um regime próprio neste ramo sancionatório e onde finalidades de prevenção
prevenção especial positiva. Se encararmos esta como sinónimo de socialização, estão presentes (ex vi da referência à "necessidade da pena" inserta na última
ficaremos ainda com a questão do sentido deste último termo. Numa aceção muito parte do n. 0 1 do art. 0 72. 0 do CP). Por outro lado, o art. 0 89. 0 -A (Prestação de
ampla, todo o ilícito poderá ser considerado como dessocializador{Nesta medida trabalho a favor da comunidade), já anteriormente citado, na J'it; parte do seu
a aplicação de sanções preencherá esta finalidade de pretender ou reintegrar n. 0 1, acrescenta à gravidade da infração as "circunstâncias do caso". Como no
alguém nas normas sociojurídicas vigentesl Se compartilharmos, por outro lado, a âmbito do CP este instituto está subordinado a finalidades de prevenção (artigos
0 0
ideia de que a socialização implicará tomar em consideração fatores de perigosidade 40. n. 1 e 58. 0 n. 0 1 do mesmo cr.ploma), parece que estas deverão naturalmente
específica, não será difícil excluir, ao menos da maio_Lp~ das contraord'eiiações, estar presentes na sua aplicação-p:~sparsamente, alusões a finalidades preventivas
tal finalidade.\ Sobre a prevenÇão ~geral positiva~r-se-'k?desde logo, que se se surgem em diferentes ramos de contraordenações. Assim, por exemplo, desde
entender caber a todo o direito sancionatório a finalidadêde reforço das expectativas logo no âmbito do CE surgem referências a estas, nos artigos 139. 0 e 140. 0 , no que
de vigência~~normas ou valores que elas incarnam, por exemplo, então, nada se refere a antecedentes e condutas anteriores (prevenção especial); no âmbito do
0
impedirá de perspetivar preêllch1da tãmbém aqui uma finalidade deste género. No art. 141. 0 n. 0 1, onde expressamente se manda tomar em consideração "os
fundo a aplicação de~ simples coima por um estacionamento proibido por lei pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das
penas" e 143. (reincidência), em que o ag!~nto:qª=s r_~ previsto no n. 0 3
0
não deixa de criar nos cidadãos conformistas ~ior ou menor grau e tudo
dependendo do efetivo conhecimento da aplicação da sanção, um óbvio sentimento não está subordinado a quaisquer consideraçõe)1 de culpa, antes apenas dependente
de reforço ou adscrição à norma ou valores que ela serve, como é óbvio{ Pode da prátic~gt~xim:es..~trao~de~~ões. !&ortanto, a atitude do legislador

- --
efetivamente o alarme social ser ténue ou quase não existir ou mesmo não ter
lugar. Mas também no direito penal este possível alarme social pode ser muito
pequeno ou também nem sequer ter lugar (pense-se, por exemplo, em situações de
contraordenacional é no mínimo ambígua neste âmbito.t Por um lado, parece
excluir considerações preventivas, por outro e contraditoriamente considera-as.
Assim sendo, o que se poderá referir deste aparente)mbróglio? Em nossa opinião,
contrabando, posse de armas proibidas, caducidade de carta de condução, em dever-se-á naturalmente interpretar corretivamente os preceitos em causa,
geral, os designados pela criminologia como crimes sem vítima ... ), pelo que a particularmente, o citado art. 0 18. 0 .1Efetivamente, não faz qualquer._~enti5!o que
distinção neste plano radica mais na intensidade do q~ essência do fenómeno considerações preventivas, como as inerentes através da remição implícita para o
0
em causa. Assim, se de facto não se pÓde negar a existência de finalidades art. 72. 0 do CP, possãmimplicãiürulteração na moldura abstrâtã da coima e as
~.

preventivas neste sector jurídico decorrentes do seu efetivo funcionamento, mesmas considerações não possam influir na determinação concreta deste tipo de
......__
questão outra que se pode naturalmente colocar é a de saber da sua possível sanção. Neste sentido, a referência "às· circunstâncias do caso" do art. 0 89. 0 -A n. 0
consideração no plano da escolha e determinação da coima (eventualmente na sua 1 in fine só poderá em termos sistémicos implí_~a consideração de aspetos
substituição), assim como das sàilçõeS a~mo suced~ito penal preventivos, inerentes a este instituo no âmbito do CP, como açima deixámos dito.
(artigos40. 0 , 70. 0 , 71. 0 , etc. do CP). Estranhamente o legisladorcontraordenacional, Portanto, se no âmbito de uma sanção substitutiva sé prevê-'êonsiderações de
no RGCO, omitiu nos artigos 18. o e 21. o qualquer referência expressa à consideração carácter preventivo, então, também no plano dádêtermina:ção da sanção tal deverá,
das necessidades de prevenção neste âmbito, apenas se referindo à culpa, gravidade por identidade de razaõ, ter lugar. Por outro lado, parece claro que também neste
da contraordenação (ilicitude) e no plano do primeiro dos artigos citados também ramo o disposto no art. 0 40. 0 ns. 1 e 2 do CP deve ter aqui lugar. Vejamos então
à situação económica do agente e do benefício económico retirado pelo respetivo mais de perto esta questão. o artigo em causa estabelece no seu 11: o 1 .·uma
agente. No entanto e contraditoriamente o n. 0 3 deste mesmo artigo (art. 0 18. 0 ) faz finalidade proteti;va de bens jurídicos à aplicação de penas. Pergunta:se ássim, tal
refe.mucia à possibilidade de ter lugar a atenuação especial (de resto, já tomada não tem lugar nas sanções contraordenacionais? Estas não visam a proteção de

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

bens jurídicos? Obviamente que a resposta só pode ser afirmativa. Sem esta antes de mais nas sanções acessórias), considerações de âmbito socializador
finalidade todo o direito das contraordenações seria sem sentido. Punir-se-ia poderão ser determinantes na escolha da sanção (caso da citada prestação de
alguém para quê? Portanto a ideia de prevenção (geral, especial) não poderá deixar trabalho a favor da comunidade). Se ainda olharmos esta questão em termos algo
de ser considerada como um puro derivado deste preceito aplicável no âmbito do semelhantes ao que sucede no direito penal, nada de extraordinário aqui terá lugar.
princípio da subsidiariedade do CP, como atrás referido. Sobre a referência à ideia No plano do limite da culpa e ng_5:9.nfror.rto entre as necessiç!_ades durevenção
de prevenção especial positiva, ela poderá também ter lugar de forma naturalmente geral e especial de socialização, não podendo ter lugar a conciliação entre ambas,
atenuada ou mesmo poderá nem sequer ser considerada. Tudo dependerá do caso será ao plano da prevenção geral que caberá a prevalência./ De resto, este
concreto, algo
-....;;,.__
que também tem lugar no âmbito do direito penal, de resto,"Cõin a
diferença em que neste ramo o seu peso é pela própria natureza deste (consequências
jurídicas) muito mais importante. De qualquer maneira, desde logo a consideração
-
pensamento não deixará de ser reforçado pelo facto de existirem zonas de
confluência entre estes dois ramos, que atrás fizemos referência. Não se sufragando
este entendimento, fica-se com uma conceção ético:re.tübutiva precisamente no
de aspetos não dessocializadores não deverá neste plano ser menosprezada. De âmbito de Ul1) ramo onde menos abundamas"nôJ;nas éticas de raiz. Isto implicará
facto, os montantes das coimas podem ser extremamente elevados (o art. 0 17. do
0
naturalmente amplltãre~-~~!Q.rjurídico de aspetos a ele conaturais (necessidades
RGCO prevê no seu n. 0 1 um máximo de 3740,98 € para pessoas singulares e de de prevenção). Perguntar-se-á assim que sentido terá, por exemplo, considerar os
44.891,81 € para pessoas coletivas, em caso de dolo, podendo de qualquer maneira motivos, finalidades, sentimentos do agente (aspetos ligados à culpa) e não as
acontecer que estes montantes sejam ultrapassados, pense-se, por ex'eriipro, no necessidades de prevenção geral (positiva ou negativa) na determinação da coima?
caso do RGTI, em que no âmbito também de condutas dolosas os limites (regra Isto só poderá significar o amputar de aspetos fundamentais do direito penal (e
geral) são de 165000€ ou de 82500€, respetivamente para pessoas coletivas ou sancionatório), em nome de quê?
pessoas singulares, art. 0 26. 0 n. 0 1 al. a) e n. 0 2 deste diP,loma ou ainda no CVM,
onde se poderá ir até aos 5~ÓO€, art. 0 388. 0 n. 0 1 a)-\Se a isto juntarmos, por Em conclusão, dir-se-á que também no direito das contraordenações se
--------
exemplo, os casos de concurso (real) de contraordenações, por exemplo, no RGTI, deverão tomar e111 <22!!§L4~r~são finalidades de p~ção gerais, especiais,
~
vigora a regra do CQilÇ_l!!:~l!lª~ (art. 0 25. 0 ), então facilmente se poderá negativâs e positivas, embora naturalmente tomando em cõlltããS especificidades
compreender que a ·-apílcãÇãO de contraordenações, desde logo em termos
dest,u~mojurídiC.o) · ·
pecuniários,··· se· :pü"de ·revelar altamente dessocializadora para , o respetivo
destinatário, mais até, em muitos casos, do que nÓ dÍreito penai: ~e, por outro
lado, vigorar a ausência de quaisquer preoc1.pações de natureza 'socializadora) 4. As finalidades do di~~~~
vigentes estas no direito penal, mais ainda o caráct;;r àítari:ienfepenalizante das
contraordenações terá lugar, invertendo-se ~m larg~'C~digª_()I?.!i!lcÍpfi"<§..maior 4.1. A questão
gravidade em termos de consequências do direitQ penal'\a favor de um ilícito de
-"'····"---~~--·~----·· ···-~ ,.,-"~ 192''-~~_:.i:?'-~
, .. -·""----- ...
menor gravidade, tendo em conta desde logo que a pená de multa é a consequência Como já deixámos referido, o direito penal apresenta d\l}!~9racterísticas
mais aplicada no âmbito jurídico-penal. Problemas" constitucionais serão deste básicas~ Por ~.êcQO, defin~nL_~g,!ll~.fu!í.t*cte. ilicitude..§§Jª9d~ç-~1,1~() tipos
modo o15viamente coÍ~cados. Uma consequente degradação relativa do direito incriminad.o.r.es onge se g~_scr:tY.em.cPl1dl!t&J..§.Q.JJ.e.se.proíbew.o.tLem~c.erto§ casos
penal será inevitável em função de um alargamento desmesurado do direito das se ~~m.~.J uma vertente de :ticida_cj_ej}~!i1J.~~nal. P~ro lado, faz
contraordenações. Violações do princípio da proporcionalidade serão desde logo adscrever à descrição destas co~dutas conse9uênciasjurídicas (penâsemealâãs
óbvias. Deste modo, a consideração de finalidades de socialização não poderá ser de segur;:Ç~ il!~da111entaimente). :Esta é'~ vertent; ~mpírica, de eficácia ou
de todo afastada deste ramo jurídico. Mesmo em termos positivos (e pense-se pretensa efif!ci<l: do direito penal. O facto de neste último caso se tratar de

22 23

/
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

qu~st()es pragmáticas não pode invalidar a ideia de que também aqui questões moral presente na prática de um crime e a retribuição (correspondência) em
'~,tiç~l;!S' intervirem de forma decisiva. Efetivamente a eficácia não constitui termos de consequências penais.
um valor único. Está limitada desde logo por um omnipresente princípio da
proporcionalidade. Deste modo, compreende-se que a principal finalidade Iremos a partir daqui realizar uma exposição e análise crítica destas
deste ramo jurídico fosse originalmente menos a de esclarecer condutas ético- diferentes conceções.
juridicamente ilícitas (uma tarefa que poderia ser realizada por uma parte da
ética somente) e mais a de assegurar o seu efetivo respeito. Que por virtude das
particulares consequências jurídicas também a função de esclarecer condutas 4.2.2. Os modelos de pr~'::~!!são
ilícitas constituísse e constitua uma das suas funções primordiais é algo
naturalmente óbvio e que mais reforça a proeminência, neste plano, do aspeto 4.2.2.1. Introdução
consequencial.
Estes modelos de intervenção jurídico-penal podem dividir-se em modelos
A partir daqui compreende-se que as con~.e~qyj_n,çias... .juddicas são de prevenção geral.eespecial. Iremos estudar desde já os segundos, começando
obviamente um meio ou processo técnico (ainda que imbuído de aspetos éticos pela análise da perspêfi.Vâ~de prevenção especial positiva, na vertente do modelo
como deixámos referido) de assegurar o respeito pelas normas imanentes terapêutico, para depois analisarmos o modelo socializador s. s. e finalizarmos
aos tipos legais de crime, como acima referenciámos. Deste modo, a questão com a perspetiva correcionalista
a colocar diz respeito ao modo de operar d:ê5{(;'1:ipo de consequências, que
naturalmente não pode deixar de tomar em consideração a própria espécie
destas mesmas consequências. Naturalmente que tal implica uma questão
4.2.2.2. n mQdelQ.terapê:utico
de legitimação no plano da eficácia e no âmbito ético, ou seja, no domínio
epistemológico. Noutros termos, perguntar-se-á porqll§"estf!:§.• !!l~~L<Jas e não Uma perspetiva de abordar a questão criminal poderia partir de um modelo
outras? A respost1l_ a dar passa pela discussão dos modelos a adotar no plano do
controlo do.crime.

4.2. Os grandes modelos de conceber a intervenção '"'ii~<illr•;~ nomeadamente a psiquiªtria'".Jleu.n;üggia,,psisot~gi~, etc. O cnme
j uridico-penal assim seria considerado como uma çl()~lJÇfl: a,)ratar, ·p~~~~~i~·~Ü· no caso de ser
incurável e se revelar perigosidade do paciente, restaria o internamento enquanto
4.2.1. Introdução essa perigosidade tivesse lugar ou em último termo a sua inoqui.zação. As prisões
cederiam o seu lugar aos hospitais. Os juízes nesta estrita lógica deveriam ser
A questão da intervenção jurídico-penal pode fundamentalmente obedecer substituído por médicos, terapeutas, etc. A própria definição de çr~J:ia, ·
a duas perspetivas. Na primeira, trata-se de evitar, a partir da realidade criminal, logicamente, ser determill~>lª.em.termo.smédicnA. A sua fundamentação histórica
que de futuro haja mais crimes, particularmente tendo como origem a prática de e cultural reconduz-se ao positivismo. O ap•au;;"J*M~JLÇ1hll!~"'-"~í~,ilu''::',~~Ab.'ii\J;I::l.~lt1.\il.~~~
um determinado delito ou mesmo eventualmente dele abstraindo. Na segunda, comportamentohum3;110 (P§.içc)lQgia,, psiquiatria,. neurologia, etc.), por seu lado,
procura-se fundamental ou exclusivamente uma equivalência entre o desvalor favoreceu esta uersu~mU!· O positivismo italiano (Lombroso, Ferri, Garofalo)

24 25
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

surgiu como primeira expressão neste plano, ainda que concebendo a intervenção igualmente por determinar o grau desta. Po~anto a questão seria agora a de sab~r
jurídico-penal no âmbito do direito penal em muitos aspetos bem diferentes dos em gue medida é que 1:20deríamos utilizar meios ter:~~Jlticos (quais e em que
aqui enunciados. À burguesia convinha tal pen~I?~tiva. Seria assim uma forma termos) para a_!?armos eficazmente no âmbitQ do controlo de com})ortamentos
de controlar o operariado qlle explorava sem limitações éticas, agora reduzido à ~is. Em princípio, a ideia seria aliciante. De facto, renunciar a penas
condição de seres alienados ... desumanas (pense-se na ainda vigente em muitos estados pena de morte), à própria
~

pena de prisão em favor de rocessos médicos ("lim os" pareceria à primeira


Um modelo deste teor não deve ser aceite, desde logQ !1-ª..§.lla integralidade. v~nstituit..l!ill.J2assg_@_gigante na evolução d~e. o entanto a
·''"'"'·'' ~

An~stá por provar gue o crime seja tout court uma doença. Nem aparência revelar-se-ia, simplesmente, aparente ... De facto, os problemas de uma
as çiências médicas noLdizem gue os cr!gles são usualmente doenças, nem de abordagem deste t sur iriam logo no estabelecimento do tipo de terapias a
res.t~uilo que s~ designa _Qor crime tem na sua ongem gue ver com estados e~r. Dever-se-ia partir de um modelo médico s.s. (utilizando esta expressão
p_a~~- Efetivament~ano_ção de crime nasceu do inter-relacionamento social. como metodologia específica de tratamento), de um modelo comportamentalista,
É uma constmção fundamentalmente assente na ética e baseada em princípios cognitivista, de uma psicologia humanista, de uma abordagem holística, etc,, ou*
axiológicos. Brotou assim do plano das relações sociais no seio de comunidades de J:Ima combinação de vários modelos? Depois, mesmo no seio de determinada
de seres humanos normais (ou como tal rotulados) procurando regulamentar abordagem, que metodologia ou metOdologias se deveriam adotar? yor exemplo,
de forma o mais adequada possível essas mesmas relações sociais, ainda que no âmbito médico, dever-se-ia privilegiar uma abordagem com medicamentos
naturalmente sofrendo múltiplas influências de diversa natureza. Como expressão tão-~ preferencialmente com cimrgias, combinação de ambas? Dever-se-1a,
de um dever-ser teve (tem) como destinatários todos os membros da comunidade por outro lado, partir de uma perspetiva puramente neurológica, psiquiátrica,
(eventualmente internacional), do Estado desde logo. Naturalmente que o seu entrecmzando-as ·;u mesmo adotando também ·-tééci~-~pskCJógicas? Se
surgimento teve que ver especificamente com transgressões éticas prévias à sua encetássemos a perspetiva comportamentali~eríamos adotar?
transformação em normas jurídicas. De resto, crimes, a sua prática é algo comum Quaisquer que resultassem ou oferecessem à partida algumas garantias relativas a
a todo o ser humano. Quer num plano individual, quer coletivo não há quase este propósito? Po~er-s~uti1izar, por exemplo, a terapia electroconvulsiva st:;;m /
ninguém que não tenha cometido crimes, sem sequer discutirmos da le iti idade mais? Eméticos, punições, etc.?
da sua e mção. De facto. se o cnme osse sintoma de doença sem mais, tJ:>..da a
huffiãnidade seria doente- o conceito de normalidade ~ria de existir. De resto, o Portanto encontramo-nos num domínio onde tudo poderia acontecer, como
crime não deixou (deixa) de produzir efeitos positivos (pense-se em Cristo, Tomás no albergue espanhol onde toda a gente poderia encontrar o que quisesse mesmo
Moro, Joana d'Arc, etc.).lsto n~uralmente não pode invalidar o facto de porv.ezes que ignorasse o que procurava... Obviamente que esta indefinição poderia
o cri:tn.í<..ser sintoma de doenças mentais, mas obviamente gue tal não constitui a desde logo implicar algo de muito grave. Em casos semelhantes aconteceria a
regra ~s a exceção, pelo menos no plano funcional. Daqui que a definição d~ste possibilidade de se aplicar abordagens totalmente dís2ares com efeitos contrários
a partir de um modelo médico não mais seja possível até pelo facto dejg~_g@gpos ente si. O paciente poderia ser objeto na sua p~~de_ de interve!l:ções mais
as ~s. A sê-JQ_s:_~ir-se-ia no arbítrio e consequentemente na alta ou.Jllenos gráves por via de um simples acaso, a nomeação do terapeuta que lhe
possi.lillidade de utilizaçã.Q..aíJ.ui ~cas como puro instmmento de cou~sse, a roleta mssa ou o_prémio da lotaria poderiam acon~.Põfüütrõ
terror ~-~r~~g~~s:ão individual. Depois, mesmo resolvendo a questão do conteúdo lado, a novidade de uma abordagem do crime através de meios terapêuticos
do ilícito criminal, ficaria naturalmente o problema dos meios de intervenção implicaria custos óbvios. A experim~mt3ção daqui derivada tanto poderia produzir
no controlo (eliminação) das condutas criminosas, da sua possível realização ou c~nsequ~ncias graviS~mas para o cidadão, transf()rrnfldoagQ_ra em_:p~~Tente,
seja da sua prevenção eliminando a perigosidade do respetivo agente, :ficando como o contrário, revelando-se totalmente inócua. Naqueles casos em que se

26 27
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

revelasse a ausência de perigosidade do paciente, agente da infração, após a sua socialização, encarada esta num sentido moderado, enquanto processo inerente à
prática, nada se deveria fazer. Em termos sociológicos, os cidadãos veriam gue aplicação-de sanções punitivas e visando a finalidadede reintegrar o delinguenJ:~
----r----~~~--
a prática de crimes poderia ficar: simplesmente impune desde que~ futuro fosse n~ sociedade ou pelo menos evitando o cará_ster. dessocialízador das sançQes
preVisível que o agente não voltasse. a c.ornetet: mais crimes. A interpretação caraçteristicamente penais. Desta forma, procurar-se-á evitar quaisquer fenómen'os
deste tipo de casos poderia naturalmente funcionar como um incentivo à prática de reincidência, eliminando na rpedida do possível'a perigosidad~i!Qj~
de infrações. Problemas de grande gravidade derivariam caso, como em termos ser determinada no momento da sentença. Será um processo que renunciará por
lógicos seria de esperar, se avançasse com medidas de prevenção (terapias ou princípio a quaisquer formas de coerçãp sobre o indivíduo e assi~ procurando
internamentos) sem que não tivesse lugar a prática de qualquer infração. ~ a sua anuência em termos de promoY,er a sua integração social. O seu âmbito,
grau de perigosidade seria necessário para se proceder a uma intervenção eiY1~ra naturalmente centrado no delinquente, visará não somente auxiliá-lo a
ci~~teor? Como e sob que processos metodológicos se poderia averiguar til corrigir as suas tendências criminógenas de âmbito endógeno, mas iw}mente
realidade? Df!_da a óbvia complexidade do comportamento humano, isolar fatores
dete!!!!!_nativos da prática de infraç:ões é uma tarefa em mm tos casos simplesmente
promovendo a sua reinserção social atray_é,s_de...práticas..mcia~gradoras
--
neste âmbito (educação, trabalho, informação, etc.). Por outro lado, a preocupação
impossível. A arbitrariedade viria novamente ao de cima com os inconvenientes com este sentido do direito penal tem levado à criação de penas alternativas e
já anteriormente referidos. Por outro lado, a rela~ entre gravidade de infrações substitutivas das penas tradicionais, nomeadamente da pena de prisão. Também
COQ}etidas e tratamentos QU simplesmente internamentos preventivos pod~ia mecanismos de diversão, de resolução do conflito penal fora do processo penal ou
simplesmente não ter lugar. Face a requenos delitos poderiam ser ~~!S de descriminalização se podem encarar nesta perspetiva. Isto pode ser considerado
medidas extremamente gravosas para*o respetivo agente e em face de grandes como uma forma da socialização ou não dessocialização.
delitos medidas terapêuticas pouco significativas ou mesmo, coffi0....-~0-;
referiqo, a s1mples ausência de quaisquer tipos de reações. Para além do mais, Como críticas a este posicionamento têm sido formuladas várias. Desde
far-se-ia tábua rasa dos fatores sociais inerentes à criminalidade. O sistema seria logo, tem-se referido o facto de se esquêce~ a sociedade, quer a vítima. Por
intrinsecamente unilateralista. outro lado, também pode levar esta perspetiva a excessos, a p,artir do momento
em que se entenda que a perigosidade do delinquente se mantém para al~m
O que se disse não invalida o facto de haver nesta tendência aspetos positivos. da,medida da pena aplicada e assim justificando-se por esta via a aplicação de
O crime por vezes repousa em circunstâncias endógenas de âmbito patológicÕ medidas ou penas desproporcionadas. Depois a J2rópria idei~~?ade
(aspetos genéticos, neurológicos, psicológicos, etc.). Em outros casos, a aplicação pode levar a arbitrariedades na sua avaliação tendo em conta a sua aplicação
de enas revela-se simplesmente inútil. Deste modo a consideração de medidas indiscnmmada. Neste plano ainda, a ausência ele perigosidade do agente após
de ~gurança, ain a que não como regra do direito penal, é algo a tomar em · i prática.do delito implicaria a ,renúncia à aplicação de quaisquer sanções com
consideração. Também considerações deste teor (terapêutico), ao la~ todos os inconvenientes '4asyLderivados e....aJ.lteriormente referidos a propósito
devidament.e justificadas, são natl!ralmente de acolher. nomeadamente da interven~ilQ_Jerapfuú.ica. Ai~da a ideia d~ar~ a
perigosidade do agente e se centrar exclusivamente nesta pode também levar
largamente a todos os inconvenientes anteriorrrJ.erite referldõs~ particularmente se
não se estabelecerem limites neste âmôito. É, por outro lado, algo que tem custos
4.2.2.3. O modelo ~!~~.9r elevados. A sua utilização te~r;:;também r;velado muitas falhas, a ponto de se falar
Pondo assim de lado a intervenção de cariz terapêutica atrás tratada, no ''rrü~o da ~oc1ahzação". De gualffi!er maneira, o carác~~r de humaniêladêflela
iremos estudar a possibili~dade de pers.t:etivãr o direito penal a partir da ideia de geralmente presente, a par da ideia de reintegração social-~simde.promover
.~--~·--~~

28 29
Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

m~is justiça social (ou menos injustiça) são aspetos muito importantes nesta 4.2.2.5. O modelo de prevenção especial negativa
teor~or si não deve ser sufragada, no entanto, deverá ter atendida (intimidação individual)
~~~~-~-----·-·----~---
nJJm plano mai§ ~era!. -
A~idades de prevenção em relasão ao delin~te podem ser
perspetivadas num plano de intimidação. Dir-se-á deste modo que a pena ao ser
aplicada ao agente deve ser de tal modo que irppligue neste uma não decisão no
4.2.2.4. O modelo correcional futJ.lro de cometer mais crimes (prevenção da reincidência). Problema que aqui
desde logo se coloca é o de saberda espécie e medida da pena a a_Rlicar a um arguido
Algo de semelhante se passará se virmos o direito penal centrado na ideia de
para a realização deste desiderato. Em boa verdade ninguém saberá ao· cert~ a
correção moral do agente. Também aqui se poderá perguntar da necessária medida
forma de realizar esta finalidade. Poder-se-á com base na experiência (estatística
oÚ~spécie de gena para corrigir moralmente o a~ente ou mesmo se tem sentido
ou não) relativamente ao tipo de delito ou delitos praticados e características
levar a cabo esta tarefa. Efetivamente poderemos cair nos mesmos problemas
do agente fazer um juízo de prognose sobre o seu futuro em termos criminais.
anteriormente referidos sobre, por um lado, a possibilidade de ser elevada a níveis
No entanto, relacionar isto com a espécie e medida de pena é naturalmente uma
despro orcio ais a medida da pena ou a escolha desta na base de algo tão incerto ---~
tarefa muito complexa. Também neste âmbito a tentação para aplicar penas
e indefinido orno sej~ta id~ correÇãõillõfãfüuem-sentido contrário,
elevadas será inevitável. Desta forma sofrerá o princíRio da proporcionalidade
praticamente não aplicando qualquer pe11<1: em crimes gr~m Q~':lE~!!lento
e com ele a dignidade da pessoa humana. Pequenos delitos poderão ter penas_
da não necessidade de correção moral do agente (por exemplo, expressa no
desproporcionadas, em nome de uma perigosidade
. . ... nunca inteiramente(J2tovada.
a;~pendimento do mesmo). Questõe.s de legitimidade damtervenção jurídico-penal ..__.-":_

Fen~menos de reincidência poderão aumentar _extrãordinariam'ente e provocar um


e num plano desde logo'constitucional podem ser aqui colocadas. Efetivamente,
aumento das penas, particularmente tratando-se de delito~õ1nves;­
pe_rg~:;}tar-se-á se terá sentido levar a cabo uma intervenção destinada a corrigir
grandes crimes (pense-se, por exemplo, em crimes contra a paz e humani ade)
m_Qralmente alguém e portanto implicando assim uma mudan_ç:a dQ_seu mo~­
poderão ficar praticamente por punir na base da ausência de_p.erigosidade
pe~nsar, num Estado de direito dellliJ.cs.ático_e_atrav:és--delão_e~nba_r;netodologia
do agente .. Portanto se é certo que um óbvio efeito intimidador é conatural à
(a. "lei da força"). Cairemos assim em processos típicos de estados totalitários
aplicação de qualquer sanção, outra coisa será naturalmente fazer deste aspeto
de que os campos de reeducação da URSS ou da China ou ainda a experiência
o elemento único no âmbito da determinação da pena ou mesmo na sua fixação
nazi entre outras podem servir de exemplo triste. De .facto, num Estado de direito
em termos abstratos (tipos legais de crime). De,._ ..resto, a própria ignorância do
d~crático, o direito penal não deverá ir além do aspeto exterior da cond~
P2lpel criminógeno da sociedade pode fazer reverter para o delinquente a cul12a
termos de exigência de condutas aos cidadãos. Procurar modificar modos mentais
~?S,pi~t?~i~}-._~tima é inconsid~2.-em
e .~ssoais de encarar o mundo e a realidade é imror perspetivas de nensar estes
larga medida a soc~dade.
mesmos objetos e assim destruir um dos aspetos essenciais da democracia que
é exatamente a liberdade de pensar,_entre nós constitucionalmente consagrada ··- Ç_nmo_alg~ge positivo encontramos o facto de num direito sancionatório -
nÓ art. 0 37. 0 da CRP. O direito penal tem que ver com o inter-relacionamento ~~ixar sempreãSpenas~~~~_!llii-IJ:1.~~3a ~~
de tomar este aspeto:
soei~!, com a proteção de terceiros (também a coletividade)., mas a sua proteç!_; r-ªiZ..Jlll)a intencionalidade de ini13ir-õSNSpefívos·aeStiilatár-iDs,-p.o-r.q~
não j)Oâe 2r ao extre~ de realizar _java~ns ao cérebro" de __9.~(;:!!l:J2_~ssa_e~E~: realidades desagrê:dáveis para os mesmos. Tudo neste plano ...e.~tar:_ª_d_ep~ndente
diferentemente dos outros. Finalmente nesta perspetiva esquecer-se-á desde logo d~ uma adequada r~lação de propõfclõllalidade entre a atuaçã<L~2.:.~~eiilê7sua
a vítima e em larga medida a prôprürsaciedade. "--~ersonalidade~sRl-fj~§~lJl~.~ãaâes·anção.. ·· "·-=~

30 31
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

4.2.2.6. O modelo de prevenção g_eral negativa efetivação. Assim sendo esta teoria falha no seu núcleo essencial. De resto, um
diicit'õ construindo nesta base tenderia a tornar-se desproporcignado. De facto não
Do que aqui também se trata antes de mais é de olhar o direito penal em se sabendo qual a exãtã medida de punibilidade necessária para inibir terceiros
termos de sanções punitivas. E estas vão igualmente ser perspetivadas no plano da prática óe!nfrações, as sanções tenderiam a tornar-se cada vez mais altas,
dos efeitos de inibição que possam produzir. Quer dizer, punir alguém ger~ particularmente tendo em conta o proliferar exponencial de crimes numa dada
poçl~ gerar um efeito de inibição de condutas, antes de mais para o p.n&rio, sociedade. E tal poderia ter lugar relativamente a delitos menores (por exemplo,
como anteriormente referimos; no entanto, para os demais potenciais agentes, - . )
crimes de furto pouco graves). A consideração no domínio 'da_aplieação de penas
que tomando conhecimento do ato poderão raciocinar em termos analógico~, deste efeito (dissuadir terceiros da prática de atos criminosos), ao conduzir ~penas
caso pensem realizar atos semelhantes ao do ag~~j~de.41uniçM, taml{ém excessi_van:ente grav~s.para o conr,e~o c_onde~ado, não enc_ontraria um juízo ético
de efeitos inibitórios poderemos falar. É exatamente neste último plano que ss:: que o JUStificasse mmtmamente. A tdeta de mstrumentahzação do ser humano'
inser.~ a designada corrente de prevenção geral negativa. Se alguém ~ punido e em função de puras ideias sem consubstanciação prática seria naturalmente óbvia
isso constitui um mal superior ao benefício obtido com a prática do crime, para os (teoria do bode expiatório/efeito de vitimização). De resto, em termos históricos,
demms membros da sociedade tal deverá criar nestes um sentimento de inibi ão, não foram outras as críticas exatamente dirigJ<tas por Kant e Hegel a um sistema
de _modo a. desincentivá-los da ,prática . e gumsguer mfraçõe~ Em rigor, este deste teor. Finalmente dir-se-á que a própria vítima ficaria perpetuamente esquecida
efeito poderia mesmo ter lugar antes da real efetivaç_ão do direito penal, no plano neste modelo, como a consiêlera~ fatores sociais nele (crime) envolvido, para
da execução das suas sanções. No entanto, dir-se-Íí quee1úndamentalmente no além deste fator.
âmbito do funcionamento efetivo do direito penal que este efeito se tenderá a
dar, pois que o mero estabelecimento de sanções em leis~ por princípio, Corno algo positivo, dir-se-á que num modelo deste teor ressalta algo de óbvio
demasiado abstrato e fora do conhecimento dos cidadão;.·k.:omun~. para qualquer sistema punitivo: a inevitabilidade de um efeito de inibição geral
. ~- ___/ quando o sistema jurídico-penal "desce à rua". Tudo, de resto, nesta perspetiva
Um g1odelo deste teor, que teve em Johann Feuerba~h o seu grande defensor dependerá de dois aspetos fundamentais. Por um lado, da real operacionalidade do
(teoriãda coação psicológica), embora ass direito penal. Por outro, da sua eventual adequabilidade ou seja, da sua capacidade
as hordas primitivas até ao Illiminismo ), foi de expressar um correto princípio da proporcionalidade.
causa por via da constatação de um efeito psicológico inerente à maior parte dos
criminosos aquando da prática de infrações. Efetivamente a realização de crimes
não obedece na grande maioria dos casos ao "modelo económico de mercado",
em que o cliente escolhe os produtos em função de um juízo relativo entre custos 4.2.2.7. O modelo de prevenção ger~l positiva
e benefícios. Ao invés, o deli,.uquente quando realiza o crime (pense-se num furto,
Num plano semelhante navegam as designadas teorias de prevenção geral
num homicídio premeditaão, etc.), fá-lo na expectativa de não ser descoberto, de
positiva,.8.....9.lJ.i1rªt~.:-s~de~afirmar anece~idad~ de funcionamento do sistema juridíêõ-
nomeadamente a vítima não o denun~iar. Sedemtemao o ag~te Já soubesse que
penal, não para inibir terceiros, mas para reforçar as expectativas dos membros"'da
iria ser descoberto e punido na lar a maioria dos casos, não haveria lugar à sua ~ "·-
~ ~

so.ciedade na o eracionalidade deste mesmo sistema· na reafirmação das normas ou


~fetivacão. go que de resto recebe apoio no· âmbito, por exemplo, da utilização
valores que o mesmo incarnar, enfim, no sentido de reafirmar a fidelidade ao ireito
das tecnologias de videovigilância ou da simples presença de polícias. Quando se
(penal). As~, a reafirmação contrafática do direito face ao ilícito, reg@elecendo
utilizam estas práticas a realização de crimes decai em comparação com o tempo
a paz jurídica, deverá ser a tarefa fundamental a obter co~o~JlQljs:_~ção.1as penas a
em que tal não tinha lugar. Neste sentido, não é a gravidade das penas o elemento
um concreto agente. Está este modelo ligado originalmeute a Durkheim e Luhmann.
dissuasor por excelência no combate ao crime, mas a alta probabilidade da sua
32 33
Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

Uma perspetiva como esta, levada sem mais, conduziria grosso modo às uma menor atuação punitiva por via da eventual relativa indiferença dos cidadãos
mesm"ãs consequências aãTeõiTa atrás referida. Efetivamente OJ2roblema aqm é em comparação com crimes envolvendo emoções, caso de tipos legais sexuais,
naturalmente o de saber do quantum de pena (ou mesmq qJJt;; -~pécie de pena), contra a integridade física, etc. Estaríamos assim perante uma justiça emotiva,
que seria necessário para satisfazer tais necessidade~ e facto' a necessidade irracional, fazendo tábua rasa da ideia desta em termos de racionalidade. O arguido
de reafirmação do direito, de restabelecimento da paz · ' ·ca de ir de encontro s~ria portanto um mero meio em função de um sistema essencialmente emotivo de
às .expectativas os me~s de uma qualquer sociedade são realid<tdes !lão reações criminais. Pouco se teria evoluído em relação à Idade Média ...
medíveis. Uma formª de tentar contornar este obstáculo epistemológico passaria
pela realização de inguéritos públicos sobre a necessidade de determinadas penas . Fie~ por último por esclarecer as relações entre esta perspetiva e a cJllpa.
e d?- sua duração em termos abstratos.: ficando ain~~ como se deveriam Em que medida é que uma maior ou menor culpabilidade do agente não imR!ica
passar as coisas no momento da escolha e determinação das mesmas a aplicar a uma maior ou menor necessidade de reafirmação contrafática do direito :Renal
alguém, embora também aqui se pudesse apresentar modelos, necessariamente e p~an!s_) esta perspetiva acaba por se tomar num derivado da própria ideia #de
genéricos, de indicação de diretivas para os juíze~ atuarem ou em alternativa culpa ... A vítima e os fatores sociais são esquecidos em função do col~
deixar na mãos dos cidadãos a própria aplicaÇãõ a:~ j~stiça ainda que mediatizada
por magistrados judiciais (por exemplo, através de tribunais de ~úri). De qualquer
maneira, ninguém, nesta perspetiva,_enveredou pox tais 1yias, 11em parece háver 4.2.3. O modelo ético-retributivo
vontade de o fazer. Portanto marJtêm-se as afirma~,ões_ e"nãÕ se piz mais nada. .-
Acabamos assim por cair no puro abstracionisl)J.o. A letra, desta forma, pode-se Aqui trata-se de ver também~o direito penal....c"omo um processo punitivo_.
justificar tudo. Penas esps;cialmente graves, por se entender ver em determinados Só que a punição tem o seu fundamento na liberdade do agente. Se este agiu
delitos necessidades (não demonstradas) de reafirmação contrafática do direito no sentido da prática do ilícito, podendo agir em sentido contrário, ou em todo
penal ou o inverso, penas menores por crimes que_pmJco mexem com os cidadãos o caso num plano de liberdade, como quer que esta seja entendida, então, o
(crimes de perigo abstrato, cri~s sem vítima, White-collar crime, simplesmente indivíduo agindo com culpa deverá ser punido como tal e na medida do seu grau
crimes não tomados conhecidos pela opinião pública, etc.). As~im, dois crimes de culpabilidade. Quaisquer outros aspetos ou não deverão ser considerados ou a
sem@antes poderiam implicar penas acentuadamente divergentes J2ela .sim~s ser terão um caráter secundário como efeitos derivados deste processo.
via da publicidadêou nao pul5.tí:ctdãdêã~se, por exemplo, no
Trial by Newspaper). Naturalmente que o princípio da igualdade iria ser posto A crítica a este posicionamento assenta antes de mais no seu fundamento, a
em causê:! caindo-se deste modo num jQgQ.de Jot~. Assilli, se. o acaso pode ter saber, a liberdade. Efetivamente punir alguém na base da liberdade, particularmente
implicado o conhecimento públicQ da jnf:ração, por virtude da personalidade da quando encarada em termos ontológicos, significa assentar a punibilidade em algo
vítima, agente, etc., as necessidades de reafirmação do direito poderão portanto ser não demonstrável, numa pura ficção. De facto, todas as tentativas no sentido da
maiqres e deste modo as penas mais elevadas. Em caso contrário, as necessidad~s sua demonstração falharam rotundamente. Na realidade, o ato decisório de escolha
podem naturalmente ser menores e as consequentes penas também. Por outro de uma conduta por parte de um ser humano só na aparência pode ser considerado
lado, o p~rio princípio da proporcionalidade seria seriamente posto em causa como livre. Se eu decido matar outrem, esta minha escolha_$m naturalmente na
nu!ll sistema como este. Pequenos dehtos, mmtas vezes realizados, poderiam ser sua base todo um cortiunto de fatores, muitos dos quais ignoramos, derivadqs
interpretados como implicando necessidades de penas maiores para fidelizar os do facto óbvio de sermos um ser com osto de múltiplos aspetos de carácter
cidadãos (des)crentes no sistema, já crimes maiores (por exemplo, no âmbito do endóge~o (genética, sistema nervoso, memóna, etc. e exógeno (~~o,
White-collar crime) poderiam eventualmente ser considerados como implicando f~ília, amigos, cultura, etc.). Sem eles (ou alguns de~te-qrre--anossa
• .._, ~i =r;;ao

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

decisão não teria lugar. De qualquer maneira, nós não temos acesso a toda a carece de legitimidade (de qualquer maneira mesmo com ela de pé nada impediria a
informação necessária para com certeza determinística podermos fazer previsões citada consideração, a da socialização). O mesmo se poderá dizer, por exemplo, de
sobre o acontecer futuro em termos de decisões e sua execução. Quando muito necessidades ou ausência de intimidação individual. Portanto esta unilateralidade
poderemos, em geral, na base da experiência comum ou em dados estatísticos, da conceção ético-retributiva deve ser colocada de lado. Questão final aqui a ser
também em casos específicos (por exemplo, doenças mentais) e do mesmo modo, tratada diz respeito ao conteúdo da culpa. Parece que uma vez posta de lado a
fazer previsões mais ou menos falíveis. Isto não permite naturalmente demonstrar ideia da fundamentação desta categoria na liberdade, o resto, o seu conteúdo,
o carácter determinístico das nossas ações ou sequer a maior parte das vezes a deveria ser não tomado em consideração. A questão em causa no entanto deve
sua alta probabilidade. Não sabemos mesmo se o acaso desempenha algum U;ftpel ser decidida já num outro plano, ou seja, perguntar-se-á se a manutenção deste
neste âmbito. De qualquer maneira, parece óbvio que, ainda que limitado, há um conteúdo não poderá ser fundamentado num outro plano (axiológico, de política
conhecimento sobre o nosso comportamento que está na base das diferentes (e criminal) e assim no âmbito de outra fundamentação. Algo a ser tomado em
inumeráveis) ciências que se debruçam sobre o ser humano, como a genética, consideração desde logo no âmbito da determinação e escolha das penas, ainda
psiquiatria, psicologia, etc. A~m, componentes genéticas, fatores nsicológicos, que não exclusivamente. Por outro lado, falha esta perspetiva quando as penas se
ambientais, educacionais, etc. determinam em' maior ou menor medida todo revelam totalmente inadequadas ao caso (inimputáveis perigosos). Não considera
o nossp agir, não sabendo ~ao certo o seu Qe~o e_specln~àerestõ, podendo finalmente a vítima e a contribuição da sociedade para o crime.
variar muito~ em função _4o tip2~'i~~9nd_ut<ts ef!l_ presença. :Portant~~o aponta
para a~~as nossas decisQes. (e também as ações neglig~E~!Ls_tl~?l o proolil:o
de múltiplos fatore~j!,8J-_1!_d<2__praticamente sem espaço a ideia de uma decisão 4.2.4. O modelo de concertação entr~ agressor e vítim~
livre, livre de quê? De ~e;péciedê fatores? Impossível de conceber. Toda ·
a nossa perspetiva sobre o mundo e o que nos cerca está imbuída de relações Remontando às origens do gregarismo humano, em que, em vez da utilização
causais, probabilísticas e até o acaso tem as suas próprias leis. Portanto a ideia da vindicta, se utilizavam processos de mediação entre o agressor e a vítima ou sua
de uma liberdade absoluta em relação a seres humanos de carne e osso é pura e família (lembremos desde logo os sistemas de composição germânicos) e sempre
SjQJ.plesmente um dQgma, uma crença sem mais. Por outro lado, a afirmação de permanecendo através dos tempos (recordemos a etnologia e os seus relatos até
uma liberdade "relativa" é algo igualmente sem consistência. Se relativamente a hoje sobre esta realidade), sofreu este fenómeno um enfraquecimento com o
um ato decisório se afirmar que ele é livre relativamente a certos fatores, fica de progressivo nascimento e consolidação dos Estados modernos, embora nunca se
pé a questão da sua adscrição a outros e portanto o problema persiste. Tudo p1):r~J:e tivesse efetivamente eclipsado (basta recordar a existência dos crimes particulares
portanto nossas decisões e conseque~t~~~nte l.s.). Atualmente ganhou foros de progressiva autonomia com a redescoberta da
dos nosSOlU'!JQ.S. Assim, a tese em causa carece de fundamento epistemológico.
'i!;;qp:,jpjé'i?::~:a P'*'·""~;_\,c'\">>~,,,, '"' '''''''r'/úf"xikc<'A'"'C~~f'h\h
importân~ia da vítima na fenomenolo ia criminológica. Deste modo, procurou~se
Por outro lado, a renúncia a fatores de prevenção (geral e especial) não parece (p'rocura-se) até. substituir todo o sistema ·urídico- ena ex1stente por processos
ser no m_inimo acertada, De facto, a escolha de sanções punitivas já implica de de media ão entre a ressor e vítim deixando assim nestes a resolução tout court
per se a consideração de fatores de prevenção, ainda que não autonomamente da conflitualidade jurídico:P~!l~!_,__~mda que eventualmente sob a sUpervisão de
considerados. Agora a sua não consideração num plano de autonomia não parece um mediador. Uma erspetiva deste-~teor não ode ser.. aceite na sua totalidade.
fazer muito sentido. Porquê, por exemplo, excluir considerações de socialização tlfetivamente o processo pode desde logo falhar por falta do agressor, a v1lim~
na escolha ou na determinação da medida da pena? O qu~ justificará tal exclusão? que morreu, ficou em coma, etc. ou implesmentenão· dêsefa tal ~êÕ~frÕnto talgo
Nem num plano de política criminal, nem no âmbito de uma valoração axiológica igua!mente aplicáve ao agressor). Pode igualmente implicar formas déCõâÇão
se poderá justificar tal asserção, tanto mais que a ideia de liberdade, como vimos, sobre a mesma vítima, desde o agressor até à própria sociedade (basta desde logo

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

pensar, por exemplo, na "obrigação" de aceitar casar com o violador por parte ligat: à coletividade agora na veste de cidadãos cum ridores e reclamantes da
da ofendida, prática bastante comum em muitas sociedades de cariz tribal, em execuçãQ das normas jurídico-penais. Paralelamente a isto, uma outra ques aó ,
face do crime de violação), assim como o inverso. Ainda o processo de mediação extraordinariamente importante diz respeito ao aspeto epistemológico. ~
pode-se revelar naturalmente muito desigual no plano da forma de resolução, problema aqui é o de saber da real efic;ácia do modelo ou modelos a adotar.
dependendo tal de fatores mais ou menos aleatórios, favorecendo os mais ricos em Dei2_ois, permanece a questão ética. De f~cto, a escolha de um modelo o7 de
desfavor dos mais pobres, por via do poder económico dos primeiros no sentido determinada técnica de interven~ão neste âmbito não-pode ser apenas perspetivada
de efetivar uma concreta reparação dos danos provocados (económicos, morais)./ em termos de pura eficácia, como já fizemos menção. A ser assim, poderíamos
Questões geradas neste âmbito poderão também dizer diretamente respeito aos facilmente transformar o direito penal num puro instrumento de terror em que o
designados crimes sem vítima, em que a vítima concreta se encontra ausente processo de "cura" seria pior do que a "doença". Fi!!almente o objeto concreto de
e 'portanto apenas :QOde~r-lngar a presença dQ Estaóo. A i11consideração da intervenção é o delinquente (repetimos) não a sociedade. Por mais gue esta po~a
perigosidade do agressor, de neGes~es de socialização deste é aqui óbvia, ser _responsabilizada pela existência de crimes e negar a sua influência no crime
como eventualmente necessidades de o inibir. Por outro lado, as necessidades é naturalmente algo no mínimo temerário, a existência, a função e finalidades do
de _Q[evenção geral negativa e positiva (infra) poderão sofrerem maiOr ou menor direito penal são fundamentalmente perspetivadas tendó como o5jeto o delinquente
grau por esta forma de intervenção jurídico-penal. Igualmente a inconsideração de ainda que, COmO referimõS;'possam ter que ver com potenCiaiS cnminosos OU a
fat~res sociais neste domínio é aqui clarã.Deste modo, apenas a sua consideração sociedade no papel de vítima, esta de per se.
num plano mais abrangente de um sistema penal global é que não oferecerá
contestação - de resto, como já se afirmo~ste sistema nunca esteve totalmente . De posse destes pressupostos essenciais para a discussão do problema
ausente dos diferentes direitos penais. em causa, iremos então debruçar-nos sobre o mesmo. O primeiro aspeto que
consideramos fundamental neste âmbito diz respeito à fixação do conteúdo
normativo jurídico-penal em códigos, leis. Efetivamente deixar esta tarefa a
quaisquer pessoas, com diretivas mais ou menos vagas, poderia implicar uma dose
4.2.5. Tomada de posição de grande indeterminação na fixação deste específico conteúdo normativo, gerador
desta forma de arbitrariedade e assim de reais po~sibilidades de manipulação do
Como referimos logo no início, o d~enal apresenta fundamentalmente
ser humano. Port.ê_nto a fixação de conteudos normativos de forma mais.~ é
duas vertentes estruturais. A um lado, é ética A outro, apresenta-se como uma
para nós um tópico fundamental que desde logo nos afasta de quaisqueLmodelÕs
realidade empírica. A conceção kantiana de ver o direito penal como algo sem
pur~mente terapêuticos.
finalidades empíricas é naturalmente sem sentido. A ser assim, então dever-se-ia
renunciar simplesmente ao direito penal, de resto a todo o direito - este só pode Uma vez realizada esta tar~fa, fic<~...assim a questão propriamente da eficá~_ia.
ser entendido como algo que necessari~ente comporta o p~ia, -;m O problema desde logo a considerar insere-se num :plano epistemológico. Há
este transforma-se em pura ética, como já referimos anteriormente. Por outro lado, formas, jurídicas ou mesmo extrajurídicas, de assegurar a plena eficácia do
~
deve-se tomar em consideração gue esta ideia de eficácia não tem que ver apenas conteúdo do direito penal fiXado através da descnção d~i1ar
com o concreto delillijuente gue realizou um tipo de ilícito. Comport~?esde logo o~ exigir? Como já deixámos referido, a complexidade das condutas humailas
a vítima, no papel de eventual contribuinte para a infração, mas principalmente e também a impossibilidade de as decompor nos seus elementos mais simples,
COlil.D destinatária direta dãinfração. Também se estende a possíveis de1Iiiqllentes estabelecendo rela - es determinísticas entre estes atares e aqm o vm. ~ m
não comparticipantes do facto, ou seja, a toda a coletividade potencialmente ' científico-causal é virtualmente de afastar. Relações probabilísticas de natureza
criminosa. Por eJ.!1ro lado ainda, esta mesma ideia de eficácia não deixa de se ( científica tar::_bém aqui não têm lugar. Chegados a este ponto, a pergunta a col~:ar
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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

é naturalmente a de saber se por isto mesmo deveremos parar e simplesmente implica uma relativização do problema da eficácia. Não só se aceita a existência do
desistir ou mesmo assim continuar e deste modo, perguntando-nos porque via. crime 1"1~~-~gciedades, como igualmente não _SE:exige o seu fim sein mais. Portanto
Efetivamente ninguém pode prever com suficiente rigor se qualquer pessoa,"~em o problema da intervenção jurídico-penal acaba por se tomar numa questão em
m~is, irá cometer um crime num detenuiuado período de tempo, de determinada que a eficácia à partida é algo a ser considerado ao lado de outras realidades.
forma, com determinadas consequências numa específica vítima. Portanto se nem Deste modo se compreende a existência também de institutos como o perdão, a
quer sabemos prever o que alguém sem mais poderá cometer no futuro neste âmbito, ampistia, o indulto, a prescrição, etç. De resto, o próprio investimento no crime
como poderemos intervir para evitar esses atos se ignoramos esses mesmos atos é naturalmente limitado. A sociedade e os p~ticos entendem gue haverá coisçts
no seu efetivo funcionamento? Naturalmente que se isolarmos uma pessoa num mais importantes. A ineficácia (relativa) do sistema jurídico-penal, ainda que não
determinado espaço, evitaremos que cometa a maior parte de crimes possíveis deélara pelos políticos, faz parte de·--.;:.._.-.--
qualquer programa político-criminal (ainda
de cometer por alguém, à exceção eve!ltualmente de danos, -il1·&ias difama<(õês que implicitamente). <
no_oca possíveis de realizar naquelas circunstâncias. De qualquer maneira~
po~emos isolar toda a gente para que seguramente não possa cometera 1J1aior A partir de tudo isto, perguntar-se-á novamente pelo sentido de uma
parte de crimes que em estado natural poderia concretizar, seria simplesmeQ.te intervenção jurídico-penal. Que ~spécie de medidas a adotar e subordinadas a que
uin. absurdo. De resto, a utilÍzação de meios mais operativos injeções, drogas, pr~upostos?

érrurgiãs4 etc.) sofre, antes de mais, da mesma crítica. Mais, há uma série e crimes
Efetivamente a eficácia tout court do sistema penal não pode constltmr
que já cometemos ao longo da nossa existência e iremos continuar a cometer sem
um desiderato por parte do legislador, com já deixámos referido. As limitações
contudo tal não entrar no aparelho judiciário e assim nã_o encabeçar as estatísticas
ônticas e de política criminal anteriormente referidas isto mesmo inculcam. Por
oficiais de criminalidadel Efetivamente, crimes de difamação nomeadamente
~~ outro lado, independentemente de não conhecermos de facto o que envolve a
(basta pensar nos juízos relativos a figuras públicas, máxime políticos), abuso de
totalidade da prática de infrações criminais (e sem sequer discutirmos a própria
confia~a (ficar com um livro que nos foi emprestado, por exem2lo},jogo ilícit9,
construção destas), uma coisa parece desde logo ser de aceitar. O crime como
etc. são frequentemente realizados sem que nada se passe em termos jurídico-
·- - .. realidade complexa que é não se pode reduzir à questão do sistemajurfdico-penal.
p~ Desde logo por isto, se pode desde já compreender gue a eficácia não
É-lhe naturalmente transcendente. A esta luz também pretender do direito penal
constitui uma finalidade absoluta de qualquer sistema jurídico-penal. De facto,
a sua eliminação é em termos globais uma SÍmples quimera. Como facto humano
a existência desde sempre em maior ou menor grau da necessidade de queixa,
individual mas também coletivo insere-se num plano de grande complexidade e
acompanhada ou não de acusação pelo ofendido (crimes particulares 1. s.) é disto
portanto nunca poderá em termos gerais ser desligado da totalidade dos fenómenos
prova indesmentível. E a questão em causa ganha assim efetividade na medida
que parecem condicionar, de certa forma determinar ou influenciar o agir (ou
---
·- -*,
em que é o próprio sistema a legitimar este tipo de possibilidades. Por outro lado,
não agir) humano. Será . ortanto razoável pensar em múltiplas possibilidades de
a própria existência de direito ou de facto de um princípio de oportunidade no
controlo da criminalidade ou de certo tigo de_ criminah a e antes e para além
plano da promoção ou prossecução penal igualmente enfileira nesta perspetiva.
do sistema jurídico-penal. De resto, a crirr@?.ologia aponta-nos vári;:s-Pistas
Depois a própria eliminação da maior parte dos casos objeto de atenção em termos
n~to. Aexistência de um uadro familiar em q11e.ll:__~E!3nça se possa
processuais penais (mortandade processual). No fundo todos somos criminosos,
desenvolv~r harmónica e adequadamente, desde ogo nu ·J:"liinf"êmocional,
todos_ vivemos com o crime e viveremos com ele no futuro. O problema agui
constitui certamente um meio or excelenc1a para a prevenção de mmtõ-tipo
não será por ~o o de o eliminar p~a e simplesmente e a qualquer greço, An~s
de c iminalidade t ra a própria realização pessoa . o mvés,
.....__ -
pretender-se-á dar uma resposta ao mesmo, mas num plano seletivo, ou seja, em
-- ·- -~~
termos âo seu controlo a certos níveis. Deste modo, a quesfao poht1co-criminal
fa!!lílias desestruturadas, onde a criança s~ja malt@!! a, negligencia~
pod~r~o se! _o primeiro passo para o enveredar por uma carrelrâ:Cfimitra:l:-tJma
40
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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

e~ucação que capacite o indivíduo para a sua inserção socioprofissional constitui partir de dados que informem da possibilidade de ocorrência de delitos graves por
natural ' meio de prevenir a prática de muitas infrações penais. parte de certas pessoas.
Muitos outros fatores, desde atitudes da sociedade sobre con u as sociais de
grupos minoritários. nível económico da mesma, seu desenvolvimento, existência Por outro lado, a espec1e de intervenção deverá ser constituída por
d; gt;;Jpos culturalmente diferentes, etc. 7 até componentes individuais, genéticas, consequências
,., que apresentem determinadas características próprias.~ .......... Antes de
psico,ógicas, idiossincráticf.s ... poderão naturalmente influenciar, no sentido da mais, deve-se r~nunc1ar como princípio àaplicaç_~ode medidas terapêuticas.
prática_9u do impedimento de mais ou menos crimes. Portanto, o papel do s1stema A razão de ser desta afirmação repousa nas limitações epistemológicas atrás
jurídico-penal neste contexto é previsivelmente o de constituir um fator de evitar referidas. Se não conhecemos a realidade do crime, as suas causas, como definir
cri~ ao lado de outros, podendo nem sequer ser o principal~ Nofundo, pret~e­ tera~uticaspara estas? O arhítr.io e a experimentação empírica seriam deste ffiõaõ

-
se dele a realização de um papel ao lado de outras estruturas sociais de controlo de
condutas antissociais. Sem ele, tudo parecerá ser pior. Portanto as exigências não
serão aqui maximalistas (nunca o poderiam ser) mas necessariamente limitadas.
e naturalmente inevitáveis. De resto, a própria utilização sem mais de métodos de
modificação de condutas com base na psicologia, parail.Iém de se poder revelar
ineficaz, pode ir longe demais na medida em que se revele desproporcionada em
Neste plano, se oLharmos do ponto de vista do delinquente, desejar-se-á que ~e face do concreto delito praticado. Finalmente, se se concluir pela sua não aplicação
de alguma maneira receba ao menos um sinal por parte da comunidade soei~! após a realização do delito, por ausência de perigosidade do agente (ou pretensa
de que o seu ato é negativo e que portanto não deve ser repetido Em termos de ausência), pode tal comprometer as finalidades das consequências em relação a
t~ceiros, ficará também registado este alerta_para,;possí:veis delinquentes fu!l!r2§ terceiros (vítima, coletividade na veste de cidadãos potencialmente delinquentes
-o que de resto deixa sempre aberta a questão da sua real operacionalidade, tendo ou cumpridores da lei penal). Em sentido contrário, a aplicação de terapêuticas
em conta o otimismo do criminoso que ao agir espera nunca ser descoberto. Para por via de uma perigosidade sempre latente pode-se tomar numa simples panaceia
a coletividade, na vertente dos cigadãos confiantes no sistema jurídico-eenal, sem qualquer real utilidade ou mesmo levar à aplicação de medidas de detenção
a real operacionalidade deste poderá constituir um reforço na sua confianç_a e pé~uas face a delitos de pouca gravidade, como já anteriormente referimos.
no restabelecimento da paz jurídica colocada em causa pela tJrática do delito,
O que se referiu não significa gue a ideia de terapia deva ser deixada ,eura
o que naturalmente derivará !Jlllito do tipo de deli19 e do seu~acto real ou
e simplesmente no caixote do lixo das inutilidades eventualmente perigosas.
v~ (pense-se neste último caso no papel desempenhado pelos órgãos de
Como .eiemento presente na execução da pena, em' face de reais estados de
comunicação social) no .âmbito da comunidade social. Para ª:Yítima, a punição do
perigosidade ou mesmo como espécie de consequência exclusiva face a estados de
deli uente poderá constituir motivo de paz e segurança e mesmo eventualmente
perigosidade, diagnosticados e comprovados em termos clí~icos, dela se deverá
de re&,sarcimento os danos causados,_ como já deixámos refen 2·
fazJ<r naturalmente um uso, necessariamente limitado.
A partir daqui, poder-se-á melhor compreender o sist~ma funcional de um
ordenamento jurídico-penal. Por um lado, não deverá intervir, por regra, antes
da prática de crimes. A não ser assim, por via desde logo das citadas limitações
0 --
A partir da renúncia por princípio desta consequência fica então por esclarecer
sentido e a natureza de outras possíveis consequências. Assim, a intervenção

epistemológicás, estaríamos perante a real possibilidade de o seu exercício


descambar em termos de puro arbítrio. O que não impedirá naturalmente que
--
jurídico-penal não deverá abstrair da consideração do trinómio agente, terceiros,
potenciais criminosos ou sociedade cumpridora das normas e eventualmente da
vítima, ainda que neste último caso com carácter em certa medida secundário,
esta intervenção tenhalugar..em._casos de crimes graves e a partir da prática de
particularmente em face da gravidade dos delitos. Neste âmbito, então, que
at~~ducentes à sua realização e se possa por outros meio's
características deverão apresentar estas consequências?
combater formas noci:v.as de criminalidade ainda em desenvolvimento e mesm6"a
~---- ~·= ""~-~---

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

Se pusemos de lado o modelo terapêutico, o que resta efetivamente? Para nós Será neste contexto que a questão do ético-retributivo, ou melhor,
a questão diz respeito intimamente como deixámos dito com o relacionamento entre do seu conteúdo (culpa), será agui chamada. Efetivamente, rejeita a que foi a
os vários intervenientes, a títulos diferentes (delinquente, vítima, coletividade). ideia de uma fundamentação da punibilidade no âmbito da liberdade e assim da
Encontramo-nos assim perante uma conceção do direito .penal inter-relacionai. culpa como juízo de censura, fica apenas como seu contributo válido o próprio
Quebrada que foi a ideia de cientificidade deste ramo jurídico, necessariamente que conteúdo desta. De facto, a consideração dos fatores atinentes à culpa (e ilicitude
o paradigma, ainda que não renunciando de todo a esta ideia (sempre o recurso ao na medida em que esta se concretize na conduta do agente), se nada tem
aspeto empírico deve de algum modo estar presente neste âmbito), deverá ser em ver mais com a liberdade em sentido ôntico, deve no entanto expressar nos
larga medida outro, necessariamente. Deste modo compreender-se-á que a adoção limites da capacidade de compreensão e indagação humax:.a a ideia de q,ue toda
de um modelo fundamentalmente sancionatório seja algo de irrenunciável. Para o a questão da eficácia no direito penal não pode deixar de estar subordinada a
delinquente será motivo de inibição (ou assim se pretenderá). Inibição esta que estará que~llies de ehcidade e assim enfileirando no plan,o de um ainplÕ princíPio= da
limitada por questões de não dessocialização ou mesmo de socialização. D~a proporcionalidade. Especificamente, desempenhará um uapel muito importantp
severidade pode implicar a marginalização do respetivo destinatário e assim acabar juntamente com as finalidades das penas na escolha e determinação da medida
por~não prevenir a reincidência, agora por excesso de se~ridad.e. Por outro lado, destas, para além de poder ainda desempenhar algum relevo no próprio cont~údo \
a consideração de aspetos empíricos relacionados com a delinquência do respetivo dos tipos legais de crime. Já no plano tradicional e sistemático, ao nível do Código
agente poderá implicar a moderação também da respetiva consequência jurídica e, ou Penal português, enquanto causa de exclusão da punibilidade, o seu contributo
o seu enriquecimento com uma maior ou menor panóplía de intervenções destinadas será em nossa opinião nulo. Efetivamente, se olharmos especificamente para as
a promover a socialização ou reduzir a dessocialização do mesmo agente (planos de designadas causas de exculpação (note-se desde logo a terminologia imanente
socialização, fixação de deveres, estabelecimento de sanções sui generis substitutivas ao Capítulo III, do Título I, do Livro I, do Código Penal), verificamos que o que
de penas principais, etc.). Por outro lado ainda, em termos de possíveis delinquentes lhes está subjacente são essencialmente razões de política criminal assentes nas
procurar-se-á, na medida do possível, que o sancionamento de determin.ru;lo finalidades das penas. Em boa verdade, a questão da idade, considerada como
co'm.portamento servm de exemplo aos demais, ainda que aqui também limites a esta cal!sa exculpativa (art. 0 19.° CP) pouco terá que ver com questões d~ CQmpreensão
finalidade (princípio da proporcionalidade) se"dêvam tómar em conslcleraçãü.Errí do ilícito ou de autodeterminação 'de acordo cÓrn essa compreensão (cf. art. 0 20. 0
te~os de coletividade ainda, implicará este saucionamento ou tenderá a implicar o n.~ 1 do CP). O que se sabe em termos psicológico~ é que qualquer criança a partir
regresso à pacificação social,..à confiança no sisterriâ~jurídico-pJ~naiiill:i~u,ç,..o.njJlnto dos sete anos játemmaturidade suficiente para avaliar grande parte do conteúdo
e ortanto fu · . · urança. Algo que se poderá aplicar de, ilicitude proveniente do chamado núcleo duro do direito penal (homicídios,
igualmente /ítima, cd o acréscimo de, dependendo do tipo de infração, poder esta ofensas corporais, roubos, furtos, etc.) e assim se determinar ma1s ou nierios neste
ou o s~u represen n e resolverem diretamente o conflito com o prógriodelinquen!e piano. Se não obstante a intervenção jurídico-pen~l· não.tem lugar e tal fica a c~rio
ou quem também o represente. De qualquer maneira, como já deixámos dito várias do. dir;~o tutelar de menores (a partir dos doze e até aos quinze anos, como, poT
vezes, a questão da eficácia deverá ser entendida de forma relativa. Aspetos éticos exemplo, acdntece entre nÓs), tal deve-se ante~ de mais a aspetos m~ventivos
são aqui inevitáveis. Se como referimos não há crime mas crimes e assim o conteúdo como deixámos referido. Efetivall1ente, parece claro que o "c~ades ..
destes pode variar enormemente, particularmente em termos concretos, então, não é muito relevante, por um ~~ Depois, tende,-se fund.illllentalmente a ver os
neces§ariamente gue a punição d~verá igualmente refletir esta diversidads, ou seja, delitos de jovens menores como sintoma mais do que como condutas efetivamente
deverá estar subordinada a um inevitável princípio da proporcionalidade/ Em último provenientes destes, nos mesmos te~ em que se perspetiva ã açãó de adultos
termo, a renúncia à própria punibilidade pode ser perfeitamente compreensível, tudo (entre nós a partir dos dezasseis anos). Daqui que a ideia base passe pelo
dependerá logicamente das razões existentes neste âmbito. paradigma terapêutico, limitado naturalmente em...termos éticos. Neste contexto,

44
' rÇ)
', ...../
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

dir-se-á que as necessidades de reintegração do direito serão aqui acentuadamente jurídica. O direito à diferença, característica essencial do Estado de Direito
menores e conciliáveis cop_}lm modelo basicamente terapêutico. Que, por outro Democrático seria seriamente posto em causa. A própria punibilidade poderia ser
lado, as necessidades de desmotivar potenciais criminosos sejam nulas ou de muito discutível em termos de prevenção geral positiva, dada a possibilidade de
escassa relevância parece também claro. E ainda, por fim, que a aplicação do fratura em termos de posicionamento axiológico-normativo (pense, por exemplo,
modelo standard (dos adultos)'Se revelará excessivo também do ponto de vista do em casos de aborto, antes da recente reforma realizada no nosso Código Penal ou
jovem delinquente, parece i~ualm~te óbvio por tudo o que se deixou referido. ainda na questão do homicídio a pedido da vítima tratando-se de casos de doentes
Razões que ganharão peso acrescÍd~o no âmbito da inimputabilidade por anomalia terminais ou mesmo em geral). Ficar-se por questões puras de prevenção geral
psíquica (art. 0 20. 0 do CP). Aqui de todo serão de afastar quaisquer finalidades de negativa não seria muito curial quando as outras finalidades se afigurem opostas ...
prevenção geral negé,ya (mal se pode conceber que a punição de um homicida
esquizofrénico possa servir de exemplo para Oll1ros potenciais homicidas Já no que toca à questão da negligência, independentemente do tipo de objeto
igualmente esquizofrénicos ou não). Por outro lado, as finalidades de prevenção em causa ( art. 0 15. 0 ), dir-se-á que aquilo que se entende tradicionalmente por culpa
geral positiva poderão e deverão ser preenchidas ~ãD~·terapêutico, não através neste âmbito coincide na generalidade com a inobservância de padrões escritos (por
da punição. Finalmente, para o próprio "ãgente, a punição seri·~-zompletamente exemplo, Código da Estrada) ou não escritos, baseados em regras de ciência ou da
sem sentido. Para além de inútil, consubstanciaria um mal não justificado. Já no experiência comum segundo um padrão geral, objetivo de exigência. Neste plano
plano do designado estado de necessidade desculpante (art. 0 35. 0 n. 0 1 do CP) haverá coincidência com a ilicitude. As divergências terão lugar quando se trate de
mal se concebe a existência de quaisquer necessidades preventivas em termos condutas ilícitas mas não culpáveis (erros "não censuráveis ou inevitáveis"). Aqui
de punibilidade. Se alguém causa a morte de _cinco__pessoas para salvar dez, o problema é igualmente uma questão de falta óbvia de necessidades de prevenção
acontecendo que sem isso todas morreriam, que sentido teria o direito penal em especial, g~;:ral. Se A sai da sua rampa, contígua à garagem onde se encontra o seu
termos de intervenção? A acÕntecer tal, seria realizada (essa intervenção) em nome automóvel e apesar de todo o cuidado possível colocado na manobra, acaba, em
de que propósitos? Também no âmbito do excesso intensivo asténico na legítima virtude de falta de visibilidade, por embater num carro em sentido contrário, daqui
--
defesa (art. 0 33. 0 n. 0 2 do CP), dificilmente se poderá justificar a existência de derivando danos corporais para um dos seus passageiros, o erro "não censurável
ou inevitável", a falta de culpa só quererão expressar que se trata de casos de
finalidades de prevenção a partir do facto de que o excesso do defensor (asténico)
ter sido consequência de uma agressão a maior parte das vezes proveniente de um falta de necessidades de prevenção especial, geral. Algo que mesmo pode implicar
agressor doloso, em todo o caso, sempre agindo ilicitamente. Digamos que nesta tratar-se de casos de necessidade de reformas de lei (questão da rampa, proibindo
situação, em face dos problemas epistemológicos anteriores referidos, a atuação do situações do género, ou seja a construção de rampas muito inclinadas sobre a via
defendente se poderá mesmo configurar como consequência lógica da atuação do pública, ainda obrigando-se a autarquia a colocar um espelho em frente da mesma)
agressor, devendo este acarretar largamente com os riscos do seu comportamento. ou tratar-se-á de simples situações de risco. Apesar dos riscos provenientes, aceita-
Naturalmente que finalidades de prevenção ao caso serão escassas senão mesmo se tal em nome de outros valores (desde logo os ciclistas imberbes são um risco
nulas. O mesmo se passará no plano do erro sobre a consciência da ilicitude "não tolerável, pelos benefícios que esta prática acarreta e face à exigência de provas
censurável" (art. 0 17. 0 n. 0 1 do CP). Se o ponto ou pontos de vista do agente são de aptidão, que a existirem condicionariam esta mesma prática).
de tal modo relevantes que justificam uma renúncia à punição pelo legislador,
O que se deixou referido não significa que a culpa, agora considerada no
então, isto só poderá ter o sentido de expressar de forma conclusiva que também
plano meramente descritivo, não releve no âmbito preventivo. De um ponto de
aqui necessidades de âmbito preventivo não terão efetivamente de todo lugar. De
vista da prevenção especial e em termos de perigosidade naturalmente que as
facto, do ponto de vista do agente, puni-lo poderia tomar-se numa pura afirmação
coincidências não poderão ser mais do que isso mesmo. Mas se encararmos a
de poder do coletivo sem mais, porque carecendo de suficiente justificação ético-
questão no plano positivo, em termos de socialização (como sinónimo de integração
46 47
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

ou desintegração social), poderemos então estabelecer relações de maior ou sua não perigosidade futura, são naturalmente razões justificativas do papel aqui
menor coincidência entre estes dois conceitos. Maior culpa pode assim significar deixado a esta perspetiva. Em sentido semelhante dever-se-á perspetivar a ideia
logicamente maior distância dos valores e das exigências de vida comunitária, ao de preveni:ão geral negativa. Desde logo a impossibilidade de determinar o gra,!
invés, menor culpa pode obviamente expressar uma menor distância em termos de eunibilidade necessário a desmotivar possíveis criminosos, algo que constitui
de não integração social. P~utro lado, relativamente à prevenção geral positiva, um verdadeiro quebra-cabeças, tendo por outro lado em conta a refertartdeia:-~·­
uma conduta fortemente cul ável era naturalmente necessidades maíuxe:; de que a mawr parte dos de~entes age no pressuposto de não ser objeto de
de reafirmação fáctica do direito penal do gue uma de menor culpabilida e. O perseguiçlío etimin:al ou condenação, justifica a aposição_a.e-óovi9~Jii:nftes neste
contráno, pouca culpa, com necessidades altas de reafirmação do direito penal plano. Deste modo correr-seTa o sério risco de u~trumentalização-t~;.~rTsta
e muita culpa com necessidades muito baixas neste domínio é, na nossa ótica, dos cidadãos perdendo-se qualquer sentido de proporcionalidade na construção
simplesmente impensável - o que naturalmente significa não serem no plano da e aplicação concreta dos tipos penais. De resto, se o legislador já considerou nas
determinação e escolha da pena estas duas categorias totalmente autonomizáveis. molduras penais este aspeto, pode-se natural e legitimamente interrogarmo-nos
da sua consideração no plano da escolha e determinação da pena. Uma dupla
A partir do que já se deixou dito, compreender-se-á agora a introdução de valoração do mesmo facto pode assim conduzir à sua simples irrelevância, ficando
modelos preventivos na dinâmica do processo de intervenção jurídico-criminal.iL apenas a ser considerada no âmbito de casos em que tal não tenha acontecido, por
ideia de prevenção ne ativa constitui assim al o a considerar mas num plano de exemplo, um repentino e exponencial aumento de determinados tipos penais de
óbvia secundariedade. Ela poderá ser considerada em maior ou menor me 1 a no crime.
esta~cimento do conteúdo dos diferentes tipos legais de crime de acordo com um
juízo de proporcionalidade. Efetivamente num modelo de base sancionatório não Algo de semelhante deve ser referido ~que diz respeito à idE_a ~ prevenção
podemos obliterar o facto de a aplicação de sanções visar naturalmente inibir ou g~ral positiva. Esta é tida já em conta pel~ legislador em maior ou ~av,
potenciar (tratando-se de crimes omissivos) condutas relativamente ao potenciãl pu juntamente com aspetos históricos, culturais, de política criminal, idiossincráticos,
acima de tudo concreto agente da mfraçao (prevenção negativa especial). Algo de etc. na construção dos delitos. De qualquer maneira, não desempenhará um papel
rest.Q_comurn a qualquer ramo sancionatório (direito disciplinar, de mera ordenação fundamental, um<~;,v~sxecutada uma política criminal de forma proporcionada.
social, etc.). De qualquer maneira se neste plano se trata de inibir ou potenciar, não Assim, no plano· da execução da pena, dificilmente desempenhará um papel de
é este o critério fundamental a tomar em conta na concretização do tipo ou tipos relevo. Efetivamente se o legislador já fixou abstratamente uma moldura penal
legais de crime. Aqui, como já deixámos referido, trata-se de antes de mais de tomar coadunada com a necessidadeh~afirmação do direito violado, então,
em consideração a questão da culpa e esta naturalmente que se não confunde com mal se vê uma finalidade autónoma neste âmbito. De resto, pode-se mesmo tornar
a averiguação de processos de inibição ou potenciação do agente a averiguar num perigosa e levar a um direito emotivo na base de relatos da comunicação social ou
plano empírico. Portanto se a inibição ou a potenciação, tendo por base a sanção, de simples movimentações de grupos sociais ou não. Assim, a conflitualidade com
são realidades que se encontram no início do surgimento da realidade jurídico- o conteúdo da culpa é por demais óbvio, como já referimos. Neste sentido, a sua
penal e a acompanham por isso no seu desenvolvimento, são de qualquer maneira consideração acaba por ser quase simbólica.
secundarizadas no plano da aplicação concreta da lei penal. E compreende-se que
Em conclusão sendo o direito penal uma realidade de co _
assim seja. As já aludidas impossibilidades epistemológicas de determinar o grau
de outras e provavelmente nem sequer a mais eficaz, dele não se poesperàr
de' inibição necessário para levar alguém a não realizar ~ais atas criminosos, a
o ~e este não pode efeflvamente prometer: d~~o o fim da crim' aíí<iade.
par com a ideia, pouco compreensível desde logo no plano societário de libertar
Por ouÍJ·o-lad~êõi:llüãigo assente no âmbito ess~m modelo
sem mais alguém que eventualmente tenha cometido crimes graves na base da
sancionatório, vai por isso sofrer das limitações próprias daqui derivadas. O que
48 49
Fernando Conde Monteiro ~~-. ~ <!
Direito Penal!

legitimamente dele se poderá assim esperar é tão só que dê um contributo para objeto das mesmas (cf. neste sentido os art. 0 91. 0 e segs do CP sobre medidas de
o controlo da criminalidade. atuando (ou pretendendo atuar) sobre antes de mais segurança detentivas e não detentivas).
o d~linquente, mas também sobre 'terceiros (sociedade na dupla veste de entes
constitutiv~s da mesma potencialmente criminosos e de entes conformistas) e sem Neste âmbito convirá ainda tomar em consideração, pela sua essencialidade,
deix~mhém-CGt:l.SiJ.emJ;- GLJ2rÓpna v1hmª' como destinatári[J.. direta a IT;aior o disposto no art. 0 71. 0 do CP (Determinação da medida da pena). No n. 0 l deste
partedas vezes do comportamento criminoso. Finalidades de prev~cial preceito, estabelece-se a necessidade de se considerar as "exigências de prevenção"
(negativa, positiva) ao lado de finalidade'Sãe prevenção geral (negativa e positiva) como forma de determinação da pena. Portanto há aqui uma clara consonância
e sem deixar de tomar em con.s1deração finalidades âê proteção da vítima estão entre os dois preceitos em causa (40. 0 n. 0 I e 71. 0 n. 0 1). A prevenção em causa não
naturalmente em mawr ou menor grau no âmbito deste ramo jurídic~. Ao la-do deixa de ser expressão de necessidades de proteção. Por outro lado, a referência à
desta vertente funcional ou empírica, encontramos a vertente etíca, não apenas culpa ("é feita em função da culpa do agente"), no último destes artigos, não pode
no aparecimento do conteúdo da ilicitude jurídico-penal mas também enquanto deixar de se conexionar com os n. 0 S I e 2 do art. 0 40. 0 Por um lado, se se determina
realidade limitadora deste aspeto empírico-funcional do direito penal, para além a pena em função da culpa do agente está-se também (ou pode-se estar) a proteger
de motivo igualmente da sua credibilidade. Como algo de carácter excecional bens jurídicos. Por outro, pode-se igualmente aplicar as limitações do n. 0 2 deste
encontramos a ideia terapêutica, aplicável, ainda que com limites éticos, a agentes último art. 0 , ou seja, considerações puramente preventivas não deverão ultrapassar
portadores de estados de perigosidade. E sem que tal oblitere a sua consideração aspetos éticos (culpa).
também no âmbito do "normal" delinquente (imputável) se se justificar.
Portanto, o direito positivo português, desde logo partir deste núcleo essencial
0 0
O Código Penal estabelece no seu art. 40. princípios atinentes a aplicação de de normas, permite uma leitura como a nossa neste âmbito.
penas e medidas de segurança. Afirma antes de mais o óbvio: a ideia de proteção
de bens jurídicos, n. o I. Aqui poderão caber ou não as finalidades de prevenção
geral (positiva ou negativa) nos moldes que acima referimos. Também a finalidade
5. A lei penal e a sua aplicação
de prevenção especial da vítima pode legitimamente ancorar-se neste dispositivo.
A "reintegração do agente na sociedade", (última parte deste normativo), abre 5.1. O principio da legalidade e a proibição de analogia
naturalmente a porta às considerações de prevenção especiais, particularmente
positivas. Em geral, estas finalidades já de alguma forma se poderão perspetivar 5.1.1. Introdução
na primeira parte deste número. Inibir o agente de uma infração criminal ou
procurá-lo integrar não podem também deixar de. cünstituir formas de defesa ou O direito penal é o ramo de todo o ordenamento jurídico onde mais existem
proteção de bens jurídicos. A própria aplicação da pena através de considerações preocupações com a questão da aplicação das suas normas. Tal deriva deste
da culpa não deixa de constituir uma forma de igualmente assegurar a proteção constituir o sector do mesmo ordenamento onde se concentram, globalmente
de bens jurídicos. O facto de a pena não poder ultrapassar a medida da culpa (n. 0 consideradas, as consequências mais graves de todo o sistema jurídico. Neste plano
2) implica uma limitação ética, em certa medida dificil de cumprir na prática, por iremos nos debruçar sobre esta questão, afinal um dos aspetos mais significativos
via da própria dificuldade em aplicar critérios de aferição da mesma num plano desta disciplina jurídica.
de objetividade. No n. 0 3 deste mesmo preceito coloca-se mais uma limitação
ética, agora relativamente à aplicação de medidas de segurança, estabelecendo-se
a necessidade de estas serem proporcionadas à gravidade e perigosidade do agente

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5.1.2. Os limites do direito positivo A primeira questão que aqui naturalmente se coloca tem que ver com o que
se deverá entender por "letra da lei". De facto, nos termos deste normativo, sem
O art.o 29. 0 , ns. 1 e 3 da CRP, estabelece, antes de mais, a imprescindibilidade correspondência (ao menos mínima) com o sentido da tal "letra da lei", "ainda
da lei para que alguém possa ser incriminado de algo e assim sofrer a aplicação de que imperfeitamente expresso," não será possível realizar qualquer interpretação.
uma pena ou medida de segurança (princípio da legalidade). Em coerência com E se isto parece valer em geral para o direito, por maioria de razão parece também
isto, o art. 0 1. 0 do CP repete os mesmos dispositivos, acrescentado a proibição da que valerá no âmbito jurídico-penal, desde logo pela citada proibição da analogia.
analogia "para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade
ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde.", o que de Por "letra da lei" entende-se usualmente o que o signo linguístico exprime
resto apenas enfatiza o conteúdo inerente desde logo ao texto constitucional. num primeiro plano de abord~em, isoladamente (nos dicionários), como
Inúmeros textos internacionais consagram idênticas normas. sinónimo de sentido ou sentidos mais comuns, expressivos ou mais utilizados
- significado extracontextual. Para um estudante de uma língua estrangeira é
por este caminho que normalmente vai aprendendo o significado dos diferentes
vocábulos. Tal naturalmente não impede a existência de uma multiplicidade de
5.1.3. As regras metodológicas de aplicação do direito penal conteúdos linguísticos existentes nos signos linguísticos. Esta multiplicidade
deriva e exprime-se no plano do contexto de utilização do respetivo vocábulo. Em
5.1.3.1. Ponto de partida- o art. 0 9.° CC
casos extremos o próprio contexto cria novas palavras ou dá sentidos inteiramente
5.1.3.1.1. Introdução novos às existentes. Como quer que se enten,~a este fenómeno, há desde logo
um aspeto fundamental a reter no âmbito jurídicÕ~penaL Aqui, como referimos,
O art. 0 9. 0 do CC ocupa-se da questão da aplicação das normas jurídicas, vigora a proibição da analogia (contra o agente). Tal implica necessariamente a
elencando algumas regras consideradas essenciais nesta matéria. Do ponto de existência de limi~emânticos dos vocábulos utilizados. Sem estes limites, a
vista formal este dispositivo trata unicamente do direito civil e como tal vale aqui analogia perderia sentido. Por outro lado, mesmo sem esta proibição, estaríamos
especificamente. No entanto, face à ausência de normas constitucionais nesta na mesma. Um setor jurídico em que o sentido das suas normas fosse puramente
matéria e tendo em conta o caráter genérico das regras aqui estabelecidas, a sua contextuai perderia poder de comunicação. Seria uma realidade inerente apenas
possibilidade de aplicação real ou hipotética a outros ramos jurídicos não deverá, a um círculo estrito de pessoas (conhecedores, utilizadores da mesma). Portanto
neste sentido, ser colocada em causa. por via da comunicabiliQ.a:.ciün.erente à fenomenologia jurídica (penal) é forçoso,
que ao lado de sentidos contextuais, se encontrem significados extracontextuais.
No fundo, os comandos jurídico-penais destinam-se praticamente afudos os
cidadãos e estes não são sequer instruídos especificamente no entendimento das
5.1.3.1.2. O elemento literal
normas em causa. Sem um sentido objetivo dos significados semânticos o direito
A primeira referência essencial a reter neste âmbito diz respeito à questão da (penal) perderia todo o seu sentido. A certeza e segurança jurídicas perder-se-
utilização do designado elemento literal. O artigo afirma logo no início do seu n. 0 iam inelutavelmente. De qualquer maneira, o que se deixou dito não nos impede
1 que "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei", para no seu n. 0 2 referir de termos de aceitar um óbvio coeficiente de indeterminismo conatural ao
que "Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo significado dos termos linguísticos inerentes à fenomenologia jurídica (penal).
que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que Este indeterminismo deriva não apenas da própria ambiguidade das palavras, do
imperfeitamente expresso". seu sentido polissémico, mas também do próprio contexto jurídico-penal.

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

5.1.3.1.3.1. Contexto sistemático jurídico (penal) em termos de saber a partir de que momento começa a vida ou termina para este
efeito, tal não pode deixar de tomar em consideração outras disposições penais
O art. o 9. o do CC manda o intérprete "reconstituir a partir dos textos o
(vejam-se as normas relativas ao abmio, artigos 140. 0 a 142. 0 do CP e em termos
pensamento legislativo." Efetivamente se o conteúdo normativo do direito penal
já sistemáticos, o art. 0 136. 0 do CP), também é naturalmente importante considerar
é constituído por normas escritas, então estas deverão ser perspetivadas no seu
a literatura médica (contexto externo). De particular importância se revestirá este
conjunto, como se tratasse de uma realidade harmónica, o mais clara tanto quanto
elemento no âmbito das cláusulas gerais e conceitos indeterminados (artigos
possível. Trata-se assim de considerar o contexto linguístico como elemento 0 0
132. , 133. ••• do CP) em conjugação com o elemento sistemático dada a natural
indispensável para a realização de uma interpretação minimamente séria.
abertura destas expressões.
Diferentes expressões terão naturalmente conteúdos diferentes e estas diferenças
permitirão ao intérprete distinguir as diferentes regiões normativas inerentes aos
textos jurídico-penais. De notar que esta contextualização não se limita a textos
de natureza penal. Por direta ou indireta remissão destes, teremos muitas vezes 5.1.3.1.3.2. Contexto sistemático extrajuridico e supra-
que nos socorrer de outros textos jurídicos não penais. Por um lado, a própria sistemático
Constituição está naturalmente presente em maior ou menor grau no processo em
causa, eventualmente o direito da União Europeia. Mas não só, dependendo das Tendo em conta a multiplicidade de expressões atinentes a realidades
matérias poderemos ter de nos socorrer do direito civil (pense-se, por exemplo, na extrajurídicas (casos dos conceitos de vida, integridade física, saúde, instigação,
noção de coisa móvel alheia, art. 0 203. 0 n. 0 1 do CP), direito administrativo (caso da conformação, violação, etc.), naturalmente que o recurso a textos extrajurídicos
noção de funcionário inerente ao art. 0 386. 0 do CP), etc. Trabalhos preparatórios, (contexto sistemático extrajurídico) não poderá deixar de ser tomado em
doutrinais estarão também englobados neste âmbito. consideração. Assim o uso de artigos, compêndios, dicionários, etc. não deverá,
na medida do possível, deixar de ser utilizado. Particularmente a existência de
Fundamental aqui é também a determinação do aspeto teleológico tipos abertos implicará necessariamente a consideração de contextos nem sequer
("reconstrução do pensamento legislativo"). As normas jurídicas penais giram escritos, pense-se deste logo na violação do dever de cuidado na negligência ou
antes de mais à volta de princípios delimitadores da esfera de ação ou omissão do conceito de leges artis (art. 0 150. 0 n. 0 I do CP). A própria consideração do
dos agentes sociais, quer se trate de entes individuais, quer coletivos, no seu fenómeno de adequação social não deixa de expressar esta mesma necessidade
inter-relacionamento (aspeto ético-jurídico-penal). A sua tomada de consciência e também sem se ter em conta muitas vezes textos escritos. A utilização de
é naturalmente fundamental para em geral interpretar (e mesmo legitimar) cláusulas abertas e conceitos indeterminados muitas vezes implicará a tomada
concretas expressões destes princípios, desde logo nos tipos legais de crime. em consideração deste tipo de contextos ("motivo honroso", "ameaça grave",
Por outro lado, a tomada em consideração dos concretos valores subjacentes a "provocação injusta", etc.).
estes (vida, integridade física, saúde, propriedade, etc.) é naturalmente algo de
muito importante nesta tarefa de "reconstrução do pensamento legislativo". Algo Aonde este aspeto ganha particular incidência é no âmbito aplicativo das
também comum a qualquer norma jurídico-penal (comparticipação, artigos 25. 0 normas jurídico-penais. A concretização destas neste plano faz-se relativamente
a 29. 0 do CP, tentativa, artigos 21. 0 a 25. 0 do mesmo código, etc.), onde a sua a entes (pessoas, pessoas coletivas), inseridas em sociedades e culturas próprias.
delimitação a partir da interrogação da ou das intencionalidades neles presentes Particularmente a escolha e determinação da pena não pode ser alheia a todo este
se configura como essencial. De notar de qualquer modo que esta via não pode condicionamento. A pessoa humana é um ser altamente complexo, constituído por
deixar de ser tomada em consideração em ligação com o plano contextuai, aqui milhentos aspetos: físicos, biológicos, psicológicos, neurológicos, idiossincráticos,
linguístico. Se se pretender delimitar o âmbito de proteção do art. 0 131. 0 do CP, culturais, e 0 consideração da culpa e das necessidades de re - .o 71. o
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n. 0 1 do CP), a par da necessidade de considerar "todas as circunstâncias que, indeterminados, também não é menos verdade que se poderá na maioria dos casos
não fazendo ,Parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" identificar um valor objetivo do conteúdo semântico dos signos jurídico-penais,
(art. 0 71. 0 n. 0 2 do CP) não poderão também de deix3r de constderar m!Jltiplos como inicialmente referimos.
aspetos atinentes a realidades extrajurídicas mas com re!eyãncjiJ para a cas;o· p.erfil
psicológiQ,O do agente, relações com a vítima, aspetos morais inerentes ao meio deste modo, está subordinada a duas copdjcã~s.
social do agente. cosffimes do grupo onde vitima e agressor vtviam, etc. ao Ta)!IO QiJ existência de um sentido ou sentidos objetivos (ainda
que tendenciais) de,.JJma gualguer norma. Se estes sentidos não tiverem lugar e
Deste modo se poderá compreender a necessidade de tomar em consideração se tratar de...um sentido por natureza indetermi~do ("especial ce~surabilidade",
"as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo "perversidade", "acentuada inclinação para o crime", etc.), a analogia terá sempre
em que é aplicada." (art. 0 9. 0 n. 0 1 in fine do CC). lugar. Aqui, coloca-se naturalmente a questão da sua legitimidade (contra legem).
Tal será aceitável, na medida da sua imprescindibilidade para uma adequada tutela
Tudo isto implica, por outro lado, um direito penal aberto, incompleto, com penal. Por outro lado, para que finalmente a analogiatçnha lugar é naturalmente
margens óbvias de indeterminação. - fundamental ue haja uma desconformídade entre o sentido ou sentidos objetivos
do si no li ístico sua a ta e a situa ão a carec r d re ula ão. Assim, se como
acontecia no âmbito do Código Penal de 1886 (art. 0 53. 0 n. 0 2), apenas se aplicasse
5.1.4. Conclusão. O sentido final da proibição da analogia (in a lei penal portuguesa a barcos e não a aeronaves, não obstante posteriormente
matam partem) estas fossem inventados, naturalmente que esta lacuna continuava e continuou
a ter lugar até à cessação de vigência do código em causa. Aqui a criação de um
Do exposto resulta que a fenomenolo ia linguística jurídico-penal apresenta sentido totalmente novo do vocábulo em causa (barco) seria impedido exatamente
antes de t;2,is proa dimepsão extracontextual, on e os stgnos apresentam conteu os por esta proibição (in malam partem).
em larga medida obi.>;tivos.

Este sentido inicial é sujeito a uma densificação semântica derivada do


contexto jurídico e jurídico-penal, não deixando por outro lado de receber em 6. Âmbito de validade temporal da lei penal
maior ou menor grau as influências de múltiplos contextos extrajurídicos de
6.1. Introdução
natureza sistemática ou não. -
O problema aqui em causa diz respeito à conexão entre o decorrer do tempo
A consideração do aspeto contextuai implica o atendimento de múltiplos
e as !ejs p~s. Se após a realização de um delito tiverem lu~ mais do qne uma
aspetos: funcionalidade das normas, sua origem histórica, exposição de opiniões
lei com conteúdos diferentes, qual delas se deverá aplicar ao agente ng g~curso
sobre as mesmas, mutabilidade histórico-social, dados de ciência, princípios
do seu,jJJJgamento? E se este estiver a ter lugar e surgir uma nova lei, deverá esta
axiológicos, etc. No âmbito concretizador do direito penal (judicial) maior se
aplicar-se sem,!llais ou a lei antiga conservará toga a sua legjtjmjdí;j6;)e? Poder-se-á,
toma a indeterminação desde logo pela consideração da situação concreta com
por outro lado, aplicar desde logo uma lei na sua globalidade a um caso concreto
tudo aquilo que ela pressupõe em termos de complexidade e abertura.
ou deverá ter lqgar a aplicação díferenctada (norma a norma) a esse mesmo caso
Se o valor ou sentido das normas jurídico-penais não são assim absolutamente concreto, podendo dagui surgir um terceiro regtme? Por outro lado, a própria
claros e exatos (por regra) e se há casos óbvios de utilização de conceitos questão do facto criminal (crime) poder ser objeto de indagação neste plano, na

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medida em que estiyer conectado com mais do gue uma lei (por exenn:>lQ é! faz do critério do resultado pode colocar em causa seriamente o princípio da
B ingerir várias substâ~as venenosas açahariil .. 90r lhe mgvqcar a morte, tendo irretroatividade da lei penal como acima referimos. De facto, se no decurso~~ uma
tal sucedido ao longo de duas leis), levanta o roblema deste modo de saber qual atividade perfeitamente lícita (por exemplo, a administração de um medicamento
a lei a aplicar durante a execução do fact Estão aqui enunciados alguns dos de acordo com as prescrições legais) um resultado (a morte, por exemplo) tiver
problemas relativos a esta matéria de que nos iremos ocupar seguidamente. lugar e nest~o caso, já depois de ter cessado a atuação em causa, o l~~isladQL
incriminar o :Ql~~sultadO~)lE:t:.\lralmente que a ar:U~i:J:@Q_~ta nova lei teria
um efeito óbvio de c.arácter r. ·fro~vo plicandQg_'<êc~imii1aǪ9!-ºe algo qu~ nAo
tinha lugar no_ciecursQ da ati vi o respetivo agente, por via de ter considerado
6.2. Princípio fundamental a tomar em conta neste âmbito: o
estecomo_s.i~ónimo de crime (teoria do evento ou resultado). Seria assim o mesmo
princípio da irretroatividade penal que tipificar um crime e aplicá-lo retroativamente. A segurança e certezas jurídicas
O ponto de partida há de alicerçar-se no âmbito do nrincípio qa leSjêJidade. Se do cidadão seriam naturalmente violadas e nesta medida este posicionamento
desde logo não há Grime sem lvi 'aJt. 0 29. 0 n. 0 I da CRP), então, quaisquer alterações deve obviamente ser rejeitado. Tratando-se de alterações de várias leis no decurso
feitas no decurso de uma lei penal que contenham matéria inovadora de carácter de um mesmo resultado, deverá manter-se (caso dos delitos permanentes, por
incriminador ou agravativa da responsabilidade penal (casos de tipos legais novos exemplo), igual critério, ou seja, não poderá haver lugar à aplicação retroativa de
ou simplesmente da existência de um regime mais grave) nunca poderão aphç(lr- lei penal mais grave, esta só poderá ser aplicada em termos de futuro e portanto se
se retroativamen .0 29. 0 sob pena de contrariarem a razão o resultado poder ser evitado por parte do agente e a omissão for punível.
de ser 4,1ti~a. este regü;n~: a proteção da segurança do cidadão face a possíveis
As teorias da atividade afirmam que o que vale para os efeitos em causa
situaçõesqu~ cologyem em causa este valor e assim se assegurar a certeza jurídica, (determinação do momento da prática do facto) é o decurso da atividade do agente,
contribuind~a~a a capacidade de orientas.;ão dos ciãadãqs (aspeto p. reventivo).
não o resultado. Também aqui se poderá colocar o mesmo problema a propósito
Também a ~ pode aqui ser chamada. Em matérias axiologicamente neutras
das teorias anteriores, ou seja, a existência de mais do que uma lei relativamente
(abate clandestino de animais, licenças de armas, títuJ~_;k_habilitação para
à mesma atividade. A, por exemplo, administra vários medicamentos relativos a
conduzir, etc.), pode esta (culpa) também justificares
um mesmo tratamento do paciente. Só que tratando-se de açõe_~_J?S~§]iy_as, a lei
agravador~ da responsabilidade só naturalmente se poderá aplicar a ações futuras.
Não haverá aqui questões de maior. O problema pôr-se-á relativamente a meras
6.3. A determinação do momento da prática do facto omissões ou a ações seguidas de omissões. No primeir() caBo, (pense-se na situação
de um médico que não administre um medicamento por via de uma proibição legal
Tendo em conta a possibilidade acima referida da existência de mais do que e que no decurso do mesmo tratamento tal se tome imperativo), assim a entrada
uma lei sobre o decurso de uma infração penal, do ponto de vista doutrinal têm em vigor da nova lei vigorará para o futuro e na suposição da possibilidade de os
lugar fundamentalmente duas correntes sobre esta questão. Por um lado, as teorias seus destinatários a poderem levar a cabo. O mesmo se dirá relativamente a uma
do resultado, por outro, as da atividade. ação seguida de omissão. A nova lei não poderá incriminar ou agr~~~!!uas"ão
jurídica do agente pelo seu agir no passado e a eventual exigência de um agir
Relativamente às primeiras, tem-se afirmado que o que vale é a lei onde
relativanÍente.à Õi;Jissão fica dependente da sua real possibifiCfãd.e-{PÕrexêmplo, no
o resultado tiver acontecido, não a atividade. Problema desde logo a colocar é
caso do médico a efetivar determinado tratamento, pode eventualmente a exigência
o de saber se havendo lugar a mais do que uma i~ decurso de um resultado
'------escolher. Depois, a escolha de nova medicação não ser aconselhável, por virtude do anterior tratamento).
(consistindo, por exemplo, este num
'----
e-stado), que lei
58 59
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

Em síntese, dir-se-á que será sempre num plano de segurança e certezas e quer se trate de condutas no plano do direito penal tradicional (homicídios,
jurídicas que todos estes casos devem ser decididos. ofensas corporais, danos, etc.), onde a leitura dos respetivos tipos legais e demais
normas lhe permite um maior conhecimento do seu âmbito de aplicação a todos os
níveis (maior certeza ou menos incerteza), quer, por maioria de razão, no âmbito
6.4. Tomada de posição do direito penal dito secundário (onde têm-,1-ug-a~r-e'~m-'-m-m'""·o-r-~ão
~.-><>•<<•<•~-•<'<•~~-~-'"~'~''''~'O·>-""~,_-_,.,.,-r-=-H"'"'<;~kP~~---~~""--+=~~ • ~ • • -~~-r-C>""~--~--~~·~--

imediatamente reconhecíveis como ta1s, caso,por exe:rpplo, do1J!gJf:j2[ql1riestino,


Do exposto resulta que a opção pelas teorias da atividade em prejuízo das do art. 0 22. 0 do Decreto-Lii ii. 624ís4:cteT6-"2íê7ãnélró)'15~~;;;odo, as finalidades
resultado só na aparência deve ser totalmente aceite. Efetivamente, poderemos de prevenção geral serão asseguradas, sabendo ou podendo saber cada cidadão o
encontrar-nos perante a incriminação de um resultado (sob a forma de estado) e que o esperará (em termos aproximativos sempre), se enveredar pela prática de
tal servir de incriminação por via da possibilidade de o agente lhe poder colocar infrações criminais. A isto tem-se adicionado a culpa como elemento igualmente
um fim. Por outro lado, a simples consideração da doutrina da atividade pode fundador deste princípio. É deveras discutível tal asserção, particularmente
igualmente revelar-se de alguma complexidade. A nova lei ao incriminar a omissão a partir de um modelo penal em que ~panão"Seja, por princípio, uma
pode ou não revelar ao caso. Se o agente puder ainda agir no sentido de evitar o exigência de facto, em termos de se conhecerque determinado comportamento
resultado (omissão imprópria), esta nova lei terá um caráter incriminado r. Caso é efetivamente objeto de incriminação penal (vide neste sentido o art. 0 17. 0 do
contrário, não. CP, infra). Algo que eventualmente poderá não acontecer mai~u~ç.J§ulente no
já referido direito penal secundário, onde, por vezes, a necessidade de conhecer
Portanto o problema da determinação do momento da prática (ação ou determinada incriminação é imperativo para o agente agiLSQ,Dl culpa (sirva de
omissão/resultado) não é autónomo relativamente à questão de fundo em causa caso, eventualmente, o exemplo acima referido). O nosso legislador constitucional
(aspetos teleológicos, segurança e certezas jurídicas). Apenas é consequência. (art. 0 29. 0 n. 0 s 1, 3, 4, l.a parte da CRP) consagrou este princípio estendendo-o a
Não justificará sequer a existência do art. 0 3. 0 do CP. todos os crimes, encarando estes numa perspetiva lata (abrangendo também as
consequências penais). Algo que o legislador ordinário naturalmente reproduziu
no Código Penal (artigos 1. 0 n. 0 s 1 e 2, 2. 0 n. 0 1), no seguimento de numerosos
6.5. O princípio da irretroatividade da lei penal. textos internacionais.
Desenvolvimento

O princípio da irretroatividade da lei penal assenta antes de mais como


6.6. O princípio da retroatividade da lei penal mais favorável
Ja referimos na ideia de segurança jurídica dos cidadãos. Face a possíveis
manipulações por parte do poder político no sentido de colocar em causa a Este princípio encontra-se estabelecido desde logo no texto constitucional
esfera jurídi_c.<Lcl.~stes, através do meio jurídico objetivain:êritemms gfaveãe~fôdo (art. 0 29. 0 n. 0 4 in fine) e no CP (art. 0 2. 0 n. 0 s 2 e 4), para além de muitos outros
o sistema jurídico existente (o direito penal), eis que este princípio se ~ textos de âmbito internacional. A sua fundamentação assenta antes de mais
como uma barreira intransponível a quaisquer maquinações por parte dos poderes em aspetos preventivos. Num plano geral, em termos positivos ou negativos,
políticos ou jurídicos existentes. Nesta perspetiva, possibilita aos cidadãos uma se as necessidades de punibilidade são agora menores, então, não faz sentido
adequada previsão das consequências das suas condutas, ativas o~ivas, algo aplicar disposições que a esta luz se encontram ultrapassadas no plano político-
que se conjuga com as ex~s de determinabilidade das próprias normas penais criminal, só porque o crime teve lugar noutra lei. Se o alarme é agora menor, se
criadoras ou agravadoras da responsabilidade penal dos respetivos agentes (supra) as necessidades de prevenir a imitação são também menores, que necessidade há
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61
Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

então de manter as normas vigentes à data do facto? Também do ponto de vista da o mesmo tendo lugar relativamente a pressupostos destas que as ampliem, não
prevenção especial positiva, se a moldura penal é agora mais baixa, se possibilita já se as restringirem. Quer dizer, também relativamente à culpa, apesar do seu
a existência por isso ~--~nas substitutivas de carácter socializador, se mesmo conteúdo ser bastante fluído (pense-se, por exemplo, no disposto no art. 0 71. 0 n. 0 1
introduz diretamente-estas,que sentido político-criminal terá a manutenção de do CP), estes princípios têm igualmente espaço de entrada. Formas de revelação
normas coevas que contrariem as disposições novas? O mesmo terá de forma mais do crime (comparticipação, tentativa, tipos de concursos, crime continuado)
simples lugar no âmbito da prevenção especial negativa. Menores penas ou penas estão naturalmente sujeitas a estes prind~. Indubitavelmente que a questão da
diferente~~.J)~néfi_c_a.s para o agente i~ca~_Eo_Etanto menos necessidades de punibilidade não poderá fugir a esta~E!~ão~edidas de penas, estabelecimento
intimidação. Por outro lado, se o grau de ilicitude for menor, naturalmente que a de novas penas, sua revogação ou subSt1lú{ção, alterações de pressupostos das
culpa, por consequência, será em princípio menor, logo justificando a derrogação .!llesma_ss causas de isenção, surgimento ou supressão deJ;eilãsmistas terão
ao princípio da irretroatividade. Tal acaba assim por ser expressão do princípio da n~fiir~lmente que ver com tudo isto. Igualmente as medidas de segurança estão
proporcionalidade (cf. art. 0 18. 0 n. 0 S 2 e 3 da CRP), a equacionar adequadamente sujeitas a ~cípios, sem quaisquer limitações. Ainda que, por exemplo, uma
ilicitude, culpa e necessidades de prevenção com a punibilidade. E se tudo isto terá medida de internamento seja substituída por outra mais grave, mas eventualmente
pleno sentido no âmbito de leis penais com carácter atenuativo, por maioria de m~is eficaz Rara o cogJc.bat~dãpe_~o_sidade do delinquente, continuará em vigor o
razão terá sentido relativamente a normas com conteúdo descriminalizador. Aqui prin~ípio da le~~~~-Flmente aplicáv~ al_teração de_ pressupóstos
em definitivo ganham pleno sentido considerações de prevenção geral positivas, relativos ao seu funciônamento (por exemplo, exigencias de maior Ol!J menor
negativas, de natureza especial, também positivas ou negativas, de carácter gravidade dos mesmos, características da patologi~-do 1iidivíd00, etcf Doutra
culposo e tudo isto expressando plenamente o princípio da proporcionalidade já forma estaríamos a introduzir critérios objetivamente mais gravosos para o agente
referido. sem qualquer base legal e assim a subverter estes fundainentaispr!napios. Por
outro lado, irnportâr1te aqui é a menção da Lei de Saúde Mental (Lei n. 0 36/98
de 24 de Julho), onde se regulamenta o designado internamento compulsivo (cf.
especialmente os artigos 12. 0 , 27. 0 n. 0 1, 29. 0 , 34. 0 n. 0 I desta lei), que poderá ter
6.7. O conteúdo dos princípios em causa lugar sem a prática de gualquer facto, apenas na base da perigosidade do portador
da anomalia psíquica. ~Tendo em conta que nem a CRP ou o CP (art. 0 1. 0 n. 0 2)
Os princípios em estudo abrangem uma miríade de aspetos jurídico-penais.
exigem a prática de qualquer tipo de ilícito criminal para a aplicação de uma dada
Têm que ver desde logo com o próprio conteúdo dos tipos legais de crime.
medida de segurança, o art. 0 29. 0 n. 0 1, segunda parte e n. 0 4 do mesmo preceito do
Abarcam assim os elementos objetivos destes (ação s.s, omissão, relações destas
texto constitucional fala apenas de pressupostos de medida de segurança e o art. o 1. o
com o resultado, este mesmo, agentes da infração, formas específicas de agir
n. 0 2 do CP de igualmente pressupostos de estados de perigosidade, a lei em causa
ou omitir, etc.). Incidem igualmente sobre os elementos subjetivos (dolo, suas
não sofrerá deste modo reparos de maior. O que de qualquer maneira não deixa de
modalidades, negligência, formas~desta, etc.). Contêm, por outro lado, tudo que)
suscitar preocupações óbvias. É que desta forma se poderá naturalmente subverter
diga respeito à ilicitude, para além do que se já referiu, também num plano negi'ti~o
em larga medida o conjunto de garantias inerentes a estes princípios, permitindo-
(causas de justificação ou de exclusão da ilicitude). Assim, maiores exigências
se pela janela da perigosidade (conceito que se poderá tomar extremamente fluído,
na legítima defesa numa lei nova i!J1plicam a sua não aplicação retroativa e o
no fundo todos ou quase todos os seres humanos podem ser considerados como
inverso na hipótese conÚária, uma nova ~~usa-~ificaçã;;- deverá nestes
perigosos) abrir aquilo que se pretendeu fechar pela porta (a "ação ou omissão" se
termos ser aplicada retroativamente. Por outro lado, um novo tipo de culpa ou
refere o art. 0 29. 0 n. 0 1 da CRP, que o CP nos arts. 1. 0 n. 0 1 e 2. 0 n. 0 S 1 e 2 expressa
pressupostos mais amplos de um existente tipo de culpa não deverão ser aplicados
através do substantivo "facto"). Por isso faria bem mais sentido que se estabelece
ao passado; acontecendo o inverso relativamente a novas causas de exculpação,

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

idêntica garantia no âmbito das medidas de segurança, excetuando o ou os casos ser), como funcionar em termos parciais (um crime de perigo abstrato passa agora
em que tal pudesse não ter lugar. a ser punido apenas como crime de resultado).

No âmbito de correntes jurisprudenciais, modificações destas não estão


sujeitas a estes princípios. Neste sentido, milita a expressão "lei" usada nas
disposições citadas (Constituição e Código Penal). Doutra forma, teríamos a 6.8.2. O pensamento subjacente
jurisprudência a constituir fonte direta de direito, algo que a nossa Constituição
Em todos os casos de descriminalização encontramo-nos perante uma

---
não contempla. De qualquer maneira, a forma como se aplica o direito penal
mudança da conceção político-criminal por parte do legislador. Este estabelece
influencia naturalmente os seus destinatários diretos e também indiretamente os
assim que determinada ou determinadas condutas não devem mais ser objeto de
restantes membros da sociedade, como é óbvio. Daqui, de qualquer maneira, até
intervenção jurídico-penal. Tal significa, como já deixámos dito atrás, a renúncia
fixar valor de lei a tudo isto vai naturalmente um passo que o legislador não deu
deste ramo jurídico a quaisquer finalidades preventivas gerais ou especiais. Neste
e nem sequer se vê como o irá dar, pelo que reiteramos a afirmação inicialmente
plano, tratar-se-á naturalmente de considerar os factos anteriores como factos
feita de negar à jurisprudência qualquer valor de lei e assim relativamente a ela ter
irrelevantes para o direito penal.
lugar a aplicação destes princípios.

Em conclusão, dir-se-á que em matéria jurídico-penal tudo que signifique,


por princípio, agravação da posição jurídica do cidadão deve estar subordinado 6.8.3. As consequências jurídico-penais
aos princípios em causa. Algo, de resto, que em matéria processual penal de certa
maneira é expresso pelo art. 0 5. 0 n. 0 2 al. a) do CPP. Caso o facto tenha sido praticado no passado, jamais poderá ser perseguido
jurídico-criminalmente. Se um inquérito tiver sido aberto, deve ser arquivado.
Quaisquer decisões sobre o mesmo com carácter de relevância jurídico-penal
devem deixar de a ter: a~, pronúncias, condenações. Neste último caso,
6.8. As leis penais descriminalizadoras
mesmo na hipótese de trânsito emj11]gado das mesmas, se houver lugar à execução
6.8.1. Conteúdo estas deverão cessar desde logo. Só quando houver lugar à execução total das
consequências criminais é que nada haverá a fazer.
Sabido que as leis descriminalizadoras se caracterizam por considerar
factos criminosos, como deixando de o ser, quer, porque tais factos passem a Isto mesmo se infere do disposto no n. 0 2 do art. 0 2. 0 do CP, que prevê
ser considerados como não expressando qualquer tipo de ilicitude jurídica (a mesmo a hipótese de trânsito em julgado com a execução a decorrer, fazendo
homossexualidade deixa, por exemplo, de ser crime, por se entender ser um facto assim cessar esta e os seus efeitos. O regime em causa deve ser naturalmente
tão natural quanto a existência humana e assim não suscitar qualquer ideia de aplicado também nos casos em que o ilícito penal "ceda" a sua ilicitude a outro
ilicitude jurídica desde logo), somente expressando uma mera ausência de ilicitude ramo jurídico, nomeadamente ao direito das contraordenações, ou seja, naqueles
jurídico-penal (o adultério deixa de ser considerado crim~a a ser algo casos em que o facto deixe de ser crime mas passe a ser uma contraordenação.
de ilícito noutros ramos jurídicos) ou a justificação de uma conduta q\l~~~S!Jl isso Claro que em situações deste teor verifica-se um vácuo, pouco compreensível do
seria ilícita (considera-se agora que o consentimento da mulher grávida elide a ponto de vista político-criminal. O facto deixa çle.ger ~ime.z..havendo naturalmente
ilicitude do aborto durante certo período de tempo da gestação). Por outro lado, lugar à descriminalização, mas continua,a seiilícito)agora do ponto de vista do
esta descriminalização pode operar em bloco (o crime deixa integralmente de o direito das contraordenações. Portanto ià~~ntíêí~ uma punição com base na

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

nova lei. Note-se desde já que tal acontece naquelas situações em que a conduta é só que menos negativos, agora. Tal, no plano político-criminal significa que
já um ilícito noutro ramo mas perde a sua ilicitude jurídico-penal (pense-se desde também aqui o legislador muda de conceção sobre a sua intervenção no âmbito
logo no exemplo do adultério). Portanto não existem problemas nenhuns, antes jurídico-penal e que portanto, do ponto de vista político-criminal, as necessidades
pelo contrário, no sentido da continuidade da ilicitude nestes casos. O problema de prevenção geral positiva ou negativa e as necessidades de prevenção especial
relativamente às citadas contraordenações teve que ver exclusivamente com o positiva ou negativa são aqui menores, o mesmo se passando com o juízo de
facto de relativamente a estas vigorar os mesmos princípios aqui referidos (vide culpa, se for esse o caso. Portanto não há aqui diferenças substanciais, no plano de
artigos 2. 0 e 3. 0 do RGCO) e portanto à luz do princípio da irretroatividade da fundo, entre as leis anteriores e estas.
lei contraordenacional estas não se poderem aplicar ao passado. Portanto o que
seria e ainda é necessário ter em conta é o estabelecimento de normas específicas
para este tipo de casos, o que nunca aconteceu até agora por óbvio laxismo do
legislador ...
6.9.3. As consequências jurídicas
Do exposto resulta assim que do mesmo modo que acontece com os casos
de descriminalização também neste âmbito dever-se-á proceder à aplicação da lei
6.9. As leis atenuadoras da responsabilidade penal penal mais favorável em todas as situações em que tal possa ter lugar. Efetivamente
convergem aqui igualmente as mesmas razões (de prevenção, ilicitude, culpa)
6.9.1. Conteúdo que estão na origem do regime existente no âmbito das leis despenalizadoras. A
única diferença resjdirá a2el]."as na extensão do âmbito das consequ~N~~,
A atenuação da responsabilidade penal pode operar a vários níveis. Pode tratar- caso trata-se de ausência de consequências jurídicas, noutro. de consequências de
se de simples modificação de molduras penais, alterando-se os limites máximos menor gravidad~rillos-quant{tafivq~ ou qualitativos.;fortanto não há aqui
e mínimos, mantendo-se os mesmos critérios de ponderação ou alterando-se diferenças de fundo e portanto não deverá;\ por princípio, haver lugar igualmente
também estes a favor do agente. Como se podem alterar unilateralmente quaisquer a diferenças neste domínit Deste modo;· se um inquérito não ~lY~L.§.!gg~~~terto,
destes limites ou só os critérios de ponderação também a favor do agente. Pode
aqua~do da sua abern:_r~;~e-y:E)IL~EFL~~!=~~J:l.l~~~ ao.~:~ ~~~ur~~ A única
também acontecer que se estabeleçam alterações em que abstratamente se torne questao relevante neste amblto tera que ver com o tãcto de fíaver Ja lugar a
dúbia a questão de saber se houve ou não lugar a uma efetiva diminuição da condenação, ~ventualmente com trânsito em julgado, estando a pena concreta a ser
responsabilidade do agente. Aqui deverá ter lugar uma ponderação concreta que executada. A lóFtca implicará naturalmente que se reformule a pena em função da
poderá determinar a efetividade do regime mais favorável ou mesmo, em último nova realidade.r,ara isto convergimo razoes de multlpla natur~de prevenção,
recurso, não estará excluída a possibilidade de o próprio agente se pronunciar ilicitude, culpa, de política criminal, de justiça (igualdade de tratamento), etc. Em
sobre o regime mais favorável. sentido contrário apenas se poderá invocar o problema técnico de haver lugar a
uma maior perda de tempo com a reab~do processo (cf. art. 0 371-A do CPP).
É naturalmente um argumento que aplicável a todo o direito penal implicaria a
6.9.2. O pensamento subjacente supressão do conjunt_odegarantias inereirtêSão Estado democrático em favor de
aspetos pragmáticos tão caros a regimes não democráticos (pense-se desde logo
As leis em causa caracterizam-se não por operar roturas com as leis antigas no processo inquisitório na Idade Média). Entre nós o art. 0 2. 0 n. 0 4 da CP, já na
no sentido de remover a sua ilicitude, culpa ou punibilidade, mas por diminuírem versão proveniente da reforma de 2007, apenas prevê a cessação da execução da
estas. Portanto encontramo-nos perante a manutenção de juízos de valor negativos pena aplicada ao agente e dos seus efeitos em caso de condenação, se "a parte
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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na 6.10. As leis intermédias
lei posterior." Confessamos a nossa grande dificuldade em perceber a lógica da
solução do legislador. Suponhamos o seguinte exemplo: A é condenado ll\.l.W-ª' O que se referiu acima sobre a possibilidade de aplicação da lei mais
pena de 5 anos de prisão efetiva correspondente a uma lei que estabeleça uma favorável pressupõe um conflito entre uma lei no momento da prática do facto e
moldura penal entre 4 e 6 anos. O facto de ter surgido após a condenação uma lei outra posterior a esta com conteúdo mais favorável. Já no caso das designadas leis
nova que estabeleça agora uma moldura entre 1 mês·a.-6·~~~-~; nada irá alterar intermédias trata-se de algo diferente. Entre a lei da prática do facto e a lei final há
-~~ Caso se reapreciasse novamente este mesmo facto, uma a considerar outra lei com o conteúdo mais favorável (eventualmente de carácter
pena situada a meio da moldura implicaria mais ou menos 3 anos (mantendo-se os descriminalizador) de todas as leis a partir da pratica do facto, mas~~gto já
critérios de ponderação da medida da pena idênticos e semelhantemente a situação revogada por outra lei, de mo~ªJei~m-vi.gor no julgamento (ou após este,
do condenado) e portanto o agente poderia beneficiar da nova lei efetivamente. Já havendo ainda lugar ao cumprimento da consequência jurídica) é menos favorável
se o limite máxilJ!:O 14i~ar,')tal poderá mais facilmente beneficiar o recluso. Agora que aquela. Portanto o problema aqui é em term~ê~~§1Ú!§:mente pragmáticos o de
pergunta-se o porquê deste regime aparentemente tão estranho? Confessamos saber da possibilidade da ultra-actividade de uma lei em definitivo morta. Não
novamente a nossa incapacidade de responder a esta questão. Portanto o disposto se podem portanto aqui invocar desde lo~entos ligados a finalidades
na última parte ~em causa é algo de puramente arbitrário, cr.iando de prevenção, ilicitude ou culpa para, como nÕsc.àsos anteriores, se justificar a
artificialmente desigualdades de tratamento em fuJl_ÇãQ...d.~...dif.erentes:Iei~) ~ aplicação da. lei mais favo~el. Efetivamente, se as necessidades de prevenção
além da desigualdade prov~niente dos casos em ql;l~j~.t~I1~~-~avi~~conde~a,.s:.ão foram em tempos corisiderádas menores ou inexistentes, já o não são agora (no
daqueles em que tal não teiihà.âcóntecido (A e B realizam em..compãrt!cipação momento da lei final), o mesmo se diga de considerações no plano da ilicitude
um mesmo delito, um deles é julgado e condenado, o outro só mais tarde o é e ou culpa. Deste modo a sua aplicabilidade só poderá estar assente em razões de
vai ser condenado em face de uma lei mais favorável, por o mesmo crime). Isto igualdade de t~atame.Q.to (e portanto de prevenção do arbítrio). Se o agente não
i
aproveitou os tfeitos \
(eventualmente descriminalizadores até) em confronto ·········-·-4
com
pode assim acontecer com o atual regime com flagrante violação do princípio
da igualdade (art. 0 13. 0 da CRP). Algo que de resto nem sequer se coaduna outro que, aleãfüiiamente, os aproveitou, dir-se-á que não haverá justificação à luz
com o disposto no n. 0 3 do art. 0 282. 0 da CRP, onde o princípio do tratamento do puro princípio de tratamento mais favorável do arguido neste ramo jurídico de
mais favorável do arguido prevalece, apesar de ter sido obtido face a uma lei lhe negar tal proveito.
inconstitucional ou norma ilegal. Daqui que em nosso entender esta última parte
do art. 0 2. 0 n. 0 4 do CP seja inconstitucional (apesar do Tribunal Constitucional
nem sequer ter considerado a anterior redação como ofensiva da Constituição, 6.11. Determinação do regime concretamente mais favorável
acórdão n. 644/98), devendo-se por isso aplicar tout court o disposto neste mesmo
artigo na sua primeira parte, ou seja, "o regime que concretamente se mostrar mais O art. 0 2. 0 n. 0 4 do CP em caso de concurso de normas sucessivas manda
favorável ao agente", não havendo assim qualquer distinção dos casos em que aplicar "o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente". Tal é
tenha havido condenação ou não. consequência antes de mais do disposto no art. 0 29. 0 n. 0 4 da CRP que determina
a aplicação retroativa das "leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido."

A determinação do regime ou conteúdo mais favorável será fácil de realizar


quando, mantendo-se inalterados os critérios de determinação das C'Õnsequências
p~s, estas sejam objeto de modificações quantitativas no sentido de claramente

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

se baixarem as molduras das mesmas (mínimas e máximas). Assim, por exemplo, perseguir cidadãos considerados "inconvenientes ou a eliminar", a pretexto da
se uma moldura penal era de 5 a 15 anos e agora passa para 3 a 12 ou se o prazo aplicação do regime mais favorável poderão obviamente ter lugar através deste
de duração da suspensão da execução da pena de prisão passa de [~nos para meio. Noutros termos, poder-se-á simplesmente referir que é o próprio nú~o
6 meses al._ af)g~~ em ambos os casos trata-se naturalmente de situações de menor fundamental d~princípio da legalidade que sairá ofuscado de forma evidente. A
p-v.~.. ade, ~preensíveis pela simples consideraÇão abs!!'ata das consequências em fraude à lei poderá assim ser institucionalizada sem mais. Daqui que opinemos no
(causa: Já no caso de se tratar de ausência, presença ou modificações de elementos sentido de a~erir o conteúdo das leis em presença através do método diferenciado
'de-càiácter qualitativo (por exemplo, a suspensão da execução da pena de prisão ou seja, por meio ~a consideração de cada consequência de per se, aplicando se for
não se encontrãâgõra subordinada a determinadas regras de conduta), a aferição esse o caso um terceiro regime que resulte desta perspetiva. A consideração de que
do regime mais favorável poderá eventualmente depender de uma avaliação desta forma se esjaria a colocar em causa a própria função legislativa, passando
concreta das_leis em presença, se a avaliação abstrata por si só não realizar este o intérprete a legislaçior e quebrando-se desta forma o princípio da separação dos
desiderato. = poderes do Estado.não faz aqui qualquer sentido. De facto, o juiz nestes casos não
é portador de qualquer programa político-criminal próprio, apenas atua vinculado
A avaliação concreta significará a necessidade imperiosa de o julgador à lei (antes de mais constituCionãl). Se neSlas .situações pode surgir um regime
determinar concr,ttamente as consequências numa e noutra lei (quantas vezes as mais ou menos dispare, tal deriva tão-somente das particularidades do caso
leis que existiram, tratando-se de leis intermédias) e deste modo escolher a lei (sucessão de leis penais). O que estará naturalmente vedado é que a propósito
mais favorável. Algo de resto que se poderá afigurar de grande complexidade. da coerência (efetiva ou virtual) do regime legal se vá postergar mais ou menos
Efetivamente pode suceder (e tal tem lugar de facto muitas vezes) que este'amos despudoradamente o ínsito fundamento do princípio da legalidade, considerado
perante mais do que uma simples com_E~~ação entre o mesmo tipo ~~~~-. or justamente como um baluarte dos modernos Estados de direito e tão arduamente
exemplo, de prisão). Realmente podem ter lugar em comparação vari Sfipos conseguido após séculos seguidos de arbitrariedade e abuso contínuo da dignidade
de consequências penais: penas princjpais de vária índole (pena de prisão e de da pessoa humana.
multa), penas substitutivas existentes em cada uma das leis ou só num~delas,
penas acessórias, medidas de segurança não detentivas, penas alternativas, etc.
Podemos assim depararmo-nos com regill1es multidi~ersificados em que uma
das leis apresente maior número de consequências do que outra _e se tomar 6.12. As leis temporárias
também por isso muito difícil determinar o regime concretamente mais favorável.
Dificuldade esta que será naturalmente mais elevada na medida em que se afirme a
r' . -
necessidade de aplicará lei J:m causa que se apresente globalmente mais favorável
para o respetivo agente. Dê facto poderá acontecer que a partir desta perspetiva se
vá aplicar consequências não existentes à data dos acontecimentos crhnin.ais, com
clara violação do princípio da irretroatividade da lei penal neste âmbito. Assim O primeiro aspeto a referir é que relativamente a este tipo de preceitos
se, por exemplo, alguém no momento do julgameg!g tiver_l,!ma lei 12enal menos também aqui se toma naturalmente possível a existência de concurso de normas
grave no domínio da pena de prisão mas em contrapartida houver lugar a uma sucessivas a ser regulamentado nos mesmos termos que já deixámos referido.
pena acessória 'ãnteriorme~jnexistente (por exemplo, proibição de e;xercício de De facto, se a uma lei temporária suceder outra de carácter mais benévolo ou
função pública), tal implicará naturalmente a violação do referido princípio da mesmo de âmbito descriminalizador terão obviamente lugar os princípios já
irretroatividade da lei penal. Maquinações por parte do legislador no sentido de anteriormente estudados. Portanto a questão em causa é simplesmente o problema

70 71
Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

da coexistência de leis temporárias com leis não temporárias. Assim, se, por Problema que aqui naturalmente se pode desde logo colocar diz respeito ao facto
exemplo, alguém comete um furto especialmente punível no decurso de uma lei de a nacionalidade em causa dum interveniente poder ser um obstáculo ou não à
temporária, sucedendo que no julgamento já se encontra em vigor a lei de duração efetivação da justiça penal ao caso, como também o facto de parte da situação (ato
indeterminada, anterior à norma em questão e assim punindo menos severamente de instigação) ter sido realizado num Estado diferente do nosso. Efetivamente,
o arguido, perguntar-se-á então se esta lei em vigor poderá aproveitar ao mesmo encontramo-nos antes de mais perante um problema não substantivo, mas
arguido. A pergunta em causa é na realidade desprovida de sentido. De resto, o adjetivo, especificamente de competência jurisdicional ao nível de Estados.
próprio texto constitucional é omisso quanto a isto, e quanto a nós bem andou Noutros termos, deparamo-nos perante problemas de delimitação do espaço de
neste plano o legislador constitucional. De facto, este tipo de situação não levanta competência destes para julgarem infrações penais. Como esta competência é
qualquer problema em termos de aplicação da lei no tempo, pela simples razão uma consequência da soberania estadual, certamente que esta última questão não
de que não há aqui qualquer conflito de leis. Efetivamente para se poder aplicar poderá ser neste contexto obliterada. O que naturalmente não significa que outros
o regime mais favorável no concurso sucessivo de normas é necessário que haja pontos de vista possam ser atendidos também. Em todo o caso tratar-se-á sempre
lugar a uma mudança de conceção do legislador sobre um mesmo objeto em de discutir critérios ou princípios justificativos da competência estadual para
termos político-criminais (por exemplo, o aborto com o consentimento da mulher julgar factos com relevância penal. Estaremos assim perante uma disciplina que
grávida, anteriormente punível, deixa agora ªe o ser ou o crime de furto simples poderemos designar por direito penal internacional, pondo deste modo a ênfase
é punível com uma pena menor). Ora nada disto tem lugar no domínio em causa. na delimitação do espaço de soberania dos Estados face a relações jurídicas em
Simplesmente o objeto das leis em presença é diferente. A lei temporária versa conexão com estes. Como igualmente poderemos designar (mais modernamente)
sobre um quadro específico de realidades diferente da lei não temporária. Esta este ramo como direito internacional penal, colocando o ponto básico no carácter
última, retomando a sua vigência; não revoga a lei de. carácter temporário, que internacional das relações em causa e tendo também em consideração aspetos
simplesmente caduca (caducou) de per se. Não havendo deste modo identidade de substantivos atinentes à proteção da sociedade internacional.
objetos, não há qualquer conflito de leis, como se referiu e portanto o problema
da aplicação da lei mais favorável é sem qualquer sentido. Neste contexto, a Com semelhanças em relação a esta problemática encontramos também os
afirmação de que a aplicação da lei mais favorável ao agente colocaria em questão casos de relações jurídicas em conexão com vários Estados mas sem relevância
a eficácia da própria lei temporária não adianta nada ao problema em causa. criminal. Situações como aquelas em que há lugar a um casamento num
Como igualmente o disposto no art. 0 2. 0 n. 0 3 do CP não trás nada de novo à determinado Estado, mas em que os nubentes possuem nacionalÍdades diferentes
questão em debate. Sem ele tudo se passaria da mesma forma. Muito menos fará do país da celebração, vindo posteriormente, como casados, a divorciarem-se num
qualquer sentido discutir problemas de pretensa inconstitucionalidade das leis terceiro Estado e detendo bens em países diferentes, podem servir de exemplo
temporárias ... neste domínio. Também aqui se tratará de estabelecer critérios de fixação de
competência jurisdicional dos Estados em conexão com determinada relação
jurídica. O carácter não público (privado) deste tipo de casos constituirá assim o
aspeto mais relevante de distinção em face das relações jurídico-penais. Noutros
7. Âmbito de validade espacial da lei penal termos, dir-se-á que no domínio do direito internacional privado (disciplina
atinente a estas situações) se tratará de atender antes de mais aos interesses das
7.1. O problema. Delimitação conceptual partes das relações em causa em termos de assegurar uma melhor administração
Suponhamos, por exemplo, que alguém de nacionalidade estrangeira comete da justiça. Já no direito internacional penal as razões de escolha de determinada
um homicídio em Portugal a mando de outrem residente fora do nosso país. ordem jurídica radicarão fundamentalmente em aspetos de carácter público.

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

7.2. O sistema de aplicação da lei penal no espaço e os seus de a sua prática ter tido lugar noutro ou noutros Estados, sempre as necessidades
princípios constitutivos de proteção dos valores ético-jurídicos não deixarão de ser particularmente
afirmadas nesse mesmo Estado. De resto, a própria execução de delitos em parte
7.3. O princípio da territorialidade ou totalmente, ainda que neste último caso se trate de crimes formais, de perigo
(abstrato, concreto, etc.), não deixa igualmente de suscitar problemas semelhantes
7.3.1. Aspetos doutrinais (pense-se, antes de mais, no efeito de imitação), justificando deste modo a
Acontecendo um crime num determinado Estado naturalmente que extensão em consideração. Portanto o princípio da territorialidade ou melhor a
esse mesmo Estado ·deterá a competência jurisdicional para promover a sua sua teleologia vai deste modo determinar neste âmbito um conceito lato de lugar
investigação, acusar, julgar e mesmo executar a consequência jurídica decretada. da prática do facto. Efetivamente as necessidades de proteção (prevenção) têm
Tal derivará mediatamente do facto de ser no território estadual aonde se exerce lugar, ainda que de forma não necessariamente igual, sempre que o resultado ou
a soberania de qualquer Estado. Imediatamente, é aí que se fazem sentir antes sequer parte da atividade (por ação ou omissão) tenham lugar num determinado
de mais as necessidades de proteção de bens jurídicos afétàdos pela prática da território. Mais extensivamente ainda dir-se-á que, para além das questões de
infração criminal (necessidade de prevenir efeitos de imitação, assegurar a paz Estado, haverá puras razões de política criminal a justificar este alargamento. Se
jurídica, desde logo). Não admira por isso que o princípio da territorialidade smja os vários Estados optassem por critérios de definição do lugar da prática do facto
como o princípio regra neste âmbito. De facto seria simplesmente insuportável restritivos, tal implicaria a possibilidade de comportamentos fraudulentos, em que
que quaisquer cidadãos e autoridades de um dado Estado devessem assistir os crimes poderiam ser realizados em diferentes Estados sem que tal provocasse
passivamente à realização de crimes por parte de um cidadão estrangeiro a a competência de pelo menos alguns deles (por exemplo, alguém, num Estado
pretexto da inação do Estado desse mesmo cidadão, que se poderia situar mesmo seguidor da teoria do evento ou resultado, praticaria um crime não punível por
nas antípodas do Estado em que os factos ocorreram. A possibilidade assim de via da ausência aí do concreto resultado ou um delinquente realizaria parte da
continuidade de delitos mais ou menos graves (pense-se, por exemplo, na prática conduta de um crime num Estado em que apenas se punisse a ação ou omissão
de atos de terrorismo ou de homicídios) seria naturalmente um fator de óbvio completas e não parciais). Daqui que se tome necessário, neste plano de puro
enfraquecimento da ordem jurídica, com a consequência lógica de os próprios combate à impunidade da criminalidade, que os Estados em geral adotem critérios
nacionais do Estado ofendido se olharem também como potenciais infratores por os mais latos possíveis nesta matéria. Efetivamente o facto de, por exemplo,
via do exemplo observado e da indiferença do poder público em face do sucedido alguém passar, num avião, num determinado Estado com determinada quantidade
ou a suceder. Em casos extremos a ausência de reação poderia mesmo conduzir ao de droga (crime de trânsito) não deverá deixar de ser objeto, desde logo por isto
fim do próprio Estado ... mesmo, de competência por esse mesmo Estado.

Compreende-se por tudo isto que o princípio em causa surja como a trave- Um critério com esta latitude, se, por um lado, assegura a possibilidade de
mestra do edifício a construir neste plano. A própria invocação de razões ligadas punibilidade· de comportamentos criminais, por outro, conduz inevitavelmente a
à prova (sua recolha e tratamento), ainda que seja naturalmente relevante neste conflitos de jurisdições (conflitos positivos). Face a competências paralelas de
domínio, não detém contudo a mesma hierarquia que os argumentos atrás citados. · diferentes Estados, pode deste modo um mesmo indivíduo ser objeto de vários
processos judicias e apesar da sua condenação num deles ser ainda confrontado
Por outro lado, compreende-se igualmente que o princípio em referência com outro ou outros procedimentos penais, sendo-lhe assim difícil encontrar a
implique a sua extensão a factos não de todo acontecidos num mesmo território necessária paz jurídica após a execução da sua condenação. A melhor forma de
estadual. Mormente quando o resultado tiver lugarnum determinado Estado, apesar solucionar adequadamente este tipo de conflitos é através de instrumentos de

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

direito internacional (tratados) em que se preveja o efeito erga omnes do caso da soberania portuguesa e portanto locais territoriais portugueses desde logo para
julgado, mais do que através do direito interno, sempre sujeito a flutuações este efeito, de acordo com o direito internacional vigente.
consoante os respetivos Estados e permanentemente colocado em suspeição (em
relação ao efeito do caso julgado) face às ideias idiossincráticas de defesa de Em consonância com este princípio o art. 0 7. 0 do CP consagra um conceito
bens jurídicos pelos próprios Estados. Algo de resto impeditivo de avanços nesta extensivo de lugar da prática do facto. Assim afirma-se desde logo no seu n. 0 1
matéria em termos de convenções. que " O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente
e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de
omissão, devia ter actuado". Portanto para que os tribunais portugueses sejam
competentes relativamente à prática de uma infração criminal basta que a sua
7.3.2. O direito positivo português execução na totalidade ou em parte tenha acontecido numa parcela do território
português, independentemente da ocorrência do resultado. Deste modo, tratando-
O art. 0 4. 0 do CP estabelece o princípio da territorialidade como princípio-
se de meros crimes de resultado, bastará que os atos idóneos à produção deste
regra do nosso ordenamento jurídico na sua al. a). Assim, afirma-se que, salvo
mesmo resultado tenham ocorrido no nosso território (por exemplo, A envia uma
tratado ou convenção internacional em contrário (algo desnecessário por via da
carta armadilhada em solo lusitano para B que se encontra em Espanha ou manda
superioridade hierárquica destas fontes de lei), a lei penal portuguesa é aplicável a
um email injurioso para C que se encontra na Nova Zelândia). Se se tratar de
factos praticados em território português, independentemente da nacionalidade do
tentativa, bastará naturalmente que parte dos factos tenham tido lugar em solo
agente. A clareza das expressões utilizadas não deixa qualquer dúvida ao intérprete
português, posto que haja a necessária unidade dos mesmos de modo a não serem
sobre o seu sentido interpretativo. Por outro lado, as razões atrás referidas
considerados como meros atos preparatórios (por exemplo, A será punido por
justificam plenamente esta opção realizada. Por território português deve-se antes
tentativa, caso conduza o seu carro em território português para o fazer explodir
de mais tomar em consideração o texto constitucional, art. 0 5. 0 e ainda demais
em Espanha junto à fronteira portuguesa, o que não consegue por intervenção
legislação que nesta matéria rege em consonância com este dispositivo e que
das próprias autoridades portuguesas em solo pátrio, quando este se encontrava
seria aqui ocioso referir. Por outro lado, na al. b) do preceito em causa, estende-
próximo do lugar da efetivação da explosão, diferentemente da mera compra
se o território português aos navios ou aeronaves portuguesas, algo que poderá
dos mesmos com vista à sua posterior utilização, que em princípio constituirá
provocar imensos conflitos de jurisdição, acontecendo os factos criminais em
um simples ato preparatório). Estes últimos, (atos preparatórios), se forem
espaço aéreo ou mar territorial estrangeiros no decurso de viagens ou em portos
considerados como crimes, caso sejam praticados em solo português, determinam
ou aeroportos mas nos respetivos meios de transportes referidos. Expressando a
naturalmente a competência do Estado português. Relativamente a crimes formais,
necessidade de prevenir atos (entre os quais os crimes previstos no seu art. 0 4. 0 )
bastará que também aqui parte dos atos tenham tido lugar em solo português
provenientes de "passageiros desordeiros" (art. 0 1. 0 ), o Decreto-Lei n. 0 254/2003
(por exemplo, a condução de veículo nos termos do art. 0 292. 0 do CP, Condução
de 18 de Outubro permite a competência do Estado português nestes casos e nos
de veiculo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou
termos do seu art. 0 5. 02 Embaixadas, consulados são também espaços de exercício substâncias psicotrópicas, pode ser realizada em parte no território português),
conquanto que os mesmos integrem de per se a descrição típica. Por outro lado,
2
"Extensão da competência territorial" em caso de omissão, bastará que o agente portador de um dever de agir (dever
Salvo tratado ou convenção internacional em contrário,a lei portuguesa é aplicável às infracções
previstas nos artigos 4° e 5° quando cometidas:
b) A bordo de aeronave civil registada noutro Estado, em voo comercial fora do espaço aéreo na-
a) A bordo de aeronave alugada, com ou sem tripulação, a um operador que tenha a sua sede em cional, se o local de aterragem seguinte for em território português e o comandante da aeronave
território português; entregar o presumível infractor às autoridades portuguesas competentes.

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

de garante) se encontre em solo português, mantendo-se aqui o dever de agir citado). Encontrando-nos assim perante um caso expressivo da figura mais geral
acompanhado dos demais requisitos inerentes a este tipo de crimes. Em caso de dos crimes agravados pelo resultado (art. 0 18. 0 do CP português), tal implica
comparticipação, é apenas necessário que os meros atos de cumplicidade tenham logicamente uma relação material entre o resultado verificado e as condutas que
sido realizados em Portugal para que imediatamente os tribunais portugueses o determinaram. A própria agravação da pena, no art. 0 285. 0 isto mesmo reflete.
possam conhecer de toda a infração cometida. Por maioria de razão, a prática de Assim, sem o preceito extensivo em causa, apenas seria possível considerar o
atos de instigação, autoria mediata ou coautoria, em solo português, implicam "resultado típico" (art. 0 7. 0 n. 0 1 in fine), ou seja, o homicídio negligente. O n. 0 2
igualmente a competência dos tribunais portugueses. No que se refere aos do art. 0 em causa refere que em caso de tentativa o facto se considera igualmente
designados crimes em trânsito (por exemplo, um navio estrangeiro proveniente praticado no lugar (Portugal para o que agora nos interessa) em que de acordo
de um Estado estrangeiro transporta droga em águas nacionais com destino a um com a representação do agente o resultado se deveria ter produzido. Deste modo
outro Estado), se o comportamento em causa tiver autonomia para de per se ser se A armadilha uma carta em território estrangeiro e a manda para Portugal, com
objeto de incriminação (pense-se em atos formais ou preparatórios de carácter a finalidade de aqui lesar um seu destinatário, ainda que tal resultado não tenha
contínuo, como, por exemplo, "deter algo", crimes omissivos, crime continuado, lugar, por, por exemplo, o mecanismo não ter funcionado de acordo com o plano
etc.), nada impedirá que a jurisdição portuguesa tenha plena competência para elaborado, nem por isso poderemos negar a competência do Estado português, a
dos mesmos se ocupar. Em caso contrário, não haverá naturalmente competência, representação do agente implicava indubitavelmente que o resultado se efetivasse
se, por exemplo, A, proveniente da Guiana Francesa, circula pelo espaço aéreo em Portugal. Problema que com este critério se pode colocar diz respeito à questão
português, visando posteriormente matar um cidadão que vive na Nova Zelândia, do erro sobre o objeto. A quer matar B, que julga encontrar-se em Itália quando
não sendo este ato ainda uma tentativa, naturalmente que os tribunais portugueses se encontra em Portugal. Neste caso o nosso país é incompetente, à luz deste
não poderão ser competentes para julgar uma conduta não punível - a própria princípio, para se debruçar sobre o caso. Só se tiver lugar uma segunda tentativa,
noção de crime em trânsito será deste modo questionável. Igualmente, se o agora já esclarecida é que a competência terá lugar. O facto de se ter descoberto
resultado da conduta criminal apenas se tiver verificado no nosso país, tal implicará o erro é para este efeito irrelevante. Deste modo, apercebendo-se o agente da sua
desde logo a competência dos tribunais portugueses para julgar da totalidade da confusão, nada o impede em princípio de eventualmente se deslocar ao nosso país
infração criminal, nos termos da última parte do n. 0 1 do art. 0 7. 0 em referência. para aqui concretizar o seu desígnio inicial. Tal não deixa de constituir uma grave
Questão que aqui se poderá colocar diz respeito à possibilidade de o resultado lacuna do sistema jurídico português. Importaria portanto que se estabelecesse
em causa não for "compreendido no tipo de crime" (idem). O dispositivo em uma regra para este tipo de situações.
análise estende também aqui a competência do Estado português. Resta portanto
identificar o sentido desta expressão. Suponhamos então que alguém em território
espanhol provoca uma explosão, colocando em perigo vidas e a integridade física
7.4. O princípio realista ou da defesa de interesses nacionais
de pessoas neste Estado, acabando por na zona fronteiriça, da parte portuguesa,
ter sido morto em consequência disso um cidadão português que na altura por ali 7.4.1. Considerações gerais
passava. À luz do art. 0 272. 0 n. 0 1 a!. b) do CP português (supondo a sua aplicação
ao caso), o tipo legal ficou consumado em território castelhano. No entanto, por Compreende-se que para além do princípio da territorialidade também tenha
efeito deste delito teve lugar no território português um resultado que não faz lugar um princípio de defesa de interesses nacionais relativamente a factos que
(formalmente) parte do tipo legal em causa (cf. art. 0 285. 0 do CP português), que tenham ocorrido fora do espaço territorial português. E isto terá sentido se se
se contenta com uma simples relação de perigo concreto ("e criar deste modo entender que não se trata de meros interesses de um qualquer Estado mas de
perigo para a vida ou integridade física de outrem ... ", n. 0 1 do art. 0 272. 0 supra interesses particularmente importantes. Efetivamente, se alguém no estrangeiro

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Direito Penal I
Fernando Conde Monteiro

atenta contra a segurança de um determinado Estado, visa realizar atos de justifiquem tal extensão? De resto, tirando a situação da al. b) do seu n. 0 5 (no caso
terrorismo nesse mesmo Estado, procura destruir as suas instituições financeiras, de "valor consideravelmente elevado"), em que a pena se pode elevar até 8 anos, as
etc., obviamente que uma reação do Estado objeto de tais condutas é naturalmente restantes previsões situam-se todas na faixa da média criminalidade (o máximo da
compreensível independentemente do lugar em que estas possam ter ocorrido. pena não vai além dos 5 anos nos termos da al. a) do referido n. 0 5). Por fim, pode
Nesta perspetiva, dir-se-á que as eventuais dificuldades relativas à prova e que mesmo acontecer que a restituição ou reparação tenham também aqui lugar por
o relativo enfraquecimento das necessidades de prevenção (positiva, negativa) via do seu n. 0 6. Uma interpretação restritiva, que apenas considerasse a aplicação
derivadas do facto do acontecimento ter tido lugar fora do território nacional deste tipo legal a casos em que estivesse em causa o Estado português no papel de
poderão ser de certa maneira compensadas pela importância das condutas vítima, para além de não ter suporte literal contrariamente ao que se passa noutras
realizadas e desde logo no plano dos interesses postos em causa e face à inércia alíneas do art. 0 5. 0 (infra), entra em colisão com outros tipos de crime em que
ou impossibilidade do Estado local intervir. Noutros termos, serão por isso ainda expressamente tal está previsto (casos entre outros do artigos. 268. 0 n. 0 1, 308. 0 ,
necessidades de prevenção geral positivas e negativas a justificar a perseguição 318. 0 do CP). Portanto do que se trata aqui é tão só de proteger interesses de âmbito
deste tipo de condutas, sem que naturalmente se possam simplesmente menosprezar geral, considerados de tal importância internacional que justificam mesmo uma
considerações de carácter de prevenção especial. A definição dos interesses em interferência do Estado português em factos completamente fora da sua jurisdição
causa será naturalmente algo a ser realizada pelos Estados de per se. Se aspetos e por isso mesmo de pouca plausibilidade em termos da sua concreta execução -
ligados à segurança do mesmo serão incontestáveis, poder-se-á desde logo aqui se já no nosso país se toma difícil a perseguição de numerosos delitos quanto mais
discutir a sua maior ou menor extensão, o mesmo podendo naturalmente suceder nos outros Estados ... Na prática e na melhor das hipóteses, só quando se tratar
relativamente a aspetos económicos (circulação da moeda, falsificação da mesma, de factos que coloquem em causa interesses nacionais é que tal preceito poderá
etc.). Questões idiossincráticas far-se-ão inevitavelmente sentir. .. ter efetivamente lugar. .. O que aqui se deixou dito relativamente a este artigo
analisado pode ser referido relativamente mutatis mutandis aos artigos. 262. o a
271. 0 logo a seguir mencionados neste mesmo art. 0 5. 0 Efetivamente, à parte dos
arts. 266. 0 e 269. 0 n. 0 2 in fine, em que mal se percebe como é que estes crimes
7.4.2. direito positivo português possam ser cometidos fora do território português, quando se trate de "por outro
modo introduzir em território português" moeda (definida nos termos das alíneas
O art. 0 5. 0 n. 0 1 estende a aplicabilidade da lei penal portuguesa a factos
do n. 0 1 do art. 266. 0 ) ou os objetos previstos no n. 0 1 do art. 0 269. 0 , só totalmente
praticados fora do território português (ressalvando a existência de disposições
o art. 0 268.° Contrafacção de valores selados diz diretamente respeito a interesses
de direito internacional convencional), no caso desde logo da al. a) deste preceito:
0 do Estado português. Nas restantes situações, tal pode ou não ter lugar. No âmbito
crimes previstos nos artigos 221. 0 , 262. 0 a 271. 0 , 308. 0 a 321. 0 e 325. 0 a 345. do
dos artigos 308. 0 a 321. 0 , há a considerar desde logo a situação caricata de se fazer
CP. Numa primeira análise parecerá e desde logo tendo em conta a identidade de
uma remissão para artigos revogados pela Lei 100/2003 de 15-11 (artigos 309. 0 a
regime aqui previsto que todos estes tipos legais de crime se enquadrariam dentro
315. 0 ). Depois há ainda os surpreendentes casos dos artigos 320. 0 e 321. 0 , onde o
deste mesmo princípio. Uma análise mais detalhada desmente esta impressão. De
seu decurso é realizado forçosamente em "território português". Temos de facto
facto, se olharmos para o primeiro destes preceitos (art. 0 221. 0 - Burla informática
grande dificuldade em perceber como podem estes tipos legais de crime serem ao
e nas comunicações), damo-nos conta que o seu conteúdo nada tem que ver com
mesmo tempo realizados fora do território nacional. .. Os restantes normativos
quaisquer interesses específicos do Estado português. Fica-se mesmo sem saber do
(308. 0 e 316. 0 a 319. 0 ) são efetivamente casos genuínos do princípio em causa.
porquê da sua punição fora do território nacional. Se um facto que caiba neste tipo
Já no que toca aos artigos 325. 0 a 345. 0 , a primeira nota a tomar em consideração
legal for cometido na China entre chineses, porque carga de água é que Portugal
tem que ver com a referência ao art. 0 345. 0 que apenas prevê a atenuação especial
dele se deverá ocupar? Que interesses particulares estarão aqui em causa que

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em caso de diminuição considerável do perigo por parte do respetivo agente em mesmo recomendável por se tratar de crimes que colocam em causa diretamente a
crimes desta natureza (de perigo). Portanto este normativo nada tem que ver com segurança do Estado português. Já nos casos dos artigos 3. 0 (Outras organizações
a extensão da competência dos tribunais portugueses, não se trata sequer de um terroristas) e 5. 0 (Terrorismo internacional) pune-se a existência de associações
tipo legal de crime. Está assim a mais. De resto, nem se entende, ainda que se terroristas com um âmbito internacional, não circunscritas ao Estado português e
aceitasse a sua inclusão, que se excluísse o art. 0 vizinho (346. 0 penas acessórias). atos de terrorismo com idênticas características, tendo assim pleno sentido a sua
Deste modo, apenas se deverá ter em consideração os artigos em causa até ao exclusão do princípio em causa em favor de um princípio de defesa da sociedade
art. 0 344. 0 (Actos preparatórios), "excluindo-se" assim o art. 0 345. 0 A segunda internacional (art. 0 8. 0 n. 0 1 al. b) do citado diploma).
nota diz respeito ao diferente conteúdo destes tipos de crime. Efetivamente se
há desde logo um núcleo de crimes facilmente identificáveis com a segurança do
Estado português, algo presente desde logo com as múltiplas referências a órgãos
constitucionais (Presidente da República, artigos 327. 0 e 328. 0 ), em geral (artigos 7.5. O princípio da defesa de interesses internacionais ou
333. 0 , 334. 0 ), ao Estado de direito (artigos 325. 0 , 326. 0 , 329. 0 , 330. 0 , 331. 0 ), a princípio universalista
símbolos nacionais e regionais (art. 0 332. 0 ) e onde se torna igualmente patente
7.5.1. Aspetos gerais
pelo conteúdo dos ilícitos em causa: Alteração violenta do Estado de direito (art. 0
325 .0 ), Incitamento à guerra civil ou à alteração violenta do Estado de direito (art. o O princípio em causa ocupa-se como a sua designação deixa antever da tutela
326. 0 ) , Atentado contra Presidente da República (art. 0 327 .0 ), etc.; um outro núcleo de interesses da coletividade internacional no seu todo. Nesta medida e por regra
de bens sobressai neste âmbito, o dos atinentes aos crimes eleitorais (artigos. 336. 0 a sua proteção deveria ser prioritariamente realizada pela sociedade internacional,
a 344. 0 ), cuja viabilidade prática é deveras pouco plausível. Entre estes valores nomeadamente pelo Tribunal Penal Internacional. No entanto e em certa medida
aparece igualmente o art. 0 335. 0 (Tráfico de influência), sabe-se lá porquê ... 3 Aqui de forma paradoxal tal não acontece. Efetivamente a competência deste tribunal
o que se encontra em causa é o assegurar da liberdade de ação dos entes públicos. é subsidiária relativamente à ordem jurídica dos países que ratificaram o seu
Se o combate à corrupção (encarada esta latamente) deve ser uma prioridade tratado constitutivo. Razões atinentes à fragilidade da própria ordem jurídica
do Estado português, não se compreende esta limitação ao crime em causa. Ao internacional isto mesmo justificam. De qualquer maneira a tutela pelas ordens
invés faria mais sentido que se alargasse o seu âmbito normativo. De qualquer estaduais não deverá ser afirmada de forma omnipresente, sob pena de criação de
maneira, não há lugar a uma ampla formulação, deixando-se apenas espaço para óbvios conflitos de jurisdição positivos. Noutros termos, caberá em princípio ao
uma aplicação tout court do mesmo independentemente dos Estados ofendidos. Estado em que os factos tiverem acontecido o julgamento dos mesmos. Terceiros
Obviamente que, para além disto, o preceito aqui em causa só ganha efetivo países deverão intervir assim de forma subsidiária, como parece ser óbvio.
sentido prático relativamente a atos atinentes ao Estado português. Legislação
específica tem também aqui lugar. Desde logo há a considerar a Lei 52/2003 de 22
de Agosto (Lei de combate ao terrorismo), onde no seu art. 0 8. 0 n. 0 1 al. a) manda
7.5.2. O direito positivo português
que no âmbito dos seus artigos 2. 0 (Organizações terroristas) e 4. 0 (Terrorismo)
se aplique a lei penal portuguesa ainda que fora do território português, a menos Salvo naturalmente convenções ou tratados em sentido contrário (n. 0 1 do
que haja direito convencional em sentido contrário. Algo perfeitamente aceitável e 0
art. 5. 0 ) a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos criminais quando estes
constituírem os crimes previstos nos artigos 144. 0 -A, 154. 0 -B e 154. 0 -C, 159. 0 a
0
3
Cf. o n. 4 do art. 0 368- A (Branqueamento) onde se prevê a sua punição independentemente do 161. , 171. 0 , 172. 0 , 175. 0 , 176. 0 e 278. 0 a 280. 0 , al. c) do n. 0 1 do artigo em referência.
lugar ou da identidade dos seus autores (?). Igualmente aos casos previstos na al. d) deste preceito (144. 0 , 163. 0 e 164. 0 , sendo
82
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0
a vítima menor).Trata-se aqui antes de mais da tutela de valores humanos (arts. 159. relativamente ao princípio em causa. Paralelamente no seu art. 0 5. 0 (Aplicação
a 161. 0 ) universais com uma tradição histórica facilmente reconhecível, ligada à luta no espaço: factos praticados fora do território português), estabeleceu-se a
contra a escravidão. Por outro lado, a emergência dos crimes sexuais (atente-se agora aplicabilidade da lei penal portuguesa aos factos previstos nesta lei (incluindo os
à novidade da presença dos artigos 144. 0 -A, 154. 0 -B e 154. 0 -C) também relativos a citados tipos legais de crime) ainda que fora do território nacional, "desde que o
0 0 0
menores neste último caso fez despoletar as normas dos artigos 171. , 172. , 175. agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou seja decidida a
0 0
e 176. 0 , ficando por outro lado por explicar a ausência do art. 174. (Recurso à sua não entrega ao Tribunal Penal Internacional." (n. 0 1), ao mesmo tempo que se
prostituição de menores), ou seja, dá-se competência aos tribunais portugueses para excluiu a aplicabilidade do disposto no n. 0 2 do art. 0 6. 0 do CP. (n. 0 2).
0 0
julgarem uma forma lateral de comparticipação neste delito (art. 175. Lenocínio
de menores) e não o delito fundamental. Algo que continua a parecer estranho Os pressupostos de funcionamento deste princípio, para além da presença
também em comparação com o art. 0 176. 0 (Pornografia de menores), onde situações dos tipos legais de crime, implicam, nos termos do art. 0 5. 0 als. c) e d) do CP,
0
semelhantes e nalguns casos de menor gravidade das do art. 174. justificaram a
0
que se encontre em Portugal o agente, este não possa ser extraditado ou entregue
sua chamada à colação em prejuízo deste último normativo. A referência aos artigos por via de execução de mandato de detenção europeu ou de outro instrumento de
278. 0 a 280. 0 merece desde já algumas críticas. Por um lado, aditou-se um novo tipo cooperação internacional vinculante para o Estado português (caso, por exemplo,
legal (art. 0 278. 0 -A Violação de regras urbanísticas, acompanhado do art. 278. -
0 0
do Tribunal Penal Internacional, como acontece no supra citado art. 0 5. 0 n. 0 1
B, referente à dispensa ou atenuação da pena). Como é óbvio este novo tipo legal da Lei 31/2004). Ser encontrado em Portugal, em termos puramente literais,
não se deve integrar no âmbito em questão. Trata-se simplesmente de um lapso do significa ser achado casualmente (cf n. 0 S 1, 3, 4, 5, 6, 10, 11, 14, do vocábulo
legislador, que criando o tipo penal em causa não se deu ao trabalho de mexer no "encontrar", do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das
art. 0 5. 0 , por outro lado, mal se compreende que se tenha estabelecido a competência Ciências de Lisboa, Verbo, 2001). Se o Estado português pede a sua extradição e
do Estado português relativamente a danos contra a natureza e poluição e se tenha em consequência disso o "encontra", isto não é ser encontrado, é ser extraditado,
esquecido de tipos penais tão importantes como o de Perigo relativo a animais ou levado, buscado, entregue, detido e enviado posteriormente para solo português.
0
vegetais (art. 0 281. 0 ), Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais (art. Deve-se tomar em consideração que neste âmbito se trata de factos ocorridos fora
0 0 0
282. 0 ) e no que toca à difusão de doença, o art. 283. n. 1 al. a), n. S 2 e 3. De
0
do território nacional, não justificando, por outro lado, uma competência sem
referir ainda nos termos do disposto no art. 0 3. 0 al. a) da Lei 20/2008 de 21 de Abril mais do Estado português (competência primária), como sucede de certo modo
a aplicabilidade da lei penal portuguesa, de acordo com este princípio, ao crime de no âmbito do princípio realista. Se alguém cometeu um ato de genocídio fora do
0 0
Corrupção ativa com prejuízo do comércio internacional (art. 7. do diploma em território português, será naturalmente o Estado em que os factos ocorreram que
causa), bastando para tal que os agentes sejam encontrados em território nacionaL em primeira linha terá competência para proceder ao seu julgamento. Se tal por
Ainda neste âmbito, merece uma referência importante o facto de Portugal ter qualquer motivo não tiver lugar, caberá desde logo ao Tribunal Penal Internacional,
aderido ao Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal InternacionaL Tal implicou dentro dos limites da sua competência, intervir. Se isso não tiver lugar ou não
a mudança da epígrafe do Título III do Livro II do CP, que de "Crimes contra a puder ter lugar e outra forma internacional de intervenção não poder efetivar-se,
paz e humanidade" passou para o título "Dos crimes contra a identidade cultural e então, dar a um simples Estado a competência para julgar o facto pode constituir
integridade pessoaL", ao mesmo tempo que se alterou a sua redação, suprimindo-se motivo de realização dos interesses em causa. Doutra forma, tal poderá constituir
0
alguns dos seus tipos legais de crime. Tal teve lugar por via da Lei n. 31/2004, de sem mais a realização de fins eventualmente não de todo confessáveis. Já em larga
0
22 de Julho. Nesta foram tipificados toda uma série de crimes (Genocídio, art. 8. ,
0
medida as coisas se passarão diferentemente se por qualquer acaso o agente estiver
0
Crimes contra a humanidade, art. 9. , Crimes de guerra contra as pessoas, art.
0 0
em solo português. Mas de notar também aqui que mesmo assim a competência
10. 0 , etc.), que se configuram realmente como os tipos de legais de maior expressão nacional é subsidiária relativamente a um eventual pedido de extradição ou da

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

execução de outro instrumento de cooperação internacional. Em conclusão, por será naturalmente mais fácil provar a sua existência). Noutros termos, a sua
via do significado literal do vocábulo em causa, dos perigos derivados de uma razão de ser repousa acima de tudo no princípio da não extradição de nacionais,
interpretação desrespeitadora deste mesmo elemento, por razões ainda sistemáticas tomando assim o Estado da nacionalidade em possível covil de delinquentes. Na
0 0
(comparando com o disposto na al. a) do n. 0 1 do art. 5. do CP), entendemos tensão entre a desconfiança relativamente ao Estado estrangeiro e a impunidade
que "seja encontrado" implica somente encontrar alguém, que casualmente, se do delinquente nacional foragido, a solução de compromisso de julgar este por
encontre em território português. Saber se alguém deve ou não ser extraditado factos acontecidos exteriormente acaba por ser a única solução possível. Também
0
ou entregue é algo que depende antes de mais da Constituição portuguesa (art. se pode atualmente compreender o acentuar do ceticismo face a este princípio.
33. 0 n. 0 s 1, 3, 4, 5, 6, 7), também do direito convencional (tratados bilaterais, Efetivamente com o alargamento da democracia a cada vez mais Estados e da
multilaterais, como neste último caso a Convenção Europeia de Extradição ),ainda consequente garantia de efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana,
neste âmbito dever-se-á tomar em consideração A Lei de Cooperação Judiciária menos razões haverá para se manter o princípio da não extradição de nacionais e
0
Internacional em Matéria Penal (Lei n. 144/99, de 31 de Agosto). assim estreitar o âmbito deste princípio. Por outro lado, também se tem defendido
a existência deste princípio na versão de defesa de nacionais, ou seja, no plano
passivo. Aqui trata-se fundamentalmente de assegurar a defesa de nacionais face
a crimes de que estes tenham sido vítimas. Algo que se apresenta com contornos
7.6. O princípio da nacionalidade aparentemente estranhos, particularmente no que toca a nacionais (agentes do
crime), que naturalmente podendo ser extraditados a partir do país da prática dos
7.6.1. Aspetos doutrinais factos ou aí sendo julgados se o facto for também nesse lugar punível, vão esperar
O ponto de partida do princípio da nacionalidade tem que ver antes de mais pela sua vinda ao Estado da vítima para aqui se fazer o correspondente "ajuste de
com a ligação de um agente de um crime ao seu Estado nacional (princípio da contas".
nacionalidade ativa). Se alguém cometeu um crime fora do espaço territorial do seu
Estado mas lesando de algum modo esse mesmo Estado (ainda que indiretamente),
deverá em consequência disso ser julgado pela prática da sua infração. A 7.6.2. O direito positivo português
fidelidade aos valores e bens jurídicos protegidos no seu estado nacional é aqui
considerado como o aspeto mais relevante. No entanto, o princípio em causa, O princípio em causa diz antes de mais respeito à al. e) do n. 0 1 do art. 0
0
com esta formulação singela, não resiste a algumas críticas fundamentais. Por um 5. do CP., também se expressa nas als. b) e g) do mesmo preceito. Na primeira
lado, fica-se sem compreender porque é que alguém deverá ser julgado por um ato destas alíneas consagra-se o princípio em causa nas suas duas modalidades, ativa,
que seja lícito no local onde foi efetivado e onde as finalidades de prevenção são ("Por portugueses") e passiva, ("por estrangeiros contra portugueses"). Para que
aí inexistentes. Por outro lado, mal se concebe que alguém possa ser extraditado Portugal seja competente é necessário o preenchimento de três requisitos inseridos
para o seu país de origem a pretexto da prática de condutas lícitas no país onde nos três parágrafos em que se compõe esta alínea. O primeiro destes requisitos tem
ocorreram. De resto, constituindo aí crime será naturalmente nesse mesmo local que ver com o facto de o agente ou agentes terem sido encontrados em Portugal
que antes de mais deveria ser julgado o respetivo agente, por, como anteriormente (§ i). Como anteriormente referimos "forem encontrados" não é sinónimo de se
referimos, ter sido nesse local exatamente que mais fortemente as necessidades efetivar um pedido de extradição ou entrega e assim se "encontrar" os agentes em
de prevenção (nomeadamente geral) se fizeram sentir. Deste modo, o princípio território português. As razões anteriormente referidas servirão também agora de
em causa acaba naturalmente por se revelar com uma acentuada subaltemidade fundamento para este nosso posicionamento. Portanto para que este princípio aqui
e não apenas por razões de natureza probatória (no local da prática do crime funcione é necessário que o agente seja encontrado em Portugal pela simples razão

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

de aqui se encontrar, por motivos de férias, emprego, residência, etc. No parágrafo de perseguir criminosos do que propriamente uma luta político-criminalmente
segundo(§ ii), faz-se depender a aplicação da lei penal portuguesa da punibilidade fundada de perseguição penal. Por outro lado, a consideração de que as vítimas
do facto também pela lei do lugar onde este teve lugar. Desta forma, evita-se a sejam portuguesas restringe naturalmente a sua aplicabilidade (dificilmente o
situação político-criminalmente, no mínimo pouco curial, de se punir alguém por crime de aborto poderia, pode ser perseguido por esta via).
condutas lícitas no local de decurso das mesmas. Finalmente excecíona-se o caso
de "nesse lugar não se exercer poder punitivo." Algo que no plano prático se toma A al. g) do preceito em causa faz igualmente aplicar a lei penal portuguesa
difícil de acontecer, mas que tendo lugar não impede que a lei penal se possa a factos acontecidos fora do território nacional desde que praticados por pessoa
aplicar. O terceiro requisito (§ iii) diz respeito há impossibilidade de extradição, coletiva que tenha sede em território português (princípio da nacionalidade ativa)
não entrega do agente em execução de mandato de detenção europeu ou de outro ou contra a mesma em idênticas condições (princípio da nacionalidade passiva).
instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado português. O que Nestes casos é indiferente que os factos sejam ou não puníveis no lugar da sua
se deixou anteriormente referido aplica-se também aqui. É assim sabido que a prática. Assim, por exemplo, uma sucursal de uma pessoa coletiva (em seu nome)
Constituição portuguesa proíbe a extradição de nacionais nos termos do seu art. 0 realiza um ato lícito no país em que se situa, no âmbito económico, afixando um
33. 0 , como já fizemos menção. O direito convencional tem naturalmente uma preço de um determinado artigo que se destine à venda por um preço superior ao
palavra fundamental neste âmbito, mormente no que respeita ao direito da união regime legal a que esteja submetido em Portugal (art. 0 35. 0 n. 0 1 al. a) do Decreto-
europeia (mandato de detenção europeu, Lei n. 0 65/2003 de 23 de Agosto), algo lei n. 0 24/84 de 20 de Janeiro), deste modo e a priori haverá competência dos
de resto acautelado pelo legislador constitucional no n. 0 5 do art. 0 33. 0 da CRP. tribunais portugueses para o julgarem, relativamente à pessoa coletíva, mas já não
Importante neste plano é, como também anteriormente notámos, a consideração aos seus agentes de "carne e osso" por via disposto na al. e) ou eventualmente
da Lei de cooperação judiciária, especialmente os seus arts. 6. 0 a 10. 0 ., 16. 0 a 18. 0 , por não se aplicar a al. b) do preceito em causa (?). Qualquer que seja a decisão
31. 0 a 35. 0 a tomar neste caso ou em casos semelhantes (por exemplo, abate clandestino,
ofensa à reputação económica, etc.), por via teleológica, da culpa, etc., resulta
O princípio em análise aplica-se igualmente nos termos da al. b) do art. 0 em a nosso ver incompreensível o sentido desta disposição, que assim aparece sem
referência, art. 0 5. 0 do CP, ("Contra portugueses, por portugueses que viverem mais. Algo que ainda faz menos sentido do ponto de vista passivo. Efetivamente
habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados."). que significado tem julgar um cidadão estrangeiro ou nacional que realize um ato
Trata-se assim de crimes cometidos fora do território português, contra portugueses lícito no estrangeiro, simplesmente com base na nacionalidade da vítima (sede
e cometidos igualmente por nacionais, que vivam em Portugal ao tempo da sua da pessoa coletiva), quando se se tratar de pessoa física tal não possa acontecer?
prática e portanto os tenham cometido em situações de provisoriedade no que Porque é que uma pessoa coletiva deve valer mais do que uma pessoa individual?
respeita ao seu domicílio. A ausência de punibilidade da conduta no lugar da Certamente que se poderá responder afirmando que também esta é sem mais
prática do facto toma desde logo este preceito altamente suspeito. Efetivamente o punível diferentemente dos entes humanos, no entanto, está-se deste modo a
argumento invocado de que se trata aqui de prevenir fraudes à lei (por exemplo, justificar duas vezes o injustificável. Naturalmente que a criminalidade organizada
citou-se nas sessões da Comissão Revisora do Código Penal, projeto primitivo, o constitui uma questão muito importante à escala mundial, mas obviamente que os
caso do aborto e da bigamia) não colhe na realidade. De facto, numa matéria como meios de a controlar não passam seguramente por estas disposições de natureza
a do direito penal, onde existem desde logo áreas consensuais de punibilidade com esquizofrénica.
larga expressão mundial, procurar-se punir a todo o custo, para além das fronteiras
do respetivo Estado, crimes específicos desse mesmo Estado, mais parece
constituir uma forma de idiossincrasia mais ou menos histérica do respetivo país

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

7.7. O princípio da administração supletiva da lei penal em 7.8. O princípio do direito convencional
casos de omissão do ius puniendi
7.8.1. Generalidades
7.7.1. Aspectos doutrinais
Com o desenvolvimento das relações internacionais dentro da crescente
O princípio da não extradição de cidadãos, seja por via da sua nacionalidade globalização das nossas sociedades naturalmente que as questões da aplicação
ou de outro qualquer motivo (razões humanitárias nomeadamente), pode conduzir da lei penal no espaço ganharam progressiva importância, a que igualmente não
a situações intoleráveis em termos político-criminais. Se alguém, por exemplo, é alheio o próprio desenvolvimento, fruto desta globalização, da criminalidade
cometeu um crime num determinado Estado, punível com a pena de morte e por internacional. Não admira por isso que cada vez mais tenham lugar convenções não
via disso se refugiou num outro Estado em que se preveja a não extradição de apenas bilaterais mas de carácter multilateral, como, por exemplo, a Convenção
cidadãos em situações deste teor, naturalmente que não sendo previsto no Estado de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua
objeto do pedido de extradição ou de qualquer outro pedido semelhante, que o Portuguesa. Deste modo, compreende-se a crescente importância deste direito no
delinquente em causa seja julgado, tal constitui uma forma de refúgio de arguidos relacionamento a este nível.
ou condenados, particularmente em crimes mais graves. Precisamente para evitar
a impunidade de agentes de crimes, algo que já sabemos constituir uma regra
fundamental na aplicação da lei penal no espaço, é que tem lugar este princípio.
7.8.2. Direito positivo português
O n. 0 S 1 do art. 0 5. 0 refere-se expressamente ao direito convencional
7.7.2. Direito positivo português salvaguardando este quando em contradição com os princípios e regras inerentes
a este artigo. Bastaria este número para se salvaguardar esta fonte no contexto
0
A ai. f) do n. 1 do art. 0 5. 0 consagra o princípio da administração supletiva em causa, embora naturalmente o direito convencional se sobreponha ao direito
da lei penal portuguesa tratando-se de factos ocorridos no estrangeiro, por interno português. De qualquer maneira o legislador entendeu por bem no n. 0 2
estrangeiros, se forem encontrados em Portugal, tenha sido requerida a sua deste mesmo artigo salvaguardar novamente esta fonte jurídica no caso da sua
extradição ou entrega, os crimes admitam a extradição e esta ou a entrega aplicação extraterritorial.
não possam ser concedidas. Era uma lacuna existente até ao surgimento deste
normativo, visando assim evitar que o nosso país se pudesse tomar num covil
apetecido de delinquentes mais ou menos perigosos (algo que por vezes tem lugar
7.9. Restrições à aplicação da lei penal portuguesa. O direito
em função da eventual brandura do nosso sistema em comparação com outros
positivo português
sistemas jurídicos e de que a comunicação social se faz de vez enquanto eco).
O art. o 6. o n. o 1 do CP faz aplicar a lei penal portuguesa a factos ocorridos fora
do território nacional na hipótese de o agente não ter sido julgado pela lei local ou
se ter subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação. Tal significa que
em todo o caso a aplicação da nossa lei é subsidiária face à lei local. O efeito de
caso julgado é aqui assim pleno se absolutório ou tendo havido cumprimento total
da pena, já não no mero cumprimento parcial da pena ou simples incumprimento.

90 91
Fernando Conde Monteiro

Portanto se o agente não tiver sido julgado ou não tiver cumprido totalmente
a sua pena, deverá ser aplicada a lei penal mais favorável, eventualmente a lei
local se for esse o caso (n. 0 2). A última parte deste n. 0 prevê a possibilidade de
funcionamento do instituto do desconto, também previsto no art. 0 82. 0 do CP. As
únicas exceções a este n. o serão os casos das alíneas a) e b) do art. o 5. o

Se o facto for parcialmente praticado em território português, sempre, nos


termos deste artigo e a contrario sensu, a lei penal portuguesa se aplicará e para
além do caso julgado que tenha lugar em país estrangeiro. Algo não absolutamente
líquido, quer num plano constitucional, quer no domínio do direito convencional.

92
1. A teoria geral da infração penal

1.1. Introdução

Rejeitado que foi o modelo terapêutico, centralizado na pessoa do delinquente/


paciente, como modelo de intervenção no âmbito do crime, a alternativa que
fica, que ficou foi naturalmente a de um direito penal do facto. Portanto, sem
facto punível (princípio da legalidade), 4 não pode haver direito penal - o facto
é assim ponto de partida e em larga medida limite da intervenção jurídico-penal.
Falar de facto punível é, por outro lado, exprimir os seus elementos fundamentais
constitutivos, ou seja, aqueles elementos sem os quais não poderá haver lugar
a um crime. Assim, considera-se que para existir crime (s.s.) deve ter de haver
uma ação (discutível), 5que esta deve ser típica (tipicidade), culposa e punível 6 . No
caso de aplicação de medidas de segurança, estas pressupõem em vez da culpa,
estados de perigosidade, mantendo-se a tipicidade como recorte das situações de
intervenção jurídico-penal (art. 0 1.0 n. 0 2 do CP), sendo a única exceção o caso
já referido do internamento compulsivo. A fundamentação político-criminal
deste princípio reconduz-se ao que anteriormente referimos sobre os modelos
de intervenção jurídico-penal, apenas salientando aqui de qualquer maneira os
valores de segurança e certezas jurídicas (sempre relativos) nele presentes, a par
da humanidade e proporcionalidade também neste plano existentes. Iremos de
seguida analisar o fato punível (infração penal) em sentido estrito7 •

4
Cf. desde logo com o art. 0 1. 0 n. 0 S 1 e 2 do CP.
5
Infra 1.6.1.
6
A personalidade do agente de qualquer maneira não deixa de revelar alguma autonomia a ponto de
se poder desligar do próprio facto punível. Basta atentar desde logo na consideração da socialização
no âmbito do processo de determinação da pena l.s. (arts. 40° n. 0 1, 70. 0 e 71. 0 do CP), também no
plano da aplicação de medidas de segurança (arts. 91. 0 e segs.; 100. 0 a 103. 0 ) , de penas/medidas sui
generis (art 0 83. 0 e segs.), etc. Onde a ligação com o facto se rompe decididamente é no designado
internamento compulsivo (cf. especialmente os arts. 12°, 27° n. 0 1, 29. 0 , 34. 0 n° 1 da Lei 36/98 de
24 de Julho), que poderá ter lugar na base apenas da perigosidade do agente e portanto sem a prática
de qualquer facto.
7
As medidas de segurança são objeto de estudo na disciplina de Direito Penal II.
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

1.2. Aspetos históricos 1.4. A conceção neoclássica (normativista)


Seguidamente debruçar-nos-emos sobre as principais teorias da infração penal O ponto de partida continua a ser, no essencial, a ação ainda encarada como
desenvolvidas ao longo destes últimos séculos. Fá-lo-emos caracterizando-as na modificação do exterior ligada causalmente à vontade do agente ( causalismo ),
sua essência e procurando extrair delas o seu contributo para uma modema teoria ainda que considerada com relevância social. A tipicidade ganha agora um sentido
da infração penal. de ilicitude, ainda que perspetivado em termos de danosidade social (lesão de
bens jurídicos). Pode também comportar certos elementos subjetivos. A culpa
adquire uma dimensão normativa, surgindo como um juízo de censura ao agente,
comportando também elementos objetivos (dolo, negligência, inexigibilidade).
1.3. A conceção clássica (positivista-naturalista)
O que mais se criticou nesta teoria foi o seu não corte totalmente com a
O ponto de partida desta teoria assentava no positivismo naturalista vigente no
conceção causalista anterior e o seu apego a aspetos objetivistas em detrimento de
séc. XIX. Este perspetivava a realidade, grosso modo, através da experimentação
uma maior subjetivação, para além de uma certa anarquia no âmbito da disposição
visando obter leis determinísticas dos fenómenos existentes. Neste plano, viu-
dos elementos objetivos no âmbito da culpa.
se o crime como uma ação causalmente determinada (causalismo) pela vontade
de um agente, produzindo efeitos exteriores, descrita neutralmente nos moldes
legais (tipicidade) e portadora de um juízo de ilicitude, que podia ser apagado pela
existência de causas de justificação. Isto constituiria o lado objetivo da infração 1.5. O finalismo (ôntico-fenomenológico)
penal. O aspeto subjetivo era expresso pela culpa, encarada como nexo psicológico
entre o agente e o facto, expressa num querer daquele (dolo) ou na deficiente A ação como supradeterminação do agir humano surge nesta teoria como a
vontade para o prever (negligência). realidade fundamental determinante da essência do facto criminoso. Agir era para
Welzel determinar, segundo finalidades, o sentido das ações humanas. Portanto
As críticas realizadas a esta teoria partiram antes de mais do causalismo a ela seria o dolo um elemento da ação e nesta medida o tipo-de-ilícito seria constituído
inerente. As ações humanas não são a maior parte das vezes reduzíveis a relações de por este. A ilicitude apresentava-se como mera desconformidade para com a ordem
natureza causa1. 8 Por outro lado, a omissão, sendo o contrário da ação, nunca, nesta jurídica (ilícito pessoal). Finalmente a culpa expressava-se como mero juízo de
perspetiva, se poderia reconduzir a um agir causal. Finalmente, as próprias ações censura ao agente por ter agido como agiu podendo agir de forma diferente, sem
criminais comportam de per se uma dimensão valoratíva não redutível a meras ações mais (normatização da culpa).
externas. A própria tipicidade não poderia ser reconduzível a uma mera relação
A crítica a este posicionamento assenta antes de mais no seu ontologismo
avalorística de adequação formal-objetiva entre um facto natural e a descrição típica
extremo. Por outro lado e ao contrário do que Welzel pensava a finalidade também
(subsunção formal típica), só quebrada pela existência de causas de justificação,
tem lugar no mundo animal. De resto, o dolo eventual e a negligência ficam fora
neste último aspeto se esgotando a ilicitude. Finalmente, a culpa nunca poderia
do tipo de ilícito nesta construção. Paralelamente a isto, a culpa fica esvaziada
ser limitada a uma mera relação psicológica entre o agente e o facto, inexistente
do seu conteúdo nuclear (dolo e negligência), delimitada apenas pelas causas de
desde logo na negligência inconsciente para além de que a mera existência de links
exculpação (só existindo na cabeça do juiz).
psicológicos não ser suficiente para determinar a culpa de alguém.

8
Infra 1.6.1.

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

1.6. Tomada de posição da produção do evento o respetivo agente direto não ter capacidade de ação, tal
não deve impedir a sua punibilidade no plano das regras da comparticipação
1.6.1. O ponto de partida: a ação? (como instigador no âmbito da última parte do art. 0 26. 0 do CP) e assim agindo
relevantemente. Do mesmo modo, que se A sabe do seu "mau dormir" (agitado
A ação l.s., isto é, englobando também a omissão e enquanto pressuposto do
e com movimentos bruscos de vez em quando) e não obstante não informa B,
agir humano, caracteriza-se antes de mais por ser uma realidade inter-relacionai.
que irá dormir consigo, disso mesmo, podendo este então escolher outra cama
Tal significa que agir implica a criação de vínculos interindividuais (relações
e assim causando-lhe nessa noite violações à sua integridade física, com certeza
entre seres humanos de carne e osso), entre estes seres e entes coletivos, de seres
que a prática (eventualmente por negligência) de atos de ofensas corporais (art. 0
coletivos entre si e igualmente entre toda esta espécie de seres e a própria natureza.
148. 0 n. 0 1 do CP) não deverá ser negada não obstante a total falta de controlo do
A partir daqui pode perguntar-se num plano objetivo que eventuais agente desta infração. Em conclusão, a dominabilidade ou não de ações não deve
características é que o conceito de ação deve possuir para produzir efeitos na sem mais servir como critério de delimitação de ações relevantes criminalmente.
delimitação do conceito de infração penal.
Por outro lado, parece também claro que não somente ações finalisticamente
A primeira abordagem histórica desta problemática (teoria clássica) viu o orientadas deverão ser consideradas relevantes para o direito penal. De igual
comportamento humano essencialmente como modificação exterior do mundo modo ações dolosas, a título de dolo eventual ou meramente negligentes poderão
fenomenal ligado causalmente à vontade do agente. Pode assim considerar- constituir condutas significativas em termos de conteúdo típico.
se este posicionamento ao menos como condição necessária ainda que não
Será então que caberá à ética o papel de caracterizar a priori a natureza das
suficiente para a construção do delito penal? Como já anteriormente referimos,
ações a tipificar pelo legislador penal? Noutras palavras, poder-se-á referir que
a maioria das ações relevantes jurídico-penalmente não são causais. Poderemos
sem a eticidade de qualquer conduta esta não poderá relevar para o direito penal?
assim contentar-nos com a exigência simples de ações meramente previsíveis?
Também a resposta a dar aqui deve ser negativa. Se é verdade que toda a conduta
A resposta a dar a esta questão deve ser no entanto negativa. Também no direito
típica implica uma valoração ético-jurídica, também não é menos verdade que não
penal ações não previsíveis e portanto muito menos causais podem constituir o
se toma por isso necessário que a eticidade de uma conduta a incriminar exista
conteúdo de crimes. É o que acontece entre nós relativamente à punibilidade da
antes de vertida num concreto tipo penal. Por exemplo, adquirir, possuir, usar
tentativa impossível (art. 0 23. 0 n. 0 3 do CP).
uma arma de fogo podem naturalmente ser considerados comportamentos neutros
Ainda no plano empírico há quem entenda que o facto de existirem a priori eticamente. No entanto, se o legislador, por via de uma específica valoração ético-
ações não domináveis pela vontade humana (v.g., coação física absoluta, atos criminal, considerar que o adquirir ou a detenção sejam atos proibidos, tal não
reflexos, de sonambulismo, praticados sob sugestão hipnótica, etc.), tal implicará impedirá naturalmente que se trate de ações relevantes criminalmente, apesar de
uma relevância negativa do conceito de ação. Uma vez verificados os requisitos o não serem necessariamente antes da respetiva incriminação. Em conclusão, a
em causa não mais se poderá falar em ação relevante jurídico-penalmente e ideia de se considerar a ação enquanto negação de valores não serve como critério
portanto em tipicidade de condutas com estas características. A nosso ver, este de determinação a priori de quaisquer ações como relevando diretamente para o
entendimento é demasiado simplista. Esquece que apesar do ato em si mesmo e direito penal.
no seu decorrer ser indomável, pode ter acontecido que a sua produção implique a
Em síntese dir-se-á constituir o conceito de ação a priori algo de desnecessário
responsabilidade do respetivo agente. Se este pede a B que o atire para cima de D,
porque carecendo de significatividade jurídico-penal.
causando-lhe desta forma uma lesão na integridade física, apesar de no momento

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

1.6.2. A ilicitude 1.6.3. A tipicidade


A ilicitude como se referiu anteriormente começou por ser considerada como Em consequência do princípio da legalidade (tipo de garantia) a ilicitude
resultado lesivo (danos idade social), desde logo por via do conceito causal de ação deverá adquirir a forma que o tipo descrever e só essa. No entanto, não
adotado. Com o finalismo operou-se uma mudança radical. O ilícito de causal poderemos deixar de tomar em consideração que o tipo legal de crime é antes
passou a pessoal, por via da incorporação dos elementos pessoais (desde logo do de mais expressão dos complexos juízos de ilicitude que deve encarnar. Sob
dolo) no tipo de ilícito. este ponto de vista, se deverá afirmar que o tipo é ilícito-típico. Por outro lado,
a tipicidade pode estar ausente do direito penal. Isto sucede antes de mais no
No nosso entendimento, ambas as perspetivas devem ser tidas em âmbito do direito internacional penal. Efetivamente, nos termos do art. 0 29. 0 n. 0
consideração. Efetivamente se, por via do princípio da proporcionalidade em 2 da CRP e do art. 0 22. 0 n. 0 3 do ERTPI, permite-se a incriminação de qualquer
sentido lato (abrangendo os aqui subprincípios da necessidade e subsidiariedade), agente com base nos "princípios gerais de direito internacional comummente
se deverá manter o critério "causal", enquanto garante da necessária separação reconhecidos." (art. 0 29. 0 n. 0 2 da CRP). Por outro lado, a existência de conceitos
de águas entre o criminalmente relevante e não relevante (normas de valoração); abertos, indeterminados (v.g., a aferição da negligência por vezes remete o leitor
também não se poderá obliterar o facto de que todo o comportamento criminalmente para puras normas de conduta não escritas a serem aferidas em termos sociais,
típico se move no plano da eticidade jurídica, em termos de interioridade e profissionais, etc., a partir de modelos de condutas vigentes, caso das leges artis,
portanto é pleno de apelações aos respetivos destinatários no sentido de não
art. 0 150. 0 n. 0 1 do CP ou do simples caminhar em passeios ou saídas de portas de
realizar determinadas condutas ou de realizar outras (normas de determinação). casa) coloca seriamente em causa a razão de ser da tipicidade.
Deste modo, deveremos falar mais em complementaridade funcional do que na
supremacia de quaisquer destes enfoques. Por outro lado, não deveremos deixar de Por tudo isto, cremos não constituir a tipicidade uma realidade omnipresente
tomar em consideração o facto de que os comandos do legislador serem limitados no direito penal, antes surgir como uma qualidade tendencial.
numa dupla perspetiva. Desde logo teremos de atentar que há limitações de facto
(empíricas) na formulação de quaisquer comandos (v.g, não se deve formular
imperativos impossíveis de concretizar por violação de leis físicas, biológicas,
etc.) e também éticas (v.g., o legislador está eticamente impedido desde logo de 1.6.4. A culpa
estabelecer comandos que contrariarem normas fundamentais do comportamento As conceções anteriores afirmaram que a culpa constituiria um juízo de
humano, como a decretação sem mais da matança de crianças até um ano, ao estilo censura por o agente ter agido como agiu podendo ter agido de forma diferente.
da narração bíblica ... ). Finalmente, dever-se-á tomar ainda em consideração a Nada disto se afigura óbvio. Se a liberdade nunca foi demonstrada e por
obrigatoriedade ou permissividade de se adotarem normas que venham de conseguinte o agir de outra forma não passa de um mito, então, a ideia da culpa
encontro a aspetos fundamentais da natureza humana, no sentido da sua proteção como juízo de censura não faz mais sentido. No entanto, se dela deveremos
sem mais (v.g., defesa da vida dos homens sem mais, da sua integridade física, ainda fazer uso como elemento axiologicamente imprescindível para a aplicação
etc.) ou em termos contextuais (v.g., legítima defesa, direito de necessidade, etc.). de quaisquer penas, então, o seu sentido há de ser outro. Efetivamente, pela sua
Noutros termos, poderemos sintetizar tudo o que foi dito numa única expressão: ressonância ético-social, pela riqueza do seu conteúdo e assim ir de encontro
ética jurídico-penal (ilicitude) de contexto. ao princípio da proporcionalidade s.s., ela constitui fundamentalmente um
Será assim, dentro deste contexto complexo de ilicitude que nos iremos critério de aferição do maior ou menor distanciamento do agente dos valores
ético-jurídicos, não apenas presentes no tipo legal de crime mas igualmente no
mover.
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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

designado "tipo complexivo ou indeterminado."9 E nisto se esgota este elemento 2.2. Desvalor da ação e do resultado
da infração penal.
Como já anteriormente referimos, a ilicitude (no plano positivo) verte-se
(quase sempre, supra 1.6.3) no âmbito do tipo legal de crime. Este, considerado
no plano material, constitui assim a sua expressão documentada, conferindo-lhe
1.6.5. A Punibilidade contornos específicos e deste modo prosseguindo programas de política criminal.
Podemos deste modo considerar que em sentido amplo e material o tipo de ilícito
A punibilidade é uma realidade também imprescindível para se poder falar em (ou melhor o ilícito-típico) pode ser perspetivado como expressão do conjunto de
infração penal. Num modelo fundamentalmente assente em penas (sancionatório), elementos gerais e especiais da ilicitude. Trata-se assim de uma noção de cariz
de que aqui tratamos (crime s.s.), estas fundamentam-se num âmbito empírico e positivo. Indica a presença de elementos sem os quais a ilicitude não tem lugar. Já
também num plano ético (axiológico ).Aquestão empíricaassentaemjuízos do senso a delimitação negativa desta é de todo estranha ao fenómeno da tipicidade e dela
comum, alguns dados estatísticos, considerações de ciências (como a psicologia ou nos ocuparemos muito mais adiante (ponto 3).
a sociologia entre outras), também em circunstâncias históricas, lugares comuns,
crenças, igualmente ... A eticidade implica a preferência, fundamentalmente, do Neste contexto, a partir de Welzel e do seu finalismo, falou-se (fala-se)
modelo em causa (sancionatório) em vez, por exemplo, de um modelo puramente correntemente na doutrina de desvalor da ação e do resultado. Independentemente
terapêutico. Implica igualmente notáveis limitações referentes à espécie e medida de uma análise exaustiva que não iremos realizar, poderemos grosso modo
das penas a escolher. O conceito de "inexigibilidade", tradicionalmente encarado afirmar que por desvalor da ação se deverá entender antes de mais a atitude
como elemento delimitador da culpa e com consagração jurídico-positiva entre interna (lado subjetivo) do agente face às exigências da norma penal (primária
nós, deve ser deslocado para a categoria em causa, por virtude da conceção de ou secundária). 10 Abrangerá assim o dolo, especiais elementos subjetivos do
culpa que partilhamos. ilícito típico, a negligência, ainda a culpa (como expressão de um maior ou menor
distanciamento do agente dos valores ético-jurídicos inerentes ao facto punível).
Por desvalor do resultado, dever-se-á entender a lesão ou perigo de lesão do bem
2. Crimes dolosos por ação jurídico. Estaremos aqui perante o aspeto objetivo do ilícito típico.

2.1. Considerações gerais Este, por seu lado, comporta necessariamente ambas as perspetivas. Não há
assim desvalor da ação sem desvalor do resultado, nem este sem aquele. O que
Iremos seguidamente estudar de per se os elementos essenciais da infração pode acontecer é que o legislador dê maior atenção a uma destas vertentes em
penal, excluindo na sua maioria a categoria da punibilidade, que será estudada na termos político-criminais. Ou seja, poderá, v.g., excluir a punibilidade da tentativa
disciplina de direito penal II. de certos crimes considerados de menor relevância ou da negligência por idênticos
fins ou ainda equiparar a tentativa ao crime consumado na base de um idêntico
Este estudo será realizado a partir dos crimes de ação dolosos. Especialidades desvalor da ação apesar de um diferente desvalor do resultado.
relativamente a este delito serão consideradas nas restantes tipologias (crimes
dolosos por omissão e infrações negligentes).

10
Por norma secundária entendemos aqueles casos em que há uma remissão para normas não pe-
nais do conteúdo proibitivo ou impositivo inerente ao tipo legal, v.g., negligência, omissão impura,
9 normas penais em branco, etc.
Sobre este, vide o nosso Consequências Jurídicopenais do Crime, AEDUM, 2013, p. 64.

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2.3. A adequação social e sua relação com a tipicidade 2.4. O tipo objetivo de ilícito
De acordo com Welzel e na sua inicial formulação, o tipo legal de crime 2.5. O agente. Princípio geral
deveria ver dele excluídos certos comportamentos, que apesar de formalmente
nele inseridos, por via da sua adequabilidade social, isto é, em virtude da sua 2.6. Entes coletivos.
inserção no âmbito de condutas socialmente aceites, por isso mesmo jamais
Agente de uma infração penal pode, em regra, ser uma pessoa singular (ser
deveriam ser considerados como tipicamente relevantes. Dádivas de lembranças
humano), art. 0 11. 0 n. 0 1 do CP. Em termos excecionais, permite-se a existência de
em certas ocasiões do ano a funcionários públicos não poderiam constituir o crime
agentes coletivos (pessoas coletivas ou entes equiparados), art. 0 11. 0 n. 0 2 do CP.
de recebimento indevido de vantagem (art. 0 372. 0 n. 0 3 do CP); coações, ofensas
corporais, porque inseridas em praxes, não apenas académicas, deixariam de Nem sempre as pessoas coletivas foram consideradas como agentes de
relevar tipicamente por idênticos motivos; empurrões e calcadelas em horas de crimes. Ainda hoje muitos ordenamentos jurídicos negam tal qualidade a estes
ponta no metro ou outros transportes públicos nunca deveriam ser considerados entes. De facto, foi somente no séc. XX, no pós-guerra, com o desenvolvimento da
como crimes de ofensas corporais; piropos de cariz sexual por si só não criminalidade financeira, especialmente oriunda das grandes empresas (v.g., white
integrariam um eventual crime de assédio sexual; condutas transgressivas em collar crime), que esta questão se colocou. No caso português, a punibilidade
desportos violentos (futebol, automobilismo, lutas, etc.), apesar de contrárias aos destes entes surgiu com os Decretos-Leis 630/76, de 28/7 e 28/84, de 2011, Lei
regulamentos e até executadas dolosamente, não integrariam crimes de ofensas 15/2001 de 5 de Junho, mais recentemente com a Lei 59/2007, de 4/9, entre outros
corporais (negligentes ou dolosos), etc. diplomas.
A simples ideia de afirmar sem mais a existência de condutas irrelevantes Os principais argumentos aduzidos contra a responsabilidade penal das
para o tipo legal, com base na sua verificação de facto, pode ser perigosa, por um pessoas coletivas repousam na aludida incapacidade de ação ou ainda de culpa
lado, por via do caráter mais ou menos vago do conteúdo das mesmas, por outro, destas. Assim, afirma-se frequentemente que os entes coletivos são incapazes
da sua eventual insuportabilidade no âmbito do direito vigente. Daqui que se deva de agir de per se, necessitando sempre dos entes individuais, pelo que as suas
em nossa opinião tomar em consideração duas espécies de realidades. De um lado, condutas não são deles próprios mas dos seres humanos que agem em seu nome e
as remissões implícitas (v.g., crimes negligentes) ou explícitas (v.g., leges artis, sem os quais nunca poderia ter lugar qualquer ação daqueles.
art. 0 150. 0 n. 0 1 do CP) para condutas socialmente adequadas. Aqui, há apenas
que determinar sem mais o seu concreto conteúdo. Uma vez este preenchido, a Obviamente que os entes coletivos, em si mesmos, sem o substrato humano,
conduta será pura e simplesmente irrelevante. Fora disto, (v.g., praxes, desportos, não agem. A sua criação e o seu agir necessitam sempre de pessoas singulares,
festividades, condutas histórico e culturalmente sedimentadas, etc.), será uma mesmo a sua extinção. Só que esta circunstância não deve ilidir o facto óbvio
questão a ser resolvida no âmbito das causas de exclusão da ilicitude, porque de que a pessoa coletiva, enquanto tal e nas suas ações, não se confundir com os
só desta forma se poderá adequadamente dar uma resposta jurisprudencialmente concretos seres humanos que atuem em seu nome. Uma associação desportiva
adequada. não é os seres individuais que a compõem, nem o seu agir se confunde com o
destes. Uma coisa é os titulares dos seus órgãos que expressam a conduta do ente
coletivo, outra estes mesmos de per se. Contratos realizados em nome coletivo
expressam uma vontade e um agir igualmente coletivo, não uma ação individual.
O seu presidente que assina um contrato com outra entidade fá-lo na qualidade

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de titular de um órgão, não como ente individual e as consequências do seu ato 2.7. Classificações. O agente. Crimes comuns e específicos
dão-se imediatamente na esfera da coletividade. Em conclusão, a vontade e o agir
coletivos são próprios do ente coletivo e diferentes dos elementos pessoais que o A partir do elemento objetivo agente poderemos distinguir entre crimes
constituem. comuns e crimes específicos. Nos primeiros, qualquer indivíduo os poderá praticar.
Usualmente nestes tipos legais de crime surge a expressão "Quem" (v.g., art. 0 131. 0
Por outro lado, afirma-se igualmente que as pessoas coletivas são incapazes do CP). Nos segundos, as qualidades delimitam o tipo de crime, de modo que só
de culpa. Nesta perspetiva, sendo a culpa um juízo intrinsecamente individual, a os agentes que as detenham poderão ser autores singulares ("Quem executar o
sua extensão a entes coletivos seria sem sentido, porque mais uma vez estaríamos facto, por si mesmo", art. 0 26. 0 , 1.• parte, do CP). A "mulher grávida" (art. 0 140. 0
a confundir o plano humano com o coletivo. n. 0 3 do CP), "médico ou outra pessoa legalmente autorizada" (art. 0 150. 0 n. 0 1 por
via da incriminação prevista no n. 0 2) são exemplos desta modalidade de crime.
Esta objeção não deve ser aceite. Se, como demonstrámos, há lugar a uma
vontade própria dos entes coletivos. Se, por outro lado, a culpa se caracteriza As qualidades em consideração podem de per se fundamentar o tipo de delito
por uma descrição do maior ou menor afastamento do agente dos valores ético- em causa (arts. 369. 0 e 370. 0 do CP, relativamente a funcionário ou a advogado/
jurídicos polarizados na prática de um delito criminal, então, não se vêm quaisquer solicitador, respetivamente). Deste modo, sem estas não haverá crime. Trata-se
razões para negar a possibilidade da existência também nas pessoas coletivas de assim de delitos específicos próprios ou puros.
uma culpa, com idênticas características.
Também as qualidades em causa poderão agravar a responsabilidade penal
Por via do que deixámos dito, compreende-se facilmente que não seja preciso dos respetivos agentes (cf. art. 0 375. 0 relativamente ao art. 0 205. 0 do CP) ou
existir qualquer modelo analógico em termos de culpabilidade para os entes atenuar (cf. art. 0 140. 0 n. 0 3 do CP). Trata-se aqui de crimes específicos impróprios
coletivos (tese de Figueiredo Dias). A culpa destes entes é tão natural e real quanto ou Impuros.
a dos entes singulares. Por isto mesmo, desnecessário se toma referir outro tipo de
conceitos (v.g., "atitude criminal de grupo", modelo de prevenção, etc.). A relevância jurídica desta classificação prende-se antes de mais com o
fenómeno da comparticipação (arts. 26. 0 a 28. 0 do CP), não deixando também de
De referir ainda que o conceito de pessoa coletiva é no nosso ordenamento se refletir no erro.
muito alargado. Nos termos do já citado art. 0 11. 0 n. 0 2 do CP, serão tratadas
da mesma forma as "entidades equiparadas", que no âmbito do seu n. 0 5 são Discutível é neste âmbito a existência dos chamados crimes de mão própria,
consideradas neste conceito "as sociedades civis e as associações de facto". Por criação da doutrina alemã, que afirma a existência de tipos legais de crime em
outro lado, exclui-se a responsabilidade do "Estado, de outras pessoas coletivas que apenas seriam autores aqueles que realizassem de per se, por suas próprias
públicas e de organizações internacionais de direito público" (art. 0 11.0 n. 0 2 do mãos, o respetivo tipo legal. Independentemente de tal conceito não ser desde
CP). Finalmente, dir-se-á que a responsabilidade penal dos entes coletivos não logo aplicável, entre nós, ao instigador (infra), o certo é que a sua aplicabilidade
exclui obviamente a responsabilidade dos seus agentes individuais (art. 0 11. 0 n. 0 ao autor mediato e mesmo ao coautor que não disponham das qualidades exigidas
7). Das complexas relações neste plano entre os indivíduos e os entes coletivos tipicamente (v.g., arts. 247. 0 ou 359. 0 ) é pelo menos discutível (infra).
se ocupam, quer o citado art. 0 11. 0 , quer ainda o art. 0 12.0 Os artigos 90. 0 A a M
ocupam-se da punibilidade das pessoas coletivas. 11

11
Matéria a estudar em Direito Penal II.

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2.8. A conduta. Crimes de resultado e de mera atividade. necessitam de uma lesão do bem jurídico mas se bastam no colocar em risco deste.
Crimes de execução livre e de execução vinculada Crimes de perigo concreto são aqueles delitos em que o perigo para o bem jurídico
se encontra mencionado nestes mesmos delitos. Assim, por exemplo, sucede no
Com base na conduta do agente distingue-se desde longa data crimes de âmbito dos arts. 272. 0 ou 273. 0 do CP. Já no plano dos crimes de perigo abstrato
resultado de crimes de mera atividade. Os primeiros (v.g., homicídio, ofensas (cf. arts. 276. 0 ou 296. 0 do CP), estes surgem sem mais, como crimes de mera
corporais, dano, etc.) caracterizam-se pela existência de uma alteração de facto atividade (ou de mera omissão, nos delitos omissivos). O risco de lesão de bens
positiva ou negativa proveniente de uma conduta prévia e desta distinta, seja de jurídicos não surge como elemento do tipo mas como seu motivo ou fundamento.
natureza física, psicológica, patrimonial, etc. Os segundos pela simples existência Deste modo, por via desta amplitude, questiona-se da sua legitimidade em
da mera conduta descrita no tipo legal de crime, sem uma consequência distinta função de um direito penal de ultima ratio face a outros ramos jurídicos menos
da conduta original (v.g., violação de domicílio, introdução em lugar vedado ao importantes.
público, violação de segredo, etc.).
Tendo em conta a tutela de um só bem jurídico (homicídio) ou mais do que
O relevo prático desta classificação reside no âmbito da imputação de um um (roubo), poderemos considerar a existência de delitos simples (primeiro caso)
resultado a uma ação prévia, inexistente nos meros delitos de atividade. ou delitos complexos (segundo caso).

Crimes de execução livre são aqueles delitos nos quais o legislador se limita Do que anteriormente se referiu, pode-se afirmar a existência de crimes de
a descrever o resultado desinteressando-se pelo processo ou modo de execução mera atividade e igualmente de dano (arts. 190. 0 e 191. 0 do CP) ou somente de
(não os descrevendo). Assim, a sua execução será livre. Homicídios (dolosos ou perigo (arts. 292. 0 e 293. 0 do CP). Por outro lado, pode-se ainda considerar a
negligentes), ofensas corporais, etc. constituem exemplos deste tipo de crimes. existência de crimes de resultado e igualmente de dano (arts. 131.o ou 143. o do
Os crimes de execução vinculada já preveem o processo ou modo de execução do CP) ou de perigo (cf. art. 0 272. 0 do CP).
crime, naturalmente associados ao resultado, casos da burla, ameaça, coação, etc.

O interesse jurídico desta tipologia incide desde logo no âmbito da omissão


imprópria ou impura (infra), também no erro, etc. 2.10. Grupos de tipos e figuras típicas de estrutura
especial: crimes fundamentais, qualificados e privilegiados.
Crimes instantâneos, duradouros, habituais. Crimes de
empreendimento. Crimes qualificados pelo resultado
2.9. O bem jurídico. Crimes de dano e crimes de perigo.
Crimes simples e crimes complexos Um crime fundamental é um delito de base que contém em si os elementos
fundamentais (essenciais) do respetivo tipo legal de crime (v.g., homicídio,
Trata-se aqui de tomar como ponto de referência o bem jurídico como critério furto simples). A este delito podem ser acrescentados outros elementos atinentes
de distinção dos diferentes tipos legais de crime. Assim, poderemos antes de mais à ilicitude ou à culpa. O crime fundamental vai ser assim enriquecido com
distinguir os crimes de dano dos de perigo. Nos primeiros, tratar-se-á de condutas circunstâncias que não faziam parte do mesmo (v.g., homicídio qualificado do art. 0
lesivas de bens jurídicos. Ou seja, os delitos em causa só estarão consumados com 132. 0 do CP, homicídio privilegiado do art. 0 133. 0 do CP ou o furto qualificado do
a efetiva lesão do bem jurídico por estes tutelados. Homicídios, ofensas corporais, art. 0 204. 0 do CP). Caso estas circunstâncias aumentem a gravidade do respetivo
danos (arts. 212. 0 e 213. 0 do CP), entre outros, contam-se neste âmbito. Como tipo legal, estaremos perante crimes qualificados (arts. 132. 0 ou 204. 0 do CP). Na
crimes de perigo deve-se entender aqueles delitos que para se consumarem não
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hipótese de se tratar de circunstâncias atenuativas, encontrar-nos-emos perante preterintencionais. Historicamente quem praticasse um crime e deste resultasse
delitos privilegiados (arts. 133. 0 ou 134. 0 do CP). uma consequência jurídico-penal para além da vontade do agente, seria responsável
por o sucedido efetivamente, ainda que tal tivesse lugar de forma excecional, por
Se considerarmos o fato r tempo poderemos encontrar crimes instantâneos em puro acaso. Assim, se alguém desse um empurrão a outrem e este ao cair acabasse
que a consumação dos mesmos se dá de forma instantânea, isto é, de uma só vez, por falecer vítima de um ataque cardíaco fulminante, proveniente de uma doença
através de uma mudança de estado e assim se esgotando os seus efeitos (homicídio, coronária de que ninguém suspeitava existir, tal nunca impediria a imputação
ofensas corporais, furto). Em contrapartida, poderá ter lugar a consumação de do homicídio em questão ao agente do facto inicial. Estaríamos em presença do
forma mais ou menos permanente, expressando-se num estado contínuo no tempo princípio versari in re illicita.
(sequestro, rapto, violação de domicílio). O que aqui acontece frequentemente é
que após a prática de uma ação prévia, o delito se consome mas não se extingue, Neste contexto, surgiram os supracitados crimes preterintencionais, como
isto é, permanece no tempo até que o respetivo estado antijurídico se exaure. forma de delimitar no direito penal a responsabilidade dos respetivos agentes.
Trata-se de crimes duradouros ou permanentes. Como características básicas destes delitos encontramos antes de mais a existência
prévia de um crime doloso básico. Depois a ocorrência de um resultado mais grave
A relevância destes crimes tem que ver com questões como a legítima defesa não doloso derivado do crime inicial doloso. Como limite de responsabilidade,
(v.g., atualidade da agressão), prescrição do procedimento penal, etc. dever-se-ia exigir um nexo de imputação objetivo entre o resultado e a conduta
anterior. Finalmente, a agravação da pena seria aferida em face das regras do
Os crimes habituais pressupõem um comportamento por parte do autor com
concurso real entre os dois crimes (doloso e negligente).
carácter de habitualidade, isto é, implicando o reiterar de uma ação ou tipo de
condutas expressivas de características próprias. É o caso do lenocínio (art. 0 169. 0 Se em verdade através desta figura se deu um passo importante no sentido
do CP). de limitar a responsabilidade do agente ao se introduzir critérios de objetividade
Esta característica revela-se importante no âmbito de questões como a entre a conduta inicial e o resultado subsequente, o certo é que a questão da culpa
permaneceu por resolver.
prescrição penal, concurso de crimes, comparticipação, etc.
Entre nós, por exemplo, Ferrer Correia defendeu a ideia de que a especial
Nos crimes de empreendimento a tentativa é equiparada à consumação
(v.g., arts. 308. 0 ai. a), 325. 0 , 327. 0 n. 0 1 do CP entre outros). Daqui resulta a agravação da pena seria justificada em função de um dolo particularmente intenso
inaplicabilidade das regras especiais da tentativa a este tipo de delitos, pelo menos do agente. Já Figueiredo Dias via esta agravação no perigo característico da
por norma. conduta prévia (dolosa) do agente, perigo este que fundamentaria uma negligência
especialmente grave (em princípio consciente).
Os denominados crimes agravados pelo resultado vão nos merecer um maior
cuidado. Efetivamente o art. 0 18. 0 do CP ocupa-se desta categoria de delitos É neste contexto que nos surge o supracitado art. 0 18.0 do CP. Naturalmente
("Agravação da pena pelo seu resultado" é a sua epígrafe). Fundamentalmente que a primeira questão a colocar se prende com a problemática dos crimes
o legislador declara neste dispositivo que quando tenha lugar a agravação de um preterintencionais, nomeadamente com as tentativas de os limitar também no
facto (tipo legal de crime) por via de um resultado, esta terá pelo menos como âmbito da culpa. Pode assim considerar-se que os pressupostos desta figura Se
1

pressuposto a imputação deste (resultado) "pelo menos a título de negligência." mantêm ou haverá uma rutura com esta? Efetivamente tem-se considerado que
agora (com este normativo) a conduta prévia pode ser meramente negligente. Quer
A problemática aqui enunciada reconduz-se aos designados crimes dizer, existiria um comportamento negligente anterior a um resultado mais grave

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e depois uma agravação da pena (art. 0 148. 0 n. 0 S 1 e 3 do CP). Confessamos antes auxílio o resultado mais grave tem lugar, será este coberto pelo crime de homicídio
de mais a nossa perplexidade por tal posicionamento. Se alguém negligentemente doloso (por omissão). O art. 0 18. 0 será portanto completamente estranho ao caso. A
atropelar outrem com o seu automóvel e lhe causar ofensas corporais graves (art. 0 ideia de se pensar estes casos relativamente a situações em que o crime inicial seja
148. 0 n. 0 3 do CP), porque é que o art. 0 18. 0 deve ser aqui chamado? Em face tão só punível em termos de dolo direto (infra), podendo o resultado ser punível
do tipo negligente é completamente desnecessário. Quem atua negligentemente a título de dolo eventual, resulta também de difícil compreensão. Efetivamente
vai naturalmente acarretar com as consequências da sua ação, sejam estas de se o resultado consubstanciar um crime doloso, irão vigorar aqui as regras do
menor gravidade (ofensas corporais simples), sejam de maior gravidade (ofensas concurso real e o preceito em causa estará a mais. Deste modo, só se o segundo
corporais graves ou mesmo homicídio). Não há aqui portanto qualquer problema crime não consentir o dolo eventual e também apenas o dolo direto é que o art. 0
adicional que não se possa resolver nos respetivos tipos legais de crime (por 18. o poderá ter algum sentido- o que de resto não deixa de ser uma ficção pois não
negligência). O art. 0 18. 0 do CP não adianta nada a isto, é portanto completamente encontramos nenhum exemplo a isto referido.
desnecessário ao caso.
Finalmente, dir-se-á que em obediência ao princípio da legalidade a agravação
Tem-se, por outro lado, afirmado que o art. o em causa terá de se aplicar a eventos deve naturalmente estar prevista legalmente.
agravantes que não sejam crimes (caso da gravidez prevista no art. 0 177. o n. o 4 do
CP), pelo que seria de todo alheio à problemática dos crimes preterintencionais
(Figueiredo Dias). Naturalmente que a virtualidade de o preceito em causa, no
2.11 A imputação do resultado à conduta: questões prévias:
sentido de se estender a realidades não de todo identificáveis com os crimes
preterintencionais, não significa que antes de mais a estas mesmas realidades se 2.11.1.0 aspeto empírico
aplique. Por outro lado, é simplesmente paradoxal que se invoque o art. 0 158. 0 n. 0
2 al. a) do CP como exemplo da doutrina pretensamente inovadora do art. 0 18. 0 Se pensarmos, por exemplo, no verbo matar, verificamos que podemos
Também aqui o preceito é completamente desnecessário em função dos princípios decompor este vocábulo, no seu sentido mais usual (literal), em dois aspetos
vigentes em matéria de dolo se alguém sequestra outrem por mais de dois dias, fundamentais. Por um lado, no concreto resultado morte; por outro, na imensidade
a agravação da pena decorre antes de mais e somente do seu dolo. de condutas que o poderão produzir. Assim, coloca-se naturalmente a questão
da ligação entre essa possível e infinita lista de condutas e o concreto resultado
Deste modo e tendo em consideração o facto de em casos de agravação da em causa. Noutras palavras, trata-se de saber sob que critérios é que poderemos
pena e só nestes é que o art. 0 18. o faz sentido, resulta assim clara a sua aplicabilidade imputar um evento (morte) a uma hipotética ação.
aos crimes preterintencionais. Teleologicamente o perigo proveniente da conduta
inicial justificará político-criminalmente a agravação da pena em comparação Numa primeira abordagem (linguística) o conceito em causa (matar)
com os casos em que tal não suceda e se apliquem as regras gerais do concurso tem um fundamento empírico óbvio. Trata-se deste modo de traduzir antes de
de crimes. Axiologicamente tal agravação será justificada por via de um nexo de mais algo assente na experiência comum. Se alguém corta a cabeça a outrem,
negligência particularmente forte derivada do risco efetivamente criado. faz explodir uma bomba que leva um indivíduo a fragmentar-se em bocados de
carne, naturalmente que o resultado morte é aqui afirmado, sem mais, produto
Um outro aspeto deve ser referido. Na última parte do artigo em causa abre- da constatação de uma realidade empírica (proveniente do mundo dos factos).
se a porta à aplicabilidade de um resultado ao agente em termos dolosos. É algo Trata-se assim da aplicação de juízos empíricos (juízos da experiência comum):
que soa estranho. Se A ofende corporalmente B e depois o abandona, pouco se um eventual sabre pode naturalmente cortar cabeças e sem estas ligadas ao corpo
importando que este possa falecer em consequência dos ferimentos e por falta de não se pode existir; o rebentamento de uma bomba de certa potência pode também
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fazer em pedaços um indivíduo humano e assim pôr-lhe fim à sua existência. 2.11.2. O aspeto jurídico-penal
Numa análise mais rigorosa, poderemos fazer intervir aqui juízos de natureza O direito penal, desde logo por consequência do princípio da legalidade,
científica. A vantagem, em geral, da sua utilização reside no grau de maior certeza não poderá abdicar em larga medida do que se deixou referido (pré-compreensão
a eles inerente. E se em factos óbvios, como os citados, deles se poderá, em ou compreensão ao nível do sentido comum). Matar, ofender corporalmente ou
princípio, prescindir, em muitos outros, a sua utilidade será de preceito. a saúde, praticar danos, etc. não podem assim deixar de relevar no plano aqui
traçado, ainda que limitadamente. Deste modo, os conceitos em causa deverão
Falar aqui de juízos científicos significa, antes de mais, estabelecer relações ser adaptados à realidade jurídico-penal. Um conceito extracontextual tem
de causalidade entre fenómenos. Ou seja, tratar-se-á assim de estabelecer relações naturalmente os seus limites. Por outro lado, a sua redução, em termos sistémicos
de causa e efeito entre determinada ação, por exemplo, disparar um tiro na direção (direito penal), nada bole com o princípio da legalidade, como é óbvio.
da cabeça de alguém e associar tal ato à morte do ser humano, objeto do disparo.
Em rigor, num exemplo como este, nunca tal relação poderá ser estabelecida. No caso português, o art. 0 10. 0 do CP, sob a epígrafe "Comissão por ação
Tal pressuporia a existência de um sem número de experiências de disparos, e por omissão", ocupa-se desta problemática. Assim, no seu n. o 1, o legislador
analisando diferentes calibres, tipos de iffiUa, distâncias, direções, características afirma que "Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o
da vítima, etc. Algo impossível de ter lugar, senão por razões ontológicas (nunca facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo, como a omissão adequada a
poderíamos ressuscitar a vítima), pelo menos por imperativos éticos ... evitá-lo, salvo se outra fora a intenção da lei." Portanto e no âmbito dos delitos
por ação que nos ocupamos, o preceito em causa estabelece a necessidade de uma
Ficámo-nos assim por juízos de probabilidade mais ou menos rigorosos relação de adequabilidade entre a ação concreta desenvolvida pelo agente e o seu
e sempre com faixas de indeterminação, quer provenham de uma atividade resultado. O que se deva compreender por "ação adequada" não nos é esclarecido
científica (v.g., autópsias, exames médicos, perícias de instrumentos de crimes, pelo mesmo legislador. O termo em causa, no plano literal, significa ajustar,
etc.), quer fundamentados em puras normas empíricas (da experiência comum).
adaptar 13 , portanto toda a ação que se ajuste ao respetivo resultado será adequada,
Esta característica de indeterminação levanta obviamente questões de delimitação
nestes termos. Naturalmente que dizer isto ou nada é o mesmo. O princípio da
impossíveis em muitos casos de resolver. Por um lado, num plano científico, fica
determinabilidade em nada beneficia com esta fórmula, que acaba assim por
por definir a percentagem em termos de probabilidades a partir da qual se poderá
se tornar vazia de conteúdo. Falta-lhe densidade normativa. O legislador não a
considerar que determinado comportamento humano poderá ser considerado
desenvolve, não lhe dá específicos contornos. Efetivamente será sempre a partir
como produtor de um dado resultado. 12Depois, ficarão amiudadas vezes por dos concretos tipos legais de crime (homicídio, ofensas corporais, dano, etc.) que
sequer poder determinar na prática quaisquer números relevantes neste âmbito. a interpretação deverá ter lugar. De resto, no anterior Código Penal (de 1852), face
De resto, o sentido comum de expressões deste teor (matar, agredir, danificar ... ) à inexistência de um preceito deste género, nunca ninguém colocou em causa o
é ambíguo, por natureza. Nada impede na linguagem comum de estabelecer princípio da legalidade.
relações de "causalidade" entre factos de ocorrência extraordinária (v.g., A dá uma
bofetada a B, que morre por via de uma ataque cardíaco fulminante). Com maior interesse neste âmbito se afigura o disposto nas als. b) e c) do n.
2 do art. 0 22 do CP. Embora se ocupe esta norma da problemática da tentativa, o
seu conteúdo não é estranho ao tema em causa. Efetivamente tentar cometer um
12 De notar que, num plano estritamente científico, parece haver um consenso no sentido de exigir
13
como forma de validação de uma asserção científica uma ordem de ocorrência entre fatores ligados Neste sentido, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de
entre si de pelo menos 95%. Lisboa, Vol. I, Verbo, 2001, vocábulo "adequar".

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

resultado pressupõe naturalmente a prática de atos que se adequem a este, que corporalmente, danificar, etc.), tal não afetará a exigência de determinabilidade
em princípio seriam aptos a produzir esse mesmo resultado. O problema é assim inerente ao princípio da legalidade, como já anteriormente referimos.
idêntico ao caso em que o evento material se tenha concretizado. Deste modo, ganha
aqui particular sentido o disposto na primeira parte na al. c) deste preceito, ao se Por normatização do nexo de imputação entre uma ação e um resultado
referir que ainda serão atos de execução "Os que, segundo a experiência comum entendemos a interferência de fatores normativos no sentido da irrelevância
e salvo circunstâncias imprevisíveis forem de natureza a fazer esperar que se lhes desta ligação. Assim acontece no âmbito da adequação social quando se trate de
sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores." A alínea imediatamente remissões implícitas ou explicitas pelo tipo legal de crime (supra). Efetivamente
a seguir é a b), na qual o legislador se refere àqueles atos "que forem idóneos se um médico, atuando de acordo com as leges artis, causa sofrimento e danos
a produzir o resultado típico." Portanto a idoneidade de um ato para produzir corporais ao paciente, tal por via do art. 0 150 n. 1 do CP não constituirá ofensa
um resultado não poderá abdicar da "experiência comum" e da previsibilidade (a à integridade física. Portanto por efeito desta norma o resultado de facto perde
contrario sensu do vocábulo "imprevisível" derivado da primeira parte da citada qualquer relevância jurídico-penal. Do mesmo modo acontece relativamente a
al. c) "circunstâncias imprevisíveis"). remissões implícitas, de carácter negativo, dos tipos legais de crime. Se as ofensas
à saúde de A (arts. 143, 148 do CP) provirem da poluição de determinada fábrica
Em termos de uma primeira síntese, poderemos afirmar, que num plano a operar legalmente, cumprindo com todos os requisitos legais existentes, tais
jurídico-penal, naturalmente que a uma conduta será imputado um concreto ofensas serão irrelevantes jurídico-penalmente consideradas e assim o resultado
resultado sempre que se possa estabelecer uma relação de causalidade entre ambos será neste plano inexistente. O legislador frequentemente aceita que em nome
(cf. exemplos acima referidos). O estabelecimento de uma relação de causalidade de certos interesses (saúde dos cidadãos, ganhos económicos da coletividade,
poderá eventualmente derivar diretamente da experiência comum (factos óbvios, aspetos estéticos, etc.) se sacrifiquem outros, autorizando deste modo o exercício
v.g., cortar a cabeça a alguém) ou da própria ciência. 14 Por outro lado, a maior parte de atividades mais ou menos perigosas para os seus cidadãos (v.g., explorações
deste tipo de relacionamentos (senão todos) será de caráter probabilístico ou porque mineiras, poluição de veículos motorizados, emissão de gases poluentes para a
não foram feitos estudos científicos ou porque mesmo estes sejam impossíveis (cf. atmosfera, etc.). Nisto se inserem as condutas integradoras de um dever objetivo de
acima). Assim, tudo o que não se configurar como provável ou previsível deverá cuidado. Uma vez, executadas de acordo com as exigências normativas, quaisquer
ser excluído neste plano. Dificil, senão mesmo impossível, é como já anteriormente resultados delas provenientes serão assim irrelevantes. Num mesmo sentido, se
referimos traçar os limites entre o imprevisível, não provável e o contrário disto. deve integrar aqueles casos em que por virtude de uma norma diferente da do
Não conhecemos quaisquer dados estatísticos neste âmbito, por um lado. Por outro, tipo legal de crime em causa, norma secundária, mas a ele ligada (v.g., normas
tal torna-se na maior parte das vezes impossível de ter lugar. de trânsito em associação com crimes negligentes), se constata a infração de um
dever da mesma (ilicitude da norma secundária) e a sua conexão com o resultado
Se o que se deixou dito vale como princípio, não esgota contudo esta produzido de facto (ofensas corporais, homicídio, dano, etc.), mas este acaba, no
problemática. Encontramo-nos aqui no domínio daquilo que poderemos designar entanto, por se tornar irrelevante Guridicamente), por via de uma interpretação
por normatização do conceito em causa (imputação de um resultado a uma conduta). teleológica da mesma norma (sua redução funcional). Neste sentido, se poderá
Efetivamente poderá um evento ser certo (causal), provável e não obstante não tomar de exemplo o designado "caso dos ciclistas." Dois ciclistas circulavam com
ser imputável à conduta prévia do agente. Naturalmente que por se tratar de as luzes apagadas em plena noite e em contradição com uma disposição do CE
uma redução do âmbito de aplicação linguística em causa (v.g., matar, ofender alemão (algo que também sucede entre nós). Daqui sucedeu um embate com um
veículo motor que seguia em sentido contrário, resultando a morte do primeiro dos
14 Questão que não abordamos é a de saber se todas as leis científicas e por maioria de razão as leis
ciclistas (estes seguiam em fila indiana). A questão que para nós particularmente
da experiência comum não são todas elas probabilísticas (Hume, Popper).

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nos interessa diz respeito ao facto de o segundo ciclista poder eventualmente ser se a tipicidade da mesma conduta. Uma posição deste teor deve ser liminarmente
responsável pela morte ocorrida, por também circular com as luzes apagadas - rejeitada. É que, se assim não for, introduziremos uma totalmente indesejável
caso estas estivessem acesas, o acidente não teria lugar. A decisão do Supremo confusão entre tipicidade e causas de justificação, quando esta distinção deverá
Tribunal de Justiça Alemão foi no sentido de considerar irrelevante juridicamente permanecer por via da autonomia dogmática e político-criminal destas duas figuras.
a contribuição do segundo ciclista, com base na interpretação da norma do CE
alemão que obriga os condutores a circularem também de noite com as luzes Tem-se desde sempre discutido a questão da imputação de resultados
acesas, porque esta visaria somente a proteção do próprio condutor e não a de relativamente a ações de terceiros. Colocando desde já de lado o problema da
terceiros que circulassem em contravenção com a mesma (redução teleológica ou comparticipação (infra), deve-se afirmar que nada impedirá que um resultado
funcional do preceito em causa). provocado de facto por alguém também não deva ser imputado a outrem que tenha
criado as condições para essa ação. Assim, por exemplo, se A coloca uma arma
Um tipo de casos muito discutidos na doutrina alemã diz respeito ao carregada num local onde se processa uma refrega, acabando por alguém utilizar
designado "comportamento lícito alternativo." Pense-se deste modo no exemplo essa mesma arma, a imputação do resultado daqui derivado, no plano das regras
jurisprudencial alemão designado por "pelo de cabra". Uma empresa alemã não atrás referidas, pode não sofrer quaisquer críticas.
desinfetou, como devia, os pelos de cabra que havia importado da China e que
eram destinados à feitura de pincéis de barba. Daqui decorreu a morte de alguns Sempre que o tipo penal não seja de resultado e portanto se constitua como
operários. O problema aqui decorrente consistiu no facto de, com a obrigação delito de perigo, nenhum especial problema aqui se coloca. Pondo de parte desde
de desinfeção, o resultado também poder ter lugar. Assim, a doutrina alemã logo a problemática (inexistente) relativamente a crimes de perigo abstrato, no
desenvolveu a ideia de que tendo lugar o resultado em caso de cumprimento âmbito dos crimes de perigo concreto, de que a tentativa também faz parte, as
das obrigações legais (dever de cuidado) se deveria não imputar o mesmo no regras em causa aplicar-se-ão da mesma forma. Da mesma maneira que o resultado
caso de incumprimento. Dir-se-ia assim que a ausência de desvalor do resultado, pode acontecer de facto, mas não juridicamente; quando este não tiver acontecido,
por via de uma impossibilidade de o evitar de todo, justificaria esta irrelevância. a suscetibilidade da conduta para o produzir pode naturalmente ter lugar em termos
Independentemente das dificuldades de prova que neste âmbito se poderão colocar semelhantes.
(e que o citado caso é disto exemplo), uma questão nos parece ser importante
considerar. Efetivamente, se no âmbito da negligência faz sentido a consideração
da irrelevância do resultado, antes de mais, pelo facto de aí não ser punível o 2.11.3. A questão da "causalidade virtual"
mero desvalor da ação, já no âmbito dos comportamentos dolosos terá sentido a
consideração do resultado na sua plenitude. Suponhamos que o sobrinho ambicioso, desejando apoderar-se da fortuna do
tio solteiro, administra uma substância letal no café que este toma antes de efetuar
Na doutrina alemã, tem-se desenvolvido também a ideia de que quando o
uma vigem de avião. A substância em causa produziu o efeito desejado (morte). No
autor age no sentido de diminuir sensivelmente o resultado de um tipo legal de
entanto, se tal não tivesse tido lugar por esta via, o avião em que o tio iria seguir
crime, tal deverá implicar a sua não consideração, por se entender que o respetivo
viagem iria despenhar-se e este morreria também.
normativo não ter sido criado para esta índole de condutas (redução teleológica
ou funciona[). Assim, se A, para evitar que B sofra a morte ou ofensas corporais No caso concreto, a causa real da morte da vítima foi a ingestão da substância
graves, provenientes da queda iminente de um objeto de um andaime, o empurra administrada pelo sobrinho. Causa virtual seria a mesma morte derivada da queda
para o chão provocando-lhe leves ofensas corporais, tal deverá implicar, pelas da aeronave. E seria virtual porque produziria o mesmo resultado, tendo tal não se
razões acima referidas, a não consideração do resultado em causa e portanto negar- efetivado por via da real.
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Como é óbvio não existem quaisquer razões político-criminais atendíveis e negligência enunciado no art. 0 483 do CC (n. 1). Isto significa portanto que no
para evitar a imputação do resultado ao comportamento em causa gerador do âmbito penal nos encontramos perante muito maiores exigências éticas do que no
real resultado. E tal sucede antes de mais por via da antecipação temporal que direito civil. A demonstrá-lo está ainda a abismal diferença de penas entre crimes
acontecerá praticamente sempre da causa real em face da causa virtual. No fundo, dolosos e negligentes que por regra o Código Penal expressa 15 .
no caso dos homicídios, estes antecipam a morte das pessoas que mais cedo ou
mais tarde irão morrer (todos estamos assim sujeitos a uma causa virtual que é a
nossa própria morte a acontecer num qualquer dia). Desta forma, a aceitar-se a
relevância da causa virtual, por exemplo, o homicídio deixaria de ser punido. Tal 2.12.2. O dolo de tipo: sua estrutura, elementos e delimitação
poderia também ter lugar em muitos danos de coisas, que igualmente mais tarde (erro)
ou mais cedo seriam destruídas ou danificadas. E se isto se passa assim neste
O art. 0 14 do CP enuncia nos seus três números diferentes modalidades
tipo de casos, em geral, não se veem motivos para pensar de forma diferente em
outras situações em que concretamente exista uma causa vüiual a ter lugar depois de dolo que expressam deste modo diferentes conteúdos de culpa. Inerentes a
da causa efetiva. Doutra forma, por questões aleatórias estaríamos a incentivar todos eles, encontramos basicamente dois tipos de elementos a considerar na
estrutura do dolo. Por um lado, um aspeto de conhecimento (intelectual), por
a prática de crimes mais ou menos graves e ferindo desde logo o princípio da
igualdade, tratando de forma desigual situações axiologia e juridicamente iguais. outro, uma realidade volitiva (um querer algo). Estas duas condições são em si
próprias realidades extrajurídicas e expressam antes de mais a ideia fundamental
O facto de a causa virtual não tornar irrelevante o resultado proveniente da de que para empiricamente se desejar algo é necessário conhecer esse mesmo
causa real e assim não relevar relativamente a esta não significa que seja de per algo. Desejo e conhecimento são assim realidades universais que o direito (penal)
se completamente assética. Pode adquirir relevância, por exemplo, no plano da apenas recebe.
tentativa ou mesmo, mais excecionalmente, no âmbito da negligência em termos
de mero perigo. O primeiro destes elementos (intelectual) significa que para se afirmar o dolo
(de tipo) se torna necessário que o agente, em princípio, conheça os elementos
constitutivos e objetivos (eventualmente agravativos) do respetivo ilícito típico.
Assim, se A, apesar de ser funcionário público, nos termos do art. 0 386 n. 2 do CP,
2.12. O tipo subjetivo de ilícito como gestor de uma empresa concecionária de serviços públicos, ignora tal facto,
julgando ser um mero ente particular, estará em erro sobre um elemento objetivo
2.12.1. A formação do tipo subjetivo de ilícito (agente), por exemplo, do art. 0 375 (peculato) e portanto o dolo terá de ser negado,
O dolo como já vimos releva desde logo no ilícito típico. Por outro lado, é por via disso. O mesmo naturalmente sucederá se o erro (ou ignorância) incidir,
em regra, sobre quaisquer outros elementos (ação, resultado, ligação entre estes,
também expressão da culpa. Neste último plano, expressa uma maior distância
objeto, etc.).
do agente no momento da sua atuação, comparativamente com a negligência,
relativamente ao valor ou valores, princípio axiológico ou princípios axiológicos Dissemos que tal sucederá, em regra ou por princípio, porque podem
subjacentes aos específicos tipos legais de crime. acontecer situações em que apesar da ignorância do agente o dolo possa persistir.
O art. 0 13 do CP enuncia o princípio da punibilidade a título de dolo no Tal sucederá por via teleológica, ou seja, tendo em conta que o erro poderá
âmbito dos tipos legais de crime. A negligência só é considerada no plano da
excecionalidade. Tal contraria, por exemplo, o princípio da equiparação entre dolo 15
Únicas exceções a isto são os arts. 292 e 295 do CP.

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

equivaler ao conhecimento e assim não revelar. Caso desde logo paradigmático aqui exposta. Assim no seu n. 1, o legislador afirma que "o erro sobre elementos
disto é o erro sobre o processo de ligação (nexo de imputação) entre a conduta de facto ou de direito de um tipo de crime ou sobre proibições cujo conhecimento
e o resultado. Se o erro entre a conduta projetada (v.g., atirar alguém de uma for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da
ponte abaixo, visando a sua morte por afogamento) e a sucedida (v.g., a vítima ilicitude do facto, exclui o dolo."
faleceu em consequência de ter embatido com a cabeça em rochas circundantes
ao rio) estiver no âmbito do risco criado pela atuação inicial do agente (atirar o O critério fundamental a tomar em conta neste âmbito diz respeito à última
indivíduo da ponte abaixo, havendo um grande espaço entre esta e o rio e estando parte deste dispositivo ("cujo conhecimento for razoavelmente indispensável
na altura muito vento), então, poder-se-á considerar em termos teleológicos para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto."). O que se diz
irrelevante o desvio na execução do ato em causa. Se, por outro lado, no caso anteriormente (erro de facto, de direito ou sobre proibições) é completamente
de objetos tipicamente semelhantes, alguém atingir, v.g., em vez do seu inimigo dispensável e só contribui para estabelecer a confusão em vez do esclarecimento.
A, B, que se encontrava ao lado, quer por via de erro de execução (a bala saiu Efetivamente, por mais que nos esforcemos nunca conseguiremos encontrar
ao lado), quer por via de erro de perceção (confusão das vítimas), também aqui, quaisquer elementos de facto (v.g., o agente do crime de homicídio "quem", art. 0
em termos teleológicos, pouco importará que a morte seja a de A ou de B, a vida 131 do CP, não é simplesmente um ser humano, deve ter pelo menos 16 anos,
de um ser humano em todo o caso foi violada. Portanto o erro será irrelevante. art. 0 19 do CP e potencialmente poderá ser mesmo uma pessoa coletiva); nem os
As regras gerais, nos casos de objetos diferentes, deverão vigorar. O erro já será designados elementos de direito são meras criações jurídicas (v.g., o valor elevado
aqui relevante. No plano da valoração dos elementos do tipo legal de crime pelo da ai. a) do art. 0 202 do CP pressupõe uma determinada quantia monetária, que
respetivo agente, o desconhecimento das valorações do legislador (modalidade não deixa de existir de facto, sendo quantificada mesmo e devendo ter lugar num
do erro de valoração) haverá fundamentalmente que tomar em consideração três determinado momento e lugar, dentro da prática "do facto", ilícito típico, com
naturezas de situações. Por um lado, os casos em que a matéria seja a priori (antes todos os seus elementos de facto também). Por outro lado, a referência a um erro
e para além da valoração criminal) axiologicamente neutra ou predominantemente sobre proibições deixa antes de mais no intérprete a questão de saber se o erro
neutra, isto é, que não implique desde logo uma valoração eticamente negativa sobre condutas ativas, imposições (omissão) também é aqui abrangido ou tem
(v.g., proibição de caça aos coelhos em determinada zona do ano, criminalização uma regulamentação própria. O que trata o legislador neste lugar é daqueles casos
do abate clandestino de animais, estabelecimento de preços máximos de venda em que alguém age (ou não age, devendo fazê-lo), não por ignorância localizada
de produtos ao público, etc.), onde a regra será de algum modo a exclusão do em determinado ou determinados elementos do tipo legal de crime (v.g., objeto
dolo do agente, dada analogia com anteriores situações (cf. no entanto infra); por da ação, características desta, qualidades do agente, etc.), mas simplesmente por
outro, os casos em que a matéria seja de per se axiologicarnente relevante em ignorância do caráter proibitivo ou impositivo da conduta em causa (v.g., A ignora
termos consensuais (v.g., proibição do homicídio, de ofender a integridade física, que a caça aos lobos é proibida, que há limites de preço de venda de determinados
a propriedade alheia, etc.), onde só muito excecionalmente a ignorância pode bens, etc.). Trata-se assim de uma ignorância da lei.
aproveitar ao agente (infra); finalmente, aquelas matérias em que a incriminação da
Ora, como já deixamos acima dito, o fundamental em todos os casos é saber
conduta se afigure controversa (v.g., criminalização do aborto com consentimento
se o conhecimento do agente do elemento do tipo legal de crime ou da existência
da mulher grávida nos primeiros meses de vida intrauterina), onde vigorará a
da incriminação globalmente considerada são ou não necessários para que o agente
regra oposta, o agente poderá, por princípio, ver excluído (infra) o respetivo dolo
razoavelmente possa tomar consciência da ilicitude do seu comportamento. Assim,
(infra).
se A ignorava que B era seu amigo, confundindo com o seu inimigo de longa data,
O CP no art. 0 16 consagra ou pelo menos abrange a maior parte da doutrina C, o conhecimento da correta identidade de C, não é no caso indispensável para
razoavelmente A poder tomar consciência da ilicitude da sua conduta. A simples
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Direito Penal I
Fernando Conde Monteiro

com intenção de o realizar." Encontramo-nos aqui perante o designado dolo de


morte de alguém é já expressivo do desvalor da sua ação e logo da afirmação da
1.0 grau, dolo intencional, enquanto modalidade do dolo direto. A sua principal
sua consciência do ilícito. Por outro lado, matar alguém, por via de um erro na
característica consiste na "intenção" de realizar o crime por parte do agente. Por
execução do seu plano, (a vítima morreu antes do esperado por o veneno ter atuado
intenção deve-se considerar o querer realizar a conduta (incluindo o resultado)
de forma mais rápida do que o suposto), não impede igualmente a tomada aqui da
como fim principal, independentemente dos motivos.
consciência da ilicitude da conduta em causa. Também a simples ignorância da lei
que pune o homicídio não deve impedir a afirmação da possibilidade por parte do No n.2 deste preceito estabelece-se o designado dolo necessário, de 2. 0 grau,
agente da tomada em consideração da ilicitude do seu comportamento, ao invés, ainda enquanto formas de dolo direto. O agente configura a sua conduta (incluindo
por exemplo, da morte de determinada espécie de coelhos, recentemente objeto de o resultado) como consequência secundária, não desejada como fim principal,
proteção por via do alastramento de determinada doença. Portanto o critério em mas em todo o caso como inevitável em face da execução do seu comportamento
causa que anteriormente referimos sobre esta matéria, ou seja, de que este tipo de principal.
questões deve ser sempre encarado a partir de um ponto de vista teleológico tem
aqui plenamente cabimento. O chamado dolo eventual encontra-se plasmado no n. 3 do art. 0 em causa. O
preceito reza deste modo: "Quando a realização de um facto que preenche um tipo
Algo omisso no âmbito da regulamentação em causa diz respeito ao erro de crime for representado como consequência possível da conduta, há dolo se o
sobre circunstâncias atenuativas de um tipo legal de crime. Por um lado, deve-se agente atuar conformando-se com aquela realização."
antes de mais excluir de qualquer regime aquelas situações em que as mesmas
sejam inerentes ao próprio agente no seu plano interno (v.g., a morte produzida por Ao invés das expressões "intenção" (n. 1) ou "consequência necessária" (n.
alguém "dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou 2), surge agora o vocábulo "conformando-se". Portanto trata-se de delimitar o seu
motivo de relevante valor social ou moral. .. ", art. 0 133 do CP), porque dizendo conteúdo semântico, desde logo em face dos signos anteriores.
respeito a sentimentos, estados psicológicos, motivos, fins, etc. Aqui, ou o agente
atuou nesses estados ou não. Não é possível conceber um erro sobre este tipo Deste modo, o agente, ao pensar a conduta (mormente o resultado), não deve
de realidades. Por outro, os verdadeiros casos de erro (v.g., o art. 0 134 do CP, representar esta (ou este) como consequência desejada, sequer como facto não
sobre o homicídio a pedido da vítima) são aqueles em que efetivamente poderá diretamente querido mas em todo o caso inevitável em face do facto principal.
haver lugar a uma desconformidade entre o conteúdo do tipo legal de crime e Deve ao invés representá-la (representá-lo) como consequência ao menos possível
a perceção do respetivo agente (circunstâncias objetivas). Nestes últimos casos, e conformar-se com a sua concretização de facto.
o art. 0 16 do CP está fora desta questão. Efetivamente, estes elementos não se
Conformar-se, no plano literal, deve entender-se por "Aceitar e adaptar-se a
tomam necessários para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do seu 16
comportamento (art. 0 16 n. 1 in fine do CP). No entanto, teleologicamente, agir, uma situação desagradável ou penosa, o mesmo que acomodar-se, resignar-se."
ignorando, por exemplo, a existência de um "pedido sério, instante e expresso" Assim, o significado em causa e em termos pré-jurídicos é sinónimo de aceitação
(circunstância atenuativa), implica, por princípio, um dolo do tipo fundamental, de algo (mormente do resultado de uma conduta) ainda que tal não seja desejado,
não realizado e portanto consubstanciando uma tentativa do mesmo, se esta poder mas em todo o caso se configure como possível de ocorrer e nesta medida se
ter lugar. Assim sendo, a imputação do tipo atenuativo deve ter naturalmente de aceite uma vez ocorrendo. É assim o contrário daquelas situações de otimismo
ser excluída.
16 Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Vol. I,
O art. 0 14 n. 1 do CP estabelece o primeiro tipo de dolo. Aí diz-se: "Age
Verbo, 2001, vocábulo conforme(l).
com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar
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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

exagerado em que o agente, não obstante o risco alto de acontecer um concreto A teoria da dupla negação de Eduardo Correia afirma a existência do dolo
resultado, espera não obstante que ele não venha a verificar-se e assim age, v.g., eventual sempre que o agente não confiasse na não produção do resultado. Nestes
no caso em que alguém dispara um tiro em direção à maçã colocada na cabeça termos, caso o agente confie na produção do resultado, haverá naturalmente dolo
de uma pessoa, confiando que, como noutras alturas, a sua perícia mais uma vez eventual. Se confiar na não produção haverá lugar a negligência consciente. Caso
o fará acertar no alvo, quando de facto acerta no próprio ser humano. Portanto o não confie na verificação do resultado haverá ainda negligência consciente. Deste
que aqui conta não é somente o juízo objetivo de maior ou menor probabilidade modo, a não confiança na não produção do resultado significa apenas que em
de ocorrência da conduta. Este só por si é insuficiente. Ademais é ainda necessário termos de prova a imputação subjetiva do resultado a título de dolo eventual
um elemento cognitivo-emotivo: a resignação, a passividade, a anomia perante poderá ter lugar se não se provar o confiar na não produção. Acaba no fundo por
a possibilidade do acontecimento. Enfim, uma vontade para além da questão abstrair do elemento psicológico (aceitação) e se contentar com a probabilidade
puramente cognitiva. da conduta poder produzir o resultado. Desta forma, ao assentar num mero
artificialismo lógico, viola o teor literal do n.3 do art. o 14 em causa, que exige
Teoricamente este problema foi objeto de tratamento por várias doutrinas. uma conformação, incompatível com esta formulação.
À cabeça surgiram as teorias da probabilidade. Segundo os seus defensores, o
agente seria punível por dolo eventual e não por negligência consciente (art. o 15 As teorias do risco colocam o ponto de gravidade no facto do agente agir
al. a) do CP), quando previsse o resultado como consequência provável. No caso, tendo em conta o sério risco (probabilidade) de o resultado ter lugar. Ainda que
de representar esse mesmo resultado como meramente possível, haveria mera o agente esteja confiante que este não tenha lugar, se tal for muito provável, a
negligência consciente. Problema aqui é naturalmente e antes de mais saber como sua imputação terá lugar. Portanto, o que em última análise conta é o grau de
se distinguir probabilidade de mera possibilidade. Efetivamente e do ponto de vista probabilidade do acontecimento. Se o indivíduo, apesar de tudo o não deseja, nem
matemático (cálculo das probabilidades), um acontecimento próximo do Oé ainda sequer o aceita (eventualmente por um otimismo exagerado), tal será irrelevante.
provável, como o será se próximo de 1 (escala de O a 1). Não há assim distinção O designado caso da "correia de couro" ilustra exemplarmente esta afirmação.
entre probabilidade e previsibilidade. A utilizar não obstante esta distinção ficamos Tendo os dois ladrões ensaiado uma primeira tentativa de roubo utilizando uma
deste modo sem saber onde começa um e acaba o outro. Os autores não nos dão correia de couro que fizeram apertar no pescoço da vítima e que não resultou,
números (muitas vezes será mesmo impossível) e o recurso à experiência comum por esta continuar a resistir; tendo igualmente a segunda tentativa, utilizando um
pode naturalmente ser muito falível por via da óbvia indeterminação. Por outro saco de areia para a atordoar, sido frustrada; o retomo à primeira fase, com a
lado, o abdicar por completo do elemento cognitivo-emocional não se conjuga reutilização da correia de couro, não alterou o seu dolo de não produzir a morte
com o verbo conformar inerente ao n. 3 do art. o 14 supra citado. do ofendido. O aperto em demasia deveu-se naturalmente a um erro de execução.
Apertaram mais do que queriam. A imputação do homicídio a título de dolo só
As teorias da aceitação colocam a ênfase no plano emotivo. O agente pode se pode aqui justificar com base no risco criado (probabilidade de ocorrência
até não desejar o resultado, repudiá-lo mesmo, mas em todo o caso resignar-se do resultado), não no real estado psicológico dos agentes. Deste modo, viola-se
com a sua possível ocorrência, aceitando-o como possível consequência. Se A é 0
literalmente o disposto no n. 3 do art. 14 do CP in fine ("conformando-se"). Fica-
obrigado a acertar, com a sua flecha, na maçã colocada em cima da cabeça do seu se finalmente sem saber o que realmente significa "sério risco" de verificação do
filho, como forma de evitar a possível morte do mesmo filho e de si próprio (caso resultado. No caso concreto, quando os agentes inicialmente apertaram o pescoço
Guilherme Tell), este, ao executar tal ato, acaba por resignar-se com o possível da vítima com a correia, já não havia lugar a este sério risco?
erro de pontaria e com as consequências de tal comportamento (não excluindo a
possível morte do filho), conformando-se assim com estas mesmas consequências. Em conclusão, entendemos que o dolo eventual no direito positivo português
deve ser entendido como sinónimo de uma aceitação interior, ao menos indiferença,
126 127
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por parte do respetivo agente, não sendo suficiente o simples grau de possibilidade por via do estabelecimento de tipos incriminadores. Tal implica, por regra, que
de ocorrência do evento. Outra interpretação fere o sentido literal da expressão o princípio da determinabilidade não tenha lugar e assim se permita a criação ex
"conformando-se", sendo portanto inconstitucional por violação do princípio da novo de causas de justificação ou mesmo o seu alargamento. Portanto, a analogia
determinabilidade inerente ao princípio da legalidade. pode aqui ter perfeitamente lugar. Qualquer juiz poderá criar novas causas de
exclusão da ilicitude. O próprio costume, meio social podem fazer surgir novos
Uma nota final deve ser dita relativamente à disparidade de penas entre
tipos justificadores. Modernamente tem-se feito notar que o alargamento do
crimes dolosos e negligentes. Efetivamente, através de uma luz tão ténue quanto
espaço de intervenção do agente neste âmbito não deixa de se repercutir nos
a que separa dolo eventual de negligência consciente, o legislador português
seus concretos destinatários, que deverão ter de suportar limitações à sua esfera
estabelece abismais diferenças em termos de consequências jurídicas (v.g.,
jurídica daqui provenientes (dever de tolerância). Portanto, deste ponto de vista,
compare-se as penas do delito de homicídio simples (8 a 16 anos) do homicídio
haverá ao menos que ser cuidadoso, nesta tarefa, não isenta de efeitos restritivos
negligente simples (1 mês a 3 anos ou pena de multa). Tal naturalmente é de
também (espada de dois gumes).
difícil compreensão em termos político-criminais, tomando a vida do delinquente
dependente em larga medida de um jogo de lotaria. Neste contexto, a referência O art. 0 3 1 do CP no seu n. 1 estabelece de forma expressa o princípio da
a uma figura híbrida (temeridade), proveniente do direito anglo-saxónico, pode unidade da ordem jurídica, como critério de base presente na totalidade das
naturalmente ser bem vista. causas de justificação. Efetivamente, o legislador refere a impunibilidade de um
facto (com relevância criminal naturalmente), se "a sua ilicitude for excluída
pela ordem jurídica considerada na sua totalidade." Naturalmente que a questão
3. Os tipos justificadores (causa de justificação ou de exclusão fundamental a colocar é a de saber o que se deverá entender por unidade da ordem
jurídica como critério de aferição de qualquer causa justificativa. Uma desde
da ilicitude). O princípio da unidade jurídica
logo possível interpretação é a de considerar que unidade da ordem jurídica será
3.1. Especificidades dos tipos justificadores relativamente aos entendida como sinónimo da existência de uma causa de justificação proveniente
tipos incriminadores no plano da ilicitude de um qualquer ramo jurídico (civil, administrativo, fiscal, etc.), que por via
simplesmente disso se há de estender ao direito penal. Noutros termos, dir-se-á
Os tipos justificadores, causas de justificação ou causas de exclusão da que sempre que existir num qualquer ramo de direito uma causa de exclusão
ilicitude, uma vez tendo lugar no caso concreto, vão excluir o caráter indiciário da ilicitude ou o alargamento do seu âmbito aplicativo em comparação com
da ilicitude que a realização do tipo legal indicia, tomando o facto lícito e assim a mesma causa de exclusão da ilicitude no direito penal, por efeito do citado
permitindo a sua realização ou mesmo exigindo-a. Em definitivo, causas de princípio, tal deverá obrigatoriamente relevar no âmbito jurídico-penal. Assim,
justificação e tipos legais de crime concorrem no sentido de delimitar o conteúdo a existência de um tipo justificador no direito civil (v.g., art. 0 336 do CC, ação
de ilícito inerente a determinados tipos de comportamentos. direta) deverá por força do princípio em causa relevar no direito penal. Doutro
modo, teríamos um comportamento justificado num setor jurídico e portanto
Ao contrário do que sucede com os tipos legais de crime, em que se trata consentido (ou mesmo tomado obrigatório) e simultaneamente considerado
de restringir o espaço de liberdade dos cidadãos e portanto vigoram plenamente ilícito pelo ramo que contém precisamente as consequências jurídicas mais
as regras inerentes ao princípio da legalidade; no âmbito das causas de exclusão graves (o direito penal). Isto seria obviamente contraditório no âmbito da ordem
da ilicitude, sucede o oposto, ou seja, a criação ou alargamento destas implica jurídica considerada na sua totalidade. O agente seria, por um lado, obrigado
um aumento do espaço de liberdade do destinatário, a priori objeto de restrições ou seria-lhe permitida certa conduta e por outro, tal seria-lhe ao mesmo tempo

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

vedado. Noutros tennos, o indivíduo seria colocado pelo ordenamento jurídico pode deste modo implicar deveres de sentido oposto ao mesmo destinatário ou
perante um dilema sem resolução. Qualquer decisão a tomar teria sempre possibilitar-lhe o exercício de um falso direito (teoria do presente envenenado).
consequências jurídicas nefastas para o mesmo e nem sequer o facto de o
direito penal, globalmente considerado, estabelecer consequências mais graves A consequência em ambos os casos da possibilidade de legítima defesa
significaria que no caso concreto fosse assim mesmo (v.g., o agente poderia (penal, de outro ramo) mais adensa a questão em causa e apenas remete o intérprete
preferir ser punido criminalmente, por via de uma simples pena de multa do para o óbvio: só um conceito de unidade jurídica num plano bilateral faz sentido.
que perder o emprego público, sanção proveniente do direito administrativo). Noutros tennos, sempre que uma conduta seja considerada lícita por um qualquer
De resto, dada a especial natureza protetiva do direito penal relativamente aos ramo jurídico (incluindo o direito penal) deve ser considerada como lícita para
agentes dos crimes que prevê e por via da sua especial gravidade, dificilmente, todos os ramos jurídicos.
na prática, em casos como estes, o agente deveria ser punido (pense-se, v.g., no
O n. 2 do art. 0 31 exemplificativamente ("nomeadamente") refere nas
estado de necessidade desculpante ou no erro sobre a consciência da ilicitude).
suas alíneas quatro casos de causas de justificação. O seu desenvolvimento é
Por outro lado, se o agente desrespeitasse a norma que o obrigava a agir contra
realizado em artigos subsequentes: art. 0 32 (Legítima defesa), art. 0 34 (Direito de
o direito penal, na base da existência deste, dificilmente se poderia conceber
necessidade), art. 0 36 (Conflito de deveres), arts. 38 e 39 (sobre o consentimento).
a sua "punibilidade" no próprio âmbito do ramo que desrespeitou (causas de
Por consequência do que se disse sobre o princípio da unidade jurídica compreende-
exculpação poder1am desde logo ser chamadas à colação, senão e em último
se o caráter aberto deste número. Também por causa da menor incidência do
termo a própria Constituição, em derradeiro momento invocando a própria
princípio da detenninabilidade igualmente se aceita tal abertura. O legislador
dignidade da pessoa humana). Compreende-se nestes tennos que a ideia de
cuidou assim daquelas causas de exclusão da ilicitude de maior relevo prático.
unidade da ordem jurídica (princípio do não contraditório) tenha aqui pleno
Não deixa, por outro lado, de causar alguma perplexidade o facto de na al. b) se
sentido. Ficaríamos assim com um sentido de plenitude do princípio em causa.
referir tão só ao exercício de um direito como tipo justificador. O intérprete menos
Sempre que uma conduta esteja justificada por um qualquer setor não penal da
avisado seria desde logo levado a concluir que estaríamos perante um simples
ordem jurídica, tal relevará para o direito penal, como se tratasse de uma causa
exercício de um qualquer direito para imediatamente se ver justificada qualquer
de exclusão da ilicitude especificamente penal.
conduta relevante criminalmente. A, exercendo o seu direito de liberdade de
Agora a questão pode ser colocada ao contrário. Se há lugar no âmbito movimentação, invade a casa de B, para aí se alojar sem mais. Ora nada disto
jurídico-penal a um tipo justificador inexistente noutros ramos jurídicos tem lugar. O direito aqui referido é o direito de necessidade disciplinado no art. 0
ou com um âmbito de aplicação mais vasto, quid juris? Obviamente que 34. Falta assim precisão ao legislador. O mesmo sucede na al. c). Um qualquer
a responsabilidade penal estará excluída. No entanto, pode-se conceber a dever "imposto por lei" (v.g., dever de pagar impostos) não legitima o furto ou o
existência de uma responsabilidade civil, administrativa, disciplinar, etc., abuso de confiança. Uma ponderação de outros aspetos tem necessariamente que
em face de um ato justificado penalmente mas ao mesmo tempo considerado ter lugar. O art. 0 36 no seu n.l ocupa-se de um caso deste teor. O seu n. 2 doutro
ilícito por outros ramos? Como já deixámos dito, pode mesmo acontecer que a caso se ocupa.
consequência jurídica do ramo, globalmente considerado de menor gravidade,
Por outro lado, deve-se referir que não apenas a analogia, princípios gerais de
seja concretamente de maior gravidade (v.g., demissão do cargo ou despedimento
direito ou a via jurisprudencial podem criar novas causas de exclusão da ilicitude.
do emprego em face de simples multas provenientes do direito penal). Em todo
O costume, a adequação social (que pode ser vista também como expressão do
o caso, sempre a contraditoriedade normativa estará presente e com ela a divisão
costume) e portanto fora do âmbito estritamente jurídico, podem também ser
de personalidade do respetivo agente. Noutros termos, o ordenamento jurídico
fonte de causas de justificação. A esta luz o citado princípio da unidade da ordem
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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

jurídica faz pouco sentido. De resto, mais do que um princípio da unidade jurídica, 3.3. Elementos subjetivos dos tipos justificadores
o que inevitavelmente aqui se encontra é simplesmente um evidente princípio da
A primeira questão prévia a tomar em consideração diz respeito à necessária
não contraditoriedade lógica ou melhor do seu reflexo no plano jurídico (também
presença de elementos subjetivos nas causas de justificação. Efectivamente se
penal).
tem lugar nos tipos incriminadores um desvalor da ação, também será de admitir
igualmente a presença de um valor de ação nos tipos justificadores por contraste
com os primeiros, ao menos e enquanto regra geral, como mero conhecimento dos
3.2. Intentos de sistematização dos tipos justificadores seus elementos objetivos. A isto não será obstáculo o carácter por vezes ambíguo
do legislador sobre a presença de elementos subjetivos nestes (v.g., legítima
Tem-se pretendido reconduzir as causas de justificação a princípios gerais defesa ou direito de necessidade). A incidência do princípio da determinabilidade
de caráter monista (prevalência do maior interesse ou maior benefício) ou de
(a existir) não será semelhante à que tem lugar nos tipos incríminadores (também
natureza dualista (prevalência de interesse conflítuante e ausência de interesse,
neste último caso não se trata de uma incidência a cem por cento). Se de facto se
caso do consentimento), como foi neste último caso a posição de Mezger.
pode usar nas causas de exclusão da ilicitude da analogia ou mesmo de princípios
Independentemente da real utilidade deste tipo de abordagem (heurística,
gerais de direito no sentido da sua criação, por maioria de razão, se poderá empregar
simbólica, estética, etc.), tem-se formado uma forte corrente doutrinária no sentido
destes processos na determinação dos seus concretos elementos constitutivos.
de afirmar que todas as causas de exclusão da ilicitude repousam num conflito de
interesses e da consequente valoração de um deles em desvalor do sacrificado. Assim sendo, trata-se aqui de situações em que o agente atua em total
Tal aconteceria na legítima defesa, com a maior valorização do interesse do conformidade com os elementos objetivos de uma causa de justificação, mas
defensor em face do agressor, no direito de necessidade ao se valorar o interesse ignorando algum ou a totalidade desses elementos. Deste modo não existe
do necessitado em face ofendido, etc. O próprio consentimento implicaria em si congruência entre o aspeto subjetivo (ao menos como sinónimo de conhecimento
mesmo um conflito entre a vontade do titular do bem ofendido e o interesse geral dos citados elementos) e o aspeto objetivo. A, depois de recusar um pedido de B
da ordem jurídica em aceitar esse consentimento. para cortar certos pinheiros da sua propriedade, acaba por aceder posteriormente
em email que envia ao citado B, que por seu turno dele não tem conhecimento
Já os tipos legais de crime não seriam construídos nesta base. Neles tratar-se-
e mesmo assim, depois deste ser enviado, manda abater os pinheiros em causa,
ia apenas de subsumir condutas aos seus elementos constitutivos.
consciente da falta de consentimento de A, que na realidade existia e estava
Temos mais do que dúvidas em aceitar tal perspetiva. Efetívamente os conforme os requisitos do art. 0 38 do CP.
tipos legais de crime assentam na sua construção original num conflito entre os
Tratando-se do oposto do erro sobre pressupostos ou elementos de uma causa
interesses, valores ou princípios que eles visam proteger e as limitações jurídicas
de justificação (infra), o que desde logo aqui sobressaí é o desvalor da ação do
neles incluídas relativamente a quem integrar os seus elementos constitutivos. E tal
respetívo agente. Noutros termos, a conduta é em si mesma, na sua formalidade
tem lugar, aquando da aferição da tipicidade da conduta do respetivo delinquente,
objetiva, conforme o tipo justificativo, mas a atitude do agente é totalmente
em que o processo de determinação das espécies e medidas das consequências
desconforme com essa formalidade objetíva.
jurídicas inevitavelmente reflete.
Uma primeira possibilidade de encarar esta problemática seria considerar a
Portanto a individualização em geral das causas de justificação não apresenta
totalidade da conduta realizada pelo agente como um crime consumado, por via da
características, do ponto de vista aqui analisado, singulares relativamente aos
contaminação da conduta justificativa em consequência da ausência do elemento
tipos legais de crime.
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subjetivo. Efetivamente, dir-se-ia que foi realizado integralmente um tipo legal de 3.4. A aceitação errónea de uma causa de justificação
crime (no exemplo dado, o crime de dano do art. 0 212 do CP). O agente preencheu
a totalidade dos elementos objetivos do crime realizado e agiu também com o No erro sobre pressupostos objetivos de uma causa de justificação, o agente
dolo correspondente. A sua punibilidade em termos de consumação seria assim a julga existir um ou mais elementos objetivos de um tipo justificador quando tal
consequência natural de toda esta argumentação. não acontece na prática. A, vendo B, seu inimigo de longa data, aproximar-se
de si e julgando que o vai agredir, desfere-lhe um soco, quando, B, convertido
A tese que defende aqui a aplicabilidade da figura da tentativa de um crime recentemente a uma seita religiosa, iria apenas encetar uma conversa para se
pretende ver nesta problemática uma conduta não inteiramente consumada por conciliarem. Assim, A configurou mentalmente a existência de uma agressão
virtude do dolo do agente. A sua analogia com a tentativa impossível (cf. art. 0 iminente e ilícita (cf. art. 0 32 do CP) que realmente não existia.
23 n. 3 do CP) é assim invocada. O agente quer praticar um delito integral, mas
objetivamente não o consegue, ficando-se pela prática de atos impossíveis de Uma primeira forma de resolver este tipo de problema será o de considerar
realizar o tipo de ilícito e portanto pela tentativa (impossível). que o erro, se censurável, não deverá excluir o dolo do agente, pela simples razão
de este ter realmente cometido um ilícito típico na sua integralidade - teoria da
A nossa opinião é no sentido de que aqui a exigência de elementos subj etivos culpa radical ou extrema.
e a sua ausência pelo respetivo agente vão naturalmente inquinar a totalidade da
conduta realizada. Não se tratará assim de uma simples tentativa, o crime estará No entanto, a melhor forma de encarar o problema é de aplicar analogicamente
simplesmente consumado. O efeito justificativo não teve lugar e por consequência a doutrina relativa ao erro sobre elementos objetivos ou de proibições de um tipo
se o agente cometeu um crime integralmente e por ele mesmo deve ser punido, a legal de crime (supra). Efetivamente, quer aquele que age por desconhecimento
menos que este não se tenha consumado ... de um pressuposto de um tipo de crime (v.g., A ignora que a arma está carregada e
dispara sobre B, matando-o) ou em erro de proibição (v.g., A ignora que a caça aos
O art. 0 38 n. 4 do CP parece apontar para a primeira perspetiva. Efetivamente patos bravos foi recentemente proibida) encontra-se teleologicamente na mesma
em nenhuma parte do CP o legislador se refere a este tipo de casos como integrando situação daquele que, por erro, representa um ou mais pressupostos de uma causa
a figura da tentativa. Não o faz quando trata desta figura (arts. 22 a 25) e por outro de justificação (v.g., A pensa que B lhe deu consentimento para cortar os seus
lado, o citado art. 0 38, a propósito do consentimento, quando este tiver lugar e pinheiros quando tal não aconteceu de facto). A teoria da culpa limitada deve ser
o agente o desconheça (caso do nosso exemplo), manda tão só aplicar as penas a seguida (cf. art. 0 16 n. 2 do CP).
inerentes à tentativa do delito realizado. Não afirma que se trata de tentativa, a
fazê-lo, podia tal ter lugar nos referidos preceitos atinentes a esta figura (tentativa). Não sendo o erro censurável, isto é, à luz de um critério objetivo e tendo
Por outro lado, o facto de apenas tratar desta problemática no consentimento também em conta a situação concreta do agente (cf. art. 0 15, l.a parte do CP), a
indicia que o regime aqui traçado será de favor em função de uma punibilidade em culpa deve ser naturalmente excluída.
termos de crime consumado. Doutra forma, como entender este regime? A causa
de justificação em análise justifica de per se um regime diferente em comparação
com outras justificativas? A não ser assim, parecerá plausível que este regime 3.5. Efeitos das causas de justificação
particularmente favorável se possa estender às demais causas de exclusão da
ilicitude. Nestes termos, estaríamos perante também o condicionalismo próprio Uma causa de justificação transforma um facto aparentemente ilícito em
da aplicabilidade da tentativa. Se esta não fosse punível o ato realizado também lícito, logo excluindo a legítima defesa (cf. art. 0 32 do CP). Por via disto o seu
o não seria. âmbito estende-se a qualquer comparticipante da mesma e torna-se impensável a

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aplicação de qualquer medida de segurança (cf. arts. 91 e 100 a 103 do CP). CPY Esquematicamente poderemos traçar dois tipos de pressupostos no âmbito
desta justificante. Antes de mais, deveremos atentar aos requisitos inerentes à
Uma causa de exculpação não apaga a ilicitude do facto, vale em termos situação de legítima defesa (agressão). À cabeça encontramos a necessidade de
puramente individuais e ainda que excecionalmente pode consentir na aplicação existir uma agressão. Esta poderá corporizar-se em ações positivas ou negativas.
de medidas de segurança.
Terá de provir de seres humanos direta ou indiretamente, eventualmente de seres
coletivos. Devem finamente ser condutas domináveis objetivamente pelos seus
autores. A agressão deve ser atual, ou seja, deve ser iminente no sentido de colocar
3.6. A legítima defesa em risco bens jurídicos. Se se tratar da realização de crimes deve estar na fase
da tentativa, eventualmente no âmbito da consumação (v.g., crimes permanentes,
3.6.1. Fundamento omissivos próprios, etc.). Deve também ser ilícita, isto é, deve poder colocar em
causa bens jurídicos, no sentido de os poder lesar, quer sejam de natureza penal
3.6.2. A situação de legítima defesa: requisitos ou não, de caráter individual ou coletivo, do agente ou de terceiro. Condutas
justificadas não consentem, como já referimos, a legítima defesa, por não serem
3.6.3. A ação de defesa: requisitos
ilícitas. A agressão ilícita pode ser dolosa ou negligente e mesmo realizada sem
3.6.4. O auxílio necessário culpa.

3.6.5. O direito de legítima defesa jurídico-civil (art. 0 337 do Os segundos tipos de pressupostos da legítima defesa dizem respeito à defesa.
CC) Esta deverá ser necessária para evitar a lesão dos bens jurídicos colocados em
causa pelo agressor. Serão juízos da experiência comum que ditarão da necessidade
A legítima defesa tem o seu fundamento em inelutáveis necessidades da defesa do agredido. O recurso a autoridades públicas já está englobado na
preventivas de âmbito geral (prevenção geral positiva e negativa) e especial "necessidade do meio" previsto no art. 0 32. Em caso de dúvida na aferição deste
(positiva e negativa). O defensor, ao neutralizar a ação do agressor, reafirma requisito deve-se favorecer o defensor e não o agressor. O objeto da defesa só
não apenas o seu concreto direito ou interesse (eventualmente de terceiro, infra) pode ser o agressor e mais ninguém. Como elemento subjetivo desta justificante a
mas igualmente a ordem jurídica como um todo, reafirmando o direito enquanto doutrina tende a considerar pelo menos o conhecimento dos pressupostos objetivos
tal face ao ilícito (prevenção geral positiva) e não deixando a aprovação da sua desta causa de justificação (supra).
conduta pela ordem jurídica de constituir um exemplo para os demais possíveis
agressores (prevenção geral negativa). Por outro lado, na medida em que atua A defesa por parte do defensor não é naturalmente ilimitada, ainda que
contra o agressor (e caso este sobreviva em termos de consciência), tal constituirá necessária. Limiares mínimos de dignidade humana devem aqui ser tidos em
(ou poderá constituir) uma forma de inibição para o futuro (prevenção especial conta. Não se deve considerar justificada uma defesa necessária mas que lese bens
negativa) e mesmo de reintegração do agente no plano da socialibilidade jurídicos muito desproporcionais relativamente aos defendidos, que não tenha
(prevenção especial positiva). Tal será particularmente expressivo tendo desde minimamente em consideração a ausência de culpa ou a sua acentuada diminuição
logo em conta que, ao contrário das penas, na legítima defesa, não se reage após pelo agressor, que abstenha em absoluto do relacionamento entre agressor e
um delito estar realizado, mas evitando a sua concretização. agredido (v.g., comunidades de vida), etc.

A legítima defesa encontra a sua principal regulamentação no art. 0 32 do 17


Sobre o uso de armas de fogo por particulares e entes policiais, vide Lei n. 0 5/2006, de 23 de
Fevereiro e Decreto-Lei n. 0 457/99 de 5 de Novembro.
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A defesa pode finalmente ser própria ou alheia. em causa assemelhar-se-á ao homólogo conceito inerente à legítima defesa. Ainda
com uma particularidade. Por virtude da muito maior proteção que a vítima aqui
Por consequência do princípio da unidade da ordem jurídica, a legítima defesa recebe, em comparação com a legítima defesa (supra), uma maior latitude (ou
civil (art. 0 337 do CC) terá o mesmo conteúdo que a do direito penal (supra). menor rigor) na avaliação deste requisito faz por isso sentido. Por exemplo, a
ameaça de derrocada de um edifício pode não ser iminente, como se exige na
legítima defesa e no entanto justificar uma ação de necessidade.
3.7. Os estados de necessidade justificantes
Na al. a) do art. 0 em causa o legislador inviabiliza a atuação do necessitado, se
3.7.1. O direito de necessidade do art. 0 34 do CP a origem do perigo tiver "sido criada voluntariamente pelo agente". Literalmente,
se alguém tiver criado, por decisão própria, a situação de perigo, por exemplo,
O art. 0 31 n. 0 2 al. b) do CP dispõe que o exercício de um direito justifica tentando suicidar-se, não poderá socorrer-se (ou outrem em seu nome), numa fase
um facto, ao abrigo desta causa de exclusão de ilicitude. Como anteriormente posterior, de um terceiro para assim evitar a concretização da sua morte (moral
referimos, por exercício de um direito não se deve entender a prática de um homicida). E se é certo que este exemplo não se coaduna muito com a orientação
qualquer direito, algo que seria puramente absurdo (supra). O direito em causa político-criminal seguida pelo legislador penal [neste plano e de certa maneira, por
diz respeito ao designado direito de necessidade, previsto desde logo no art. 0 34 exemplo, os arts. 134 ("Homicídio a pedido da vítima") ou 135 ("Incitamento ao
do CP. ajuda ao suicídio"), ambos do CP, estão na antítese da solução do art. 0 34, assim
entendido], o certo é que, embora político-criminalmente criticável, a decisão do
Os pressupostos desta justificante podem ser divididos em dois grandes grupos. legislador é ainda aceitável. Se a única possibilidade de salvar a vida ao consumidor
Por um lado, os atinentes à questão do perigo (suas características e origem), de estupefacientes, que utilizou uma overdose para pôr um fim à sua existência,
dizendo assim respeito à situação de necessidade. Por outro, os concernentes ao é utilizar o automóvel de um terceiro, este conservará sempre a possibilidade de
meio utilizado (suas características) para colocar fim à possível concretização do negar tal alternativa, ainda que tal signifique o fim da vida de alguém. ("moral
pengo em causa. egoística"). O princípio da responsabilização individual pelos seus próprios atos
será aqui seguido de forma extrema ("individualismo radical"). Apenas situações
Antes de mais os interesses colocados em perigo no sentido de serem
de negligência poderão escapar a este banimento. Outra interpretação contrairá
lesionados devem ser "interesses juridicamente protegidos". Portanto haverá um
uma decisão legal, expressa pelo legislador e portanto carecendo de legitimidade
largo leque de interesses a justificar a sua defesa nesta causa de justificação. Não
constitucional (princípio da legalidade). A única exceção a isto tem que ver com a
serão deste modo apenas interesses protegidos penalmente, mas igualmente por
proteção de terceiro algo compreensível a esta luz.
outros ramos jurídicos (direito constitucional, internacional, civil, administrativo,
de trabalho, etc.). Poderão naturalmente ser privados ("do agente") como também A atuação do necessitado ou de terceiro em seu interesse está antes de mais
públicos ("de terceiro"). A especial proteção que o lesado merece nesta causa de subordinada a um critério de necessidade. Obviamente que, se a conduta em
exclusão da ilicitude isto mesmo permite (defesa de interesses públicos). causa de salvação do interesse em risco não for empiricamente (à luz de juízos
da experiência comum) justificada, será naturalmente ilegítima. Considerações
O perigo aqui referido deve ser sinónimo de risco de lesão dos citados
atinentes a meios disponíveis, alternativos, sua eficácia, sua execução concreta,
interesses. Como no âmbito da legítima defesa, também nada impede que quando
etc. deverão naturalmente ter lugar.
se trate de interesses "comprimidos" (v.g., liberdade, privacidade) o perigo de
continuar a lesão ainda justifique a ação de necessidade. Deste modo a atualidade

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No entanto, se a necessidade, tecnicamente encarada, é imprescindível, não é mas no seu corpo inicial ("meio adequado"). Efetivamente é na ponderação de um
neste caso suficiente. Ao invés da legítima defesa, em que o legislador se contenta maior ou menor conjunto de aspetos relevantes ao caso, desde logo caracterizados
com a referência ao "meio necessário", aqui o meio deve ser para além do mais por não dizerem respeito à ponderação dos interesses conflituantes e que podem
"adequado". passar, por exemplo, pelo citado maior ou menor risco de produção de danos em
confronto, pela maior ou menor contribuição do próprio necessitado na criação da
A remissão para a adequabilidade do meio implica antes de mais a necessidade
situação de perigo (supra), na maior ou menor facilidade de o terceiro inocente
de ponderação dos interesses em conflito. Ainda aqui e ao contrário da legítima
disponibilizar a sua esfera jurídica em favor do necessitado, etc., que se deve partir
defesa, onde nenhuma referência à ponderação de bens tem lugar, o legislador
ou pelo menos atender. Deste modo, a efetiva ponderação de interesses acresce
estabelece na al. b) do art. em causa o requisito de "haver sensível superioridade do
0

aos aspetos em causa, embora naturalmente nunca esteja ausente.


interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado". A não referência
a princípios ponderativos na legítima defesa explica-se pelo facto de o agressor Ponderar interesses em colisão implica naturalmente a utilização de critérios
ser alguém que age ilicitamente e assim se justificando a defesa do agredido, de valoração dos mesmos. Tirando o caso da vida que ou tem lugar ou não, os
que atua num plano de prevenção, também geral e portanto salvaguardando o restantes interesses podem ser avaliados de acordo com o maior ou menor dano
interesse máximo da vigência da ordem jurídica no seu todo (supra). No direito neles efetivado ou a efetivar (risco de acontecer). Assim, a integridade física pode
de necessidade, passa-se o inverso. O sacrificado não é o agressor da primeira ser mais ou menos limitada, como a liberdade de movimentação, privacidade, honra,
justificante referida. Trata-se tão só de um terceiro inocente. A sua proteção é etc. Portanto a natureza do dano, a sua extensão (quer avaliada qualitativamente,
assim assumida pelo legislador de forma muito expressiva. Efetivamente, no quer quantitativamente) ou o risco da sua produção podem ser essenciais na
caso português, não basta, literalmente, haver a aludida sensível superioridade de ponderação a realizar. Fundamental aqui é que tal aconteça segundo critérios de
interesses. Toma-se ainda necessário "Ser razoável impor ao lesado o sacrificio objetividade e não num plano de subjetividade, pois seguindo este último caminho
do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado" (al. c). o arbítrio dominaria totalmente tomando inviável (dispensável) qualquer critério
Quer dizer, perante a sensível superioridade de interesses em confronto, pode tal legal e assim impossibilitando frequentemente qualquer atuação do necessitado
ainda não ser suficiente para se justificar a intervenção do necessitado ou de quem ou de alguém no seu interesse, que poderia ser sempre surpreendido por decisões
aja em seu interesse. Ainda será preciso discutir a natureza e o valor do interesse inesperadas do lesado. Ainda neste âmbito, o critério de funcionalidade extensível
ameaçado. a outros interesses que não o em causa, mas derivado deste, deve naturalmente
ser tomado em consideração. De facto, a importância do bem vida deriva desde
Este princípio, literalmente interpretado, contudo, não resiste a um maior
logo de este valor ser o substrato sem o qual a praticamente totalidade dos outros
desenvolvimento exegético. Efetívamente, não apenas se deve tomar em
valores ou interesses não têm lugar. Morrendo alguém, não faz sentido falar-se
consideração os interesses em causa, de per se considerados. Desde logo a questão
em integridade física, liberdade, direito à palavra, segurança, etc. Mesmo valores
da natureza dos riscos em conflito, para o lesado ou/e, e para o necessitado pode
como a privacidade de alguém já morto, sua honra só em verdade têm significado
eventualmente ser algo de decisivo no caso concreto. Por exemplo, face a um
relativamente a terceiros vivos. Quem morreu (no mundo fenomenal em que
risco abstrato de produção de danos (condução de um veículo motorizado acima
vivemos) não existe e portanto não pode ser titular em si próprio de quaisquer
do permitido em termos de velocidade numa autoestrada) e a um risco concreto
interesses, como é óbvio. Neste plano, há interesses mais gerais do que outros, isto
de verificação de danos (possibilidade iminente de morte de um sinistrado), a
é, que se repercutem mais em outros interesses, quando lesados. Assim, privações
decisão de justificar a conduta realizada pode ter lugar quase sem ponderar a
contínuas da liberdade podem afetar outros interesses, como por exemplo o
natureza e espécie de interesses em causa. Portanto o conceito chave a tomar em
direito ao trabalho, à liberdade sexual, procriação, honra, privacidade, etc., em
consideração neste âmbito não se encontra nas alíneas b) e c) da norma em causa,
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comparação com outros interesses de efeitos mais específicos (por exemplo, a 3.8. O conflito de deveres justificante do art. 0 36 do CP
privação de procriar). De resto, dependendo do caso concreto, poderemos ter
um mesmo interesse a lesar mais ou menos interesses diferentes. A privação da O n.l do art. 0 36 do CP estabelece a justificação de qualquer conduta que
liberdade de alguém pode ser suficientemente ampla para que o agente ainda em caso de conflito de deveres ou de ordens legítimas de autoridade satisfazer
se possa movimentar fisicamente, possa exercer a sua atividade profissional, o dever ou ordem pelo menos de igual valor ao sacrificado (princípio mínimo
atividades intelectuais, etc., como também pode limitar drasticamente o mesmo da equivalência de valores). Caso se trate de uma superioridade de valor sobre
indivíduo afetando-o ao ponto de lhe poder produzir a própria morte. outro este (valor superior) deverá logicamente ser seguido (princípio do valor
prevalecente).
Sensível superioridade significa a priori uma maior importância de determinado
interesse sobre outro. Não se trata somente de uma mera superioridade, mas de uma Literalmente entendido este artigo possibilitaria que alguém numa situação
efetiva e clara superioridade. Como deixámos acima referido, esta superioridade de garante (v.g., o pai que deve zelar pela saúde dos seus filhos) pudesse sem
não pode simplesmente abdicar da situação concreta, por virtude da possibilidade mais colocar em causa interesses ao menos de natureza semelhante aos que lhe
de graus, espécies e sentidos de possíveis lesões a concretizar-se ou concretizadas. coubesse prosseguir ou então de natureza inferior (no caso vertente, o pai A poderia
Deve também utilizar-se critérios de objetividade, como igualmente acima fizemos sequestrar B, retirar-lhe contra sua vontade um rim para salvar a sua filha da morte
referência. Neste contexto a supra citada al. c) do art. 0 34 nada de efetivamente por via do mau funcionamento dos seus rins). Tal seria naturalmente contrário
novo traz à questão em causa. Porquê a simples referência ao interesse ameaçado desde logo à dignidade da pessoa humana, colocando o direito (penal) ao serviço
e não também ao interesse a postergar? Na sensível superioridade interesses não daqueles que tivessem mais poder em desfavor dos menos protegidos, violando-se
se contém já isto mesmo? deste modo o princípio da igualdade dos seres humanos e da sua expressão mais
imediata, ou seja, da sua autonomia ética.
Sobre o elemento subjetivo mantemos o posicionamento anteriormente
referido de o aceitar como mero conhecimento dos elementos objetivos. Constitucional e axiologicamente o artigo em causa deve ser interpretado
restritivamente. O conflito em causa diz apenas respeito a deveres de conteúdo
Como também já deixámos dito, a conduta de salvação do interesse ameaçado positivo (v.g., um bombeiro em face de uma situação de perigo de vida para duas
pode ser também realizada por terceiro e não somente pelo necessitado. pessoas e só podendo salvar uma delas, nunca poderia ser responsabilizado pela
morte de uma delas).
Por tudo o que se disse, não será dificil compreender que o fundamento desta
justificante repousa na solidariedade humana consubstanciada no sacrifício de O artigo em causa vale essencialmente pelo estabelecimento do princípio
um terceiro inocente em prol de um necessitado de auxílio. Trata-se assim de do interesse prevalecente no caso concreto, dado que em situações de igualdade
estabelecer um dever de tolerância de invasão da esfera jurídica de alguém em nunca ninguém naturalmente poderia ser responsável por não poder salvaguardar
favor de outrem. a totalidade dos bens em risco (algo de resto muito frequente em situações de
calamidade pública).
Por via do já estudado princípio da unidade da ordem jurídica, o art.o 339 do
CC foi revogado pelo atual art.34 do CP. Por outro lado, estranha-se a demasiada abertura do legislador neste âmbito.
Se a questão, como referimos, apenas diz respeito a conflitos entre normas
positivas, porque é que o legislador não o disse desde logo?

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

Por outro lado ainda, resulta sem grande sentido a referência às ordens 3.9. O estado de necessidade defensivo jurídico-penal
legítimas de autoridade conflituantes. Não são estas também deveres?
Esta causa de justificação não encontra qualquer regulamentação no direito
Sobre os critérios definidores das hierarquias de valores, remetemos o leitor positivo português. A sua origem provém da Alemanha. De qualquer maneira já
para o ponto acima estudado sobre o direito de necessidade com as devidas sabemos que tal não constitui óbice à sua aceitabilidade.
adaptações.
Também aqui, como no caso do direito de necessidade, trata-se de extinguir
Já o n. 2 introduz questões de particular melindre. Neste dispositivo, afirma- um perigo de lesão de bens jurídicos. Só que ao invés daquele, não se trata de
se que o dever de obediência hierárquica cessa quando conduz à prática de um interferir na esfera jurídica de um terceiro alheio à produção do perigo. A conduta
crime. do defendente só pode ter como destinatário o agente produtor do perigo que
se quer neutralizar. No entanto, ao contrário da legítima defesa, o agente donde
Este preceito reproduz em essência o disposto no n. 3 do art. 0 271 da CRP. provém o perigo não está a agir ilicitamente (quando muito já agiu), pode nem
Este artigo depois de afirmar no seu n. 1 o princípio da responsabilização dos sequer ter havido qualquer agressão (v.g., há um perigo de a grávida falecer se der
funcionários públicos e agentes do Estado, também no plano criminal, abre a porta à luz, só tal se podendo evitar através do aborto do feto) ou esta não ser atual (v.g.,
à sua exclusão, no seu n. 2, estabelecendo o designado direito de representação o furto já está consumado porque a coisa já entrou na posse do ladrão).
(possibilidade de reclamação ou confirmação por escrito de ordens de superiores
hierárquicos, no âmbito da sua competência material e formal, por parte dos A partir daqui pode-se compreender o regime desta figura jurídica situado
inferiores hierárquicos). De notar que, neste caso, pode-se estar perante ordens entre o direito de necessidade e a legítima defesa. Se não há uma agressão
ou instruções ilegais, mesmo conducentes a crimes. Sob este ponto de vista, o n. atual e ilícita, não pode admitir-se uma ação cortante pelo defensor. Por outro
3 (reproduzido no texto penal) não traz nada de especialmente significativo a este lado, se o perigo provém do indivíduo contra quem se age, tal afasta o regime
tipo de situações. Efetivamente, tratando-se de ordens ilegais, mal se concebe protetivo do direito de necessidade. Deste modo, a ação do defensor, para além
a existência de um dever de obediência. Num Estado de direito democrático, o de necessária, não deve lesar bens ou interesses muito inferiores aos que visa
princípio da legalidade é, deve ser uma regra de ouro. A ideia de uma obediência defender, contrariamente ao que sucede na legítima defesa.
cega, justificada por razões de eficácia, é algo pertencente a um passado, que se
entende estar definitivamente enterrado. Questões de dúvida por parte do inferior
hierárquico poderão ainda ter uma resposta no plano da culpa (art. 0 37 do CP).
3.10. Os consentimentos justificantes
Em síntese o preceito em causa é de todo estranho à problemática em referência
3.10.1. O consentimento real (ou simplesmente
(conflito de deveres). Não há aqui qualquer conflito. Se a ordem ou instrução
"consentimento")
forem ilegais (formal, orgânica, materialmente) cessa o dever de acatamento e
portanto o conflito nem chega a ter lugar. 3.10.2. O consentimento presumido

Antes de mais deve-se referir que o consentimento enquanto causa de


justificação se distingue do mesmo consentimento como causa de atipicidade.
Efetivamente, se alguém convida outrem para o visitar em sua casa ou ter relações
sexuais, tal não se encontra subordinado aos requisitos formais ou substanciais

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

do consentimento enquanto causa de justificação. Nestes exemplos, os respetivos embora necessário, não é suficiente. É preciso ainda que se possua "o
tipos legais (violação de domicílio, art. 0 190 n. 1 e violação, art. 0 164 n. 1, ambos discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em
do CP) só fazem sentido se as condutas em conflito (introdução em casa alheia que o presta." Este dispositivo leva-nos à formulação de duas interrogações. Por
ou ter cópula) forem realizadas contra a vontade do titular dos bens jurídicos em um lado, ficamos sem saber da real utilidade da segunda parte deste n. 3. Se já
causa (privacidade, autodeterminação sexual). Uma vez, sendo conformes à sua no n. 2 se exige a vontade "livre e esclarecida", em que é que o discernimento
vontade, as condutas perdem qualquer sentido de desvalor, tomando-se atípicas, necessário para avaliar o seu sentido e alcance se salienta face ao citado n. 2? Se
mesmo podendo ser valoradas positivamente (o convite para ir a casa pode ser a vontade é esclarecida, é porque houve o necessário discernimento para avaliar
considerado de grande significado para o titular do bem jurídico ou mesmo para o seu sentido e alcance. Se este não teve lugar, então, é porque a vontade não
ambos, assim como a realização de relações sexuais, imprescindíveis desde logo pode ser considerada como esclarecida ... Por outro lado, mal compreendemos
(e já foram mais do que são atualmente) para a manutenção da espécie humana. que os requisitos atinentes à idade e ao discernimento necessário para avaliar o
seu conteúdo sejam meros requisitos de eficácia. Quer dizer, se uma criança de
O consentimento, enquanto causa de exclusão da ilicitude, tem antes de seis anos presta o seu consentimento, ademais sem compreender o seu sentido, tal
mais a sua regulamentação no Código Penal português (veja-se desde logo os é considerado como válido, mas ineficaz? Já se um adulto o prestar, sem que tal
arts. 38 e 39). Nestes termos, haverá que a priori distinguir entre consentimento expresse uma vontade devidamente esclarecida, não é válido?
efetívo (art. 0 38) e presumido (art. 0 39). Antes ainda disto, deve-se atentar, que à
parte do regime geral estabelecido nestes dois artigos, haverá que considerar os No n. 1 do artigo em referência, subordina-se o consentimento a duas
"casos especialmente previstos na lei" (art. 0 38 n. 1 do CP). Estes encontram a sua condições materiais. Por um lado, tratar-se de interesses jurídicos livremente
específica regulamentação fora do CP, por exemplo, através da Lei 46/2004 de disponíveis, por outro não deve haver lugar à ofensa de bons costumes.
19/8 (regime jurídico sobre ensaios clínicos com medicamentos de uso humano)
ou da Lei 12/93 de 22/4 (com várias alterações), sobre a colheita e transplante de Por "interesses jurídicos livremente disponíveis", literalmente, dever-se-
órgãos e tecidos de origem humana, também na parte especial do CP, v.g., arts. ia entender aqueles interesses sobre os quais o respetivo titular pudesse dispor
156 e 157. "livremente", isto é, sem quaisquer limitações. Estaríamos assim perante os citados
casos em que o consentimento surge como causa de atipicidade do comportamento
Ainda nos termos do art. 0 38, consentimento efetivo, no seu n. 2, afirma- consentido (autodeterminação sexual, privacidade, etc.). Ora o que o legislador
se que "o consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma pretende é o contrário disto. Ou seja, trata-se de situações de limitações à livre
vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido". disponibilidade por parte do respetivo titular. Este poderá deles dispor mas com
À parte do estabelecimento do princípio da liberdade da forma em termos de limites. Portanto o legislador deveria ao invés referir-se a interesses disponíveis
expressão ("qualquer meio"), exige o legislador que tal no entanto expresse "uma de forma limitada.
vontade séria, livre e esclarecida", algo naturalmente que nem sempre poderá ter
lugar, desde logo por via da liberdade de forma e assim se podendo colocar vários Por outro lado, a haver interesses limitados em termos dispositivos, tal implica
problemas práticos no sentido da aferição do seu real conteúdo. Por outro lado, necessariamente a existência de critérios nesse sentido. Deste modo, o legislador
a possibilidade de livre revogação "até à execução do facto." (última parte deste deveria logicamente estabelecer, pelo menos alguns critérios neste âmbito. Ora
n. 2) reforça o caráter de voluntariedade que se pretende do consentimento dado. nada disto sucede. Ao lado da afirmação sem mais da disponibilidade do interesse
jurídico, surge-nos cumulativamente a referência à não ofensa aos bons costumes.
No n. 3 do mesmo artigo, afirma-se que "O consentimento só é eficaz se Quer dizer, primeiramente teremos de arranjar quaisquer critérios para considerar
for prestado por quem tiver mais de 16 anos". Por outro lado, este pressuposto, um interesse como disponível para depois ainda introduzirmos o critério dos bons

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal]

costumes, que o legislador aqui não explicita. Tudo isto constitui uma péssima permanece contudo obscuro. Nunca até agora ninguém conseguiu demonstrar
política criminal. a liberdade do agir humano, suporte essencial para se poder censurar alguém
por algo, mormente pela prática de um crime. E se também é certo que nunca
Ao longo da parte especial encontramos no entanto algumas disposições
até aos dias de hoje ninguém conseguiu demonstrar o caráter determinístico do
relevantes para o nosso problema. Antes de mais, o art. 0 149 do CP afirma a
nosso agir, igualmente não é menos verdade que poderemos viver ignorando
"livre" disponibilidade da integridade física (n. 1), sem mais. Depois, no seu n.
a questão da natureza última da liberdade, nunca porém abdicando da ideia de
2, estabelece, a título exemplificativo, alguns critérios (motivos e fins do agente e
que todo o universo ou meio que nos cerca, incluindo nós mesmos, estamos de
do ofendido, meios empregados, amplitude previsível da ofensa), que se referem
qualquer maneira sujeitos a leis, que nos permitem realizar previsões sobre os
aos bons costumes, ou seja, que podem limitar a disponibilidade do interesse em
acontecimentos, inclusive sobre os atos humanos. Noutros termos, a necessidade
causa. Mais difícil será aceitar a proibição da relevância do consentimento prevista
de olharmos o que nos cerca e nós próprios sob o ângulo de um mundo mais
no n. 0 3. Não será, por outro lado, difícil estender analogicamente este artigo a
ou menos ordenado e assim em certa maneira previsível, constitui uma sombra
numerosos interesses jurídicos diferentes da integridade física, caso da liberdade,
a que nunca poderemos escapar, condição de resto fundamental para assegurar
património, direito à fala, etc. Por outro lado, nos arts. 156 e 157 do CP, regula-se
a nossa sobrevivência, tanto no passado, como atualmente. Nestes termos,
o consentimento em termos de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, algo
renunciamos à ideia de encarar a culpa como juízo de censura. O que ela nos pode
atinente igualmente à integridade física (incluindo a saúde). De particular melindre
dar de relevante diz fundamentalmente respeito ao problema da maior ou menor
reveste a questão da eventual disponibilidade da vida. Se, face a atuações do
ligação do agente que cometeu um tipo de ilícito criminal à norma, ao princípio
respetivo titular, o seu direito de disposição parece óbvio (não se pune a tentativa
axiológico ou valor ou normas, princípios axiológicos ou valores subjacentes ao
de suicídio); este poderá, por outro lado, recusar um tratamento ou intervenção
facto criminoso (caráter descritivo da culpa). Neste plano e antes de mais, o dolo
médicas e assim morrer, por omissão destes; já relativamente à intervenção de
expressa a priori um maior apego do agente ao conteúdo desvalioso inerente ao
terceiros, por ação, o art. o 134 do CP pune o homicídio a pedido (embora de forma
crime em contraposição à negligência e sem agora abordarmos a questão transitiva
muito atenuada) e o auxílio ou incitamento ao suicídio está previsto no art. 0 136.
Assim, o bem em causa é indisponível nuns casos (intervenções de terceiros por destas duas formas de culpa, ou seja, o dolo eventual 18 .
ação) e disponível noutros (pelo próprio ou em caso de omissão de terceiros).

Sobre a relevância do elemento subjetivo, já sobre ele nos pronunciamos.


4.2. Pressupostos da "culpa"(punibilidade)
0
O art. 39 do CP equipara o consentimento presumido ao real. Trata-se
A culpa, enquanto expressão do maior ou menor distanciamento do agente
naturalmente aqui de uma presunção suscetível de prova em contrário.
dos valores ou sentidos inerentes ao tipo legal em sentido amplo (supra n. 18),
esgota os seus efeitos nisto mesmo. Aquilo que o nosso legislador denomina
por inimputabilidade (capacidade de culpa) é algo antes de mais atinente às
A culpa consequências jurídico-penais do crime l.s. e portanto insere-se na categoria da

4.1. O juízo de culpa. Conceito. Natureza. Elementos


18
No âmbito do direito penal II, será abordada a questão da culpa no plano da determinação da
A culpa tradicionalmente e em termos jurídicos surge como um juízo de espécie e medida das consequências jurídicas derivadas da prática de delitos. Aí poder-se-á com-
censura ao agente por ter agido como agiu. O fundamento deste juízo de censura preender melhor o caráter descritivo da culpa a ultrapassar o mero tipo legal de crime para se inserir
no domínio do designado "facto complexivo total", cf. no entanto o capítulo 4.3.
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punibilidade (supra p. 35 e segs.). No entanto e por via da sistemática do CP, se por isso mesmo para a problemática das consequências jurídico-penais. Se
iremos abordar esta problemática nesta categoria, ainda que só formalmente. alguém comete um delito no âmbito de uma doença mental e a aplicação de uma
pena se revela a priori de todo inútil ou mesmo a posteriori, tomando o agente a
O primeiro destes requisitos (relativos à inimputabilidade) diz respeito à reiterar a sua conduta, tal poderá naturalmente expressar a necessidade de uma
inexistência de uma "anomalia psíquica" que determine a incapacidade do agente
diferente abordagem, agora no domínio das medidas de segurança. 22 De facto, não
"de avaliar a ilicitude da prática do facto ou de se determinar de acordo com essa
serão precisas grandes elucubrações para demonstrar a muitas vezes ineficácia
avaliação." (art. 0 20 n. 1 do CP). Por anomalia psíquica deve-se entender tratar-se
de uma simples punição relativamente a um quadro patológico relacionado com
de uma doença ou estado de natureza psíquica e portanto envolvendo ou podendo
a realização do ilícito-típico. Neste plano, não se estranhará a priori a existência
envolver mecanismos mais ou menos complexos de caráter neurológico, genético,
de disposições como as dos ns. 2 e 3 do art. 0 20 do CP, pese embora o seu caráter
bioquímico, psicológico, etc. 19 , produtores de uma de duas consequências normativas vago e algo confuso. Efetivamente, no n. 2 supra citado, o legislador refere a
(aspeto normativo), a saber, a incapacidade de avaliar a ilicitude do facto praticado possibilidade de alguém poder ser declarado inimputável, sem o ser efetivamente
(questão cognitivo-valorativa) ou de se determinar de acordo com essa avaliação (?). Basta para isso que o indivíduo seja portador de uma anomalia psíquica grave,
(questão volitiva). É, por outro lado, algo a ser forçosamente avaliado "no momento impossível de controlar (sem culpa do paciente, v.g., por não tomar a medicação
da prática do facto" e não antes (cf. no entanto o caso das ações livres na causa, receitada), permanente e que tenha determinado um abaixamento sensível da
infra) ou depois (cf. no entanto com o que infra se dirá sobre isto). capacidade de avaliação da ilicitude do facto ou de determinação pela norma.
Independentemente dos problemas práticos de concretização destes requisitos,
Se o problema da incapacidade de avaliação da ilicitude do facto criminal
desde logo atinentes ao conceito de gravidade (em si mesma, em relação à prática
pode não levantar de per se problemas de maior (v.g., o esquizofrénico ouve
do ilícito-típico, atuando em que tipo de realidades da personalidade, neurológicas,
vozes no sentido de matar os seus pais, que identifica com o diabo e age em
psicológicas, etc.?), para além da questão de saber da impossibilidade de impedir
conformidade com isso, porque crê que tal é absolutamente real), 20 já a questão da os seus efeitos (será total, parcial e neste caso em que percentagem?) ou do grau de
impossibilidade de autodeterminação é de longe algo mais complexo. Se em certos censurabilidade do agente ao caso (será doloso, negligente, neste caso somente de
casos tal se afigura objeto de prova cientificamente determinada ou determinável forma grosseira?) e de ainda determinar a sensível diminuição da sua capacidade
(v.g., o agente completamente embriagado ofende corporalmente outrem), noutros de culpa (conceito indeterminado), o certo é que perante o agente tecnicamente
pode ser de difícil demonstração científica (v.g., alguém furta objetos, por via culpável e "culpado", o legislador abre a porta à aplicabilidade de uma medida
de uma compulsão de natureza psicológica). 21 Por outro lado, mesmo nos casos de segurança, como anteriormente referimos. Chegados aqui, naturalmente que
ditos "normais", comportamentos de imputáveis, fica sempre por demonstrar uma se impõe a questão da definição de critérios de escolha entre estes dois tipos
liberdade (capacidade de se autodeterminar), em si própria indemonstrável, a par de consequências jurídicas. No aqui analisado n. 2 nada é dito a este propósito.
de um conjunto mais ou menos indeterminável de fatores também eles nunca Aparentemente o juiz dispõe de um poder arbitrário para julgar alguém nestes
objeto de análise na sua totalidade. Deste modo, a questão em causa desloca- termos legais como imputável (e assim lhe aplicar uma pena) ou como inimputável
e consequentemente abrindo as portas à aplicação de uma medida de segurança.
19
Um exemplo de referência neste plano é o DSM-V. O n. 3, no entanto, relaciona-se com tudo isto. Nele o legislador afirma que "A
20
De notar que o critério distintivo entre o erro sobre a consciência da ilicitude e esta incapacidade
de avaliar a ilicitude do facto passa pela ausência ou presença de uma patologia clínica e da sua
22
ligação ou não ao fenómeno em causa, algo que nem sempre poderá ser fácil de determinar. De referir neste plano a existência do instituto da pena relativamente indeterminada (art. 0 83 e
21
De notar que com o avanço das ciências da mente, nomeadamente das técnicas de registo da segs. do CP) aplicável aos pelo legislador designados delinquentes por tendência, situado entre a
atividade do cérebro (TAC, PET ... ), muito se tem evoluído neste domínio. pena e a medida de segurança e que será objeto de estudo no âmbito da disciplina de Direito Penal II.
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comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode prova há de demonstrar a estreita conexão do agir (ou não agir) do agente à sua
constituir índice da situação prevista no número anterior." A pergunta antes de patologia concreta. Daqui deverão ser deduzidas duas básicas considerações. De
mais a fazer é a de saber o que se deverá entender por "situação prevista no número um lado, a não valoração do caráter de ilicitude do facto e consequentemente a
anterior." Será que a incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas impossibilidade de aplicabilidade de uma pena por via da igual impossibilidade
será índice da existência da gravidade da doença, da sua existência simplesmente, de a sentir como tal (um justo mal). De outro, o caráter determinsta ou fortemente
do seu não domínio pelo paciente, da sua não censurabilidade no âmbito do seu probabilista da repetição da conduta e a consequente impossibilidade de aplicar
controlo ou ainda da diminuição sensível da sua culpa? Ou será de parte disto (e uma pena por via da sua muito previsível ineficácia (princípio da sua ilegitimidade
neste sentido, perguntar-se-á que parte?) ou ainda da totalidade? Uma vez que no enquanto tal). Deste modo, uma vez declarado inimputável, está o agente
n. 2 se prevê a possibilidade de declaração da inimputabilidade, pode-se pensar disponível para a possibilidade de aplicação de uma medida de segurança, a poder
que a aludida incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas poderá ser aplicada também em função de outros requisitos (importância do tipo legal de
logicamente constituir índice da "inimputabilidade do agente" (sua declaração) ilícito praticado, inexistência de fatores posteriores dirimentes da perigosidade do
, abrindo-se deste modo a porta para a aplicação de uma medida de segurança agente, etc.). Fica deste modo provada a intrínseca ligação entre este "requisito
(detentiva). Fica-se no entanto sem perceber ab initio porque se há de ter de negativo da culpa" e a questão mais ampla da punibilidade. Sem esta última
declarar alguém como inimputável sem o ser (não o sendo ao mesmo tempo). Se categoria toda a questão da inimputabilidade em causa perde sentido. Daqui que a
o problema é o da aplicação de medidas de segurança, deve-se lembrar que estas, sua integração no plano das consequências jurídicas faça também todo o sentido.
sendo não detentivas, podem ser aplicadas a imputáveis (casos dos arts. 100 a 103
do CP) e que mais ou menos encapotadamente também "medidas de segurança Uma conduta pode ser realizada num estado de inimputabilidade (por
anomalia psíquica) e não obstante poder ser objeto de punibilidade e logo de
detentivas" se lhes aplicam. 23 A menos que se entenda que em último recurso a
culpa. Tal efetivamente sucede nos denominados "atos livres na causa" (actiones
inimputabilidade seja algo a considerar em termos prospetivos, relativamente a
libera in causa). Aqui, o juízo da culpa desloca-se do momento da prática do facto
consequências jurídicas (medidas de segurança). Ora tal implicaria dois conceitos
para um outro facto, antecedente mas conexionado com o tipo de ilícito realizado.
de inimputabilidade, podendo de resto conflituar entre si. Um tendo como objeto
Se, por exemplo, alguém, para cometer um homicídio, se embriaga de modo a se
o facto praticado e podendo mesmo implicar a ausência de qualquer medida de
colocar em completo estado de inimputabilidade e nesse estado comete realmente
segurança. O outro, tendo como ponto de referência o momento da sentença e
o homicídio projetado, o juízo de imputação não poderá naturalmente abdicar do
apontando predominantemente para esta. No fundo, é isto que acaba por acontecer,
momento e ato de colocação nesse estado. Questões múltiplas podem obviamente
tomando a ideia de inimputabilidade algo de contraditório e epistemologicamente
ser aqui colocadas. Por exemplo, o estabelecimento de uma ligação de imputação
vazia de conteúdo.
objetiva entre as duas espécies de condutas parece ser algo de óbvio. Terá assim de
Em função de tudo o que se disse, o melhor entendimento do conceito de se provar que a prática do ilícito-típico foi consequência do ato prévio de colocação
inimputabilidade passa pela tomada de dois fundamentais aspetos. Por um lado, em estado de inimputabilidade. Tratar-se-á de um problema de imputação
da consideração do agir (ou não agir) do agente no facto concreto. Aqui, quer objetiva, a ser perspetivado no plano de juízos de probabilidade provenientes da
a questão da não valoração da ilicitude ou do agir (em sentido lato) específico experiência comum e, ou da prática clínica ou mesmo de dados puros da ciência
do indivíduo deverão ser estritamente ligadas ao quadro patológico existente. A (nomeadamente médica). O nosso legislador regulou esta matéria no art. 0 20 n. 4
do CP. Aqui afirma-se que "A imputabilidade não é excluída quando a anomalia
psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto."
23
Cf. nota acima, ainda arts. 104 a 108 do CP, entre outros. Esta matéria será objeto de estudo Significa isto portanto que o agente será efetivamente responsabilizado pela prática
pormenorizado na cadeira de Direito Penal II.
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do ilícito-típico apesar de o ter praticado em estado de inimputabilidade (art. 0 20 Não há assim qualquer espécie de confusão neste plano. A assimetria de regime
n. 1 do CP). Para tal tomar-se-á necessário que haja no momento da colocação em legal delineada pelo legislador continua no âmbito dos meios de provocação do
estado de inimputabilidade de uma "intenção de praticar o facto." Nestes termos, estado de inimputabilidade. No plano de provocações intencionais os modos de
tratar-se-á de ter de existir um dolo de primeiro grau (art. 0 14 n. 1 do CP). Assim, se tomar inimputável são indefinidos. Apenas haverá que estabelecer um nexo
o autor deseja como consequência principal (ao menos) da sua conduta o resultado objetivo de imputação. Se o agente reconhece que determinado estímulo (v.g.,
consubstanciado na prática do ilícito-típico. A doutrina dos supra citados atos acender de determinadas luzes) lhe produz um estado patológico, que o coloca em
livres na causa, no âmbito do atual regime penal, acaba aqui. Assim, o problema inimputabilidade e assim age, tendo em vista a prática de um ilícito típico, é deste
em que o resultado (facto ilícito típico) surja como consequência necessária, modo punido pela sua concretização, ao invés de prever tal evento simplesmente
embora não querida em si mesma (art. 0 14 n. 2 do CP, dolo necessário, supra), é como consequência necessária da sua conduta prévia. Neste último caso, apenas
já tratado no âmbito do art. 0 295, desde logo no n. I. Efetivamente, o legislador a ingestão e o consumo de álcool ou substâncias tóxicas poderão servir para o
estabelece aqui a punibilidade de "Quem, pelo menos por negligência, se colocar incriminar. Efetivamente, o tipo em causa (art. 0 295 do CP) é um delito de aptidão
em estado inimputabilidade derivado da ingestão ou consumo de bebida alcoólica que objetivamente se consome com a produção de um estado de inimputabilidade
ou de substância tóxica e, nesse estado, praticar um facto ilícito típico". Portanto, através da ingestão ou consumo de bebida alcoólica ou substância tóxica (crime
o tipo legal de crime em causa (art. 0 295) cobre desde logo todas as restantes de execução vinculada). No plano subjetivo, exige ao menos um agir negligente
espécies de dolo não compreendidas no n. 4 do art. 0 20 do CP e ainda a negligência. e portanto abarca todas as modalidades de dolo legalmente estabelecidas no art. 0
Pode, por um lado, parecer estranho que o dolo necessário, tão próximo do dolo 14 do CP. A prática do ilícito típico é estranha a este delito, na medida em que
intencional, tenha um regime legal ao lado da negligência (?). 24 No entanto, este está fora da sua tipicidade (plano objetivo). Surge como uma condição objetiva
aparente paradoxo pode eventualmente ser compreendido no contexto em causa de punibilidade ou seja, sem a sua efetiva ocorrência não pode haver lugar ao
(ingestão de bebidas alcoólicas ou tóxicas). Efetivamente, em todos os casos de desencadear de qualquer procedimento penal. Noutros termos, dir-se-á que a
falta do elemento intencional a verificação do resultado antijurídico surge sempre menos que o perigo gerado pela ação do indivíduo não se tenha concretizado na
como algo lateral, não desejado de per se. Terá sido assim este aspeto a influenciar prática de um tipo de ilícito nunca haverá qualquer real intervenção do legislador.
o regime legal nesta matéria. De qualquer maneira, aceite-se ou não este ponto O perigo abstrato inerente à colocação no estado de inimputabilidade não bastará
para a citada intervenção penal. Terá assim que haver Iugar a um concreto resultado
de vista, 25 o certo é que outra interpretação, que assimile o dolo necessário ao
(tipo de ilícito). No entanto, como já anteriormente referimos, este último não faz
intencional, é patentemente inconstitucional, por violação direta do principio da
parte do tipo legal em causa (art. 0 295). Desde logo, não tem de ser abrangido
legalidade (proibição da analogia), nos termos antes de mais do art. 0 29 n. 3 da
pelo dolo ou negligência do agente. Mais, a ocorrência do ilícito típico pode ser
CRP (supra). Na realidade, agir intencionalmente ou mediante dolo necessário
meramente casual. Não se encontra abrangida pela regra do art. 0 10 n. 1 do CP
são duas realidades distintas, antes de mais, delineadas pelo próprio legislador
(relação de adequabilidade entre a ação e o resultado). Condiciona igualmente o
do CP (art. 0 14 n. 1 e 2 supra citados). Onde se encontra uma não está a outra.
procedimento criminal (n.3), assim como pode limitar a pena (n. 2).

24
Cf. no entanto com o art. 0 292 do CP onde a assimilação entre dolo nas suas diferentes formas e O segundo requisito relativo à "capacidade de culpa" diz respeito à idade.
a negligência é total, cabendo depois ao aplicador realizar as devidas distinções na determinação da Só maiores com pelo menos 16 anos poderão ser objeto de imputação de crimes
espécie e medida da pena.
25
Pode efetivamente ser chocante punir, v.g., alguém por homicídio qualificado (art. 0 132, n. 1,
(art0 • 19 do CP). Abaixo desta idade o direito penal não se aplica. A intervenção
pena de 12 a 25 anos), na base do dolo intencional, face a um agente que tenha cometido o mesmo em matéria de "crimes" (tipos de ilícitos a que falte a culpa) diz apenas respeito ao
facto, mas a título de dolo necessário, sendo então punido nos quadros da pequena ou média crimi- direito tutelar de menores (veja-se nomeadamente a Lei Tutelar Educativa, Lei n. 0
nalidade num máximo de 5 anos, podendo assim nem sequer ser objeto de prisão efetiva.

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Direito Penal I
Fernando Conde Monteiro

166/99 de 14 de Setembro, aplicável entre os 12 e 16 anos). Entre os 16 anos e os também já fizemos menção (supra). Por isso mesmo, não iremos tratar aqui
20 anos, pode o agente beneficiar de um regime especial previsto no Decreto-Lei destas questões. Por outro lado, o conteúdo da culpa vai para além do dolo ou da
n. 0 401/82 de 23 de Setembro (Jovens Adultos). negligência. Tudo o que expresse um maior ou menor distanciamento do agente
em face dos valores de eticidade inerentes ao tipo em sentido complexo (supra)
A escolha desta idade merece-nos algumas reflexões. A primeira delas refere-se pode implicar um maior ou menor conteúdo da culpa do respetivo indivíduo. A
à brusca passagem para a maioridade do antes inimputável. Num só segundo, tudo abordagem desta problemática será realizada em Direito Penal II, pelo que dela
se transforma, como se tivéssemos perante um golpe de magia (espécie de "efeito abdicaremos também. Finalmente diremos que a própria culpa pode no plano do
Harry Potter"). A tentativa de algum modo contrariar este estado de coisas através seu conteúdo influenciar em maior ou menor medida a construção dos tipos penais
do Decreto-Lei acima citado ("Jovens Adultos") acabou praticamente por não (tipos de culpa), influenciar a sua punibilidade, em termos de medida abstrata.
funcionar, reduzindo-se à possibilidade de atenuação especial da pena que acima Tudo isto será objeto de estudo igualmente em Direito Penal II. Neste plano, não
também referimos. Depois, interessa afirmar que, como no anterior item (relativo diremos aqui mais nada sobre esta temática.
à inimputabilidade por anomalia psíquica), a compreensão deste pressuposto não
pode deixar de ser considerada à luz de inevitáveis questões de política criminal.
Noutros termos, não é a maturidade do agente que fundamentalmente se encontra
4.4. A consciência da ilicitude
em causa. A compreensão da natureza do ilícito penal (especialmente no seu núcleo
básico, direito penal primário) é algo adquirido muito antes dos 16 anos. Por outro Tradicionalmente afirmava-se que a ignorância da lei nunca poderia aproveitar
lado, a capacidade de autodeterminação também se encontra obtida muito antes. ao agente. Particularmente no direito penal, tendo em consideração que este se
O que realmente decide da escolha da idade é antes um problema de articulação ocupava (se ocupa) daquilo que eticamente era (é) considerado o mais básico em
entre questões de prevenção geral e especial, neste último caso, nomeadamente de termos de convivência humana, então, proclamava-se que qualquer valoração do
socialização. Efetivamente, se o número e qualidade de infrações praticadas pelos agente diferente da legal ou a simples ignorância da lei penal nunca deveriam
jovens são de facto relevantes para justificarem uma intervenção jurídico-penal, aproveitar ao delinquente. Este entendimento fechado e rígido não mais pode ser
esta terá lugar naturalmente. Se, por outro lado, os agentes das respetivas infrações sufragado. Efetivamente, deve-se, por um lado, referir que atualmente o direito
revelam particulares carências no plano das suas personalidades, de modo a penal não se ocupa somente daquilo que era o seu cerne desde praticamente o seu
apresentarem-se mais como vítimas do que verdadeiros agentes, tal implicará a nascimento (designado como direito penal primário). Por via do desenvolvimento
necessidade de meios de intervenção dirigidos a estas realidades e portanto em das sociedades também o seu conteúdo se alterou significativamente. Aspetos
princípio fora dos quadros habituais do direito penal. Deste modo, entender-se-á ligados à proteção da saúde pública, do correto funcionamento dos mercados,
facilmente que o problema seja efetivamente uma questão também e mesmo antes da defesa do meio ambiente, etc. foram naturalmente sendo abarcados pelo
de mais de punibilidade. direito penal, também. Isto implicou igualmente repercussões no plano da culpa
e mormente no âmbito do posicionamento ético-individual face às exigências
normativas.
4.3. Conteúdo da culpa
Por outro lado, pode-se igualmente pensar que se só quem for culpável
Como já anteriormente referimos (supra), a culpa, em termos de conteúdo, pode ser punido, então, deverá ser exigido que, para que tal suceda, o agente aja
apresenta duas grandes modalidades, dolo e negligência. Estas duas grandes com consciência do caráter ilícito da sua conduta. Se tal faltar, por erro (também
categorias podem, por sua vez, ser decompostas em várias subcategorias, a que sinónimo de ignorância), parecerá à primeira vista que o agente não poderá ser

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

punido, pelo menos por dolo (teorias do dolo). E dizemos à primeira vista, porque, em causa, convicto da sua licitude por virtude de um direito de correção, que
se pensarmos um pouco poderemos não manter a afirmação acima feita. De facto, manifestamente não comporta ofensas à integridade física, pode integrar-se na
tem sentido que alguém que mate o seu próximo o faça (fora dos quadros de problemática em causa. Em todos os casos encontramo-nos assim perante um erro
uma patologia clínica), porque se ache autorizado a tal, em virtude da vítima a incidir sobre a questão ética inerente ao tipo de ilícito (erro de valoração).
ser imigrante e tal a tornar indesejável? Efetivamente e num Estado de direito
democrático, em que a legitimidade material (antes de mais) do direito penal O legislador português ocupa-se desta problemática no art. 0 17 do CP. Em
seja algo a preservar, tem sentido que qualquer valoração do agente possa sem termos de conteúdo, a expressão chave a considerar é a seguinte: "atuar sem
mais sobrepor-se aos valores comunitários, porque assumidos pela generalidade consciência da ilicitude". Ela abarca todos os casos anteriormente referidos
dos cidadãos e mais importante, repousando em princípios axiológicos de base, ("cegueira jurídica", causas de justificação putativas em si consideradas ou na
fundamentados em termos epistemológico-normativos? Daqui que a questão em sua extensão). Por outro lado, como já anteriormente referimos, ao contrário do
causa deva ser devidamente perspetívada, ou seja, no plano da axiologia jurídico- que sucede na inimputabilidade, em que há uma patologia que justifica o erro de
penal. valoração, aqui tal não sucede, encontramo-nos assim perante seres imputáveis
onde a essência da questão é mesmo o tipo de valoração (ou sua ausência) do
Deste modo, a primeira questão a abordar diz respeito ao enquadramento respetivo agente. Deste modo, interessará decidir esta problemática naturalmente
problematizante desta matéria. E tal implica que nos debrucemos sobre o erro a partir de determinado tipo de critérios. O legislador refere-se à censurabilidade
neste âmbito. Efetivamente o erro neste domínio pode ter que ver com a simples ou não censurabilidade da ausência de consciência da ilicitude como o critério
ignorância de um tipo legal de crime, enquanto tal ("cegueira legal"), pode ter fundamental aqui a tomar em consideração. Naturalmente que isto em si nada
que ver também com a existência de putativas causas de justificação por parte do adianta ao problema em causa. Sem a sua referência tudo se passaria na mesma.
agente ou com o seu âmbito de aplicação (extensão). Exemplos do primeiro tipo de Ser censurável ou não é o mesmo que ser culpável ou não ser. Se sem culpa não
casos são as situações em que o agente mata outrem ou ofende-o corporalmente, há pena (punibilidade), 26 logo, um erro de valoração sem culpa (não censurável)
consciente de que são atos lícitos em si mesmos, naturais no ser humano (expressão nunca poderia conduzir a responsabilidade penal de quem quer que fosse. Portanto,
de um direito natural) e portanto sentindo-se autorizado a realizá-los sem mais. a "parte de leão" nesta problemática não é fundamentalmente objeto de apreciação
O agir em situações de causas de exclusão da ilicitude putativas é o tipo de erro pelo legislador e assim surge entregue à doutrina e à jurisprudência.
deste género mais frequente. O citado exemplo do agente imputável que mata
várias pessoas para putativamente assegurar a defesa da pureza da sua nação Um primeiro núcleo de questões deve ser aqui abordado. Efetivamente,
enquadra-se neste domínio. Em geral as ações terroristas realizadas por agentes em casos de "cegueira jurídica" ou de simples valoração em sentido contrário
convictos da justeza dos seus propósitos e das organizações de que fazem parte, ao legislador, ou seja, quando simplesmente o indivíduo não reconhece o caráter
esteja tal fundamentado em razões ideológicas, religiosas, políticas, etc. O agente de ilicitude ao comportamento em causa, das duas, uma, ou o legislador adotou
aqui sente que está a realizar comportamentos justos em face de uma sociedade critérios materiais adequados na construção do concreto delito (mesmo tendo em
essencialmente nefasta, que urge combater através de quaisquer meios utilizados. conta a sua maior ou menor discricionariedade no processo em causa) e este se
Por último, casos de ultrapassagem dos limites de causas de justificação podem configura assim legítimo e deste modo a valoração individual será naturalmente
ter que ver, por exemplo, com a realização de um aborto por consentimento da irrelevante (v.g., o agente não valora negativamente a prática de homicídios
mulher grávida, mas para além das dez semanas previstas na al. e) do n. 1 do dolosos, achando-os naturais e legítimos). Ou o legislador se "portou mal", porque
art. 0 142 do CP ou com a leve bofetada de um professor a um aluno, depois deste
último lhe ter chamado "palhaço". Também aqui o professor, se realizou a conduta
26
Cf. art. 0 40 n. 2 do CP.
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Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

erigiu tipos legais de crime desconformes com os critérios materiais legitimadores menos assente em mínimos de acordo com a dignidade humana), social, etc., a par
dos mesmos e neste caso nem sequer se trata de um erro "não censurável" do da impossibilidade (relativa ou absoluta) de o próprio agente poder colocar fim à
agente, mas simplesmente de um "erro censurável" do legislador e portanto de sua própria existência, são naturalmente tópicos importantíssimos que expressam
ilegitimidade do tipo legal de crime. Um exemplo disto, no caso português, é o do a razoabilidade de um comportamento realizado, aproximando-o de uma causa
crime de lenocínio (no âmbito do art. 0 169 n. 1 do CP). Se alguém, por exemplo, de justificação. Já diferentemente se passam as coisas relativamente ao membro
arrendar um seu apartamento a uma prostituta, que nele exerça a sua atividade, de um grupo terrorista de cariz religioso, que realize atos de violência em nome
disto tendo efetivo conhecimento (violando o citado art. 0 169 n. 1), a sua valoração da sua profissão de fé, ainda que motivado pela melhor das intenções de redimir
deste facto como lícita, no plano da urna motivação axiológico-existencial que o mundo. Por um lado, a ausência de tolerância pelas conceções e modo de vida
assente na ideia de que tais condutas nada têm de imoral, apenas exprimindo a de terceiros, a par da utilização de meios violentos em sociedades democráticas
concretização de necessidades dos seres humanos, longe de constituir um "erro e finalizando na imposição sem mais das suas próprias crenças são naturalmente
não censurável", exprime tão só um salutar princípio da política criminal, que aspetos altamente ilegítimos no domínio da axiologia jurídico-penal e portanto
passa pela simples asserção de que a moral ético-jurídica e não só, reveste apenas implicando um juízo de rejeição relativamente a tal tipo de argumentação, sob
relevância se interferir com a esfera jurídica de terceiros e não quando apenas fira pena de a própria ordem jurídica estar a negar-se a si própria.
meras conceções do mundo e da vida em si mesmas consideradas.
A extensão do conteúdo de uma causa de justificação por via da valoração
Já a questão da existência de causas de justificação putativas apresenta individual pode ser aceite na medida em que haja ainda um juízo de analogia para
características diferentes do anterior tópico. Aqui, a valoração individual não com a causa de exclusão da ilicitude ab initio. Assim, se a mulher grávida realizar
pode ser coincidente com a da ordem jurídica, mesmo no plano da legitimidade; o aborto um ou dois dias após o prazo legal (10 semanas, nos termos do art. 0 142
a sê-lo, o comportamento seria justificado e logo plenamente lícito. Portanto n. 1 al. e) do CP), invocando atraso na realização das formalidades legais, dos
terá que haver aqui uma diferente valoração do indivíduo. Em que termos é que serviços médicos, acompanhados da alguma sua hesitação na decisão de abortar,
esta valoração poderá aproveitar ao agente? Tudo dependerá fundamentalmente naturalmente que a exculpação não poderá ser aqui negada. Também o facto de
dos princípios axiológicos, dos valores, dos interesses presentes na justificação alguém dar uma leve bofetada ao seu sobrinho, que acompanhava o seu filho em
do comportamento, acompanhados dos demais elementos invocados. Se da férias, ao abrigo de um direito de correção exclusivamente delineado relativamente
combinação de todos os aspetos resultar que a conduta em causa, apesar de a filhos, tutorados, pode ser tolerado por via da analogia (pressupondo a não
globalmente contrária ao direito penal, assenta, não obstante, em pontos de aplicabilidade do art. 0 1907 n. 2 do CC).
vista dignos de tutela pelo mesmo ordenamento, então, a não censurabilidade
do ato deverá ser afirmada. Caso contrário, não. Suponhamos assim que alguém Nos termos do n. 2 do art. 0 17 o legislador prevê a possibilidade de se aplicar
tetraplégico, cansado e deprimido com os longos anos de vida nesta situação uma pena especialmente atenuada, apesar da censurabilidade do erro. Trata-
expressa a decisão de colocar fim à sua vida, sendo para tal ajudado por outrem se aqui de situações em que nos encontramos numa zona de penumbra entre a
(Incitamento ou ajuda ao suicídio, art. 0 135 do CP) ou mesmo morto por outra exculpação e a culpa, caracterizada pela existência de elementos legitimadores, a
pessoa (Homicídio a pedido da vítima, art. 0 134). Aqui, a consideração de aspetos par de outros contrários ao direito (penal). Por exemplo, realizar o aborto na ll.a
como a liberdade de dispor da vida (algo reconhecido como legítimo em termos ou 12.a semana, dar uma leve bofetada a uma criança de toda alheia ao agente, pelo
de suicídio, ou pelo menos tolerado, e ainda aceite no plano da omissão, quando facto de esta ter estado a molestar fisicamente outrem podem ser eventualmente
alguém nada faz, v.g., para evitar que urna doença o vitime), o direito a dispor casos de funcionamento deste normativo, relativamente a extensões de causas
de uma vida dotada de bem-estar em termos de saúde, no plano económico (ao de justificações, que naturalmente, enquanto concretizações de um juízo de
culpabilidade implicam sempre a consideração da situação a tratar. Queimar
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bandeiras de Estados (vide art. 0 323 do CP) em manifestações a favor de direitos natural, artificial, humano, inumano, provocado pelo próprio necessitado dolosa
fundamentais e pela prática por estes de atos violadores dos mesmos poderão ou negligentemente (nunca com o intuito de provocar a situação em causa para
igualmente e de forma eventual integrar situações deste teor. Também aqui é poder agir sobre terceiros) ou por terceiro. Terá, por outro lado, de se tratar de um
deveras discutível a necessidade de tal normativo, tendo em conta a plasticidade perigo atual. Se, no que respeita a este requisito, tivemos ocasião de referir que no
inerente ao art. 0 72 do CP. 27 âmbito do direito de necessidade a atualidade aí deveria ser entendida em sentido
lato (supra), agora de nenhum modo poderemos manter tal entendimento, antes de
Em síntese, será, nestes termos, com caráter naturalmente excecional, que mais, pela muito menor proteção que oferece à vítima, que se é certo que detém a
o erro de valoração em causa deverá ser aceite no nosso ordenamento jurídico e possibilidade de legítima defesa, ausente no direito de necessidade, por outro lado,
portanto inserindo-se no plano mais fundante das conceções político-criminais e não está a priori protegida no plano da ponderação de interesses. Isto só justifica
assim da punibilidade. que a atualidade do perigo em questão seja comparável à atualidade na legítima
defesa. Ainda neste domínio convém referir a limitação de interesses a proteger
e portanto colocados em perigo. Vida, integridade física, honra e liberdade são
os únicos bens que o legislador achou por bem ser objeto desta figura jurídica.
4.5. A delimitação negativa da culpa (impunibilidade)
Por vida dever-se-á entender igualmente a vida intrauterina. A integridade física
Após termos abordado a questão da capacidade de culpa, como sinónimo de abrangerá naturalmente perigos contra a saúde. Por outro lado, a liberdade
pressupostos prévios para que esta tenha lugar e de já termos igualmente avançado implicará igualmente a matéria sexual. A honra fecha este núcleo fundamental
no âmbito da problemática da consciência da ilicitude, iremos seguidamente de direitos. Portanto a reserva da vida das pessoas, direito à palavra ou imagem,
debruçarmo-nos sobre a ideia de inexigibilidade s.s., isto é, tratar-se-á de tomar bens patrimoniais, fidelidade de documentos, etc. estão assim excluídos, apenas
em consideração a questão da influência de fatores externos excludentes da culpa poderão ser considerados no âmbito do n. 2 do normativo em questão (art. 0 35),
(punibilidade). mas já fora da problemática da "culpa" e com um regime mais severo em termos de
punibilidade. Como é óbvio ressalta neste âmbito o caráter pessoal dos interesses
A primeira causa de exculpação neste plano a abordar diz respeito ao elencados, mais do que propriamente a sua real importância (v.g., a lesão de um
designado estado de necessidade desculpante. Independentemente da perspetiva bem patrimonial pode ser mais grave que uma simples ofensa à honra ou leve
dogmática que dele tivermos e não iremos debruçarmo-nos sobre isto, diremos ofensa à integridade física).
de modo muito simples e direto que o nosso legislador consagrou desde logo
um artigo (ou parte dele) a esta temática, art. 0 35 do CP. Antes de mais, cumpre A atuação a coberto da situação de necessidade encontra-se, como no direito
afirmar que o dispositivo em questão se ocupa desta categoria jurídica no plano de necessidade, subordinada a um requisito de adequabilidade, mas implicando
da culpa, especificamente, enquanto causa de exculpação. De facto, o legislador mis um item: "não removível de outro modo". Obviamente que a obrigatoriedade
começa este normativo afirmando que "Age sem culpa" (art. 0 35 n. 1). Como da necessidade do meio utilizado é indiscutível. Juízos da experiência comum
pressupostos desta figura encontramos (como sucede no direito de necessidade) serão naturalmente aqui chamados. 28 De qualquer maneira, a expressão em causa,
requisitos atinentes à situação de necessidade e à atuação desenvolvida a partir não ser removível por outro meio, apresenta um caráter enfático. Não havendo
dessa mesma situação (atuação do necessitado ou de outrem em seu interesse). aqui lugar a priori a uma ponderação de interesses e portanto dando-se uma ampla
No primeiro caso, haverá que considerar a priori a existência de um perigo, faixa de atuação aos respetivos atuantes, pareceu ao legislador importante ser

27 28
Algo que será estudado em Direito Penal II. Cf. com o requisito da necessidade do meio na legítima defesa, supra 3.6.2.
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particularmente cuidadoso nas exigências em matéria de meio. Por outro lado, a legislador. Efetivamente, por que carga de água é que a simples alteração de
adequabilidade do meio, se aparentemente nada tem que ver com uma cuidadosa um interesse jurídico (património em vez da honra, por exemplo) há de por si só
e milimétrica ponderação de bens (supra sobre o direito de necessidade), não transmutar o artigo em questão? Em nenhuma outra causa deste teor tal sucede.
deixará nunca este aspeto de estar presente com maior ou menor peso, aquando Talvez, por outro lado, se compreenda tal posicionamento, dada no fundo a estreita
da avaliação do agir do concreto indivíduo, em termos de "exigir-lhe, segundo as ligação que sempre houve entre culpa e punibilidade ...
circunstâncias do caso, comportamento diferente." Efetivamente é neste último
O art. 0 33 n. 2 do CP prevê a exculpação de alguém que atue em excesso
item que tudo se irá decidir, na avaliação final do seu comportamento. Trata-se
antes de mais de um conceito indeterminado, aberto, uma autêntica cláusula geral dos meios empregados, quando tal "resultar de perturbação, medo ou susto, não
que remete o juiz para "as circunstâncias do caso", sem mais. Como realidade censuráveis." Trata-se assim de não punir alguém que aja em face de um agressor,
atuando ilicitamente, por via do tipo de sentimentos ou emoções (asténicos)
atinente à culpa implicará necessariamente uma valoração ético-jurídica do
comportamento do respetivo agen_te. Neste plano, a ponderação de interesses que o inundem. Fora deste âmbito, estarão emoções de caráter esténico (raiva,
(como já referimos) poderá (estará presente) muitas vezes, praticamente sempre. ódio, vingança, por exemplo). No fundo, trata-se de uma quase legítima defesa,
Mal se poderá compreender que alguém, para assegurar a proteção da sua saúde em onde os riscos de um excesso dos meios acabam por ter de ser suportados
níveis mínimos, evitar respirar alguns gases pouco tóxicos, tenha a possibilidade pelo agressor, causador em primeira linha do agir do defensor. Difícil será na
de matar várias pessoas. Só que esta ponderação nunca terá a rigidez inerente prática frequentemente distinguir onde começa o erro sobre a necessidade do
ao direito de necessidade. Poderá acontecer que os bens colocados em perigo e meio e os sentimentos do defensor. Sendo o agressor homem em face de uma
objeto do comportamento do necessitado ou de outrem em seu nome sejam iguais mulher, aparentando ou sendo efetivamente mais corpulento que o agredido,
ou até menores dos que forem sacrificados. Tudo dependerá da situação concreta. utilizando uma arma face à sua inexistência pelo defensor, poderemos de facto
Se alguém para evitar a morte da sua filha, acaba por produzir a morte de duas confrontarmo-nos perante situações mistas em termos cognitivos e emocionais,
pessoas, a sua exculpação poderá ainda ter lugar na base de um juízo da culpa ignorando efetivamente qual a razão de ser do excesso verificado. Assim, se o
pessoal e avaliado no plano concreto. Por outro lado, a própria contribuição do agressor homem provocou medo na mulher a ponto de esta utilizar uma faca para
agente na produção do perigo pode não ser indiferente no seu julgamento posterior. se defender, produzindo desta forma maiores danos do que sem a sua utilização,
Fora de causa estarão por princípio aquelas situações em que alguém produz o que poderia na mesma ter lugar sem mais, tal deverá ser atribuído ao puro erro
perigo a si próprio e para depois lesar terceiros. Situações de criação dolosa do cognitivo de avaliação no momento do meio face ao perfil do agressor (erro sobre
mesmo ou ainda por negligência podem também não ser indiferentes à avaliação pressupostos da legítima defesa, art. 0 16 n. 2 e n. 3 do CP) ou do medo que se
final da sua conduta, como já referimos. A própria condição do atuante (como apoderou da mesma e a levou a agir desse modo, ou a uma mistura de ambas as
bombeiro, agente de segurança pública, etc.) pode não ser algo de indiferente realidades? Por vezes, nem sequer o próprio atuante saberá ao certo da efetiva
também no plano, quer da necessidade do meio, quer na questão da ponderação - motivação do seu comportamento ...
uma por regra maior exigência em termos de risco será aqui de afirmar.
Sobre a questão do erro sobre a consciência da ilicitude, enquanto problema
O n. 2 ocupa-se da questão da natureza dos interesses em causa ser diferente atinente à impunidade do agente, já o abordámos anteriormente (ponto 4.4), pelo
do elenco estabelecido no n.l. Neste caso, o legislador converte o problema aqui, que não nos iremos novamente debruçar sobre este item.
no máximo, numa causa de dispensa da pena ("excepcionalmente, o agente ser O art. 0 37 do CP ocupa-se da, pelo legislador designada, "Obediência
dispensado da pena"). Deste modo, a aplicabilidade do art. 0 74 do CP acaba por
indevida desculpante". Trata-se aqui de mais uma causa de impunidade do agente,
se tomar inevitável (n. 3 do art. 0 em causa). É deveras discutível tal opção do

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Fernando Conde Monteiro Direito Penal!

agora circunscrita a funcionários 29 (ainda que tal não impeça que dela possam pode até se revelar como exprimindo uma "moral homicida", em situações de
beneficiar não funcionários por via da sua comparticipação no facto criminoso, óbvia ilegalidade, em que a simples reclamação ou mera transmissão por escrito
infra). Fundamental neste âmbito é que se trate de uma relação hierárquica, em podem branquear crimes sem mais, proporcionando atuações de autêntica fraude
que ao funcionário hierarquicamente inferior lhe seja dada uma ordem, em matéria à lei. Por exemplo, alguém, a coberto da reclamação ou da transmissão por escrito
de serviço, formalmente adequada, por parte de um seu superior hierárquico. Por de uma ordem, massacra uma população inteira ...
outro lado, a ordem em causa deve necessariamente conduzir "à prática de um
crime", sob pena de o direito penal não ser chamado à colação, por via da óbvia Já o art. 0 37 assenta numa outra conceção de política criminal, moderada.
irrelevância do ilícito em causa para este ramo jurídico. Algo que, de resto, o Aqui, o funcionário não será punido se atuar "sem conhecer que ela [ordem] conduz
legislador já afirma no texto constitucional (n. 3 do art. 0 271) e que se afigura à prática de um crime, não sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por
como um mero truísmo. Poderia, por outro lado ainda, em algum momento uma ele representadas." Quer dizer, o agente atua desconhecendo que a ordem conduz
qualquer ordem de um funcionário obrigar o seu inferior hierárquico à prática à realização de uma infração criminal, portanto em erro. Se for um erro de mero
de crimes (v.g., homicídios, ofensas corporais, furtos, etc.)? Poderia nestes conhecimento tal excluirá nos termos do art. 0 16 n. 1 do CP o dolo, mas aqui trata-
termos, o Estado, que proíbe a realização de crimes, simultaneamente obrigar se da culpa (e portanto envolvendo a eventual negligência). Portanto, se um ente
os seus funcionários a praticá-los? Naturalmente que isto seria um completo policial manda disparar para determinado local, que o inferior hierárquico julga
absurdo. O máximo que aqui caberia ser referido é que a ordem dada, não em deserto e daqui resulta a morte de um cidadão, por via da relação hierárquica, deve-
si mesma considerada, mas por via do seu contexto material, poderia justificar se sem mais excluir desde logo a culpa deste último? Caso o inferior hierárquico
uma conduta aparentemente criminosa (excluindo a sua ilicitude) e neste caso a devesse conhecer que estariam aí pessoas, porque tal era habitual e portanto
obediência mantinha-se, já não em caso contrário. Assim, uma ordem dada por justificava-se ao menos que inquirisse o mandante em causa, porquê excluir
um ente policial de "carregar sobre a multidão", se conforme os pressupostos desde logo a culpa e não somente o dolo? Tanto mais que constitucionalmente ele
de legitimidade da mesma, poderia naturalmente justificar as eventuais ofensas poderia mesmo reclamar ou eventualmente pedir a confirmação ou transmissão
corporais a ela ligadas e naturalmente que o dever de a acatar cessaria sempre que por escrito. Este regime de favor não faria neste plano qualquer sentido. Por outro
não fosse conforme esses mesmos pressupostos. Num Estado democrático não se lado, se fosse evidente para o funcionário que a ordem conduzisse à prática de um
poderá conceber algo de diferente disto, sob pena de tudo poder ser legitimado crime e não obstante este agisse, então haveria uma óbvia responsabilidade penal
através da emanação de ordens por parte de quaisquer funcionários públicos de caráter doloso. Em caso de dúvida sobre a sua ilegalidade conducente à prática
e apenas por via disso. Neste sentido, o n. 1 do art. 0 271 da CRP estabelece o de um crime, a possibilidade de dela reclamar ou pedir a sua transmissão ou
princípio da responsabilidade, também criminal, de "funcionários e agentes do confirmação por escrita ("ónus de representação") manter-se-ia. Se não obstante
Estado e das demais entidades públicas" por condutas "praticadas no exercício esta possibilidade, o agente atuasse, tal poderia naturalmente consubstanciar a
das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos prática de um ilícito criminal, desde logo no âmbito do dolo eventual. Em último
ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos". Uma exceção é contudo aberta caso, se fosse essa a situação, por via da negligência. Isto tratando-se de erro
no n. 2 deste preceito. Se o inferior hierárquico, perante uma ordem emanada "de de conhecimento. Caso se trate de erro sobre a própria ilicitude da conduta, a
legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço", desconfiar dela ou achar dúvida em causa, a par da possibilidade de exercer o "ónus de representação",
que ela possa mesmo conduzir à prática de um crime, pode mesmo reclamar dela não deixará muito espaço para que a consciência da ilicitude permaneça e assim
ou exigir "a sua transmissão ou confirmação por escrito" (n. 2 in fine). Algo que o agente seja punido na moldura penal dolosa, ainda que eventualmente atenuada
(art. 0 17 n. 2 in fine do CP). A possibilidade de não punibilidade, que tanto poderá
29
ter lugar em erro de conhecimento ou sobre a própria consciência da ilicitude,
Sobre esta noção vide art. 0 386 do CP.

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passará ou por uma ignorância total não censurável de pressupostos de facto ou isto é, misto. Não será por conseguinte diferente da avaliação da negligência em
por uma valoração global positiva pelo agente, não censurável, também a avaliar si mesma (infra). Efetivamente a aferição desta tem sempre na sua origem o erro.
no plano concreto. Difícil, senão mesmo impossível, parece-nos ser o facto de Não há aqui portanto especificidades de maior, pelo que para esta remetemos o
que simultaneamente o funcionário não conheça que a ordem conduza à prática leitor.
de um ilícito criminal e portanto que a valore como positiva ou não configure
qualquer ilícito por estar em erro sobre pressupostos de facto e ao mesmo tempo
se afirme que tal não deverá ser "evidente no quadro das circunstâncias por ele
5. Formas de crime
representadas.", (art. 0 37 in fine do CP)? Se não conhece que a ordem conduz à
prática de um crime como se pode afirmar ao mesmo tempo que tal não deve ser 5.1. A comparticipação
evidente para o próprio agente?
Um crime pode revestir várias formas. Pode ser realizado integralmente e
Em conclusão, dir-se-á que este normativo manifestamente que não se ocupa portanto atingir o estado da consumação, como igualmente pode ser realizado
do erro sobre pressupostos de causas de justificação (aqui de ordens provindas parcialmente e ficar-se por estados intermédios, nomeadamente pela tentativa.
de superiores hierárquicos). Também não adianta nada no âmbito do erro sobre Igualmente podemos ter vários crimes realizados por um único agente realmente
a ilicitude. Porque é que neste domínio, se o inferior hierárquico ignora o caráter (concurso de crimes) ou aparentemente (concurso aparente). Finalmente
ilícito da ordem, deve sem mais não ser punido, quando até possui a possibilidade poderemos também estar perante uma pluralidade de agentes relativamente a um
de exercer o "ónus de representação" e não o utiliza? Por outro lado, pode ser mesmo delito. Neste caso, estaremos face à designada comparticipação. Dela
deveras perigoso que a culpa seja negada sem mais em casos nos quais o agente seguidamente nos iremos sinteticamente (quase esquematicamente) ocupar.
revele uma óbvia inimizade para com o direito e se ache sem mais autorizado a
agir a coberto do simples dever de obediência hierárquica. Está assim a mais,
sendo motivo de confusão e em nossa opinião não adiantando nada para além do
que já está previsto pelo menos no art. 0 17 do CP. 5.2.Formas de comparticipação

Já tomámos posição sobre o erro relativo à ilicitude no plano da sua não Os arts. 26 e 27 do CP ocupam-se respetivamente da autoria e da cumplicidade.
censurabilidade (supra). No que se refere aos erros sobre a típicidade e sobre A primeira destas modalidades diz respeito à autoria singular. Nos termos do
pressupostos de causas de justificação (art. a 16 ns. 1 e 2 do CP), também sobre eles início do art. 0 26, o legislador proclama que é "autor quem executa o facto, por
já nos debruçámos (supra). No que respeita ao erro sobre causas de exculpação, si mesmo". Executar o facto por si mesmo significa naturalmente preencher os
deve-se referir simplesmente que este só terá sentido no plano de pressupostos elementos objetivos e subjetivos do respetivo tipo de crime. Não existe aqui
objetivos destas (v.g., sobre a atualidade do perigo no âmbito do art. 0 35 n. 1 do portanto qualquer fenómeno de comparticipação. Esta tem lugar já a seguir,
CP). De facto é impossível conceber-se um erro sobre estados emotivos (v.g., art. 0 nos termos deste mesmo artigo, sendo igualinente autor quem executar o facto
33 n. 2 do CP) ou sobre o próprio erro (?). Deste modo, aceitar-se-á a extensão "por intermédio de outrem". Trata-se aqui da designada autoria mediata. O autor
do regime do erro sobre pressupostos de causas de justificação às causas de mediato executa o tipo legal de crime instrumentalizando um terceiro, servindo-se
exculpação (art. 0 16 n. 2 do CP). deste. Noutros termos, a autoria mediata caracteriza-se basicamente pelo facto de
o respetivo autor deter o domínio da ação, como o autor singular, mas servindo-se
O erro não censurável no plano da tipicidade, pressupostos de causas de de um terceiro que manipula de acordo com a sua vontade. Dir-se-á deste modo que
justificação ou de exculpação deverá ser aferido num plano objetivo-subjetivo, o se e o como da infração estarão no seu domínio e portanto o autor imediato será

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um mero instrumento nas suas mãos. Casos em que o domínio da ação pertence 147 n. I do CP). A última forma de comparticipação disciplinada no art. 0 em causa
ao autor mediato (v.g., alguém empurra outrem fazendo com que este parta um diz respeito à coautoria. A ela se refere o legislador quando reza: "É punível como
jarro de louça chinesa) serão aqueles em que o autor imediato esteja em erro, a autor quem [ ... ] tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente
coberto de uma qualquer causa de exculpação, atue por negligência, num plano com outro ou outros". Resulta assim a ocorrência de dois requisitos a tomar aqui
de coatividade, aja eventualmente em organizações num plano de subordinação em consideração. Por um lado, a necessidade de existência de um acordo ou um
hierárquica, etc. No oposto disto, encontramos a figura do instigador. Nos termos juntar-se a outro ou outros; por outro, tomar parte direta na execução do delito.
da última parte do art. 0 26 do CP, é ainda autor "quem, dolosamente, determinar Acordar ou juntar-se a outrem significa antes de mais aderir a um projeto de crime
outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução." ou mesmo tomar parte nele em termos decisórios. Encontramo-nos aqui perante o
Aqui, ao contrário do caso anterior, é o instigado que detém efetivamente o elemento subjetivo desta forma de comparticipação. Vários agentes decidem entre
domínio do facto, sendo o instigador mero impulsionador da sua vontade para si realizar um tipo legal de crime, discutindo a sua ocorrência, forma de o realizar,
praticar o delito. Assim, se alguém dá a outrem uma quantia monetária para que etc. Acordam assim na sua realização. Pode também acontecer que o projeto esteja
este cometa determinada infração penal e este a comete por isso mesmo, podemos já desenhado e haja uma decisão de o executar e alguém posteriormente lhe dê
falar sem mais numa relação de instigação. Efetivamente o instigador vai ser o a sua adesão, participando no mesmo. Tratar-se-á em princípio também de um
determinante da resolução do instigado, embora este detenha sempre a palavra acordo (posteriormente dado), até porque a sua aderência deverá ser aceite pelos
última neste âmbito. Serão por outro lado juízos da experiência comum que nos restantes coautores, explícita ou tacitamente. Deste ponto de vista, fica-se ainda
possibilitarão afirmar desse papel fundamental ou não. Também aqui o instigador por esclarecer o significado do advérbio "juntamente". Se dois ou mais agentes
poderá influenciar em maior ou menor medida o instigado sobre o como do delito. têm decido cometer um delito e um terceiro se junta a eles, trata-se neste caso
Fundamental é, em todo o caso, que este último detenha sempre nas suas mãos de uma coautoria aditiva, que até poderá acontecer estando já em execução o
o desenrolar dos acontecimentos. A última parte do artigo em causa exige como delito (coautoria sucessiva). Encontramo-nos assim por um acrescento a um
requisito de punibilidade "que haja execução ou começo de execução." Quer- acordo já firmado. O que não terá aqui sentido é compreender por juntar-se a
se deste modo evitar punições por meras. decisões de cometer crimes30 e assim mera atuação paralela, em que se trata apenas de uma coincidência de atuações
enveredar por uma tutela fragmentária do direito penal. Fica, por outro lado, por entre os vários agentes, sem mais. O acordo (eventualmente o juntar-se) deve
saber o que se deve entender por começo de execução ou mesmo pela prática abranger naturalmente a totalidade dos elementos do tipo legal de crime. Só
de atos de execução. Parece de qualquer maneira que, desde logo, a expressão assim poderá ter lugar a imputação integral do delito acordado e realizado. O
"começo de execução", por oposição a "execução" (vide art. 0 22 do CP) significa lado objetivo desta figura jurídica diz legalmente respeito a "tomar parte direta na
a existência de um estado anterior à própria consumação, desde que com a prática sua execução". Trata-se obviamente de um conceito indeterminado. Por contraste
dos atos em causa se vise a execução do crime (tentativa). Fundamental neste com as outras formas de comparticipação (autoria mediata e instigação), aqui
âmbito é ainda o facto de o instigador dever abranger dolosamente a totalidade dos não há uma atuação mediatizada, mas uma participação direta, pelas próprias
elementos objetivos e subjetivos do crime realizado pelo instigado (ou tentado). mãos. Um primeiro sentido pode advir da realização integral do tipo legal de
Desconformidades neste plano deverão ser analisadas no plano dos princípios crime. Assim, tomar parte direta seria executar sem mediação o delito em causa
e regras gerais (v.g., alguém pretende que outrem pratique um mero crime de e portanto preencher integralmente os seus elementos constitutivos. No entanto,
ofensas corporais simples, mas na execução deste propósito o instigado acaba por tal entendimento confundir-se-ia com a autoria singular. Exatamente a distinção
matar dolosamente a vítima, ao instigador ser-lhe-á, por princípio, aplicado o art. 0 entre estas duas formas de realização de crimes passa pela necessidade de uma
destrinça neste âmbito. Se várias pessoas decidem furtar bens de um determinado
edifício, dificilmente realizarão todas elas os elementos inerentes ao crime de furto
°
3
Cf. arts. 297 a 299 do CP.
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qualificado realizado. O que acontecerá mais provavelmente é que haverá uma autor, o que verdadeiramente interessa será sempre a sua contribuição objetiva.
distribuição de tarefas entre si, de modo que no conjunto de todas as contribuições De resto, se um autor (no plano objetivo) tiver uma conduta subjetiva de um
se possa alcançar o objetivo comum de consumação do delito, ainda que estas cúmplice, é esta que legalmente lhe será, em princípio, imputada.
sejam de diferente espécie e em si mesmas consideradas possam ser alheias
aos elementos do tipo objetivo. Noutras palavras, o mais significativo aqui é a
natureza e a importância da contribuição para o resultado final, mais do que a sua,
5.2.1. Ilicitude na comparticipação
em si mesma considerada, subsunção ao respetivo tipo legal de crime. Portanto
teremos aqui que mais uma vez nos socorrermos dos juízos da experiência comum O art. 0 28 do CP trata da questão da existência relativamente a um ou mais
para podermos determinar o real sentido e significado das diferentes contribuições comparticipantes de "qualidades ou relações especiais" (delitos específicos
operadas na execução da decisão de cometer o delito em causa, sem naturalmente próprios ou impróprios) e do seu efeito relativamente aos restantes, não portadores
nunca deixarmos de tomar em consideração o plano elaborado e a importância das mesmas. O princípio fundamental enunciado no n. 1 deste preceito é o da
dada pelos seus elaboradores às respetivas participações. Tratar-se-á assim de um absorção, ou seja, da comunicabilidade do tipo específico aos demais por efeito
critério misto. da comparticipação. Assim, se, por exemplo, alguém (não funcionário) instiga
um funcionário a apropriar-se de dinheiro que esteja na sua posse em proveito
O art. 0 27 refere-se à cumplicidade. É antes de mais uma forma de
de um terceiro, o que tem efetivamente lugar, tal implicará que o instigador nos
comparticipação acessória, por via desde logo do disposto no seu n. 2 (punibilidade
termos do citado n. 1 deste art. 0 seja punido pelo crime de peculato (art. 0 375 n.
do cúmplice com uma pena especialmente atenuada). A cumplicidade caracteriza-
1 do CP) e não pelo crime de abuso de confiança (art. 0 205 do CP). Portanto o
se a priori por ser um "prestar [de] auxílio material ou moral à prática por outrem
0
funcionário, no nosso exemplo, irá, por princípio, comunicar ao não funcionário as
de um facto doloso." (art. 27 n. 1 in fine). Em contraponto com a coautoria em
suas qualidades e por conseguinte um tipo legal mais grave. De notar, que poderá
que se exigia uma tomada direta no ilícito, aqui o legislador contenta-se com o
também acontecer que a comunicabilidade tenha lugar de um crime relativamente
mero auxílio. Auxiliar alguém na prática de um delito é assim ajudar essa pessoa a
a um não crime, caso dos delitos específicos próprios. Deste modo, se uma pessoa
realizá-lo, mas não é tomar parte direta nele. Encontramo-nos deste modo perante
(não funcionário) determinar um funcionário a abandonar as suas funções (art. 0
uma contribuição meramente secundária, não fundamental. Como no caso anterior,
385 do CP), por efeito desta mesma regra deve-lhe ser imputado um crime que à
para se saber da sua importância e significado é fundamental utilizar o mesmo
partida o indivíduo não detém as qualidades exigidas. Tal acha-se expressamente
critério misto, que então utilizámos. O contributo, à luz das regras da experiência
previsto logo no início deste mesmo art. 0 28 no seu n. 1 ("Se a ilicitude ou o grau
comum e de acordo com o plano em causa, há de revelar-se ser algo de meramente
de ilicitude dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente").
catalisador da prática do delito, não um seu contributo direto. Poderá deste modo
incrementá-lo, facilitá-lo, mas nunca determiná-lo ou revelar-se essencial para a Este regime comporta duas exceções. A primeira resulta desde logo da última
sua consumação. Se alguém dá a chave a outrem para entrar em casa da vítima e parte do citado n. 1 do art. o em referência. O legislador refere a possibilidade de
realizar o furto, tal será um contributo direto, se fundamental para a concretização outra ser a "intenção da norma incriminadora." A este propósito tem-se referido
do furto, mero auxílio se não fundamental para a realização do mesmo, que poderia constituir uma exceção a este princípio os designados crimes de mão própria.
ter lugar de outro modo. O auxílio em causa pode ser material ou moral (art. 0 27 n. Tratar-se-ia de crimes que não admitiriam a coautoria ou a autoria mediata,
1 do CP). Deve necessariamente ser doloso e o crime praticado deve igualmente porque pressuporiam uma execução pelas próprias mãos dos seus executores,
ser doloso. Finalmente, o cúmplice deve aturar com consciência do seu papel de como anteriormente deixámos referido (supra). No entanto, tal categoria é deveras
acessoriedade. De qualquer maneira, se tal não acontecer, se o seu animus for de difícil de aceitar. Porque não conceber, por exemplo, a existência de uma autoria

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mediata no crime de falso testemunho do art. 0 360 do CP? A segunda exceção está Como elementos básicos da tentativa encontramos um elemento subjetivo ao
consagrada no n. 2 deste mesmo art. 0 28. Neste número o legislador estabelece a lado de um outro objetivo. O primeiro tem que ver com o propósito ou desejo de
possibilidade de, tendo em conta a agravação resultante do n. 1, esta acabar por realizar um tipo de ilícito. O art. 0 22 n.l do CP refere-se a este elemento. Aqui,
não ter lugar por via da consideração das "circunstâncias do caso". Assim sendo, o legislador utiliza a expressão "de um crime que decidiu cometer". A decisão
como explicar a exceção em causa? Mais uma vez encontramo-nos perante o puro de cometer uma infração penal deve abarcar desde logo o dolo intencional e
casuísmo ("circunstâncias do caso"). Por outro lado ainda, pode acontecer que necessário. Questionável é o facto de o dolo eventual também estar abrangido
não se aplique uma pena mais grave, mas se proceda a uma nova incriminação por esta expressão. No fundo, trata-se de saber se aceitar a prática de um delito
(delitos específicos próprios), algo não expressamente previsto pelo legislador, é sinónimo de decidir realizá-lo. Se alguém dispara na direção de outrem,
que na última parte deste número afirma que a pena mais grave será, nestes casos aceitando a possibilidade de o atingir e a bala sai ao lado, porque não considerar
"substituída por aquela que teria lugar se tal regra não interviesse."(?) Nas atas da teleologicamente que se trata de uma tentativa? Se na hipótese de o atingir, o
Comissão Revisora do Anteprojeto do CP, deu-se como exemplo deste n. 2 o facto crime se encontrará consumado, porque não o considerar agora como tentativa? A
de as qualidades apenas terem lugar no cúmplice. No entanto, se se entender deste isto a questão linguística será obstáculo? Conformar-se com algo poderá ainda ser
modo, porque não estender tal exceção também ao instigador, que apesar de ser sinónimo de decidir-se por esse mesmo algo? Julgamos que em última instância
no nosso ordenamento jurídico uma modalidade de autor não deixa de apresentar haverá aqui aquele mínimo de correspondência verbal que sustenta a interpretação
características de cumplicidade? E mais exceções poderíamos apontar. .. em causa. Se é um facto que poderemos aceitar coisas de que não gostamos e
portanto não desejamos, também não é menos verdade que ao agirmos, podendo
Em conclusão, este artigo levanta importantes questões que não resolve não o fazer, estamos naturalmente a decidirmo-nos por isso, ainda que só o
satisfatoriamente, ficando-se a aguardar por novas contribuições para o seu cabal aceitemos como possibilidade de ocorrência. Portanto para nós o dolo eventual
esclarecimento. está também abarcado pelo elemento subjetivo da tentativa.

O art. 0 29 ocupa-se da culpa na comparticipação e estabelece o princípio A tentativa implica, por outro lado, um elemento objetivo. Nos termos do
da responsabilização pessoal de cada interveniente algo dispensável por via art. 22 n. 1 do CP, exige-se ao respetivo agente a prática de "atos de execução de
0

da própria característica desta categoria, mas que o legislador achou por bem um crime [ ... ]sem que este chegue a consumar-se." Atos de execução são antes
enfatizar sabe-se lá porquê ... de mais atos de preenchimento dos elementos (objetivos) de um tipo legal. Se,
por exemplo, alguém dispara um tiro contra outrem, matando-o, está a executar o
crime de homicídio, art. 0 131 do CP, ou seja, está a preencher o elemento objetivo
"matar", praticando atos adequados a produzir o resultado morte. Portanto a
5.3. A tentativa
execução integral de atos tipificados num crime é sinónimo da sua consumação.
5.3.1. Conceito. Elementos. Natureza Já uma execução parcial é expressão (ou pode ser) de uma tentativa. Se, no nosso
exemplo, a morte não tiver lugar, porque a bala saiu ao lado, então, o ato de
A tentativa tem que ver antes de mais com procurar, com intentar a prática execução deste elemento objetivo também não teve lugar, noutros termos, não
de um crime. Como empreendimento no sentido de realizar um delito surge em se executou a ação de matar. Portanto em princípio poderíamos ficar por aqui, ou
contraposição com a consumação deste. No plano dos crimes dolosos esta mesma seja, sempre que houvesse lugar a uma execução parcial, não integral, de um tipo
consumação caracteriza-se por ser uma tentativa com êxito. legal de crime, estaríamos perante uma tentativa. O n.1 do art. 0 22 bastaria ao caso.
No entanto, o legislador foi mais além. Nos termos do seu n. 2 resolveu explanar o

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que entende por atos de execução, como se não bastasse a análise dos respetivos seu n. 3 inculca-nos outra interpretação. Efetivamente, aqui o legislador refere "A
tipos legais de crime. Assim, na al. a) deste n. considera como atos de execução tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo
"Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime". A redação agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime.". Antes de
não é a mais feliz. Naturalmente que se tratará igualmente de atos de execução mais convirá afirmar que não se trata neste número de um verdeiro requisito de
se em vez de um estiverem dois ou mais elementos de um tipo legal de crime. Se punibilidade, mas de uma (mais uma) extensão do conceito de atos de execução
alguém, por exemplo, no crime de burla informática e nas comunicações, art. 0 aparentemente delineados no art. 0 anterior. Efetivamente a inexistência do objeto
221 do CP, realizar vários elementos do tipo legal em causa (interferir no resultado do crime ou a inaptidão do meio, desde que não manifestas, transformam-se neste
de tratamento de dados, estruturar de forma incorreta programa informático, etc.), n. em verdadeiros atos de execução do crime em causa. A sua inaptidão (se não for
nem por isso tal não deixará de ser considerado como tentativa para o efeito. manifesta) para a realização do tipo de ilícito penal não vai impedir a punibilidade
Depois na al. b) persiste o legislador na definição destes atos de execução. Aqui, do agente e portanto eles e só eles (a sua existência) é que determinarão a
considera igualmente como executivos de um crime "Ao que forem idóneos a responsabilidade do respetivo agente. Não são assim atos preparatórios, estão por
produzir o resultado típico". Isto é apenas a reprodução do disposto no art. 0 10 outro lado fora do tipo penal, em si mesmos são inidóneos para a produção do
n. 1 do CP ("ação adequada a produzi-lo", o resultado). Trata-se assim de uma concreto resultado, mas por efeito deste n. 2 adquirem relevância jurídica em tudo
repetição inútil, que não adianta nada ao caso. Já a referência à al. c) merece mais igual aos restantes atos. São assim consequência também da existência de um
atenção. Aqui prevê-se neste conceito "Os que, segundo a experiência comum e conceito alargado da tentativa. Problema que naturalmente aqui se coloca é o da
salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sua relação com o princípio da legalidade. Se formalmente não haverá problemas
sigam actos das espécies indicadas as alínea anteriores." Trata-se deste modo de por via da sua óbvia consagração legal, já materialmente se podem colocar
atos que não preenchem qualquer "elemento constitutivo de um tipo de crime" algumas pertinentes questões. Em que medida, por exemplo, um ato anómalo
(al. a) do n.2 do supra art. 0 , nem que são em si mesmos "idóneos a produzir o (disparo com uma arma não verdadeira) pode servir de base à incriminação de
resultado típico" (al. b) do mesmo n. 2. Portanto estão fora do tipo legal de crime. alguém por tentativa (impossível)? A mera aparência de perigo pode de per se
Não são, deste modo, nem formal, nem materialmente atos de execução. São-no justificar a punibilidade da mesma? Onde se encontra o desvalor do resultado?
apenas para este efeito (de delimitação da tentativa). Em si mesmos caracterizam- Não haverá apenas uma mera punibilidade com base no mero desvalor da ação e
se assim por serem atos preparatórios, em princípio não puníveis, mas apenas o assim na pura base de uma decisão antijurídica? A ser deste modo o princípio da
sendo, por via da sua conexão com os verdadeiros atos de execução. Por exemplo, legalidade, no seu plano material, é seriamente posto em causa.
se alguém aponta uma arma a outrem à distância, tal não constitui um ato de
execução de um homicídio, mas se for previsível que daí resulte o consequente Como verdadeiro pressuposto de punibilidade encontramos a medida da pena
disparo, tal já será possível de integrar este conceito nos termos da al. em causa (para além de 3 anos de prisão), n. 1 do art. 0 23 do CP. Este pressuposto reforça a
(al. c). Portanto a tentativa acaba por englobar no seu conceito atos fora do tipo ideia do caráter excecional da punibilidade desta figura. Numerosas exceções se
legal de crime, que sem esta seriam irrelevantes. De excecional no plano da sua encontram no entanto na parte especial. O n. 2 prevê a punibilidade especialmente
punibilidade, passa assim a ser excecional no âmbito do conteúdo de tipicidade, atenuada.
agora em sentido contrário, alargando-a.
Ainda neste plano há a referir a problemática da desistência (art. 0 24 do CP).
O art. 0 23 do CP ocupa-se dos requisitos de punibilidade da tentativa. Portanto Esta consiste antes de mais na renúncia, voluntária, à concretização da infração
à primeira vista estaremos perante pressupostos alheios ao conteúdo material desta penal. Se o agente empreende a realização do tipo legal de crime e, no entanto,
figura, dizendo apenas respeito à questão da punibilidade. No entanto, a leitura do acaba por desistir, evitando a consumação do mesmo, a renúncia à punibilidade
pelo legislador acaba por ser um incentivo à prossecução da mesma (desistência),
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não apenas relativamente ao específico agente. Importante de referenciar é o facto associado à omissão para a consumação deste crime. Nestes casos, a ocorrência
de mesmo com a consumação do crime, poder ter lugar esta mesma desistência. do resultado é indiferente em termos de tipicidade. Assim, se no caso do art. 0
Em princípio, com a consumação a tentativa naturalmente deixa de ter sentido. 200 do CP, ocorrer a morte da vítima em consequência da falta de prestação de
A aplicação desta regra acaba por só ter significado, por exemplo, em crimes auxílio pelo agente deste crime, tal será irrelevante tipicamente. Já no caso dos
de perigo concreto, de empreendimento em que o resultado não compreendido crimes omissivos impróprios ou impuros o resultado faz parte do respetivo tipo
no respetivo tipo legal, mas com ele ligado, seja evitado pelo respetivo agente. legal. Em princípio qualquer crime de resultado previsto na parte especial do CP
Cuidados de qualquer maneira a ter aqui serão os atinentes ao possível ocasionar ou em legislação extravagante implica que esse mesmo resultado possa ter lugar
de resultados diferentes de outros evitados pelo agente. Por exemplo, no crime relativamente à omissão, por via e nos termos do art. 0 1O do CP (infra).
de incêndio pode haver lugar à verificação de resultados danosos de caráter
patrimonial, em maior ou menor medida, com exclusão dos referidos na última
parte do art. 0 272 n. 1 do CP. A obtenção do privilégio da impunibilidade pode
6.2. Delimitação da omissão relativamente à ação
assim "lavar" resultados ocorridos na realização do respetivo crime. Algo que
até se pode prestar a situações de verdadeira fraude à lei, em que alguém lesa Suponhamos que um condutor ao circular de noite com as luzes apagadas
outrem e depois, evitando um mal maior, vai ver-lhe ser aplicado este mesmo atropela um peão, perguntando-se desde logo se a morte daqui derivada resultou da
privilégio de impunidade. Isto pode naturalmente subverter toda a construção ação de conduzir com as luzes apagadas (conduta ati v a) ou da omissão do dever de
inerente às causas de justificação e ser altamente lesivo de direitos fundamentais acender as luzes à noite enquanto se conduz (conduta omissiva)? A resposta a dar
dos cidadãos. Parece-nos desde logo por isto que será inconstitucional. Assim a esta questão passa por aquilo que poderemos designar por inversão da situação,
uma interpretação restritiva, que evite a sua aplicação em casos de verificação de ou seja, se na hipótese inversa (circulação com as luzes acesas) o resultado se
resultados antijurídicos é a única a seguir. Finalmente, a consideração do esforço daria na mesma ou não. Se a resposta for afirmativa, então, tal significará que o
sério quando o resultado não tiver ocorrido "por facto independente da conduta peso gravitacional da situação se situará no plano ativo. Já na hipótese contrária
do desistente" (n. 2 do art. 0 24) será também de louvar, entendendo-se por este estaríamos perante uma conduta omissiva.
condutas que à luz da experiência comum se revelem aptas a evitar o resultado
(supra).

Fora de toda esta problemática encontram-se os atos preparatórios (art. 0 21 6.3. Tipo objetivo/subjetivo de ilícito
do CP), que só excecionalmente podem ser objeto de punibilidade (v.g., art. 0 271
do CP). O art. 0 10 (já citado) equipara no seu n. 1 a omissão à ação em termos de
conexão a um concreto resultado. Ou seja, no âmbito dos crimes de resultado, este
tanto pode ter lugar por intermédio de condutas ativas como omissivas (omissão
imprópria). A exceção na última parte deste art. 0 ("salvo se outra for a intenção da
6. Os delitos omissivos dolosos lei") diz (pelo menos aparentemente) respeito aos crimes de execução vinculada,
onde o processo de obtenção do resultado se encontra descrito no respetivo tipo legal
6.1. Espécies
e portanto deste modo se parece inviabilizar esta correspondência. Efetivamente
Os crimes dolosos omissivos podem ser de dois tipos. Por um lado, temos se, por exemplo, olharmos para o art. 0 221 n. 1 do CP (Burla informática e nas
os crimes omissivos próprios ou puros, em que basta a existência do perigo telecomunicação), encontramo-nos perante um crime de execução vinculada,
onde na descrição das condutas conducentes ao resultado podemos verificar a
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existência tanto de comportamentos meramente ativos ("interferindo no resultado mesmo estatuto se retira. 31 Portanto, fundamental aqui é a consideração antes de
de tratamento de dados") como omissivos ("utilização incorreta ou incompleta mais de um dever jurídico, depois a determinação do seu âmbito de abrangência,
de dados"). Portanto a simples existência de um crime de execução vinculada para assim determinar a existência de um concreto dever de agir em face de uma
não significa ipso facto que estejamos necessariamente perante uma limitação à situação de risco para bens jurídicos. Como conceito indeterminado que é implica
imputação objetiva em termos omissivos. É sempre uma questão a verificar em naturalmente uma óbvia indeterminação, onde a analogia necessariamente tem
cada tipo legal de crime de execução vinculada. lugar e portanto o princípio da legalidade se enfraquecesse obviamente.
No n. 2 do art. 0 10 estabelece-se uma restrição em matéria de imputação do O dolo aqui não oferece particulares problemas epistemológicos. Se a mãe
resultado no plano omissivo. Este só poderá ter lugar se sobre o agente recair "um não alimenta a sua filha recém-nascida, desejando deste modo que ela faleça por
dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado." Encontramo- inanição, a imputação do homicídio doloso (por omissão) é aqui óbvia e não
nos assim perante o designado dever de garante, ou seja, a imputação de um necessita de maiores explicações.
resultado à omissão de uma conduta só pode ter lugar se houver um dever jurídico
de evitar a produção desse resultado. Por outro lado, para além deste dever é Como delitos específicos que são, os crimes omlSSlvos impróprios estão
naturalmente importante tomar em consideração outros requisitos, tais como, subordinados às regras do art. 0 28 do CP em matéria de ilicitude no plano da
desde logo, a capacidade do agente para poder executar esse dever. Capacidade comparticipação.
esta que pode ser desde física até intelectual, passando pela existência de especiais
conhecimentos para agir no quadro concreto. Assim, se alguém, em face de um Já nos referimos ao conflito de deveres como causa de justificação (art. 0 36
sinistrado, estando em princípio obrigado pessoalmente a prestar-lhe auxílio, do CP). Para lá remetemos o leitor.
não o fizer, pode no caso concreto este dever não operar em virtude da falta de
No âmbito da culpa, a única nota a referir diz respeito à possibilidade de
conhecimentos técnicos nesse sentido. Muito discutível ainda é o problema das
atenuação desta no âmbito do n. 3 do art. 0 10 do CP. Trata-se de uma atenuação
fontes ou planos de promanação do dever de evitar o resultado. Nos termos legais,
especial da pena com caráter facultativo. A razão de ser deste preceito reside no
exige-se a existência de um dever jurídico pessoaL Numa primeira análise, poder-
facto de no plano omissivo ser em regra mais fácil executar o delito do que através
se-ia considerar que este dever deveria concretamente especificar a obrigação
de comportamentos ati vos e assim a ligação ética ao tipo de ilícito ser em princípio
de o agente evitar um específico resultado - algo que na prática não tem lugar.
menor.
Efetivamente, a determinação deste dever pessoal, que em si mesmo é um conceito
indeterminado, só pode ter lugar a partir da existência de planos ou fontes do Não há finalmente problemas, por princípio, relativamente à admissibilidade
mesmo. Noutros termos, estaremos perante deveres de caráter mais geral dos da tentativa nos delitos omissivos impróprios dolosos. Se alguém se encontra em
quais se possa induzir a existência de específicos deveres de evitar a produção de perigo de vida e outrem, estando obrigado a promover o seu socorro no plano
concretos resultados. Trata-se assim de um problema de interpretação de vínculos pessoal nada faz, vindo no entanto a vítima a ser salva por outra pessoa, por si
jurídicos de alguém no sentido de daí inferir a existência deste dever de garante. mesma ou por outro qualquer facto alheio à vontade do omitente, a afirmação aqui
Deste modo, por exemplo, desde logo do estatuto legal de um médico, pode-se da tentativa de homicídio não deixará ninguém em dúvida.
naturalmente inferir a existência de concretos deveres de evitar resultados danosos
para as respetivas vítimas, na medida em que a obrigação de tratar, curar, prevenir,
evitar doenças, estados patológicos, sofrimentos físicos, psicológicos, etc., desse 31
Algo que pode ser reforçado no plano individual, através da celebração de um contrato de tra-
balho com a entidade prestadora de serviços de saúde ou, e da própria relação contratual ou não
também com o paciente.
180 181
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

7. Os delitos negligentes refletindo-se inevitavelmente no âmbito do direito penal. Ser-se assim negligente
significa que se omitiu ou se executou de forma errada regras destinadas a
7.1. Conceito e formas de surgimento prevenir riscos, agindo-se naturalmente sem dolo. O desvalor da ação encontra-
se deste modo neste âmbito. Por outro lado, a fonte destas regras pode não se
Também nos crimes negligentes se pode verificar a existência de um desvalor
encontrar em códigos, leis, regulamentos, mas em meras práticas não codificadas
de ação e de resultado. Efetivamente agir ou não agir e particularmente nas nossas
(v.g. o conceito de leges artís inerente ao art. 0 150 n. 1 do CP). Finalmente, a
sociedades cada vez caracterizadas pela complexidade, é algo que provoca ou
negligência pode revestir várias formas. Pode ser executada por omissão (quando
pode provocar riscos para terceiros. Se as utilidades dos modos de vida humanos
se devia agir) ou por ação (quando não se deveria pura e simplesmente agir ou se
superam os seus malefícios ou pelo menos se decide nesse sentido, tal de
deveria agir diferentemente). Pode o agente na infração das regras fazê-lo de forma
qualquer maneira não significa que se aceite sem mais o exercício de atividades
mais grave (negligência grosseira, grave) ou menos grave, como pode agir nessa
produtoras de mais ou menos riscos. O que sucede então é que esses agires são
violação de forma totalmente inconsciente ou de forma consciente (negligência
permitidos, mesmo incentivados, mas sob condição. Ou seja, estabelecem-se um
consciente). A produção de riscos e a sua concretização em resultados tem que ver
sem número de pressupostos para a sua efetivação, procurando-se desta forma
com o desvalor do resultado.
minorar os danos que daí possam provir. Neste plano, por exemplo, o exercício
da condução de veículos automóveis, pelos riscos que implica, está sujeita a uma
série de requisitos, que vão desde a formação dos condutores e sua consequente
autorização para conduzir até aos específicos pressupostos inerentes à própria 7.2. Elementos pertinentes à ilicitude e à culpa
condução (pense-se desde logo no CE). A ideia geral presente é a de que se os
respetivos condutores cumprirem escrupulosamente com as regras inerentes A violação de regras consubstancia uma infração a normas penais e portanto
ao seu exercício a possibilidade de surgirem riscos de verificação de danos é expressa uma óbvia ilicitude formal. Esta transforma-se em material quando dessa
exponencialmente reduzida e assim a condução toma-se socialmente aceitável. E violação ocorrem riscos ou resultados concretos. O art. 0 15 do CP consagra desde
tanto mais será deste modo quanto maior for o conhecimento dos riscos inerentes logo esta realidade. No seu corpo, o legislador refere que "Age com negligência
a esta atividade e por conseguinte as regras associadas ao seu exercício sejam as quem, não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado
mais adaptadas ao mesmo. Outra questão que aqui se coloca diz respeito a um e de que é capaz". "Não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias,
segundo momento ou seja, à problemática do seu concreto cumprimento por parte está obrigado" é infringir normas que deveria respeitar. Portanto, o dispositivo em
dos seus destinatários. Efetivamente, nem sempre as regras são as melhores, por causa não tem grande utilidade prática, neste ponto. Sem ele tudo se procederia
vezes, há mesmo situações em que as regras nem sequer podem funcionar. Tal na mesma. Por outro lado, limita a exigência de uma atuação conforme à norma,
depende, quer da própria capacidade do legislador de perceber o tipo de atividade à capacidade do concreto agente. Se este estiver, por qualquer motivo alheio à
que regulamenta, quer da própria natureza da atividade em si a regulamentar (ser, sua vontade, incapacitado de cumprir as regras que lhe eram exigíveis, a sua
por exemplo, mais ou menos complexa), quer ainda das condições (ou falta delas) responsabilidade cessa naturalmente, por ausência de culpa. Também aqui o art. 0
dos respetivos agentes dessas atividades (v.g., uma inadequada formação no em causa nada adianta relativamente ao entendimento que se tem da culpa neste
ensino da condução automóvel pode conduzir a várias deficiências dos respetivos âmbito e que é naturalmente concretizado em cada tipo legal de crime.
condutores que naturalmente se irão repercutir aquando do exercício efetivo da
respetiva condução). Serve tudo isto para esclarecer o leitor da existência da
negligência enquanto realidade cada vez mais importante nas nossas sociedades e

182 183
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

7.3. Estrutura dos delitos negligentes 8. Concurso de crimes


Como já anteriormente referimos, a negligência reveste fundamentalmente 8.1. Noções gerais
duas modalidades. Pode ser consciente ou inconsciente. A primeira encontra-se
estabelecida na al. a) do art. 0 15 do CP. Assim, "Age com negligência quem[ ... ] Há concurso de crimes quando alguém comete mais do que uma infração
Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de penal. Encontramo-nos assim perante uma pluralidade de crimes relativamente
crime mas atuar sem se conformar com essa realização". Já oportunamente nos a um mesmo agente. Iremos seguidamente debruçarmo-nos sobre este item
debruçámos sobre esta questão (supra). Assim, quem atuar sem aceitar o facto abordando os principais problemas aqui suscitados e relativamente aos critérios
(a produção do resultado ou simplesmente do risco, se esse for o caso), neste de delimitação desta figura, sendo que a questão da punibilidade é tratada na
âmbito só poderá ser punível a título de negligência. Por seu turno a negligência disciplina de Direito Penal II.
inconsciente encontra-se consagrada na al. b) "Age com negligência quem[ ... ]
Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto".
8.2. Modalidades

O art. o 30 n. 1 do CP afirma no seu n. 1 que "O número de crimes determina-se


7.4. Fundamento e natureza
pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes
A punibilidade da negligência assenta grosso modo nas mesmas razões de que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente." A norma em
natureza preventiva que estão presentes nos crimes dolosos. Não há assim razões causa é praticamente a expressão de um truísmo. Em si nada contribui para um
para excluir deste âmbito necessidades de prevenção geral, sejam estas positivas efetivo esclarecimento do leitor. De facto, o que o legislador refere é que pode
ou negativas ou de prevenção especial negativa ou positiva ou ainda de prevenção haver lugar à prática de crimes diferentes (por um mesmo agente) ou o mesmo
especial da vítima. Naturalmente que em termos concretos poderemos fazer crime pode também ter lugar mais do que uma vez ...
funcionar mais necessidades de um tipo relativamente a outro, mas tal também
Fundamental aqui é desde logo determinar o que se deve entender pela
sucede nos crimes dolosos. Talvez aqui se faça contudo sentir algo em princípio
prática de mais do que um crime pelo mesmo agente. Assim, se alguém decide
ausente no âmbito dos crimes meramente dolosos e que poderá implicar o próprio
matar A e depois ofender corporalmente B, para finalmente furtar C, naturalmente
apagamento de quaisquer finalidades preventivas. Se, por exemplo, um condutor
que estaremos perante três crimes diferentes praticados pelo mesmo agente. Mas
de um automóvel negligentemente causa a morte à sua esposa e dois filhos,
o que efetivamente nos permite realizar esta afirmação? Obviamente que o facto
acabando por sofrer pessoalmente com o sucedido (ao nível fisico, psicológico,
antes de mais de ter tido lugar no âmbito de três decisões de cometer três espécies
etc.), a punição do mesmo pode ser desprovida de quaisquer finalidades deste teor
diferentes de delitos criminais. Portanto, como acontece fora da fenomenologia
e assim haver lugar a uma renúncia de intervenção jurídico-penal.
jurídica, se alguém decide cometer três espécies de factos diferentes, o critério
decisório é naturalmente fundamentaL O lado objetivo expressa somente o
querer do agente. Por outro lado, tratando-se de um mesmo tipo legal, mais se
toma evidente este aspeto. Pluralidade de resoluções implica naturalmente, uma
vez estas concretizadas, pluralidades de idênticas infrações. Ainda aqui pode
surgir um problema de fundo. Por exemplo, no crime de ofensa à integridade

184 185
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

física simples (art. 0 143 do CP) podem ser praticados vários atos que de per se homicídio. O mesmo se dirá grosso modo relativamente a crimes de resultado
consubstanciariam um único crime e que estão naturalmente abrangidos pelo dolo em confronto com delitos de perigo (abrangendo a tentativa), crimes complexos
do agente se efetivamente praticados. Aqui uma interpretação teleológica do tipo em relação a crimes simples naqueles contidos, etc. Estaremos aqui perante o
legal em causa permitirá a imputação de uma só infração. Portanto a unidade ou designado doutrinalmente por concurso aparente de crimes. Apesar de estarmos
pluralidade de crimes dolosos depende da unidade ou pluralidade de resoluções aparentemente pela realização de mais do que um crime, efetivamente estaremos
criminosas, ou seja, da unidade ou pluralidade de dolos. perante uma só infração penal.

Já no âmbito dos crimes negligentes, a unidade ou pluralidade destes deve


ser perspetivada no plano da ligação entre a violação ou violações de regras de
prevenção e os riscos ou resultados a elas associados. Se A conduz em excesso 8.3. Crime continuado
de velocidade e daí resulta o despiste do seu automóvel que faz com que atropele A figura do crime continuado encontra guarida no art. 0 30 ns. 2 e 3 do CP.
um peão e o mate, tal constitui uma violação de regras de prevenção produtoras Trata-se de uma pluralidade de crimes (concurso real) que acaba por implicar a
do concreto resultado em causa. Se posteriormente a isto, o agente volta a punibilidade do agente no âmbito da moldura penal abstrata do crime mais grave
exceder-se e mata novo peão, estaremos perante um segundo crime com idêntico (art. 0 79 do CP). A razão fundamental para tal acontecer no âmbito do nosso CP
circunstancialismo, mas com uma nova violação de regras preventivas em conexão diz respeito à existência por último de "uma mesma situação exterior que diminua
com o resultado produzido. Assim, novas violações ligadas a riscos ou resultados consideravelmente a culpa do agente." Se a patroa sistematicamente não confere
implicam novos crimes negligentes. o dinheiro que dá à sua empregada doméstica para realizar compras, acabando por
o fazer "tarde e a más horas", a mera imputação de um só crime continuado de
Tudo isto resulta deste modo na caracterização do designado concurso real de
abuso de confiança será o corolário lógico desta circunstância exterior ao agente
crimes ou simplesmente concurso de crimes.
(negligência da patroa em conferir as contas) que diminui a sua culpa, como que
Se alguém faz despoletar uma bomba e assim produz a morte de três pessoas, incentivando o agente à prática reiterada da mesma infração nos termos do n. 2 do
estaremos no plano dos crimes dolosos perante três crimes se o dolo do agente art. o em causa e não se tratando de bens eminentemente pessoais (exceção do n. 3.
for nesse sentido. O meio utilizado é aqui indiferente. Como se trata de um
tipo legal de crime (homicídio doloso) em que se protege um valor de natureza
pessoal, querer matar três ou mais pessoas equivale naturalmente à realização dos
correspondentes crimes em função dos objetos considerados. O mesmo tem lugar
relativamente à negligência e nos termos anteriormente referidos.

Uma última questão deve ser referida. Por via da interpretação dos diferentes
tipos legais de crime poderemos chegar à conclusão de que apesar de haver sido
realizados mais do que um crime só um deles se aplicará. Assim, se para matar,
se ofende a integridade física de alguém, não faz de qualquer maneira sentido
que se vá punir o homicida pela prática destas duas infrações. No homicídio o
legislador já contou com a violação do crime de ofensas corporais e portanto a
punibilidade daquele já contem este facto. Logo o agente apenas será punido pelo

186 187
Regras metodológicas de tratamento de casos práticos

I. A exposição

1. Introdução
Poderemos expor o tratamento de um caso prático fundamentalmente através
de três processos de exposição. A escolha dos mesmos será realizada de acordo
com as características da hipótese formulada. Também se poderá combinar alguns
destes métodos.

2. Método cronológico de exposição


Através deste método o aluno deverá realizar a sua narrativa jurídica dos
factos acompanhando a sequência temporal dos mesmos, portanto de acordo com
o evoluir da situação ou situações narradas no enunciado.

É um método recomendado em casos simples. Permite acompanhar sem lapsos


temporais o evoluir dos factos. Já em casos complexos, com vários intervenientes,
situações dogmáticas complexas pode não ser de todo aconselhável ou ser utilizado
com outros métodos, nomeadamente com o método de exposição por agentes.

3. Método de exposição por agentes

É um método que se caracteriza por previamente individualizar os agentes


no caso prático e relativamente a cada um deles realizar a descrição da sua
responsabilidade penal.

Recomenda-se a sua utilização naturalmente quando haja vários


Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

comparticipantes, começando pelos autores e terminando nos cúmplices, também imparcialidade e objetividade. O aluno não deverá ver hipóteses onde elas não
eventualmente nos instigadores. É, por outro lado, obrigatório, tratando-se existem e nenhumas regras do senso comum as permitam. Por outro lado, deve-
de determinar consequências jurídicas, que naturalmente só podem ter lugar se igualmente ser preciso na linguagem utilizada. Um furto não é um roubo.
relativamente a agentes individualizados e normalmente implicando uma Ninguém viola tipos legais de crimes. Violam-se normas, valores, interesses a
única consequência relativamente a vários delitos praticados por um mesmo estes inerentes. As condutas de facto poderão ou não integrar os respetivos tipos
agente (concurso de crimes). Pode no entanto tomar-se pouco prático em legais.
questões complexas, com o mesmo agente ligado a vários crimes sob diferentes
modalidades de comparticipação, onde o método de exposição por matérias se A abordagem do caso prático deve ser subordinada a um princípio de economia
pode revelar mais apropriado, ainda que naturalmente nunca se deixe de fazer de meios. Não faz qualquer sentido abordar questões não pertinentes, que o caso
menção aos comparticipantes. Efetivamente, nunca um caso prático deve omitir a não suscita (como já deixámos dito atrás). Por exemplo, se não há, sem mais, lugar
responsabilidade (positiva, negativa) dos respetivos agentes. a legítima defesa, é absurdo afirmar que esta não tem lugar e pior referir-se ainda a
esta, justificando a sua não aplicabilidade. Se nada se disser sobre o lugar, tempo,
nacionalidade dos participantes, deve-se presumir que os factos sucederam no
espaço territorial português, atualmente, por portugueses e portanto é totalmente
4. Método de exposição por matérias despiciendo fazer qualquer referência a estes aspetos. O mesmo deve acontecer
relativamente a estados mentais, conceções pessoais do autor, etc. Se sem crime
Este método caracteriza-se por isolar questões jurídicas a partir de factos e da
não há agente, deve-se naturalmente em primeiro lugar investigar da existência
sua relevância jurídico-penal. Aparte de ser inaplicável tratando-se de determinar
deste para depois equacionar a problemática da comparticipação. Por outro lado,
consequências jurídicas, pode ser utilizado quando a complexidade das questões
devem-se evitar excessivas elucubrações jurídicas e doutrinárias sobre aspetos
levantadas o justifique.
que as não justificam (v.g., se é óbvio que se trata de coisa móvel alheia, não faz
sentido tecer múltiplas considerações sobre o assunto, vide infra).

5. Síntese geral sobre os métodos expositivos


Como é óbvio, nunca se poderá abdicar em quaisquer dos métodos, quer da III. Tabelas esquemáticas sobre o elenco dos elementos
consideração da responsabilidade individual dos agentes, quer da abordagem das atinentes à infração penal correspondentes à matéria dada na
questões jurídico-penais pelo caso levantadas. Pode-se apenas expô-las de forma disciplina de Direito Penal I
mais saliente ou integradas noutra metodologia. Por outro lado, já no que toca ao
método cronológico, dele se poderá abdicar a maior parte das vezes, a não ser que
regras lógicas o não permitam (v.g., para se entender se alguém é instigador, terá
1. Delitos consumados por ação dolosos
eventualmente que se atender a uma série de dados temporalmente acontecidos,
que nos permitam obter tal conclusão). Tipicidade: elementos objetivos (agente, ação, modalidades, resultado,
imputação do mesmo, objeto da ação, bem jurídico); elementos subjetivos (dolo,
II. Regras gerais de tratamento de casos práticos
Deve-se olhar para o caso elaborado de forma desapaixonada, num plano de

192 193
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

modalidades, elementos subjetivos especiais, erro 32). também pelos elementos objetivos (incluindo a ação ou a omissão), resultado e
sua imputação abstrata identificando as razões da não concretização do mesmo,
Causas de justificação: em regra, deve-se começar pelos elementos objetivos, eventualmente da não produção do risco ou sequer da conduta em sim mesma
nestes, pelos aspetos primários e só depois pelos subsequentes (v.g., na legítima considerada (se for caso disso) e depois passar aos subjetivos (decisão de cometer
defesa, deve-se iniciar a análise pelos pressupostos da agressão e só depois analisar o delito)
os pressupostos da defesa), passar-se-á seguidamente aos elementos subjetivos, o
erro pode então ser invocado ou mesmo antes (supra n. 32) Causas de justificação: trata-se também aqui de urna execução parcial de
um delito (formalmente considerado), devendo-se igualmente começar pelos
Culpa: (elementos especiais, v.g., "especial censurabilidade", pressupostos, elementos objetivos e só depois passar aos subjetivos, corno acima se referiu
idade, anomalia psíquica, outras causas de exculpação, incluindo o tratamento do
erro, também não censurável)33 • Culpa (pressupostos, idade, anomalia psíquica, outras causas de exculpação,
incluindo o tratamento do erro, também não censurável)

Requisitos de punibilidade: Medida da pena, desistência


2. Delitos consumados por omissão dolosos

Tipicidade: elementos objetivos: características do tipo de omissão (pura!


impura). Na primeira, deve-se caracterizar o dever geral de agir; na segunda o 4. Delitos negligentes
especial dever de garante e sua ligação com o resultado. Elementos subjetivos
Tipicidade: elementos objetivos (violação por ação ou omissão do dever
(dolo, modalidades, elementos subjetivos especiais, erro 34 )
objetivo de cuidado, ligação com o resultado ou simples produção de perigo,
Causas de justificação: deve-se incluir antes de mais o tipo de conduta objeto das condutas); elementos subjetivos, (violação do dever de cuidado em
ornissiva, seus efeitos objetivos, o aspeto subjetivo, incluir também o erro (se for termos individuais, formas de negligência)
caso disso)
Causas de justificação: elementos objetivos (ação, omissão, ligação com o
Culpa: (pressupostos, idade, anomalia psíquica, outras causas de exculpação, resultado, eventualmente com a criação de um risco em conexão com os elementos
incluindo o tratamento do erro, também não censurável). também objetivos da correspondente causa de justificação); elementos subjetivos
(violação do dever de cuidado, impunidade do mesmo em termos subjetivos por
via da causa de justificação)

3. Delitos tentados Culpa (pressupostos, idade, anomalia psíquica, outras causas de exculpação,
incluindo o tratamento do erro, também não censurável).
Tipicidade: trata-se de urna execução parcial do delito, deve-se começar

32
Pode-se antecipar a resolução do caso desde logo pela invocação do erro de tipo, expressando
desta maneira uma regra de economia na sua resolução.
33
No caso vertente torna-se indiferente a qualificação jurídica (causas de exculpação /exclusão da
punibilidade).
34
Supra n. 32.

194 195
Fernando Conde Monteiro Direito Penal I

5. Comparticipação 1. Resolução do caso prático de acordo com o método


cronológico
Deve-se (como anteriormente se referiu) começar pela caracterização dos
autores principais: autor mediato (infra), coautores, instigado e só depois se referir Antan, ao penetrar, através do telhado em habitação alheia, atua por
a atuações secundárias (cúmplices, instigador). No caso da autoria mediata, na escalamento (art. 0 202 al. e) e 204 n. 2 al. e) do CP), visando apropriar-se de coisa
prática, muitas vezes toma-se impossível realizar esta dissociação, dada a estreita móvel também alheia (vaso de cerâmica, art. 0 203 n. 1 do CP em ligação com o
ligação dos indivíduos na realização do delito. art. 0 205 n. 1 do CC) e de valor elevado (art. 0 204 n. 1 al. a) ex vi art. 0 202 al. a).
Fá-lo com a intenção ilegítima de apropriação da mesma (art. 0 203 n. 1 do CP,
sabia naturalmente que o objeto era propriedade de outrem).

6. Concurso de infrações Antan agiu contudo em erro sobre o objeto da sua ação. Desejava furtar
um objeto de muito maior valor do que o que concretizou. Tal deveu-se a uma
Deve-se fundamentar a unidade ou pluralidade de infrações realizadas
errada identificação do mesmo (erro de perceção). Tratou-se de um erro sobre
(concurso real), se tal se justificar. Aconselha-se, no âmbito do concurso aparente,
uma circunstância qualificativa (valor elevado, art. 0 204 n. 1 al. a) do CP, supra)
por razões de economia, ir diretamente ao delito aplicável e só depois justificar a
Encontramo-nos assim perante uma tentativa de furto qualificado (arts. 204 n. 1
sua escolha.
al. a) e n. 2 al. e), no pressuposto de que o autor não realizasse esta infração caso
se tivesse apercebido do erro em causa, porque o furto negligente não existe como
tal.
IV. Caso prático
Deste modo, Antan seria punido por tentativa de furto qualificado (art. 0 204 n.
Antan, procurando apropriar-se de um vaso de louça chinesa de Ban, avaliado 2 al. e) do CP). Quis realizar este tipo legal de crime (art. 0 22 n. 1 do CP), visando
em 6000 €, penetra na sua habitação, através do telhado da mesma, na madrugada produzir um resultado antijurídico (apropriação de uma coisa móvel alheia, vaso
do dia 9 de Maio de 2013. Uma vez lá dentro, apodera-se de um vaso com as de cerâmica de valor elevado, através de escalamento, arts. 203 n. 1 e 204 n. 1 al.
características que julgava ser as verdadeiras e sai de casa com o mesmo. a) e n. 2 al. e) em conjunção com o art. 0 202 als. a) e e). Tal não se concretizou, por
erro na identificação do objeto (circunstância alheia à sua vontade, cf. art. 0 22 do
Regressado a sua casa, encontra Ban, que, sendo conhecido de si, resolveu CP). A tentativa é punível (cf. art. 0 23 n. 1 em ligação com o art. 0 204 n.2 do CP).
lá ir para beber uns copos. Como Antan aparecesse com o vaso de Ban, este,
inquirindo-o sobre o sucedido e obtendo a resposta de que tal vaso era de Antan, Ban, reconhecendo o seu vaso, reivindica-o, mas Antan resiste e não o
empurra este, dando-lhe um murro na cara e causando-lhe pequenos hematomas entrega. O objeto em causa está na posse deste. Ban, ao empurrar Antan e dar-
na face esquerda, conseguindo desta forma apoderar-se do seu vaso e levando-o lhe um murro na face produtor de "pequenos hematomas", realiza objetivamente
de seguida para sua casa. o crime de ofensa à integridade física simples (art. 0 143 n. 1 do CP). Foi uma
conduta naturalmente dolosa, mesmo intencional. Pode-se aqui discutir a eventual
O vaso em causa não era efetivamente o que Antan desejava furtar, mas uma existência de uma causa de justificação. A legítima defesa deve ser excluída. Não
cópia do mesmo, com o valor de 500€. há aqui uma agressão atual. A coisa entrou definitivamente na posse de Antan,
ainda que negligentemente. Pode-se questionar então da possível existência de
Analise a responsabilidade dos vários intervenientes.
um direito de necessidade defensivo. Havia aqui um risco de real perda da coisa

196 197
Fernando Conde Monteiro

em causa. Este risco proveio indiscutivelmente de Antan. Por outro lado, à luz
de juízos da experiência comum, as ofensas corporais realizadas parecem dever
ser consideradas como necessárias, Antan resistiu à entrega voluntária. Se Ban
não recorresse à força física, poderia nunca mais ter acesso ao seu bem, nem se
demonstra que o recurso à autoridade pública pudesse efetivamente resolver o
problema (pelo menos de imediato). Também a ofensa corporal (pequena lesão
da integridade física) não lesa de forma muito desproporcional os valores que
visava proteger (propriedade e respetivo valor). Desde logo, o valor em causa
(500€), equivalente (mais ou menos) a um salário mínimo nacional, não pode
ser considerado de tal modo irrelevante que não justifique a lesão da simples
integridade física ("pequenos hematomas"). À luz das molduras penais relativas
aos crimes em causa e no plano de uma valoração ético-jurídica, a conclusão
em causa não sofre dúvidas. Nestes termos, poderemos considerar justificada por
direito de necessidade defensivo a conduta realizada por Ban.

2. Resolução do caso prático de acordo com o método de


exposição por agentes
Dada a simplicidade do caso, não se justifica a autonomia deste método
expositivo. As coisas já seriam diferentes se, por exemplo, Antan realizasse crimes
posteriores na pessoa de Ban. Aqui já esta metodologia faria sentido.

3. Resolução do caso prático de acordo com o método de


exposição por matérias
Também dada a simplicidade desta hipotese, não faz sentido uma
autonomização desta metodologia. A primeira grande questão (erro sobre o objeto
relativo a circunstâncias qualificativas) já foi naturalmente autonomizada pela
sequência temporal dos acontecimentos. Também o mesmo sucedeu relativamente
à segunda grande questão, problemática da aplicabilidade do direito de necessidade
defensivo.

198
Índice

Parte I 11
1. Introdução 13

2. Noção (provisória) de Direito Penal 13

3. Direito penal e disciplinas afins 14

3.1. O Direito Penal e o Direito Disciplinar 14

3.2. Direito penal e direito das contraordenações 15

3.2.1. Critérios de distinção 15

3.2.2. As consequências jurídicas 19

4. As finalidades do direito penal 23

4.1. A questão 23

4.2. Os grandes modelos de conceber a intervenção jurídico-


~~ ~

4.2.1. Introdução 24

4.2.2. Os modelos de prevenção 25

4.2.2.1. Introdução 25

4.2.2.2. O modelo terapêutico 25

4.2.2.3. O modelo socializador 28

4.2.2.4. O modelo correcional 30


4.2.2.5. O modelo de prevenção especial negativa (intimidação 6. Âmbito de validade temporal da lei penal 57
individual) 31
6.1. Introdução 57
4.2.2.6. O modelo de prevenção geral negativa 32
6.2. Princípio fundamental a tomar em conta neste âmbito: o
4.2.2.7. O modelo de prevenção geral positiva 33 princípio da irretroatividade penal 58

4.2.3. O modelo ético-retributivo 35 6.3. A determinação do momento da prática do facto 58

4.2.4. O modelo de concertação entre agressor e vítima 37 6.4. Tomada de posição 60

4.2.5. Tomada de posição 38 6.5. O princípio da irretroatividade da lei penal.


Desenvolvimento 60
5. A lei penal e a sua aplicação 51
6.6. O princípio da retroatividade da lei penal mais
5.1. O princípio da legalidade e a proibição de analogia 51 favorável 61
5.1 .1. Introdução 51 6.7. O conteúdo dos princípios em causa 62
5 .1.2. Os limites do direito positivo 52 6.8. As leis penais descriminalizadoras 64
5 .1.3. As regras metodológicas de aplicação do direito 6.8.1. Conteúdo 64
penal 52
6.8.2. O pensamento subjacente 65
5.1.3.1. Ponto de partida o art. 0 9.° CC 52
6.8.3. As consequências jurídico-penais 65
5.1.3.1.1. Introdução 52
6.9. As leis atenuadoras da responsabilidade penal 66
5.1.3.1.2. O elemento literal 52
6.9.1. Conteúdo 66
5.1.3.1.3.1. Contexto sistemático jurídico (penal) 54
6.9.2. O pensamento subjacente 66
5.1.3.1.3.2. Contexto sistemático extrajurídico e supra-
sistemático 55 6.9.3. As consequências jurídicas 67

5.1.4. Conclusão. O sentido final da proibição da analogia (in 6.1 O. As leis intermédias 69
malam partem) 56
6.11. Determinação do regime concretamente mais
favorável 69
6.12. As leis temporárias 71 7. 7.2. Direito positivo português 90
7. Âmbito de validade espacial da lei penal 72 7.8. O princípio do direito convencional 91
7.1. O problema. Delimitação conceptual 72 7. 8.1. Generalidades 91
7.2. O sistema de aplicação da lei penal no espaço e os seus 7.8.2. Direito positivo português 91
princípios constitutivos 74
7.9. Restrições à aplicação da lei penal portuguesa. O direito
7.3. O princípio da territorialidade 74 positivo português 91
7.3 .1. Aspetos doutrinais 74 Parte H 93
7.3.2. O direito positivo português 76 1. A teoria geral da infração penal 95
7.4. O princípio realista ou da defesa de interesses 1.1. Introdução 95
nacionais 79
1.2. Aspetos históricos 96
7.4.1. Considerações gerais 79
1.3. A conceção clássica (positivista-naturalista) 96
7.4.2. O direito positivo português 80
1.4. A conceção neoclássica (normativista) 97
7.5. O princípio da defesa de interesses internacionais ou
princípio universalista 83 1.5. O finalismo Cântico-fenomenológico) 97

7.5.1. Aspetos gerais 83 1.6. Tomada de posição 98

7.5.2. O direito positivo português 83 1.6.1. O ponto de partida: a ação? 98

7.6. O princípio da nacionalidade 86 1.6.2. A ilicitude 100

7 .6.1. Aspetos doutrinais 86 1.6.3. A tipicidade 101

7.6.2. O direito positivo português 87 1.6.4. A culpa 101

7.7. O princípio da administração supletiva da lei penal em casos 1.6.5. A Punibilidade 102
de omissão do ius puniendi 90
2. Crimes dolosos por ação 102
7. 7.1. Aspectos doutrinais 90
2.1. Considerações gerais 102 2.12.2. O dolo de tipo: sua estrutura, elementos e delimitação
(erro) 121
2.2. Desvalor da ação e do resultado 103
3. Os tipos justificadores (causa de justificação ou de exclusão da
2.3. A adequação social e sua relação com a tipicidade 104 ilicitude). O princípio da unidade jurídica 128
2.4. O tipo objetivo de ilícito 105 3.1. Especificidades dos tipos justificadores relativamente aos
2.5. O agente. Princípio geral tipos incrirninadores no plano da ilicitude 128
105

2.6. Entes coletivos. 105 3 .2. Intentos de sistematização dos tipos justificadores 132

2.7. Classificações. O agente. Crimes comuns e específicos 107 3.3. Elementos subjetivos dos tipos justificadores 133

2.8. A conduta. Crimes de resultado e de mera atividade. Crimes 3.4. A aceitação errónea de urna causa de justificação 135
de execução livre e de execução vinculada 108 3.5. Efeitos das causas de justificação 135
2.9. O bem jurídico. Crimes de dano e crimes de perigo. Crimes 3.6. A legítima defesa 136
simples e crimes complexos 108
3.6.1. Fundamento 136
2.1 O. Grupos de tipos e figuras típicas de estrutura especial:
crimes fundamentais, qualificados e privilegiados. Crimes 3.6.2. A situação de legítima defesa: requisitos 136
instantâneos, duradouros, habituais. Crimes de empreendimento.
Crimes qualificados pelo resultado 109 3.6.3. A ação de defesa: requisitos 136

2.11 A imputação do resultado à conduta: questões 3.6.4. O auxílio necessário 136


prévias: 113 3.6.5. O direito de legítima defesa jurídico-civil (art. 0 337 do
2.11.1.0 aspeto empírico 113 CC) 136

2.11.2. O aspeto jurídico-penal 115 3.7. Os estados de necessidade justificantes 138

2.11.3. A questão da "causalidade virtual" 119 3.7.1. O direito de necessidade do art. 0 34 do CP 138

2.12. O tipo subjetivo de ilícito 120 3.8. O conflito de deveres justificante do art. 0 36 do CP 143

2.12.1. A formação do tipo subjetivo de ilícito 120 3.9. O estado de necessidade defensivo jurídico-penal 145

3.1 O. Os consentimentos justificantes 145


3.10.1. O consentimento real (ou simplesmente 7 .1. Conceito e formas de surgimento 182
"consentimento") 145
7 .2. Elementos pertinentes à ilicitude e à culpa 183
3.1 0.2. O consentimento presumido 145
7.3. Estrutura dos delitos negligentes 184
4. A culpa 148
7.4. Fundamento e natureza 184
4.1. O juízo de culpa. Conceito. Natureza. Elementos 148
8. Concurso de crimes 185
4.2. Pressupostos da "culpa"(punibilidade) 149
8 .1. Noções gerais 185
4.3. Conteúdo da culpa 156
8.2. Modalidades 185
4.4. A consciência da ilicitude 157
8.3. Crime continuado 187
4.5. A delimitação negativa da culpa (impunibilidade) 162
Parte 189
5. Formas de crime 169
Regras metodológicas de tratamento de casos práticos 191
5 .1. A comparticipação 169
I. A exposição 191
5.2.Formas de comparticipação 169
1. Introdução 191
5 .2.1. Ilicitude na comparticipação 173
2. Método cronológico de exposição 191
5.3. A tentativa 174
3. Método de exposição por agentes 191
5.3.1. Conceito. Elementos. Natureza 174
4. Método de exposição por matérias 192
6. Os delitos omissivos dolosos 178
5. Síntese geral sobre os métodos expositivos 192
6.1. Espécies 178
II. Regras gerais de tratamento de casos práticos 192
6.2. Delimitação da omissão relativamente à ação 179
III. Tabelas esquemáticas sobre o elenco dos elementos atinentes
6.3. Tipo objetivo/subjetivo de ilícito 179 à infração penal correspondentes à matéria dada na disciplina de
Direito Penal I 193
7. Os delitos negligentes 182
1. Delitos consumados por ação dolosos 193
2. Delitos consumados por omissão dolosos 194

3. Delitos tentados 194

4. Delitos negligentes 195

5. Comparticipação 196

6. Concurso de infrações 196

IV. Caso prático 196

I. Resolução do caso prático de acordo com o método


cronológico 197

2. Resolução do caso prático de acordo com o método de


exposição por agentes 198

3. Resolução do caso prático de acordo com o método de


exposição por matérias 198

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