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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras

UNESP – Campus de Assis


ISSN: 2178-3683
www.assis.unesp.br/coloquioletras
coloquiletras@yahoo.com.br

OSMAN LINS E A NATUREZA COMO SUPORTE PARA UM DISCURSO DE


SAGRAÇÃO DO HUMANO

Priscila Medeiros Varjal de Melo


(Mestranda – UFPE/Recife – CNPq)

RESUMO: Este trabalho tem como objeto de estudo – na narrativa Retábulo de Santa Joana
Carolina, do livro Nove, Novena (1966), de Osman Lins – a construção do “Eu” público desta
personagem enquanto “caminho” de Sagração, através da Natureza de um Humano em estado
de extinção. A discussão aqui empreendida parte dos elementos do mundo físico e corporal da
santa osmaniana, representados discursivamente tanto nos enunciados quanto nas imagens
que compõem a estrutura hagiográfica desse conto.

PALAVRAS-CHAVE: Eu; natureza; discurso; humano; sagração.

1. O “Eu” público de Joana Carolina se seus doze mistérios

Certamente, pela dificuldade de mensurar a relação entre o homem e o divino


– no caso específico do cristianismo o caminho parece ser o da prece – pode-se
considerar que Osman Lins busca o ciclo de orações da “novena”, na intenção de
representar essa relação que repete a metáfora real: O martírio de Cristo. O autor
traça a jornada de penas e sofrimentos de Joana, no plano terreno, considerando que
o homem é “incapaz de pensar o abstrato e, muitas vezes, de concebê-lo”.
(VAUCHEZ, 1995, p.160). Por este motivo, a vivência religiosa cristã se dá muitas
vezes no nível dos gestos e dos ritos, responsáveis por colocar o homem em contato
com o mundo sobrenatural.

1.1 Natividade

Com o “primeiro mistério” do conto temos a fundação do Cosmos pela palavra


osmaniana. O Caos sendo substituído pela organização que se dá no Retábulo pela
ordenação dos elementos constitutivos do Universo e início do tempo, medido então
pela “invisível balança”.

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É em meio à instituição do Cosmos que se dá o nascimento de Joana
Carolina, como se desde o início houvesse uma determinação divina a guiar o seu
futuro.
Joana é revelada pela voz da ama, que fez o parto de todos os filhos de sua
mãe, Totônia: “Acompanhei, durante muitos anos, Joana Carolina e os seus. Lá estou,
negra e moça, sopesando-a (tão leve!), sob o olhar grande de Totônia, que me
pergunta: ‘É gente ou é homem?’” (1966, p. 72)
Também pela boca da ama tomamos conhecimento neste mistério de como
entrará Joana, antes de tudo, em contato com os pecados capitais representados por
seus próprios irmãos: “Suzana envenenada de luxúria, Filomena aduncando o nariz e
as unhas na avareza, Lucina irada com todos, até contra mim. João Sebastião, errante
mas sem calço nas ações, deve ser obra do pai, um seu reflexo. (p. 81)
Os irmãos, que se encontram representados no retábulo da vida da santa
osmaniana: “Aquelas quatro crianças que nos olham, perfiladas do outro lado da
cama, guardando nos punhos fechados sobre o peito seus destinos sem brilho [...]”
(p.72-3), incorporam cada qual o pecado que lhes norteia o destino.
Este será parte do embate empreendido pela personagem em seu martírio,
através do qual começamos a ter acesso às suas virtudes cardeais – Fortaleza,
Justiça, Prudência e Temperança – que cultiva durante toda a vida. E às virtudes
teologais, que também estão presentes durante sua trajetória: Fé, Esperança e
Caridade.
No segundo mistério, depois da fundação do Cosmos, a organização social
começa a surgir com a instituição da casa, da habitação do homem, responsável por
protegê-lo da vastidão do Universo. Dessa maneira, o homem começa a habitar a
Terra em meio a uma relação de dever e responsabilidade, pois habitar “não é um
estado transitório; ao contrário, implica a imbricação, em longo prazo, dos seres
humanos em uma paisagem de memória, ancestralidade e morte, de ritual, de vida e
trabalho”. (GARRAD, 2006, p. 155)
É importante observar que a “casa”, embora não signifique para a sociedade
atual uma fundação sagrada, e sim um lugar transitório, de passagem, teve uma
conotação religiosa muito forte para os homens antigos, pois “a habitação não era um
objeto, uma máquina para habitar; era o Universo que o homem construiu para si
imitando a Criação exemplar dos deuses, a cosmogonia”. (ELIADE, 2008, p. 54)
Neste mistério, já com onze anos, a personagem aparece através do
testemunho do segundo tesoureiro, carregando escorpiões que não lhe fazem mal

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algum, como se tivesse o dom de se fazer entender por aqueles animais. Tendo-os em
tão alto valor, os julga ricos para serem doados à Irmandade das Almas, como dízimo;
por este motivo os enfia pela Caixa das Almas, sendo surpreendida: “(Joana) olha
para mim com as mãos espalmadas, nada sabendo explicar sobre o porquê do seu ato
e espantada com as nossas opas verdes”. (p.74)
Esta cena dará espaço ao primeiro questionamento acerca da experiência
mística de Joana – se é divina ou maligna sua inclinação – uma vez que a
manifestação do sobrenatural (geralmente na infância) sempre desperta espanto e
temor, antes de conformar-se em santidade ou heresia. Tão logo se quedam sozinhos,
o presidente da Irmandade e o segundo tesoureiro começam a discutir acerca de
como a menina brinca com aqueles animais peçonhentos, chamando a atenção para
esta experiência com o desconhecido: “Ficamos discutindo, acreditando em partes
com o demônio, pois o aceitamos bem mais facilmente que aos anjos”. (p.76)
A “casa” também será símbolo do martírio da personagem. Assim é que o
herdeiro do engenho, insatisfeito por não receber os favores sexuais que espera de
Joana, tenta desestabilizá-la com a troca constante de casa, procura destituir-lhe de
identidade com o lugar.
Nas sociedades mais antigas, a casa tinha uma dimensão religiosa, sagrada,
de um espaço específico para guardar o homem, demarcar seu lugar no Universo.
Diversas são as literaturas que exploram a possibilidade do homem vir a habitar a
Terra em uma relação de dever e responsabilidade.
É no terceiro mistério que surge a “praça”, o espaço social, lugar dos debates
políticos que aconteciam na cidade. E também um ponto de encontro, onde havia uma
Igreja e as famílias conversavam acerca dos assuntos da semana. Era o espaço
expandido da casa.
Neste mistério, a “imagem da Sta. Joana” aparece em todas as suas cores, é
quando mais se assemelha a uma religiosa: “Joana, descalça, vestida de branco, os
cabelos ouro esvoaçando, traz sobre o peito a imagem emoldurada de São
Sebastião”. [...] “Por trás, numa fila torta, cantando em altas vozes, com velas acesas,
muitas mulheres”. (p. 76).
Eis que tem início sua peregrinação, com o milagre divino que lhe dá
novamente a vida, depois da doença que lhe tomou o corpo, encontrando a cura
quando já estava “meio cega, ausente das coisas, febril, as pernas mortas”. (p. 77)
A imagem de Joana encontra-se aí “triplamente iluminada – pelo sol da tarde,
pelas chamas das velas, pelo meu êxtase” (p. 77), diz o testemunho do marido da

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santa osmaniana, Jerônimo José. Esta personagem vê a futura esposa, nesta cena,
como uma santa. Pois, ainda adolescente, já carregava em si uma luz estranha e a
marca do sofrimento que tomaria dos que a acompanham em seu percurso.
A palavra “êxtase”, utilizada por Jerônimo para descrever sua sensação ao
ver Joana Carolina, é utilizada na mística cristã para tratar de uma experiência divina.
Do ponto de vista cristão, significa o contato espiritual com a “verdadeira verdade”. O
êxtase leva a alma a um estado independente do corpo, em que os olhos do espírito
são os que veem. Nesta passagem, os pensamentos mundanos desaparecem, dando
lugar à contemplação sublime.
Enquanto Jerônimo passa pelo êxtase que lhe proporciona comungar da
visão maravilhosa que experimenta, não deixa de testemunhar aquilo que seus olhos
presenciam, a luz “tripla” que emoldura a personagem, antes que comecem o
sofrimento e as depredações que vivencia em seu martírio.
Com o quarto mistério, temos o início da vida matrimonial de Joana, não por
acaso impulsionada pelo elemento da Natureza que Osman denomina o “Atiçador de
incêndios”: “O ar”. O testemunho é de seu filho, Álvaro, que relata a vivência com o
pai; as privações por que passa a família; a bexiga que ataca de uma vez só todos os
filhos e a pobreza: “Faz uma semana que (Joana) não dorme, velando noite e dia à
nossa cabeceira e sem ter onde pedir socorro” (p. 79).
A educação dos filhos é feita junto à dos animais da casa, através da
observação do pai em sua relação com a Natureza: “Nosso pai gostava de animais.
Ensinou um galo-de-campina a montar no dorso de uma cabra chamada Gedáblia,
esporeando-a com silvos breves” (p. 78)
Eis a delicada apresentação dos ensinamentos de Jerônimo, que fornece a
imagem sensível de um galo de campina aprendendo a montar, utilizando para
esporear, a cabra Gedáblia, seus “silvos breves”.
O personagem humaniza os animais, dando nome próprio à cabra e
consciência do poder de seu canto ao pássaro. Esta relação mostra ainda que na
Natureza os animais estão propensos à educação tanto quanto o homem; a cabra,
mesmo sendo de maior porte, é guiada pelo pássaro sem nenhuma estranheza. Álvaro
então conclui seu aprendizado: “Eu e Nô apanharemos essa inclinação e, de certo
modo, por causa disto é que, daqui a anos, quando nossa mãe, ele já morto, estiver
penando no Engenho Serra Grande, partiremos no mundo [...] Depois a tiraremos do
engenho, de volta para a cidade” (p. 78).

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É no quinto mistério que será iniciada a diáspora de Álvaro e Nô, com a
aparição da “água”, enquanto elemento natural, certamente conformada ao mito da
“queda”, na Gênese bíblica, depois da qual vem o grande dilúvio. O homem do paraíso
cristão convivia com os animais e a Natureza sem necessidade de submetê-los às
suas forças. Depois da “queda”, vê o Senhor que a corrupção do gênero humano era
generalizada, decidindo-se por mandar à Terra um dilúvio que destruísse o homem, na
intenção de acabar com o mal, tomando a água como fonte de purificação.
A cena que atualiza esse episódio bíblico é a da expulsão dos filhos de Joana
do Engenho, por serem encontrados pelo dono do laranjal roubando seus frutos para
saciarem a fome: “O senhor do engenho nos surpreenderá dentro do seu pomar. Nos
pássaros implumes em nossas mãos verá laranjas, irá queixa-se irado à nossa mãe.
Então ela nos mandará embora, procuraremos emprego e um dia viremos buscá-la,
orgulhosos de nós”. (p. 79). O movimento é o mesmo, tal como o Senhor expulsa do
paraíso Adão e Eva, por comerem do fruto proibido, Álvaro e Nô também são postos
para fora da propriedade, na qual a mãe trabalha, repetindo a “queda”.
O testemunho do quinto mistério é o da mãe de Joana, Totônia. Esta, narra
como conheceu Jerônimo José e sua impressão inicial sobre aquele homem que
parecia destinado à morte precoce. Em seu testemunho aparece uma interrupção
intrigante. Uma espécie de “confessor”, possivelmente com alto poder, questiona suas
atitudes: “Mas por que pões, Totônia, em origens tão vagas, as deficiências de teus
filhos?”, como se julgasse o discurso da personagem prontamente ao tomar-lhe o
testemunho: “Por que hão de nascer numa tendência de carne, sobre a qual no fim de
contas ninguém tem governo, e não no teu modo habitual de agir, na tua falta de
pulso, aqueles erros tão graves?” (p. 81-2).
Era comum a figura do confessor por trás dos relatos para as causas dos
santos. Os religiosos procuravam se inteirar completamente dessa experiência
mística, controlá-la, investigando, no caso das santas, suas mais íntimas sensações,
cobrando-lhes seus relatos, primeiramente orais e, em seguida, escritos. Estes
documentos serviam depois de exemplo às demais religiosas que levavam uma vida
ascética.
O modelo de santidade criado por Osman Lins não sugere uma relação do
tipo religiosa tradicional, como a dos santos católicos. A sua narrativa se dá em um
momento histórico sedento de exemplos de virtudes universais e em um espaço
fortemente marcado pelas relações sociais capitalistas. Dessa maneira, interessa-nos

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as características específicas da legenda desta santa nordestina, suas semelhanças e
analogias em relação a hagiografias da tradição cristã.
No modelo osmaniano podemos destacar o aspecto misterioso que assume a
Natureza – em uma época na qual se encontra destituída da sua função divina –, em
meio ao homem que passa a ser denominado de ser social, construído por seu próprio
trabalho, independente da providência dos deuses celestes para plantar ou colher
seus frutos, que agora se tornam mercadorias. A “passagem” do homem natural ao ser
social, no Retábulo, começa com o sexto mistério.
Neste mistério, o testemunho é do herdeiro do Engenho Serra Grande, que se
identifica com o próprio diabo em sua descrição: “Barba pontuda, abas do chapéu
levantadas de um lado e de outro da cabeça a modo de chifres. Aterrador, um mau”.
(p.85). Diante dessa alegoria, o discurso logo aponta para o rastro de destruição
deixado pelo humano, que já não depende da Natureza, mas que a submete por
“majestade”, tanto quanto aos seus semelhantes, dominando todas as relações
sociais, através do poder de manipulação das riquezas materiais.
O que desperta o interesse do personagem em Joana é algo que falta a si
mesmo – as virtudes morais –, por isso será o perseguidor sexual de Joana; mesmo
passados setes anos de sofrimentos e perdas, diz que “vinha, de dentro dela, uma
serenidade como a que descobrimos nas imagens de santo, as mais grosseiras” (p.
86).
Sabe-se que os modelos de santidade não são estanques, vêm mudando
desde o começo da Idade Média, se aproximando dos homens e de seus conflitos
pessoais e sociais, deixando de ser “distantes”, para se aproximarem cada vez mais
do homem moderno. Já no século XII, aparece o modelo de santo “próximo”, que
permite a identificação com o burguês, que então se constitui enquanto classe
socioeconômica. O santo começa a levar uma vida bem similar à do resto da
cristandade, pode trabalhar como mercador, casar-se, ser frade mendicante etc., ou
seja, encaixa-se em um modelo mais suscetível de ser imitado pela sociedade.
(FORTES, 2008, p. 82)
De acordo com Vauchez, antes do séc. XII, os santos pareciam
misteriosamente predestinados para a santidade, concentrando-se em manifestar sua
eleição para com Deus. Porém, houve uma mudança nas décadas seguintes, onde os
hagiógrafos tentavam demonstrar que o poder dos santos estava subordinado a uma
existência ascética e à prática da caridade, não dependia apenas do “dom” dado por
Deus, era possível também através da “busca”. Mais tarde, os hagiógrafos começaram

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a ser instruídos para “certificar” a vida santa, de acordo com as normas de
discernimento exigidas pelo papado, ou seja, com as devidas investigações, por causa
da grande demanda.
Entretanto, a troca do “dom” pela “busca” assemelha-se à operada entre a Fé
e a Ciência, uma vez que ambos os paradigmas partem do plano místico para o
racional. O homem já não procura as razões no mito, mas em sua própria capacidade,
através do trabalho, de repetir sempre a cosmogonia correspondente à transformação
do Caos em Cosmos, com a ordenação do material disperso no Universo.
O humano se põe através do trabalho e, afastando-se da Natureza, constrói
sua casa, a praça, o templo, as ferramentas de trabalho e as próprias armas; aprende
as maneiras de utilizar os componentes da Natureza em bens de consumo, unindo
elementos aparentemente “rebeldes”, dando-lhes uma ordem, tal como a estabelecida
na criação do Cosmos.
Encontramos essa relação do homem com a criação, por meio da matéria-
prima de objetos que sirvam às suas necessidades, no sétimo mistério.
O homem constrói seu mundo por meio do trabalho, estabelecendo relações
com a sociedade e com os objetos de que necessita para sobreviver. Embora tenha
este poder, os materiais já não estão dispostos na Natureza à sua disposição.
Portanto, como testemunha Laura, filha de Joana, a falta ainda norteia a vida de
muitos, a necessidade absoluta, a privação material: “Tudo era pela metade. Meia
laranja, meio pão, meia banana, meio copo de leite, meio ovo, um sapato no pé e
outro guardado” (p. 89)
O relato desta personagem constrói a fragilidade do “eu” individual de Joana
e, ao mesmo tempo, convoca-lhe as virtudes para vivificar seu “eu” geral. Explica o
teórico Juan Arana (s/d. p. 76), “que há uma dialética que une o “eu” eterno ao “eu”
temporal, em que este fundamenta e aquele justifica”.
A santidade de Joana constrói-se a partir dos diversos testemunhos a favor
de sua Canonização. O hagiógrafo torna a personagem o “centro” para o qual
convergem as várias vozes responsáveis pela reconstrução de sua imagem depois da
morte. Assim, a composição de seu “eu” geral caridoso e desprendido materialmente
tem um propósito explícito: circunscrever sua santidade no momento histórico atual,
pois a hagiografia não mantém correspondência com o “eu” particular, fictício, artificial
e passageiro do santo. Uma vez que o “eu” público é que se eterniza, ganha a
imortalidade, faz parte do mistério do mundo e está nas cifras secretas, nos símbolos,
inacessível à razão humana, à simples compreensão.

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O “eu” geral é quem servirá de exemplo à população. Este “eu”, no caso da
santa osmaniana, recebe desde o início de sua existência os dons de Deus, não é
construído por uma vivência ascética, a personagem não busca a santidade, como
tantas vezes ocorre no processo de santificação; seu desafio está no exercício de
suas virtudes em meio à sociedade capitalista vigente.

1.2 Epifanias

Aqui começam as iluminações da personagem; seus momentos de maior


comunhão com o divino. Quando, a partir de suas simples ações, o sagrado se
manifesta. É no mistério oitavo também que aparece o Modo de Produção.
Aqui é desnudada a relação que mantêm os senhores de Engenho com seus
empregados, sobretudo a troca de favores sexuais por bens de consumo. Nele são
apresentados os elementos necessários tanto ao cultivo da terra, os instrumentos
utilizados para esse serviço, até os trabalhadores que o executam e os patrões que
regem toda a relação de mando nos Engenhos de cana-de-açúcar.
Neste mistério, temos uma situação nebulosa, uma dúvida sustentada até o
fim da narrativa quanto à troca feita entre o herdeiro do Engenho e Joana, na capela,
quando foi estabelecido o preço que pagaria Joana para que lhe fosse emprestado o
carro de bois: “As palavras do homem, o preço sem medida. Como podia ter coragem
de fazer tão brutal exigência na frente dos santos? De Joana, aguardei os protestos,
os gritos de cólera” (p. 96-7).
O testemunho é novamente da ama, negra que esteve durante toda a vida de
Totônia, cuidando dos seus filhos. Com a morte desta, a família precisa de um carro
de bois para levá-la até a casa onde nasceu, pois falece em visita a Joana, no
Engenho Serra Grande. Este favor será cobrado pelo herdeiro do Engenho da maneira
que costumavam esses poderosos, donos de terras, negociarem os favores que
prestavam. A negra mostra-se indignada ao ouvir do homem a torpe proposta dirigida
a Joana com a naturalidade de quem cobra um serviço ao empregado: “Pensar que
quase lhe beijei as unhas, sem saber que ele trazia no gibão as bestas da maldade,
com seus cascos ferrados, seus chifres pontudos!” (p. 95).
Não se sabe ao certo se foi ou não paga por Joana a dívida. Entretanto, o
carro de bois levou o corpo de sua mãe com todos os apetrechos próprios a um
enterro. Assim, a resposta implícita é que Joana cedeu aos desejos do homem que lhe
assediou o corpo durante grande parte da vida, para que sua mãe pudesse descansar

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onde queria. Com esta cena não podemos afirmar se houve ou não epifania, como se
o dom da iluminação divina ainda não estivesse aqui completamente desenvolvido.
Entretanto, no começo da hagiografia temos a criação da primeira
cosmogonia, a transformação do Caos em Cosmos, que corresponde ao nascimento
de Joana, já predestinada a uma vida santa. E agora, no nono mistério, vemos o
mundo sendo criado pela segunda vez, quando se faz linguagem, através da palavra,
que tem o poder de dar vida ao nomear uma coisa, ordenando novamente o material
disperso no Caos.
Eis que neste mistério encontramos seguramente uma manifestação epifânica
da personagem, termo entendido aqui como uma súbita sensação de iluminação de
natureza divina, quase sobrenatural. Esse momento de “claridade” ocorre pelo menos
duas vezes no conto, correspondente às cenas em que cerra o banco onde a criança
dorme e quando convence o grande Senhor de Engenho a não matar os noivos
fugitivos, fazendo a população acreditar-lhe santa.
Aos santos é dado, geralmente, o “dom” das experiências epifânicas. O
testemunho neste mistério é o dos noivos, Miguel e Cristina, que buscam em fuga a
proteção de Joana. É quando acontece seu primeiro milagre, a intervenção junto ao
Senhor de Engenho, pai da noiva fugitiva, pela qual intercede. A querela se dá por
causa da propriedade privada; o que está em jogo são os bens que serão perdidos se
Cristina casar-se com um homem sem posses. Neste ponto, a intervenção de Joana é
social, política até, posto que modifica a situação dos noivos, através de seu discurso,
trazendo à superfície os bons sentimentos do proprietário, fazendo com que se
sobressaiam ao valor dado ao dinheiro na sociedade atual.
Tanto consegue desenlaçar favoravelmente esta questão, que o grande
Antônio Dias, viúvo, dono de três Engenhos, lhe manda, através de vários portadores,
um pedido formal de casamento, sem nem mesmo a conhecer, e sim por ter se
impressionado grandemente com suas virtudes, de certa forma, extintas nesta
sociedade atual. Eis o que Joana responde: “[...] Na verdade, havendo-me consagrado
ao meu esposo pela vida inteira, a ele permaneço fiel. Assim, muito me honra a sua
proposta, amável e generosa. Ela significa, se eu a aceitasse, amparo e estabilidade
para o resto dos meus dias. Mas, então, o que seria de minha alma?” (p. 105).
Essa preocupação moral no discurso que empreende testifica sua forte
ligação doutrinal com o cristianismo, que se utiliza deste preceito como regra
norteadora da conduta cristã recomendável. A sta. Joana abdica sempre dos
benefícios que o dinheiro pode lhe trazer, mesmo que a estes se associe uma causa

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honesta, como o pedido de casamento que ora recebe, resultado de sua intervenção
desinteressada.
Este mistério mostra o poder das palavras de Joana que chegam aos ouvidos
do Senhor de Engenho: “Os que haviam sido nossos perseguidores, eram agora
amigos, nossos guardiões, e repetiam entre si, com um espanto que a madrugada
engrandecia, as palavras de Joana” (p. 104). Há, nesta cena do Retábulo, a
substituição da “presença” pela “palavra”, tal como a expressão metonímica da
linguagem, segundo Frye (2004, p. 30), quanto as palavras “‘estão no lugar’ de
pensamentos, e são a expressão exterior de uma realidade interior. [...] Pensamentos
indicam a existência de uma ordem transcendental que se situa ‘acima’; apenas o
pensamento pode se comunicar com essa ordem e apenas as palavras conseguem
expressá-la”.
No décimo mistério ocorre a segunda epifania da personagem. O testemunho,
dessa vez, é polifônico. A comunidade se une para comentar se fora realmente um
milagre o fato de Joana ter cerrado as pernas do banco e salvado o menino Jonas. As
informações são controversas, mas logo se ajustam com o “confessor”, que aparece
desde o quinto mistério, responsável por organizar a versão Oficial do discurso
produzido sobre Joana, com parênteses explicativos que simulam a verdade pela
precisão dos detalhes: “(Foram quatro tiros, distando mais ou menos um palmo entre
si, exatamente na altura em que estaria o menino, se não fosse a interferência de
Joana.)” (p. 109)
É já próximo à morte que Joana tem essa iluminação. O elemento natural
“terra” aparece para compor o ciclo de vida da personagem.
Neste momento da narrativa, Joana está prestes a se despedir do mundo, o
elemento “terra” anuncia seu retorno ao seio materno, ao ventre da mãe que lhe
fornece o arsenal de despedida do mundo físico. De acordo com o teórico das
religiões, Mircea Eliade (2008, p. 100), não se deve desprezar que para “o homem
religioso, o ‘sobrenatural’ está indissoluvelmente ligado ao ‘natural’; a Natureza
sempre exprime algo que a transcende”.
Na passagem deste elemento para o último dos elementos, o “fogo”,
encontramos Joana no “final de seu inverno”, pronta para se despedir da vida, ritual
que pode ser encarado como uma iniciação “ao êxtase místico, ao conhecimento
absoluto, à fé (no judaísmo-cristianismo), que equivale a uma passagem de um modo
de ser a outro e opera uma verdadeira mutação ontológica. (ELIADE, 2008, p. 148)

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Este mistério simboliza o elemento responsável pela “fundação do mundo”; é
precisamente neste momento que Osman erige para sua personagem um altar de fogo
– a única maneira de validar a posse de um território – que equivale a uma
cosmogonia. (idem, p. 34, grifos nossos). A ereção de um altar para a Santa Joana
Carolina significa uma consagração, ou melhor, uma cosmização do espaço que
ocupará a partir de então.
O testemunho desta consagração, como deve ser, é uma autoridade
eclesiástica, um Padre, que confessa Joana Carolina no leito de morte, momento em
que a personagem procura encontrar suas faltas, para ter então de que se desculpar
com o religioso: “Também devo ter feito injustiças. Devo ter feito. Já não me lembro
quase nada. Nem do mal que fiz, nem do que sofri. Tudo agora é quase de uma cor”.
(p. 111)
E ainda, como é próprio a tais cerimônias cristãs, o discurso tradicional de
comiseração e perdão termina em latim: “Dentro de mim, enquanto me afastava de
cabeça alta, Joana era uma chama. Populus, qui ambulabat in tenebris, vidit lucem
magmam” (p. 113).

1.3 Queda

No último mistério, que começa com o símbolo do infinito, já não há


demarcação entre ornamento e narração, tudo se funde no ritual de retorno à terra,
empreendido por Joana Carolina, que toma parte junto ao Universo.
O ciclo crístico vivido pela personagem Joana – exposta a julgamentos
constantes, provas e castigos advindos, do ponto de vista cristão, do “pecado original”
– trilha em direção à reconquista da dimensão sagrada do homem, a reconciliação
com Deus, após a desobediência e “queda” do paraíso; a repetição do martírio através
do ritual dessa personagem provoca a manifestação do sagrado.
Essa atualização do ciclo crístico depende de um processo de reorientação
mental que parte do mito em direção ao logos, pois o homem busca uma resposta
para aqueles “fenômenos múltiplos e constantes que parecem ter uma existência
autônoma, independente da existência humana”, como explica André Jolles (1930, p.
110).
A especulação sobre “uma verdade” da origem dos fenômenos múltiplos,
ligados à ação dos elementos naturais (ar, água, terra e fogo) – componentes
essenciais da criação do Cosmos, que fazem parte da construção das hierofanias

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presentes nos mistérios do Retábulo –, já é responsável por uma outra “fundação do
mundo”, com explicações científicas e não mais místicas.
Na reconstrução de toda uma trajetória cristológica percebemos a nostalgia
da perda de algo que o homem jamais voltará a ter, ou seja, o “outro” que lhe falta.
Dessa maneira, sendo o hagiógrafo uma espécie de “historiador místico”, está sob sua
responsabilidade refazer o caminho trilhado por este “outro” que, do ponto de vista
católico, é Cristo, na intenção de representar a grande ausência cristã.

[...] o historiador “acalma” os mortos e luta contra a violência ao


produzir uma razão das coisas (uma explicação) que supera sua
desordem e certifica permanências; o místico luta ao fundar a
existência sobre a relação mesma com aquele que lhe escapa. O
primeiro se interessa na diferença como instrumento de distinção em
seu material; o segundo como uma ruptura que estabelece a questão
1
do sujeito. (CERTEAU, 1993, p. 21)

A criação do mundo se dá através de uma rotura entre duas dimensões, o


Céu e a Terra, de onde surge a primeira hierofania cósmica. Esta hierofania marca
profundamente os discursos místicos, que tratam da ruptura entre um Ser maior e o
homem, “caído” na terra, entregue à sua própria sorte. O homem religioso do Ocidente
alimenta essa falta mística por toda a vida, na busca por uma unidade que acredita ter
perdido com a “queda” bíblica.
Tal mística está fundada em um começo que deve ocorrer sempre no
presente, que precisa ser constantemente atualizado, para fundar um campo de
manifestação específico, um espaço sagrado, de onde surge um conjunto de
mensagens ou de mistérios que marcam sua identificação com a dimensão religiosa
humana. Explica Michel de Certeau (1993, p. 25), que “a reinterpretação da tradição
tem como característica um conjunto de processos que permitem tratar de outra
maneira a linguagem; maneiras de atuar que vão organizando a invenção de um corpo
místico” (grifos nossos).
Dessa maneira, procuramos mostrar o caminho da construção do “Eu” geral
da Santa osmaniana, expressando a participação da Natureza no seu processo de
Canonização Literária, através dos mistérios e das alegorias que escondem atrás de si
toda uma formulação mística que não volta atrás no tempo para comungar de crenças
pagãs, nem tampouco se deixa guiar pelo Cristianismo como portador de uma verdade
absoluta, mas avança por trilhos que levarão a um novo pacto para a verdadeira
Humanização do homem.

1
As citações do teórico Michel de Certeau são por nós traduzidas do espanhol.

947
Referências bibliográficas

AUERBACH, Erich. Mimesis. Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, s.d.

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