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O QUE CONTAMINA É MAIS RELEMBRADO?

PAPEL DA LÍNGUA E DA MEMÓRIA ADAPTATIVA


ISCTE - INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE LISBOA
Ana Machado, Beatriz Mota, Carolina Soares, Inês Infante, Joana Pereira

INTRODUÇÃO
Quando somos confrontados com potenciais fontes de infeções ou de doenças Uma vez que, estudos comprovaram que as pessoas avaliam de forma menos positiva e tendem a ter menos vontade de

transmissíveis, naturalmente há motivação para reduzir o contacto com esses agentes, e é interagir com objetos que estiveram em contacto com entidades contaminadas ou “sujas” (Fernandes et al., 2017) e que há

através do “Sistema imunitário comportamental”, conceptualizado como sistema de maior recordação de objetos (e fontes) contaminados do que de objetos não contaminados (Bonin et al., 2019), espera-se

evitação de possíveis fontes de infeção, que o fazemos (Shakhar, 2019). Neste estudo, que, ao estar explícito que o objeto foi tocado por uma pessoa doente, haja maior ativação do “Sistema imunitário

pretende-se analisar o papel da língua (materna - L1 - e secundária - L2) e da memória comportamental” e que isso represente uma vantagem mnésica (hipótese 1). Espera-se, ainda, que este efeito doente vs.

adaptativa na recordação de objetos contaminados, bem como o nível de ativação e saudável só esteja presente em L1 e seja extinto ou atenuado em L2 (hipótese 2), isto porque, como a literatura demonstra,

há diferenças entre os processos cognitivos envolvidos em L1 e em L2 e maior ativação emocional associada a L1 (Saraiva et
outros descritores como medo e nojo.
al., 2021), o que sugere que a emocionalidade pode desempenhar um papel em contextos de sobrevivência (e.g., de

contaminação).

METODOLOGIA
Critérios: Participantes >18 anos, língua materna o português europeu e bom domínio da língua inglesa.
Instrumentos: A elaboração deste estudo foi baseada no estudo de Fernandes et al (2017). Foram utilizados diferentes materiais: estudo online,

pré-teste de inglês, estímulo: 24 imagens de objetos comuns (e.g., maçã) e 12 descritores (6 associados a pessoas saudáveis + 6 associados a

pessoas doentes) (Fernandes et. al, 2019). Amostra


Design: design de 2x2 misto, em que as condições são (saúde: saudável vs doente - manipulado within-subjects) e (língua: L1 x L2 -
175 participantes - Idade: 18 anos aos 69 anos (M=25,48; DP=11,25)

manipulado between-subjects). Estudo experimental - manipulação: apresentação de objetos com descrição saudável vs. doente.
Teste de inglês: 175 participantes - Pontuação: 0-25 (M=20,84; DP=2,60)

Procedimento: 1) Consentimento informado - dados confidenciais e anónimos. 2) Teste de inglês: 25 questões de escolha múltipla (se obtêm


Amostra L1: 101 participantes, 57,7%

16 pontos participam no estudo e são encaminhados para condição L1 ou L2, aleatoriamente; se <16 pontos não podem participar, realizando Amostra L2: 74 participantes, 42,3%

outro estudo). 3) Tarefa de classificação: recordar objetos tocados (por pessoas doentes vs. por pessoas saudáveis); imagens são
109 participantes: 62,3% 64 participantes: 36,6%
apresentadas com breve descrição com pistas sobre quem lhes tocou - decidir se foi pessoa doente ou saudável e recordar (1

imagem+descritor por 5’ - 8 blocos de 3 objetos); quando avaliar se foi tocado por pessoa saudável ou doente já não aparece a descrição;

novo conjunto é apresentado. 4) Tarefa distratora: indicar se o número apresentado é par ou ímpar por 2’. 5) Tarefa de evocação: recordar o

máximo de objetos sobre os quais tomou decisões na primeira parte, por 5’'. 6) Avaliação de 12 descritores em 5 dimensões, aleatoriamente e

sem limite de tempo (arousal, valência, nojo, medo e contaminação - escolher a opção de resposta). 7) Controlo da qualidade de dados:

certificação de veracidade - verificar se os participantes estiveram atentos e se responderam com honestidade

RESULTADOS
Quanto à hipótese 1: efeito significativo da condição doente/saudável - quando o objeto era tocado Valência: Efeito principal significativo da condição doente/saudável (F(1;173)=308,998; p<0,001; Eta squared:

por uma pessoa doente, houve maior ativação do “Sistema imunitário comportamental” (F(1,173)= 0,641). Média de avaliações superior para uma pessoa saudável (M= 5,86; DP= 0,095) do que para uma pessoa

36,435; p <0,01); Eta Squared= 0,174) - efeito esperado e já demonstrado pela literatura. Houve maior doente (M=3,60; DP= 0,094), o que é expectável e correspondente à literatura, pois Valência é um descritor mais

recordação na condição doente (M= 0,486; DP= 0,014) do que na saudável (M= 0,381; DP= 0,013), o que positivo e frequente em situações positivas.

comprova a vantagem mnésica esperada para esta condição.

Quanto à hipótese 2: não há efeito de interação significativo, o que não confirma a hipótese de que o Nojo: Efeito principal significativo da condição doente/saudável (F(1;173) = 177,234; p<0,001; Eta squared: 0,506).

efeito apareceria em L1 e seria atenuado em L2. Ao contrário do esperado, verificou-se um efeito Maior média de avaliações para uma pessoa doente (M= 2,88; DP= 0,130) do que para uma pessoa saudável (M=

principal significativo de língua (F(1,173)= 7,571; sig = 0,007; Eta Squared= 0,042), que demonstra maior 1,29; DP= 0,058), o que era esperado → maior repugnância face às pessoas doentes.

recordação em L1 (M= 0,462; DP= 0,014) do que em L2 (M= 0,405; DP=0,016).

Medo: Efeito principal significativo da condição doente/saudável (F(1;173) = 139,211; p<0,001; Eta squared = 0,446).
Média de avaliações superior na condição de pessoa doente (M= 2,95; DP= 0,145) do que de pessoa saudável (M=

1,30; DP= 0,057), o que era esperado.

Potencial Contaminação: Efeito principal significativo da condição doente/saudável (F(1;173) = 511,044; p<0,001;

Eta squared: 0,747) (maior efeito principal encontrado). Efeito principal de língua significativo (F(1;173) = 14,643;

p<0,001; Eta squared: 0,078).

- A média de avaliações é superior na condição de pessoa doente (M= 4,87; DP= 0,134) do que na de pessoa

saudável (M= 1,40; DP= 0,073).

- Relativamente à língua, a média é superior em L2 (M= 3,42; DP= 0,115), em comparação com L1 (M= 2,84; DP=

0,098).

- Efeito de interação língua*condição doente/saudável não é significativo (Hipótese 2) → L1 e L2 não têm valores

estatisticamente diferentes na língua. No entanto, isto não vai ao encontro do esperado, uma vez que seria
Quanto aos descritores (Arousal, Valência, Nojo, Medo, Potencial Contaminação):
esperado haver valores mais elevados para L1 do que para L2, pois em L1 há um menor afastamento e maior
Arousal: Efeito principal de língua significativo (F(1;173)= 10,673; p< 0,001; Eta squared= 0,058 e efeito
impacto do que em L2, e isto não se confirmou nos resultados.
de interação condição doente/saudável * língua significativo (F(1;173)= 5,389; sig = 0,021; Eta squared
- Efeito de interação do potencial contaminação com os descritores "nojo" e "medo", de pessoas doentes,
= 0,030). Média de avaliações superior para uma pessoa doente (M= 3,72; DP= 0,151) do que para uma
independentemente da língua, é significativo: t(173)= -13,179; sig<0,001; t(173)= -14,834; sig<0,001, o que vai ao
pessoa saudável (M= 2,24; DP= 0,105). Verificou-se, ainda, maiores níveis de arousal em L2 nas duas
encontro do esperado, uma vez que o potencial contaminação tem uma relação com os descritores “medo” e
condições doente (M=3,910; DP= 0,229) e saudável (M= 2,759; DP= 0,160) do que em L1, sendo diferente
“nojo”, existindo, assim, efeito significativo.
do esperado, uma vez que não é na língua materna. Ainda assim, a diferença nas médias de doente
Com exceção do Arousal e do Potencial Contaminação, os restantes descritores não evidenciaram um efeito
(M=3,524; DP= 196) e saudável (M=1,717; DP= 0,137) é maior em L1.
principal de língua.

DISCUSSÃO
Este estudo tem como objetivo demonstrar o papel da língua (L1 e L2) e da memória O ideal teria sido uma percentagem igualitária de respostas para L1 e para L2. O facto de os participantes terem realizado a

adaptativa na recordação de objetos considerados contaminados, bem como explorar a avaliação à condição doente vs. saudável apenas no final de observarem todas as imagens pode ser também uma limitação,

influência de descritores como medo e nojo na avaliação de doente vs. saudável. Verificou-se uma vez que, se fosse pedido no momento imediato da avaliação das imagens, poderia captar mais facilmente a ativação

um replicar do efeito de doente vs. saudável, mas este foi igual em L1 e L2, o que não era que o participante sentiu no momento ao observá-las e maior responsividade emocional.

esperado. Objetos que parecem ser fonte de infeção e doença desencadearam maiores
Para além disso, para realização de estudos futuros poderia ser relevante considerar a avaliação das condições ao longo

de cada imagem e não apenas no final, como já foi referido como limitação. Também pode ser necessário aprofundar a
respostas de evitamento e maior ativação do "Sistema imunitário comportamental",
investigação nos descritores de Arousal e Nojo e a sua associação com a vantagem mnésica, pois embora não sejam o foco
registando-se maior retenção mnésica destes objetos. Quando os objetos são descritos como
principal do estudo, são uma área muito importante e não tanto investigada (Fernandes et al., 2021). Seria interessante
tendo sido tocados por pessoas doentes verifica-se maior arousal, menos valência, maior
pensar até que ponto todo o contexto pandémico teve ou não influência nos resultados, já que há certamente maior
nojo, mais medo, e maior potencial de contaminação. Ao contrário do que era esperado, a
sensibilidade face à contaminação e a estímulos potencialmente infetados. Isto porque, estudos como o de Makhanova &
hipótese 2 de efeito significativo na recordação de objetos não se confirmou, pois não há
Shepherd (2020), mostram que, quando deparados com uma ameaça de Covid-19, intensifica-se a motivação para reduzir o
diferenças significativas entre L1 e L2.
contacto com esses agentes patogénicos, promovendo os comportamentos de evitamento e distanciamento. No presente
Como limitações, pode-se apontar a existência de um desequilíbrio do número de
estudo, face a descrições de objetos como por exemplo "pessoa com tosse", os participantes podem ter relembrado a tosse
participantes entre a condição de L1 e L2, verificando-se um número muito superior em L1, o
como sintoma de Covid-19 e ter causado maior reação de arousal, nojo, medo, nestes objetos.
que dificulta a análise do objetivo de verificar a possibilidade de um distanciamento

emocional e afetivo na L2.

REFERÊNCIAS
Argo, J. J., Dahl, D. W., & Morales, A. C. (2006). Consumer contamination: How consumers react to products touched by others. Journal of marketing, 70(2), 81-94.

Bonin, P., Thiebaut, G., Witt, A., & Méot, A. (2019). Contamination is “good” for your memory! Further evidence for the adaptive view of memory. Evolutionary Psychological Science, 5(3), 3000-316.

Fernandes N. L., Pandeirada, J. N. S., & Nairne J. S. (2019). Presenting new stimuli to study emotion: Development and validation of the Objects-on-Hands Picture Database. PLoS ONE 14(7): e0219615.

Fernandes, N. L., Pandeirada, J. N. S., & Nairne, J. S. (2021). The Mnemonic Tuning for Contamination: A Replication and Extension Study Using More Ecologically Valid Stimuli. Evolutionary Psychology, 19(1).

Fernandes, N. L., Pandeirada, J. N., Soares, S. C., & Nairne, J. S. (2017). Adaptive memory: The mnemonic value of contamination. Evolution and Human Behavior, 38(4), 451-460.

Makhanova, A., & Shepherd, M. A. (2020). Behavioral immune system linked to responses to the threat of COVID-19. Personality and Individual Differences, 167, 110221.

Saraiva, M., Garrido, M., & Pandeirada, J. (2020). Surviving in a second language: survival processing effect in memory of bilinguals. Cognition and Emotion.

Perceção de Pessoas e Relações Interpessoais, Lisboa, 2021

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