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Arte Sumário, Concepção habitual de arte em política cultural; arte como fato estético e como

fato ou valor cultural; arte utilitária (arte como commodity) e filistinismo; apreciação artística;
crítica e estética.

Termos relacionados: arte-ação, artes comunitárias, cultura, componente destrutivo.

Embora de modo implícito, habitualmente as políticas culturais tendem a considerar como arte
(ou, em todo caso, como a arte que lhes interessa fomentar) apenas aquelas manifestações
que promovem uma certa idéia de civilização, que contribuem para o aprimoramento da
cultura como um todo e das relações interindividuais e sociais em particular, segundo um
determinado sistema de valores preestabelecido (socialismo, capitalismo, nacional-socialismo,
populismo, cristianismo, islamismo, etc.). O conceito de arte-ação, exposto por Mário de
Andrade, aponta nesse sentido ao recusar a "arte gratuita", a arte que tem a "preocupação
exclusiva com a beleza". Contra esses modos artísticos, a proposta da arte-ação defendia uma
arte baseada no "princípio da utilidade como cânone absoluto de nossa estética", uma arte
que não recusasse sacrificar "as nossas [do artista] liberdades, as nossas veleidades e
pretensõezinhas pessoais", que reconhecesse o contexto histórico como elemento de
produção, que - no caso do Brasil - recusasse o "folclore pelo folclore" e o modificasse com as
proposições da arte erudita, uma arte que não se isolasse dos modos universais mas não os
aplicasse de modo mecânico e servil. Em resumo, uma "arte de mãos sujas, uma arte
comprometida com seu tempo, que não recusasse servir-se de tudo que lhe pudesse ser útil
como instrumento de afirmação cultural". Em princípio e em geral, essa é a arte que interessa
às políticas culturais, em particular às apoiadas e subvencionadas pelo Estado.

Esta concepção encontra fortes oposições. Hannah Arendt, por exemplo, é das que não
aceitam a idéia de que a arte possa ter outra finalidade que não ela mesma. Quando uma obra
de arte é vista como meio para alcançar-se outro fim, observa a filósofa, a natureza mesma do
que é arte está sendo alterada e perdida - mesmo quando o objetivo for educacional ou de
aperfeiçoamento pessoal". Uma vez aceita a possibilidade de fins segundos para a arte, a rigor
nada existe que possa estabelecer uma diferença de nível entre o ato de recorrer a uma
pintura para conhecer-se uma época histórica qualquer e o ato de usar a mesma pintura para
esconder-se um buraco na parede. Tudo está bem, aceita Arendt, quando se tem consciência
de que esse uso da arte não constitui a relação privilegiada que com ela se pode estabelecer. O
problema é que essa consciência nem sempre se manifesta. O uso da arte como meio ou
mediação caracteriza, observa Arendt, o filistinismo, palavra de que se serviram
historicamente os artistas, a partir do século XVIII, para criticar uma sociedade que começava a
valorizar apenas o que tivesse valor material e procurava para tudo uma utilidade - o que
excluía a arte da ordem das coisas importantes e necessárias. Presente na Bíblia (onde indica o
inimigo em número superior em cujas mãos se pode cair a qualquer instante), o termo
filistinismo fazia parte da gíria de estudantes alemães do século XVIII que a ele recorriam para
estabelecer uma distinção entre a imagem que tinham de si mesmos e a representação que
faziam da burguesia da época. Clemens von Brentano foi provavelmente o primeiro a utilizá-lo
como conceito para designar um estado de espírito que tudo julga em termos de utilidade
imediata e de valores materiais, e que portanto não se interessa por objetos e ocupações
(ditas inúteis) como os que se relacionam com as esferas não apenas da arte como também da
natureza. Se o movimento ecológico alterou de algum modo as relações entre homem e
natureza, falta ainda outro que possa fazer o mesmo, neste final de século XX, com as relações
entro o homem e a arte.
Aquilo que, na expressão de André Malraux, se perde quando a arte é posta a serviço de uma
ficção qualquer entendida como valor cultural, o que fica de fora quando se convoca a arte
para promover esta ou aquela idéia de civilização, e seu valor de arte como arte. Em outras
palavras, quando a arte se transforma em veículo de valores culturais, sejam quais forem,
perde seu valor de uso e assume um valor de troca, como qualquer outra coisa ou bem (hoje
se diz commodity) com trânsito no circuito social.

A idéia de que a arte é freqüentemente chamada a promover determinados valores culturais,


e recusada quando não o faz, transparece em exemplos como o da exposição de fotos
homoeróticas de Robert Mapplethorpe nos EUA, que deu origem não só a mais um debate
sobre as distinções eventuais entre arte e pornografia ia como também a um movimento
parlamentar naquele país visando, de imediato, impedir que recursos públicos sejam
destinados ao apoio de artes julgadas inconvenientes e, a prazo médio, diminuir a presença do
Estado no apoio às artes em geral. O fato é que não raro existe um choque direto entre o
entendimento que as políticas culturais têm da arte e o entendimento que de arte têm os
próprios artistas, e que é aquele segundo o qual a arte não existe e não serve ara civilizar ou
"salvar as aparências" mas para permitir que tudo possa ser visto sob todos os aspectos,
inclusive em seu estado bruto - e não apenas em seu estado bruto como, se for o caso, em seu
estado brutal, desenfreado, anticivilizado, contraditório.

Praticamente as mesmas questões estão presentes quando se trata de discutir a natureza da


apreciação artística promovida pelas políticas culturais. Seria possível dizer que também na
apreciação artística existiria um componente relacionado com o ato de cultivar o gosto
segundo os objetivos condenados por Hannah Arendt. Inversamente, há argumentos no
sentido de mostrar que isso não é tanto um componente propriamente dito da apreciação
artística quanto um resultado do fato de ser alguém capaz de falar sobre arte com
conhecimento de causa. A apreciação artística desenvolveu-se a partir da Crítica e da Estética
ao longo da segunda metade do século XIX. E foi usada não apenas "desinteressadamente"
para a compreensão em si da arte pelos próprios artistas, filósofos e outros estudiosos mas
também pela burguesia emergente, como instrumento capaz de permitir a diferenciação entre
o que era "má arte" e "boa arte" quando a questão ora tomar decisões sobre a oportunidade
de fazer determinado investimento econômico em arte. E logo se revelou, ainda, instrumento
de "formação espiritual" dos jovens em geral - e das mulheres em particular. Mas a noção de
apreciação artística não ficou marcada por esse enfoque instrumentalista. Como crítica de
arte, a apreciação artística, lembra Robert Saunders, é um desenvolvimento da Renascença
italiana e teve um ponto de partida no momento em que os artistas e intelectuais começaram
a fazer comparações entre um artista e outro para saber qual o melhor. Numa linha paralela,
nessa mesma época iniciava-se o que hoje se conhece como História da Arte. Como Estética, a
apreciação artística data do Iluminismo, quando tudo se transformou em objeto de estudo
científico, passível de repertoriação em manuais e enciclopédias. A origem do termo é o título
de um livro de Alexander Baumgarten (1750). "Estética" vem do grego aisthetikos, que significa
recepção ou conhecimento pelos sentidos, em oposição a recepção ou conhecimento pelo
intelecto. Quando uma política cultural promove determinada forma de arte como valor
cultural ou idéia civilizatória, diz-se que esse procedimento é mais propriamente intelectual
(ou simbólico, sujeito às lógicas, à argumentação racional, na definição de Charles S. Peirce) do
que estético (ou icônico, próprio da intuição, da emoção e da sensação, ainda nos termos da
semiótica peirceana), o que daria motivos para denominá-lo de secundário em relação ao
procedimento artístico propriamente dito. De todo modo, é pelo desenvolvimento da
capacidade crítica, entendida como faculdade de distinguir entre uma coisa e outra, e da
reflexão sobre a natureza e possibilidades da arte (estética) que se estimula a apreciação
artística, a apreciação da arte entendida como arte e não apenas como valor cultural.

Referências: Arendt, Hannah. La crise de la culture. Paris, Gallimard, s.d. Malraux, André. Le
musée imaginaire. Paris, Gallimard, s.d. Peirce, Ch. S. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1987.
Saunders, Robert. Art history as a fiction. Long Island Arts Teachers Association Conference,
1988. Mimeog

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