N.

06
“À guerra, cavaleiros esforçados!
VOL.XXX Pois os anjos sagrados em
NOVEMBRO DE 2023 socorro estão em terra. À guerra!”
– Gil Vicente

SOLIDARIEDADE
IBERO-AMERICANA
MSIA – MOVIMENTO DE SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA

O presidente John F.
Kennedy, minutos antes
do seu assassinato, em
Dallas, Texas (Bettman/
CORBIS Creative

JFK,
Commons License)

Palestina:
dois Estados
e a mudança
de época
Não há outra solução
para o imbróglio

60 anos:
israelense-palestino
que não passe pela
criação de dois

início e fim
Estados. // P.4

Paraguai em

de uma era
alerta contra
maquinações
ambientalistas
O país vizinho se
O assassinato do presidente John F. Kennedy, em 22 mostra bastante
de novembro de 1963, marcou um ponto de inflexão na consciente das
influência positiva dos EUA no pós-guerra. Seis décadas tramoias do aparato
depois, é evidente o declínio da estrutura de poder “verde-indígena”.
paralelo que o vitimou. // EDITORIAL – P.2 // P.14
2 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023

E D I T O R I A L

JFK, 60 anos: início

e fim de uma era
Em 22 de novembro, completaram-se 60 anos do assassinato do
presidente estadunidense John Fitzgerald Kennedy (1961-1963),
ocorrido durante uma carreata em Dallas, Texas. O magnicídio,
sobre o qual já se escreveram literalmente centenas de milhares de
livros e artigos jornalísticos e investigativos, além de ter sido obje-
to de centenas de filmes e documentários, foi um dos acontecimen-
tos pivotais do século XX, não apenas nos EUA, mas para todo o
mundo. Com ele, foi enterrada a última possibilidade de os EUA
exercerem um papel construtivo no mundo, encerrando a Guerra
Fria com quase três décadas de antecipação e empenhando-se na
Publicado pelo
MSIA – Movimento
cooperação para o desenvolvimento compartilhado, em vez de con-
de Solidariedade solidar a força militar como instrumento favorecido nas relações
Ibero-americana internacionais. E seu assassinato assinalou um ponto de inflexão na
confiança da sociedade estadunidense em seu governo e suas insti-
Edição em português
tuições, impulso que teve sequência com os assassinatos de seu irmão
DIRETORA:
Robert Kennedy e do líder de direitos civis Martin Luther King, em
Silvia Palacios
1968, além do envolvimento na Guerra do Vietnã (1964-1975).
CONSELHO EDITORIAL:
Apesar das controvérsias que cercam os três assassinatos, atri-
Angel Palacios Zea
Geraldo Luís Lino buídos a bodes expiatórios de ocasião, há evidências mais que su-
Lorenzo Carrasco ficientes para colocá-los na conta da estrutura de governo paralelo
PROJETO GRÁFICO que se consolidou nos EUA após a II Guerra Mundial, agregada em
E DIAGRAMAÇÃO:
torno do promíscuo conúbio entre setores do aparato de inteligência
Maurício Santos centrado na CIA (Agência Central de Inteligência), interesses fi-
nanceiros e empresariais de Wall Street e o complexo industrial-
-militar denunciado pelo presidente Dwight Eisenhower (1953-
1961), com ramificações na Organização do Tratado do Atlântico
Rua México, 31 s.202 Norte (OTAN). Estrutura que tem recebido nomes como o “Estado
CEP 20.031-144 – de Segurança Nacional”, “governo mundial”, “governo secreto”,
Rio de Janeiro-RJ “governo paralelo”, “Estado Profundo (Deep State)” e outros, e cujos
+ (21) 2510-3656 interesses vitais se viam ameaçados pelas ações políticas dos irmãos
www.msiainforma.org Kennedy e os profundos efeitos da conscientização cívica promo-
/msiainforma
vida pelo movimento do reverendo King.
/MSIa_br
No caso de JFK, ainda hoje, cerca de dois terços da população
adulta estadunidense acreditam que ele foi vítima de uma conspi-
ração envolvendo elementos do governo.
ASSINATURA ANUAL: Após o trágico episódio de Dallas, o vasto e crucial impulso
R$ 250,00
positivo proporcionado pelos EUA na reconstrução do pós-guerra,
Pedidos pelo e-mail inclusive, com iniciativas de avanços científico-tecnológicos como
capaxdeieditora@gmail.com
os Átomos para a Paz, o Ano Geofísico Internacional e o programa
espacial, para o qual JFK deu uma contribuição decisiva, foi redi-
recionado para a agenda da perpetuação da Guerra Fria e, crescen-
temente, a conversão dos EUA de nação industrial líder em um

megacassino financeiro, com a especulação se
sobrepondo gradativamente às atividades pro-
dutivas da economia real.
Nesse ambiente, o “Estado de Segurança Na-
cional” encontrou terreno fértil para consolidar
uma agenda de disseminação do pessimismo
cultural e alienação entre a juventude, com a
promoção da contracultura do rock, drogas e
sexo, cujos impactos se estenderam para fora
dos EUA e foram cruciais para as grandes ma-
nifestações estudantis de 1968, as quais ajuda-
ram a derrubar um dos últimos grandes estadis-
tas que ameaçavam os interesses daquela estru-
tura de poder, o presidente francês Charles de
Gaulle (por quem JFK tinha grande respeito).
Tendo iniciado a sua trajetória política como
um “guerreiro frio” no Senado, Kennedy teve
a sua epifania durante o momento mais crítico
do confronto com a URSS, na Crise dos Mísseis
de Cuba de 1962. Na ocasião, um tiroteio nu-
clear entre as superpotências foi evitado à un-
décima hora, graças a um entendimento direto
com o secretário-geral soviético Nikita Khrush-
chov, igualmente impactado pelos aconteci-
mentos e ambos sob fortes pressões dos respec-
tivos “linhas-duras” para levar os dois países
às vias de fato, e um providencial apelo público
do papa João XXIII.
No ano seguinte, o seu último de vida, Ken-
nedy fez movimentos determinados para abre-
viar o fim do confronto, com a iniciativa do
Tratado de Proibição Parcial de Testes Nuclea-
res e os audaciosos acenos para o encerramento
da Guerra Fria e para uma missão conjunta es-
tadunidense-soviética à Lua. Igualmente, pre-
tendia retirar do Vietnã todos os militares esta-
dunidenses que ali se encontravam como “as-
sessores” do governo de Saigon em sua disputa
com o regime comunista de Hanoi.
Em essência, a visão de JFK sobre o papel
do titular da Presidência pode ser sintetizada
nesta entrevista, ainda durante a campanha pre-
sidencial de 1961: “A responsabilidade do pre-
sidente... é especialmente grande. Ele deve ser-
vir como um catalisador, um energizador, o
defensor do bem público e do interesse público
contra todos os interesses privados estreitos que
operam na nossa sociedade. Somente o presi-
dente pode fazer isso, e somente um presidente
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 3
que reconhece a verdadeira natureza deste duro
desafio pode cumprir essa função histórica.”
Não por acaso, o Wall Street Journal, um dos
principais arautos da estrutura de poder supra-
citada, o qualificava depreciativamente como o
“executor do progresso” (enforcer of progress).
De fato, em seus dois anos e meio de governo,
Kennedy empenhou-se em promover as ativi-
dades produtivas na economia, em detrimento
da mera especulação financeira, por meio de
incentivos fiscais, gastos públicos, políticas
creditícias e monetárias favoráveis e outros
meios, que lhe granjearam a antipatia de Wall
Street e seus aliados do Deep State.
A tragédia de Dallas pôs um fim a todas es-
sas perspectivas positivas, abrindo caminho
para a consolidação do poder paralelo que, des-
de a década de 1970, converteu o sistema finan-
ceiro internacional em um megacassino “glo-
balizado”, alimentou a Guerra Fria até 1991 e,
após a implosão da URSS, empenhou-se em
implementar a ferro e fogo o distópico projeto
unipolar do “Novo Século Americano”, escora-
do na hegemonia militar estadunidense.
Seis décadas depois, é assustador que a pos-
sibilidade de um confronto nuclear seja maior
do que em qualquer momento da Guerra Fria,
principalmente, pela escassez de estadistas com
estatura sequer aproximada de JFK em serviço
nas potências euroatlânticas.
Não obstante, é visível o esgotamento dessa
estrutura de poder, diante da emergência de um
cenário multipolar baseado no conceito de rela-
ções ganha-ganha para o desenvolvimento com-
partilhado e não hegemônico, a partir da con-
solidação do eixo eurasiático encabeçado pela
China e a Rússia como o novo centro de gravi-
dade geoeconômico-geopolítico do planeta. Por
ironia, os impactos negativos da rejeição às
propostas de JFK, em especial, na economia
produtiva dos EUA – e, por extensão, dos seus
aliados europeus –, se mostram na sucessão de
crises financeiras geradas pelos excessos espe-
culativos e, não menos, na própria incapacidade
de as potências euroatlânticas sustentarem fisi-
camente a guerra por procuração com a Rússia
na Ucrânia, na qual apostaram todas as fichas,
em uma impotente tentativa de extensão da sua
hegemonia condenada. //
4 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
Palestina: dois Estados
e a mudança de época
A
obstinação do governo do primeiro-
-ministro Benjamin Netanyahu em
uma “solução” supremacista para a
questão palestina pode arrastar ao desas-
tre não apenas Israel, mas também os
EUA e seus aliados europeus. Esta é a
percepção de um destacado aliado de Is-
rael, o jornalista estadunidense Thomas
Friedman, exposta em um artigo publica-
do no New York Times e reproduzido no
“Estadão” de 11 de novembro.
Em suas palavras: “[O presidente esta-
dunidense Joe] Biden não conseguirá aju-
dar Israel a construir uma coalizão com
parceiros dos EUA, da Europa e de países
árabes moderados para derrotar o Hamas
se a mensagem de Netanyahu para o mun-
do continuar sendo: ‘Ajudem-nos a derro-
tar o Hamas em Gaza enquanto nós traba-
lhamos para expandir assentamentos co-
loniais, anexar a Cisjordânia e construir
por lá um Estado judaico supremacista’.”
E acrescenta: “Mas o presidente Biden
só será capaz de gerar o apoio que Israel
precisa de forma sustentável se Israel es-
tiver disposto a se envolver em algum tipo
de iniciativa diplomática de tempo de
guerra direcionada para os palestinos na
Cisjordânia — e com sorte na Faixa de
Gaza pós-Hamas — que indique o inte-
resse de Israel em discutir algum tipo de
solução de dois Estados se as autoridades
palestinas conseguirem unificar sua polí-
tica e pôr ordem na casa.”
Na realidade, a proposta dos dois Esta-
dos, que está na mesa de negociações pelo
menos desde 1967, significa colocar um
fim à ideia de que a civilização deve ser
regida por um poder hegemônico baseado
na ideologia da predestinação e do “excep-
cionalismo” como base do supremacismo. Esta
ideia, que alimenta o sionismo radical represen-
tado por Netanyahu, tem sido a base do proces-
so colonial nos últimos quatro séculos. No pe-
ríodo pós-Guerra Fria, foi a ideologia inspira-
dora da facção “neoconservadora”, que, com o
projeto do “novo século americano”, delirava
sobre a predominância eterna de um império
estadunidense que tinha em Israel o seu aliado
ideológico mais firme. Desde a década de 1990,
essa conduta global dos EUA e seus aliados na
Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) destruiu as possibilidades de estabe-
lecimento de uma autoridade mundial legítima,
transformando o mundo em um gigantesco pur-
gatório como antessala do proverbial inferno de
um choque de civilizações, como idealizado
pelo finado Samuel Huntington.
Essa etapa da História chegou ao fim, tanto
com a guerra na Ucrânia e, agora, com a brutal
intensificação do conflito israelense-palestino.
E, antes que se proteste contra uma alegada
inexistência de equivalência moral entre as
consequências das ações do Hamas e da Jihad
Islâmica e as do impiedoso bombardeio de
Gaza, convém lembrar que o avanço ilegal dos
assentamentos israelenses em terras palestinas
constitui parte essencial do projeto de poder
politicamente encabeçado por Netanyahu.
A conclusão é que, se os EUA não quiserem
naufragar junto com Netanyahu, terão que im-
por ao seu aliado recalcitrante a retirada dos
assentados ilegais, assim como a França teve
que retirar um milhão de franceses da Argélia,
o que só foi possível graças ao estadismo de
Charles de Gaulle. Este será o custo para esta-
belecer uma paz verdadeira entre dois Estados
cujos povos têm sido levados a confrontos his-
tóricos em favor da insidiosa geopolítica anglo-
-americana. //

O precipício das “soluções finais”
O
Hamas e a Jihad Islâmica cometeram he-
diondos crimes de guerra em 7 de outu-
bro, atacando civis indefesos. E a respos-
ta de Israel tem incluído horríveis massacres
para os quais não cabe outra qualificação, se
não a de crimes de guerra.
Mas isso não admira, conhecendo-se a
mentalidade fundamentalista do primeiro-mi-
nistro Benjamin Netanyahu e seu governo de
extremistas, que dão as mãos aos fundamen-
talistas palestinos. Ele mesmo já disse: “Com
forças compartilhadas, com fé profunda na
justiça da nossa causa e na eternidade de Isra-
el, nós realizaremos a profecia de Isaías 60:18:
‘Nunca mais se ouvirá de violência na tua ter-
ra, desolação nem destruição nos teus termos;
mas aos teus muros chamarás Salvação, e às
tuas portas Louvor’.”
E um de seus ministros, o agora “suspenso”
ministro do Patrimônio Amichai Eliyahu, dis-
se em uma entrevista de rádio que um bombar-
deio atômico a Gaza poderia ser uma solução
final para o problema palestino, já que, segun-
do ele, “não há civis não envolvidos em Gaza”.
Esta foi uma das raras vezes em que um po-
lítico israelense admitiu publicamente que o
país tem armas atômicas (o que, de resto, é um
segredo de polichinelo). E o fundamentalismo
é uma ameaça séria, ainda mais quando os que
se orientam por ele dispõem de armas verda-
deiramente apocalípticas.
A origem do arsenal atômico de Israel re-
monta à década de 1950 e é das mais interes-
santes para se entenderem as relações interna-
cionais do pós-guerra.
Hoje, Israel tem um número de ogivas atô-
micas estimado entre 90 e mais de 200, as quais
podem ser lançadas com mísseis de longo al-
cance, aviões e mísseis de cruzeiro lançados de
submarinos. A decisão de tornar o país uma
potência nuclear foi tomada no segundo gover-
no do primeiro-ministro David Ben-Gurion
(1955-1963) e teve um importante – e curioso
– leque de apoios internacionais.
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 5
O reator nuclear de Dimona, que processa
plutônio para as bombas atômicas, foi constru-
ído pela França. Grande parte do dinheiro e os
planos das primeiras bombas foram fornecidos
pela então Alemanha Ocidental (que os havia
desenvolvido durante a II Guerra Mundial, ao
contrário do que reza a “história oficial”), em
um acordo firmado entre Ben-Gurion e o chan-
celer Konrad Adenauer. O urânio veio da Ar-
gentina, da África do Sul e dos EUA, e a água
pesada, da Noruega, onde fora produzida du-
rante a guerra.
Igualmente, houve uma ativa cooperação
nuclear entre Israel e a África do Sul, ambos
apoiados clandestinamente pela Alemanha Oci-
dental. O regime sul-africano chegou a montar
seis bombas atômicas, mas as desmontou antes
da chegada de Nelson Mandela à Presidência
da República. Em setembro de 1979, a África
do Sul e Israel realizaram um teste nuclear con-
junto em uma área remota do oceano Índico.
Além de urânio, os EUA, após o assassinato
do presidente John F. Kennedy, em novembro
de 1963, proporcionaram a vista grossa neces-
sária para que Israel pudesse construir o seu
arsenal apocalíptico sem publicidade.
Em duas ocasiões, Israel chegou perto de
usar suas armas atômicas.
Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, foi pre-
parada a Operação Sansão, a detonação de uma
bomba atômica em uma área desabitada do de-
serto do Sinai, no Egito, como advertência aos
países árabes. A rápida vitória israelense tornou
a missão desnecessária.
Na Guerra do Yom Kippur, em 1973, a pri-
meira-ministra Golda Meir ordenou que mís-
seis nucleares e aviões com bombas atômicas
fossem colocados em prontidão para um ataque,
evitado apenas por intervenção dos EUA, que
forneceram grandes quantidades de munições
e equipamentos militares juntamente com ima-
gens de satélites das posições das tropas egíp-
cias e sírias, possibilitando o sucesso do con-
tra-ataque israelense. //
6 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
Guerra mundial contra
o “excepcionalismo”
// GERALDO LUÍS LINO E LORENZO CARRASCO
A
guerra na Ucrânia já envolve um
número de nações maior do que
o das que travaram a II Guerra
Mundial. No Oriente Médio, o con-
fronto entre Israel e os palestinos se
agrava a olhos vistos, com o risco de
envolvimento direto dos EUA e outras
potências da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN) ao lado de
Israel, contra uma coalizão de atores
estatais e não estatais árabes e do Irã,
do lado dos palestinos. Eventualmente,
apesar das grandes distâncias geográ-
ficas entre as duas áreas, ambas as
conflagrações poderiam fundir-se em
uma única, com consequências poten-
cialmente catastróficas.
Sob essa perspectiva, para Fyo-
dor Lukyanov, diretor de Programas
do Clube de Discussões de Valdai e
editor-chefe da revista Russia in
Global Affairs, a III Guerra Mundial
já começou.
“Há uma cadeia de conflitos afetan-
do o mundo inteiro. De fato, a III Guer-
ra Mundial já está em marcha. Ela
ainda é melhor que as guerras ocorri-
das no século XX, mas há pouca sati-
sfação nisto”, disse ele em recente en-
trevista à revista Komsomolskaya Pra-
vda (RT, 31/10/2023).
Segundo ele, outras hostilidades de-
vem ocorrer em outras partes do mun-
do em breve, e ninguém parece ser
capaz de impedi-las: “A ordem inter-
nacional está ruindo. Ela era desagra-
dável, baseada no medo da destruição
mútua, mas era administrável. Guerras
no Oriente Médio ocorreram antes, mas a União
Soviética e os EUA intervinham e as extinguiam
até o conflito seguinte. Agora, eu não vejo sequer
um mecanismo de acordos temporários.”
A rigor, a despeito das diferenças, o que todas
essas frentes de conflitos têm em comum é uma
rebelião contra a ideologia do “excepcionalismo”,
pilar central da estratégia hegemônica implemen-
tada pelas elites dirigentes dos EUA, em especial,
após o fim da União Soviética, em 1991. Ideolo-
gia segundo a qual a nação “excepcional” se ar-
vora o direito e a obrigação de impor os seus
valores ao mundo, a exemplo do que fez recente-
mente o presidente Joe Biden, em um discurso no
qual apontou o dedo simultaneamente contra a
Rússia e o Hamas.
“Nós somos a nação essencial... Em momentos
como esse, nós temos que recordar – nós temos
que recordar quem somos. Nós somos os Estados
Unidos da América – os Estados Unidos da
América”, afirmou um vacilante Biden (The Whi-
te House, 20/10/2023).
Em recente entrevista no Youtube ao jornalista
Stephen Gardner, o coronel (ret.) Douglas Mac-
gregor, ex-assessor do Pentágono e um dos mais
contundentes críticos da política estadunidense,
sintetizou assim o problema: “(...) Nós somos ar-
rogantes e ignorantes. Não temos respeito pelas
culturas e modos de vida de outros povos, porque
nós continuamos a insistir em que, se você não é
como nós, se você não adota o que achamos que é
adequado para você, em termos do que pensamos
– democracia é um desses termos de que temos
abusado o tempo todo –, então, você é o inimigo
e merece o pior, o que é ridículo, absurdo, nunca
fez nenhum sentido e não faz nenhum sentido hoje.
Mas como se persuade os EUA a abandonar essa
arrogância extrema que lhe tem sido inculcada,

particularmente, nos últimos 30 anos?
Isto virou um problema e ele está ab-
solutamente fora de controle. (...)”
Não deixa de ser uma ironia histó-
rica que a já indisfarçável senilidade
do presidente estadunidense funcione
como uma metáfora da decrepitude dos
valores cultivados pelas elites dirigen-
tes de Washington e Wall Street, com-
partilhados pelos seus apêndices euro-
peus sediados em Londres e Bruxelas.
Neste contexto, o alinhamento desses
centros e subcentros de poder contra a
Rússia e no apoio incondicional a Isra-
el decorre da percepção de que a der-
rota militar da Ucrânia e a quebra do
paradigma da hegemonia militar de
Israel no Oriente Médio, representam
ameaças existenciais à estrutura de po-
der global “excepcionalista”, com re-
percussões diretas sobre conceitos e
valores culturais, sociais, políticos e
econômico-financeiros defendidos pelo
Ocidente nos últimos três séculos.
Nesta tecla, bate outro “dissidente”
do sistema hegemônico, o ex-diploma-
ta britânico Alastair Crooke, veterano
observador dos assuntos do Oriente
Médio, que já participou pessoalmente
de negociações de troca de prisioneiros
entre Israel e o Hamas. Como escreve
em sua coluna no jornal Al-Mayadeen
English de 3 de novembro:
“O paradigma da ‘invencibilidade’
ocidental tem levado boas surras: pri-
meiro, no Afeganistão e, depois, mais
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 7
substancialmente, na Ucrânia – onde os ‘pés de
barro’ da OTAN foram expostos ao mundo.
“Com o vento do ‘fim da História’ de Fukuya-
ma soprando por detrás, a autoridade das elites
ocidentais tem sido sustentada por meio de uma
arrogante superioridade moral global: o anticomu-
nismo e, subsequentemente, o ‘terrorismo’ islâm-
ico pós-11 de setembro tornaram-se importantes
recursos políticos aos quais os estratos dominantes
podiam recorrer. Eles também proporcionavam às
elites um sentido de coesão. Mas, acima de tudo,
lhes proporcionavam legitimidade moral.
“Hoje, as elites ocidentais são continuamente
confrontadas com a perda da sua autoridade (isto
é, o advento da multipolaridade) e estão em busca
de uma nova ‘legitimidade’, na medida em que o
mundo dá as costas ao excepcionalismo e ao seu
substrato binário, ‘conosco ou contra nós’.
“Então, veio o 7 de outubro. O paradigma isra-
elense desabou – tanto em suas manifestações
externas como internas de ‘deterrência’... colocan-
do o Ocidente em alvoroço.”
Em meio às turbulências, as inócuas discussões
sobre o confronto Israel-palestinos no âmbito da
Organização das Nações Unidas (ONU), onde nem
o Conselho de Segurança nem a Assembleia-Geral
conseguem aprovar qualquer resolução útil, deno-
tam a carência de uma autoridade mundial com a
legitimidade necessária para tornar-se efetiva em
situações de crise como a atual. Possivelmente,
isto é algo que terá que esperar pelo desfecho da
rebelião mundial contra o “excepcionalismo”.
Uma palavra de cautela: embora o “excepcio-
nalismo” esteja com os dias contados, ainda po-
derá cobrar da humanidade um preço muito alto
pela sua saída do cenário histórico. //
8 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
Dominique de
Villepin e o fim do
“Ocidentalismo”
E
m uma entrevista à rádio francesa
RMC, em 27 de outubro, o ex-pri-
meiro-ministro Dominique de Vil-
lepin proporcionou uma visão de rara
lucidez entre os atuais homens de Esta-
do europeus, ao discutir o conflito no
Oriente Médio. Além disto, alertou para
o esgotamento da hegemonia desfrutada
nos assuntos globais pelo Ocidente nos
últimos séculos, ao que chamaou “Oci-
dentalismo”.
Em uma às vezes tensa conversa com
a experiente jornalista Appolline de Ma-
lherbe, Villepin, que teve uma longa
carreira na diplomacia francesa, inclu-
sive, como embaixador em Washington
e Nova Déli, divergiu frontalmente da
abordagem unilateral do atual governo
francês e da União Europeia, com con-
siderações que colocam o conflito no
contexto mais amplo da mudança de
época em curso. A rigor, talvez, a sua
franqueza seja possível apenas aos que
já tenham deixado a vida pública, dado
o presente grau de submissão das elites
dirigentes europeias aos EUA e sua
agenda confrontacionista-belicista.
A seguir, reproduzimos os trechos
mais relevantes da entrevista, que pode
ser vista no link https://www.youtube.
com/watch?v=Mpq5IxdDeqA:
Sobre o ataque do Hamas:
O Hamas nos preparou uma armadilha, e
esta armadilha é do máximo horror, da
máxima crueldade. E, portanto, há o risco
de uma escalada do militarismo, de mais
intervenções militares, como se pudésse-
mos resolver com exércitos um problema
tão grave como a questão palestina.
Há também uma segunda grande ar-
madilha, que é a do Ocidentalismo. Nós
nos encontramo presos, juntamente com
Israel, nesse bloco ocidental que hoje está
sendo desafiado pela maior parte da co-
munidade internacional.
Sobre o Ocidentalismo:
Ocidentalismo é a ideia de que o Oci-
dente, que durante cincoi séculos geriu
os assuntos mundiais, será capaz de con-
tinuar a fazê-lo de maneira tranquila.
E podemos ver claramente, mesmo nos
debates da classe política francesa, que
existe a ideia de que, diante do que está
acontecendo atualmente no Oriente Mé-
dio, nós devemos continuar ainda mais
a luta, rumo ao que poderá assemelhar-
-se a uma guerra religiosa ou civiliza-
cional. Isto é, isolar-nos ainda mais no
cenário internacional.
Este não é o caminho, especialmente,
porque existe uma terceira armadilha, que
é a do moralismo. E, de certa forma, temos
aqui a prova, por meio do que está acon-
tecendo na Ucrânia e do que está aconte-
 SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 //
cendo no Oriente Médio, deste duplo pa-
drão que é denunciado em todo o mundo,
inclusive, nas últimas semanas, quando
viajo à África, ao Médio Oriente ou à
América Latina. As críticas são sempre as
mesmas: vejam como as populações civis
são tratadas em Gaza, vocês denunciam o
que aconteceu na Ucrânia e são muito tí-
midos diante da tragédia que se desenrola
em Gaza. (...)
Sobre a soberba ocidental:
Os ocidentais devem abrir os seus olhos
para a extensão do drama histórico que
está se desdobrando diante de nós e achar
as respostas certas.
Sobre quem está matando quem:
Você está em um jogo de causas e efeitos.
Confrontados com a tragédia da história,
não se pode usar esta malha analítica de
“cadeia de causalidade”, simplesmente
porque, se o fizermos, não conseguire-
mos escapar dela. Quando compreender-
mos que existe uma armadilha, quando
compreendermos que por detrás desta
armadilha também houve uma mudança
no Oriente Médio, no que diz respeito à
questão palestina... A situação hoje é
profundamente diferente [do passado].
A causa palestina foi uma causa política
e secular. Hoje, estamos confrontados
com uma causa islâmica, liderada pelo
Hamas. Obviamente, este tipo de causa
é absoluta e não permite qualquer forma
de negociação. Do lado israelense, tam-
bém houve um desdobramento. O sionis-
mo era secular e político, defendido por
Theodor Herzl no final do século XIX.
Hoje, ele se tornou em grande medida e
messiânico e bíblico. Isto significa que
eles também não querem se comprometer
e tudo o que o governo de extrema-direi-
ta israelense faz, continuando a incenti-
var a colonização [da Cisjordânia], ob-
viamente, piora as coisas, inclusive des-
de 7 de outubro. Portanto, neste contexto,
9
Dominique de Villepin (Wikipedia)
entendamos que já estamos nessa região
enfrentando um problema que parece
profundamente insolúvel. (...)
Sobre a neutralidade no conflito:
Eu não sou neutro, estou em ação. Estou
simplesmente lhe dizendo que, a cada dia
que passa, podemos garantir que esse ci-
clo horrível pare... Por isso, falo em arma-
dilha e, por isso, é tão importante saber
que resposta vamos dar. Hoje, nós estamos
sozinhos diante da História. E não trata-
mos este novo mundo da forma como o
fazemos atualmente, sabendo que hoje já
não estamos numa posição de força, não
somos capazes de gerir sozinhos, como os
policiais do mundo.
Em outra entrevista, dias depois, à rede
de televisão France Info (https://www.
youtube.com/watch?v=vY7Iw54NiWM),
Villepin respondeu taxativamente a uma
pergunta sobre a necessidade de retirada
dos colonos israelenses na Cisjordânia:
“Quando nós saímos da Argélia, havia um
milhão de franceses por lá. Hoje, há 500
mil israelenses colonizando a Cisjordânia
e 200 mil em Jerusalém Oriental. [E eles
terão que sair,] sim, isso é história, isso é
responsabilidade, este é o preço! Eu te
digo solenemente, este é o preço da segu-
rança para Israel. E todos aqueles que hoje
consideram que isso nunca será suficiente
estão perseguindo a pior política.” //
10 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
O brinquedo
quebrado
// SERTORIO*
A
amarga emoção do desengano enegrece
a vida. Ainda mais, se ele for amoroso:
passar de ser amado a ser ignorado é um
transe muito amargo. Na política, este fenô-
meno está associado ao fracasso, nasce com
ele e aumenta à medida que a situação se de-
teriora. Os cem pais da vitória nunca hesitarão
em abandonar a derrota órfã no entorno da
inclusão da História.
A Ucrânia ficou órfã, vítima das emergên-
cias históricas de Israel. Quando, em junho
passado, Kiev iniciou a sua grande ofensiva
com material da OTAN (Organização do Tra-
tado do Atlântico Norte) e tropas treinadas nos
países da Aliança, tudo parecia bem diferente.
O objetivo inicial era Tokmak, uma cidade lo-
calizada a apenas 16 quilômetros da frente.
Uma vez concluída esta tarefa, as forças ucra-
nianas poderiam avançar em direção a Ber-
dyansk ou Melitopol, na costa do Mar de Azov,
para cortar a comunicação terrestre entre a
Crimeia e a Rússia. Os Leopard, os Challenger,
os Bradley e todas as Wunderwaffen atlantistas
seriam fundamentais para romper a chamada
Linha Surovikin e avançar vitoriosamente
rumo ao mar. Neste mês de novembro, e depois
de a Ucrânia ter sofrido 90 mil baixas, Tokmak
está a 15 km da frente e a Linha Surovikin mal
foi tocada. A única conquista das tropas de eli-
te ucranianas foi a captura de Rabotino, um
vilarejo de 450 habitantes localizado no fundo
do que os alemães chamariam de Kessel (cal-
* Sertorio é o pseudônimo de um jornalista espanhol que escreve no sítio El Manifiesto (https://elmanifiesto.com).
Artigo originalmente publicado em 14 de novembro de 2023.
deirão), cercado por elevações que ainda estão
nas mãos dos russos. Ali pereceu uma boa par-
te da reserva de tropas e material que o regime
de Kiev acumulou durante um ano. Ali e tam-
bém em Klesheevska, perto de Artyomovsk
(Bakhmut), onde ocorreu uma situação seme-
lhante. A estes infortúnios dos últimos tempos
soma-se a ação devastadora do drone Lancet
contra os veículos blindados atlantistas e a cres-
cente eficácia letal dos mísseis antiaéreos
S-400, que abateram 24 aeronaves ucranianas
em 15 dias, incluindo 17 Mig-29. À Ucrânia,
ainda podem restar aviões, mas nenhuma força
aérea. Enquanto a OTAN luta para enviar algu-
mas dezenas de milhares de obuses à Ucrânia,
a Rússia armazena milhões deles nos seus ar-
senais, chegando a disparar 40 mil por dia.
Mas essas batalhas não interessam muito a
Zelensky, que provou ser um estrategista espe-
cialista em guerra de informação e propaganda,
mas não em guerra real, onde foi diretamente
responsável pelos desastres de Bakhmut e
Rabotino, além do que é iminente em Adeevka.
Por esta razão, mais do que com os mortos na
frente, ele deveria estar preocupado com o fato
de a revista Time estar censurando a sua men-
talidade de bunker e com o fato de começarem
a aparecer críticas sobre a sua gestão da guerra,
a corrupção desenfreada do seu regime e as
dissensões internas que são começando a sur-
gir, após o completo fracasso da ofensiva de
junho. Como Ngo Dinh Diem, Chiang Kai-

shek, Reza Pahlevi e Batista, Zelensky tor-
nou-se um estorvo, um brinquedo quebrado que
deve ser guardado no sótão ou jogado no lixo.
Eles nem o querem mais na Eurovision. Possi-
velmente, agora, quando já é tarde, o comedian-
te ucraniano lamente ter sido enganado por
Boris Johnson e ter interrompido as nego-
ciações que estavam prestes a pôr fim ao con-
flito, na primavera de 2022: com elas, as pro-
víncias de Donbass se manteriam integradas ao
território ucraniano dentro de um regime fede-
ral e Kiev se comprometia com garantias de
segurança a Moscou em face das ambições
expansionistas da OTAN. Aqueles que há um
ano e meio o forçaram a abandonar as nego-
ciações e a aprovar uma lei que impedia qual-
quer acordo com o governo russo, começam
agora a não querer nada com ele. Zelensky já
está amortizado e querem substituir um peão
por outro. Não é coincidência que apareçam
tantas notícias nos meios de comunicação oci-
dentais sobre as divergências entre as lide-
ranças política e militar da Ucrânia, nem que
antigos colaboradores de Zelensky, como Are-
stovich, ataquem o ditador ucraniano a partir
da relativa segurança do exílio.
Biden precisa agora de paz na Ucrânia. A
frente israelense pode degenerar em uma
guerra longa e de baixa intensidade e as águas
do Mar da China podem tornar-se num
cenário catastrófico, na medida em que a fro-
ta chinesa continua a crescer e a questão de
Taiwan fica fora de controle. Mas, acima de
tudo, Biden precisa ser reeleito no próximo
ano. A corrida eleitoral já começou e os enor-
mes gastos da guerra na Ucrânia pesam contra
ele. O Estado-Maior do Partido Democrata
estremece só de pensar no que poderá aconte-
cer se, entre abril e setembro do próximo ano,
a frente ucraniana desmoronar e o seu exérc-
ito desabar diante dos russos, algo que não
deve ser descartado, dada a condição em que
se encontram as forças do regime de Kiev. A
simples duração do conflito, o seu estanca-
mento em um combate de posições, também
seria muito negativo para as esperanças de
reeleição de Biden.
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 11
Se a paz for assinada agora, a Rússia conse-
guiria uma vitória de importante significado
geopolítico: se ligaria à Crimeia por terra, incor-
poraria metade da antiga Nova Rússia à pátria-
mãe, transformaria o Mar de Azov em um lago
russo e daria ainda mais firmeza à sua presença
no Mar Negro. Por outro lado, envia um sério
aviso aos Estados vizinhos, herdeiros da antiga
URSS, sobre as consequências da limpeza étnica
das minorias russas e dos flertes com uma
Aliança Atlântica que nunca se comprometerá
totalmente com os peões que utiliza contra a
Rússia. A Geórgia, por exemplo, percebeu isso
perfeitamente; a Armênia, não. E é assim que
acontece. E isto sem se esquecer de um trunfo
muito importante: a paz é sempre uma boa
notícia e uma conquista para qualquer governo.
Mas Putin não tem nada a ver com favores ao
governo Biden. A campanha de Donbass não
prejudicou a economia russa, ao contrário do que
está acontecendo na Europa autossancionada, e
nesta altura do conflito, a loucura que significa
para a Ucrânia e a OTAN manterem uma guer-
ra de desgaste contra a Rússia tornou-se mais do
que evidente. O tempo está a favor de Moscou e
a impaciência para assinar a paz não parece rei-
nar na sala de comando do Kremlin. Quanto
mais durar o conflito, mais oportunidades a
Rússia terá para reduzir o que resta da Ucrânia
a dimensões mais controláveis, possivelmente,
dividindo-a em dois Estados: uma Galícia atlan�-
tista (Lvov) mediada pela Polônia e uma Ucrân�-
ia russa (Kiev) incorporada à órbita eurasiática,
à maneira da Bielorrússia. Ou, de forma menos
ambiciosa, completar a incorporação da Nova
Rússia com Kharkiv e Odessa.
Porém, não brinquemos com os mapas: seja
como for, a aventura ucraniana de Biden está
chegando ao fim, muito mais calamitosa do
que poderia ter sido se a paz tivesse sido feita
em abril de 2022, quando britânicos e estadu-
nidenses a boicotaram, para infortúnio da
Ucrânia. E o fim da escapada, sem dúvida, é
também o da era Zelensky, a pior que a Ucrân-
ia viveu nas mãos da sua casta política desde
1991, quando era a mais próspera e dinâmica
das repúblicas da URSS. //
12 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
EUA: os juros sobre
a dívida superam
os gastos militares
// MARIO LETTIERI E PAOLO RAIMONDI, DE ROMA
A
s guerras e os confrontos geopolíticos em
curso têm obscurecido certas tendências
econômicas preocupantes nos EUA e
também no resto do mundo. Mas as realidades
não foram canceladas. Basta observar atenta-
mente as tendências financeiras no exterior.
A agência Bloomberg News estima que, no
final de outubro de 2023, os pagamentos de juros
sobre a dívida do governo federal, calculados ao
longo de 12 meses, atingiram aproximadamente
US$ 1 trilhão. O nível anualizado de juros pagos
duplicou desde o final de março de 2022.
É o efeito combinado da “flexibilização
quantitativa” (QE, sigla em inglês) e das
injeções de liquidez, com as quais a Reserva
Federal apoiou o sistema durante a crise pan-
dêmica e, depois, com os subsequentes aumen�-
tos da taxa de desconto para conter a inflação,
gerada em parte pela própria QE.
O governo dos EUA pagará mais juros sobre
a dívida do que os seus já estratosféricos gastos
militares!
No ano fiscal de 2023, que terminou em 30
de setembro, o déficit orçamentário foi de US$
1,7 trilhão, um aumento de US$ 320 bilhões, ou
23% mais do que no ano fiscal anterior. A maior
parte deste aumento se deveu ao crescimento
de US$ 184 bilhões de juros da dívida – e teriam
sido US$ 2 trilhões se a Suprema Corte não
tivesse vetado o programa de cancelamento das
chamadas “dívidas estudantis”.
A dívida pública ultrapassou US$ 26,2 tri-
lhões, com um aumento de cerca de US$ 2 tri-
lhões em relação a 2022. Para isto, contri-
buiu bastante a redução das receitas em
US$ 457 bilhões, dos quais US$ 456 bi-
lhões por conta de menos impostos sobre
os rendimentos dos cidadãos. Além da
recuperação, é uma realidade amarga para
a maioria da população estadunidenses.
As altas taxas de juros tornaram os
empréstimos mais caros, aumentando a
pressão sobre a dívida. Hoje, os títulos
do Tesouro de dez anos têm juros de qua-
se 5%, três vezes o nível de há dois anos!
Nos últimos meses, o aumento das taxas
arruinou vários bancos regionais que es-
tavam repletos de títulos governamentais
de baixo rendimento. O crescimento de-
las andou de mãos dadas com a inflação.
Agora, afirma-se que esta última teria
caído para 3%. Muitos confiam na inter-
pretação dos sonhos para “adivinhar”
quais serão as taxas futuras dos títulos
do Tesouro.
Esta situação corre o risco de gerar um
estado de instabilidade permanente no
orçamento federal. O risco de paralisação
no dia 1º de outubro foi evitado à última
hora por um acordo bipartidário na Câma-
ra dos Deputados. Por lei, as agências fe-
derais devem ter os seus planos de gastos
aprovados pelo Congresso. A paralisação
envolveria a suspensão de inúmeras ope-
rações do governo federal por falta de
dinheiro, com efeitos negativos para os

servidores públicos, a economia e todos os ci-
dadãos. Sem um novo acordo, poderá haver
novas paralisações, que, provavelmente, tam-
bém serão evitadas, mas esta montanha-russa
do orçamento federal não é um bom cartão de
visita para o resto do mundo.
Em junho passado, a inadimplência foi evi-
tada com um acordo bipartidário, a Lei de Res-
ponsabilidade Fiscal de 2023, que suspendeu o
fatídico teto da dívida federal até 1° de janeiro
de 2025. O acordo prevê um limite de gastos
discricionários de US$ 1,59 trilhão durante dois
anos. Em outras palavras, o governo pode con-
trair empréstimos e gastar mais do que o pre-
visto no orçamento federal. A razão da crise
deveu-se ao fato de o teto da dívida previsto
para 2023, de US$ 31,4 trilhões, já ter sido atin-
gido em janeiro. A agonia prolongou-se até
junho com “medidas extraordinárias” de natu-
reza administrativo-financeira.
Até mesmo duas agências de classificação
de risco estadunidenses, a Standard & Poor’s e
a Fitch, que sempre foram muito generosas para
com os títulos dos EUA, tiveram de reduzir as
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 13
suas classificações referentes à capacida-
de estadunidense de cumprir os compro-
missos com a dívida. Os EUA perderam
a sua classificação AAA, a mais elevada,
e isto poderá ter um efeito, tanto no custo
da dívida, como na propensão dos inves-
tidores para emprestar ao governo federal.
Em vez disto, a Moody’s confirmou a
classificação AAA, mas com uma pers-
pectiva estável a negativa.
Os EUA olham para o futuro e espe-
ram que, em dez anos, a dívida federal
seja de US$ 52 trilhões. No momento,
parecem querer ignorar as causas profun-
das das crises, do financiamento especu-
lativo, dos bancos muito grandes para
falir e do sistema bancário paralelo, para
se concentrarem, em vez disto, na redu-
ção das despesas orçamentárias sociais e
no aumento dos impostos. Não oferecem
quaisquer ideias novas para resolver os
problemas supracitados e as suas reper-
cussões negativas em todo o mundo, a
começar pela Europa. //
14 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
Paraguai em alerta
contra as maquinações
do ambientalismo
// SILVIA PALACIOS
N
o recente congresso internacional do Con-
sórcio de Pecuaristas para Experimenta-
ção Agropecuária (CEA) do Paraguai,
comemorando 32 anos de existência, ficou pa-
tente a indignação reinante no setor e em outros
círculos representativos da sociedade para-
guaia, devido às rigorosas imposições ambien-
tais provenientes da União Europeia (UE) e à
política climática dos EUA.
O mais ofensivo é o fato de que tal interven-
ção em assuntos internos do país se apóia em
artifícios sem qualquer embasamento científico,
temas igualmente questionados em diversos
painéis do evento.
Sob tais sofismas, pretende-se que a produção
agrícola e pecuária, base da economia para-
guaia, seja sacrificada no templo do aquecimen-
to global, a fim de reduzir as emissões de dióxi-
do de carbono (CO2) e, mais recentemente, as de
metano (CH4). Quanto a estas últimas, a preten-
são daria um golpe mortal na produção agrope-
cuária, uma autêntica tramoia para justificar a
adoção generalizada dos voláteis mecanismos
financeiros dos créditos de carbono, mais co-
nhecidos como créditos por não produzir!
A situação do Paraguai não é única, mas afe-
ta toda a América do Sul e o seu incomparável
potencial agropecuário global.
Na abertura dos trabalhos, o presidente do
CEA, Diego Heisecke, destacou que a região
como um todo é essencial para a produção glo-
bal de alimentos no presente e no futuro, devido
ao crescimento da população mundial, atual-
mente pouco acima de 8 bilhões de habitantes.
“A humanidade enfrenta hoje o grande desa-
fio de alimentar um mundo em crescimento,
desenvolvendo técnicas de produção mais efi-
cientes, competitivas, rentáveis, que preservem
o meio ambiente em um quadro amigável com
a sociedade”, afirmou.
Diante de mais de 600 participantes, foram
compartilhadas experiências nacionais e estran-
geiras sobre melhorias na produção do campo,
inclusive na área florestal. Um aspecto que con-
firma a necessidade de se dar vida à integração
regional foram as contribuições de um grupo de
pesquisadores e consultores do Brasil, direta-
mente envolvidos nas formidáveis ​​melhorias na
produtividade e na exploração de novas regiões,
realizadas pela empresa estatal Embrapa.
Durante os trabalhos, foi lançada a quarta
edição em espanhol do livro Máfia Verde: am-
bientalismo, novo colonialismo, publicado pela
Capax Dei Editora (em português, na 13ª edição).
O painel de encerramento contou com a pre-
sença de autoridades governamentais e líderes
agrícolas, incluindo o ministro da Agricultura e
Pecuária, Carlos Giménez, e o presidente da As-
sociação Rural do Paraguai (ARP), Pedro Gallil.
Na ocasião, o presidente do Movimento de Soli-
dariedade Ibero-americana (MSIa), Lorenzo
Carrasco, um dos autores do livro referido, apre-
sentou de forma ampla o seu conteúdo essencial.
A apresentação de Carrasco proporcionou
um panorama das diversas facetas que com-
põem a Máfia Verde, tomando como ponto de
partida o seu depoimento à Comissão Parla� -
mentar de Inquérito (CPI) do Senado do Brasil
sobre as atividades das ONGs, em 8 de agosto
último. Disse ele:
“Tais ações se escondem por trás da nobre
causa de proteção do meio ambiente e da popu-
lação indígena, um discurso fácil que captura
as mentes e se difundiu graças à propaganda
favorável dos meios de comunicação de massa.
Identifico este processo ao par com um sofisti-

cado aparato ambientalista e indígena interna-
cional, uma vez que, nas suas diversas ativida-
des, as ONGs se comportam como verdadeiras
tropas de assalto contra países dotados de re-
cursos naturais estratégicos, tudo em benefício
dos seus controladores e financiadores, princi-
palmente, entidades governamentais dos EUA,
Canadá, Reino Unido, Alemanha, Holanda e
Noruega, opulentas fundações privadas, gran-
des empresas e outros interesses desses países,
inclusive, financeiros. Ao longo destas décadas,
ficou claro que o objetivo é impedir a expansão
dos benefícios da sociedade tecnológica a todos
os povos e países do planeta, acorrentar o de-
senvolvimento destas nações e quebrar os Esta-
dos nacionais soberanos.
“Quero me referir ao caso do Brasil, porque
ilustra amplamente o que foi dito antes. A es-
tratégica Amazônia tem sido alvo de sérias pres-
sões internacionais, com ênfase exagerada em
uma duvidosa ‘devastação’ dos seus biomas.
Além dos seus vastos recursos minerais, ener-
géticos e biológicos, o gigante sul-americano é
a maior fronteira mineral, agrícola e de biodi-
versidade do planeta, pelo que tentar colocá-lo
no banco dos réus responde à ambição de: 1)
usar a floresta amazônica para torná-la uma
‘garantia’ para grandes ações de compensação
de emissões de gases de efeito estufa (créditos
de carbono); e 2) dificultar a expansão agrícola
e mineral da região do Cerrado, além de outros
estragos que citarei mais adiante.
“O desígnio dessa nova forma de colonialis�-
mo não mudou: o controle de fontes de recursos
naturais estratégicos, como minerais, fontes de
energia e alimentos, desacelerar o crescimento
populacional e o desenvolvimento dos povos
subjugados, ao mesmo tempo em que o faziam
outras modalidades ligadas ao conceito malthu-
siano de escassez de recursos, ou seja, na raiz
do ambientalismo. Uma das maneiras de o con-
seguir foi a criação de grandes reservas naturais
e indígenas, que dificultam ou impossibilitam
a exploração dos recursos naturais nelas exis-
tentes, sejam projetos de infraestruturas, prin-
cipalmente projetos energéticos e rodoviários
ou outros. Com isto, se consegue o controle
geopolítico de vários territórios, que, embora
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 15
permaneçam formalmente sob a soberania dos
Estados onde estão localizados, na prática, o seu
destino está ligado a desígnios exógenos de en-
tidades supranacionais.”
Os três debatedores do painel concentraram-
-se em esclarecer a farsa do aquecimento global
e das mudanças climáticas supostamente cau-
sadas pelas ações humanas. Ao destruir as ins-
talações centrais que o sustentam, contrasta-
ram-no com os efeitos benéficos para a agricul-
tura, por exemplo, do CO2.
“Estamos dando muita importância ao CO2;
as mudanças climáticas sempre existiram e o
ser humano se adaptou a elas. Acredito nas mu-
danças climáticas, mas o que não acredito é que
o homem e o CO2 sejam os inimigos”, disse Al-
fred Fast, presidente da Federação das Coope-
rativas de Produção (Fecoprod). E acrescentou:
“A realidade no Paraguai é a necessidade de
combater a pobreza, este é o maior objetivo que
podemos ter antes de qualquer outro.”
Além de diversas entrevistas em canais de
TV especializados em agricultura, Carrasco foi
entrevistado pela emissora do tradicional jornal
ABC-Color, no programa de opinião de maior
audiência, dirigido pelo conhecido jornalista
Enrique Vargas Peña. Na realidade, foi um di-
álogo centrado na origem colonialista das
ONGs. Quanto ao seu poder, acrescentou o apre-
sentador, “o seu esquema é podre, talvez, não
todas as pessoas que fazem parte dele”. Em
resposta a um comentário de Carrasco sobre o
caráter malthusiano do ambientalismo, ele com-
pletou: “Malthus estava errado sobre tudo, por-
que nunca imaginou o papel da tecnologia.”
E, assim como acontece no Paraguai, o mo-
mento é único para o Cone Sul, pois fica cada
vez mais evidente que o substrato que hipno-
tizou os arautos do ambientalismo refere-se
ao economista da Companhia das Índias
Orientais, Thomas Malthus, revivido na atu-
alidade pela força do globalismo financeiro.
É claro que o desígnio deste poder oligárquico
para a região é deter a produção de alimentos
e infraestruturas, nesta parte do mundo que
tem tudo para sair do controle do colonialismo
anglo-americano, tornando-se uma potência
industrial soberana. //
16 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
Conheça o príncipe Bernhard,
o nazista que fundou a
principal ONG ambientalista
// LORENZO CARRASCO
Artigo originalmente publicado na Gazeta do Povo
A
recente admissão oficial de que o príncipe Ber-
nhard, avô do atual rei da Holanda, Willem-Ale-
xander, havia sido membro do Partido Nazista na
década de 1930, fato negado por ele até a sua morte,
lança luz sobre um aspecto pouco conhecido da origem
do movimento ambientalista internacional, cuja influ-
ência atual se mostra determinante sobre as políticas
públicas que influenciam os rumos da humanidade.
No início de outubro, o governo holandês exibiu a
carteira de filiação de Bernhard ao Partido Nacional-
-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), nome
oficial do partido nazista, colocando uma pá de cal so-
bre décadas de negativas e reticências sobre o assunto.
Bernhard zu Lippe-Biesterfeld, que nasceu em 1911
em uma família aristocrática alemã, não era um integran-
te qualquer do partido, no qual ingressou no início da
década de 1930, quando estudava Direito na Universida-
de de Berlim. Foi também integrante da temida SS e
funcionário da seção de inteligência da megaempresa
química I.G. Farben, então a quarta maior empresa do
mundo, uma poderosa transnacional com subsidiárias e
participações em várias empresas dos EUA e pilar central
do complexo industrial-militar que sustentava o regime
nazista. Na unidade, conhecida como NW7, Bernhard
iniciou os seus contatos com os altos círculos empresa-
riais internacionais. O chefe da NW7 era Max Ilgner,
sobrinho do presidente da I.G. Farben, Hermann Sch-
mitz. Seu irmão Rudolph Ilgner, naturalizado estaduni-
dense, era vice-presidente da Chemnyco, subsidiária que
exercia funções de inteligência semelhantes nos EUA.
Em 1937, apesar das controvérsias geradas pelos seus
vínculos nazistas, Bernhard casou-se com a então prin-
cesa Juliana, para o que teve que assumir a nacionali-
dade holandesa.
Durante a II Guerra Mundial, após
a invasão da Holanda pelas forças ar-
madas alemãs, em maio de 1940, refu-
giou-se na Grã-Bretanha junto com sua
sogra, a rainha Guilhermina, enquanto
Juliana e as filhas de ambos se refugia-
ram no Canadá, onde permaneceram
durante todo o conflito.
Após o conflito, fazendo uso das
altas relações construídas nos dois la-
dos, Bernhard tornou-se uma das pe-
ças-chave da constituição da estrutura
oligárquica de poder hegemônico esta-
belecida nos dois lados do Atlântico.
Agraciado pela sogra com o cargo de
inspetor-geral das Forças Armadas ho-
landesas, após a renúncia de Guilher-
mina, que levou Juliana ao trono em
1948, tornou-se membro dos conselhos
de administração de várias empresas
holandesas, entre elas a indústria aero-
náutica Fokker e a aérea KLM. Em sua
gestão e, segundo vários autores, com
a sua participação direta, aviões da
KLM foram usados para evadir altos
fugitivos nazistas para a Argentina.
Em 1954, foi um dos fundadores
do célebre Grupo Bilderberg, cuja
função primordial era a de atuar como
um canal direto de comunicação e
articulação entre os antigos figurões
nazistas e oligarcas anglo-america-
nos, protagonistas da grande barga-
nha estabelecida nos meses finais da
guerra. O primeiro grupo controlava
o enorme butim amealhado nos países
 SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 //
europeus ocupados, que foi transferido para fora da
Alemanha em troca da entrega aos EUA da maior par-
te dos cientistas, engenheiros e técnicos envolvidos
nos programas tecnológicos avançados alemães, a
chamada Operação Clipe de Papel (Operation Paper-
clip). Bernhard foi um dos principais intermediadores
dos entendimentos entre os dois grupos.
Em 1961, em parceria com o príncipe Philip da Casa
de Windsor, foi um dos fundadores do movimento am-
bientalista internacional, com a criação do Fundo Mun-
dial para a Vida Selvagem (WWF, hoje Fundo Mundial
para a Natureza). Longe de ser um movimento de dile-
tantes, o ambientalismo foi concebido e criado para ser
um dos mais eficientes instrumentos de intervenção po-
lítica daquela estrutura de “governo mundial”, com o
objetivo mal disfarçado de restringir o crescimento po-
pulacional e o progresso econômico dos países em de-
senvolvimento, a pretexto da proteção do meio ambiente.
Bernhard foi também o idealizador do chamado
Clube 1001, grupo que reunia altos potentados do
mundo financeiro e empresarial internacional para
financiarem o funcionamento do WWF, possibilitan-
do que se tornasse rapidamente uma das principais
ONGs ambientalistas do mundo, compondo uma es-
pécie de “Estado-Maior” no qual eram deliberadas as
diretrizes do movimento.
Em 1976, flagrado ao receber uma propina de US$ 1
milhão da empresa estadunidense Lockheed, Bernhard
foi obrigado a renunciar a todas suas as posições em-
presariais, honorárias e beneficentes, tendo passado a
presidência do WWF ao seu amigo John Loudoun, pre-
sidente do conselho de administração da megapetrolei-
ra anglo-holandesa Royal Dutch Shell.
Na verdade, Sua Alteza Real já atuava como lobis-
ta desde 1959, graças aos auspícios de seu antigo che-
fe na NW7, Max Ilgner, que agora prestava serviços
à Lockheed. Um mundo oligárquico pequeno, como
se percebe.
Todavia, não abandonou as atividades na ONG am-
bientalista. Em 1991, veio a público o famigerado Pro-
jeto Fechadura (Project Lock), com o qual os dois prín-
cipes consortes usaram recursos do WWF para contra-
tar empresas de mercenários britânicos para combater
caçadores ilegais e traficantes de marfim em parques
naturais na África.
Porém, como foi levantado pela Comissão Kumle-
ben, estabelecida em 1995 pelo então presidente sul-a-
17
fricano Nelson Mandela, os mercená-
rios não apenas infiltraram e passaram
a controlar o tráfico de marfim, mas
também utilizavam os parques natu-
rais para treinar grupos anticomunis-
tas, como a UNITA angolana e a Re-
namo moçambicana.
Embora a rede de proteção dos dois
príncipes consortes tenha assegurado
que não fossem diretamente acusados
de intenções criminosas, as reputações
de ambos ficaram manchadas, princi-
palmente, a de Bernhard.
Os vínculos nazistas do príncipe
Bernhard não constituem uma mera
curiosidade histórica. Embora pouco
conhecido fora da Holanda, onde ain-
da é uma figura controvertida, ele foi
um dos principais articuladores da
estrutura de interesses oligárquicos
transatlânticos que, nas décadas se-
guintes à II Guerra Mundial, exerceu
uma enorme influência nos aconteci-
mentos políticos e econômicos no blo-
co encabeçado pelos EUA. O ambien-
talismo político tem aí as suas raízes
e, não por acaso, a inspiração exclusi-
vista do corporativismo fascista se
mostra nas suas principais linhas de
ação antidesenvolvimentistas.
Um adendo pessoal: em 2000, a se-
ção brasileira do WWF (WWF-Brasil),
então presidida por José Roberto Ma-
rinho, vice-presidente das Organiza-
ções Globo, processou o Movimento de
Solidariedade Ibero-americana (MSIa),
considerando como caluniosas as de-
núncias apresentadas em suas publica-
ções sobre as origens oligárquicas da
ONG, inclusive, o papel de Bernhard e
suas ligações nazistas. No longo pro-
cesso judicial que se seguiu, que cul-
minou com a vitória do MSIa no Supre-
mo Tribunal de Justiça (STJ), a ficha
de contribuições do príncipe ao parti-
do, já conhecida, foi um dos elementos
relevantes da defesa. //
18 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
Investiu no verde,
vai quebrar: a “energia
limpa” é reprovada no
texte de economia básica
// RUSSIAN MARKET*
A
s outrora glorificadas ações de energia
limpa enfrentam agora os seus dias mais
sombrios, mergulhando a indústria num
abismo financeiro que ameaça as ambiciosas
aspirações ambientais dos EUA. A tão alarde-
ada revolução verde começa a se parecer mais
com um alerta vermelho, à medida que o setor
sofre uma hemorragia de dezenas de bilhões de
dólares em valores de mercado.
Claro, somos informados de que centenas
de bilhões de dólares ainda estão sendo inves-
tidos em projetos de energias renováveis, ape-
sar do fato de o mercado bursátil parecer ter
declarado um retumbante “não, obrigado” a
tais empreendimentos. O iShares Global Clean
Energy ETF (Exchange-Traded Fund), o garo-
to-propaganda da indústria, despencou mais de
30% este ano e impressionantes 50% desde o
início de 2021.
Para não ficarem para trás, setores específi-
cos estão recebendo as suas quotas partes de
punições. O Invesco Solar ETF caiu mais de
40% em 2023, enquanto o First Trust Global
Wind Energy ETF está às voltas com perdas de
cerca de 20% este ano e sombrios 40% desde
janeiro de 2021. Parece que o vento parou de
encher as suas velas.
A culpa é do aumento das taxas de juro, a
nova nêmesis da indústria. Estas taxas mais
* Russian Market é um jornalista, blogueiro financeiro e comentarista político suíço baseado em Zurique. Artigo
originalmente publicado no sítio RT, em 18 de novembro de 2023.
elevadas não só aumentaram os custos, como
também refrearam o entusiasmo dos consumi-
dores, levando a uma queda acentuada nas ava-
liações das ações de empresas que outrora pro-
metiam uma utopia verde, mas que agora lutam
para obter lucros.
Empresas de energia solar, como a SolarE-
dge e a Enphase Energy, estão a sentir o impac-
to, à medida que diminui a procura pelos seus
produtos. Entretanto, o gigante da energia eó-
lica Orsted está se lamentando, com as ações
caindo após a revelação de potenciais deprecia-
ções multibilionárias nos seus projetos eólicos
offshore nos EUA.
Na Alemanha, após a sabotagem do gasodu-
to Nord Stream – porque, como se sabe, a geo-
política energética e os planos diretos sempre
andam de mãos dadas –, uns impressionantes
77% dos céticos estão abanando as cabeças,
manifestando descrença de que a nação irá in-
vocar magicamente 80% da sua eletricidade a
partir de energias renováveis até 2030. Creio
que transformar o ceticismo em energia solar
ainda não se tornou algo corriqueiro.
A Suíça, garota-propaganda da eliminação
progressiva da energia nuclear, está agora fle-
xionando os seus músculos verdes, conside-
rando a ideia de manter as centrais nucleares
em funcionamento por mais tempo, porque,

quem precisa de uma estratégia de saída clara,
quando se pode simplesmente prolongar a fes-
ta atômica até 2040?
Já os sonhos verdes de Biden estão derreten-
do mais rapidamente do que o seu sorvete fa-
vorito ao sol. Nos EUA, o falecimento de dois
projetos eólicos em Nova Jersey é apenas a
ponta do iceberg, com a inflação, os juros altís-
simos e uma cadeia de abastecimento em ruí-
nas, colocando uma tranca nas engrenagens das
ambições climáticas de Joe. Apesar dos colos-
sais US$ 369 bilhões em ajuda federal prove-
nientes da sua lei climática (Inflation Reduction
Act), os projetos de energia limpa estão desa-
bando como moscas. Nem mesmo o adiamento
de uma fábrica de baterias para veículos elétri-
cos da Ford em Kentucky e a General Motors
reduzindo os seus planos para a construção de
automóveis elétricos, conseguiram escapar da
tempestade econômica. Parece que a única coi-
sa que cresce mais rapidamente do que as espe-
ranças de uma revolução energética limpa são
os custos. Mas, ei, quem precisa de energia
acessível e confiável, quando temos grandes
objetivos climáticos, certo? Os planos verdes
de Biden estão a tornar-se um arrepiante cho-
que de realidade, e não são apenas as calotas
polares que estão sentindo o calor.
É irônico, não? Não há muito tempo, a
energia limpa era aclamada como a salvadora
do nosso planeta, mas agora parece que a agen-
da verde está se afogando em mar de tinta ver-
melha. O índice S&P Global Energy, que já foi
uma estrela brilhante, viu o seu valor cair para
metade desde 2020 – um espetacular mergulho
na desgraça.
Avancemos para o presente, e presenciamos
as poderosas ações verdes levando uma tunda
tremenda. Apesar de os governos da União Eu-
ropeia e dos EUA oferecerem bilhões em cré-
ditos fiscais e subsídios para apoiar a chamada
transição verde do petróleo e do gás russos, os
investidores estão perdendo a confiança mais
rapidamente do que se pode dizer “renovável”.
O S&P Global Clean Energy Index registrou
uma queda livre de revirar o estômago em 2023,
nada menos que 30%, com a maior saída tri-
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 19
mestral de US$ 1,4 bilhões. O setor, outrora em
expansão, registra agora uma queda de 23% no
total de ativos sob gestão, muito longe do seu
apogeu de há apenas alguns meses.
A culpa é do atual clima econômico, dizem
– as elevadas taxas de juro, os custos crescentes
e os problemas da cadeia de abastecimento são
os vilões deste melodrama. E não esqueçamos
a China, a mestre das marionetes da cadeia de
abastecimento solar, que inunda o mercado com
alternativas baratas, minando os sonhos da UE
de um mercado verde local.
Enquanto as ações das empresas de servi-
ços públicos lutam para se converterem em
energia verde, as margens operacionais do
setor são reduzidas.
O último prego no caixão? A NextEra Ener-
gy Partners reduziu pela metade a sua meta de
crescimento, deflagrando ondas de choque em
toda a indústria das renováveis. Particular-
mente, creio que a liquidação de suas ações
tem sido exagerada, mas o estrago está feito e
a confiança nas energias renováveis atingiu o
fundo do poço.
Então, qual é a moral dessa fábula verde?
Acontece que virar verde não é apenas sobre
salvar o planeta; é um assunto caro. À medida
que as ações das energias renováveis atingem
o fundo do poço, os analistas ficam a pergun-
tar-se: será que está na hora de comprar ou o
sonho verde acabou mesmo?
Em uma reviravolta deliciosamente irônica,
Greta Thunberg está atualmente a arder no cal-
deirão das críticas por ousar apoiar Gaza. Pa-
rece que a nossa cruzada do clima está agora
enfrentando uma bonança de cultura de cance-
lamento, muito parecida com o tuíte que ela
rapidamente apagou – vocês sabem, aquele que
profetiza o Armagedom e alerta que a mudança
climática poderia simplesmente “destruir a hu-
manidade”, a menos que magicamente inter-
rompêssemos o uso de combustíveis fósseis até
o ano grandioso de 2023. Caras, a ironia é mais
densa do que a poluição atmosférica de Pequim.
Parece que nem mesmo os guerreiros verdes
conseguem escapar da realidade implacável do
mercado. //
20 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
O mundo do
“carbono zero líquido”
é impossível sem uma
economia centralizada
(além de várias impossibilidades
tecnológicas e uma drástica
queda nos níveis de vida)
// MICHAEL KELLY
N. dos E. – O artigo a seguir,
publicado no jornal inglês
The Telegraph em 11 de outubro,
é uma das melhores sínteses
disponíveis sobre a inviabilidade
dos delirantes planos de “descar-
bonização” da economia mundial
em curso, que serão intensamente
discutidos na vindoura conferên-
cia climática COP-28, em Dubai
(30/11-12/ 12/2023). Embora usem
como modelo as economias dos
EUA e do Reino Unido, as suas
considerações e conclusões se
aplicam, em geral, aos demais
países. O autor é professor emérito
de Engenharia da Universidade
de Cambridge, membro da Royal
Society, da Royal Academy of
Engineering e membro sênior do
Instituto de Engenharia Eletrônica
e Elétrica dos EUA. Em benefício
dos leitores, as unidades britânicas
foram convertidas para as usadas
no Brasil. Os subtítulos foram
acrescentados pela editoria.
I
maginem que os EUA em 2050 tenham uma
economia com emissões de carbono zero
líquidas (net zero), como prometeu o presi-
dente Joe Biden (o Reino Unido também está
comprometido com isso).
Três projetos de engenharia muito grandes,
interrelacionados e multidisciplinares precisa-
rão ser concluídos até lá. Os transportes terão
sido eletrificados. As fontes de calor industriais
e domésticas terão sido eletrificadas. O setor
elétrico – geração, transmissão e distribuição
– terá sido bastante expandido para atender aos
requisitos dos dois primeiros projetos, e terá
deixado de utilizar combustíveis fósseis.
Eu tive uma longa carreira em engenharia
industrial e acadêmica e, recentemente, me apo-
sentei como professor de Tecnologia de Enge-
nharia Elétrica na Universidade de Cambridge.
Passei algum tempo analisando a viabilidade
dessas ideias e estes são os fatos.
Atualmente, os EUA utilizam em média
8.195 quatrilhões de joules de energia todos os
meses, a maior parte da qual é fornecida pela
queima de combustíveis fósseis, seja direta-
mente para aquecimento ou transporte, ou in-
diretamente para gerar eletricidade.
 SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 21

Uma vez que um motor isolada, grande parte não.

de combustão interna con- Toda ela precisaria ser, para
verte em movimento de que nossas bombas de calor
um veículo a energia ar- funcionassem com a eficiên-
mazenada no seu combus- cia necessária. Com base em
tível, com uma eficiência um programa piloto de mo-
de cerca de 30%, enquan- dernização do Reino Unido,
to os motores elétricos o custo em escala nacional é
utilizam a energia arma- de US$ 1 trilhão para cada 15
zenada em suas baterias milhões de habitantes. Para
com uma eficiência supe- todos os EUA, portanto, o
rior a 90%, precisaremos custo chegaria a cerca de
aumentar o abastecimento US$ 20 trilhões, podendo
Michael Kelly (Daily Mail)
de eletricidade dos EUA chegar a US$ 35 trilhões.
em cerca de 25% para Aqui, devemos observar
manter os atuais níveis de que, assim como ocorre com
transporte. Suponhamos que a substituição dos os transportes, alguns tipos especializados de
atuais veículos e trens movidos a combustíveis aquecimento não podem, no momento atual,
fósseis por elétricos não custará mais do que ser feitos com eletricidade, caso, por exemplo,
gastaríamos para substituí-los de um jeito ou da produção de aço primário. Isto envolverá
de outro: isto não é verdadeiramente correto, custos extras se quisermos atingir o zero líqui-
mas a diferença é pequena em comparação com do, mas vamos ignorar este detalhe por enquan-
o resto do problema. No entanto, devo salientar to, mesmo que iremos precisar de uma enorme
que uma pequena parte da energia dos trans- quantidade de aço.
portes atuais se destina à aviação e ao transpor-
te marítimo, que são muito mais difíceis de A rede elétrica
serem eletrificados do que os transportes ter- Agora, vamos descarbonizar a rede elétrica e
restres, mas vamos ignorar isto, por enquanto. torná-la 60% maior e mais poderosa. No seu
Em seguida, precisamos eletrificar toda a conjunto, a rede elétrica dos EUA tem sido con-
geração de calor. Se este calor fosse fornecido siderada a maior máquina do mundo: 320 mil
por aquecedores elétricos comuns, precisaría- quilômetros de linhas de transmissão de alta
mos de um setor elétrico extra de tamanho igual tensão e 8,8 milhões de quilômetros de linhas
ao atual. Mas, se utilizarmos principalmente de distribuição local. Precisaremos adicionar
bombas de calor aerotérmicas e geotérmicas e mais 192 mil quilômetros de linhas de trans-
assumirmos um coeficiente de desempenho de missão, o que custará cerca de US$ 600 bilhões,
3:1 – otimista, mas não totalmente fora da rea- com base em nos custos locais.
lidade – então, precisaremos apenas de uma Os 8,8 milhões de quilômetros de linhas de
nova capacidade de rede equivalente a 35% da distribuição locais terão de ser modernizados
atual para a tarefa do fornecimento de calor. para poder suportar correntes muito mais ele-
Até agora, a rede de 2050 terá de ser mais de vadas. Nos EUA, a maioria das casas tem um
60% superior à sua dimensão atual. painel principal de disjuntores que permite a
Igualmente, precisamos trabalhar nos edifí- entrada de corrente entre 100 e 200 ampères
cios. O parque imobiliário dos EUA é constitu- (A), embora alguns novos sejam classificados
ído por quase 150 milhões de unidades habita- em 300 A. O padrão de 100 A foi estabelecido
cionais, edifícios comerciais e industriais, com há quase um século, quando a chaleira elétrica
uma área construída estimada de 34 bilhões de era o eletrodoméstico que mais consumia ele-
metros quadrados. Uma parte dele está bem tricidade. Em uma casa moderna totalmente
22 // SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023
eletrificada, alguns dos novos aparelhos con-
somem correntes bem mais elevadas: as bom-
bas de calor geotérmicas podem consumir 85
A na partida; as placas elétricas, 37 A; os car-
regadores rápidos para veículos elétricos con-
somem 46 A e até mesmo os carregadores len-
tos podem puxar 17 A, enquanto os chuveiros
elétricos consomem 46 A. A fiação local nas
ruas e os transformadores locais foram todos
dimensionados para o limite de 100 A. A maio-
ria das residências precisará de um painel de
disjuntores atualizado e pelo menos alguma
religação, e muitas fiações e subestações locais
precisarão ser ampliadas. Para o Reino Unido,
os custos destas mudanças foram estimados
detalhadamente em 1 trilhão de libras esterli-
nas, o que escalaria para a casa de US$ 6 tri-
lhões em base per capita.
Dado que 60% da atual geração elétrica é
alimentada por combustíveis fósseis, precisa-
mos fechar todas as usinas fósseis e aumentar
quatro vezes a capacidade de geração restante
não fóssil. Não há muita margem para novas
usinas hidrelétricas e, até agora, a captura de
carbono não existe fora da produção de com-
bustíveis fósseis. Usando uma mistura de ener-
gia eólica (onshore US$ 1.600/kW; offshore
US$ 6.500/kW), solar (US$ 1.000/kW no âm-
bito da concessionária) e nuclear (US$ 6.000/
kW), por si só, o custo de capital dessa tarefa
fica em torno de US$ 5 trilhões, e ainda não
lidamos com o enorme problema da intermitên-
cia das energias eólica e solar.
Até agora, chegamos a US$ 32 trilhões como
custo de fornecimento de edifícios isolados e
de geração, transmissão e distribuição de ele-
tricidade em um mundo com emissões zero
líquidas. Embora nem todos os custos sejam
lançados às famílias, este valor é da ordem de
US$ 260 mil por unidade familiar.
Agora, vamos pensar na intermitência. Por
vezes, não há vento nem luz solar e a nossa rede,
em grande parte alimentada por energias reno-
váveis, não terá energia. A atual capacidade de
armazenamento de energia hidrelétrica mante-
ria uma rede líquida zero nos EUA por algumas
horas; a atual capacidade de baterias poderia
mantê-la por alguns minutos. Com frequência,
os defensores do zero líquido sugerem simples-
mente a construção de enormes quantidades de
armazenamento de baterias, mas os custos dis-
to são colossais: 80 vezes mais que as centrais
elétricas, centenas de trilhões de dólares. E, na
verdade, isto é simplesmente fantasia, pois os
minerais necessários não estão disponíveis nas
quantidades exigidas. Se os preços subissem,
novas reservas deles tornar-se-iam econômicas
– mas os preços já são inviavelmente elevados.
Falando sem rodeios, podemos ver que uma
rede zero líquida com uma grande proporção
de energias renováveis, simplesmente, não pode
ser construída. Mas, por enquanto, vamos ig-
norar o problema do armazenamento e analisar
mais alguns números.
Mão-de-obra e materiais
A empresa de engenharia britânica Atkins es-
tima que um projeto de US$ 1 bilhão no setor
elétrico, em um período de 30 anos, necessita
de 24 ou mais engenheiros profissionais e 100
ou mais técnicos qualificados durante todo o
período. Aumentando estes números para os 12
trilhões de dólares em projetos do setor elétrico
que acabamos de descrever, precisaremos de
300 mil engenheiros eletrotécnicos profissio-
nais e 1,2 milhão de técnicos qualificados em
tempo integral, durante as três décadas até
2050, apenas nessa parte do projeto de emissões
zero líquidas. Com base no orçamento, pode-
mos esperar que o setor da modernização dos
edifícios irá necessitar de uma força de trabalho
semelhante, de cerca de três milhões de profis-
sionais. Esta é uma força de trabalho combina-
da, aproximadamente, do tamanho de todo o
setor de construção existente.
Em seguida, vamos pensar nos materiais.
Uma turbina a gás de ciclo combinado (CCGT)
de 600 megawatts (MW) precisa de 300 tone-
ladas de aços de alto desempenho. Para obter
o mesmo fornecimento contínuo de 600 MW,
precisaríamos de 360 turbinas eólicas de 5
MW cada uma, funcionando com uma efici-
ência média otimista de 33% (e ao lado dela
uma grande instalação de armazenamento de

energia, a qual estamos simplesmente ignoran-
do, pois seria impossivelmente dispendiosa).
Na verdade, uma vez que a vida útil das turbi-
nas eólicas, da ordem de 25 anos, é inferior à
metade da das turbinas CCGT, precisaríamos
de mais de 720 delas.
A massa da nacele (a turbina no topo da
torre) de uma turbina eólica de 5 MW é com-
parável à de uma CCGT. Além disto, a massa
de concreto na base de uma única CCGT é com-
parável à das fundações de cada turbina eólica
terrestre e muito menor que a de concreto e
lastro para cada aerogerador marítimo. Vamos
precisar de enormes quantidades de materiais
de alta energia, como o aço e o concreto – algo
como mil vezes mais do que necessitamos para
construir CCGTs ou centrais nucleares, e reno-
vadas com mais frequência. Esta vasta exigên-
cia irá, provavelmente, afetar os preços, tanto
dos materiais como da energia – e não de uma
forma positiva –, mas, por enquanto, vamos
apenas assumir que os custos permanecem em
níveis semelhante aos atuais.
Assim, podemos ver que as partes infraes-
truturais do projeto de emissões zero líquidas,
que são teoricamente possíveis, custariam
facilmente mais de US$ 35 trilhões e exigi-
riam uma mão-de-obra dedicada e altamente
qualificada, comparável à do setor de constru-
ção, bem como enormes quantidades de ma-
teriais. O zero líquido também exigiria várias
coisas que hoje são completamente impossí-
SOLIDARIEDADE IBERO-AMERICANA // NOVEMBRO DE 2023 // 23
veis: armazenamento escalável de energia não
fóssil, processos industriais elétricos a tem-
peraturas muito elevadas e uma eletrificação
em grande escala da aviação e do transporte
marítimo. Haveria também a questão da des-
carbonização da agricultura. Estas coisas, se
puderem ser conseguidas, multiplicariam o
custo pelo menos várias vezes, para mais de
100 trilhões de dólares.
Custo real inatingível
Portanto, o custo real das emissões zero líqui-
das ou, mais provável, de tentar e não conseguir
atingi-las, seria semelhante – ou mesmo supe-
rior – aos gastos projetados totais do governo
dos EUA até 2050. Não há probabilidade de que
esse montante de dinheiro seja desviado de ou-
tros fins, sob qualquer situação que se asseme-
lhe à economia de mercado e aos padrões de
vida normais.
A ideia de que as emissões líquidas zero po-
dem ser alcançadas com os prazos atualmente
estabelecidos, por qualquer meio que não seja
uma economia centralizada combinada com um
drástico declínio nos padrões de vida – e vários
milagres tecnológicos improváveis – é uma
falsidade flagrante. O silêncio das academias
científicas nacionais e dos órgãos profissionais
de ciência e engenharia sobre essas grandes
realidades da engenharia é abominável.
As pessoas precisam conhecer a realidade
do carbono zero. //
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