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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE LETRAS

LICENCIATURA EM LETRAS INGLÊS - LITERATURAS

JULIANA CHAIA DA SILVA

Concepções Contrastantes de Obra e Crítica de Arte

Rio de Janeiro

2023
Concepções Contrastantes de Obra e Crítica de Arte

Desde os primórdios da história da arte, as concepções de obra e de crítica


têm sido alvo de intensos debates e reflexões. Diversas correntes e movimentos
artísticos surgiram ao longo dos séculos, cada um com suas perspectivas e
abordagens particulares. Nesse contexto, destacam-se as visões defendidas pelo
neoclassicismo francês e pelo romantismo alemão, que se confrontaram em uma
polêmica intensa no século XVIII e no início do século XIX.

Neste trabalho, serão analisadas as concepções de obra e de crítica de arte


a partir dos textos de J. G. Herder e Pedro Duarte. Esses dois autores representam
vozes importantes em suas respectivas correntes, trazendo à tona diferentes visões
sobre a arte e sua avaliação. Enquanto o neoclassicismo francês defendia a
universalidade e a atemporalidade da poesia, o romantismo alemão questionava
essas ideias, valorizando a historicidade e a individualidade artística.

No centro desse debate encontra-se a polêmica herderiana. J. G. Herder, em


seu texto sobre Shakespeare, não apenas defende o grande dramaturgo
elisabetano, mas também lança ataques às concepções de poesia defendidas pelo
neoclassicismo francês. Ele propõe uma reavaliação do sentido da tragédia grega e
da Poética de Aristóteles, destacando a importância da historicidade do texto
literário. Essa polêmica não se restringe apenas a Herder, agitando o século XVIII e
o começo do XIX, mas também influenciou as concepções de literatura até os dias
atuais. Além disso, neste trabalho, analisaremos a obra "A obra-prima ignorada" de
Balzac e sua relevância no contexto das concepções discutidas.

As concepções de obra e de crítica de arte defendidas pelo neoclassicismo


francês e pelo romantismo alemão, que partem de uma obra central: a 'Poética', de
Aristóteles, extraíram interpretações completamente diferentes da obra aristotélica.
O neoclassicismo francês, ao destacar sua visão de universalidade e
atemporalidade da poesia, interpretou a 'Poética' de maneira prescritiva e literal. Os
neoclássicos franceses consideravam o teatro grego como o pináculo da arte e,
levando ao pé da letra as regras estabelecidas por Aristóteles, buscavam seguir
suas prescrições para criar obras perfeitas. Por outro lado, o romantismo alemão
questionou essa abordagem, argumentando que os neoclassicistas erraram ao ler a
'Poética' de forma prescritiva, ignorando o verdadeiro sentido da obra aristotélica: a
procura do efeito suscitado pela arte, como a catarse. Os romantistas alemães
valorizavam a historicidade e a individualidade artística, buscando uma conexão
emocional profunda com o público.

A partir das divergentes interpretações do neoclassicismo francês e do


romantismo alemão sobre a 'Poética' de Aristóteles, surgem questionamentos
fundamentais sobre o que realmente constitui a essência da arte e como a crítica de
arte se relaciona com essa essência. Nesse contexto, os escritores J. G. Herder e
Pedro Duarte apresentam suas perspectivas únicas sobre o tema
Pedro Duarte, em seu texto 'O Nascimento da Crítica de Arte', apresenta uma
concepção singular de obra de arte e crítica de arte que vai além das visões
tradicionais do neoclassicismo francês. Ele propõe uma abordagem em que a crítica
é vista como um desdobramento da própria obra, como um reflexo e uma extensão
da sua essência.

Para Duarte, a obra de arte é compreendida como uma manifestação singular


e histórica, que busca transmitir um essencial que ele chama de 'espírito', em linha
com as ideias de Kant. Ela não pode ser reduzida a regras fixas e prescritivas, mas
é uma expressão livre e criativa, capaz de transcender as convenções impostas. A
obra é considerada incompleta em si mesma, e é nesse ponto que a crítica adquire
um papel fundamental.

Duarte enfatiza que a crítica de arte não deve ser entendida como uma
imposição de juízos ou regras externas à obra, mas sim como uma reflexão
profunda e filosófica que emerge a partir dela. A crítica, nesse sentido, não busca
impor um ponto de vista pessoal ou subjetivo, mas procura entender e revelar as
camadas de significado presentes na obra. Ela se torna um meio de conectar a obra
finita ao âmbito infinito da arte, dissolvendo-a no absoluto da arte.

Dessa forma, a crítica é concebida como parte integrante da esfera da arte,


uma continuação da própria obra. Ela desempenha o papel de tentar completar a
obra, estabelecendo um diálogo entre a obra finita e o âmbito superior da arte,
mesmo que essa completude seja um ideal inatingível. Assim, a crítica, na visão de
Duarte, não busca julgar ou impor normas, mas sim explorar a obra em sua
totalidade, permitindo que ela conheça a si mesma por meio da reflexão.

Johann Gottfried Herder, em seu trabalho apaixonado e eloquente, traz uma


perspectiva completamente distinta em relação ao neoclassicismo francês. Para
Herder, a abordagem neoclássica de simplesmente copiar o teatro grego, sem
entender a essência que o alimentava, era uma tentativa vazia de replicar algo que
não podia ser verdadeiramente compreendido. Ele argumenta que o teatro grego
surgiu em um contexto histórico específico e, portanto, só pôde existir da maneira
como existiu devido a essa conexão profunda com seu ambiente cultural e social.
Herder compara essa relação entre a obra de arte e seu contexto a uma semente,
onde o invólucro externo representa o contexto histórico e a essência interna é o
conteúdo único e vital da obra. Assim como uma planta não pode germinar sem a
combinação de semente e solo, a obra de arte só ganha vida plena quando suas
características internas são nutridas pelo contexto histórico em que ela surge.

Herder encontra em Shakespeare um exemplo notável de um gênio artístico


que conseguiu criar algo verdadeiramente único, em sintonia com seu contexto
histórico e cultural. Ele expressa seu profundo apreço pelo dramaturgo inglês, quase
divinizando-o, ao afirmar que cada peça de Shakespeare é atravessada por uma
"alma do mundo", uma sensação principal única que domina e dá vida a toda a
obra. Essa visão está intrinsecamente ligada à ideia romântica de que a arte tem o
poder de produzir uma catarse emocional, proporcionando uma conexão profunda
com os espectadores.

Ao enfatizar a importância do tempo e do espaço, Herder destaca que esses


elementos não podem ser separados da obra de arte. Ele reconhece a influência do
tempo e do contexto histórico na formação da arte, enfatizando que cada obra é um
produto de seu tempo e lugar. Além disso, Herder ressalta a importância da
interpretação individual e subjetiva da arte, afirmando que a crítica de arte deve ser
uma experiência pessoal e reflexiva, em vez de uma imposição de juízos ou regras
pré-estabelecidas.

Dessa forma, as concepções de obra de arte e crítica de arte de Herder são


profundamente influenciadas por sua crença na conexão intrínseca entre a obra e
seu contexto histórico, valorizando a originalidade, a emotividade e a individualidade
artística. Para ele, a verdadeira arte não pode ser reduzida a uma mera imitação ou
conformidade com regras predefinidas, mas sim emerge como uma expressão
autêntica e viva da essência humana.

As concepções de Duarte e de Herder e as discussões entre neoclassicismo


e romantismo tiveram um impacto duradouro nas nossas concepções
contemporâneas de obra de arte e crítica de arte. A valorização da historicidade, da
individualidade artística e da liberdade interpretativa influenciaram as abordagens
atuais na análise e interpretação das obras de arte. Além disso, a polêmica
herderiana contribuiu para a compreensão da literatura como um regime moderno
de circulação de textos, trazendo à tona os paradoxos e impasses enfrentados pelo
olhar crítico-avaliativo. Essas influências continuam a moldar nossas perspectivas e
debates sobre a arte, estimulando reflexões sobre a relação entre contexto histórico,
expressão individual e interpretação subjetiva na apreciação das obras de arte.

Agora, ao nos voltarmos para a obra "A obra-prima ignorada" de Balzac,


podemos estabelecer conexões com as concepções discutidas anteriormente.
Nessa novela, somos convidados a explorar um jogo complexo de valores sociais e
atribuições artísticas, desafiando as convenções estabelecidas e as expectativas do
mundo da arte. Em seu cerne, encontramos a figura fascinante e enigmática de
Gillette, amante do pintor Poussin, que desperta a atenção e a admiração de
Porbus, que ousa afirmar: "Veja, não vale ela todas as obras-primas do mundo?".
Essa citação instiga a refletir sobre a relevância de Gillette e sua possível condição
de obra-prima, estabelecendo uma ligação crucial entre convenções sociais, arte e
representação da realidade na literatura.
A atribuição da condição de obra-prima a Gillette por Porbus lança luz sobre
uma série de questões mais amplas. O que define uma obra-prima? Será que a
beleza e o valor de uma obra de arte são resultados apenas de convenções
estéticas estabelecidas pela sociedade? Ou existe algo intrínseco a certos
indivíduos que os torna verdadeiras obras-primas vivas? Essas são questões que
permeiam a análise da figura de Gillette e sua relevância na obra de Balzac.

Ao explorar a citação de Porbus e sua implicação na análise de Gillette,


desvendamos as camadas de significado que envolvem a atribuição de obra-prima a
essa mulher. Consideramos o contexto social, as mudanças de valores e as
possibilidades atribuídas à arte na sociedade retratada por Balzac. Além disso,
dialogamos com as reflexões de Erich Auerbach em seu capítulo "Na mansão de La
Mole" de "Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental",
aprofundando nossa compreensão sobre a representação séria da vida cotidiana no
realismo do século XIX.

No contexto do realismo do século XIX, a obra "A obra-prima ignorada" de


Balzac oferece uma visão autêntica da sociedade e dos indivíduos, refletindo as
transformações sociais e estéticas da época. A figura de Gillette desempenha um
papel central e complexo na obra. Ela é retratada como a amante do pintor Poussin
e desperta a atenção de Porbus, que a considera uma verdadeira obra-prima. Essa
atribuição simbólica por Porbus desafia as convenções estabelecidas e questiona a
ideia tradicional de que apenas as obras de arte convencionais podem ser
consideradas obras-primas. Por meio dessa atribuição, Balzac nos convida a refletir
sobre o conceito de arte e o valor subjetivo atribuído a pessoas e objetos. Essa
atribuição também está conectada às mudanças de valores e estamentos sociais
presentes na sociedade retratada, desafiando as convenções estabelecidas e
abrindo novas possibilidades de valorização.

Ao comparar "A obra-prima ignorada" de Balzac com as obras mencionadas


por Auerbach no capítulo "Na mansão de La Mole", como "O vermelho e o negro" de
Stendhal, "Madame Bovary" de Flaubert e "O pai Goriot" de Balzac, podemos
identificar diversas conexões e elementos comuns que permeiam essas obras
realistas do século XIX. Elas exploram a representação da sociedade burguesa, os
valores e as complexidades das relações humanas. Embora cada obra tenha sua
abordagem específica e nuances próprias, todas compartilham a busca por uma
representação autêntica da vida cotidiana, revelando a fragilidade das convenções
sociais e a complexidade das motivações humanas.

Em suma, ao longo deste trabalho, exploramos a figura de Gillette na novela


"A obra-prima ignorada" de Balzac, examinando sua importância e seu papel na
trama, assim como a atribuição da condição de obra-prima por Porbus e seu
significado simbólico. Estabelecemos conexões com as obras mencionadas por
Auerbach, analisando elementos como a representação da sociedade burguesa,
valores e relações humanas. A figura de Gillette revela-se uma peça central e
intrigante dentro do contexto da novela, desafiando as convenções estabelecidas e
refletindo as mudanças de valores e estamentos sociais. No contexto do realismo do
século XIX, essas obras nos convidam a questionar valores preestabelecidos e a
explorar as complexidades e contradições da existência humana, proporcionando
insights profundos sobre a natureza humana e a sociedade.

Ao longo desta análise, exploramos as concepções contrastantes de obra e


crítica de arte apresentadas pelos neoclássicos franceses e pelos românticos
alemães, representados pelos textos de J. G. Herder e Pedro Duarte. A polêmica
herderiana em relação à interpretação da "Poética" de Aristóteles desempenhou um
papel fundamental nesse debate, levantando questões essenciais sobre a natureza
da arte e o papel da crítica. Enquanto o neoclassicismo francês valorizava a
universalidade e a atemporalidade da poesia, interpretando a "Poética" de maneira
prescritiva e literal, o romantismo alemão enfatizava a historicidade e a
individualidade artística, buscando uma conexão emocional profunda com o público.
Pedro Duarte propôs uma concepção singular de crítica de arte, enxergando-a como
uma extensão da obra em si, uma reflexão filosófica que busca revelar suas
camadas de significado. Já J. G. Herder enfatizou a importância da relação entre a
obra e seu contexto histórico, valorizando a originalidade e a emotividade artísticas.

Essas discussões não apenas influenciaram as concepções contemporâneas


de obra de arte e crítica de arte, mas também contribuíram para a compreensão da
literatura como um regime moderno de circulação de textos. A polêmica herderiana
trouxe à tona os paradoxos e impasses enfrentados pela crítica avaliativa,
evidenciando a importância de compreender as múltiplas perspectivas e a
historicidade das obras e da crítica de arte.

Além disso, ao estabelecer conexões com a novela "A obra-prima ignorada"


de Balzac, percebemos a relevância dessas discussões para o contexto do realismo
do século XIX. A atribuição simbólica de obra-prima a Gillette desafia as
convenções estabelecidas e questiona a noção tradicional de valor estético,
levantando questões sobre a definição de uma verdadeira obra-prima e o papel das
convenções sociais na apreciação artística. Através da representação autêntica da
vida cotidiana, Balzac e outros autores realistas exploraram a fragilidade das
convenções sociais e a complexidade das motivações humanas, proporcionando
uma visão profunda da natureza humana e da sociedade.

Em resumo, as concepções de obra e crítica de arte discutidas neste


trabalho, juntamente com a polêmica herderiana e a análise da novela de Balzac,
nos levam a refletir sobre a importância de compreender as múltiplas perspectivas,
a historicidade das obras e da crítica de arte, bem como os desafios enfrentados
pela crítica avaliativa. Essas discussões continuam a influenciar nossas
perspectivas e debates contemporâneos sobre a arte, incentivando-nos a explorar a
riqueza e a complexidade das obras de arte em suas diversas manifestações.

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