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20 • Público • Domingo, 5 de Novembro de 2017

CULTURA
A historiadora da arte feminista
que fez perguntas diferentes
MUSEUM OF FINE ARTS, BOSTON

Linda Nochlin veio mostrar que


existiram mulheres artistas e eram
muitas mais do que imaginaríamos.
Veio explicar-nos por que eram invisíveis.
Morreu no domingo, aos 86 anos
as condições favoráveis ao desen-
Artes volvimento da vocação artística das
Filipa Lowndes Vicente mulheres. Não é por acaso que, desde
o século XIII e até recentemente, a ti-
Linda Nochlin tinha 40 anos quando, pologia de artista-filha-de-pai-artista,
em 1971, publicou no Artnews o artigo ou então filha de pai especialmente
Por que é que não existiram grandes favorável à sua educação, assumiu
mulheres artistas?. A pergunta — fe- um padrão tão persistente.
minista, irónica e provocadora — veio
revolucionar a disciplina da História Afinal havia mulheres
da Arte, demasiado confortável nos pintoras no século XVI
seus cânones em que sucessões de
estilos artísticos se seguiam ao longo Em 1976, teve lugar em Los Angeles a
do tempo. Comum a todos os movi- exposição Women Artists 1550-1950.
mentos, cronologias e nacionalidades Foi a primeira vez que se juntaram
artísticas era o facto de todos os artis- num mesmo espaço artistas de nacio-
tas serem homens. A força legitima- nalidades tão diversas e de períodos
dora do conhecimento — exposto em tão díspares e que se consolidaram as
livros, programas de ensino, museus abordagens de uma história da arte
e exposições — tornava “natural” a feminista. Organizado pelas historia-
ausência de mulheres artistas. Se elas doras da arte Linda Nochlin e Ann
não estavam lá, se não líamos sobre Sutherland Harris no Los Angeles
elas nem as víamos nas paredes dos County Museum, o carácter acadé-
museus, é porque não existiam. mico e institucional do evento permi-
Nochlin veio mostrar não só que tiu-lhes aceder aos espaços invisíveis
“elas” existiam e eram muitas mais dos museus e de colecções privadas
do que imaginaríamos, mas, sobre- onde se encontrava grande parte da
tudo, veio explicar os mecanismos obra de mulheres artistas, sobretudo
que tinham levado à sua invisibili- na Europa, e fazer investigações pro-
dade ao longo da história. Inverteu, fundas sobre artistas em relação às
também, os termos da questão: o que quais pouco ou nada se sabia.
era extraordinário é que, apesar das Incorporando as premissas do
resistências, dificuldades e obstácu- valor artístico da história da arte —
los a que as mulheres prosseguissem as noções de “qualidade”, “origina-
uma carreira artística, no século XVI lidade” ou “estilo” —, a exposição
como no XIX, tenha havido tantas e integrava a obra das mulheres no
com tanta qualidade. Num período cânone artístico que, até então, fora
de grande actividade e discussão somente masculino. Mas mesmo para
feminista, Nochlin propôs que esta a maioria dos visitantes mais cultos,
perspectiva fosse usada não só em as rotinas do reconhecimento fácil
relação à História da Arte, mas pa- eram postas em causa pelo desco-
ra repensar as “bases intelectuais e nhecimento dos nomes das artistas
ideológicas das várias disciplinas in- expostas. Quem é que, conhecendo
telectuais ou académicas.” Rafael, Caravaggio ou Rubens, co-
Além de apontar tar os muitos nhecia Anguissola,
Angu Gentilieschi ou e Cultura artística (séculos XVI-XX). mento é indissociável do tempo e do cios que fiz foi ir à procura da obra de
entraves à criatividade
idade femi- Fontana? Elas também estavam Ao iniciar com o momento cronoló- espaço em que é produzido. Linda Nochlin e de Griselda Pollock,
nina — a falta de acesso ao no Prado
Prado, nos Uffizi, no Louvre, gico em que a “história” começou a a historiadora da arte britânica de
estudo do nu e a uma boa mas não estavam expostas e mal estudar a arte feita por mulheres — Onde está Linda Nochlin em uma geração posterior (n. 1949) que,
educação ou o estigmastigma do tinham ssido estudadas. na década de 1970 —, e não com o Portugal e em português? tal como Nochlin, teve um impacto
amadorismo — a historiadora
istoriadora A exposição
expo e os textos das momento em que a arte em si é pro- fundamental na disciplina. Quais dos
da arte também cha- ha- suas cu
curadoras foram deter- duzida — desde o século XVI —, que- Em A Arte sem História (Babel, 2012) seus livros existiam nas bibliotecas
ma a atenção para ra mina
minantes na forma como ria precisamente chamar a atenção procurei compreender o impacto universitárias de Coimbra, Porto ou
construí o meu livro A Ar-
con para a história da História da Arte, ou do pensamento feminista no campo Lisboa? E na Biblioteca Nacional? Que
Linda Nochlin te ssem História. Mulheres seja, para os modos como o conheci- artístico português. Um dos exercí- editoras as tinham traduzido? Não ti-
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Público • Domingo, 5 de Novembro de 2017 • 21

Em Linda e Daisy (1973) Alice


Neel pinta a historiadora de
arte Linda Nochlin junto a uma
das suas duas filhas (à esq.). Em
baixo, O Jogo de Xadrez (1555),
de Sofonisba Anguissola, e uma
aula de desenho com modelo ao
vivo no Reino Unido (c. 1900) ,
só com estudantes-mulheres
NATIONAL MUSEUM, POZNAN, POLÓNIA
ve muito trabalho. Entre a escassez sobretudo nos Estados Unidos e no com que Paula Rego reinventa a his-
de títulos existentes em bibliotecas Reino Unido, um “renascimento fe- tória do Capuchinho Vermelho em
para uma e outra autora, encontrei, minista” feito tanto de olhares sobre seis desenhos, Nochlin identifica “um
apenas, aqueles que não tinham a pa- o contemporâneo como de reflexões feminismo revisionista evidenciado
lavra “mulheres”, “feminismo” ou históricas sobre o passado. Foi nes- com insistência sardónica”: por um
“género” no título. se ano que Nochlin, juntamente com lado, a projecção de um ego femini-
Nochlin, com uma vastíssima obra, Maura Reilly, voltou a ser curadora de no forte, autónomo e sexual, quer
aparecia com quatro livros apenas uma grande exposição no Brooklyn na figura do Capuchinho, quer na da
na Porbase, o catálogo unificado das Museum — um museu exemplar nos avó; por outro lado, e em contraste,
principais bibliotecas portuguesas. modos como pensa crítica e politi- o falhanço do homem-lobo em sedu-
Mas mesmo esta quantidade era ilu- camente a arte e uma instituição zir o Capuchinho e o seu triste final,
sória, pois três dos quatro livros eram onde a arte feminista tem uma ala deitado em toda a sua fragilidade e
a mesma obra em línguas diferentes: permanente. Global Feminisms. New com a mãe do Capuchinho Vermelho
o seu clássico livro sobre Realismo no Directions in Contemporary Art mos- prestes a espetar-lhe uma forquilha
século XIX, em italiano, espanhol e trava as práticas artísticas feministas na barriga. A historiadora da arte no-
inglês. Apenas a Universidade de Avei- para lá das fronteiras da Europa e dos ta como Paula Rego recria todas as
ro possuía Women, Art and Power and EUA, precisamente as geografias que personagens-mulheres — as habituais
Other Essays, de 1991. Para Pollock, o não tinham estado incluídas, 30 anos (o Capuchinho Vermelho e a avó) ou
cenário era ainda mais pobre — ape- antes, na exposição Women Artists: as novas (a mãe) — numa narrativa
nas a sua monografia sobre Van Gogh, intelectual comprometida e partici- anos, tomar a palavra. Num breve 1550-1950. Muito mudara desde en- sobre o poder feminino.
uma no Porto e outra em Lisboa. Os pativa que seria até ao fim. Mas não testemunho, Nochlin começou por tão, mas, escreveu Reilly, o sexismo Foi só com o doutoramento sobre
únicos livros que existiam — artistas estava sozinha. Foi nesse sentido do dizer que lhe interessava ali afirmar a e o racismo continuavam embrenha- as representações das classes traba-
e estilos, Van Gogh e o Realismo — na- colectivo — “eu, ao lado de muitas inseparabilidade da historiadora que dos na lógica do mundo artístico. lhadoras e das mulheres na pintura
da revelavam sobre a sua produção outras mulheres politizadas e, sim, constrói a história (através da escrita, No mesmo ano, a exposição Wa- do francês Gustave Courbet, no Ins-
escrita, mas revelavam muito sobre a liberadas” — que sentiu como estava do ensino e da curadoria de exposi- ck! Art and the Feminist Revolution, tituto de Belas-Artes da Universidade
história da arte ensinada e publicada realmente a “interferir no processo ções) da pessoa que vive a história, onde Helena Almeida foi a única de Nova Iorque, que Linda Nochlin se
em Portugal, ainda pouco afectada histórico e a mudar a própria histó- aproveitando para fazer uma crítica portuguesa, veio historicizar a de- concentrou na História da Arte. Antes
por tudo o que acontecia historio- ria: a história da arte, da cultura, das aberta à guerra empreendida pelo nominada “arte feminista”. Também disso, a sua licenciatura fora em Filo-
graficamente noutros lugares desde instituições e da consciência”. Governo de Bush. Fora na década de em 2007, a Documenta de Kassel, na sofia (Vassar, 1951) e o mestrado em
a década de 1970. Muitos anos depois, Em Fevereiro de 2007 Nochlin foi 1970 que tomara consciência de que Alemanha, um dos mais importantes Literatura Inglesa (Universidade Co-
voltei agora a fazer a mesma pesqui- a principal homenageada do CAA, a história não era apenas aquilo que acontecimentos internacionais de ar- lúmbia, 1952). A curadoria de exposi-
sa. Há mais dois livros de Nochlin em o grande Congresso de História da se passava algures num outro lugar te contemporânea, pela primeira vez ções — ao lado da escrita, do ensino,
bibliotecas portuguesas e apenas a de Arte que decorre anualmente nos e num outro tempo, mas aquilo que apresentou 50% de mulheres artis- como do activismo — começou logo
Arte da Gulbenkian continua a con- Estados Unidos, e que nesse ano foi ela vivia todos os dias. Todas e todos tas, num gesto de grande relevância com o tema do doutoramento, nu-
trariar estas ausências. dedicado às relações entre arte e fe- fazemos parte da história e por isso política e simbólica. Nos últimos dez ma retrospectiva de Courbet, e conti-
Apesar das muitas transformações minismo. Foi a única vez que a ouvi. também a podemos mudar. anos multiplicaram-se, pelo mundo, nuou ao longo de toda a sua vida.
na história da arte portuguesa nos Éramos centenas de pessoas sentadas exposições temporárias sobre mulhe- À data da sua morte, no domingo
últimos anos, continuam a não exis- na maior sala do hotel ao pé do Mo- A globalização artística res artistas ou sobre arte e feminismo passado, com 86 anos, era professora
tir traduções em Portugal da revolu- Ma nova-iorquino, onde decorria a e histórica do feminismo (veja-se, por exemplo, até Março de emérita de Arte Moderna no instituto
cionária obra de Nochlin. Nem dos conferência. Primeiro, falaram várias 2018 no Museu do Chiado, a exposi- nova-iorquino onde se doutorara. Ca-
livros, nem do artigo de 1971. Apenas oradoras que tinham sido influencia- O ano de 2007 foi um momento de ção Género na Arte. Corpo, Sexualida- sou duas vezes e foi mãe outras duas.
em 2016 uma editora de São Paulo das pelo seu trabalho. No final, foi consolidação dos caminhos de in- de, Identidade, Resistência) apesar das A extraordinária artista norte-ameri-
publicou pela primeira vez o ensaio a vez da protagonista, então com 75 vestigação das décadas anteriores, abordagens feministas à História da cana Alice Neel (1900-1984) pintou-a
em português — Por que não houve HERKOMER ART SCHOOL, REINO UNIDO
Arte (ou às outras disciplinas das hu- em 1973: Linda sentada ao lado da
grandes mulheres artistas?. No site, manidades) continuarem a ser ainda filha Daisy, pequena, num retrato
as Edições Aurora acrescentaram muito desiguais de país para país. onde a intelectual também é mãe.
como “a tradução foi autorizada Perguntei-me algumas vezes se ela
com entusiasmo pela autora”. Nochlin e o Capuchinho também seria uma das Guerrilla Girls,
Vermelho de Paula Rego as mulheres anónimas (porque tapa-
A historiadora do presente: das com uma máscara de Gorila) que
tod@s fazemos história Linda Nochlin é da geração de Paula integram o grupo activista que, desde
Rego, como também de Maya Ange- a década de 1980, se tornou — com
Linda Nochlin foi professora, acadé- lou, Helena Almeida, Lourdes Castro humor e irreverência — a “consciên-
mica, curadora, mas também acti- ou Ana Hatherly (até Janeiro de 2018 cia feminista no mundo das artes”.
vista. Num ensaio autobiográfico de no Museu Calouste Gulbenkian). E Linda Nochlin foi daquelas pessoas
1994, Nochlin escreveu como o seu foi sobre as representações do Ca- que não podiam ter sido mais do
percurso fora marcado pela “inter- puchinho Vermelho de Paula Rego que foram. Já não a podemos ouvir
secção do eu [self, essa palavra de que acabou por escrever num texto mas podemos continuar a lê-la e — tal
difícil tradução] com a História”. publicado em 2008. Fê-lo a propó- como ela — a tentar fazer perguntas
Foi no contexto norte-americano sito do trabalho da artista japonesa diferentes.
de protesto contra a guerra no Vie- Miwa Yanagi, dedicado à situação
tname, de luta pelos direitos dos ne- das mulheres no mundo contempo- Investigadora no Instituto
gros e de afirmação dos movimentos râneo (Heavy Light. Recent Photogra- de Ciências Sociais da
feministas que Nochlin se tornou a phy and Video from Japan). Na ironia Universidade de Lisboa

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