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Colação

HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA

Coordenoçõ.o
Eliana de freitas Dutra

Reinhart Koselleck
Christian Meier
Horst Günther
Odilo Engels

O conceito de História

Tradução
René E. Gertz

Revisão técnica
Sérgio da Mata

autêntica
.<".::/\). /·>

f{,ii'{fil~!iir:~~~i11~~t1i t:°"'hha
nd1
NOTA DO TRADUTOR
ung

René E. Gertz'
;.}~·OO.~ó[Ni~j}<lA· coJÇiO ~lirô.~IA r uisroR:oowlA CAPA
·.-._·.-·Éliiini/de· tri1itas Outra Teco de Souza
<\1fulÔÔRiG~·l<\l (Sobre imagem de Chaosdna)
.Gesçhfchte, Historie D!AGR.AMAÇ"ÃO
TAAOVÇÃO Conrado Esteves Este livro apresenta a tradução do verbete "Geschícl1te, Historie"
René f. Gertz flfViSAO
da obra Geschichtliclie Grundbegriffe: hístorisches Lexikon z11r politisch-
REVISÃO T~(l;KA f DE TAADUÇAO Dila Bragança de Mendonça
Sérgio da Mata EOITOM R.ESf'ONSÁVH
sozialen Sprache í11 Dwtschland, editado por Otto Bnmner, \Verner
Rejane Dias Conze e Reinhart Koselleck, e publicado pela editora Klett-Cotta,
de Stuttgatt/Alemanha, em 1975 (volume 2, p. 593-7'17). Na ie-
.produção dos nomes próprios da Antiguidade e da Idade Média,.
Revixido conforme o Ar.órdo Ortog(áf1co d3 llngua f>ortugwm de 1990
em vigor no Brasil desde !ane:fo de 2009. ' fez-se um aportnguesamento na medida em que se constatou que
T~dos os dir~itós rese~ados pela Aut~ntka_ Ed,~ora, ~enhuma parte des!a public.a,oo poder ã m rEpfOdui:ida. essa versão é corrente entre historiadores de fala portuguesa espe-
s Ja por meios mec.'.lrncos, eletrõ-nkos, seJa via cóp1a xerogrMica, si:m a autoriw;:io prévia da Editota. cializados no respectivo tema. Quaudo não foi possível encontrar
referências a mna versão aportuguesada, os nomes foram mantidos
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Belo Horizonte na fonna em que se encontram no original alemão. Nas referências
São Paulo
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bibliográfica é diferente do brasileiro, não citando, via de regra, as
editoras que publicaram os respectivos textos, restringindo-se ao
Dados Internacionais de Cataloga~ão na Publicação (CIP) local de edição. Também não foi possível sanar essa lacuna.
(Câmara arasllelra do Livro, SP, Brasil.)
Duas pessoas foram fundamentais na realização desta tradu-
O conceito de História/ Reinhart Kosel!eck ... [et af.J; traduç<fo René ção: Temístocles Américo Corrêa Cezar (UFRGS) e Sérgio da
E. ~ertz. •· Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013 ... (Co/eçJo História
e H1storiografla, 10} Mata (UFOP). O primeiro por ter insistido durante anos para que
Outros autores; Christian Meier, Horst GUnther, Odifo Engels
a tradução fosse feita; o.segundo, por ter feito uma minuciosa e
Título original: Geschkhte, historie, enriquecedora revisão. Se o texto na versão aqui apresentada possui
ISBN 978•85·8217-150-9 algum mérito, ambos são corresponsáveis. Pelos erros, o tradutor,
1. Conceitos 2. História· Filosofia 3. História. Teoria 1. KoseHeck evidentemente, responde sozinho.
Reinhart.11. Meier, Christian. Ht GOnther, Horst. IV, Engels, Odilo. V. Série'.

13·06383 CDD-901 R.tiri Cetl? é doutor (m Ciência Poli!ka pela Freie Univeuitat fürlin (1980), onde umb~m fez
cnágio de p6s-doutorado (1995), Profusor-litular ni Pontifkia Univeniidade C:itólin do R.io
fndices para catálogo s.lsteíOOtico: Grande do Sul (PUCRS) e prof,mor~.is.sodado (apw:ntado) da UFRGS, é organizador e tr:iclutór
1. História: Filosofia 901 dos volumes A mwa hltf()1/ogr,:ifia aftm3 (UPRGS, 1987), Max Wtbtr & Karl MMx (Hucitec, 1997)
e Hrstorfogmjfo r1len1J p6s•11mro: ~ptriblda1 e pwpu/1'1•as (UPF/EOUNISC, 2:007).
SUMÁRIO

Prefácio
Arthur Aflaix Assis
Sérgio da Mala............................................................................... 9
O CONCEITO OE li!STÓRIA
1. Introdução ..................................................... ,............................ 37
li. Antiguidade........................................................................... 41
1. Terminologia......................................................................... 41
2. Conceito de historia e concepções de "História".............. 49
111. Compreensão do conceito na Idade Média........................ 63
1. Sobre o significado das palavras
"historia" e u,as gestau ............ ,.......................................... ,. 63
2. A escrita da História, sua classificação e
o horizonte em que ela é experimentada....................... 66
3. Lugar e função da Historie na rede do saber................... 80
IV. Pensamento histórico no início da Idade Moderna............. 85
1. Pressupostos ........................................................................ 85
2. Dante e o Humanismo ....................................................... 88
3. O século XVI ....................................................................... 92
4. O desafio da novo ciência ............................................... 101
5. A respeito da alteração no topos
de "Historia" e "Geschichte".............................................. 109
V. A configuração do moderno conceito de História............... 119
1. O percurso histórico do termo................................................... 119
2. "A História" como Filosofia da História ............................ · 135
3. A "História" se define como conceito................................ 165
VI. "História" como conceito mestre moderno 185 PREFÁCIO
l. Funções sociais e políticos do conceito d~
História ..... .. 185
2. Relatividade histórica e temporalidade ........................... . 191 O conceito de história e o lugar
3. A lrrupçã~ do distanciamento entre experiência dos Geschichtliche Grundbegriffe
e expectativa .......................................... , 202
4. "História" entre ideologia e crítica da ·id~~j~;i~::::::::::::
na história da história dos conceitos'
209
VII. Perspectiva ........................................... .................................... ,, 223 Artl111r Alfaix Assis
Sbgio da Mata
VII. Referências ............................................., ......................... ,,,,,,,,.,
227

O profundo processo de reconfiguração vivido pela história dos


conceitos a partir de meados do século XX foi motivado, em larga
medida, pelo desejo daqueles que a ela se dedicavam de construir
uma alternativa à antiga lústória das ideias. Meio século depois de
iniciados os primeiros grandes empreendimentos na Alemanha, não
há quem ignore a grandiosidade dos resultados obtidos e a virtual
globalização desse gênero de pesquisa histórica e de historiografia.
Chega-se, assim, co1no é natural, ao motnento em que são produ-
zidos os primeiros retratos retrospectivos, os primeiros esboços de
um gênero que, na ausência de melhor palavra, se poderia chamar
"história da história dos conceitos". De modo algo embaraçoso,
porém, a história da história dos conceitos talvez esteja condenada
a se colocar muito mais nas proximidades da história das ideias e dos
intelectuais que da disciplina que toma por objeto. Ela deve situar
e reconstruir trajetórias individuais, constelações intelectuais e um

Os auwre~ deste prefácio, bem como o tudutor, gos1afiam de expressar sua. g_r;i.tidão para com
o Pruf. TemístoclcsAmêrlco Corrêa Cezar (UFRGS) e a Pwfa, Eliana Regin:i cle Freíus Dutn.
(UFMG) pelo entudasmo com que incentivaram e abrn,çaum, desde o intéio, a realizaçio
deste projeto editorfal.
A,thur Alfaix Assis é doutor pela Uuivrnidade de Witten (2009) e professor de Teoria e Meto-
dôlôgh da Hht6rb na Universidade de Busllla, Especiafü1a em Teoria dJ. his16ria e História do
penumento hi~tótíco, com ênf;ue em temu e autores alem.les do século XIX, p11blkou, entre
outros, A tto1ir1 da Msr6rla dejdm Rfum: 1111-1,1 f11trcd11{ão (Ed. UFG, 20!0) e Wlw lf HMlfy for?
jcham1 G111/av Droy1w a11d 1J1c F11nt/Í{!m of Histo,iog,apliy (Berghahn, no prelo).
Sir,gfo dr1 Mr11adouto1ou-se em história pela Univers1tat zu Ki.iln c1u 2002. Professor de Teoria
e MetodolosJa da Hinória na Univeuidade Federal de Ouro Preto (UFOP), foi pesquindor
convid\l.do do Instituto Max Weber pau Ciênciaida Cultura e CiênciJS Sociais da Univorsifü
Erfurt (2008) e bolsista da Fundaç~o Alex:mder von Hlm1boldt (2009-2010), É ;1.u1or dos llvws
Clràt'.1 de Dws (Whsen~ch1ftllche Verias Berlio, 2002), Hi$t6ri11 & ulijlifo (Autêntica, 2010) e
AjaJd11i1fJô 1~·tbe,Ja1111 (Fino Tnço, 2013),

9
Pf.EFÁOO

'\joW>'altàrnente complexo de interconexões disciplinares, teóricas "Geschic/ite, Historie" - é este o título original do verbete que ora
\'·e faésmo políticas. Numa palavra: o aparato teórico-metodológico se apresenta pela primeira vez, em sua extensão integral, ao leitor bra-
·.'."e os problemas perseguidos pela história da história dos conceitos sileiro. Trata-se dos dois termos alemães que equivalem à palavra por-
·. não se confundem com os da história dos conceitos. Se uma per- tuguesa "história". E é precisamente uma excelente hist6ria do con-
segue as mutações de termos e significados em sua relação com 0 ceito de história o que o conjunto dos textos dos quatro autores nos
invólucro sociocultural, a outra se ocupa com os atores sociais e oferece. O seu fio condutor é a transformação que prepara a rede de
suas respectivas ideias e práticas científicas, assim como os grupos significados caracteóstica da moderna utilização desse termo. A palavra
e instituições em torno dos quais se organizatn. Se numa o sujeito história, cujo pdmeiro registro conhecido remonta a Heródoto, no
eventualmente não é personagem principal, na outra ele faz toda a século V a.C., é um patdmônio de diferentes culturas ocidentais,
diferença. Se uma ainda não logrou estabelecer um amplo consenso que há quase 2.500 anos é cultivado, expandido e ressig,tificado.
a respeito do que é o seu objeto, na outra tal dificuldade nem sequer O verbete acompanha de perto essa longa trajetória, analisando os
se apresenta. Caso seja verdade que todo confronto com O próprio usos do termo e as concepções de história vigentes na Antiguidade
passado traz consigo um ganho de reflexividade, o lento surgimento clássica, os reammjos semânticos decorrentes da absorção do termo
de uma Geschichte der Begriffigeschicl,te poderá sig,úficar um ganho no hodzonte cultural cristão, os diferentes gêneros historiográficos
substancial não apenas para a história das ideias e da historiografia, medievais, as reconfigurações do pensamento histórico sob os influ-
devendo se estender à própria Begrifftgeschichte, xos do Renascimento e da Reforma, entre diversos outros temas.
O argumento conflui para um exame da gestação do moderno
1, conceito de hist6ria, o que se teria dado entre 1750 e 1850, perio-
do que Koselleck já havia caracte1izado como a Sattel-Zeít, a era da
Ao contrário do que nuiitas vezes acontece com o estudo passagem.' Por essa altura, Iluminismo, ascensão social da burguesia e
de manuscritos antigos e medievais, na interpretação histórica de industtialização se combinam para, a partir do espaço cultural alemão,
textos contemporâneos as questões relativas à atdbtúção de auto1ia estimular uma alteração sem precedentes no significado dos diversos
costumam ser ponto pacífico. Mas esse não é exatamente O caso do conceitos políticos fundamentais a partir dos quais se orgarúz.wa a
texto que queremos aqui apresentar. Formalmente falando, trata-se experiência no mundo ocidental.2 Dessas transformações histódcas
de um verbete de obra de referência. Cada uma das suas quatro não escapa o próprio conceito de história. Antes utilizado predonú-
grandes seções possui um autor individual: Christian Meier (1929), nantcmente ou na forma plural ("as histórias") ou como indicador
especialista em culturas políticas da Antiguidade clássica; Odilo En-
gels (1?28-~012), medievalista especializado em históda da Espanha 1 KOSELLECK, Roinhart. Ri,hdinlen filr das Lexikon poiitis,h-sozialer Degrilfe der Neuz.eit.
e na dinastia dos Hohenstaufen; Horst Günther (1945), filósofo e Ar,Mvjilt Bf,_~r!ffigmhlchre, vol. H, p. 88-99, 1967 (dt. p. 82). No Brasil e ém outros pahes,
difundiu->e a 1raduçfo nada evocativa "tempo de seb", De fato, Smd 5ignifo:a literalmente "~ela",
conhecedor das modernas teodas políticas e filosofias da história; nus O termo cunhado por Kosellec:k tambêm.se associa a Berguittel, que se podetla ir-aduzir por
além de Reinhart Koselleck (1923-2006), historiador que se dedi- "passo de mont~oha.", "colo", "porto" ou "porteb". Trata-se justamenu: de \una palavn que
remete ao terreno, em regifo montanhosa, lituado entte <lua, elev.içõeie que serve de pam.gcm de
co~ ~o estu~o da trajetória dos conceitos formadores da linguagem uma à outra, O pr6prio Kosel!cck csclate<:e o signifindo do termo, ao mesmo tempo que cham;i
poht1co-soc1al moderna e contemporânea. Ao "usuádo" do texto a atenção pua as su:n limit:i.ções enquanto com::eito organizador ~a interpret11.ção,hist6rka do
mundo moderno. Cf: R.einhHt Kosel/eck,Javiet Fernindez Sebast1an &Juan Francmo Fuentes.
resta decidir se este verbete deve ser referenciado como um único Entrevista com Relnhart Kosclleck. ln:JASM(N, Marctlo; FBRESJR.,João (Orgs.), HlsiJri11
trabalho escdto por quatro autores, ou se, antes, cada uma das suas &a tonul/os: dtbilfeJ e perspu1i11as. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, p. 135-169 (dt. p. 102),
l KOSELLECK, Reinhut. F111t1Mpamdo. Co1uribuiçãoà semântka do~ tempos hln6rkos. Rio
partes deve contar como uma entrada individual. de Janeiro: Conuapomo; Bd. PUC-Rio, 2006, p. lOt.

10 11
0 CONCffiO OE HmóUA PH.FÁCIO

de relatos particulares, o termo história ganha,. à luz da experiência de história e a prática da historiografia passaram por transformações
moderna, um grau de abstração e generalidade tão elevado que passa fundamentais entre o final do século XVIIJ e a primeira metade do
a ser capaz de se refedr a todas as histótias particulares possíveis. século XIX. Na verdade, nos anos 1820, Hegel, na introdução à
Em consequência disso, na variante alemã do moderno conceito sua Filosofia da hist6ria, já falava na então contemporânea transição
de histótia passa a predominar a fonna singular Gesd,ichte em lugar da "história refletida" para a "história universal filosófica", cujo
da flexão plural díe Geschichte(n). É a tal circunstância que se refere fundador seria ele próprio. 5 No influente Manual do müodo híst6rico,
a categotia gramatical "singular-coletivo" (Kollektívsingular), com de Ernst Bernheim, publicado pela primeira vez em 1889, sugere-
que o verbete qualifica o novo conceito de histótia. Paralelamente, se que a transição de uma concepção "pragmática ou instrutiva
a generalidade do conceito também é reforçada em decorrência de (lehrheft)" de histótia para uma história "genética ou evolutiva (en-
uma outra transformação semântica, através da qual o termo Ges- twickelná)" só há pouco se havia consolidado, com a adesão a esta
chichte passa a absorver os significados anteriotmente reservados ao por parte da imensa maioria dos grandes representantes da ciência
termo de otigem latina Historie, que desde a Idade Média tendia a histórica alemã oitocentista. 6 Em 1936, Friedrich Meinecke des-
ser associado primariamente à narrativa de acontecimentos e não aos tacava que por volta do final do século XVIII teda se dado "uma
acontecimentos propriamente ditos. No moderno campo semântico das maiores revoluções espirituais" já vivenciadas pelo pensamento
do termo Gcsd1ichte se encontra, por i&so, tanto a noção de história ocidental.' A lista de registros poderia ser estendida, mas será sufi-
como realidade ou síntese do processo de constituição do mundo ciente para ilustrar a preexistência da percepção de que, ao menos
humano, quanto a referência à história como forma de conhecimento no espaço cultural alemão, modificações no conceito de história
do passado dos seres humanos, isto é, como historiografia.' similares às descritas no verbete tiveram lugar ao início do que
O verbete foi escrito no contexto de um dos projetos de pes- chamamos de Idade Contemporânea. Ainda assim é importante
quisa coletivos que mais fortemente marcou a cena historiográfica sublinhar a originalidade das interpretações de Koselleck acerca
alemã da segunda metade do século XX, os Conceitos híst6ricos fun- da modernização do conceito de história, que são marcadas pela
da111e11tais: Uxico hist6rico da ling11age111 político-soda/ na Alemanha. 4 preocupação em entrecruzar contextos intelectuais, políticos e
Editado entre 1972 e 1997 pelo próprio Koselleck em parceria sociais; pela distribuição bem balanceada de atenção analítica entre
com outros dois importantes historiadores, Otto Bnnmer e Wemer os grandes e os não tão grandes autores que lhe servem de fonte;
Conze, o léxico abrigaria no seu segundo volume o verbete sobre bem como pelo emprego inovador de dicionários e enciclopédias,
o conceito de história.
antes largamente ignorados na história das ideias.•
Quando da publicação do verbete de Meier, Engels, Günther
e Koselleck em 1975,já não era inédita a tese central de que a ideia
5
HEGEL, Georg: Wilhelm Fúcdrich. Plfcisojia da Mst6r/(I, Brasílb: Ed. Uo.B, 1999 p. 13-21.
3 ~ t. Aufl. Leipzig: Dunckerund Humblot,
BERNHEIM, Etnst. f!ni1db11</1duhisli1riuhm Metlrr,de,
Anteriormente ao vçrbi:te dos Gtuh{d11!/che Cru11dbegri_ffe, tanto a cnactcrização do moderno 1889 p. 15-21.
c~nceito de história como um termo "singular-cole1ivo" quanto a ce;e da. absorção doA !ig- 7
MEINECKE, Ftledrich. Elhlston·rim1~ymgme.Jfs, México: Fondode Cuhur.1Ecott0n1ic:1, 1943, p. 11.
nifü:ado, d() te.rnw Histo,ie pelo termo Geuhíditej~ havfam aparecido nun1 famiHO ensaio de
1 Oeideme;i;dosda década de 1950, lfans Freyerlrulttía nestaamplhçio do reperc6riodai: fontes.
autoria de Koselleck, publicado pela primeira vez em 1967. Ver: KOSELLECK, Reinh:ut,
Hiuorfa magiuu vitae. Sobre :i diuoluçfo do topos na história moderna em movimemo. Jn: Ele se queiXl\'l d:i hhtória d:u ideias que "geralmente se detêm muito em grandes obra~ que,
Future> pn11ado, op. dt, p. 41-60. de foto, s:'io tepresentativas m2.s que 1e elew.m muito acima dH cabeças.". Freyer toma como
BRUNNER, Otto; CONZE, Werner; KOSELLECK, Reinh;)rt. Gtsdildit/frhe G1111tdbeg,iffe. eimnplo a ier ieguido o est\ido de 1927 de Bcmhard Groed1u.ysen, sobre a formaçfo da vis3.o
Historisches Lex;ik<m zur polithch-sozlalcn Sprache in Deut.schland, 8 voh, Stuugart: Klett- de mundo hurguern na França, o que ele caracteriu corno uma "hi.H6ria do espírito anônimo"
Com, 1972-1997; HOFPMANN, Stefan-Ludwig. Reinhart Koselleck {1923-2006): The baseada em ''sermões, livroi did:l.tkos, cutas, liteurnra recreativa, doi:umcmos do cotídiilno
Conceptual Historhn. Cu111r111 Hl,tQTy, v. 24, n. 3, p. 475-478, 2006 (dt. p. 476). cam~lmi::nte obtidos". FREYER, H,ms. Ucria d~ lpot.1a111at. Rio de Janeiro: Z~har, 1965, p. 74.

12 13
Ó <CNC.f!TO N Hi:nOOA PwJ.oo

Salta aos olhos, em todo caso, que o segmento moderno da ao longo do século XVIII mudanças fundamentais ocorreram nas
história do conceito de história parte de uma perspectiva alemã formas de expedência e representação do tempo. Tais mudanças,
destes problemas, o que não é de espantar, posto que o verbete se evocadas pela palavra-chave "temporalização" (Verzeitlíclrn11g), se
insere numa obra de referência dedicada a dar conta da história da relacionam, por exemplo, à crescente disjunção entre experiências
linguagem sociopolítica no espaço cultural alemão. Recentemente, e expectativas alimentada pela difusão da percepção da aceleração
tal orientação deu azo ao surgimento de uma consistente crítica à do tempo; à abertura do futuro, dantes fechado nos quadros de uma
tese-chave de que nas décadas finais do século XVIII o conceito concepção escatológica de história; ao reconhecimento da natureza
de história teria ganhado a fotma de um singular-coletivo, com a perspectivística da apreensão da experiência; à ênfase no caráter
absorção pelo termo germânico Geschichte das principais camadas de individual dos sujeitos históricos; à admissão da "produtibilidade"
significado relacionáveis ao termo história. Uma importante matriz (Machbarkeit) do processo histórico; ao enfraquecimento do padrão
dessa crítica é a demonstração feita por Jan Marco Sawilla de que no exemplar de justificação da historiografia.li Todos esses e muitos
espaço linguístico francês o termo hístoire já era, no último terço do outros processos são muito bem apresentados e analisados no verbete,
século XVII, comumente mobilizado na forma singular para conotar, e com uma abrangência e profundidade que, parece-nos, ainda não
às vezes até mesmo simultaneatnente, tanto o conhecimento hist6- têm rival na literatura especializada.
rico como a realidade dos acontecimentos passados. Com base em
citações de autores como Jean Bossuet, Jean Racine, Saint-Réal e li.
Fontenelle, Sawilla busca refutar a interpretação de Koselleck de que
o velho conceito de história teria adquirido o caráter de um conceito Projetos coletivos das dimensões do léxico dos conceitos po-
coletivo-singular apenas no bojo das transformações da Sattelzeít. 9 liticos só podem ser realizados com uma incomum disposição para
A partir desses e de outros argumentos, Sawilla sugere que os elos o trabalho ern conjunto, abdicando os envolvidos de veleidades
entre a história da palavra história e a história da ideia de história, "autorais". 12 Isso não significa que na confecção de cada mn dos
tão bem amarrados no texto de Koselleck, "precisam ser desfeitos".'º
Decerto, a crítica de Sawilla coloca em questão um aspecto 11 JUNG, Theo. Zdc/m1 du Veif,1/11, Semanthche Studien zur Bntstehung der Kulturktitik
importante da tese de Koselleck, nomeadamente, o de que a lingua Jm 18. und früheo 19. Jahrhundert. Gattingen: V11mknhoeck & Ruprecht, 2012, p. 68;
STOCKHORST, Stcfanie, Novu.s ordo temi,orum. Reinhart Kosc1Jcck1; These vo1\
alemã teria sido pioneira na disponibilização de um conceito coleti- der Vcrzeitlkhung des GeschlchubewuBueíns durch die AufkHrungshim'.)riograph.ie in
vo-singular de história. Mas aqui seria sem dúvida apressado deitar methodenkricischer Perspektive. ln: JOAS; VOOT (Hng,) &,grifftne Gmllidite, op. dt,, p.
359-386 (dt. p. 379); FULDA, Daniel. Rex ex histori~. Komôdienzelt und ven:eitlichte Zeit
fora o bebê junto com a água do banho e simplesmente afirmar que ln 'Minni von :Barnhelrn'. D11St1c!Jfzdmfcjdh1/umdul, v. 30, n. 2, p. 179-192, 2006 (cit. p. 182):
a tese central do verbete não mais dispõe de potencial explicativo. "Von Sawilhs Kritik bc1Coffcn ist nkht dte Temporalhierultg!the.sc lnsgesrnn, sondem 'nm'
ihre Stütiung durch Koselleck$ Kôllektlvslngular 'Geschichte"'.
Afinal de contas, continua, hoje como ontem, sendo inegável que 11 Um depoimento- do sociólogo funcêsjulien Pteund, porocasifo do ~pu~cimento do primeiro
volume do léxico, nos dS: uma vagíljdda<lo modm openmdl enabeleddo pclos editores. Depois
de p[esenciu algumas du réuniões de uab;1Jho do grupo na Alemanha, Freund escreve que
rnm os pesqi1iudores encarregados de redigir o verbete Poder "estavam teunidos historladotes,
~ SAWILLA, Jan Marco. 'Gcschichte': Eln Produkt der deu~chcn Aufkl:üung? Ein~ Kritik
1 soci61ogo$, filósofos, economl5tas,jurims, cientistas polfticos, teólogos, etc, (cerca de vinte e
:111 R.cio.hart Kosellecks Degrlfn des Kç1lektivsingulau Ge~dúchte'. Zâtuluiflfilr hÍfl~rir,he
cinco pes10H)- [...) Seguiu-se um grande debate e uma confronttç3o que podia se basea_r, na
Fomhimg, v, Jl, p. 381-428, 2004 (dt. p. 388-394),
maior putc, em um vohimoso dois lê ,:;omposto de trechos fotocopbdos de dkionktm latinos,
111
SAWILLA, J\l.n Marco, 'Geschlchte': Ein Produkt der deutschen A,.ufklarnng?, p. 419. Ver alemães, inglesei, fronceses, italianos, etc., e que uatava do .:onccito do século XVI a nossos
tamb~rn: SAWILLA, J:i.n Marco, Gcschichte und Ceschkhten zwhchun Prnvidenz und dia$, Assim, foram reuniões de mbalho em equipo que permltlram 10 autor designado para o
Machbarkdt. Überlegungcn zu Reinhim Kosellecks Semantik hhtori1cher Zei1en. In:JOAS, verbeteob1cro maio~ número pon1vel de dadoi cntdi101, Hterbio~ o científicos", PREUND,
Ham; VOGT, Pcter (Hug.) Btg,{ffwe Gmlr(cl1/t. lleitfage zum Werk Rcinh~rt Kosel!e,k!. Julien. Complc rendue de 'Ge.schichtllche Grundbegriffe', ~t/JIU Fr.intaist d< Sodologie, -V, 15,
flrankfurt am Main: Suhrkarnp, 201 t, p. 387-422, n. 2, p. 287~289, 1974 (.aqui p. 287-288),

14 15
Pmt.<IO

verbetes as preferências e opções individuais tenham sido. simples- não se prestava fosse ao entendimento do presente, fosse ao das
mente eliminadas, nem que na distribuição das tarefas executadas instituições juddicas e sociais da Idade Média.
pelos editores-chefes tenha havido um perfeito equilfürio. Se é a Nesse sentido, foi particulannente influente para o léxico a sua
Koselleck, indiscutivelmente, que se deve atribuir centralidade na tese a respeito de uma transição epocal na história do continente
concepção geral dos Geschic/11/iche Gru11dbegr{fjé, inúmeros comenta- ·europeu. O conceito de "nova Europa" ganhara força no âmbito
ristas têm sido levados, porém, a ignorar a real importância de Otto do pensamento nacional-socialista. Brunner adere a ela, desenvol-
Brnnner e Werner Conze. Ocupemo-nos agora com algumas das vendo, por oposição, a noção de "antiga Europa": nada menos o
razões que levaram estes dois historiadores a dividir a editotia do espaço de tempo que se estende de Homero a Goethe. Brunner
léxico com Koselleck e com a influência por eles exercida sobre a propõe, assim, um esquema evolutivo tripartite: ºantiga Europa",
arquitetura geral do projeto. "era linútrofe" (Schwe/lenzeit) e "sociedade moderna". Reinhard
Dos três, Bnmner era, no começo da década de 1970, o mais Blankner acredita ser essa a concepção de fundo do léxico: "sem
conhecido. O já septuagenátio medievalista austríaco não assumiu a antiga Europa de Bnmner (...) nem a Sattelzeít, nem o léxico
praticamente nenhuma tarefa organizacional importante na edição Geschichliche Grundhegri.ffe poderiam ser pensados". 15
do léxico, tendo aportado um único verbete: "Feudalismo", 13 Se essa Ao lado de Koselleck, o grande animador do léxico de con-
muito modesta participação se deveu à idade, a alguma idiossincra- ceitos fundamentais é Werner Conze. Personalidade admirada
sia pessoal on a um possível constrangimento de natureza política, por amigos e alunos, Conze vinha de uma fam!lia do chamado
é uma questão ainda em aberto. Em todo caso, a importância de Bild,mgshiirgertum - o segmento da burguesia alemã mais direta-
Brunner se dá em outro plano. Seu livro Te,ra e dominação (1939) mente afeto à educação e à cultura. Seu avô, o arqueólogo Ale-
é um clássico da moderna história dos conceitos e pode talvez ser xander Conze, rinha sido aluno de Leopold von Ranke. Como
considerado uma das ptimeiras tentativas bem-sucedidas de se in- Koselleck, Conze lutou e foi ferido na Segunda Guerra mundial.
corporar o pensamento político-;juriclico de Carl Schmitt à historio- Ambos tinham ainda em commn seu ceticismo em relação à função
grafia. A inovação teótica e metodol6gica assim promovida se liga, emancipat6ria que a geração do maio de 1968 atribuía à ciência
porém, e de fonna indissociável, uma inegável Belastw1g política, histórica. Para Conze a grande ruptura moderna se dera com o.
Sabe-se que desde 1937 Brurmer estava entre os que acreditavam no aparecimento de uma cesura e uma crescente polarização entre
advento de uma "nova realidade" na Alemanha após a ascensão do Estado e sociedade a partir de fins do século XVIII. Até então,
nacional-socialismo. Em consonhcia com Schmitt, ele constatava um não se dissociava nitidamente do outro. Com a Schwellenzeit,
o esgotamento dos conceitos fundamentais até então vigentes." Essa
convicção é projetada em Terra e dominação, onde se afirma que o
aparato conceituai do século XIX deveria ser "destruído" porque 15 Frnyer empregou o neologi~mo Zdtuhivdle, pr~tíc;;mente idêntico à SdHvtllm:=e/ldt Drunner.
lnfdizmen1e nfo nos foi possível v.:dficar qu:11 dos dois autores teve precedênci.a nesse caso.
Cf. BLÂNKNER, Reinhard, Begriffsgeschkhte in der Ge;chichuwimnschaft. Otto Dtunner
und die Ge;chichtlkhe Grundbegri(fe, Ft1mm l11tudis;:ip!ini1re 8egriffigmhid1tt, v, t, n. 2, p.
11
Dentre úS autorés que escrcver;im verbete~ pau o J6xico, apenas vinte contribuham com mais 101-107, 2012 (cit. p. 106); SCHULZE, \Vinícied. Gemu.11 historiogrnphy front the 1930 to
de t00piginas, A fist.i. é encabeçada por Conie e l{o,eUed: {nesta ordem). DJPPER, Chrütof. tbe 19S0's. ln: LEHMANN, f-farunut; MELTON, James (eds.) Auhs cf <<1nllm1lty. Cenm.l
Die 'Geschichtllche Grundbegriffe', Von der Degdfügeschichte wrTheorie der historhchen european hhtoriography froin the t930's to tho 1950's. Cambridge: Cambridge University
Zdten. ln:JOAS: VOGT (Hrsg.) .8tg1!ffe11e Geuliidite, op. dt, p. 297. Press, 1994, p. 40. N:s ituroduçloao primeiro volume do léxico, Koselleck afüm,1 que o objetivo
11 O tbpoj d;i. "nova ie~lidade" é analh.-sdo por OBXLB, Otto Gcrhard, Witklkhkeit- Kl:lsedcr aU perseguido era o dt" investigar o "des:1.p3redmento do nmndo antigo e o surgimemo do
Wirklichkdt- Neue Wirkl ichkeit. Deutungsmuster und Pa1,1<ligmenk'impfc in der deutschcn mundo moderno". KOSELLECK, Reinhart. Einleitoog. ln: DRUNNBR, Otto, CONZB,
Wimnschaít vor uud nach 1933. ln: HAUSMANN, Frank-Rutger (Hrsg.) bie R,:,1/e der Wemec KOSBLLECK Kelnhart. {Hug.) Gml1!c/,/lld1t Crm1dbtg1iffc: Hhtorisches Lexlkon
Gris1uwimnsd1aften im Dlillw Reid1 1933-1945. MUnchen: Oldenburg, 2002, p. 1-20. zm poJ/tisch-sozialen Sprache in Drntschland, v. 1. Stuttgart: Klett-Cotta, 2004, p. xvi.

16 17
P.mAoo
O co.•«.mo o.: H.sról;(A

surge a "sociedade". Conze pretendia compensar analitica1nente É c01n razão que se costun1a sublinhar a ascendência da socio-
18
essa divisão ao promover uma aproximação radical entre ciência logia dos conceitos de Carl Schmitt sobre os editores do léxico.
histótica e sociologia. Curiosamente, pouco tem sido escrito fora da Alemanha sobre uma
Sua carreira se inicia na chamada Osiforsch1111g, campo de figura não menos influente que Schrrútt naquele contexto - o já
pesquisas dedicado ao leste europeu e sobre o qual pairou, por citado Hans Freyer. Da obra desse brilhante sociólogo e historiador,
muito te1npo> a pecha de ser un1a espécie de ciência auxiliar do Brunner assimilou o ptincípio segundo o qual os conceitos usados
expansionismo alemão. Estuda sociologia em Leipzig, tendo como por um campo do conhecimento sempre estão "historicamente
mestres o historiador Hans Rothfels e os sociólogos Hans Freyer impregnados", de que "mesmo os conceitos mais gerais (... ] têm
e Gunther Ipsen. 16 Conze se tornou assistente de Ipsen e escreve em si este ele1nento histórico". De suma importância para Conze
seu doutorado sobre uma comunidade de língua alemã na Livônia. foi a tese de Freyer (desenvolvida em obras da década de 1930 e
Depois de aprender russo e polonês, prepara sua tese de acesso à 1950) a respeito do surgimento moderno da oposição entre Estado
cátedra (Habílítation) sobre a estrutura agrária e populacional da e sociedade, assim como da "ruptura histórico-universal de primei-
Lituânia e Bielorrússia. Esses trabalhos não acompanham a tradi- ra grandeza" oconida na passagem entre os séculos XVIIl-XlX. 19
ção de ak1 contaminação ideológica e geopolítica da Osiforsclm11g. Apontado por Winfried Schulze como um dos mais influentes livros
Em 1938 Conze chega a ter um artigo vetado pela Zeitschrift Jilr alemães da década de 1950, a Teoria da época atual (1955) de Freyer
Volksk,mde porque havia sido demasiado isento em suas análises. 17 foi adotado por Conze como o ponto de partida dos trabalhos do
Mesmo num ambiente intelectual pouco favorável, ele se abriu à Grupo de Trabalho em História Social Moderna. Nessa obra, Freyer
influência da sociologia norte-americana e posterionnente à obra subscreve inteiramente a visão de Karl Lêiwith sobre a filosofia da
de Fernand Braudel. Em 1965 funda o Grupo de Trabalho em história como uma forma de escatologia secularizada, e que sabemos
Histótia Social Moderna, no qual Koselleck tomará parte entre ter exercido forte influência sobre Koselleck. 20
1960 e 1965. Tendo marcado época na historiografia alemã do pós- Não resta dúvida, contudo, de que foi Reinhart Koselleck o
-guerra, esse grupo publica nada menos que 43 livros entre 1962 e grande propulsor do empreendimento de organização do léxico
1986. A primeira incursão de Conze pela história dos conceitos se de história dos conceitos na Alemanha ao qual o texto do verbete
dera antes, num artigo de 1954: "Vom 'Pêibel' zum 'Proletariat", "Geschichte, Histotie" foi originalmente destinado. Por isso, será
em que mostra quais processos sociais estão por detrás da gradual importante considerar, com especial atenção, a sua trajetória bio-
substituição do termo "ralé" (PobeO pelo de "proletariado". A gráfica e acadêmica.
história dos conceitos abre para Conze um acesso novo ao estudo Segundo o próprio testemunho, Koselleck cresceu num con-
da dinâmica histórico-social; ela possibilita um controle lexical texto familiar em que se valorizavam a leitura, a música, as visitas
que, com o auxílio da hermenêutica, deveria fundamentar histo-
ricamente a análise científico-social. Koselleck viu nesse estudo ii As linhas bisicas di: cal abordagem foram desenhadas aind~ na d~i:-ada de 1920. Cf.SCHMITT,
de Conze uma verdadeira "obra de mestre". C:nl. Ttologfa po1(1fca. Delo Horizonte: Dei Rey, 2006, p. 42-4~.
i) FREYER, Hans. Lr1 jOâofogfa, ât1ui11 de /d ri4/ld1uf. J3uenosAires, 1944, p. 2.3, 108; FREYER,

'frorio da lpo(;I aw,11, p. 73.


lõ SCHUl.Zll, Wh\fricd. Dtutsdie CmMd1t,wjsumchaft 11acl1 1945. Mümhe11: DTV, 1993, p.
11 Três nomes que Kosdletk dMslftcou como ''comcrvadores e nacfon;i!Utn". K.OSELLECK, 295-297. A imponànda da vhlo de lõwith para Kosclleck e as cli6cul<la<les d~í resu\t;1nles
Rdnh,1rt. Vom Sfmi 1md Umim1 du Gud1itlirt, Frankfmt 3m Main: Suhrbmp, 2010, p. 324. 1ão analisadas por JOAS, l·fans. Die Konlingenz der Sâkuhrisicrung. Obedegungen 2um
11 SCHIEOER, Wolfgang. Sozialgeschichte zwischen So:zlologie und Ge$Cbichte, Du Prob!em der Sãkularisiecung im Werk Reinh~rt Ko5el\ecks. ln:JOAS; VOGT (Hng.) Bcgr{ffem
wiisenschaftlkhe LebensWQrk Wemer Conzcs. Gesd1fr/Jrt 1111(/ Gmfluliaft, v. 13, n, 2, p. 244- GmMdue, op. cit., p. 319-338. Ver também: 0[.SEN, Hütcny iu tlic P/ur-11. An Introduction
tô the Work ofReinhart Ko~dleck. New York: Berghahn 1 2012, p. 21-23.
266, 1987 (p. 254),

18 19
il 0 CONa/10 Of Hisrô.<IA

a museus, a escrit.~ de cartas. O seu pai foi professor ginasial e de a queda do III Reích havia se tornado "maldito", o jurista Carl
instituições de f01mação de professores. A mãe, de abastada lànúlia Schmitt. 22 É com a perso11a de Schmitt e com o diagnóstico do
burguesa de origem hugenote, fez estudos superiores em francês, mundo político do século XX por ele desenvolvido que se trava
história e geografia, além de ter se formado como violinista de 0 grande diálogo intelectual que estruturou a tese de doutorado
concerto. Nascido em 1923, Koselleck não escaparia de vivenciar defendida por Koselleck em outubro de 1953 e intitulada Critica
diretamente a li Guerra Mundial. Foi recrutado pata a artilhada e cdse: estudo sobre a patog!nese do mundo burgids."
,1111
do exército nacional-socialista em maio de 1941 e enviado para a Esse traba!l,o é muito mais do que uma erudita e desinteressada
frente leste de batalha, mas um pequeno acidente na marcha para investigação do pensamento político moderno com foco no desen-
Stalingrado ensejou a sua transferência para operações de suporte volvimento da crítica iluminista à ordem absolutista. É também,
na Alemanha e na França. Em maio de 1945, foi capturado pelo na expressão do próprio Koselleck, uma tentativa de "explicar a
exército soviético e, depois de um cuHo período de trabalho na formação da utopia com a qual a sociedade burguesa se rompe". 24
desmontagem de instalações da planta da IG-Farben nos an-edores Trata, assim, tanto do passado setecentista quanto do cenário presente
do campo de concentração de Auschwitz, foi enviado para um G11/ag que se desenhou com o final da li Guerra Mundial. Partindo de
no Cazaquistão, de onde escaparia, depois de 15 meses, com a ajuda postulados teóricos desenvolvidos por Carl Schmitt - como os de
de um médico que fora amigo de um dos seus tios-avôs. Koselleck que a soberania é o poder de decidir sobre o que constitui o caso
teve a vida fortemente marcada pela experiência da guen-a e da excepcional e de que a política é uma arena marcada por um eterno
derrocada da Alemanha em 1945. O seu irmão mais velho morreu conflito que não pode ser anulado pela supressão do inimigo, Ko-
cm con1bate, enquanto o mais novo faleceu em decorrência de selleck pretende chamar a atenção para a nocividade dos conceitos
um bombardeio. Uma de suas tias, que sofüa de esquizofrenia, foi estruturantes das ideologias políticas modernas. A sua crítica incide
vítima do programa nacional-socialista de eutanásia?' não somente sobre o nacional-socialismo, mas também sobre os
Com essa dupla bagagem fornecida pelo universo culttual dois polos ideológicos da então emergente Guerra Fiia: liberalismo
da burguesia educada e pela experiência da guerra e da prisão e comunismo. Para Koselleck, a vulnerabilidade propiciada pela afir-
Koselleck iniciaria os seus estudos em 1947, aos 24 anos, na Uni- mação de todos esses "-ismos" configura uma crise política de dificil
versidade de Heidelberg. Frequentou cursos de importantes figuras resolução. Tal crise seda o desdobramento de uma maneira utópica
da vida acadêmica de então, tais como o sociólogo Alfred W e- e moralizante de lidar com as coisas políticas, iniciada com a crítica
ber, o jurista Ernst Forsthoff, o médico Viktor von Weizsiicker, política no contexto do Iluminismo e cristalizada nas modernas filo-
os filósofos Hans-Georg Gadamer, Karl Jaspers e Karl Lowith sofias substantivas da história. No diagnóstico sclunittiano assimilado
e os historiadores Johannes Kühn e Hans Rothfels. Contudo, a por Koselleck 1 liberalismo} cmnunismo e nacional-socialismo seriam
principal influência sobre o jovem Koselleck não seria exercida
por nenhum desses professores; ao contrário, por um acadêmico
que no contexto da desnazificação operada imediatamente após 22 Schmitt atuou, i'la prática, como um orieniador da te!ie domoral de l<oseJle;;k, ainda que
fornulme1l[e :i. orientação tenha sido :murnidi por Johrnnes Kühn. Sobre a rel\lção entre
Kosclleck e Schmitt, ver: MEHR(NG, Reinhard. Begti.ffsgeichlchte mit Carl Schmitt. ln:
JOAS; VOGT, (Hrsg.) Begriffene Geschkhte, op. dt; OLSBN, Nikfai. C~tl Schmitt, Rtinhart
21 KóSELLECK, Reinl1:ut; HETTLfNG, t-.·bnfred: UlRICH, Bernd, Formen der Ko;elleck and the FoundHions ofHhtory and Politics. H/1/01ycf El/rcpMtl ldta>, n, 37, p. 197~
Bürgerlkhkeit. Ein Gesprâ:ch mit Reinhart Kmelleck. ln: HETTLING, M;1.nfred; ULRICH,
208, 201 l.
fürnd (Hrsg,) Bilrgttlum nnrh 1945. Hamburg; HamburgerEdition, 2005, p. 40.60 (cit, p. 46.
52); OLSBN, Nikfos. Historylnthe Plural, op, cit., p. 1Q.J6; MEYER, ChristJan. Gedenkrede.3uf " KOSELLEC:K, Reinhm. Crftim e aise. Uma conttibuiçfo ~ pa1ogi:ne1e do mu1J,do burguês.
Reinlu.rt Ko1elle<:k. ln: BULST, Ndthud; STEINMETZ, Willib.lld (Hõg.). Rtfnhn,r K<iutluk Rio de Janeiro: Contr:iponto; Ed. PUC-Rio, 1999.
1923-2006, Redcn zur Gedenkfeier :im 24. Mai 2006. Bielefe.ld, 2006, p. 7-34 (cit. p. ll-12). ?~ KOSELLECK; HETTL[NG; UUUCH, Fonncn dtr Dfügcdichkei1, op. cit., p. 54.

20 21
PmÁoo
O cow:aro ~ H,s16.l.lA

os fn1tos diretos do utopismo iluminista; donde a importância de a catástrofe da Segunda Guerra Mundial. O fato é que a história da
se estudar este para se compreender aqueles." históda dos conceitos se inicia muito antes.
· Nos anos 1960, Koselleck daria continuidade à sua reflexão A despeito de algumas iniciativas no século XVlll e XIX, so-
sobre a natureza e os problemas da modernidade na sua tese de Ha- mente em meados do XX a história dos conceitos iria se emancipar
bi/itation sobre a história constitucional e administrativa da Prússia e adquirir o estatuto de disciplina autônoma, compreendendo-se,
entre 1791 e 1848, orientada por Conze. Publicada em 1967, A ao longo da maior parte de sua história, como um instrumento
Prtíssia entre reforma e revolução é fiuto de uma investigação cuidadosa heurístico necessário ao desenvolvimento de uma teoria filosófica.
em que a abordagem hermenêutica das fontes da ·época é comple- Desde a década de 1960 seu programa só fez se alargar, no sentido
mentada com análises de corte estrutural e estatístico, para produzir
seja de uma metaforologia, seja de uma tópica histórica ou uma
história dos conceitos científico-naturais. Em nenhum outro campo
uma história que abarca não só conceitos políticos, mas também a
da historiografia se realizou tão plenamente a concepção pioneira
interfàce entre intelectuais, instituições e atores sociais na Prússia
de Ernst Cassirer da história enquanto um ramo da sem~ntica. 28
da primeira metade do século XIX."
Mas se o conceito é simultaneamente um fator e um indicador, nem
Logo após publicar este livro, Koselleck se volta para um novo
por isso se deve supor que seja capaz de produzir milagres. Como
projeto, desta vez um grande empreendimento editorial coletivo que
sublinhou Gunter Scholtz, a coisa muitas vezes existe antes do ce,mo
marcaria época na cena historiográfica alemã da segunda metade do
que a designa - coisas nem sempre são feitas de palavras. De fato,
século XX. Em 1967, publica no Arquivo para a hist6ria dos conceitos
e como veremos a seguir, a história dos conceitos se coloca como
um artigo, redigido quatro anos antes, detalhando as linhas mestras
projeto e mesmo como uma incipiente prática disciplinar antes do
de wn ºléxico dos conceitos políticos e sociais da modemidade,i,27
surgilnento do conceito ºhistória dos conceitos". Que a história
que em 1972, por ocasião da publicação do seu primeiro volume,
jamais se esgota na linguagem, é algo que o próprio Koselleck nunca
seria rebatizado como Conceitos hist6ricos fundamentais: Uxico hist6rico
deixou de ressaltar. 29
da linguagem poUtíca e social na Alemanha.
Com seu Uxíco filosófico (1726), o teólogo luterano Johann
Georg Walch foi o primeiro a insistir que o caráter "histórico" dos
Ili. conceitos deveria ser estudado à parte do seu caráter udogmático
11
1

A fim de adquirir uma compreensão mais ampla do significado de modo a esclarecer os conceitos filosóficos. O esforço de ex-
do léxico dos conceitos ftmdamentais para a história da historio- plicação e definição não poderia ser dissociado de uma "narrativa
grafia, deve-se levar em consideração a evolução da história dos histórica" dos conceitos e controvérsias filosóficas. Em 1774, Jo-
conceitos dos seus_ primórdios até a década de 1970. Esquivar-se hann Georg Heinrich Feder (professor de filosofia em Gottingen),
de tal tarefa significa desistoricizá-la, reforçando a impressão de que defendia que, para a preparação de um dicionário filosófico, seria
essa disciplina é a expressão de um fiat ocorrido na Alemanha após imprescindível o estudo histórico daqueles conceitos em tornei dos
quais se produziam polêmicas. Christoph Gottfried Bardili, em
1788, elaborou um programa de pesquisa dos principais conceitos
" DUARTE,Jo)o de A'levedo e Dia,. Tempo e crise na teoria da modernidade de Rcinh,m
Koselleck. HiJtóría ila H.istoriogu1fia, n. 8, p. 70-90, 2012 (cit. p. 81·82); OLSEN, HfJCMy í11
28 C/\SSIRBR, Ernst, Amro~!o.g!afilosJfiM, Méxko: Fondo de Cultun. Económica, l992, p. 287.
tlu Plur,1/, op. cit., p. 46-48.
1
' KOSELLECK, Relnhatt. Pn11Ht11 zwfuhrn Rifomi mid RH·oforio11. Allgeineines Landrechl, ri SCHOLTZ, Guntet, llegtiíl'sgmhid1te ais hh1orisdic Philosophie und phi!osophische J--fütodc.
Vetwalcung: und sozlale Bewegung vo1~ 1791 bil. 1848. MünGhen: DTV, 1989, 1'· 17. ln:JOAS: VOGT(Hrsg.) Btgrlffeue Getclifrhtt, ºl>· cit.,p. 273. P~r.\KoJelleà, "Geschichtegehtnie
ii KOSELLECK, Reinhart. Richtlinien, op. cit., p. 81-99. in Spmhe auf". Cf. KOSEUBCK, Reinhart. Vom Sf,m ur.d Uminn der Cesd11</1re, op. cit., p. 88.

22 23
PWÁOO

filosóficos. Para Bardili também era importante investigar a presença individual ou a um anônimo trabalho de elaboração coletiva. Ela
dos termos filosóficos na linguagem cotidiana, na literatura e nas permitiria avaliar em que medida a linguagem técnica dos filósofos
religiões. Helmut Meier identifica um evidente "sotaque histórico- e a linguagem do mundo da vida são mutuamente permeáveis. Eu-
conceitual,, percorrendo essas diversas obras, 30 cken percebe também a grande importância de se articular dinâmica
Em 1806, é a vez de Wilhelm Traugott Krug, sucessor de Kant histórica e dinâmica conceitual; "toda grande transformação da vida
em Konigsberg, estabelece,· seu plano de um Dicionário hist61ico-cr!tico histórica faz com que conceitos e termos de círculos limitados se
da filosofia nestes te11nos; "Seria muito instrutivo caso houvesse um tomem os da coletividade"." A histói-ia dos termos e conceitos fi-
dicionário de todos os conceitos e proposições (Síitzen) filosóficas, losóficos espelha, assim, o movimento da história humana.
que os colocasse em ordem alfabética e indicasse suas origens, evo- Para os argumentos de Eucken, tão ou mais importante que
lução, transformações, contestações e defesas, detu1pações e retifi- a de Trendelenburg foi a influência de Gustav Teichmüller, autor
cações, com indicação de fontes, autor e das épocas até o momento de Estudos para a hist6ria dos conceito< (1874) e dos Novos estudos para
atual". 31 Em seu Do conceito da hist6ria da.filosofia (1815), Christian a hi,t6ria do, conceitos (1876-1879). Teichmüller via na Geschichte
August Brandis chega ao ponto de conceber a história da filosofia der Begri.ffe a pré-condição para o progresso da filosofia, na medida
como a história dos conceitos filosóficos. em que seria capaz de revelar os caminhos por meio dos quais um
Não obstante todas essas declarações de boas intenções, na pri- dado conceito ascende à condição de "conceito fundamental". Para
meira metade do XIX a história dos conceitos se limitou a poucas esse fim, a história conceitua! deveria levar em conta não apenas
iniciativas isoladas, não chegando a conhecer nenhum empreendi- o estudo dos estados de consciência individuais daquelas pessoas
mento sistemático. Em 1870, enfnn, Friedrich AdolfTrendelenburg que fo1mulam os conceitos, n1as também as <' condições sociais> da
- autor ctzjas marcas se fizeram sentir no pensamento de Dilthey - atmosfera religiosa e política" em que isso acontece. Teichmüller
escreveu uma história do conceito filosófico de "pessoa". Com isso, concebia a história conceitual como uma t6pica cronol6gica. Depois
Trendelenburg pretendia entender por que o conceito de persona, de lecionar na Universidade de Basileia entre 1868 e 1879, decide
que para os antigos evocava uma máscara, mera aparência, assunúrá retornar à Alemanha. Os pi-incipais aspirantes a sua sucessão são
mais tarde, com e a partir de Kant, o sentido daquela instância que ninguém menos que Nietzsche e Eucken, sendo este (um ex-aluno
expressa a essência moral do homem. 32 de Teicbmüller) o escolhido.
O impulso decisivo só vem em 1872 com RudolfEucken, que O fracasso de Nietzsche significou, curiosamente, a continui-
ambiciona editar um léxico histórico da terminologia filosófica. Se- dade do desenvolvimento da história dos conceitos a partir de seu
guindo de perto as concepções de Trendelenburg, Eucken entende berço suiço. De fato, na virada para o século XX, diversos estudos
que a história dos conceitos não deve ser uma coleção de curiosidades, histórico-conceituais viriam atestar a influência do programa esta-
mas revelar "a história interna de cada tenno específicd'. Somente belecido por Eucken. Sua Hi;t6ria e crltiC<l dos cmtceitos fundamentais
a pesquisa histórico-conceitual estará em condições de decidir se da atualidade (1878) passa a se chamar, na segunda edição (1893), Os
um detenninado teimo filosófico deve sua origem a um ato criador conceitos fundamentais do presente e se estrutura a partir de uma série
de pares antitéticos: subjetivo/objetivo; a primi/a posterioli; monis-
30 Est:i.
stção te bmi:i amplamente 1,m MEi ER, Hei mut, Begriffsges<llichte. In: RITTER,Jo2chim
mo/dualismo; orgânico/mecânico; teórico/prático; imanência/
(Hug.) Hislôriuhu Wê1tub11(/i de, Pliil,mphie (vol. 1). Base\: Schwabe, 1971, coh, 788-808. transcendência, etc.
1
' Apud MEIEit., Begdtfesgesd1ichte, op. dt., coJ, 792.
n P1,1bl)cado postumamente-. TRENDELENBURG, PrieddçhAdo/f.ZurGmhkhtedes Worle>
Person. K<1111 Swdlen, Y, 13, p. 1-17, 1908 (cit. p. 3-4). 1.1 Apud MEIER, l3egriffesge:1chichu·, ◊p, cit, col. 795.

24 25
Ó CONCITTO CE HisrOOJ. P1:il'ÁC10

Na introdução de seu livro, Eucken díz que os conceitos Guerra, lugar de destaque cabe a Erich Rorhacker. Rothacker
11
"não são filhos do momento, mas se enraízan1 no passado • Não se iniciara seus estudos de filosofia em Kiel e ainda na graduação
pode falar em lústória do conceito enquanto um de seus elementos percorrera os livros de Karl Lamprecht e Kurt Breysig, os mais
centrais se mantém constante na diacronia. A tarefa da história do controvertidos representantes da história cultural na Alemanha de
conceito estaria em identificar quais seriam esses elenientos centrais fins do século XIX. Entre os professores que o marcaram estwam o
invariantes. Mas Eucken reconhece a lústoricidade dos conceitos e, sociólogo Ferdinand Tonnies, o historiador da arte Carl Neumann
portanto, a necessidade de adequá-los ao tempo presente, a essa era 11
e, em especial, o filósofo Max Scheler. Em sua tese de doutora-
dos jornais diários e de máquinas". Insistindo num ponto que será mento, concluída em 1911, Rothacker se dedicou ao pensamento
iguahnente sublinhado pela geração seguinte de lústoriadores dos histórico de Lamprecht. Para a tese de Habilítation, se transfere para
conceitos, ele percebe com clareza a indissociabilidade entre experi- Heidelberg e escreve uma Introduçao às cib1cias do esplrito que é, em
ência histótica e vocabulário filosófico: "uma intangível quantidade larga medida, uma história da escola histórica alemã. O trabalho
de novas experiências i1nplodiu, junto com as antigas formas, os não deixa de ser notado por historiadores de prestigio como Georg
antigos conceitos". Assim, "não surpreende que hoje se negocie e von Below e Friedrich Meineeke. Em Heidelberg, cidade que viria
discuta tanto por causa de conceitos!"" É importante observar que a se tornar um dos principais centros irradiadores da lústória dos
Eucken fala em Geschichte des Begriffes e em Begriffiforsdrnng. conceitos em sua acepção atual, Rothacker chega a atuar algum
Em 1899, surge o Dido116rio de conceitos filos6ficos, do filósofo tempo como Privatdozent, mas seu caminho à cátedra não parece
austríaco RudolfEisler, Em sua segunda edição se lê que "o objeto n1uito prornissor na ualdeia mundial" de Baden.
deste dicionário é a história, baseada nos escritos dos filósofos, dos Em 1926 publica sua Lógica e sistem&tica das d€ncias do esplríto,
conceitos e expressões filosóficas", Seu objetivo expresso era "dar em que manifesta uma primeira aproximação em relação à antro-
a conhecer esta mudança no sentido dos conceitos e expressões, pologia filosófica. Como a obtenção de um cargo universitário
esta alteração de quantidade, qualidade, valor e conteúdo concei- não se apresentava ainda como uma possibilidade real, Rothacker
tua!". Para Eisler, seu dicionário "de forma alguma pretende ser ou vê sua grande oportunidade na intenção anunciada em 1927 pela
substituir uma história da filosofia", mas apenas "completá-la". 35 A "Sociedade alemã de apoio à ciência" de editar um grande diciornl-
despeito de toda essa aparente sofisticação, posteriormente se cri- rio filosófico-cultural. Rothacker abraça entusiasticamente a ideia.
ticou essa obra por se concentrar principalmente em definições e Ele elabora um projeto no qual esse dicionário deveria se estruturar
na tentativa de solucionar problemas filosóficos, ficando o trabalho em tomo de conceitos filosófico-culturais fundamentais e de uma
especificamente histórico-conceituai praticamente obliterado. concepção autenticamente interdisciplinar, uma vez que "todo o
trabalho de esclarecer filosoficamente os conceitos fundamentais
IV. não dá em nada caso a filosofia não se mostre capaz de colocar seus
conceitos numa relação viva com os conceitos fundamentais das
Na transição entre essa titubeante primeira geração de trabalhos ciências específicas". 36 Em abril de 1927 esse projeto é enviado ao
em história dos conceitos e a que tomaria forma depois da Segunda ministério da educação. Para concretizá-lo, Rothacker acreditava ser
necessário fundat um instituto de pesquisa nos moldes dos Institutos
Ji EUCKEN, Rudolf. Dlt GrundbtgriJle du Gtgtnwotl, Hiscorisch und Kri1isch Entwkkelt.
Leipzig: Veit & Comp., 1893, p. 7-12.
u EISLEl\., íludolf. Vorwort. Jn; Wl'l'r{abuch da phllrm.>phiHllen Beg,{ff, /Jístorisd1-qutllt1111riluft 11 Citado por STÔWER, Ralph. E,[(h Rot/Jacker. Sein Leben und stlinc Wimnschaíl: vom
btmbeiw. Bcrlin: Ermt Sicgíried Mittler und Sohn, 1904, v. I, p. iii-vii. Me!n~chen. Bonn: Bonn U1liversity PreS$, 2012, p. 97.

26 27
O CCNarro OE Hmô-M PWÁC-0

Kaiser-\Vilhelm (atual Sociedade Max Planck). Seu intento era in- razão 11 • Insiste na importância de se explorar os conceitos filosófico-
crementar o contato entre as diferentes disciplinas nas humanidades culturais fundamentais e sonha com algo das dime11sões da grande
e, simultaneamente, preparar o léxico en1 conjunto con1 uma equipe enciclopédia protestante Religião 11a liist6,ia e 110 presente. Rothacker
sob seu comando. Tal empreendimento, acreditava, seria condição toma o exemplo das obras de Troeltsch, Heussi e Mei11ecke para
1 necessária. para se chegar a uma "ciência do hmnemn ·assentada em 1nostrar que, não obstante sua importância, elas não bastavam para
bases histórico-culturais e antropológicas. Seus planos, entretanto, se obter uma visão ampla da história e do significado do co11ceito
não sensibilizaram as autoridades educacionais pmssianas. Ralph de "historicismo". Em última instância, o Arquivo deveria fornecer
Stõwer acredita que se tenha visto na ideia do léxico e do instituto as bases sobre as quais se etigiria, mais tarde, um grande dicionário
algo além das possibilidades de um pesquisador que sequer chegara de conceitos. 40
à cátedra ainda. 37 Com sua nomeação para a Universidade de Bonn Simultaneame11te a esses movime11tos de Rothacker, davam-se
em fins de 1928, Rothacker passa a se dedicar a outros temas, mas os primeiros passos para o surgimento do primeiro e mais ambi-
o desejo de levar adiante o dicionátio permanece vivo. cioso léxico de história dos conceitos do pós-guerra: o Dicionário
Ainda que sejam evidentes os sinais de sua aproximação com /1ist6dco da filosofia (Historísdies Wiirterbuch der Pliilosop/1ie). Em 1957,
o regime nacíonal--socialista, Rothacker não· enfrentou 1naiores a editora Schwab, de Basileia, adquire os direitos do dicionário de
problemas para reiniciar sua vida acadêmica após 1945." Já nos Eisler com a intençao de fazer uma reedição atualizada. Dois anos
anos postetiores ao fim da Segunda Guerra, ele percebe que há um depois, o projeto é assumido pelo filósofo Joaehim Ritter. Ritter
clima favorável à retomada do seu antigo projeto. A partir de 1949, coloca como co11dição que o trabalho seja realizado em conjunto
tenta viabilizá-lo através da recém-fundada Academia de Ciências com alguns de seus alunos na Universidade de Münster. Do grupo
de Mainz." Em 1955, finalmente funda o prestigioso Arq11ivo para a inicial fazem parte, além do próptio Ritter: Herma11n Lübbe, Odo
hist6,ia dos conceitos, primeiro periódico especializado nessa área. Para Marquard, Robert Spaemann, Karlfried Gründer (que assumirá
Rothacker o dicionátio de Eisler se lirnitwa a um amontoado de a editaria depois da morte de Ritter), Ludger Oeing-Hanhoff,
citações e não oferecia uma "história do conjunto da termi11ologia Heinrich Schepers e \Vilhelm Karnbartel. Um. protocolo de uma
relativa à filosofia e às visões de mundo [que fosse] realizada com das reuniões, realizada em 13 de agosto de 1959, mostra que 11ão
esmero histótico-filológico". A nova histótia dos conceitos <leveda se buscava apenas uma atualização, mas uma total reestmturação
aliar o tigor da pesquisa histórica à tradição da história dos problemas do a11tigo dicionário de Eisler. O novo léxico deveria fugir das
(que remontava às pesquisas em históiia da filosofia de Wilhelm definições até então existentes, i11clusive da influência de quaisquer
Windelband), abrindo espaço não apenas para a i11ovação no campo "doutrinas", com vistas a produzir "uma história dos conceitos a
da história das ideias, mas também para uma "aprofu11dada crítica da partir da história lexical". 41
Entre fms de 1959 e inícios de 1961, ainda durante os trabalhos
preparatórios, Ritter e seus alunos tentam trazer Hans-Georg Gada-
7
J STÕWER, E,M1 Rothacku, op. eh., p. 100. mer (então presidente da "Comissão de Investigações em História
'" Embota lenha dcdando num que.stionhio prep1rado pelas forçnde O(upaçJ:oaliadas, em 1946,
gue "a poHtlca ~tá, dentre as cohas que me intere~~m, quait: no 12"' lugar", Hbe-se que na d&:Jd:i dos Conceitos da Sociedade Alemã de Pesquisa") para o grupo, na
de 1920 Rothicker se sentia próximo do campo çons-:rvador. Não se sentiu atraido pelo úmom
drculo intelectual mantido por Alfred Weber e Marbnne We~.r em Heidelberg, por conslder1-!o
demashdo libeul e mesmo "imp:itdótieo". STÔ\VER., En'd1 Rot/iacku, op. dt., p. 53, 78. to ROTHACKEll, Erich. Gel!!.itwort. Aulii'vfi1r Beg1iffigmMcl1tt, v, J, p. 5~9, 1955.
),) I<RANZ, Marguita, Geistig-e Kontim1ifát? Rôthackeri J>rojekt dnes begriffsgc1chichtlichen ti Citado potT[NNER, Walter. Das Untemehmen 'Hhtodschc Wõrterbuch der Philo:rnphie'.
Wõrtt1rbuchs von 1927 ,md de~sen Wiedeu11fnahme 1949. Pomm fotudís~ipll11ilre In: POZZO, Ricardo-; SGARB(, Mllrco (Hrsg.) Elne 11;pcle&il Jtr Pcmun dtr !Jtg,Jffigmlif,ht~.
Brtriffigeuhidrte, v. 1, n. Z, p. 46~48, 2012, Hambutg: Meiner, 2010, p. 10.

28 29
0 C0N(í/f0 Oi: HISlÓ't'A PmAao

condição de editor-chefe ao lado do próprio Ritter. As negociações entre ciência histórica e hist6ria· dos conceitos ocorreu, segundo
fracassam diante do volume dos honorários pedidos por Gadamer e Kosellcck, ao longo da década de 1930, confundindo-se com-os
de sua demanda de que os direitos do dicionário fossem passados aos nomes de Rothacker na filosofia, de Bmnner na história, de Carl
editores-chefes, e não à editora Schwab. 42 Fato é que ao longo das Sclunitt na ciência do direito e de Jost Trier na linguística. 45 Significa
décadas de 1950 e 1960 ocorre uma evidente pluralização de concei- dizer: entre os principais inspiradores da virada teórico-metodológica
tos a respeito da lústória dos conceitos. Em 1965, no seu conhecido vivida por essa disciplina, não poucos estavam pr6ximos do espec-
estudo sobre a lústória do conceito de secularização, Hermann Lübbe tro mais conservador da política alemã do pe1fodo entreguerras,
defende a lústória dos conceitos como uma históda do uso das pa- quando não do nacional-socialismo. 46 Nas derradeiras páginas de
lavras (Wortgebrauclischichte), vendo nela um instrumento poderoso sua Filosofia da Histótia (1934), Rothacker chega a evocar passagens
no sentido de lançar luz sobre aquelas crises recorrentes na história de discursos de Hitler com menções à "mentalidade heroica da raça
i:
da filosofia e das ciências humanas, situações "caóticas" no uso de nórdica" e insiste na "necessidade de apoiar energicamente todas as
detenninados conceitos. Ela serviria} portanto, con10 instância de medidas eugênicas" levadas a cabo pelas autoddades." Antecipando
controle e de antídoto em épocas de anomia conceitual. 43 um argumento que seria empregado por Brnnner cinco anos mais
Concluído em 2007, o Dicionário histórico da filosefia abarca o tarde em Ten-a e dominação, Rothacker afirma que diante da vitória
utúverso de 3.670 conceitos. Para tanto, foi mobilizado um exército da "revolução nacional-socialista[ ... ) os conceitos fundamentais têm
de 1.500 autores (inclusive um presidente da República: Roman de encontrar a sua confirmação nos acontecimentos recentes tanto
Herzog), a um custo final estimado em quinze milhões de euros. quanto nos pretéritos" .48 O próprio Koselleck, numa carta enviada
Ante os outros grandes projetos similares, como o Uxico dos conceitos a Carl Schmitt em 18 de fevereiro de 1961, comenta as razões pelas
pol/tico-sociais na França e os Conceitos hist6ticos fundamentais, a marca quais "a irrupção revolucionária de 1933 se perdeu" .49
distintiva do Dicionátio hist6tico da filosofia - sua força, mas possivel-
mente, também 1 sua. fraqueza - radica na não subordinação a uma
tese constitutiva central ou a uma concepção unitária de história 11 l{QSELLECK, Reioh3,rd. Sozialgeschlchte und BegriÍÍ!ges.:hichte. Jn: SCHIEDER,
Wolfgang; SELLIN, Volkcr (Htsg.} Sç,::.tfolgesdrkhtt. it1 Dtu15rhfouJ, vol. I. Gõttingen:
dos conceitos, 41 Vandenhoeck & Ruprecht, 1986, p. 91.
0 Da vasta literatur.tsobre Schmitt, e[ a excelente biognfia escriupor 1v1EHRING, Reinbar<l.
V. Carl Srhrnill, Auí~tieg und Pall. Milnchcn: C. H, Beck, 2009. Sobre as relações de Trier,
Rothacker eBrunner com o nacional-mcialismo, ver os mudos de HUTTON, Christopher.
Li;1guisll'cs m1d tire Tlu'rd fufrh. London: Roudedge, 1999, p. 86-105: BÔHNIGK, Volker. Haltung,
Esta breve exposição sobre a lústória da história dos conceitos Stil, Typm, Kultur, R<>thackers begcUfsge;chichtlicher Entwmf clntr nationahozblbtischcr
na Alemanha e países de língua alemã não podeda ser concluída sem Kulturtheocie. Ponun Jmud{1zlpU11iJ1t Btgr{ffigmhidite, v. 1, n. 2, p. 70-82, 2012; ME(.1'0N,
Jamc~ van Hom, Otto Brunner e :ii orige,u idco\6gkas da Begdíngmlúchte. ln: JASMIN,;
que enfrentássemos uma questão polêmica, mas da qual não estamos
FERES JR.(Orgi.) HlstMa áM <Mulf.is, op. cit., p. 55-69; ALGAZI, Gadl. Olt<> Drunner.
no direito de nos esquivar. O momento decisivo de aproximação Konkreter Ordnung und Sprache der Zeit, ln: SCHÔTTLER, Pcter (Hng.) Ge1d1frlife ais
Ltgiflmdtfo1uwiue11uhafi, 1918-1945. Frankfurt P.ln M:tin: S1.1hrkamp, 1998, p. Hi6-203.
f1 ROTHACKER, Erich. Gtsdildmp/illo1ophie. München: Oldenb<>urg, 1936, p. 147-148.
1
~ TINNE~, Das Unt-.:mehmen, op, dt., p. 10-11. H ROTHACKER, Ce,cl1i<lilipliifo1(1phft, <>p, cit., p. 145.
•) LÜOOE, Hermann. Si1k11ft1tis{m11ia. Geschkhtc t!in.es ideenpolitischenBegtHú. Freiburg: Karl
H "(... J warnmdcrtevolutioná're Aufbruch V<>ll 1933 ve~1p!eh wurde", Citado por MEHRING.
Alber, 20-03.
0 De,grilfsgeschichte mit C,arl Schmitt, -0p. dt., p. 151. Se levarmos ern conta que o uso de
RITTER, Jo1chlm. Leitgedanken ttnd Grundsitze des Historischen WOttetbudis der
Philosophie. Archlvfiir BtgnlfigmM<htt, v. 11, p. 75-80, 1967. Um bom exemplo daJ vantagens <letc;rminados conceltos permite, no interior de um dado campo iem~ntic-0, imediat;imente
e desvantagem d;1 Muênda deliberada de uma tese "forte" subj2cente ao dicionirio de Rluer identificar e "localizar" um dl:"lerminado jnterlocmor no elpectro poHtk-0, pode-$e imaginar
~ o verbete escrito por SCHOLTZ, Gunter. Geschichte, Historie. ln: l:lliti;rfuhes H'õ,1crbud1 o que signiftca, sobretudo nurnp:a.ls ('.Omo ô\Alenunha;;{o pós-guerra, referir-se à 1933 como
der Phllosophfr, ,;oi. 3. Base!: Schwab, 1974, cols. 344-398. uma "revoluçlo".

30 31
Ú CONCEf!O DE H,>TÓ\IA
f'wAoo

Essa associação entre história dos conceitos e a chamada do campo conservador? A questão está longe de ser simples, mas
"Revolução conservadora" da República de Weimar e a sua deve-se sublinhar aqui ao menos um aspecto importante. Uma
continuação sob o nacional-socialismo terá contribuído para o das dimensões da vida social sobre a qual o nacional-socialismo
grau de reconhecimento relativamente modesto de que gozou o atuou de fonna programada, e em proporções desconhecidas até
projeto do léxico no meio historiográfico alemão e'ntre as déca- então, foi precisamente a esfera da linguagem, Um precioso tes-
das de 1970 e 1990? Em seu balanço da historiografia do século temunho de Ernst Cassirer nos dá uma pálida ideia do que isso
XX, o papa da história social da Escola de Bielefe]d, Hans-Ulrich representou na prática. De seu exílio norte-americano, ele escre-
Wehler, procurou inflacionar a influência de Brunner (a quem ve: "Atualmente, se alguma vez acontece que eu tenha de ler um
se refere como "o historiador nazista mais influente até hoje") livro alemão publicado nestes últimos dez anos [... ), descubro com
sobre o Grupo de Trabalho em História Social Moderna e sobre grande surpresa que já não entendo o idioma alemão. Cunharam-
os Geschichtliche Grundbegr!ffe, falando ainda em "contaminação" se palavras novas, e as antigas são en1pregadas com um sentido
do léxico pelo pensamento de Schmitt. 50 novo; sofrera.tn uma nmdança profunda de significado". Cassirer
É rigorosamente irrelevante para a histótia da historiografia, afirma que "aquelas palavras que antes eram usadas num sentido
assim con10 para a história das ciências em geral, a tentativa de descritivo, lógico ou semântico, se empregatn agora como palavras
valorar a contribuição dos pais fundadores da moderna história dos mágicas, destinadas a produzir detenninados efeitos e a estimular
conceitos a partir de critérios extracientíficos; n1esmo porque os determinadas emoções". 52
inspiradores da Escola de Bielefeld (Theodor Schieder e Hans Ro- Em um de seus mais importantes ensaios, Koselleck postula
thfels) tinham igualmente pertencido ao campo conse1vador. Não que transformações "no meio social ou político se correlacio-
é incomum, na história das ciências humanas, que justamente de nam coin inovações metodológicas", transformações essas que
autores politicamente conservadores possam advir grandes avanços, não raro são experimentadas de forma relativamente homogênea
enquanto aqueles situados no campo liberal ou progressista se man- no interior de
11
unidades geracionais" especí-ficas. 51 Tal conexão
têm, muitas vezes, finnes na sacralização da tradição. Os nomes de ilumina bastante bem o nosso problema. Pois não resta dúvida
Otto Brunner, de um lado, e de Gerhard Ritter, de outro, ilustram de que a gradariva tematização da linguagem enquanto potência
esse "paradoxo)) à peifeição.51 histórico-social, embora já se manifestasse nos trabalhos de diver-
A pergunta que se deve colocar - síne ira et studío - é de outra sos autores ligados à liRevolução conservadora'\ ganha impulso
natureza: por que a (re)descoberta da linguagem enquanto po- decisivo con1 o advento do nacional-socialisrno e suas iniciativas
tência histórico-social foi originalmente realizada por acadêmicos mais ou tnenos siste1náticas de criar um vocabulário próprio. É
compreensível que, nessas condições, a linguagem se tomasse
H WEHLER, 1 Ham-Ulrich. Hluotis,hes Dwken am Ende de; 20.),lfohrmdws. GOttingen: Walh:tein,
um dos mais privilegiados campos de análise histórico-social para
2002, p. 48-49, Sobr~ 35 cemões enHe a hhtóda social de J3ielefeld e a histórfa dos conceitos, a geração de pesquisadores e intelectuais que viveu a ascensão e
cf. DIPPER, Die 'Geschichtliche Gmndbegriffe', op. dt., p. 30•1-305. queda do nazismo. Sinal evidente disso. é que tal movimento se
11
Par;,. Koselleck, nru11ner é urn bom exemplo de como "interesses cognitivos politicrn1eute
condkionados podem conduzir a novas ideias te6r!cu e metodológic.u, .u quais sobrevivern estendeu inclusive aos críticos do regime nacional-socialista, entre
a $CU contexw de origem". KOSELLECI<, Sozfo.Jge5chichte und Begriffsgeschkhte, op.
cit., p. 109. Gerh-ard Ritter foi um dos poucos historiadores alemãei de prestígio q\1e
se opôs resoh11ameme a.o nazismo. No imbito da disdplina, contudo, $t opôs de formi ~? CASSlRER, .EmH. E/ mila dtl Estado. México: Fondo <le Cultura Econ6mica, 19921 p. 335.
igu~lmente deddida ! recepção da Escola dos Annalt:-~ na Alemanha, tendo ainda criado u KOSEI.LECK, Reinh.;rt. Erfahrmigswandel und Methodenwechsel. Eine historis,;:h~
dificuldades ao estabelecimento di história social na déndide 1950. Cf. SCHULZE, Dw11d1e anthropoloii;che Ski2~e. ln: Zeiurh/rl11e11. Studienzur Historik, Prankfurt;.m M,h:1: Suhrbmp,
Gmhid1wvúw1.Ji:hi1ji Md1 1945, p. 285-289.
2000, p. 32-35.

32 33
O i;QN<:mo o,; tt.sróM

eles, os pioneiros da chamada crítica da linguagem (Sprachkritik):


Victor Klemperer, Dolf Stenberger, Eugen Seidel e lngeborg
Seidel-Slotty, e cujas obras, por razões óbvias, só puderam ser J

publicadas depois de 1945. 54

***
Os leitores de Koselleck sabem que para ele a história - nos
dois sentidos do termo - se constrói numa dialética infinita de crise
e continuidade. Aplicado à história da história dos conceitos, esse
princípio se deixa traduzir pela máxima Zukcmft braucht Herkunft. Em
que pese o uso de uma retórica anti-historicista em um ou outro de
seus textos da década de 1960, Koselleck parece ter evoluído, em
sua fase mais madura, para uma posição francamente conciliatória a
esse respeito. Ele reivindicará para o léxico dos conceitos as rnbricas
de uhisto1icismo sólido" e "historicismo reflexivo'\ 55 Dono de unia
perspicácia e de uma sensibilidade que ainda hoje nos surpreendem,
Sérgio Buarque de Holanda foi, provavelmente, um dos ·ptirneiros
a se dar conta disso. Nos últimos parágrafos de seu grande ensaio
sobre Leopold von Ranke, publicado em 1974 na Revi<ta de Hís- O conceito de História
t6ria, ele comenta o aparecimento dos dois primeiros volumes dos
Geschicl,tlíche Grundbegri.ffe e conclui que a "notável vitalidade" ali
manifestada era "uma demonstração de como se pode remoçar, sem
trai-lo, o espítito da 'escola' histótica alemã". 56

H KLEMPERER, Victor. LTI • A linguagem do Ttrtdro Rdcl1. Rio de Janeiro: Contraponto,


2009; ST.ERNBERGBR, Dolf; STORZ, Gerha.rd; SÜSKIND, Wilhelm. Aus dwr W61tubud1
du Umnmuhttl, Hamburg: Claamn, 1957; SEJDEL, Eugen; SEIDEJ.-SLOTTY, Jngeborg,
Sp11ul1wa11dtl lm Ddltm Rtfrh: cine kdtis(he Untersuchung fuschistischer Eínflüue, Halle:
Verlag Sprache und Litetatur, 1'161.
H "Wir beReis~igen un~ eines !oliden Historismus", "reflektienen Histori1mn$11 • Citado por
DIPPER, Ole 'Guchich!Hche Grundbegriffe', op. dt,, p. 290.
H HOLANDA, SErgio Buarque de, O atual e o inatual e Leopold von Rankc-. ln: HOLANDA,
Sérgio Buarque de (Org.) Rankt. Sfo Paulo: Átil:3, 1979, p. 60.

34
Introdução*
Reinhart Koselleck

O fato de "História" ser um conceito histórico básico parece


decorrer da própria palavra. Mas a expressão possui sua própria
história, a qual somente ao final do século XVlll lhe permitiu
ascender à condição de conceito mestre, político e social. Abran-
gendo tanto passado quanto futuro, "a I-Iistória" se transformou
num conceito regulador para toda a experiência já realizada e ainda
a ser realizada. Desde então, a expressão ultrapassa em muito os
limites de simples narrativa ou de ciência histórica.
Por outro lado, a 111-Iistorie", como conhecimento, narrativa
e ciência, é um fenômeno antigo da cultura europeia. Não há
dúvida de que a narração de histórias faz parte da sociabilidade
dos homens. Mais: sem histórias não há memória, não há nada
em comum, não há autodefinição de grupos sociais ou de uni-
dades de ação políticas, os quais só conseguem se constituir em
elementos agregadores através de memórias comuns. Esse tipo
de ºhistódas" naturalmente não são conceitos básicos, nias se
mantêm como narrativa daquilo que estava em jogo numa deter-
minada história. Pode se tratar da história de uma batalha, de um
ato jurídico, de uma viagem, ou de mn milagre, do assassinato
de um rei, ou de um amor. Sempre se narra de quem trata e de
que trata a história. Até esse ponto a expressão uuma história"
1

não constitui qualquer conceito básico, no máxirno aquilo que,

Agrade-ço :ios estudrntei de doh seminários pur wmentários, ;i;juda, e cor,eções, em especial
30~ senhores Horst Gilnthi.r,JOrg Pisch, Rolf Reichardt e Reinlurd Stumpf.

37
k,11RODIJÇÃO
0 CCNCmô OE Hl-ST◊,1-1,

como u1n somatório de mna narrativa, pode, ao seu final, ser sub- reflete a conscientização daquilo que era vivenciado cmno nova era,
sun1ido num conceito. justamente naquilo que se considerava como único e diferente de
O fato de que a História se refüa à "própda História" [Geschi- tudo aquilo que houvera até então. O início da Ne11zeit, do novo
chte se/ber], e não a uma história de algo, constitui uma formulação tempo, da Era Moderna, evidentemente, constitui um processo de
da Era Moderna. Somente assim, pouco antes da R~volução Fran- longo prazo, e somente no seu final se encontra o reconhecimento
cesa, a antiga palavra usual se trausformou num conceito central do caráter processual desse período: isto é, a descoberta da "História
da linguagem política e social. como tal" [Geschic/1te iJberhaupt], como resultado do Iluminismo.
Esse conceito de "História em si e para si" [Geschichte an 1111d Antes disso, existia uma multiplicidade de Histórias, que em
ftir sich] incorporou uma teia de significados, seguidos como trilhas geral apresentavam similitudes entre si ou que até se repetiam -
neste texto: a História como acontecimento e sua narrativa, como histórias com alguns sujeitos que agiam ou eram objeto da ação,
destino e como informação a seu respeito, como providência e ou ainda (na narrativa) com objetos determináveis. Desde o século
sinal a respeito, todo conhecimento da Historie como coletânea XV!ll existe uma "História propriamente dita" [Gesc/1ich1e schle-
de exemplos para uma vida piedosa e justa, prudente e até sábia. chthin], que parecia ser seu próprio sqjeito e seu próprio objeto, um
Sem renegar todas elas, o moderno conceito de História articulou sistema e um agregado (como se dizia na época).
muitos dos sentidos antigos. Espacialmente corresponde-lhe a História mundial [vVelt-
Em contrapartida, a novidade está no fato de que o conjunto geschic/1te] única, e temporalmente o caráter único do progresso,
do emaranhado de relações político-sociais deste mundo, em todas o qual somente com a ''História" foi guindado a conceito - isso
as suas dimensões temporais, deva ser entendido como "História". antes que ambos os conceitos fosse1n se afastando UJ-n do outro,
Em todos os sentidos em que antigamente se podia evocar justiça gradativamente, no decorrer do século XIX.
ou castigo, violência, poder, providência ou acaso, Deus ou o des- Uma das características estruturais dessa nova História é que
tino, se podia recorrer, desde o final do século XVlll, à História. ela reduziu a um mesmo conceito a contemporaneidade de coisas
Novos significados, que antes não se conseguiam resumir não contemporâneas, ou a não contemporaneidade de coisas con-
linguísticamente num conceito único foram agregados: a História temporâneas - aproxin1ando-se tatnbém aqui ao progresso. Isso é.
como processo, como progresso, como evolução ou co1no necessi- válido não só no sentido evidente de que toda e qualquer narrativa
dade. "História" se transforma num amplo conceito de movimento. traz o passado para o presente, eliminando, dessa forma, as dife-
De outro lado, se abre um novo espaço de significados: "His- renças temporais que tematiza. Muito além disso, a realidade da
tória" como campo de atuação e como ação, como liberdade. A História moderna se compõe de uma multiplicidade de transcursos
História torna-se planejável, produtível, factível. De "História" que, pelo calendário, são contemporâneosJ mas que pela origezn,
decorre também um conceito de ação. As duas variantes - o lado pelo objetivo e pelas fases de desenvolvimento não são contem-
objetivo e o lado subjetivo-, que se excluem mutuamente, conferem porâneos. Disso decorrem tensões, perspectivas de retardamento
ao conceito uma ambivalência que lhe é inerente desde então. Sua e de aceleração, distorções e uniformizações, que fazem parte da
utilização como palavra de ordem, sua suscetibilidade à ideologia temática de nossa História mundial [Weltgeschichte].
e sua capacidade de crítica da ideologia derivam desse fato. A contemporaneidade do não contemporâneo já se delineia
A configuração do novo conceito indica um processo de aden- na Historie antiga, quando os helenos descobriram - a partir de sua
samento de um tipo de experiência pelo qual se passou no período perspectiva-, entre os bárbaros, formas de comportamento caracte-
da Revolução Francesa, criando novas expectativas. A expressão rístico de estágios culturais que eles próprios já haviam percorrido.

38 39
O murro Df His,ói.v.

A tensão temporal foi reforçada pela expectativa da vivência cristã. li


Ela inclui a esperança em um futuro cuja promessa de salvação
determina o próprio presente, enquanto um pagão ficaria preso
ao passado pré-cristão. Antiguidade
Desde a descoberta de que nossa Terra é uma· esfera, a con-
temporaneidade do não-contemporâneo se transformou numa Christian Meier
experiência de todos os povos que habitam este globo. Desde
então, a História é temporalizada, e1n um sentido genuíno. O
tempo passa a ser estratificado, não 1nais só como vivenciado ao
natural, mas também como forma de realização e resultado da
ação humana, da cultura humana e sobretudo da técnica humana.
Somente a partir do momento em que aceleração e retardamento
conseguem medir diferenças de experiências, cuja equalização se l. Terminologia
transforma em Leitmotiv de uma ação político-social, e só a partir
A palavra iawpív se encontra nas nossas fontes pela primeira
do momento em que isso se vincula à expectativa de um futuro
vez em Heródoto, o pater historiae, desde o século V a.C.' Ali ela
planejável, é que existe o conceito de História. "História" - como
designa tanto saber quanto busca, pesquisa e resultado de pesquisa.
conceito-legitimador - vai muito além de sua aplicação científica.
Por essa razão, hoje ern dia, muitas vezes se utiliza a palavra como
Ele conseguiu reunir as experiências e as esperanças da Era Moderna
termo para designar as descobertas geográficas e etnográficas levadas
numa só palavra, a qual conseguiu se tornar, desde então, termo de
a efeito a partir da Jônia ("Historie jônica"). Ela aparece especifica-
discórdia e palavra de ordem em nossa linguagem político-social.
mente para a investigação através da interrogação de testemunhas.'
Decisivo para a continuidade da história dessa palavra foi o fato de
que Heródoto utilizou íuwpív como título para suas várias formas
de pesquisa, nas primeiras linhas de seu Prooimion: "esta é a apre-
sentação da investigação (frn:op/vç án:6óeç1ç) de Heródoto de Hali-
carnasso". Aparentemente lhe pareceu a mais importante forma de
obtenção de conhecimento, não por último com vistas ao complexo
especialmente amplo dos fatos do passado, cujo conhecimento s6
poderia ser obtido através de testemunhas.'

HBRODOT, Prooemimn. Cf. 7, 96, 1; 2, 99, 1; 2, 118, li 2, 119, 3; 2, 44, 5. A rcferênd-3


apresentada no fragmento de }-Ied.clito (n.. 129) provavelmente não é.autêntica. "Pala h!ucriat":
CICERO. De lttib11s, 1, 5,
1
Cf. SNBLL, Bruno. Dit A11sd1lllktfi11 den Bt_g,{jf du Wimns {ti der ~wplatMiuhrn Philo.1<.Jp!iit.
Berlim, 1924, p. 59 e !egs. Mais bibliografia em: KITTBL, Gcrhud. Tfr,,,lcgisdus WtJrtubmh
zum Nt11e11 Ttmnw11 (vai. 3). Stuugart, 1967, p. 394 e H:gs., rnb nrbc lucopfoJ.
3
'fJlvcz também se poderia ter pensado em (Jcrup!a (of. HERODOT; l, 29, l; 1, 30, 1 e seg.).
Nesse ca~o, a Historfo hoje se ch2nurfa "Teoria" - e o di~curso sobre a deíiciêncla teóric1
visuía :i. um déficit de 1-/lslan'e.

40 41
Ó Cot,KUTO t:â Hlsré>;.tA. Áh'TIGIJ{'>AO!:

Com isso, não havia sido dita qualquer coisa sobre o objeto foi a explicação histórica através da reconstrução de um aconte-
dessa pesquisa, o conteúdo da obra de Heródoto. Pelo contrário, cimento multissubjetivo, que se compunha de múltiplas ações,
naquela época, a palavra era neutra em relação a qualquer conteúdo. de m6ltiplos acontecimentos, de múltiplas ocorrências, com seus
1uropív poderia se estender a tudo aquilo que era empiricamente respectivos entrelaçamentos, e isso ao longo de aproximadamente
pesquisável (e, provavelmente, além). Parece paradoxal que a palavra três gerações. Esse procedímento era novo, e através dele a "His-
que mais tarde viria a designar "História" não podia ser aplicada torie" surgiu entre os gregos. Mas não está claro em que medida
em seu significado específico original à pesquisa sobre a maior Heródoto tinha consciência de que, através da tentativa de assim
parte da História, porque, metodologicamente o passado, segundo responder àquela pergunta, estava constituindo um objeto espe-
Heródoto, só é pesquisável para as duas ou três últimas gerações.4 cial. Em todo caso, ele não possuía un1 termo para esse catnpo ou,
Heródoto foi coerente ao adotar como título a designação dito de forma diferente, para a forma específica de entrelaçamento
metodológica geral, aberta em relação ao conteúdo. Sua obra atingia (histórico) entre ações, acontecimentos e transcurso ao longo das
sna unidade no fato de que era o relato de pesquisa desse homem. s gerações por ele percebidos. Ele também não possuía uma palavra
Tematicamente ela abrange uma multiplicidade de objetos que para a forma específica de perguntat·, de explicar e de representar.
hoje em dia designaríamos como históricos, geográficos e etno- Mas aparentemente não sentia necessidade disso.
lógicos. Para o recorte espedfico que interessava a Heródoto, nós Heródoto chamou seu tratado de J.óyoç. 8 Isso significava algo
ainda não temos uma palavra até hoje e provavelmente não a tere- como representação em prosa. Ele utilizava essa palavra para si-
mos.' O próprio Heródoto diz que lhe interessa preservar "aquilo multaneamente designar o fio condutor, e, nesse sentido, de forma
que aconteceu a partir dos homens (rb. yevópeva tç ú.v0pdm:wv), e indireta mas não específica, o contexto "histórico" mais geral que
de grandes e admiráveis obras (lpya) que foram apresentadas por ele estabelecia.
gregos e por bárbaros", bem como "descobrir por que razão e por Mais tarde, em Tucídides, o acontecimento político-militar
que culpa (oi {ív alrí11v) guerrearam entre si". 7 Entre as Épya não está clara e rigorosamente descolado da multiplicidade bem mais
apenas se incluem ações políticas e militares, mas também obras ampla de experiências humanas de que trata Heródoto. Isso ocorre
arquitetônicas, e quanto às yevówva ,!ç ú.v8pdJ1crov provavelmente de forma paralela à abordagem muito mais profunda e ao conheci-
ele também pensava nas maneiras institucionalizadas em que fatos mento mais objetivo desse campo. Mas também em Tucídides não·
acontecem, como costumes e organizações, formas de vida. se consegue enxergar que ele estivesse consciente da especificidade
Na busca pelas causas da guerra persa (e - complementando - do objeto "História" ou que até tivesse pensado que sua forma
da vitória grega), está contemplado aquilo que em termos modernos daquilo que chamamos de "escrita da História" fosse a correta, ou
se chamaria interesse histórico. É verdade que essa pergunta podia que História fosse, na verdade, História política.• Na introdução,
ser respondida de muitas maneiras. A maneira de Heródoto, porém,
Jbid., 1, 5, 3; 1, 95, t; 2, J, 2; 2, 123; •I, 30, J: 6, 19, 2 e 3; 7, 152, 3; 7, 171; 7,239, L CC
THUKYDIDES, 1, 97, 2. Respectivamente, J.oyo,rozóf (HER.Ol)OT, 5, 125), cm, oposição
Cf. SHIMRON, B. llp6noç rtiiv1µelç íómtv. Eran"'• n. ?1, 1973, p. 45 e seg~. a tno~ e µovao1Co16ç e ).oyoyp(1,1;0,; (THUKYDIDES, 1, 21, t}, 1\tddides fala de ÇIJ)'}'Pª~~1 (1,
1 A esse respeito, e também sobre aquilo que 5cgue, cf. MEIER, Christian, DieEnt1teh\lngder 97, 2. Cf. l, 1, 1. Além disso, {vm>a9eúç pau o hhtoriador; XENOPHON. Hdk11iká, ·1, 2,
Historie. ln: KOSELLECK, Reinhart; STEMPEL, Wolf-Dieter (Eds.), Gwliidite - Brtig11/j 1; POLYBIOS 1, 2, l e p,mim). Hhtoriadores posteriores designam mas obras como tr.i.tadoi
mrd Brzli/J/1111$, Munique, 1973, p, 251 e scgs. (;rpaypau:fa., por exemplo, POtYBIOS 1, 1, 4; 4, 20, S; qQvrn(1ç, ibid., 1, 4, 2; 8, 2 {4J, 5 e 11),
1 I!m todo c;i.so, nio é posslvel comprN:nder esse conglomerado temidco a pa.rtir de hoje como a 9 Esn não é nenhuma mtilen, porque - par;i poder peuur qual é a e!crlta correta da Hlst6ria
História entendíd.1 em sua verdadeira abrangêncil - a!-$Ím acoiiteddo e,n STRASSBURGER, -, no milllmo, se precisa saber que exi11e escrit~ da "Hhtórh.". É vl!rdtde que Tucldides quer
Heunann. Dlc Wmmb.:stimnm,ig dtrGtsúiichttdurch Jie <1ntlkc CmlrldrLJrdrn.ibur.g. Wle:sbadcn, 1966. fazer algo melhor que todos os seus anteces1ores, sobretudo melhor que Heródoto, maJ ls.10
' HERODOT, Prooeini1.1m. significa. apenas que ele quer obter e :lpre!ent~r, de forma obje!lva, {l~tuminados conhecimentos

42 43
ÁNOO(.,I.DADf

em todo caso ele apenas diz estar descrevendo a "guerra entre ate- Um nome especifico parn a escrita da História se encontra,
nienses e peloponésios". A palavra iuropfa não aparece no seu texto. pela primeira vez na Poética de Aristóteles. 13 A /uropfa trataria da
Na qualidade de termos gerais para os objetos do interesse reprodução daquilo que aconteceu (,õ. yevóµeva .léye,v). Não se
uhistórico", aparecem apenas designações para coisas individuais 1 pretenderia "apresentar a unidade de uma ação, mas a unidade de
como particípios de yíyveu0w para acontecido, evento, 'épyov, palavra um tempo (01í).rou1ç ... évóç xpóvov), isto é, aquilo que aconteceu
que, sobretudo em Heródoto, significa ação, plano; em Tucídides, num determinado tempo com um indivíduo ou com mais indi~
também evento'º, 7Cpê/.yµa, que abrange uma ampla gama que vai de víduos que se relacionavarn entre si, como acontecia por acaso".
ação, plano, procedimento, passando por tarefa, incidente, propósi- Os acontecimentos não convergem para um mesmo objetivo (€v
to, acontecido, indo até "complexo de eventos'\ transcurso, e que rüoç), Objeto da Historie são, segundo Aristóteles, os ttanscursos de
também pode ser traduzido por "História" (como da complicada acontecimentos político-militares. O termo para essa categoria ele
descoberta de um túmulo). Em Políbio, a palavra 7Cp/J.ç1ç aparece, (ou alguém antes dele) aparentemente buscou na primeira linha de
com frequência, em acepção semelhante. O fato de que com isso Heródoto", quando erroneamente tomou luropfv como designação
diversas designações para fazer e agir se transformaram simultanea- para o Hconteúdo histórico'\ ou n1elhor, para o gênero estético
tnente em termos utilizados para um conjunto de acontecimentos, determinado pelo conteúdo dos 11 transcursos de acontecimentos
parece indicar o alto grau em que a Historie grega envolvia a ação político-núlitares dentro de um espaço temporal". Em Aristóteles,
em contextos relativos a eventos 1 em transcursos multissubjetivos. também se encontra, pela pdmeita vez, o termo IITTop11cóç.15 Somente
Isso decorria do fato de que a experiência com ações políticas es- a posteriori, isto é, tendo em vista um gênero amplamente divulgado
tava amplamente difundida nas sociedades das poleis, e o interesse de representação literária, iuropía parece ter adquirido um sentido
nessas ações incluía o interesse e1n seus condicionamentos. 11 Acon- especificamente "histórico". A responsável por essa situação foi a
tecimentos de tempos passados eram frequentemente chamados de necessidade de classificação. Além disso, havia o velho sentido geral
rà "ªÀwá; rà M11011<á se referia à guerra persa, ,à Kep1wpw1<á aos da palavra: saber, ciência, pesquisa, como em ""ri
rp6ueroç /uropía.
acontecimentos em torno de Kerkyra 12 , e assim por diante. (Platão, Aristóteles), ou, em latim, na natura/is historia ou nos naturae
/,ístoriarnm libri de Plínio. 16
sobre õtÇôes humma.1, em cspechl ações político-uLiUtares, e seu desenrolar. E is.so ele faz. O Num passo seguinte, é que, então, laropía assumiu o significado
fato de que, pata ele, "Htlt6ria" seja apenas política e guetra, ou que a Guctt3 do Peloponeso de "História" (no sentido de acontecimento). É em Políbio que
representa "a pai te mais importante d:i História" (STRASSBURGER, Dit Wewubesti11111umg... ,
p. 23), isso só lhe é atribuído a pnth-de nos.se conceito de História. Tucídides apenas chama
à guerra de "o maior movimento" ou "abalo'' (1dw101ç, 1, 1, 2),
u ARISTO'f.ELES. PCEtlk, 1451 :1., 36 e segs. (uaduç.io de acordo com Gigon). A em n:Jpcito,
in C( (MMERWAHR, Henry R. Ergon: Hhtoryasa monument inHerodotu,andThucydides. cf. Rl1eto1ik, 1360 a, 36.
Amt1í(l111]011mal ef Philofilgy, n. 81, 1960, p. 261 e <Jegs, 11 Aristótdcs aqui t3mbém pema, .1obretudo, C)rl Heródoto {Pcttik, MSI b 2; 1459 a 25 e seg.),
u Cf. côtno <:ontraimagem ex:tremad:t o caso da concepção sobre a pr,Hicamcnte ílimitada Além disso, erl ums! dr-.ir o~ livco• dem êpllca que não tinham títulos - JACOBY, Felix.
capacidade de agir e de fazer acontecer do rd egfpcio. HORNUNG, Erik. Gmhfd11~ ais Fut. Attl,ü. Oxford, 1949, p. 82 - com ~s pahvras inki:lis, ou ,;om uma das palavr.H inichh, C(.
Da.rmmdt, 1966, p. 14 e seg~. NACHMANSON, Ernst. Dugriufiiuhe B11d!litel, Gotenborg, 1941, p, 46, 49 escgJ,Exaumcnte
11
Os comprovantes slo facilmente encontráveis nos re1pectivos dicionários. Complemen1arin.en1e, isso puece ter acouceddo ,;om a /oropfv de Heródoto (como, m;1is tarde, ainda em Díonhio
qbe apontar ainda pm os pmidpiosdeovµpa{v6J (cf. ARISTOTELES. Met11phy1fk, 982 b 22; de Halkarru1...io (Eplrnif" ad Ptm1pe/11m, 3}). De fornia mui10 puecida, ov-,ypa,;tl>~deve ter sido
POLYDIOS, 3, 4, 13: rÕK&.pá.áo(ov1ôJvaµpa,vóvr.wv), Além dhso, parecem muito intercuante! modificado para. o 1ermo que s~ refere MS hhtoriadore! contemp<itlneos, ,;om vistas¾ linha
as indicações no estilo tà ... npO «óvr&v rà êi1 xàfolrepo. (THUKYDID.ES, 1, .1, 3). O neutro
inicial de Tucídides (Sdrolfo in Dlo11y1ii 'fltrads Arftm Grnmmalicdm, 11, 4, 166, 4, Hilgard),
plural dos ;1.djetlvos de noines de cidades ou de povo! também serve para detignaras "H:iu6rias"
deHas cidades e dems povos (d. adbnte). Heródoto utiliza, por exemplo, .A1pv1<oi Myo1 (2,
n AR!STOTELES, Pcaik, 1451 b l, No sen,ido geral de "pc>qui1ador'' ou "perito": R11e1on"~, 1359 b 32.
1~ PLA'f'ON. Ph11!dM, 96 a 7; ARISTOTELE:S. OtgauC>Jt, 298 b 2; u referências latinas em
161, 3). Para o escudo dos períodos mais remotos, p:!.rece que já no século V apareceu o termo
"Arqt1eologia" (PLATON. Hippfrt; M<Jfor, 285 d). TJwa11riH U11g11a~ UU11a, vol. 6/3, p. 1936-42, 2833 e seg.

44 45
0 OONa/J0 Df HLSíÓ.IA

encontramos pela primeira vez a palavra utilizada dessa forma", e 11/Jistoría''i acabaram por assunlir o significado de "História", de
ali a transposição semântica possui um sentido todo especial. É que forma que essa palavra se transformou num conceito que agregava
Políbio pensava que os acontecimentos e os transcursos do mundo tudo aquilo que estava na literatura histórica. Significava então a
(ai rl/ç o/,cov11tw1s rrpáçe1ç) antes de 220 tivessem sido individuali- soma de tudo aquilo que fora transmitido pela tradição e, nesse
zados, isolados entre si, mas depois disso a História Umopfa) teria sentido, a soma dos acontecimentos. Fala-se, por exen1plo, de bc
tomado, por assim dizer, a forma de um corpo (uroµaroe1ó1ç)," n1ç /,nopíaç 11á0'lu1ç, ou então se diz: plena exemp/omm est historia, ou
que significa que ela se transformou num todo inter-relacionado, ainda: docet ... historía, 21 Os casos em que se pensa exclusivamente
fazendo com que as ações e os acontecimentos nas diferentes partes na História, e nem urn pouco na Historie são 1nuito raros, Cícero,
do mundo se relacionassem entre si, e todos eles se voltassem para numa única vez, diz que a historia Romana é obswm (porque não
um mesmo objetivo (§v rtAoç). 19 O todo apresentava um conjunto existem referências a determinado nome). Agostinho, a partir de
de ações (Ev lipyov), uma peça de teatro (Ev 0éaµa), com começo, seus pressupostos teológicos, distingue entre narrai/o historica e historia
meio e fim. 20 Numa referência direta a Aristóteles, mediante re- ipsa. 22 Em geral, parece ter sido difícil distinguir entre "Historie" e
ºHistória". Uma coisa não era imaginável sen1 a outra, a História
curso a categorias es~éticas, se reivindica aqui uma unidade para os
acontecimentos da época da conquista mundial feita pelos roma- estava contida na Historie, cuja função Cícero define muito clara-
mente como testis tempomm, /11x veritatis, víta memoriae, magístm vitae,
nos, as características de unidade literária (ou melhor, poética) são
mm/ia vetustatis. 23 Cabe destacar que a palavra muito frequentemente
vistas como concretizadas na História; como autor figura Tiquê
aparece no singular e sem qualquer definição através de um genitivo
(v. abaixo). Para isso, porém, não havia nome provindo do âmbito
ou de um adjetivo.'" (Em contrapartida obras históricas individuais
do objeto (que só conhecia 1rpáçe1ç, yevóµeva etc.). Assim, Políbio
muitas vezes são designadas pelo plural "Historien").
designou a "História" singular por ele constatada em sua época com
Sem dúvida, o conceito de uHistória" existia, n1as era utilizado
o termo utilizado para a unidade literária "Historie". Não se sabe se
sobretudo para a forma, para o invólucro, e apenas secundariamente
ele tinha consciência disso ou não, mas fato é que a História pôde
para todo o conjunto de ações, de acontecimentos e de transcursos
ser constituída pela primeira vez e somente no contexto literário
que ele continha. Do ponto de vista do conteúdo, ele visava muito
É por isso que foi uma atitude coerente que a História constituíd~
mais à soma dos acontecimentos do que ã relação entre eles, que era
da e dentro da Historie também fosse denominada lm:opla, quando
estabelecida na forma das Historie(n). Não se visava um movimento
apare;ia como singular (o que s_ó aconteceu durante algum tempo!).
dinâtnico, uma grande corrente, na qual se pudesse determinar
E verdade que Políbio praticamente não fez escola. Mesmo
um lugar, cqja unidade se pudesse assumir, cujo sentido se pudesse
assim, lmopla e a palavra latina que lhe correspondia de forma exata,

li POLYBIOS l, l, 2; CICERO, Dtdivinatio11t, 1. 50; AUGUSTIN. De dvilare Dd, 5, 12, 13.


11
POLYBIOS, 1, 3, 4. Igual.mente; 6, 58, 1; 8, 2 (4), 11; 12, 25 a, 3; Cf. OIONYS VON C(. DIONYS VON HALIKARNASS, 1, 3, l; CICERO, Oe divinatlont, t, 38; Dt -Jmtote, 1,
HALIKARNASS, 1, 2, t. N;1atuulmeme o me~mo ui.mbém podia ser deslgnado de forma 165; 2,265; PROPERZ (SexwiAurelius Ptopertim], .3, 4, 10; .3, 22, 20; PLINfUS. EplJtof.u,
pluul (com ;rpá(~1ç) {39, 8, 6. Cf. 1, 4, 1). 7, 9, 8; FRONTO, 106, 4, Naher.
ii POLYDJOS, 1, 3, 3 e scg. Cf. 1, 4, 7 .sobre a figura do corpo (o qual t~mbémserve para cJracmizar :u CICBRO. Deiepr.b{lta, 2, 33; AUGUSTIN. Dtdocrrinachri$riana, 2, 28 (44). In: O/fJ.,;1sd1n'S1i11mn1m,
o wpus Jit.erfrio}, d. PLATON. Plu1fdro1, 264 e; ARISTOTELES. Poe1ik, 1459 a 20; DIODOR, Serie; Li tina (vol. 32), 1962, p. 63 {cf. AUGUSTIN, D~drllalt Dâ, 10, 32, 3, ondehisr~ria é utilizado
20, 1, 5; CICBRO. Adfamlfioru, 5, 12, 4; LUKIAN. Quomodo hisroda lonHrihmda sit, 23, 55. nuis ou menos como hoje em dia podemos falar do "livro da História", ln qm, lta 1Mmmlur prruttrita).
tt POLYBIOS, 1, 3, 4; l, 4, 1 o seg. Cf. 3, 32, 7; 4, 28, 3 e seg.: 5, 105, 4 e seg., 9 e pou/m, Cf. CiCEl~O. De fi11lb11s bo11on1m el mafornm, 5, 5; C\'(:ntiulmente, Brnfus, 44; GELLtUS, .3, 3, 8.
H IbiJ., 3, l, 4 ~ S()g. Cf. 1, t, 6; t, 4, 5, onde, al6m de lpyov, !e fala de âyciw1u11CJ: ptovavelrnente 13 CICERO, D, Qr4tort, 2, 26. Cf'. PUNIUS, Bpistolae, 9, 27, 1: "q11ã11/a pottstas, q11a11ta dfgnltas,

tambêm aqm se deve enxergat uma referência. ao drana (literirlo). Cf. ARISTOLTELES, qw1111a maiestrts, q111111t11111 de11iqt1t tmmm sil /1{;/odae",
P..utik, 1451 b 37. 21 Cf. as citações latims em Tltrnrnrus Lbig_J1M LaHn<1, vol. 6/3, p. 2835 e ~llg.

46 47
Ó CON<:OTO E>E H,SIÓ~

buscar. O significado literário se manteve dominante, tanto no Cotn toda certeza, ligava-se à palavra "historia" sobretudo uma
geral quanto nos casos específicos. Aparentemente - abstraindo grande pretensão literária. Cícero a chamava de "opus ... oratíoriutn
de algumas exceções -, não podia existir um significado próprio maxime'\ e Quintiliano de "cannen quodanunodo solutum". 31 Ela era
de 11 Históriau para "historia". A Hist6ria, corno determinação de claramente diferenciada de simples "apontamentos" sem caráter
conteúdo, não conseguia se desvincular da forma Hisiorie. artístico (vrroµv,íµo.ro., co111111entarii), 32 Quando Cícero e Luciano,
A amplitude do objeto de "historia" podia, assim, abranger toda por exemplo, fazem reflexões teóricas sobre historia, eles o fazem
a humanidade. Fala-se de Kmv1) íaropío., Agostinho fala de historia
sobretudo a respeito de como ela deveria ser escrita. No caso, es-
gentium (que teria muitos prefixos). 25 Em geral Kozv1) íaropío. designa tava em jogo também o imperativo da verdade, mas muito mais
uma representação que abrange a História de vários povos."
na perspectiva de que se deveria se ater a ela do que da perspectiva
A categoria historia abrangia as mais diferentes representa- de como chegar a ela."
ções, incluindo genealogias e crônicas locais. Uma delimitação
clara nunca existiu. 27 Como título 1 "historia" concorre com muitos
outros sobretudo com formulações do tipo 'EAh7v1Ká, Kop,v01w<á, 2. Conceito de historia e concepções de "História"
etc. A História romana de Cássio Dio aparece citada tanto como
'PwµwKá quanto como 'Pmpo.1,c1 laroplo.. 28 Mas, por mais que a ca- Não é possível imputar, a posteriori, um conceito de Histó-
tegoria - sobretudo no tratamento de determinadas cidades e de ria à Antiguidade. É verdade que lá encontramos determinadas
determinados países - continuasse a incluir aspectos geográficos e correspondências para concepções que hoje em dia atendem pela
etnográficos, não há dúvida de que dentro do âmbito histórico há designação de "concepção de História", e que ocupam algum es-
uma clara concentração na História dos acontecimentos. O termo 1 paço no conceito de História. Mas elas fazem parte da concepção
portanto, nã9 se estendeu à ' 1 Histórüt da Filosofia ou à 11 Histórian antiga de "Mstoria", na melhor das hipóteses, na medida em que
das invenções, e coisas parecidas. 29 De uma forma geral, naquilo que classificam determinados conteúdos, e ajudam a entendê-los na
tange ao conteúdo, ele ficou restrito às rrpáçe1ç político-militares. forma em que estão contidos na palavra. Deve-se partir daquilo
O que chama a atenção é que em Roma se sentisse a necessida- que a Antiguidade entendia por "historia".
de de distinguir "historia" de "antiales", pl'ática que, aliás, obedecia O conteúdo presente na forn1a II historia'\ e ao qual simult~nea-
a critérios muito diversificados. 30 mente a palavra pode se referir, tinha em mente sobretudo a história
dos acontecimentos político-tnilitares. Por um lado, tratava-se das
15
OIOYNYS VON HALJKARNASS, 1, 2, I; AUGUST!N, De âtiifate Dâ, 6, 5 (7}; 21, 8. Cf. ações, dos episódios, dos destinos sobre os quais cabia meditar (a
10, 16. J1lorus diz M "Pr3efatio" de Epfrom~ remm Ro111/111<.>mm, que Roma expandiu seu poder
:ué o ponto em que o fez-, "1-11 qu/ m illi,u !tgm11, 110n 11n/115- popnti, udgt11uis fm111<111(fi1t,1 {011dim1111".
ª DIONYS VON HALlKARNASS, Epi>h1fa µd Pompd11111, 3; xo1vai 1tpá.{ç1ç; DIODOR, ·1, 1, 11
CfCERO, Dt lrgibm, 1, S; cf. PETZOLD, Kad~Enm. Cicero und Histode. Chi11111, n. 2, 1972,
s,
3; 1, 4; 111 37, 6. p. 253 eJt(;s.: QU1NTJUAN, 10, 1, 31; çf, STRASDURGER, Dír: Wmmbnthmmmg, p. 27;
1 KEUCK, Korl. Historia. Gcschichte dei W<irtcs und seiner Bedemung in der Antike und in
~ POLYBlOS, 9, 1, 2 e segs.: JACOBY, Fdix. Über dic Entwicklung der griechischcn
Historiographie und den Plan einer neuen s~mmlu11g de:tgriechischen l·fütoriketfrogmente, dcn romanischen Sprachrn. MUnster, 1934, p. 16 e segs. (tese de doutorado),
Klfo, n, 9, 1909, p. 88 (nota 4), 96 (nota l), n fs10 fka espedalmento claro n-a exceção, que confirma a regra: C!C.ERO. D1111m, 262. C(.
n SCHWARTZ, E. Verbete "C-mius Dio". ln: Re"lmqdopifdie (vol. 3), 1897, p. 1685. LUKIAN, Quomodo hi1tó1fo !0Hmib~ndr1 sír, 16. Pc.ir 0\llro lado, Políbio podia chamar suas
n Mesmo quando t;'lis progressos técnicos, que exerchm 11.lg.um papel na história polític:i. Hislórim de ti...-c,,wiJwm, 1, :\5, 6.
U3turalmente pudrnem ser referidoi na Him,rie. Cf. POLYBIOS, 9, 2, 5; 10, 47, 12. -» Por exemplo, C(CERO, Dt o,atm, 2, 15 e 62; QUINTIL!AN, 10, 1, 102; LU:KJAN, Quonuido
n GELLIUS, S, 18; SERVIUS. Conm,wtarii ad Awtid, 373. GHLZER, Maithias. Oer Anfong historia comuibmrfa slt, 39: a única t3refa do hhtoriador<! "diz.ir como foi" (@Çbrp(V:011d1.t:T~); sobre
rõmischer Ceschichtm-htdbung. [n: S'I'R.ASSBUR.GER, Hermann; MEIER, Christkm is.so, no entmto, 50 e seg,; WEHRLI, Pritz. Die Geschkhtsschreibung im Lichte d<-r ~n!iken
(eds.}. Klei11e Srhrif1tr1 (vol. 3). Wie1baden, 1964, p. 93. Theorie. ín: E11111mfo. Fe.s~chriít ftir Errut Howal<l. Edenb~ch/Zuriquc, 1947, p. 54 e; 1egs.

48 49
o CONCffiO Dê Hsrói;.A AttíNOOA()f

partir dos quais se podia aprender algo para a ação política - mas inhnagináveis até então. A ordein política repentinamente foi vista
também para os sofrimentos34 -> que em Ro111a eram interessantes como passível de ser configurada. Por essa razão, surgiu urna nova
como exempla"; é nesses "detalhes" que se pensava quando falava necessidade de orientação dentro da política: conhecimento de
de histon·a magistra vitae; eles é que tornavam o gênero esteticamente causa e critica a respeito se expandiram. A política não podia mais
atrativo36). Por outro lado> tratava-se da reconstrução e da com- ser vista apenas como uma série de grandes ações, as n1udanças não
preensão histórica de tran.scursos mais longos (literariamente, em podiam mais aparecer como expressão de interconexões de sentido
monografias ou Mstoriae perpetuae37 ). Elas, no entanto consistiam mais profündas (por exemplo, um entrelaçamento determinado pelo
sobretudo, ainda que não de forma exclusiva - como se n1ostrará destino entre crime e castigo ou de ascensão e queda). A partir de
logo a seguir -, mas fundamentalmente no estabelecimento de então, a política também não podia mais ser praticada como simples
conexões entre os acontecimentos. Isso significa, de forma con- rotina, sem qualquer compromisso. Dessa forma, a política podia e
creta, que o todo de tais histórias de cidades, de povos, de reinos devia ser avaliada de fora, mas de maneira competente, e relações tanto
ou também da história geral de vários povos não representava mais as mais restritas quanto as mais amplas, agora "só podiam ser explicadas
do que a soma de suas partes. Ainda que com diferentes graus de historicamenten,4o Assim, também a contingêf1:da do acontecimento
consciência, aquilo que se fazia era encontrar um espaço de prática político-militar podia se transformar, de repente, no princípio para as
humana, sob condições bem específicas, com efeitos bem específi- reconstruções transgeracionais. Ei então, considerações em: torno d~
cos, transformando-o em objeto de pesquisa e de representação. Esse acontecimentos históricos acabaram conquistando s/allls literário. A
tipo de percepção e de escrita da História correspondia, de forma ampliação do caráter público para amplos setores de homendivres e
bastante exata, ao tipo antigo de História - e isso desde o começo. iguais correspondeu a publicação de obras históricas cada vez maiores.
Pois não foi simplesmente utn acontecimento de cultura superior e A concentração da Historie na História dos acontecimentos foi
de interesse cientifico mais amplo, ou então um efeito retardado da fomentada, nos séculos seguintes, a partir dos modelos da epopeia
epopeia homérica," mas foi sobretudo também uma consequência ou de Tucídides e através das decorrentes regras para a categoria.
da peculiaridade da vida grega que, no século V, aparecesse um novo Mas ela não pode ser entendida simplesmente a partir da institucio-
interesse pela História dos acontecimentos." Nos amplos círculos de nalização de determinados interesses e de determinadas expectativas.
cidadãos que tinham responsabilidade e participação na política das entre historiadores e seus leitores. Pois a História dos eventos se
poleis - já parcialmente democratizadas-, surgiu um sentido especial manteve - ainda que os cidadãos tivesse111 uma participação 1nenos
para acontecimentos pol!tico-militares. A política recebeu - através
ativa-, por um lado, como esfera central de destinos interessantes
do novo e descomunalmente forte destaque para o pertencimento
e de importantes identificações. O lado social e o lado político da
político - nova importância, ela se tornou mais intensa, e foram
vida se mantiveram intimamente ligados entre si, para todos aqueles
abertas novas possibilidades de agir, de planejar e de modificar,
que exercian1 alguma função importante, pertencimentos e identi-
dades políticas concorrentes não exerciam papel significativo.41 Por
,~ POLYBIOS, 1, 1, 2.
si GELZER, Kltl11t Sd11ifttn (vol. 3), p. 95 e 5cg. Cf. GELZER, Klefne Sdulf1t11 (vol. 2), 1963,
p. 365; Gf:l.ZER, K/eine Scl11iftt11 (vôl, 3), p. 234 (nota 48), 272. 10 Acne respeito, cl LÜDBE, Herrruir111. \Va$ helm: "D;1.s k11r1n ma11 nur historisch erkHircn"?
'~ CJCERO, De Nfltore, 2, J6; d. STRAS0URGER, Die WestiubtJlimnumg... , p. 27. In: KOSELLBCK/STEMPEL, Gtuliichtt {cf. rrot:t 5), p, 542 e segs; MBIER, Die- Emstehung
11
CICERO, Ad/11111fffam, 5, 12, 2, der Hhtorie, p. 265 e !egs., 268 e segs,, 295 e segs.
31
N~se sentido, ultim:amente destacado por STRASBURGER, Di~ Wmnsbeslimm1wg ... ; e ti O conceilo de "_pertendmento'' ser~ eidueddo em mitro lug;1T. A re~peito desse tema:
STRASBURGER, Hcrmann. Homer mid dit Cmhfllumhrâhuug. Heidelborg, 1972. \VEDER, Max. Wirtsd1aft urtd Gmlfsrlrqft. Colônia/Berlim, 1964, p. 1026 e segs.; FINLEY,
31
Cf. MErER, Die Entstehung der Historie (tambêm naquilo que segue), Moses {. The mufrllt u.,11.,my. Londres, 1973.

50 51
outro lado, a Hjstória dos acontecimentos se manteve_ como a única a História sobretudo como um amplo processo de mudança, na
i
esfera de tra,nsformações importantes, interessantes e perceptíveis. Antiguidade tudo isso esteve desmembrado. Entre a Histo,ie dos
É que a panir do aspecto intelectual, técnico, econômico, social, acontecimentos (depois que ela surgira) e as grandes especulações
as condições de vida da Antiguidade se modificaram relativamente históricas, do tipo da de Hesíodo sobre a idade do mundo ou a
pouco (depois dos primórdios, decisivos, mas historicamente pouco dos ciclos mundiais de Platão", não houve qualquer aproximação,
comprovados"). É verdade que algumas mudanças processuais que quaisquer elementos que os interligassem. Não havia perspectiva
iam surgindo foram registradas na historiografia, em geral, porém, superior sob a qual nem qualquer alternativa social a partir da qual
apenas como resultado; mas isso era raro, ou, então, paralelo ao especulações e expectativas históricas, acontecimentos e Historie
contexto histórico. No todo, a dinâmica histórica era tão fraca que pudessem ter confluído. Ao menos no período pagão da Antigui-
não conseguia romper o limite além do qual se poderia ter imposto dade, nunca qualquer grupo social chegou ao ponto de entender
à Historie usual como parte da História. Praticamente não havia e legitimar sua ascensão de forma histórica, de determinar locais
processos de mudança que fossem para além dos acontecimentos dentro da História (nem de poder estabelecer comparações en-
político-militares que se desenrolavam no palco da vida, e que tre diferentes grandes transcursos). Somente no século V a. C.,
poderiam ter transformado setores mais amplos da humanidade - encontramos em Tucídides o estabelecimento de um Jugar com
independentemente de sua classificação política - em portadores vistas ao desenvolvimento das relações de poder e de grandeza na
ou en1 tema de uma "Histórli'. história grega. 45 Mas essa foi uma exceção - como o movimento
O fato de que a historiografia antiga encarasse o mundo de de inovações revolucionárias, dentro das quais esteve embutido46 -,
forma tão pouco histórica esteve também determinado por um e ficou sem efeitos sobre a posteridade. Essa falta de senso histórico,
déficit de História. É preciso traçar, ao menos, um quadro simpli- de mediatização" temporal esteve intimamente ligada a deter-
ficado da "posição intermediária" da Antiguidade. Ao contrário minada forma de contemporaneidade e de capacidade social, de
das velhas concepções orientais, não se enxergava mais a política e "concretude", e de baixa capacidade de ideologização - isso sem
a natureza como uma coisa só, não se estabelecia uma vinculação falar de outras interdependências.
estreita entre tempo e ordem política. Pelo contrário, o mundo da
polis e da política era desvinculado da natureza circundante. 43 O H Cf. a esse respeito a seçfo "Geschkhtc und Onto!ogie'' (História e 011tologfa], cm GAISER,
tempo não era mais o tempo de determinadas configurações po- Konrad. Pla1~111 1111gmliritbi:11t Ltlue. 2. Auíl,, Stuttgart, 1968, füpedalmente ioteressmte é
líticas que se considerassem o n1undo, e ainda não era o tempo de PLATON. N,mwi, 677 e. d: a observaçfo de progresso> como prova pua a necessidade de
contar com catástrofes demuidoras de cultura, em vi.ia d:a incomemuu.bllidade do tempo.
uma humanidade que, independentemente de classificação política, -1~ THUKYDIDES, 1, 2 e segs.
aparentava estar no caminho do progresso. E, com isso, aquilo H Cf. o verbete "Fc,tul11i11'' (progresso], no vol. 2, p. 355 e segs. [de Cmhich1/id1e Crundbegriffe.
que na Era Moderna se integrou a partir de diferentes partes em Hilwrhches Lcxikon 2.m politisch-sozialen Spuchc in Drntschland, no qual está tambtm o
pmente cextô (N.T.)J.
um conceito de História, aquilo que fez con1 que se reconhecesse 7
' É VNdade que foram reconheddôs muitos tipos de interconexões e>lruturaii, como as entre
música., moral e conHituíçãô (SCHACHBRMEIER, Prit2. Damon. ln: STIEHL, Ruth;
e STIER, H:ms Erich {eds.]. Beilri!ge ~1u Altw Gm/1f,hu 1111d de1en Mulittbur. Pestschrift
1
~ Interessantememe, eles ficam localiudos entre :).s doutrinas comtruídu sobre o surgimento fGr Pra.n2 Ahheim [vol. 1]. Beditn, 1969, p. !92 e seg$.), entre Constituiçio o Ret6rka
de culturas e 01 tempos historicamente mais b~m te;temunhados, i:omo num tipo de terra de (TAC(TUS. Díalog11s dt crllfc1ib11~), entre economia, técnica e forma.s de conduzir uma guetra
ninguém. Trat:He do tempo que fica mais ou meno; entre osêc-ulo X e o século VI a,C,, !Obre (THUKIPIDES, 1,2esegs.), entre demogr~fia e Constituição (ARISTOTBLES, P<1-lltlk, 1286
o qval há rclativame-nt,: poiicos testemunhos na 1radiç30 grega, Mais urde, o~ gregos encaravam b, 8 e segs.}, entte bem-es1ar gual e decadênd.a nos avanços dentlficos (PLINIUS. Nlltura/is
sua peculiaridade como tio mtural que pratic:1mente não se lntues;aram por $eu ~urgimento. hiJtc,fo, 14 [prrtifatfo]}. Masessasconstltaçõesfku.1m interess-jntemente ísob.das e raras, e 2ssim
0
MEIBR, Christian, Enimlumg dei Deg,iffs ''De-mokr.1tfr". Funkfurt, 1970, p, 19 e segs. não há como pensar que pudesiem ter !tw,do 3 pres.suposição de \.Una mudmça geral,

52 53
O ca,,,;;wo OE Hmów.

Os limites da percepção antiga de História também se refletem A concepção de rnuitos transcursos que se processam paralelos
nas concepções gerais de transcursos e interconexões históricas. e sucessivos também se encontra em Políbio. A unidade da História
As suposições de Heródoto sobre a relação entre fazer e acontecer, que ele observa teria sido criada por um plano (o/Kovopla) 53 , mas
por exemplo, se refere1n exclusivamente às ascensões e aos des- ele é atribuído a Tiquê. 54 A interconexão dos processos de todo
censos individualizados de pessoas, de dinastias, de impérios." A o mundo foi a maior de todas as surpresas sempre inéditas que
afirmação de que em Roma insucessos sempre eram sucedidos de Tiquê costuma preparar. ss Os pontos de partida eram sem dúvida
novos sucessos apenas estabelecia relações entre acontecimentos contíngentes56 , utn sentido rnais profundo não se enxergava no
individuais. 49 Nessa e en1 outras concepções sen1elhantes, apenas "dran1a' Não se estabelece uma relação histórica cotn impérios
1

se observam ou se pressupõem relações um pouco mais amplas anteriores (apenas se faz uma comparação estática com eles"). A
que no trata1nento usual dos acontecimentos. Assim co1no ali se forma como a coisa irá continuar está em aberto, não há nada que
procura entender a política, assim também aqui se procura enten- indique que a interconexão multilateral de ações e de aconteci-
der interconexões peculiares e destinos de grandes políticos. Na mentos durará por muito tempo. 58 Independentemente de Políbio
prática, não se pode falar de uma compreensão de História, apenas enxergar Tiquê mais como acaso ou mais como ação de forças
do acompanhamento de seu caminho através dos acontecimentos, divinas", essa unidade de uma parte da História não indica para
no geral ou nos detalhes. uma unidade da História.
A história grega, desde o início, só podia ser concebida de Quem acreditou numa unidade dessas foi o continuador de
forma multissubjetiva - e isso correspondia à organização política. sua obra, o estoico Posidônio. Atribui-se a ele, aparentemente com
Não havia qualquer unidade, qualquer objeto cttjas modificações de razão, a seguinte manifestação: o historiador deve tentat "enqua-
longo prazo pudessetn ser apreendidas con10 "História". O contexto drar toda a humanidade (irávreç ú.v0pwiro1) naquilo que tange a sua
dentro do qual todos os movimentos históricos se realizavam per- parentela, bem como a seu distanciamento espacial e temporal, sob
maneceu mais ou menos igual. 50 Dentro dele, impérios podiam ser uma única ordem (a6vwç1ç) (representada), transformando-a, por
substituídos por outros in1périos, situações e acontecimentos podiam assin1 dizer, num órgão da providência divina. Pois, da rnesma forma
se repetir. st O tempo não se prendia a configurações específicas. que ela unifica a orde1n das estrelas no céu e as naturezas hmnanas.
Nesse sentido, ele não podia ser concebido como cíclico - a não ser
numa analogia comum, fazendo-as circular numa mesma trajetória
nas especulações dos filósofos, que iam muito além dos objetos, e
abrangia1n séculos. E se, mais tarde, em Roma foi diferente, foratn
~ POLYDIOS, 1, 4, 3; 3, 32, 9; 8, 2 (4). 2; 9, 44, 2.
justalnente os ro1nanos aqueles que não conseguiatn con1preender
H Ibid., 1, 4, 1 e scgs. Cf. 1, 1, S; 3, 1, 10; 6, 2, 3; 8, 2 (4), 3 e seg.
sua História corno um ciclo. 52
ii Kmvo1t01efo80.1: ibid., 1, 4, 5; 4, 2, 4; 9, 2, 4.
½ Cf. cambêm MOMOGLIANO, Time in Andent Histodogr3-phy, p. 18 e seg.
31
POLYDIOS, 1, 2.
41MEJER, Die Entstchung der Hhtorie (cf. not.\ 5), p. 277 e segs. (com nuis bibliografia).
" AMMIANUSMARCELUNUS,31,5, 10-16; VITTJNGHOfF, Friedrich. Zumge1chichtlkhen B Pol[bio iléjá prevê uma nov1 modífo.:a~ão profuJtda da Ci:mstituiçio romana (6, 9, 12 e segs.), C(,
Selbstveotfodnis der Spã:1:m1ike, Jfürorluhe ZdNdirift, n. 198, 1964, p. 549 e icg., 560; 3, 4, 7 (onde Si;! pema JlO ternpo em que o lmpério RomaÍlO já é histórico), bem como 3, 4, 12-5,
FUHRMANN, Manfre-d. Die Romidcc derSplitancike. Hhror{uhe Zeludu1Jt, n. 207, 1968, p. 551. 6: depois da conquista 2p1recc novJmente r:op«J/11wl dVJ;a-u; (3, 4, 13), isto é, aperiptli~, a nmdanp
Cf. ibid., p. 536 (no11 22), 553 e scg. (a respeito do atJWt pcm ma/is, de Rutilim Namatianus). bmsca,ji se imunda. Por m"is difldl que seja a interpreu.çlo deitá prnagem- cf. WALDANK,
» NaqujJo que tange a He16doto, cf. MEIER, Die Enmehung der Historie, p. 286 e segs. F~n!.- William. A /r(sto,ilal commentary,m Pi,/yb/Af (vol. 1). Qi,;ford, 1957, p. 302 e !eg. -, em tempo
s1 Cf., por ç_xernplo, AURBLIUS VICTOR, l,(ber de Ctlanribm, 3S, 13. p.uct:e se localizar ~pós "o lim comenmalmcnte constatado" do Hhtórla 11ntt:.1d1 (J, 1, 4 e teg. Cf.
J, 4, 3:m>YrtJ~ta). Nada indk;, que Pollbio cont:isse com um~ sequênd~ de império~ mundiai.1.
u VfTTfNGHOFF, Zurngeschichtlichen Sdbstverst:indnis ... , p. 541. 572esegs.; dll form;i ge.ral:
MOMIGUANO, Arnaldo. Time ln Ancient l·Iistodography. Hisl<Jry ,wd Thtor;, $epm.te n, !h C(. a 1e1pelto, FRITZ, Kurt v. The 1/ucryeftl:emixcd!cmli'r11ti011fn Anb'quj/y, NewYork, 1954, p. 388
6, 1966, p. 1 e segs. e seg.; ZIEGLER, Koum. Verbet~ "Polybios", ln: Rea!enq'dcpMtc (\·oi. 21/2), 1952, p. 1532 e 1cgs.

54 55
por toda a eternidade, atribuindo a cada um aquilo que o destino bondade da constituição romana", e - não por último - mostrar
lhe reserva, aqueles que registram os acontecimentos comuns do os inúmeros exempla da virt!ls e da superioridade de comandantes
mundo (ai Kmvo:I v]ç oi1<ovpà/ç 1Cpáçe1ç), como se fossem de uma e soldados, bem como a sabedoria dos homens de Estado roma-
única cidade, transformam sua representação numa justificativa nos.6' O desenrolar da História com essa longa lista de sucessos,
unitária e num ato de administração comum do acontecido".'° com a gradual conquista do mundo, fornecia simultaneamente a
Não possuímos um legado suficiente de Posidônio para verificar confirn1ação sobre a correção dessas constatações religiosas, morais
em que medida ele transformou esse reconhecimento em programa e político-militares. Nesse sentido, também a Historie romana no
de sua escrita da História 1 e como eventualmente colocou isso em geral se manteve orientada pelos acontecimentos, distinguindo-se
prática. A "simpatia" entre cosmos e História sugere que esta não apenas pelos interesses específicos projetados sobre eles, e pelo fato
caminha em direção a um fim. Nesse caso, sua ordem unitária de enxergar neles e na sua sucessão um sentido especial.
deveria antes significar a regra dentro da sucessão de fases. Nes- Mas foi justan1ente após os sucessos, e a certeza de sucesso daí
se caso 1 estaríamos diante de uma concepção de História nmíto resultante, 66 que se começou a pensar sobre a interdependência
parecida com a de Heródoto. Isso combinaria com o fato de que, da expansão crescente con1 a crise e a decadência dos costumes
na época, a crescente unificação do mundo então conhecido sob da república romana tardia, bem como sobre a transição da
o do1nínio de Roma estava relacionada con1 a crise crescente da constituição ro1nana, que estava no auge de seu prestígio, para
república.61 Aparentemente, Posidônio se restringia, portanto, às o império.
histórias - como parte e no âmbito de uma ordem mais geral, que Para a concepção de "História'>, sobretudo unia das respostas
ele postulava filosoficamente. Dessa forma, ele estaria pressupondo encontradas nessa situação é interessante: a comparação com a idade
mais ordem, mais providência, tnas n1enos interconexão entre os de p.essoas. Desde a república tardia, há registros da classificação da
acontecimentos do que Políbio. História romana de acordo com as etapas de vida de pessoas.67 Elas
As coisas se apresentavam de modo um pouco diferente em possibilitavam uma classificação e em especial uma definição da
Roma. A historiografia dali, desde o início, esteve concentrada própria posição dentro da História romana. Nas versões variantes
na história de um objeto unitário. Ela deveria explicar os sucessos dessa Hist6ria abrangente, encarad;:t e1n si n1esma, aparentemente.
de Roma, legitimar sua expansão e suas reivindicações (e, além existia uma necessidade para isso. Parece que a c01nparação com a
disso, transmitir os exemplos dos pais). 62 Para isso, a História era idade de pessoas também possibilitava tuna valorização da própria
utilizada, sobretudo, como arsenal. Ela continha a anunciação do idade tardia, valorizando as vantagens da idade, na qual a História
Rómulo deificado: caelestes /ta ,,e/le, ut mea Roma rnput or/,is terramm
sít 6l; além disso~ lhe cabia fornecer a justificativa histórica para a
M CICERO, De upuWta, 2, l e segi.

,s Cf,, por exemplo, LIVlUS 9, 17-19; (praefMfo) 9 e segs.; DREXLER, H,rn..1. Die moralische
Geschichts~ufünungder ROmer. Gym11(1sium, n. 61, 1954, p. 168 e seg$., em especial p. 172 e
t.o D(ODOR, t, 1, 3. Cf. REINHART, Karl. P.mido,dos, Muniquo, 1921, p. 32 e segs.; s;:gs.; PÔSCML, Viktor. Die rOmi..schc Auff:mung der Geschichtc. Gym11t11i11m, 1\, 63, 1956,
RBlNHART, Karl. l<MmM 11nd Sympalhie. Munique, 1926, p, 184. A tradução utfi no anexo p. 190 e seg:s. Par~ os efoitos rnbre a posteridade, cf. BUCHHEIT, Vínzenz. Chdstlichl'c
em REINHART, e em POHLENZ, Max. Dl~ Stoa. GOtdngen, 4. Aufl,, 1970, p. 213 e seg. Romideologie im L.iurentim~Hymnmdes Prudentius. In: WIRTH, Peter (Ed.). P,:ily(hrMim1.
~1 Cf. SJ'RASBURGER, H. Poseidonios on problem~ of Roman :8n11>ire, Jcum,1' af Rf>n11111 Festsduift für Frmz Dõlger, l-;leidelberg, 1966, p. 128 e 1eg1.
Sflldiu, n. 55, 1965, p. 40 C-$cgs.
M Cf. LIVIUS, 1, 16, 7.
u GBLZER, Kleine Schríften (vol. 3), p. 51 e segs., 95 e segs., 258, TIMPE, Dieter. Fabiu~ Pictor 0
HÃUSSLER, Reinhard. Vom U~spn.mg und W;1ndel des Lebemaltet\'ergleichs, Hwm.'s, n.
und die Anf.inge der rômlschen Ge1chkhu1chreibung. ln: TEMPORlNI, Hildeg,ud (ed.). 92, 1964, .P· .)13 e segs.; VlTTlNGHOFF, Zum geschichtlichen Selbstverst:indni;.,,, p. 557
A11fiti~ 1111d Nieduga11g du ~mhdit11 1¾11 (voJ. 1/2). Bt1tlim/New York, 1972, p, 928 e seg;, e scgs.; TR.lJYOL Y SERRA, Antonio. Tim idea ofmm ind world History from Seneca ro
~) L{VIUS, !, 16, 7, Cf. l, 55, 5 e seg; 5, 54, 7. Orosius ~nd Saint Jsidore ofSeviJle. C,1hiw d'liütoin!, n. 6, 1960, p. 698 é segs.

56 57
ÀNTTGlIDADE

romana chegava à sua perfeição. Não se fala da morte de Roma - foi elhninado no pensamento ron1ano, e e1n qne 1nedida se dava a
ao menos não durante o período pagão.68 identificação do império romano com o quarto reino, na suposição
Outra resposta para a suspeita de que se estava ficando para trás de que no império rornano a "História" se consmnava - ou em
em relação ao grande período anterior consistiu na relativização que medida essa doutrina visava apenas a urna classificação externa
das vantagens desse tempo a favor de uma avaliação hist6rica que da história do mundo.
distinguia entre pr6s e contras: "nisi fortes rebus cunctis inest q11idam Mas no tempo da monarquia aparente1ne.nte se contava em
velut orhis, ut quemadmodttm temporum víces, ita morum vertantur; nec diferentes oportunidades com a consumação da História no império
omnia apud priores meliora, sed nostra q11oq11e aetas multa /audis ae arti11m romano. Essa ideia cotn certeza estava ligada com a consciência
imitanda posteris t,ilit", lê-se em Tácito." presente no século li d.C. de que sob os abençoados efeitos da pax
Após os temores de desaparecimento da república tardia e do Romana se alcançara. em muitas áreas, uma posição que não existira
período das guerras civis - Lucrécio até pensava que os campos nunca antes. 73 Essa ideia se vinculava com as várias concepções sobre
perderiam sua fertilidade'° -, afirmou-se que Augusto restabele- a eteriúdade de Roma e de seu domínio, que, numa petrificação
cera a "aurea aetas". Virgílio atribuiu a Júpiter a promessa de um ideológica, continuou sendo nutrida e defendida quando, havia
u;,nperium sine fine'\ que seria ilimitado, tanto tetnporal quanto muito tempo, os sintomas da decadência do império erarn visíveis
espacialmente. A incumbência de "i,gere império pop11/tis ... pacíque por todos os lados.74
impo11ere morem", aparentemente, visava a utn dmnínio eterno.71 Foi exata1nente no confronto com os cristãos que se recorreu
Já num período anterior, no início do século II a. C., tinha a ela. Dentro do império romano, que abrangia todo o mundo
sido trazida para Roma outra concepção de História, a doutrina (mediterrâneo), aparentemente a concepção de História se vinculara
dos quatro reinos, que teve sua expressão mais conhecida no livro de tal forma com Roma que dificilmente se conseguia imaginar
de Daniel, a qual, porém, na verdade, parece ter sido desenvolvida uma História não romana ou pós-r01nana. Até para os cristãos, era
entre os persas, sob domínio grego, em continuidade ao esquema difícil fugir desse dado fundamental. "Si Roma pcrít, q11id salvum
dos três reinos, dentro do qual o grego Ctésias, no século IV a. C., est?" - perguntou Jerônimo.75 Os cristãos opunham aos pagãos a
em Persiká, havia escrito a História assíria, médica e persa. Em sua finitude da História. Eles enxergavam na comparação com a idade
forma original, persa e judaica, essa doutrina inicialmente opo- dos homens uma confissão sobre o desaparecimento iminente do
sicionista fazia especulações sobre o declínio do quarto e último império romano.76 Mas o ponto de vista escatológico foi recuando,
reino.72 Não se pode reconstituir como e em que medida esse final no decorrer do tempo, deixando, no mínitnoJ algum espaço para
a interpretação da História dentro d.a apologética cristã.
1.1 tívio (o qual não 3presenta es~ compuação) disse, cem. vez, que se deveria cuidar para que as
fo,;ças do conjunto de c-i.dadios {der Biirgersdraft], que deve ser imoml, não envelheçam (6, 23, 7).
6~ T/\CITUS, A,mala, 3, 55, 5; d. o Diafog11s dt cratc1/hw. e 5egs., em especial sobre a. ton1h1uhfade da douttina cm Or6sio e em Ago;tinho. A respeito de
70 LUKRBZ (Tltus Lttcrecius CarusJ, 2, 1173 e seg. l>ompcio T1ogo; SEEL, Otto, Eine rõmfuhe H-'eftgml1irl1fe, Nümberg, 1972.
71
VERG!L . .t1rnti.s, 1, 279; 6, 851 e seg.; a respeito da ",wrea 11elM", cf. ibid,, 6, 791 e segs. Cf. JJ Vide overlx:te"I'-c,,tsd,rifl" (progmso], vol. 2, p. 361 {de Gmhfrhl{{d1eGnmdbegf!{fe, Hhtori1chei
UVIUS, 4, 4, 4; 6, 23, 7. Lcxi.kon zur polithch-sozialen Sprache in Deutschland, no qu.il es1:i tam.bém o p[escnte texto
72 Ktesiu, ciudo por DIODOR, 2, 1-34. Cf. LESKY, Albiv.. Ce$i.hit.hte dcrgrfrch/1d1m LiltrM11r, 3. (N.T.)).
Aufl., Berna/Munique, 1971, p. 697 eseg.; SWAIN,JosefWard. The theory ofthe four monarchie~.
11 MOMMSEN, Theodar E. S1. Augustlne and the Christian ide a ofprogms.Jc1mral cjthe Hütory
C/,mfer1t Phlfo!cgy, n. 35, 1940, p. 1 e segs,; KOCH, Klaus. Sp:itis.raditischeJ Geschichtwe.nket1 of ldtas, n. 1'2, 1951, p. 347; VITTINGHOFP, Z:um ge1chiclnlíchen Selbstvernandnh ... , p,
\lnt Behpiel de; Duche$ Daniel. Historitd1e Zei4d,rífl, n. 193, 1961, p. 1 e segs,; LORBNZ, Kurt. 547 e seg1,; fUHRMANN, Die Romidee ... , p. 529 e segs. Cf. nota 71.
Umem1clmr.gtn ..:11111 Cmhiditnwrk dei Pofybios. Stuttgm, 1931, p. 15 {a respeito do colaborador ª HIBRONYMUS. Epfst11lru, 123, 16, 4.
judaico da coltção !lblll1111); VITTINGHOFF, Zum ge.sçhkhtlichen Selb1tvcmlindnis... , p. 551 1~ VITTINGHOFF, Zum ge~chktlichen SelbstversUudnis ... , p. 538, 550 e seg,, 560 e seg.

58 59
ÁNnGUOAOE

Essa interpretação se manifestou inicialmente na cronografia nessiânicas ao Império Romano. 81 Em alguns casos, ele aparece
1
cristã, que continha um tipo de Filosofia da História.77 Nela se como a concretização do reino de Deus na terra. 82 Desde o final
configurou um modelo de História providencial, que se desenrolava do século II, encontramos a doutrina dos qnatro reinos, que se
desde a criação do mundo, passando pela História judaica, indo em encontra em Daniel, de tal forma modificada que Roma constituía
direção ao nascimento de Cristo, para desembocar na História do 0 quarto reino, a fase final da História guiada por Deus, o Kartxov
Império Romano. Nesse modelo, se tentava fazer uma sincronização da Carta de Paulo aos Tessalonicenses. 83 Imaginava-se que esse
entre História bíblica e História pagã. Assim, se tornou possível reino duraria até o aparecimento do Anti-Cristo. Nesse sentido,
determinar seu próprio lugar dentro da História guiada por Deus. muitos cristãos participavam da veneração pagã a Roma84 - ainda
Como nova categoria, surgiu a História eclesiástica, que enca- que não cons~guissem acreditar seriamente na eternidade de Roma.
rava os cristãos como um povo próprio, cuja Hístoríe ela pretendia Através da cristianização do império, sob Constantino, as expecta-
ser. Nesse contexto, as perseguições e as disputas dogmáticas exer- tivas depositadas no império romano foram fortalecidas, e a fé na
ciam um papel todo especial - elas eram aproximadas à Historie, sua determinação através da providência certamente se expandiu.
mesmo quando a historiografia da Igreja se mantivesse como um Frente às derrotas do império, que se seguiram, no confronto
gênero próprio.78 com o problema se elas decorriam da ira dos deuses pagãos que
A História terrena foi entendida por alguns apologetas como foram abandonados, a questão sobre a direção divina da História
unitária e carregada de sentido, porque era guiada por Deus. Apa- foi reavivada. Orósio chegou a integrar os vitoriosos ataques dos
recia como providência divina especial o fato de que o nascimento germanos e suas conquistas ao plano salvífico de Deus. 85
de Jesus Cristo coincidiu com a consolidação do Império Romano, Mas, apesar desses e de outros registros, não se deve esque-
sob Augusto. A unificação do mundo sob seu domínio aparecia cer que a meditação sobre a História - sobre isso que Tertuliano
11
como um pressuposto planejado por Deus para a missão cristã.79 chan1ava "peregrinar no n1undo estranho - ocupava um lugar
86
Por outro lado, a paz e o bem-estar do império eram atribuídos à limitado dentro da cristandade da época.
ação de Deus. Exatamente o fato de que o império ia relativamente Fazendo um balanço, as concepções ct"Ístãs da História não vão
bem desde Augusto era visto como indício da ação de Deus a fa- muito além das concepções pagãs. Em grande parte, as concepções
vor de Roma. Prometiam-se mais melhorias, através da expansão
do cristianismo, através das orações dos crentes. Desenvolveu-se til MOMMSEN, St. Augus1ine and che Chris1lm idea ofprogress, p. 361 e segs.
certa fé no progresso.'° Orígenes e Eusébio aplicaram profecias ~i STRAUD,Johmnes. Christliche Geschichuapologetlk in der Krise de~ rõmiichen R.elches.
1-fütor{a, n. l, J950, p. 61 e seg.
fl MOMMSEN, St. Augustine '°lnd thc Christfonidca ofprogrc1as, p.J48e scg.; VJTTJNGHOFF,
71
MOMIGL(ANO, A. Pagan and Chrisri;1n historiography in thc 4th century. ln: Zum gcschichtlkhen Sdbstvemlin<lnis ... , p. 554 e $eg,
MOMIGLJANO, A. (Ed.). TM r<>1!ftia bttwm1 Pa.gam'wi ,rnd Cluúti,rnit}', Oxford, 1963, p. 83 f 1 VITTINGHOF P, ZumgeschichtlichenSdbstventlindnis ... , p. 562; BUCHHEIT, ChrUtliche

e segs.; cf. VITT[NGHOFF, Zmn geschichtlichen Selbstvewandnls... , p. 535 e segs. Romideologie ... (cf. nota 65}.
1~MOMIGLIANO, Time in A..Ildent HistQrlography, p. 88 e segs. ' 5 STRAUB, Chrislliche Geschichtupologetik .... p. 75.

n Vide o verbete "Fortsd1,it1" [progresso), vol. 2, notJ 53 (de Gwhlr{r,/ld1t Gr1111dúeg1iffe, a TERTULUAN, Api>!ogttit1im, 19, 7. Cí. FUNKENSTEIN, Amo,. Heilsplrt11 1111d nllfiirlfrlie
Hhtoris,hes Lexikon :zur rolithch-!ozialen Sprache in Deut,chbnd, no qual ~ti ci\mhérn o E11twfrkfung. Formen du Gegel'lwarcsbesúmmung lm Geschichtsdenkcn des hohen Mittelaltets.
presente texto (N.T.)J. Munique, 1965, p. 30. Em Hip61ito, manifesta-se - pata dar um exemplo - "deiconfia11ça
~ Vide o vetbete "F,,ru{}11itt" [progresso], vol. 2, noo 54 e seg. [de Cesd1id1t/ir11e Gnmd&tg,!Jft. em tehçfo a um impbrio que reivindica mm. ecumenicidade que s6 compete i Igreja".
Histori~ch('~ Lexikon 2ur polítisdi.sozialen Spuche in Detttschbnd, no qual esti tambim PETERSON, Erich. Theo!og/11:he ThtkMe, Munique, 1951, p. 85 e seg. Cf. sua interpretação
o pmeme texto {N.T.)), A e.se respeito, OROSJUS, Hlsroria dávtrJus p~ano., 1, 14 e iegs.; de que o império romano se desmembrará em "dez democndas", a, quais citariam indicada1
COCHRANE, Chales Noth. ChrístitinUy tJnd clanfr,1! wft1m. Oxford, 1940, p. 243 e segs." nos dez dedos dos pé1 m ést,hua cio sonho de N3bttcodo,1ozor. MAZZARINO, S3nto. D,u
respeito do sentido emlo surgido para transforn1ações ~brangemes da História, Ênde da ami.~en Wclt. Munique, 1961, p. 38 (tradução de Fritzjaffé).

60 61
0 CCNCW0 Of HlSTó..¼

pagãs são assumidas e cristianizadas. O que é novo é a fé de que a Ili


História é finita. Isso - junta1nente com as esperanças escatológicas
- modifica a posição dos homens dentro da História. Novas são as
suposições de uma melhoria generalizada das condições terrenas,
Compreensão do conceito na Idade Média
de um ºprogresso'\ em Eusébio, Grosius e alguns outros, as quais,
durante o período constantiniano, tiveram uma ressonância maior,
Odilo Engels
mas que aparentemente já antes de Agostinho começaram a recu-
ar diante da pressão exercida por evidências contrárias. Também
é novo o entendimento de que a História é obra de Deus. Isso,
porém, levou, na Antiguidade tardia, a uma nova fundamentação
da concepção pagã de que o império romano seria o ponto final
da História (ao menos na medida em que ela transcorre na tena).
1. Sobre o significado das palavras
Somente com o tempo, resultaria daí um novo potencial para "historia" e IIres gesta"
pressupor um sentido.
Com um significado triplo (da mesma forma que já fora usual
em Cícero), Isidoro de Sevilha (cerca de 560 a 633) legou à Idade
Média o conceito de· uhistoria'\ através de sua Endclopédia. 87 Ele
buscou a delimitação do conceito empreendida pelos veteres nas
Noctes Atticae do gramático Gélio e no comentário sobre Virgílio do
gramático Sérvio: "Historia" é o registro exclusivamente daquilo que
o próprio autor viyenciou, representando, portanto, conhecin1ento
seguro, que, por consequência, possui altíssimo grau de veracidade.
Esse aspecto da verdade - característico do conceito - pode ser
seguido até a alta Idade Média: "historia est res visa, res gesta; historia
euim grece !atine visio dicitur, 1mde historfogrefus rei vise scriptor diâtHr}J. 88
Mas Isidoro recusava a ideia de restringir a historia à História
contemporânea - isso em consonância com a tradição educacional
de seu tempo-, subsumindo os annales à historia. Em consequência,
"historia" referia-se a: (a) forma de conhecer tudo aquilo que era
passado - "historia est narra tio reí gestae ... , per quae ea in praeterito jàcta

•1hidoro de Sevilha. ln: LINDSAY, M. W. (Ed.). E1ymçfogfoe (vol. l). Oxford, 1911, cm espcci~l
t, 41-44.
" Konud von Himu. ln: HUYGENS, R. B. C. (Ed.). Dfalogus .111pu atul,ms. Berchem/
Bruxelas, 1955, p. 17; cf. também FREISING, Otto vM,. Gem1 Fríderici im_peratQrh 2, 41.
h1: Mcmr1mwtd Ctrm,mlae - Salpt1m.I w11111 Gu111a11i(d1m11 úi 1um11 ulrofo,ium {vol. 46). 3. ed.,
1912, p. 150; TYRUS, Wilhelm von, Historia rm1m i11p.u1ibm lnw1111ari11í1gestmm1 {PriJloJus);
VIZENZ VON BEAUVAIS, Speculum doctrinale, 3, 127,

62 63
o CONCTí!O De H,,rc,.._,A Co,ymrns.I.o 00 (ON(ê/TO NA IDJ.De Mtw..

sunt, dínoscuntur"." Com isso, o destaque dado por Semprônio Asélio evento histórico individual bem como a própria totalidade desses
de distinguir entre os anna/es (como puta enumeração de aconteci- acontecimentos.
mentos exclusivamente externos, e não mais pessoalmente vividos) Não é possível afirmar que no início da Idade Média se ti-
e a historia (como matéria autovivenciada e, por isso., apresentável vesse perdido de todo a necessidade por um conhecimento seguro
a partir de motivações internas), essa distinção se perdeu, em certa do passado, mas ela foi superada pela preocupação com aquilo
medida, na Idade Média. E isso aconteceu, em parte, só porque o que merecia ser conhecido como tal. O acontecimento estava em
detalhamento no relato se manteve como característica da historia, primeiro plano, e não tanto a pergunta pela confiabilidade do co-
com a tendência de, para além da apresentação narrativa, vincular nhecimento sobre acontecimentos. S6 assim se consegue explicar
aos relatos a transmissão de valores pedagógicos.'° a ü1tercambialidade entre u historiaº e "gesta", que do neutro plural
A atribuição de verdade àquilo que foi vivenciado por alguém se transformou em uma flexão de feminino singular.
se estendeu por consequência como um problema sobre o passado O objetivo em conhecer aquilo que merecia ser conhecido
localizado mais distante; o lugar dos testemunhos oculares" passou contribuía para romper a dimensão histórica do objeto de conhe-
a ser ocupado pela tradição oral ou pela escrita dos antepassados. 92 cimento, como se pode mostrar ~ mão de três exemplos. Desde
O conhecirnento recorreu àquilo que já era conhecido, e, com o século IX, "histon'a" podia se referir tanto a uni acontecitnento
isso, "hist6ria" (b) como conhecimento seguro do passado, podia registrado em um quadro quanto ao próprio quadro, de onde
ser estendida aos depoimentos de um conhecimento mais antigo." surgira1n, desde o século XIII, 11 /iistoriare", "ltistorier" ou "storia-
Como as fontes reivindicavam a condição de veracidade - ou re", no sentido de "confeccionar uma representação pictórica" ou
até só eram exploradas por causa disso -, (c) também o próprio simplesmente "enfeitar". No entendimento de Amalário de Metz
objeto do conhecimento fazia parte do conceito: "hístoriae s1111t res (falecido em 850), "/,istoria" se referia a um relato retirado da Bíblia,
veme quaefactae s,mt'.94 Assim, "historia" era o conhecítnento seguro e a responsórios compostos para serem apresentados na forma de
de acontecimentos históricos ou o testemunho do passado, ou o cânticos, na sequênda da leitura de passagens de relatos bíblicos; no
século XII, porém,já aparece todo o Officímn, independentemente
•~ IS{DOR, Etymologiae, 1. 41, t.
do dia festivo, abarcado pela palavra "historia"." Isidoro de Sevi-
w PREISJNG, Otto von. Clm:mik 2 (Prolog), ln: 1\fomm1mta Cat11í111i,1e ~ St,iptous rern111 lha declarou: "(/,istoriones) a11te111 saltando etiam historias et res gestae
Germc111frc1mm ln rm111t sd10!.1rirw1 {v<il. 45). 2. ed., 1912, p. 68: "Nemo mium t1 ,1ob/J u11re11IÍM aut det11onstrabant 11•96 Ta1nbém glossários posteriores não deixam claro o
mor,1/iwes e...:puw"; d. íbid. 6, 23, p. 286.
•ii Bed~. ln: COLGRAVE, Bermm; 1'1,1YNORS, R. A. B. (Eds.). Hútoria adr1ias(i<g (Pmefatfo). que era encenado; somente desde o século XII/XIII, "historia" foi
Oxford, 1969, p. 6: "t1aa /ex /dJ/oriae tsl, simpllclw ta q1rnefama v,dg,mte (ollcglnms t1d imtriutiomm se cristalizando como peça teatral religiosa e também se estendeu
JMSferifatis lilleris 111tJ11d11re Jh1dui111r1s".
para a itnagern viva, quando esta se separou da peça teatral. 97
~1 Guilherme de Malmfsbury. fo: STUJ3BS, William {Ed.). Gu/<1 r<:g_11111A11g/or1m1. Londres, 1889
(reimpres;:io Londres, 1964), 5,445, p. 518: "Ego mim ver,1111 /egem sw11111h/H61/ae uff,fl uuq11am Na mesma medida também o significado da palavra se pluralizou.
pomí tris! <JilOd !!fiddibw 1.:latfo11lb11s vil suipt.>ribm ,1ddidiâ". O conceito geral, inicialmente aplicado ao próprio acontecimento e
1
~ CICERO, De hwmlfrme, 1, 27: "his1initJ eu gnta ut .i~ atta-1i111011r,1e mmwria umota",
N TSIDOR, E!ymologi:tc, 1, 44, 5, Cf. umbêm RanulfHiggen. ln:BABINGTON, ChurchiH
(Ed.}. Polyd1ronfco11 (vol. 2), Londres, 1869, 2, 18, p. 362 e segs. Cf. .!-obre tudo iuo, l{EUCK,
~s KEUCK, Hístori<1, p. 47 e iegs.; LEHMANN, Paul. Mitteblterlichc Biichertitd. 1o:
1--fütoria (cf. nota 31), p. 6 e segs,; :BOEHM, Laetitia, Der wimnschaft!itheorefüche Ort der
Sltz1111gs6trirht dtr Bayerisdm1 Ak,ide.mle der Wiswmhnf1t11, phf/Mopltiuh./Jidc-rluhe. Klam, n.
historia im frühenMittelalcer. D!e Geschichte au(dem Weg zitr ,.Geschidmwlsscmch::ift". fn:
3, 1953, p. 16 e 5egs,; rdmptosso em LEHf,,i.ANN, Paul. Erfomhung deJ Mittelalters. ln:
BAURR, Clemens; EOEHM, laetid:'1; e MÜLLER, Max (E<h.). Spu11lum Hlsrorí<1/e. Geschichtc
imSpiegel von Ge;chichmcbreibung und Geschichtsdeutu11g. Femchrift fürJohannesSpõrl, Awgtwali!te Ablrrz11d/ungt11 1111d Aufltitzt {vol. 5). Stuttgart, 1962, p. 65 e scgs.
Frcibmgo/Muníque, 1965, p. 672 e .1eg1,; com muitai dtaçõe~, mas com menos chreu, cf. H ISlDO.R, Etymologiae, 18, 48.
LACROIX, Denoit. L'hiuo,íen a,1 Afc-ytn Âgt, Monmial/PariJ, 1971. p. 16 e segs. ~, KEUCK. Hislilrin, p. 66 e s~gs., 87 e seg$,

64 65
Ü CONCflIO DE HISIÕR!A.

à comunicação sobre o acontecimento, se estendeu para a atividade 339) e Jerônimo (ca. 347 a 419/20) desenvolveram, dentro da crônica
de comunicar. E se for levado em consideração o fato de que desde universat o tipo da 11 sen'es tempormn", que encarava como sua tarefa
11
o século XII o francês ''.geste ("chanson de geste"), em alguns casos, mais digna a de colocar todas as notícias numa relação temporal.
passou para o objeto da canção ("geste" = "fanúlià.'\ "pov:o'\ etc.), então É de Orósio (falecido em 418) o estilo "mare historicum", o qual,
também a identificação de "historia" deve ser iucluída nessa plurali- recorrendo ao n1aior volun1e possível de matéria, parece ter tido
zação, como parte importante do acontecimento a ser comunicado. como único objetivo o entretenitnento. E o terceiro tipo é a II imago
Com certeza, não constitui acaso o fato de que· tan1bén1 desde 1111mdí", desenvolvido por Isidoro de Sevilha, de forma consciente,
o século XII uovamente se passou a questionar com muito mais que entendia a História como apenas uma parte da realidade total;
ênfase o conteúdo de verdade da comunicação. Os conceitos de essa intenção fica muito clara na tripartição de "specuillm historia/e",
"historia", "fabula'\ "vita", "chronique", "conte" ou "roman" podiam "spewlum naturale" e "speculum doctrinale''i que Vicente de Beauvais
significar a n1esma coisa, no sentido de um sirnples relato. Mas já (1184/94 a ca. 1264) deu a sua obra.99
no século XIII, a expressão ''geste" foi sendo desclassificada como Enquanto a perspectiva histórico-universal se estreitava, foi
relato com fins de entretenimento. A pretensão de apresentar afir- possível que analogamente surgissem Crônicas de objetos parciais,
mações coerentes com a verdade foi se restringindo ao conceito corno a de Cassiodoro (ca. 485 a depois de 580), com sua História
estoire" ou "histoire'\ uma evolução que naturalmente só chegou
11 popular sobre os godos (origo gentis), a crônica de cidades, de ordens
a um desfecho depois do século XV. O retorno à restrição típica religiosas, etc.
Sob alguns aspectos, como imagem invertida em relação a
da Antiguidade tardia do significado da palavra "historia" partiu,
isso, está a amwlistica. Em geral, redigida por vários autores não
portanto, da escrita da História en1 sentido m.ais restrito.
conhecidos nem prevista para uma difusão mais ampla, a própria
construção esquemática, classificada por anos, registrava somente
2. A escrita da História, sua classificação notícias conte1nporâneas e jamais recuava até as origens, faltando-
e o horizonte em que ela é experimentada lhe necessariamente uma ideia mestra que a perpassasse.
Nas teorias antigas, a biografia não está incluída na historio-
a) As "categorias", O quadro das categorias da bibliografia grafia, mas independentemente disso foi se infiltrando nas formas
historiográfica que possuímos da Idade Média parece estabelecida de representação da escrita da História, desde Plutarco e Suetônio,
de forma inabalável. "Crônica", "mwales", ªvila", 'gesta''i 11 história
1
sob a forma de uma sequência de biografias de governantes. A
popular" e "poesia histórica" constituem hoje em dia conceitos deficiente fundamentação teórica e a exigência amplamente aceita
bem definidos da ciência do ramo.98 do autor da Vila Sancti Martitti, Sulpício Severo (ca. 363 a ca. 420),
A crônica, escrita por um único autor, em geral conhecido de que somente a vida de um santo poderia ser descrita, porque
pelo nome, e destinada a um público amplo, t.entava abarcar uma somente seu exemplo direcionaria o olhar do leitor para o além,'ºº
matéria hist6rica abrangente, desde o início até o rnomento em
que se escrevia, a partir de uma ideia mestra. Dentro desse quadro -» Vicente de Be:auvais, citado por rm.1NKEN, Ann:1 Oorothee von den. Die latcinische
geral, existem possibilidades de diferenciação. Eusébio (ca. 265 a Wefo:hrouistík. In: RANDA, Alexandcr {Ed.). Mi!nK/1 1md IHl(J•t.Uhrtlitt. Zur úeschkhte der
Univemlge1chidtt$sdueibung. Salzburgo/Munique, 1969, p. 57; CÍ, l3RIN,KEN, Ann;i; Dorothce
von den. S/11diill :wrlatúrilsdw1 We/1dwt1iUi.~ bis itt das Zú/<1/ttr Ot1,:,~ t'OIJ Fte/Jlng. Düm~ldorf, 1957.
n Cf. o quadro geral de GRUNDMANN, Herbert. Geschichtmhrdbung im Mitteblter. ln: lN SRVERUS, Sulpicius. Vita Smwl Ma,llt1i, 1, 1; além disso, o e>:tenso coment:Sr!o <le Jacques
STAMMLBR, Wolfg-ang (Ed.}. Drn11du Pliifologle lm A.1if,IH (vol. 3). 2. Aufl., Berlim, 1962, Fon1;1:ine, em sua edição bilingue $11/pfte Slvlrt, Vit de St1ill! M,ntfo (t, t). Paris, 1967, cm
p. 2221 e segs, (edição revi~da: GOttingen, 1965), especial p, 72 e !egs,

66 67
O CONarro o;; HrnôHA

impediu que na Idade Média ocorresse um desenvolvimento linear se perdia nas profundezas do tempo, e a escrita latina da História
da abordagem corrente. Biografias de governantes são impressionan- é unicamente a rima; ela surgiu da necessidade de enriquecer as
temente raras na Idade Média.'º' E a rica bibliografia hagiográfica leituras escolares, dedicando-se preferencialmente a uma pessoa
não visava em geral apresentar uma história pessoal n_o sentido de ou a um episódio, com tendências ao exagero panegírico, o qual
mostrar o desenrolar de ações ou de movimentos (por exemplo, podia ser utilizado para fins propagandísticos.
porque essa forma de representação fosse totalmente desconhecida) As características diferenciais dessas classificações em categorias
- ela procurava justamente mostrar, através de todas as ações do se localizam em variados níveis e só foram descobertas pela pesquisa
santo, sua vocação à santidade desde o princípio. através da fenomenologia, no século XIX. Aquilo que se entende
Mesmo assim, houve séries de minibiografias. Sua designação por "crônica" foi sendo estabelecido a partir da intenção daquele que
de ''gesta" - derivada de "res gesta" - indica a intenção de registrar escreveu a História e a partir do objeto; a Hvita" só é compreensível
11
acontecimentos. As ações" relatadas concentram-se, porém, sobre a partir da pessoa descrita, enquanto a característica mais destacada
pessoas que ocupam cargos, cttja sucessão, através de várias gera- dos "annales" e da "gesta" parece ser o princípio classificatório que se
ções, mostra a interconexão de instituições no longo prazo. Dois orienta na sucessão anual ou na sucessão do cargo. Diante dos muitos
aspectos podem ser destacados: ou a enumeração de determinadas espaços de transição na realidade historiográfica, essas características
características da ação dos detentores de cargos - repetida como se estruturais, porém, parecem se referir apenas a tipificações estabeleci-
fosse um catálogo - destaca os aspectos estáticos de uma instituição das postfestwn.Já naquilo que tange ao conceito dos "annales", não se
juridíca1nente normatizada, o que n1uitas vezes se dá através da pode ignorar o fato de que Semprônio Asélio, na sua caracterização,
inserção de documentos legais, em citação verbal; 1º2 ou então, a empregou critérios bem diferentes dos da linguagem científica atual.
massa de acontecimentos diferenciados destaca a eficácia das ações Por isso, é incontornável apresentar as afirmações dos próprios autores
desses detentores de cargos, cuja ação passa, assim, a corporificar que escreveram História na Idade Média.
a importância da própria instituição. Ambos os casos não excluem b) Critérios de classificação na Idade Média. A antiga
a possibilidade de que a descrição fique cada vez mais detalhada, distinção entre historia como relato de aconteciinentos contem-
à medida que se aproxima da atualidade do autor, desembocando, porâneos e annalcs con10 a representação de acontecimentos mais
no final, numa ampla biografia. distantes no passado foi rechaçada por Isidoro de Sevilha - como já
O que há de comum entre a poética de canções populares, c,ua foi dito; mesmo assim, ele se viu obrigado a levar em consideração
perspectiva cronológica, tanto para ouvintes quanto para apresentadores, o conceito de annales. É que às medidas de tempo em dias, meses
e anos corresponderiam ephemerida, kalendaria e annales; o gema
Wl Cf. BEUMANN, Helmut. Oie Historiographie ais Quelle für die ldeengcschichte dcs liistoriae apresentaria uma classificação tripla. 103 Ele aceitava esse
KOnigtums. Hfrtorisrht Ztilu1u{ft, n. 180, 1955, p. 456 e segs.; rdmpre~o em DBUMANN, critério de diferenciação orientado por um princípio classificatório
Helmut. ldw1gndrid111íd1e S111dim .:rn El11hard w,d ,wdm,1 Gtsdlld11.mlmíbem deJ. fdilierm
Mlttdaltm. 2, Aufl., Oarmm.dt, 1969, p. 47 e u,gs. Sua opinião de que as biografias de
forn1al, 1nas aparenteinente não era fundamental para uma divisão
governantes inlluendadas pçh Hh16ria dos iaxões de Widukind von Cotvey momatiam no em categorias. A baixa Idade Média seguiu esse padrão, na medida
geral uma concepçfo de História profana latente, ptecbarfa ser confrontada com a pergunta
en1 que as muitas obras de annales, via de regra, não são classificadas
por que biografias de governantes s6 foum escritas quando ~s ~twttu,u de dominação se
tornavam lns1~veís, e se na vh:io, nrnius ve.HH, conscicnternente "ptofanada" n3.o es1amos com esse conceito nos títulos.
dbnte de u1n.l adaptação do ~mor à ainda pouco desenvolvlcla concepção cdstii da nobrez.a,
1◊ 1 Seria posdvel pem1r aqui em p1rtei ponerlore.i. do ü'bu Po11lifi((1/is - cf. ENGELS, Odilo.
K;lrdinal 8oso :ils Geschichtmhreiber. ln: Pnp1t 1111d Kcnzil. Fest!chrift für Herm3nn TUchle. i-0
1
IS!DOR., Etyrnolôglac, 1, 44. Cf. a respeito: FON'fArNE, J. 1sfdc,e de Slville t/ /11 wlture
Munique, 1975 - ou na Hísto,hl CtJmpcstellan11. daufqr4e dam /'Espagne w/Jlgctlriqiu (e. 1). P;iris, 1959, p. 180 e segs.

68 69
. ': Ó CO~,KU[O t'E H,s16.:.t.11.

. ·•·•. ·•·· .. 8Gaid} Isid~j ~iz qrie Salústio escreveu uma historia e que dilatare et .fimbrias magnijicare delectant. Dum eni111 cronicam compílare
'-fc'·:íkóbta/de"r:.ívfo~ Eüsébio eJerôuitno se constituiriatn de historia e wpiunt, l,istorici more inced,mt et, q,wd b1wíter sem1011eq11e h1111111/i de
.(dnn~'i;s;·. ÍSSo não representava mais que unia concessão a definições modo scribendi dicere debuermit> verbis ampuUosis aggravare co11antur .ll 0
11

•-ithúiiS. É que em outro lugar104 ele cita a crônica; na tradução latina, Já que são muitas- c01no escreve Gervásio-, se deveria pensar
·. ela se chamaria tempomm series, a qual teria sido escrita pot Eusébio, aqui num fenômeno de decadência, que tenderia a eliminar a forma
e Jerônimo a teria traduzido para o latim. Juntar historia e annales de representação mais compactada on a mais ampla como sendo as
numa mesma obra era, portanto, algo novo, frente ao qual a carac- verdadeiras características distintivas entre Crônica/annales e historia.
terística diferenciadora representada pela proximidade cronológica Naquilo que tange à massa da matéria e simplesmente por causa
em relação ao autor perdia importância e ia sendo substituída pelo do espaço temporal abordado, Otão de Fresing (ca. 1112 a 1158)
conceito de crônica. A distinção entre cronística e annalística, hoje teve de fazer uma restrição maior na sua Crdnica mundial que e1n
usual, orientada pelo princípio de classificação, aqui, precisamente sua Gesta Friderici Imperatoris, porém, em relação ao estilo não se
não era feita,'º' portanto há bons motivos para que se possa designar observam diferenças significativas. Se, apesar disso, a Crónica m1mdial
leva o título original historia e a Gesta o título Cro11ica", 111 isso
11 11 11
a annalística, que foi dominante até o final do século XI, como a
forma de representação da Crônica propriamente dita.'°' aparentemente ocorre em razão das diferenças no espaço tempo-
Mesmo assim, a diferença entre historia e anna/es não se perdeu, ral abrangido. A caracterização da abordagem mais ampla como
e isso numa outra perspectiva, que Isidoro não levou em conside- historia permaneceu, mas se deslocou - e isso não apenas em Otão
ração. Cícero'°' e Quintiliano'°' haviam caracterizado os mmales de Freising - de critérios internos para características externas.
como uma forma menos pretensiosa de representação, pelo fato de O genus hístoriae triádico citado por Isidoro também não era
que se tratava predominantemente de um arrolamento de datas e desconhecido na alta Idade Média. Roberto de Torigni (= de
de nomes. Cassiodoro já identificava - sem dizê-lo de forma ex- Mont-Saint-Michel, final do século XII) observa, no prólogo de
pressa - a Crônica com a obra dos a,males, já que ele a define como sua crônica sobre Sigisberto de Gembloux, seu modelo: "de d11cib11s
ºimagines historiarmn brevissimaeque commemomtiones temporum''. 1º9 A Normanorum nihil aut pamm díât. Nam tamen hocfeât nrglígenter, sed q11ia
distinção inclusive é encontrável na alta Idade Média. Assim, Ger- carebat his tribus hístoriís". 112 Teria sido costume da época apresentar a
vásio de Canterbury (século XIII) apresenta a seguinte polêmica: História dos duques normandos conforme sua sucessão no cargo. A
"Cronicus autem atmos et prituipium quae iu ipsis eveniunt hrevíter edocet,. partir da antiga teoria do princípio de classificação, aquilo que nós
event11s etia1n, portenta vel miram/a commemorat. Sunt autem plun'mi, qui hoje costumamos designar con1 o conceito de '~esta" ainda não havia
cronicas vel annales scrihentes limites mos excedunt, nam philacteria sua sido incorporado; por isso, Roberto desculpa a falha de seu modelo.
Esse exemplo clareia duas coisas, tendo por base as observações
1
~ lSIDOR, Btymo!ogiae, 5, 28.
precedentes. A teoria da Antiguidade não foi adaptada às transfor-
►» LACR?I~, l}hit1,:nima11Moyt11 Âgc, p. 34 escg$., emcontr.1partida, nwd.Unterecursoaesn>citações, 1naçôes entrementes ocorridas, procurando-se, pelo contrário, cmn
tenta cnstahwrM.1!oria, tl/11//lltse cr6nicacomo :i.s tÚSC;'.ttegorias proprlamcnto ditas da ld~dc Média, evidente esforço frustrado, enquadrar a realidade historiogrãfica nas
massc emar:inha em diliculdadei evid~ntes, ao tenta e traçn os limites entre Crônio e aunales.
1
~ Encimtra-se dem. fomu em POOLE, Reginald L. Clmmidrs mui AmMft. A briefoutline of
thclr origin. 31'1d growth. Oxford, 1926. iHGcrvãsiodeCitttetbury, n:i.Chronkamaíor(Prologw). ln: STUDDS, William(Ed.). Thelsr1tcri<al
197
CICERO, De qr.1fort, 2, 12. w11tkl (vol. l). londre~, s. d. (1879): reimpresso, sem indicação de lug~r, em 1965, p. 87 e seg.
!CI QUJNTlLIAN, 10, 2, 7. m funi~JoscfSchmale, em sua introdução ,1; Biul1efOM ~•on Frdfins, tmd R,i/uwfo. Die Tateu
m Caniudoro, 11'1: MYNORS, R. A. li. (Ed..). foslltmfonu di11ilum1m et lmmanMum Uut111tum, Frfrórfrlu. Dmnstadt, 1965, p. 75 e ~eg. (w1du2ido por AdolfSchmidt),
Oxford, 1963, t, 17, p. 56. m Roberto de Torigni. !n: DESLJSLE, Uopold (Ed.), Chronit" (Prologm) (t. 1), Rouen, 18i2, p, 94.

70 71
(0,1,>,MUiSÂO DO (et.:<mo N~ loADi; M&iv..

normas trans1nitidas. Isidoro já tinha aplicado o conceito "annales" mantendo-se apegado à congruência de império e religião, já que
a um elemento de classificação e de categotização, sem sinalizá-lo, a expansão da salvação, segundo o plano da providência divina, só
e em Roberto de Torigni vemos os três elementos básicos buscados poderia ser garantida pelo quarto grande império.
numa medida de tempo (dia, mês, ano) sumariamente designados por Somente no imaginário de Isidoro de Sevilha, o império uni-
u histotiae". Naquilo que tange ao assunto} se fazia uma distinção clara versal romano encolheu a um regmm, ao lado de outros regna, dando
entre princípios de classificação e de categoria, mas o mesmo não se lugar à ecc/esia como única unidade que abrangia todos os povos.'"
fazia na escolha das palavras, com que se teria achado outra expli- Como consequência, ele retomou - no lugar de uma sequência de
cação para a tentativa da moderna pesquisa histórica de determinar quatro impérios mundiais - o princípio classificatório que havia
diferenças de categoria, ao menos em parte, a partir da classificação. sido concebido por Agostinho com "aetates", entendendo-as no
e) Formas de experiência e capacidades de formatação. sentido de um amadurecimento do corpo da humanidade como
Antes que se conclua, de forma apressada, que a continuidade pre- etapas da idade do mundo. 117
domina desde a Antiguidade tardia até a alta Idade Média, deve-se Também ainda na Antiguidade tardia surgiram listas de pa-
dar uma olhada na experiência da historiografia medieval sob o pas, em analogia aos antigos fasti consulares, que iam se ampliando
•aspecto de sua riqueza, naquilo que tange às suas formas históricas, com o acréscimo de dados biográficos, transformando-se no Líber
incluindo suas principais raízes. pontifica/is, 118 Da perspectiva das formas históricas, esse protótipo da
A escrita da História pagã da Antiguidade não pensava de gesta possui a mesma raiz da annalistica antiga, naquilo que tange ao
forn1a cídica, mas sim linear; 1u cmn isso, a introdução de um te/os objeto, pois representou a continuidade das antigas biografias de im-
cristão não significou nenhuma ruptura total com a historiografia peradores, mas, por causa da forma constante em relação aos dados a
anterior. 114 Aquilo que a crônica mundial de Eusébio/Jerônimo, serem registrados, se entendia como uma história institucional oficial.
preocupada com estrutura ordenada de dados, ainda não conseguiu Com isso, todos os princípios de classificação adotados depois estavam
fazer, Orósio, o discípulo de Agostinho, conseguiu.' 15 Nos sete configurados: a sucessão de quatro impérios ou monarquias mundiais
livros de sua "Historiae adverrns paganos", desvinculou do rei assírio ou de fases etárias do mundo, o esquema anna/istiro subjacente às eras
Ninus, o fundador de Nínive, o início de toda e qualquer história do mundo e a lista de sucessão dos detentores de cargos. Mesmo
palpável, que tinha sido descoberto a partir do grande império da assim, nem todos tiveram continuidade óbvia na Idade Média.
Antiguidade tardia e, como primeiro, começou sua representação Beda (672/73-735) 119 conhecia as Crônicas de Jerônimo e de
com o relato bíblico da criação. Mas ele não conseguiu romper de Isidoro, e utilizou a divisão em fases da idade da terra. Mas não
todo cotn a visão de que o império romano constituiu o ápice, e
com a consequente irrepetibilidade do império mundial romano ou 1u ROMERO,José I.uis. San Isidoro <le- Stvilla. Su pens:tmiento histótico-político y rns relaciones
com a invertibilidade da orientação histórica que existiu até então; con la histori:i. visigoda. C1111dt111M de Hüto,fo de füpaiia, n. 8, 1947, p. 51 e seg~.
111 Mais do que na Crônica o~ Isidoro, esse sentido fica duo n.as suas Etymofogfoe, como mos.troo
ele simplesmente identificou a pax A11g11sta com uma pax christiana,
Arno Borst em "Das llild der Ge1d1ichte in der Enzyklop:.:die lüdors von Sevi\13" (Dwtsdm
Ardiiv, n. 22. 1966, p. 21 e 1eg1.).
m DERTOLINI, Ottorino. II "Liber Pontificalh". ln: StoricgM.fia, vol. 1, p. 387 e segs,;
iu C(. VITTINGHOFF, Zum geichkhdich!!n Sclbsl\'erniindnis .. , (cf. nota 49).
11 MELVILLI!, Gett. " ... Oe gestis sive scarntis romanorum pontif1n1m, ..". Rechus3tze in
• MOMIGUANO, Arnaldo. L'eri dei mpasso fra storlogralh antica e ~todografü medievale Papngeschichtswerken. Auhlvum Hfitoriae Pc/J!/ficfoe, n. 9, 1971, p. 377 e segs.
(320~550). ln: La srorio,gr,ifrn a/romedtevale (vol. 1). Spoleto, 1970, p. 89 e segs. 119 Entre os melhores, t:Qntinua cstao<lo LEVISON, Wilhelm, Bule iU llli101la11. fn: THOMPSON,

u5 SCHÔNDORF, KurtA. Die Ctsddd11nhe,:,logitdt,Orosim. Munique, 1952 (tese dedot1tor:o.do); A, Hamilton (ed.). Bde, his life, timu Mdw1ítings. Euays incommemontion ofthe twelt'l:h cemenary
LACROIX, llenoit, 011Hett.m ldlu. Montrul/i'.'arh, 1965; MARROU, Henri lrénée. Saint ofhis de~th. Oxford, 1935, p. llt e seg~. (Rtimpre$SO com ampliações em LEVJSON, \V. Aus
AuguHin, Orose et l'Auguninisme hinoríque. ln: Storiograjia (vol. 1), p. 59 e segs. rhdnU<her und (rlinkhcher Früh:uir. ln: Amgtii,~hlu A1!fiaru, Dfüielclorf, 1948, p. 341 e segs.).

72 73
(0/.'J'füNSÂO 00 CO.'l0110 t,t,\ !D.IJ)f MtOIA

foi ela que teve influência duradoura no continente, mas sitn seu uma concepção de História determinada pela romanidade. A crô-
cálculo das datas da páscoa, até o ano de 1063. A annalistíca que nica de Regina de Prüm (aproximadamente 840-915) já percebe o
predominou na escrita da História carolíngia se desenvolveu a surgimento dos impérios germanos como uma ruptura decisiva. 121
partir de uma necessidade prática: tabelas com as datas das páscoas Paulo Diácono e Freculfo, porém, também não eram mais
ofereciam oportunidade para registrar, nas margens, aContecimentos capazes de adotar o esquema classificatório de seu modelo ou de
importantes do ano corrente, um costmne que foi se autonomi- estabelecer outra classificação para o material histórico-mundial,
zando e ampliando. Aqui a cronologia melhorada de Beda oferecia que fosse mais adequada ao tema. A Víta Karoli Magni, de Einhard
uma ajuda bem-vinda. Seria possível argumentar que, com isso, a (aproximadamente 770-840), comprova que a razão para isso não
partir de Beda, também estava estabelecida uma ligação da anna- estava na perda demasiada de conhecimentos sobre a educação
lística carolíngia com Eusébio/Jerônimo. Na verdade, porém, essa antiga.'22 Chama a atenção que o tipo de vida de santo, muito
ligação foi muito secundária, pois, apesar de seu formato igual ao realista, que os 1nissionários anglo-saxões haviam difundido no
do antigo precursor, a amialistica medieval tinha suas próprias ra- continente, pôde se manter ao lado da "víta", que recorda ao
ízes. E não se pode excluir a possibilidade de que Paulo Diácono postulado de Sulpício Severo e tipologizada para fins litúrgicos"',
(720/24-799?) tenha utilizado a lista de governantes langobardos até que na alta Idade Média (com a exceção da Austria) também
que precede ao Édito de Rothari - n1ais uma vez, uma fonte não aquela mmalistica que não se nüsturara com outros elementos de
buscada na Antiguidade tardia - como modelo para o esquema de classificação novamente desaparecesse. Nessa medida, está correto
classificação determinado pela sucessão nos cargos, para sua Gesta enxergar na escrita carolíngia da História uma nova abordagem, a
episcoporum Mettesium. 12 º qual evidentemente não evoluiu para uma configuração mais ampla.
De qualquer forma, a crescente soma de possibilidades de for- Tanto a vila quanto a mmalistica não foram capazes de produzir, na
mulação se reduziu aos dois princípios classificatórios, o do registro alta Antiguidade, uma imagem realista da vida, ou algo mais que
anual e o da lista de sucessão, os quais no início foram os únicos a uma simples montagem de dados; mas eram exatamente elas que
sobreviver; e isso se deu às custas do horizonte histórico-mundial. pareciam apropriadas para isso. Aqui parece ter se manifestado o
A crônica de Orósio serviu de base tanto para a Historia Romann efeito da forma desenvolvida de raiz própria, originalmente ima-
de Paulo Diácono quanto para a crônica mundial de Freculfo de ginada para o registro daquilo que tinha a ver com a atualidade.
Lisieux (aproximadamente 825-852/64?). Mesmo assim, ambos os Somente a partir do final do século X[, se foi retornando
autores não conseguiram fazer muito mais que um simples enfi- gradativamente à redação de crônicas mundiais mais elaboradas.
leiramento cronológico de episódios individuais, e ambas as obras Isso não se devia apenas à leitura de autores antigos, mas também
terminam com a apresentação de Justiniano ou de Gregório o Gran- às novas experiências. No contexto da querela das investiduras, se
de, isto é, com o colapso total do Império Romano no ocidente.
Na impossibilidade de prosseguir com a apresentação da História 111 LÔWE, Heinz. Reginovon Prlitn und da.$ historhche Wcltbildder Karnlingerzeit. Rlieiuísd1e
mundial até a atualidade do autor, reflete-se a dependência dos Viatelj11Jimb!ã/Ur, n. 17, 1952, p. 151 o segs, em especial p. 173 e segs, (Nova irnpre~fo in:
LAMMBRS, \Valthor (ed.]. Gmli/cl1rsdt11.~e111111d Gmlríd11Jbifd im Mltrdaftrr, Darnutadt, 1965,
historiadores em relação a um contexto em que não mais vigorava p. 91 e segs,, em especbl p, 125 e segs,).
m HELUvl.ANN, Siegmu11d. Einhards liteurische Stellung. Hísloriuhe Vitrtdjalmssd1rift, n. 27,
1932, p. 40 e segs. (Nov.1 impresiâo em :8EUMANN, Helmut. Ausg,wJh/te Abfrandl@gen ..:ur
i;,, SESTAN, Ernesto, La storiogufia dell'Italh !angobuda: P:iolo Diácono. St"riogrnfia, vol. t, p. Hi.storiographie deJ Afütefalle,s. Darmstadt, 1961, p. 159 e s<!gs.); BBUMANN, Helmut. Topos
351 esegs. Comtiro\'adamente, Pau!oDHcono tambémconhcda o Libcr Pomljict1füe a l:liJtJria und Gedankengcftige hei Einh~rd, Afthiv /11, Krdflltgtsdiidilt, n. 33, 1951, p. 337 -e segs.
tde.Jivslfr~ do po~v {ngUs de.B<:da.; por esH rad.o, unu decisão a respeito fica em aberto. IH Cf, a bibliografü em GRUNPMANN, Gcschichtmhreibung, p. 2252, sobte o§ 6 {nota 98).

74 75
0 CCt-Kffi0 OE HIS!óHA CO/Jfüe&.o oo c.ot/COTO ttA. lo>.ot: f..'l.iY.>.

reavivou a concepção das duas potências supremas> na foxma da continuadas pelos franciscanos, se contentavan1 com a sequência
doutrina das duas irmãs, construindo, assim, uma ponte em relação etn que os papas exerceran1 seus cargos.
a' A nt1gm
. "d ade t.ard'ia. 124 Era so bretudo o ocidente que negava a d) Doutrina da representação. Sob a influência de uma pres-
função histórico-mundial central de um império que se estende- são cada vez maior da experiência histódca, no decorrer do século
ria da Antiguidade até a atualidade, como contrapol~ legítimo ao XII, a discussão teórico-científica foi reavivada. Não é necessário
sacerdotit1111, mas também ele encontrava no papado um referencial explicar que a teoria da Antiguidade tardia, desde o início, fez parte
geral como sendo o ápice integralmente realizado da ecclesia. '" Ao dessa discussão. A discussão se concentrava sobretudo na pergunta
mesmo tempo, novos objetos que enriqueciam a visão dos histo- a respeito de como o material com informações históricas deveria
riadores movimentaram a escrita da História, no século XII,'" ser trabalhado em cada caso.
despertando a atenção do historiógrafo para novos temas, como Como parte da Retórica, a historia também era narratio de
cruzadas, fàmílias nobres, territórios de príncipes ou cidade."' acontecimentos do passado,128 o historiographus exercia um officium
O número de classificações conhecidas não aumentou com narrationis, cujo produto era visto como um opus narratíonis. 129 Tanto
isso; continuava-se a utilizar listas de sucessão e registros anuais, 1uas no século VII quanto no século XII, a historia, invocando seu altís-
agora numa mistura crescente, e também a sequência de monarquias shno grau de veracidade, começou a se distanciar dafabula ("neque
mundiais teve nova aceitação, através do estabelecimento de uma vemm neque verisimi/e"), do mgumentum ("non verum sed verísimi/e") e
ponte com a Antiguidade. No final, o princípio peculiar da gesta da poesia.°º Mas - e esse aspecto parece ter se transformado num
acabou dominando; na alta Idade Média, as Martiníanas utilizadas problema de dificil solução - "gesta .., tempo mm infinita pene Stmt"'",
pelos dominicanos - de acordo com o modelo de Martinho de por isso uma seleção do material a ser incluído na narratío se tornou
Troppau - mantiveram uma classificação dos materiais referentes incontornável. 132 Somente foi levado em consideração aquilo que
à História mundial, através de listas de sucessão sincronicamente seria in "rebus magnis memoriaque dignis".°3 Na visão de Hugo de
enfileiradas de imperadores e papas, enquanto as Flores tempor11111, São Vitor (falecido em 1141), ainda eram esquematicamente três
fatores: a pessoa que era dominante no acontecimento, o lugar do
acontecimento, e o tempo que envolvia o acontecimento. 134 No
m O Império alemão :ipJ.rece, peb primeira ve2, de form.1 dara, como continuidade dD império
mundis1l romano em FrutoJfo de Michelsberg. Uma ajud:t muito imporhnte que O orientou século XIV, em contrapartida, já eram citadas sete famosa actionum
na redação foi busc11da na Crônica de Jerônimo. t\.-fas o esquema dt111aliJtitv se momou fdgil,
cm pontos nodais; cf, SCHMALE, Franz•Josef; e SCHMALE~OTT, Irem•. Pmto!ft 1111d
Ekluhaids Cl1ro11ikm 111111 die ammyme Kaimdir,mlk. Darmnadt, 1972, p. 8 e segs (introdução), m ISIDOR, Etymotogi:i.e, 1, 41; Bfü\UVAJS, Vinzenz von. Spw1lum JMlriJJ:ifr, 3, 127.
Junurnente com Lamber lo de H~ufeld, Frutolfo faz parte do período de tra,;uição cm que se m LACROIX, L'Mstorim ,:111 Moym Âgl, p. 15 e seg.
procura i.\1bstituir o ptincfpio m11111fistfro em favor de interconexões mais abrangentes. i,c ISJDOR, Etymologfae, 1, 44; cf. SALISBURY, Johrnnes von, Poffrratiws, 2, 19; Ramilf
m Hugo de Fleury foi o primeiro a escrever uma His10,Ja tultJi!1s/t((J, Jofo de Sali!bury foi o Higdcn, fn: DABINCTON (Ed.), Jiolyd1romico11, 2, 18.
prln1eiro a identificar a história da igreja com a hhtória doi papas; cf. Z(M!vIBRMANN, Hugo de São Vitor. lo: OREEN, Willfom M. (ed.), De tribu, m:iximls dréUrul;'lntfü grnorum.
iii
Harald. Ecc!da ais Objekt der Histodographic. Smdlen zur Kircbenge~chichtmhreibung Spw1/u111, n. 18, 1943, p. 491.
im Miueb.lter und ln der frühen Neuzeit. ln: S//zimgsbulcht der Ôsltmidiiuhen Akadcm(e du m Otão de Freising, na cnta :i. Ro>.inald VOJ1 D~ssd por oc:uiào <lo envio de sua Ctônica ao
Wimm,haftt11, phUos~pMufi.Jiiito,isdre Kl11m, 235/4, VJena, 1960;JEDJN, Hubect. H1111dbud1 imperador Ftederico [: "Stltl; enfm, 1110d 011111/J dc.:Mna iH duobllS cominit, infiiga d datío11t, ...
der Kfrdmrgrnhir/1/t {vol. 1). Preiburgo, 1963, p. 28 e seg, lpsa ut, qnr.e swmdum suam dlmplin11m dccel tfi.gu~ ta, quae cc1wmiun1 propoJilo, et fi1gtrt, q11at
iu S:PÕRL,Johannes. Wande..l de~ Welt- und Ge,c;hicht,bildes im 12.J~hrhundert? ZurKcnmekhnu11g imptd/11111 p1opo1U11111 ... S/c ti chrc11cgr,1pho11m1j11,11fta1 lrnbtt, quat purg,mdo fi1giat, qmu ituln1rndo
der hoc;hmittehltetlkhen Hhtorlogr.iphie, In: RÜDINGER, Carl (cd.}. Umu Gmhfrlrtibild (vol. ellgat;f11glt t1rlm mend,uia, ti/gil imita/em". Clmmik (cf. nou 90). ln: Mc1mmu1ra Gem1011iae -
1). Munique, 1955, p. 99 e !Cg!. {r~editado em LAMMERS, GndddiudmkM ..., p. 278 e seg.1.), Snlptom wllm Guma11fromm /11 w11111 scfiofo,imn (vol. 45}. p. 4 e ieg. C[ também Wilhelm von
m Cf. PATZE, Ham. Ade) und Stifterchronik. Frühformen territori3ler Geschkht.uchreibung Móllnmbury. ln: Sl'UDDS (td), GesM 1eg11m Anglori1tt1, 5, 445.
im hochmittelalterlichen Rekh, B!ã11ufllr D~111.ulu Land~~gmhi<lite, n. 100, 1964, p. 8 e segs.; m CfCERO, De o,Mcu, 2, 63.
ibld., n. 101, 1965, p. 67 e i.egs. !JI Cf, i\Ot.'1 131.

76 77
0 COl'•KVí0 o.'.' HíSlÓ:ltA Co,m..m•./íi.o 00 co.,"<HTO t-tA ltlAN NJ.oo..

genera das respectivas figuras estan1entais. 135 Enumerações desse século XII, no título (Liber jioríd11s) da coletânea de excertos de
tipo"' decorriam da tentativa de corresponder entrementes à am- Lamberto de São Omer. 14" A quantidade crescente desses novos
plitude crescente do material a ser utilizado e de sistematizar o títulos de livros não tem nada a ver com uma multiplicação de
instrumental do historiador, categorias historiográficas, mas eles denotam uma reflexão mais
Poder-se-ia pensar que uma descrição estilísticamente des- ' · tra bali10 h'1stó rico.
intensa sobre o propno . 141
pretensiosa teria sido suficiente para apresentar fatos do passado Daqui se pode estabelecer mais uma vez uma ponte para a
através de afirmações não falsificadas. Mas como parte da Retórica, história vocabular. O século XII aparece como um momento de
a historia se sentia compron1etida com a virtus bene scribendi; conse~ inflexão em vários níveis. O campo hist6dco ampliado do historia-
quentementc, o historiógrafo deveria se esforçar para conquistar dor começou a focar novamente, com mais atenção, o passado mais
a benevolência do leitor em relação à matéria, através da arte da remoto, relativizando, assim, a proximidade em relação à atuali-
fala. Por essa razão, ele costuma envolver o anúncio da matéria dade que predominava desde os séculos VII/IX. Os limites pouco
em figuras de linguagem trópicas; a metáfora no título do livro já
claros existentes desde o século VIII entre "res gestae" e "historia"
deveria indicar aquilo que normalmente era explicado no exórdio.' 37
começaram a se clarear; o destaque se deslocou do acontecimento
Também nesse âmbito, o problema da escolha do material era leva-
num sentido pouco diferenciado para um relato com uma clara
do em conta, De forma alguma, era nova a atividade de expressar
reivindicação de ser verdadeiro. Para isso, se reservou a palavra
metaforicamente a dedicação que visava a juntar numa coroa de 11
historia"; aquilo que não conseguia responder a essa exigência
flores aquilo que originalmente estava disperso,'" e apresentá-lo
corno um todo novo, 13 ~ isto é, escolher elementos individuais de começou a se separar sob outro nome, Os esforços de, enquanto
uma infinidade desordenada e, com a ajuda desse reducionismo, isso, conseguir estabelecer uma vinculação com a discussão teórica
chegar a um quadro racionalmente construído; mas não constitui da alta Antiguidade fizeram com que fosse dada maior atenção à
acaso que isso aconteceu, pela primeira vez, na passagen1 para o utilização das matérias disponíveis, Foi retomada a ideia de redigir
o relato de maneira artística e atraente para o leitor. Naquilo que
tange à classificação da matéria e à divisão em categorias historio-
in Ram1lf 1-ligden. lv: BABINGTON (Ed,), Polydmmfron, l, 4 (d. nota 94); (vol. t) p. 34): " ...
t1olrl qr1od .uptem feg1111111r pwcnat, quo1111n gwa mb,Iu; í11 liiJtorfü monur;mfur, vidtfiut p,lluipfs ili gráficas, a vinculação não foi bem-sucedida. É verdade que, sob a
ugno, miUt{s in btlfo, h1dids ln foto, praw1f11 {11 clero, polllfd fu pvpulo, om1uomfti {11 domo, 1110/latlíd 1'11 impressão da crescente multiplicidade de objetos a serem levados
tnnp/o, A IHo correspondem uptm1fim1ora ,uti,mmnge,re,,1, qua~ m1Jt tomtt11l/lo11u mhl11m, drviaioneJ
hosti11m, 111nctionr.s a'iní11111, <01rutio11es<1lmfm1111, co,npositfo ui populad;, disp-,s{l{o rdfa1111fiaris, c1dqi1!1ilfo em consideração, foram feitas reiteradas tentativas de diferenciação e
merili rnliitaris, et i,r hís jugllu u/ru.mt pmemlalfo11e.; probomrn tl p1miffot1n punrsc-mm", de sistematização, mas aparentemente não foi possível compreender
1
~ CT ,1. e~ie respeito a co!ctâne-a de comptOVáflléS em L.ACROJX, l!hitlorien a11 Mo}'m A'gt, p. 16 e segs,
como constituindo algo novo os pdncípios estruturais que ainda
isi DRfNKMANN, Benning. Der Prolog im Mittelaker .a.Is lilenrische Erscheinung. Bau
und Aumgc. Wlrlwidt.s Wé,1, n. 14, 1964, p, t e segs; cf. em especial sobre .:i. questfo dos eram desconhecidos à Antiguidade tardia ou sobre as quais não se
topoi: SIMON, Gemud, Untenuchung 2ur Topik der Widmungsbricfe mittclaltcrlicher
Geschkhtsschreiber bis zum Endc des 12, Jahrhunderts. A,diiv fiir Diplomatik, n. 4, 1958, p.
refletira na época para incluí-los de forma profunda na discussão.
52 e segs.; ihld., n. 5/6, 1959/60, p. 73 e segs.
m O rei Ahlaríco, numa carta de 535 ao senado romano sobre a História dos godos de Cas;iodoro,
10
formulad~ pdo próprio C1ssiodoro: ''Originem Gotliíram lli$f(lt/am ft<it me R(!manam, Nfligtm MELVlLLE, Gerr, "Zur Flote1-Metaphotik" in der miW.::hltediçhen Grn;hicht5schreibung.
qwui {11 unam {(!TOIM/Jl$,tnnmjfo1/d11111, q11od ptt fibrormn cm11pos p,:1uimf11er.11 ante dísprrsmu", Vniae, Ausdruck eines Formungsptin2ipi. Him,I!<hes ]/ll11buch, n. 90, 1970, p. 65 e segs, rcmmido
9, 25, 5. In: Mc1111111rn1a Ctr1na11iar historlat-A11<1om ,mlt'q11/ui111I (vol. 12), 1894, p. 292. em p. 77 e segs.
111 Os novos títulos de livrns s)o, por exemplo: M,ug,.rn'/a Durei/ (Martinho de Troppau), Flom
m [SIDOR, Etymo!ogiae, 1, 41, 2: ''StrleJ mllem dütt1 per t,a,ufatlonem <1 sutísjlornm i,wíum
ccmprefiemomm". Cf. umbêm BREMEN, Ad1111 von. Gesta Hammaburgcnsis ccdcslae hil1oria111fn (Rogérlo de Wendo\·cr), EJ1/ogl111n histo1fa111m (Anônimo de Malm~sbury}, Gemma
poutifkum, (Prolog}. ln: M011umrnra Gum,rniae-Salptous w11m Cmnanframm i11 urnin uliol.uium udnl,utka (Giraldo Gunbrensis), Om1pUa1fo deg,wis (século XV), et<:, (cít:idos por MELV lLLE,
(vol. 2), 3' ed., 1917, p. 3: "fr1teor tibi, q11íb1u ,x pra/is áefloravl ltoc se,1111n". Floru-Met,1phorik, p. 65 e seg., 73).

78 79
1 O couarro t: H!SI¼A
'
Sabe-se que a historiografia da alta Idade Média ainda não pagãos, Agostinho distingue duas institutiones: 144 as que decorrem
foi suficientemente estudada, para que se possam fazer afirmações da prática humana, e que, por isso, são dispensáveis ainda que
seguras. Por isso, só se pode dizer que a impressão que se tem é que úteis; e aquelas que o Criador institui a favor do homem, e que,
a intensa reflexão que reiniciou na alta Idade Média ficou no meio por consequência, não são cambiáveis. Nesse contexto, é verdade
do caminho, porque não conseguiu se desvincular s~ficientemente que os acontecimentos históricos se devem a ações humanas, mas
da autoridade do modelo antigo. se concretizam dentro de uma dada "(ordo) temporum ... , quorum est
conditor et adminístrator De11s". A historia, portanto, pertence aos dois
3. Lugar e função da Historie na rede do saber âmbitos, e isso lhe garante uma importância dupla na expansão do
conhecimento humano em direção à verdade eterna. Como cor-
Dentro do antigo tríviwn, a hístoda era vista como campo au- rente de fatos, irreversíveis, portanto dados, ela serve ao aprendiz
xiliar tanto da gramática quanto da retórica. 142 A gramática ensina como auctoritas e como primeira etapa necessária no caminho da
metlwdice escrever e falar correto, mas historice também co1nentar salvação; os exemplos retirados da História serven1 de ali1nento
obras antes lidas. O aspecto histórico se referia aqui apenas à ocu- inicial para a alma, para, num patamar superior, ser substituída pela
pação com a tradição literária no sentido mais amplo, não a uma ratio. Quem cria essa mtctoritas é a providentia Dei, que foi quem deu
determinada forma de conhecimento; como o material literário origen1 a esses exemplos. Com isso, a historia, no seu conjunto, não
provinha do passado, Agostinho podia chamar o gra111111atic11s de era apenas útil para a pedagogia salvífica, mas recebeu também um
custos historiae. 143 Em contrapartida, a retórica tentava avançar e1n ponto de referência transcendental. Transcurso e concretização de
direção ao bene dicendi, à arte de falar, cuja força de convencimento todas as correntes de acontecimentos não se referiam mais a u1n
deveria ser ampliada. As species narrationis separavam a historia, como objetivo imanente ao mundo - motivo pelo qual se havia acreditado
relato fiel à verdade, de acontecimentos do passado, do arg11ment11111 até então no caráter definitivo do in1pério romano -, mas toda a
e dafabu/a. Mas, como o objetivo último da fala era o sucesso em História da humanidade (também aquela transcorrida fora de um
termos de efeitos, todas as specíes narrationes podiam ser empre- grande império) convergia para uma unidade, cujo contexto inde-
gadas, dependendo das necessidades. Diante desse pressuposto, pendia de todo da permanência de fatores imanentes ao mundo. 145
o conhecimento do passado não ia além dos limites daquilo que Desde então, a historia (também)'" era "História da salvação"
era exemplarmente útil; como vitae magistm a Historie se colocou a e parte imprescindível do pensamento teológico. Todos os fatos
serviço de normas gerais de vida. salvíficos foram enquadrados nela, de forma sucessiva; o texto bí-
Método e função dos antigos instrumentos educacionais não blico - como se pode ver sobretudo em Beda - necessitava, por isso,
se 1nodificara1n com a cristianização, mas a historia não conseguiu de uma cronologia segura. E a partir daí, História bíblica e História
ficar imune frente ao novo objetivo educacional. Se na convicção geral podian1 ser localizadas nun1 mesmo nível, uma nianeira de ver
de Agostinho era possível avançar até a verdade eterna através das
forças sensoriais e espirituais de um.a pessoa, então também hie- u, AUGUSTCNUS. De doctrina chriHlam, 2, 19 (29}, 28 (44). ln: Cc,pm d1risti,m,m1m, Seiiu
rarquia e posição da Historie deveriam mudar. Entre as doctrinae dos Latina {vol. 32), p. 53 e scg., p. 63.
m Cf. KOSELLECK, Relnhart. Geschkhte, Gcschichten u11d formale Zeimrukturcn. ln:
KOSBLLBCK/STEMPEL, Ctsâddiu (d. nota 5), p. 211,217 e segs.
"' Cf., sobretudo, l30EHM, Der whsenschafclllche Ott det Hlstorh {<:f. nota 94), p. 675 e scgs., H~ Sobcctudo a pa1rtstka conhecia a doutrina do semido diveuificado da e.scdta que, na .ma
com abundante bibliogc~fü, Md., p. 692 e seg. interpretação, admitia certJ diferenci2çlo de momento~ mundanos e espiritu;1;ls de um me;mo
!ll AUGUSTINUS. Dt IIWSl(d, 2, l ocontecimento,

80 81
Ccwnmclo 00 <OW::DTO NA loADé Mi.NA

que desde o século XII vinha ganhando atualidade. Mediante o ser imutável. 149 Dentro dessa perspectiva de conhecimento, todo
pressuposto de que toda a Hist6ria deveria ser vista como uma obra acontecimento terreno poderia convergir para un1a unidade; foi
salvífica de Deus, também a Sagrada Escritura podia ser entendida em conexão con1 o pensamento agostiniano que estavan1 dadas as
como um livro hist6rico igual a qualquer outro. A repetição veri- pré-condições para uma História Universal, mesmo que ela, com
ficada em tempos pós-bíblicos de combinações numéricas bíblicas isso, ainda não fosse realizável. 150
ou de acontecimentos análogos pennitiu, então, que a H intelligen- Quando essa forma de ver chegou ao auge no século XII, em
tia spítitualis" fizesse uma interpretação do sentido da verdadeira obras de grande força criativa,1 51 tambén1já comcçaratn a aparecer
realidade total. Assim como a criação teria descido da condição sinto1nas de sua dissolução; 152 um primeiro degrau da compreen-
divina através da espiritual até a material, assin1 ta1nbém o olho são moderna de Hist6ria deve ser localizado aqui. Na trilha da
humano deveria avançar do substancial, através da apreensão de recensão de Aristóteles, a Escolástica fundamentou sua atividade
relações simbólicas, para a imagem do divino. 147 Nesse sistema de de conhecimento na ratio, às custas da auctorítas - sob a premissa
simbolisrno histórico 148 - mna variante predominantemente alemã de que a ordem do conhecimento e a ordem do ser deveriam ser
do início da Escolástica -, não existia Hist6ria bíblica e História conformes; para avançar até a verdade eterna, era complicado
profana, não existia realidade natural e realidade sobrenatural, mas partir de realidades mutáveis. Isso simplesmente levou a certo
apenas mna capacidade de conhecimento não cristã, e outra que desleixo para com as duas artes no trivi11111. Lidar com a historia
era peculiar aos cristãos. De forma mais evidente que na patrística não se tornou supérfluo com issoJ mas a referência ao objetivo
tardia, manifesta-se aqui a ausência de autonomia da Hist6ria. A espiritual do seu conhecimento perdeu parte de sua obviedade.
corrente de acontecimentos vista isoladamente continha pouca Sua função dentro da rede do conhecimento foi por assim dizer
verdade, somente como parte constitutiva da realidade total ima- secularizada. Con10 ela deixava de estar a serviço da sapieutia, seu
nente e transcendente é que se abria seu significado pleno. Assim objetivo de conhecimento podia ser recuado atê aquele limite em
como na Antiguidade, também agora bons exemplos hist6ricos que todas as coisas ficam submetidas a uma modificação; liberou-
deveriam incentivar a fazer o bem ou a evitar o 1nal; a apresentação -se, com isso, uma disponibilidade para a indiferença religiosa.
da Hist6ria pregressa deveria justificar a situação atual ou ajudar a Além disso, ela foi fotnentada c01n o crescente cnriqueci1nento e
corrigi-la; no fundo, tudo isso não constituía nenhuma novidade. a diferenciação das áreas de conhecimento no século XIII-X[V,
Mas o objetivo do conhecimento havia sofrido um deslocamento que começaram a se desvincular de um enquadramento em uma
significativo, na medida em que agora se enxergavam ações de ordo. A posição da historia, no início, continuou indefinida; esta é
Deus nos acontecimentos históricos, Em função disso, até a mu- a contrnface te6rica da crescente quantidade de títulos de livros e
tabilidade de transcursos hist6ricos parecia viabilizar o acesso ao de seus novos te1nas empíricos.

11
) A respdto da poúção teórico-científica de Hugo de São Vitor -fundador da forma hiitórico•
simbólica. de uabalhar, sem que ele próprio tivesle escdto uma repr,;:sentação hiitórin desse
11~ Cf. SAL!SBURY,Johailncs von, Hiitoriapo11t{fica/ls (P,~1/oi); PREIS!NG, Otto von. Clmwlk ... ,
tipo - cf. SCHNErDER, Wilhelm Augu~t. Cesd1icl1fe mrd GmM'11hphilos11ph/e bei Hugo Vóll
SI. Vitlót. Mi.inster, 1933 (tese de doutorado); EHLERS,Jo3chim. H11gc l\111 St. VittM. Studien 2, 43, p. )19.
15º CC o Hgumcntos de DORST, Arno. Weltge1chich1en lm Mittela!ter? ln: KOSELLECK/
mm Gesd1ichtsde11ken und 2ur Ge1<:hjcht;.schreibung des 12,Jahrhttnderts. Wk1badc11, 1973.
111 DAUER, C\emens. Die mittehltcrlid1en Grundlagen de$ hisrnrischen Denkens. Hoth/a11J, Il, STEMPEL, Gm/1frh1e, .. , p. 452 e segs,
111 Cf. SPÕRL,JohanneJ, Grm:ij,.;1111m h0<Ja11flulatc1lid1uGe1d1/rh1wiulta111mg. Studitnzm)\ Weltbild
55, 1962/63, p. 24 e !egs.; PUNKBLSTEIN, Hdl!pla11 {cf. nota. 86); -OERNARDS 1 Matthfos.
Geichicht1periodi1ches Denkcn in der Theologie des 12. Jaluhundcrt~. KJfoer I)ombtiilter, n. der Geschichtmhreiber des 12.Jahrhundcrts. Munique, 1935, em especbl p. 39 e segs.
26/27, 1967, p. 115 e segs, m Cf. BOEHM, Der wíisen1chafmhcoreti1che Ort der Histo[ia ... , p. 667 e ~egs.

82 83
IV

Pensamento histórico
no início da Idade Moderna
Horst Ganther

1. Pressupostos
O pensamento histórico do início da Idade Moderna não pode
ser adequadamente entendido enquanto permanecer submetido
ao veredicto do Historicismo, para o qual teria representado uma
visão provisória e insuficiente ou até falsa do mundo histórico.
Constitui reflexo de um momento de sua própria crise o fato de
que o Historicismo foi incapaz de reconhecer a rica consciência
de História de um outro período, manifestada em controvérsias
amplamente documentadas e apaixonadas, travadas com as forças
motoras da época, e traduzi-la para seu próprio tempo, a fim de
utilizá-la como instrumento da própria História. As obras de
Dilthey, Troeltsch, Croce, Collingwood e Meinecke empurra-
ram o início da Idade Moderna para uma Pré-História - cada
vez mais precária - do pensamento histórico, enquanto alguns
trabalhos científicos básicos sobre aquela época conseguiram
contornar o preconceito. Ainda que o número de monografias
sobre historiadores e teóricos da História, bem como os estudos
antiquários dos filólogos e dos juristas - sobretudo do século XVI-,
esteja crescendo, continua1n faltando pesquisas que tentem inter-
pretar trabalhos e pensamentos históricos dentro do contexto da
História política e social, em suas funções e em sua projeção; e
mais, que consigam enfrentar o desafio teórico de representar - ao
se preocupar com aquele tempo - o nosso tenipo ou, dito de outra

85
P(NSA.W:NTO H-STÕ>:<O NO n-;'.ao 0A IDAOE Mocm,'<A

forma, tentar representar no seu objeto "a forma da História como para as obras imaginadas como corpus de toda Antiguidade, e essa
tal" [Geschícille 11berhaupt].'" suposição ainda pode motivar a mais dura crítica. A historiografia
Tào pouco quanto a tarefa do historiador do pensamento antiga era tida como insuperável, e estava vinculada à ideia de que
histórico pode ser cumprida aqui, tão imprescindível é essa pers- historiografia seria, na essência, descrição dos acontechnentos de
pectiva para uma semântica histórica, uma história do conceito de urn tempo que o próprio autor vivenciou. A ciência histórica via
11
História11 ou de u historia", que se distinguisse de outros conceitos • sua tarefa em comentar as obras existentes, através ela pesquisa an-
pelo seu maior grau de generalidade. Ele designa todas as ações tíquáiia sob pontos de vista sistemáticos - resultando na doutrina
e todos os fatos que alguma vez foram relatados ou descritos, ou jurídica das instituições e na numismática - e em descrever épocas
ainda podem vir a ser, n1esn10 os da natureza, da qual a História só sobre as quais ainda não se tinha nada mais contextualizado."5 Os
relativamente tarde se afasta 1 de forma estritamente terminológica, resumos gerais sobre História escritos com finalidade didática ou
em todo o mundo visível. Essa generalidade do significado faz com de entretenimento são bem menos representativos para o trabalho
que o conceito raramente possa ser utilizado de forma operativa e histórico do que seu grande número pode fazer crer.
argumentativa, e, etn vez disso travam-se discussões no entorno A consequência foi que a importante pesquisa antiquária
da História e dentro dela em nome dos objetos individuais e das desse tempo e a escrita da História propriamente dita coexisti-
categorias. Por isso, também as definições e as classificações dos ram de forma impressionantemente paralela, e que a bibliografia
dicionários e das enciclopédias transportaram seus elementos cunha- metodológica, que visava a fazer a intermediação entre ambas, se
dos na Antiguidade e na Idade Média com muito po,1cas variantes desenvolveu em direção a uma categoria própria, metade retóri-
para dentro da Idade Moderna, ele forma que suas afirmações muitas ca, metade teoria e que se1n dúvida, influenciou o pensan1ento
1

vezes ficam inespecíficas e perdem espaço frente a outras fontes. histórico, influências que, no entanto, são difíceis de comprovar,
Na verdade, alguns pressupostos - apesar de todas as modifi- ao menos como determinantes, nas representações históricas que
cações no conceito, até o século XVIII - se mantêm relativamente deixaram marcas.
estáveis, 1nesmo que possam ser objeto de discussão, sob enfoques Aquilo que é novo e diferente em relação à Antiguidade - e
cada vez diferentes. Encontramos aí, em primeiro lugar, o caráte~ de que se adquire consciência cada vez maior - acontece menos
escrito e a autoridade que aparentemente daí decorre. Na tradição na desci-ição e no encadeamento causal de acontecimentos que
dos diferentes sentidos da escrita, o (jsensus historiwsu ou Hfitteralis" podem ser apresentados dentro ele um contexto visto sob variados
se refere a esse dado expresso ela tradição escrita, que está aberta ângulos entre indivíduos descritos com maior diferenciação, elo
a várias interpretações espiritualistas ou que pode ser cumprida que através de uma visão perspectivista elo passado, possibilitada
de forma figurativa por algo igualmente real, histórico. 154 Assim, pelo distanciamento cronológico e através de uma Antiguidade
muitas vezes, de forma tácita, até o século XVlll, se transfere auto- supostamente produzida na reconstrução ele um mundo fechado
ridade e suposição de correspondência interna dos escritos sagrados em si, com o qual se pode fazer uma comparação com o próprio
mundo. Ver essa Antiguidade em seu percurso te1nporal, con-
trapor seus exen1plos, suas experiências e instituições, colocá-
m HUMBOLDT, Wilhelm von. Über die Auígabc dcs Geschichtschreibers (1821). ln:
Ak,.u{milt Amga~e (vol, 4), ·1905, p, 41; cf, BENJAMIN, Walter. Litemurguchichte und los dentro ou contra o próprio tempo e, a partir daí, planejar sua
Literàturwimmc-hl:ít. Die l/1ua1itcltt Wtlf, 17/4/1931.
11 ' LUDAC, Henri de. E:dg(se 111ldlb1ale (t. 1). P.uJs, 1959, passim; AUERDACH, Erich. Figura.
ln: AUERBACH, Erich. Crnmm1e/1e A11fidt;a .:wr 1om,wiJd1rn Pl,ifolcgic. Berna, 1967, p. 55 e IH Cf. l\·tOMIGL!ANO, Am~ldo. Andent Hhtory rnd thc Antiquarian. ]oumal -0/ WMburg
segs. {edl!.l.dO pot Gmta.v Konrad). lurlffule, n. 13, 1950, p. 285 e segs.

86 87
própria configuração é a primeira coisa que caracteriza o pensa- ponto em que a pesquisa costuma localizar seu início, Petrarca e
mento histórico da Idade Moderna. o humanismo atribuíram sua visão ao próprio objeto: permitiram
que a continuidade se rompesse, ou então se sentiram incapazes
2. Dante e o humanismo de colocar o mundo posterior à Antiguidade como equivalente e
paralelo ao antigo - como Dante o fizera. Eles criaram, a partir
Dante, de quem \fico dirfa que "ele não cantava outra coisa do passado fütico, um ideal o mais distante possível do pensamen-
senão historias (che pure non ca11to a/Iro che istorie)", 156 representa um to antigo, o qual separaram de sua época de suposta renovação,
ponto alto não só da interpretação figural do transcurso geral da através de um período intermediário obscuro'", e, nesse sentido
História, na qual, a partir das circunstâncias de abalo contemporâneas, "partidário" e polêmico, talvez se tivesse falado pela primeira vez
se projeta um império cristão, que deve corresponder ao império de j(toda a História": "Quít est enim aliud omnis historia qumn Romana
romano do passado. Mas também representa uma presentificação lam?". 160 Algmnas pretensões universais, "ex omnibus terris ac seculis
nunca havida antes de indivíduos históricos e. de suas ações, os quais i//11stres viros in umm1 contralmuli ilia mihi so/i111do ded/t anim111n",'"
aparecem na ficção como julgados para toda a eternidade segundo constituíam muito mais um exagero retórico pois, como aqui 1
um sistema de valores tanto teológicos quanto políticos muito pes- em De viris i/111strib11s, se tratava de biografias isoladas retiradas da
soais, 1nas que continua1n perpetuando, fora do ten1po, justan1ente Bíblia ou da Antiguidade clássica, que a posteriori foram como que
sua paixão temporal sem arrependimento, sua nostalgia sem fim. A
enquadradas na Antiguidade romana. Aquilo que foi determinante
perspectiva de uma História que começa com o mundo é partilhada
para toda a Era Moderna e a consciência da modernidade foi o
por Dante com contemporâneos, como seu mestre Brunetto Latini,
fato de que Petrarca, ao abrir o espaço histórico interno, liberou
c,tja enciclopédia Li livres dou tresorpromete "k'ele traite dou come11ce111e11t
a possibiiidade de fuga de um presente mal-amado rumo ao pas-
du siecle, et de l'ancieneté des viel/es is/ores et de /'establissemenl dou 111011de et
sado, que se mantinha insolúvel, e confundia a nostalgia com a
de la nature de touttes coses em some";'" a interpretação figural não podia
sensação delicada ainda motivada pelo caráter cristão e moralmente
adquirir, nmna segunda vez, uma imagem convincente, a proposta
superior do próprio tempo. Fora abandonada a universalidade e a
de urn mundo visto historicamente a partir da consciência de uma
continuidade da História que se atribuía, de forma autoritativa e
responsabilidade política se manteve singular por muito tempo, e
incontornável, ao cronista medieval, ou se tornara incompreensível;
só no início do século XVI algo parcialmente comparável se tornou
as condições para uma visão política muito ampla tinham acabado,
possível, com base em fundamentos bern diferentes.
e em princípio ela ficou t.1o sem consequências quanto, no mesmo
Caso se encarasse o pensamento histórico pelo esquen1a de
século XIV, no âmbito do islamismo ocidental, a aplicação de con-
"desenvolvimento" - e não há dúvida de que Dante agrega e va-
ceitos sociológicos à História, como na surpreendente obra de lbn
loriza a formação do tempo que o antecedeu -, então se deveria
Khaldün. 162 Mas essa fragmentação teve um resultado duradouro
constatar a ruptura desse desenvolvimento 158 exatamente naquele
- ela fundou as ciências filológico-históricas.

is~ Ghmbattüta Vico. ln: NJCOLJNI, Fauno (Ed.). La1dw:t111U11Wd (17•14) (voL 2). Dad, 1928,
J, 1, 1, p. 6. 151
MOMMSEN, Theodor E. Pettarçh's çonçeption ofte "Datk Ages". Spuulum, n. 17, 1942, p.
m Brunmo Latini. Jn: CARMODY, F.J. (ed.}, LI 1/vm dou lre:sor. Defkeiey/Los Ang:des, 1948, 226 e segs.
1, l, 1, p. 17. 1i-) PETRARCA. Apologi:t. ln: Opera om11(fl. J3a1ilei:i, 1554, p. 1187.
1 161
~, Cf. AUERBACH, E. Litudwr1prac/1e rmd Publikm11 ln der l11tef111!('1tn Spiir1111tike imd im Millelflltu. PETRARCA. Famili1m. 7, 3. ln: ibid., p. 767.
J)erm, 1958, p. 242; BECKER, Mnvin B. D<mte and his Hteraryi:ontemtiornries ;s pôlitical ~
1
KHALDON, lbn. The M11qaddüua/i. Anintto<luctfon to History (3 vok). Londres, 1958 (vw.'io inglesa
men. Spuu/11111, n, 41, 1966, p. 665 e 5egs. dt:: Fr:inz Rosenthal); cf. Emycloprdlaojlil<lm (vai. 3). Londre>, 1965 (nova edição), p. 825 e seg,.

88 89
As restrições a aspectos individuais e a repres.entação anedótica A contradição já está visível em Valia. Como filólogo bri-
bem como a ligação tida como evidente da Historie com a retó- lhante, desenvolveu a capacidade de perceber relações históricas
rica modificam o caráter exemplar do fato histórico. Enquanto na tradição literária e a utilizá-las de forma erudita, e por mais que
o transcurso geral da História entre a criação e o juízo final não consiga ser convincente como historiador, tenta dar destaque
era considerado con10 tendo sentido, sein qualquer contestação, ao papel da historia. Afirmando que Moisés teria sido o primeiro
ações individuais maldosas podiam ser justificadas como parte historiador, com que a historia seria n1ais antiga que a Poesia, e
da economia do todo, bem como pelas ordens antagônicas nos não menos universal que esta (que muitas vezes apenas relata epi-
valores representados pelas duas "civitates" de Agostinho. Com a sódios individuais), superaria cm termos de sabedoria cidadã até a
dissolução da imagem histórica universal, não só figuras histó- Filosofia. 164 Mais aceitável é a precisão reabilitada e elogiada por
ricas individuais e seus atos constituíam exemplos para a funda- Poliziano sobre a exatidão dos estudos históricos: "Felix historiae
mentação de princípios éticos, mas qualquer fato podia, em tese, fides renatae1' 16 S, cmn esse conceito de ".fides historica'\ os humanis-
ser moralizado. E mesmo que a História política, que ocupava tas, de Valia até Budé, definem seu objetivo metodológico, Ela se
uni lugar de maior destaque, praticamente não fizesse uso dessa refere à pesquisa sobre a Antiguidade, que se reflete em coletâneas
situação, a Historie foi subordinada à filosofia moral, dentro do de miscelânea, traduções dos antigos historiadores, e - recebendo
ordenamento da ciência que estava em constituição nas escolas e em Budé, pela primeira vez, uma unidade - na reconstrução de
nas universidades, até o século XVIII, enxergando sua utilidade todo o sistema de moedas da Antiguidade: "11011 in 1111umgem!s iliam
no fornecimento de exemplos para a retórica - a qual deveria quidam editam aut disciplinarmn, aut artiwn: sed in universmn pertinen-
fundamentar decisões -, exemplos que, ao contrário da poesia, tem ad antiq11itatis intetpretationem, et per omne prope genus auctormn
apresentavam o status da facticidade. probiomm utraque língua patentem". 166 A Antiguidade clássica, em sua
Contra esse sentido do acontecimento individual de funcionar tradição escrita em duas línguas, colocada à disposição através da
como exemplo para um princípio geral, a distinção aristotélica en- coleta e da edição dos humanistas, aparece agora como objeto de
tre (simples) verdade histól'Íca e veracidade poética (filosófica)'" se conhecimento, com a pretensão de ser estudado como um todo.
tornou inaplicável, fazendo com que a longa disputa entre Poesia e Dessa forma, surge uma formação unitária, descolada da história.
Historie perdesse sua base conceituai. Mas a disputa sempre reaparece bíblica e da duvidosa história oriental bem como do período pos-
quando a poesia se apossa da representação do real, intrometendo- terior à Antiguidade, uma entidade que em si mesma, como um
se no campo da Historie ou, então, quando a Historie, do alto de todo, constituiu um plano de verificação. Não é mais a passagem
sua configuração, faz parecerem irrelevantes os produtos poéticos individual, como no texto sagrado, que possui validade autoritativa,
e, através da interpretação do acontecido, tenta chegar até o geral. mas apenas na medida em que coincide com o coipus da tradição.
Esse é um problema apenas aparente, mas que não pode ser solucio- Traçamos essa linha do conceito humanista de História até
nado por causa da intercambialidade dos conceitos e é apropriado o início do século XVI, quando ele deixou de ser incontestado e
para desencadear a discussão, dependendo se a Poesia ou a Historie quando começam a aparecer diversas concepções bastante diferentes.
conseguem expressar os mesmos interesses fundamentais, ou então
apenas tentam fazê-lo, quando as obras das duas categorias devem m VAU.A, Lorenz.o. Historia Perdinandi Regh Aragoniae (Prooemium). ln: Opera cm11/a (t, 2),
responder pelas pretensões da teoria. Paris, 1528 (reimprcssio em 1\uim, 1962), p. 6.
1~1 POLIZlANO, Angdo. Opna om11/a. Jhsilefo, lSS-3, p. 621; cf. Val4 pMl.1 Flavio Biondo (Opera cumr'a
(t. 2], p. 119); llUOÉ, Guillaume. De A$1e (1514}. In: Opm r:mmfrl {t. 2), Basileia, 1557, p. 66.
1
m ARISTOTELES, Poetik, 1451 b. ~ DUDÉ, De Asse (Praefatio). Jn: ibid, (t, 2), p. 1,

90 91
0 (CN(f,."T0 Df HISTÓ<!A
PENWl-fNT0 trnóo::o NO IH'Clô DA loA!r. Moow.v.

A construção apaixonada de um outro tempo, o qual se contrapu- da História de um tempo exemplar e ser transpostas para o presente,
nha ao próprio tempo, distingue o humanismo de outras épocas que um caminho leva do essencial da História para o necessário
de pensamento histórico e explica suas conquistas metodológicas, na política atual.
con10 a da consciência sobre distância temporal e sobre inter- A outra direção foi tomada por Guicciardini, partindo da
-relações, o sentido dificilmente determinável para anacronismos, decepção a respeito da possibilidade de uma política sensata para a
a diferenciação entre fontes originais e derivadas, o que explica, ao análise dos mecanismos causais e, além disso, para a representação
mesmo tempo, que sua própria produtividade não podia consistir objetiva da não explicável instabilitil 167 das coisas humanas. O abalo
cm grandes representações históricas, mas que, através da tentativa dos pequenos estados italianos e a invasão de forças externas, fatos
de identificação e de intermediação nas biografias retóricas e nas que não podiam ser fundamentados pela ficção de um império,
histórias de cidades dos humanistas-cidadãos, se colocava numa o levaram a descrever, de forma detalhada, a ação política que se
relação com a Antiguidade. estende para além dos limites do Estado e, sem tomar partido,
numa unidade geográfica bem maior. Algo comparável não se
3. O século XVI pode imaginar para a Alemanha até o século XVIII. Tanto quan-
to Maquiavel, ele tambérn não dá ao conceito de "História" tuna
a) Maquiavel e Guicciardini. Dois pontos altos de pen- definição determinante; dedicado exclusivamente às coisas (cose),
samento histórico surgern, a partir de uma consciência política, além do título, ele praticamente não o utiliza.
pela primeira vez, novamente comparável a Dante, consciência b) A concepção de História na Alemanha da Reforma.
que representa a frustração de esperanças políticas - mas mais Enquanto, sin1ultanean1ente, Con1mines escreve a primeira obra
sóbrio e secularizado contra toda e qualquer transcendência -, 11
"n1oderna de memórias, que são expressão de vivência pr6pria
após o final da república florentina, a partir de condições criadas - por 1nais H1nedievaisu que nos pareçam hoje suas categorias his-
pelo humanismo. E isso se dá através de um conhecimento que se tóricas e os critérios morais de julgamento -, e enquanto Sabélico
desenvolve em duas direções opostas. Maquiavel ainda argumenta pode redigir uma História universal secularizada de qualquer ordem
totalmente dentro do estilo dos humanistas, recorrendo ao conceito ou objetivo histórico-salvíficos, resultante de uma incumbência
de imitação dos exempla retirados das obras históricas (Istorie) dos oficial de Veneza, a situação é totalmente diferente na Alemanha,
antigos, e isso possibilitava a igualdade das características essenciais ainda que todos esses escritos sejam lidos e até traduzidos ali, no
da natureza humana e dos demais pressupostos do agir. Mesmo século XVI.
assim, ele tem consciência das profundas transformações - cmno na Também na Alemanha, o interesse histórico fora despertado,
técnica militar, por exemplo -, no decorrer de poucas gerações, e e se n1anifestara em crônicas populares e em ambiciosas tentativas
demonstra seu senso histórico justamente na construção de formas de escrever uma História nacional (Renano, Wimpheling). Obra
de transcurso típicas nos acontecimentos históricos, funcionais em representativa foi a Chronica de Carion, escrita sob influência de
relação a determinadas situações iniciais e as influências corretivas. Melanchton, o qual mais tarde a revisou, transformando-a em um
E, com isso, ele apresenta sugestões de ação a partir dessa análise, manual didático utilizado por longo período, ordenando o conhe-
que lhe permite comparar, ao menos em parte, a situação antiga cimento daquele tempo em três eras e quatro monarquias, tentando,
com a contemporânea. Mas o sucesso dessas ações, por sua vez, através desse matetial 1 evidenciar uma História da Igreja, ou até - na
depende ele determinadas condições também históricas. Aqui, no
entanto, se pressupõe que experiências podem ser obtidas a partir 11
~ frnnce1co Guiccindini. [n: PANIGADA, Cost;1.ntino (ed.). Sto1i<1 d'ltalla (\'oi. 1). Bari, 1929, p. 1.

92 93
versão de Melanchton- a justificativa para as opiniões expressas na da Reforma é vinculada aos fatos históricos da História da salvação,
doutrina protestante. Na comparação com Otão de Freising, não o que motivou a crítica dos uentusiastas": uos luteranos possuem
se constata nenhum avanço na consciência da problemática histó- tm1 Cristo histórico / q1-1em secimdum literam cognoscunt, que eles
rica, e, em contraposição à coetânea historiografia italiana, chama reconhecem pela letra, / pelas suas histórias, / pela doutrina, /
a atenção o fato de que os autores ficam cada vez mais inseguros e pelos milagres e pelos atos, / não como ele hoje está vivo e age.
menos concretos à medida que se aproxima1n do próprio tempo. / Assim como eles também tem uma fé racional histórica e uma
Mesmo que ela forneça em casos concretos exeinplos 1norais, para justificação histórica". 172 Consequências profundas foram trazidas
Melanchton, a abrangência temporal universal se destina à c.om- pela atualização da doutrina de Agostinho sobre os dois reinos,
preeusão das profecias bíblicas: "Ut libri prophelici 111elit1s intelligantllr, cuja parte atemporal, mas sempre presente, a civitas Dei, pode se
omníum temporwn historia complectenda es('. 168 Profecia, fim do mundo 1nostrar naquilo que é historicamente cambiante, a civitas terrena.
e expectativa de um encurtamento ou de uma aceleração dos últimos Mas, com isso, surgiu a tentação de - diante de crimes, loucuras e
tempos, que ocorrerão em benefício da salvação (segundo Mateus, sofrimentos, que só podem adquirir sentido quando interpretados
cap. 24), servem como pontos de vista unificadores também da con10 inversão dos valores terrenos - justificar acontecin1entos
concepção de História em Lutero. Ela pode ser atualizada através individuais relacionando-os com a própria posição de poder ou de
de uma consciência viva das mudanças temporais e da unicidade de posição partidária. Além disso, procurou-se fixar historicamente
um momento histórico. "A palavra de Deus e sua graça constituem rnna era exemplar que serviria de parâ.tnetro para uma rei10vação e,
aguaceiro que se desloca, e não volta mais para o lugar onde já es- como os humanistas fizeram com a Antiguidade, aqui se projetou
teve ... E vocês, alemães, não deve111 pensar que a terão para sempre, uma igreja primitiva ainda não corrompida, dos primeiros séculos
pois a ingratidão e o desprezo não permitirão que pertnaneça".16? da cristandade, e aquilo que condicionava sua situação de então, em
A esse modelo da "translatio" só é relacionada a fé e, na melhor das consequência de opressão externa e falta de pode_r, foi transformado
hipóteses, o destino da igreja, mas o transcurso do mundo de forma em norma, e toda mudança foi condenada, segundo critérios morais,
alguma é passível de qualquer interpretação racional, pois revelaria como culpa individual. Mais problemática ainda foi a muitas vezes
11
a surpreendente ação de Deus: que provaveln1ente se possa dizer tentada, mas nunca esclarecida equalização dos dois reinos com o
que o andar do mundo e sua maravilhosa realidade são uma máscara mundo interior e exterior, quando a tendência luterana de subordinar
de Deus, atrás da qual ele se esconde, para reinar e rumorejar de o mundo exterior às autoridades - sem qualquer questionamento
forma maravilhosa no mundo"."º Neste mundo, também atuam leis - fortalecia a tendência de, no caso de erros ou de expectativas
próprias, que já foram adequadamente formuladas pelos filósofos frustradas, se refugiar na pureza da consciência e dos sentimentos e
pagãos, e nele os crentes aparecem "como se não existisse nenhun1 relegar o mundo histórico-político à irresponsabilidade.
deus, obrigados a se salvar e a se govemar a si próprios". 171 A doutrina Isso significou, sobretudo para a Alemanha, que, até meados
do século XVlll, a História eclesiástica garantisse a supremacia. Isso
vale para a obra dos Centuriatores de Magdeburgo (1559-1574),
10
MELANCHTON. Chronicon C.:irionis, Tn: Corpus Rtformaror1im (vol. 12), 1844, p. 714.
ut LUTHER. An dlc Ratherccn aller St:idte deut.scheJ Lmds, d1m de chr4tliche Schulcn
aufrkhten und hahen sollen {1524). ln: Wtimare, Amgab~ (vol. 15), 1899, p. 32,
,to LUTHER. Der 127. P$;1lm ausgelegt an die Christen zu Riga in Lieffaitd (1524). ln: ibid., 1>a SCH\VENCKFELD'f. c~~p;)r. Der 93. Sendbrief (ISSO). Rpis/()/1,1 (vol. 1). S. !., 1566, p. $12.
p. 373. "Das 11M11 u..,/ mag 1ag(11, de, wel/t la11ff1 und sonde1ffd1 seymr lieylíg~n wucn ur Cofies "Dit L11tluriulu11 liabe,1 tíut11 Jtiuon'1drm Chrf11tuu / q11e111 sewmfttn1 lltero1111 tcgn('S(m1I, den ste JM<h dt111
urnmmuq, danmtu tt s/(}1 r,,ublrgt uttd y1111 der wdh so w,111dulich r1·gi,1 rrnd ,lmmott''. Bmhstabm ulmwrn / 11am sd1w:gud,id1tw / fthre / mfmdiefu 1md 1h~lle11 / ,;fd11 wle u /mu ltbt11rllg út
111
lbíd. "ais wut kty11 Colt da und mrliftn sfdi Je/bs eueflm 1md ulbs ugir-m", w1d wú,kt I Wie Jie ,;rn(/1 dum /iisf~risd1w 1•wni1ifft Gfaul-m / 111111d lr/$1(.ln'si/it )111/!fiMiou Jwbm",

94 95
realizada através de uma notável organização de trabalho coletivo, se desencadeou depois da morte de Henrique II em 1559, em torno
demonstrando interesse amplo, polêmico e mediante utilização dos direitos dos estados gerais, da nobreza e da regente fez com
sistemática de fontes, e para seu contraponto católico, até a história que saísse em busca de argumentos e de princípios historicamente
eclesiástica de Mosheim, na qual o aspecto confessional foi ameni- fundamentados. Eles estavam documentados na rica bibliografia
zado, e ct\ja tradução alemã se transformou no mais difundido livro panfletária huguenote 174 e numa sequência densa de obras históricas
de História de seu tempo. Mas isso também determinou o papel e teóricas. Nesse contexto, o ponto de partida jurídico-romano
autônmno do mundo espiritual duplo um e das "negociaçõesº em
11
J pôde levar a uma muito incisiva recusa das Pandectas'" - co1no no
torno dele, que não parecia ser passível de integraçiío numa Histó- Anti-Tríbonían, de Hotman -, e motivar, alén1 da reconstrução do
ria geral, e a importância das "Histórias de hereges", nas quais foi Direito dos mais antigos sobretudo do período republicano, o estudo
construída uma contratradição dos oficialmente oprimidos, com da própria tradição jurídica e de suas instituições. As concepções
destaque para Sebastian Franck e Gottfried Arnold. Também as universais e a abordagetn 11 c01nparatista" no estudo do Direito e da
versões apocalípticas e as tentativas de fixar os últimos dias para sociedade não puderam evitar que na prática as histórias nacionais
mn futuro próximo ainda tiveran1 representantes destacados etn fossem incluídas. A concepção ampla de História, porém, apresen-
Johann Albrecht Bengel e Heinrich Jung-Stilling. tava vantagens que muitas vezes faltaram aos escritos posteriores,
Mesmo para a mma/istíca do império e para a escrita da His- restritos ao âmbito nacional ou que só se enquadravam de forma
tória política - quando não a confessional, ao menos a dinástica extensiva na moldura universal.
-, teve efeito negativo o fato de que Melanchton tinha tornado Contenten10-nos com uma referência a duas obras que mo-
obrigatório, nos programas de estudo das universidades protestantes; dificaram o conceito de Hist6ria. A partir de estudos histórico-
o "mos italicus" da interpretação dogmática do Direito Romano. jurídicos e a partir de experiências em pol\tica e em diplomacia
Dessa forma, a doutrina jurídica histórica, fundada por Budé, e confessional, François Baudouin elaborou um plano para uma
que se desenvolveia sobretudo na França, pela metade do século História abrangente, historia universa, como conhecimento de todo
XVI, isto é, o "mos ga/licus", que fomentava de forma decisiva a o mundo, naquilo que diz respeito a espaço, tempo e assuntos rela-
pesquisa e o pensamento históricos, não conseguiu se difundir na tivos aos seres humanos, "me agere de historia íntegra" 115 , a qual seria
Alemanha, e suas principais obras só foram levadas novamente em vinculada à ciência do Direito - que forneceria os critérios para
conta e reeditadas uns 150 anos depois de seu surgimento; o mesmo o agir correto -, co1n vistas a uma prática verdadeira. E - numa
aconteceu com Maquiavel e Bodin, no Direito Público, quando referência àquilo que Maquiavel teria tentado com Lívio - acenou
se abstrai de algumas exceções, como Conring, que os introduziu com a perspectiva de que, a partir de uma abordagem comparativa
antes disso, no ensino acadêmico. da História, se pudesse obter dividendos para a política. De forma
c) Interpretação histórica do direito e teoria da História.
A interpretação histórica do direito romano apresentava um co ..
m CAPRARHS, Vittorio de. Propag,111d11, ptm!eriJ polili(o i,1 ffauâa durr1nte !e guwe di religicme
nheci1nento preciso e tinha produzido um instrumentário muito {vol. 1: 1$59-1572). N~po!es, 1959, pimi111 {foi public.ado :ipenas um volume].
desenvolvido para a pesquisa - parecido com o Humanismo floren- "Obra esboç3cl:i por inctunbêucia do imperador (romano} Justiniano {em 533 d. C.J,_f. .. ]
as P;rndect:a devufam ser um guia pna :i. ciênda jurídica", $eus 50 livros "enfocam, em
tino-, que, em momentos de crise, possibilitava ampla discussão prindplo, todas ;H área~ do direito, m;u o dirdto privado <onsdtui a parte íundamrnt:i:1".
histórico-política. A agudização das disputas religiosas e a luta que HEIKELMANN, Horn Otto. P:i.nclectas, {n: PRANÇA, Rubens Limomgl (Coord.),
E11âtli1pldia SMaiva dt Dirdt() (vol. 56). S~o P-aulo: Sau.iva, 1977, p. 523 {N. T.J.
ru IlAUDOUIN, François. Oc instilutfone lilU,JJfot 1111frm1u ti eius rnm lml1pmdc111/a cc11iimaiom:.
11 ) FRANCK, Scbastfan. Chu111iN, Zd1bud11111d Gmhiditbibt/1. S, l., 1S.36, 3' pme, p. (1~. Paris, 1561, p. 22.

96 97
0 CON(UTO DE Hmó.st4,

grandiosa, se esquernatizou aqui o estudo daquilo que é e daquilo coletânea/ 76 o que rnostr-a o interesse crescente para essa disciplina,
que deveria ser na consciência do todo, conciliando História an- na qual atuam poetas 1 retóricos, teólogos,jur.istas e filósofos, e cujo
tiga e bíblica, sagrada e profana, abrindo uma perspectiva para a desenvolvimento, no século XVI, permite visualizar uma clara ten-
pesquisa sobre a "bárbara" Idade Média, na qual estão enraizadas dência que vai das instruções para a escrita e a tradicional louvação
as instituições modernas, incluindo tradições orais, Ocidente e da "1,/s/oria" para sua fundamentação científica e a epistemologia
Novo Mundo, e separando a História humana daquela da natu- orientada para a ação. A dificuldade de estabelecer a influência da
reza, sob o ponto de vista 1nais elevado do agir, o qual deveria ser Retórica está no fato de que a Historie, em ambas as etapas, sem
avaliado a partir de sua legalidade. Esse esboço da História - que dúvida, é retórica, só que uma vez como matéria não obrigatória
não é menos un1odernon que Vico e que faz o leitor posterior se dentro de um exercício convencional, depois como motivação res-
lembrar, surpreendentemente, de Hegel e de Droysen - não é obra ponsável para as decisões mais importantes en1 assuntos do Estado,
de um precursor. Ele formulou da forma mais incisiva possível e ou para ensinar a entender sua situação ameaçadora.
numa perspectiva mais ampla aquilo que, ao pensamento histórico- Quase simultaneamente a Baudouin, Francesco Patrizi tentou
político responsável de seu tempo, parecia a tarefa mais premente examinar o objeto, pela primeira vez, em dez diálogos, a partir da
da ciência. Antes da Noite de São Bartolomeu (1572), aquilo que pergunta sobre que seria História: "cite cosa, o quale sai l'hístoriaº. 179
é representativo para a França não é a decepção de Guicciardini, Os tratados tinham identificado - e continuavam a fazê-lo -
mas a esperança desesperada de Maguiavel por uma configuração História com escrita da História, e1n vez de fazer interpretações
racional da política, com base num conhecimento histórico e ge- conceituais, haviam recorrido às ciências auxiliares> como cro-
ográfico muito amplo."' nologia, geografia e genealogia. Patrizi foi filósofo, plat6nico
A chave para a utilização desses novos conhecimentos foi decidido, influente na preparação da nova física, realizou uma
fornecida por Jean Bodin, com seu Methodus, alguns anos mais "virada copernicana" das coisas en1 direção à consciência, e de-
tarde, 177 no qual não fornecia instruções nem esquemas para uma finiu "Histórian como º1nemória das coisas humanas": ' 1 la historia
síntese histórica, e també1n não uma teoria da História, 1nas um "º
J memoria dei/e cose lmmanae". Isso exige uma determinação do
método muito aguçado - na comparação com anteriores - para tempo, e desse fato decorre que - como do aparecimento antigo·
a análise de desenvolvimentos históricos e para a comparação do de esquemas cíclicos de transcurso da História - ela não pode ser
Direito Público e das instituições. Deve ser difícil encontrar em restrita às coisas passadas e presentes, mas abrange a antecipação
Montesquieu elementos metodológicos que Bodin não tivesse memorizada daquilo que ainda é futuro. 181 Se o conhecimento
discutido, em alto nível, seja no Methodus seja nos Six livres de la histórico é isso, então a História se concretiza apenas na transposição
republique, nos quais constrói sua estrutura doutrinária da política, para ações históricas, cujo objetivo é ser e permanecer, e (na media-
a partir da História. ção do conhecimento específico com o geral) felicidade humana.
A obra de Baudonius - da mesma forma gue o lvfethodus de
Bodin - teve nova edição, junto com dois antigos e uma dúzia de 11ª WOLff, Johann (Ed.). Artls lilmllcc1t pe11111, 2. Au!l., Basileia, 15-79. A respeito, e(.
tratados contemporâneos sobre a metodologia da Historie, em uma REYNOLDS, Beatrico. Shifüog çunent$ in hhtodcal ctiticism.Jom,u;/ of Hfstc,yof {1foH,
n. 14, 1953, p. 471 e segs.
iit PATRIZT, France;co, Dei/a lililón'lf dicâ díalioghi. Veneza, 1560. Rehnpre;so em KESSLER,
11
s Ct ATK!NSON, GeoJfroy, Lti 11ou11t<111x ho1l.tli!IS dt lll mmiua11cef,a11f<1ise, Paris, \935,prmim; Eckhard. Thcorttik~r lrnm,w/s1/uher Gmliid11rn:luâbw1g. Munique, 1971, p. 1".
MOREAV-REIBEL, Jun.jw1 &dh1 ti !e. dr<JU publk ,omptnl. P.1:tis, 193~. p,mim. m Ibld., p. 18".
'"BOOIN,Je.rn. Mtthodw adfa.dfrm hiflo1iaru111 cog111lio1um. Paris, 1566, p,mi,n. 111 Ibfd., p. 15 e segs,, 41 e s.~gs.

98 99
0 CON(fifô Df HstóWI.

Os critérios de verdade foram discutidos no sentido do pirro- simultaneamente, adquirindo atualidade até o século XVIII, e
nismo, que estava surgindo e que havia sido antecipado por Agripa mais além.'" A ampla abertura, o estreitamento perspectivista e a
de Nettesheim, num ceticismo radica), uma geração antes. 182 Aqui liberdade em jogar com o mundo histórico podem ser encontrados
eles são agrupados em torno da questão pública, menos pela au- em Shakespeare, ainda que, na sua Antiguidade, o Heitor troiano
sência de uma crítica metódica das fontes do que a partir de uma seja autorizado a citar Aristóteles, para consternação dos eruditos."'
experiência com uma política que, ao final do século XVI, cada
vez mais se distanciava de uma discussão e de uma justificação 4. O desafio da nova ciência
pública. Desejar a verdade não basta ali onde as causas do agir
permanecem encobertas como "arcanau - a não ser que o pr6prío a) Problematização da Historie. A mudança decisiva da imagem
príncipe escrevesse História. sobre o mundo físico e a consequente mudança dos conceitos de ma-
A teoria da História atingiu nesses anos um nível que ela não téria, movimento, tempo, infinito, c,tja consolidação foi avançando
pôde sustentar, apesar de algumas outras diferenciações. Também até meados do século XVlll, as tentativas de uma temporalização
chama a atenção o fato de que não há registros de representações e dinamização generalizadas das visões sobre o mundo trouxeram
históricas desse padrão ou de obras comparáveis às dos grandes muito mais desafios do que in1pulsos de desenvolvimento para o
florentinos. Uma espiada no século XVI - por mais superficial que conceito de História nessa época. Na comparação com Baudouin,
seja- mostra que o conceito de História se constitui de maneira sufi- Bodin e Patrizi, os teóricos da História, bem como os historiadores
cientemente ºexpressivd' para não sucumbir a definições unilaterais, e as enciclopédias lidam com um conceito reduzido de História,
que, como fantasmas, perpassavam a bibliografia cientifica. Assim limitado à narração ou à descrição de fatos. Essa conotação de uso
como Montaigne procurava algo geral no ineditismo da experiência: restrito à exatidão fáctica, sem argumentação, se mantém até hoje
"l'lto111111e e11 general, de q11i je cherd,e la cognoisssance", '" La Popeli.nie- na língua francesa cmn "liístoire", "hístorienn e os contraconceitos
re, após uma crítica de toda a História escrita até então, procurou negativos de 11 fabet1, "romanº. Típica para a polêmica desqualificação
esquematizar uma História geral perfeita, abrangendo de maneira da II historia" frente à "ciência,, produtiva é a posição de Descartes:
integral a sociedade e seus _costumes: "l'Hisloire sera Ge11erale, qumid "Per Historiam i11telligo i//ud onme quod jam inven/11111 e.,t, a/que in libris
l'autheur /11y aura donné la s11bsta11ce entiere et acocomplie des Etats".1" E, continetur. Per Scíentíam vera, peritiam quaesliones omnes resolvendí, atque
mesmo que ao final do século se alastrassem um pessimismo estoico adeo inveniendi propria induslfia i/lt1d omne qtwd ah humano ingenio ln ea
e um clima de decadência, pelos motivos indicados, as concepções scientia potest frwemíre; quam qui lwbet, non sane mrdtum aliena desideral,
co1nplementares 1nuito mais que as contraditórias, de progresso e
1
atq11e adeo valde proprie o.vnápk17r; appelatm".' 87 É verdade que Des-
de plenitude da natureza, por um lado, e de transcurso cíclico, de cartes blefa s.obre quanto ele próprio deve à tradição filosófica, mas
monotonia e de decadência, por outro lado, podem ser constatadas seu conceito de ºscientfon levará ainda Vico a escrever utna "Scienza
t!J.lO(Ja'', em vez de uma teoria da História, e ela caracteriza a situação
da Historie depois da ruptura metodológica necessária, ainda que não
m NETTESHE{M, Heinrkh Cornelios Agrippa von. De ince11itudine et vmhate sdentiarum
atque artium, declimatio (1530). ln: Optmonmia (t. 2). Lyon, $. d. (reimpresm emHilded1eim,
1970, p. 22 e $Cgs.). 11~ Cf. WE{SJNGER, Herbett. {deas ofl-fütory dudi\gthe Renaimn(e.Journa/ oflhe Histo1y<f
Ul Momaigne, ln: TH!BAUDET, Albert; R_AT, Maurke {ECU.}. fütais (1580). PJris, 1962, 2, ldw, n. 6, 1945, p. 415 e seg$.
10, p, 396. l¾ SHAKESPEARE, 'frC1i1111 ond Crmido, 2, 2, 166.
it, POPEUNIERE, Henri l-anci!lot-Voisin de h, L'idfa: <le l'histoire accomplie. 111: L'MsMrt, M Dt:scarte~ a HC>@;elande, em 8 de feverelrõ de 1640. In: ADAM, Chades; TANNERY, P;1ul
.Paris, l599, p. 85. (Eds.). Omvru (volume suplemenur), -Paris, 191:!>, p, 2 e 1eg:.

100 101
: O CONC.ri:6 t'É Hl">rOOA·. · ;

e" totalmente convincente, com a autoridade da tradição. ordens religiosas, por causa de seus milagres, suas lendas sobre
•.' "New p/,ilosophy cal/s all ín doubt",1" e ela não se detém diante da dig- santos e seus documentos falsificados, c,tja comprovação antes
nidade da História, que apenas serve c01no material para utilização fora fundamentada pela filologia cientifica, mas agora reforçava
científica e, no mais, cotno "depósito". 0 ceticismo generalizado. Os jesuítas afastara1n a História quase
Esse foi o período de mais ampla pesquisa histórica,'" mas seu por completo dos planos de ensino obrigatórios de seus colégios,
resultado não foi aquilo que mais tarde se chamaria de c'História" em toda a Europa. E as Hist6rias universais protestantes não
mas utna coleção tendencialmente sistemática e completa de Han~ conseguiram atingir maior prestígio, nein se igualar às de Carion
tiguidades estatais e ptivadas", de restos e de fontes, ajeitados com e Melanchton, que já erarn um tanto anacrônicas.
exatidão, sob o ponto de vista antiquário e filológico. Tentou-se A História era - como na imagem emblemática - uma coluna
preencher todas as seções da extensiva u historía universalis", enquan- partida, c01no na tragédia barroca, onde, em vez do mito antigo,
to junto com a coisa também se perdeu por completo a intensiva agora fornecia a matéria (uma ruína, um cenário) para a meditação
((historia uníversa" ou "integra" do nosso saber. Mes1no tendo se sobre a decadência inevitável, que, em cada mn de seus exemplos, per-
tornado metodologicamente dependente, a ampla bibliografia sobre mitia uma avaliação moral, capaz de uma transfiguração recíproca.'"
verificação histórica e credibilidade ficou a reboque da tentativa Não tratar da História como ciência no novo sentido leva-
jmídica de estabelecer a verdade, sem chegar a princípios próprios ria forçosamente a uma província insegura dentro da república
de um conhecimento histórico. dos eruditos. A ausência de um caráter público na ação política
A historiografia não melhorou essa impressão. A história an- a empurrou, mais do que até então, na direção do serviço aos
tiga, que até o final do século XVII foi comentada, mas não re- príncipes ou para espaços privados, onde a 11 historia literária", a
presentada, além da doutrina sobre as instituições elaboradas nas coleção de conhecimentos eruditos, se tornou a disciplina mais
Histórias nacionais mais antigas, haviam, entrementes) perdido benquista. A relação com a História sacra, que metodologicamente
seu interesse mais substancial, pois aqueles que se dedicavam ao era difícil de ser explicada ou só podia ser explicada mediante
Direito Público e os teóricos da política faziam suas construções algum risco, foi tão problemática para os historiadores quanto
na perspectiva jusnaturalista, em vez de derivá-lo historicamente. a "moral provisória.11 de Descartes designa uni fim temporário
Uma história mais recente das guerras religiosas encontrava-se em da retórica, da qual s6 restou a declamação. Aqui o Disco1111 sur
obras que se contradiziam entre si e eram 1nutua1nente excludentes l'histoire imiverselle, de Bossuet, se transforma numa representação
cujas fontes em geral não eram publicamente acessíveis e cujo fervo; grotesca, quando ele, num brilhante sermão, ocupa um espaço
confessional parecia torná-las inócuas, enquanto o brilho literário que a pesquisa contemporânea não conseguiu preencher, fazendo-
se localizava nas memórias de Retz e até do duque Saint-Simon. o sem conhecin1ento e sem juízo histórico, recorrendo a uma
A Idade Média, "medíum aevum" - como, desde Justo Lipsio, se teleologia primitiva para transformar a Antiguidade num veículo
chamava o período cristão a partir de Augusto, 190 - não se livrava para Histórias bíblicas.
mais do escárnio, nem mesmo entre os homens 1nais cultos das b) Tentativas de fundamentação e quantificação do tem-
po. As tentativas de fundamentar cientifica1nente a História con-
it.o DONNE,John, An anatom..ic of1he wotlde, Fim Anrllvers:iry (1611), ln: DONNE,John,
tribuíram para a redução de seu próprio conceito. Dessa forma,
Awm wilh elcgits M tire ,wtf101's dearli. 1ondre~, 1633, p. 241 [editado por John MarriotJ, Keckermann quer conquistar para a Historie aquilo que Bodin
u, MOM!GLIANO, Time in Andent Hhtory (e(. nota 155).
tl-) \VEGELE, Fr~nz. Xaver v. GwMchte de, Jwrsdmi Him.iriogMphit. Munique, J885, p. 482 e
scg>.; VOSS,Jurgen. Da:; Mit1tl~ltuf111 him,1iul1m Dt11.~tn Fnmkreidis. Mttníqu~. 1912,p,mim, 111 Cf. BENJAMIN, W~lter. Unprimg du drntschrn Tnmwpiels. Fr~nkfurt, 1963, JJ. 197 e segs,

102 103
o Cct..'Cmo o; Hsro;;v.. P(N$A.ViNTO lfSTÓH:o NO O'Í-C!O DA IOAO. f.l.oomv..

não teria conseguido fazer no 111ethodu, - um tratamento meto- rodit veteribus mumdít1mii íncognítum, tamquam prC,1Clenfe
,r. . mun do"'",
dológico, e isso significa para ele um tratamento lógico.'~' Numa pMas a perspectiva temporal dupla de uma A nt1gm . 'd ade que " respec t11
filiação rigorosamente binária, a Historie é apresentada em todas nostri (mtiqua et major, respectu numdi ipsius notJ(l et minorfuit 11198 só foi
as suas partes tradicionais. Ela é definida como "explícatio et notitia mostrada por Bacon, o qual ~ também quanto à ampliação da His-
remm singu!arum} sive individ11orwn" 193, n1as deve pe~anecer como torie para aquilo que ainda precisa ser descoberto e feito - concebe
conhecimento imperfeito, "11otitia impe,fecla", porque os fatos são
0 futuro de forma mais concreta do que em antecipações proféticas
numericamente infinitos e indefinidos quanto ao gênero, "vagae et e prognósticas dentro de um conceito de "hi::ori~ experime11talis". 199
194
indefínitae. Através de indução lógica pode-se obter ou confir- Uma concepção semelhante de expenenc1as de um tempo
mar sentenças gerais) sobretudo na Ética, mas na economia e na que vai se adicionando e de uma ''generatio aequivoca" também está
política elas possuem um caráter particular. 195 Essa determinação na raiz da moderna tomada de partido na "q11ere1/e des anâe,u et des
conceituai permite reconhecer algumas das principafa tendências modernes". Mas, além do fato de ser, desde Richelieu, doutrina ofi"
que caracterizam inclusive períodos posteriores.
ciosa, o comprometimento dos dois lados com o paradigma estétic,o
De forma genérica, a busca de uma verdade filosófica foi trouxe dificuldades consideráveis. Pois se o louvor do presente as
rebaixada, no conhecimento histórico, para uma correção parcial
custas do passado era questão de gosto, enquanto o Classicismo
dos fatos, e sua aplicação passou da mudança política para o conhe- francês produziu grandes obras, ele se tomou pouco digno de fé
cimento privado. Com isso, a Historie no início só faz uso muito
desde O começo do século XVIII, tendo em vista seu pr6prio pas-
limitado do espaço criado através da despolitização, dentro do
sado. Isso teve corno consequência a exclusão das artes mecânicas
qual a nova ciência se desdobra, e só ela vai desenvolver conceitos
e das ciências do sistema de "artes'',2°0 sua agregação às ciências da
e métodos c,tja validade e cujo alcance - que vai muito além dela
natureza e à matemática, que estavam progredindo, enquanto as
própria - permite se servir deles. Assim, a redução a fatos isolados
"belas artes" foram localizadas numa atemporalidade, que acelerou
permite sua quantificação e sumarização dentro de um tempo
sua historicização, 1nas entravou a análise histórico-filosófica.
de vivência, con1 que Bacon consegue derrubar a inquestionada
c) O conceito de verdade. Ao mesmo tempo, havia muda~o
autoridade da Antiguidade, definindo-a como juventude e início
0 uso das palavras "verdade" e Hverossimilhança". Se, na trad1çao ·
de um transcurso de tempo que vem se sucedendo desde então, o
aristotélica, a verdade da situação (historicamente) individual se
qual só lentamente vai desvendando a verdade. 196 É certo que toda
contrapunha à verossimilhança da situação (?o~ticament~) ~era!,
a Renascença e, e1n especial, Vives, conhece uma clara consciênda
essa relação se modificou agora. A verossimilhança h1stor1ca,
crescente, na comparação com a Antiguidade: "q11olidie enim aliquid
discutida de forma lógica ou jurldica, se confrontava com os
limites indicados por Keckermann, os quais Tomásio modifi-
m KECKERMANN, Dntho!om::ius. Dt llrl/Jlr,i €1 pro>prlettilibm lifrtoriae (ommtnlílriu;. Hannover,
cou uin pouco: ''De coisas ausentes nunca podernos apreender
1~10, p, 5.
1
~~ Ibid., p. 8.
1 1
~ lbid., p. 23 e segs. 1n VIVES, Jur1.11 Luis. De prima phi!osophia (liber !). In: Opm oumla {t. 3). Valencia, 1782;
·
u,mpressoem L011 dre.s, 1964• p. 214·d.BARON
, . , Hans.Thenuerelleofancíentsandmodern$.
,
m Jhid,. p. ·19, 13.
1
J,n1111al (1/ 1/u Histo,y of ldtas, n, 20, 1959, p. 13 e seg.
'~ DACON, francis, Novum organon I, Aph0tísmus 84. ln: Wo,ks (\'OI. 1} (1858), p. 190 e seg.; m DACON. Novum orgmon. ln: Wo,ks (vol. 1), p. 190.
cf. LEYDEN, \Viltfam v. Antiqoity and 3uthority.J,.mt1111I cf 1/:e HiW!ry of Ideiu, 11, 19 1958, m BACON. Paras,;.eve 3 d hhtoriam natura.lem etexpedmentalem {1620), 111: íbid., p. 391 e segs.
1
p. <173 e scg:1.; SAXL, Fritz. Veritas ftlb. temporls. ln: PATON, H. J.; SAXL, Fdtz. (eds.). 10 KRISTELL.ER, Paul óskar. The modem system of1he ;1.m, ln: KRISTELLER, Paul Osbr.
PhilC>sophy ,111d Hi,tory. fasays prescnted to fün>t ümirer. 0:-:fotd, 1936, p, 197 e segs. Retwirnmce thought (vol. 2). New York, 1965, p. 163 e segs.

104 105
11· i; Q (ON(Eno OI: H1>1Ói'1A

f~:- ". ,.:)\~é!-~í_t_i~b-;:-./irria·s_\ud~ j


~r'
> }t1h1~\;1~ci}d6'Údo~tesiá;el por meio de um conhecimento claro
que aprovamos / é ou apenas verossímil ou
finalmente num desaparecimento da credibilidade de fatos histó-
ricos e também da revelação cristã, numa proporção ao quadrado
~~if-_;-;"i:~:\\,'/ .\'.~~t-~·o-:tnuit(,- obscuro e confusoH; 2º1 e ele acrescenta: "aquilo que do teinpo, 207 a qual somente Hume conseguiu refutar, de forn1a

;ii,irt
r,:-.
:~;:•i~":'.Fi'.:r.::~~E~~~;::,~::
E, por isso, na avaliação das coisas verossímeis, tanto aquilo que
convincente. 208
d) A caminho do moderno conceito de História. Como
na revolução do século XVII no campo da Física, foi necessá-
rio recorrer ao infinito e a mn rnodelo que não era acessível à
j} passou quanto aquilo que vem no futuro deve estar orientado experiência, 209 a fim de abrir o caminho para o conceito moder-
por aquilo que é presente 202 Conhecimento histórico, portanto,
11

no de História. Partindo do pressuposto de que o homem "n'est
até não atinge a simples verdade de uma certeza fática, a qual até prod11it que pour l'infinité", e que sua memótia permite a cada um
então aparecia como objetivo dentro da definição, mas se trata e a todos em conjunto "im continuei progres''i Pascal concebeu um.
de uma verossimilhança que se firma apenas parcialmente como único "homme tmiverse/ 11 de todos os homens ern toda a sequência
203
certeza, enquanto, na tradição neoplatônica, a Poesia reivindica dos ten1pos, "qui su bsiste. tot-uours
· et qm· apren d con 1·ttwe 11emetl t""º
.
uma verdade própria,'°' que, filosoficamente, se refere a algo geral. Leibniz, que conhecia esse manuscrito, criou, e1n continuadas
' Assim Diderot afirma, em Éloge de Richardson, de forma enfática, tentativas, um instrumentário filosófico para ver o mundo como
"que l'histoire la plus vraie est pleine de menso11ges, et que 1011 Roma11 um processo global dinâmico, em constante evolução?" Mas ele
est pleín de vérités. I.:histoire peint quelquers individus; 111 peins /'espece não conseguiu transferir esse reconhecimento para o conceito de
humaine". °' A reivindicação de verdade por parte da Poesia ganha
2
História ou mesmo concretizá-lo e1n suas obras históricas por meio
espaço no século XVlll; a da História dependerá do fato de ser de interpretações individuais harmonizadoras; seu trabalho histó-
compreendida e interpretada como um todo. rico se restringiu basicamente a aplicar a fontes alemãs os métodos
Analogamente à prática judiciária inglesa de uma credibilida- desenvolvidos por Mabillon e pelos maurinos.
de decrescente dependendo do número de etapas de sua tradição, A "historia na/fira/is" desta vez também serve a Spinoza, para
na qual Locke insiste em relação àquilo que tange à História,20, submeter a interpretação da Bíblia à razão: "Nam simti methodus
ocorreu um curioso cálculo que resultou numa diminuição, e ínterpretandi natumm in !toe potissúnwn consistit, ia concinnanda sâlicet
historia naturae, e;x qua, utpote ex certis datis, remm 1wturalí11m defi.niM
m THOMASI~S, Chrhtfan. Ei11/eftm1g ;i;u da Vermm.Oi•Leh,e. Halle, 169l, li,§ 6, p. 243. "V,:11J tiones concludimus: sic etiam ad ScriptimmJ interpretaudam necesse est'1. 212
abwew1den Dmgm k~1111m 1vir nicmahleu 111111,dtíge Wa,/uirm ~-wnlflds dner klaw111nd dwrlidmi Essa intenção de uma incansável correção de opiniões erradas, de
Etk4ufm1H begreiffm I -'CHdw1 nlle.. I IV,H wlr davoi, btjal1C11 / ist wlwtder n,1, wahmlieinlidi odu
dach sdu dumkcl 1md c,mfm". . derrubada de autoridade presumida, foi perseguida por Bayle sem,
m !bit/., 11, §~ 20. 23, p, 247. "l--V,a d~ Afoudi v.:i11 dcm Wesrn des Vtrg1111gmmgewlss @d deulltcli
vmteha I d,H is/ nicfl/ audw <lf.r eint E,imiemn._~ scMier Dinge / die er z11vor af1gtgenwilrlig nflberdt
hrg,iffe11 •·· Uud mim also '1Uch Ítl Envtg1111g Ju m:1hmlu:i11fühw Din_ge d111 Verga11grne u11d Zukt111fir•e x,7 CR.AlG,John. TJ;cofoJi<te d1ri11lamu priudpia 11Mthw1a1ic11. Londres, 1699, pa.ssim (p~rcialmentc
11ad1 dem Ctgllm'i!rrigw guithlcl wtrJt11", ~ reimpresso em Hfsfory ~ud 'f/uo,y, n. 3, sepaute •1, em e.special, 1969, p, 26),
•~) Cf. BERNOUILLl,Jakob. AfJ to)1ljwa11di. Oasilcil, 1713, 4, l: "pr"babíllrds tslg,mlr1s cet1Ut~di11i1
l';' HUME. A trc:iti;e ofhuman n~cure. Jn: IVllrkf (vol. 1), 1886, l, 3, 13, p. 441 e seg.
tl ab lia, diffw 111 p,m II ttllo", M C(. KOYRÉ, Alei-:mdre. Éwdr> d'histoire de la pliiloropfilt. P,nis, 1961, p, 239.
i,c, PASCAL, Fragm.em de pr~foc.e pourle tr-aitédu vide. In: STRO\VSK[, Fortunat (Ed,). Oe11vr,:s
~, Por exemplo, MACROllIUS, Sonmium scipionis 1, 2, 7: "m()dus pufigme11/11m VUrf reftrcudi",
tompUW (t. 1), Pad1, 1923, p. 403.
li>> DIDEROT. É!og:e de Richardson (1761), ín: Oemwstomp!~tes (t. 5). Paris, 1875, p, 221.
211 Cf. LOVEJOY, Anhur O, Thtgrtal d1ai11cf bâng (1936). Cambridge/Ma~s., 1966, p. 242 e segi.
lc~ LOCKE. An emy concerning human undetmnding. ln: Wo,ks (vol, 3), 182.), 4, § 10 e seg.,
p. 108 e seg. m SPINOZA. Tram1tus theologko-politicus 7, ln: GEBH/\RDT, C11.ri (Ed.}. Optrd (c. 3).
Hcide!b~rg, s. d., p. 98,

106
107
'1
o Cef-.'Cf/fO t>E H!Sl&JA Pm$.AJ.'.H,'TO HITTÓFXO NO JN'.oo DA loAOE J,/10DUNA

no entanto, enxergar na História outra coisa do que u le portrait de de /ui". 217 A internalização da História na consciência e - em Rousse-
la misere de l'hommeª. 213
au - o ron1pimento do espaço histórico interno, onde a natureza do
E foi a natureza comum dos povos que Vico torna inteligível homem (historicamente corrompida, mas ao mesmo tempo tornada
através do conceito do infinito e da concepção de transcurso ideal consciente) deve ser reconciliada consigo n1esn1a no inundo histórico,
do tempo, e o apresenta como uma História ideat' eterna, "una trouxe consigo dificuldades que não podiam ser solucionadas com
storia ideal eterna", de acordo com a qual as histórias individuais dos os meios existentes. A expansão espacial e a exatidão derivadas da
povos - "/e storíe di ttitte /e nazíoni" - transcorrem. Com o salto "histoire naturelle" podiam enxergar "desenvolvimento" no detalhe
epistemológico de que "il mondo civi/e", que mais tarde se chamaria - na arte e na ciência-, e. com isso, mna .História com sentido. Mas
"mundo histórico'\ em contraposição à natureza, e que - por ter não eram capazes de compreender História como um todo, por meio
sido criado por homens - também deve ser reconhecido por eles, do moderno conceito de tempo. Voltaire transforma em objeto de
já que os princípios para isso podem e devem ser encontrados nas pesquisa histórica - com um singular coletivo - "/'l,istoire de l'esprit
estruturas de nosso espírito humano, Vico conclui a 11 guinada /rnmain". E, numa analogia cosmológica - correspondente à ordem
copemicana" das coisas em direção à consciência. Na Hist6ria, o do universo, que antigamente só podia ser imaginada, mas cujas leis
hmnem se compreende a si 1nesrno e, ao narrá-la para si 1nes1no, ele agora teriam sido reconhecidas-, ele reivindica como objetivo até
a cria para si mesmo, de acordo com suas próprias leis. 211 Por estar então não alcançado: "C'est donc /'histoire de l'opínion qu'ilfal/111 écrire; e/
preocupado com coisas gerais, com regularidades, Vico consegue par lil ce eh aos d'événements, de factions, de révo/utions, e/ de ctimes, devenait
interpretar épocas distantes, de cujos inícios só há uma tradição digne d'etre presente aux regards des sages". 218
poética, com uma intensidade desconhecida até então, ele conse- Na Alemanha, o singulat· coletivo "História" aparece inicial-
gue reconhecer a verdade de ideias poéticas, "universali fantastici", mente no contexto teológico da justificação do mal, 219 mas permanece
e, ao mesmo ten1po, transforrnar a Historie nun1a ciência filosófica. como objeto subordinado à capacidade teológica de juízo, até o Kant
Vico ficou isolado e praticamente sem influência no seu tempo, já idoso, que pressupõe o conceito de Newton de tempo absoluto e
mas o n1esn10 relativismo histórico - apenas em menor escala e numa homogêneo. A irrupção de outra experiência de tempo,junto com a
perspectiva diminuída - guia Fontenelle em sua tentativa "defaire experiência de uma ação política modificada, permitiu que se falasse.
l'histoire de l'histoire même". 215 A mesma acuidade para a multiplici- de "História" num novo sentido, o qual fora preparado e, em alguns
dade de circunstâncias individuais e de diversidades, desenvolvida casos, quase que conceitualmente antecipado.
através da "histoire naturelle", liga Bulfon a Montesqnieu e Diderot, e
permite distinguir o próprio método do "point de V11e de /'histoire" de 5. A respeito da alteração no topos
procedimentos estritamente dedutivos ou rigorosamente classifica- de "Historia" e "Geschichte"
tórios.216 Diderot pode compreender consciência e identidade como
uma histoire, produzida pela "mémoire, (qui) fie les impressions qu'il reçoit, Os tratados sobre a "arte histórica" e os preâmbulos das obras
forme par cetle liaiso11 une /Jistoire qui est ceife de as vie, et acquiert concience de História transmitem desde a Antiguidade determinadas fórmulas

m DAYLB (t. 3), 5• td,, 1740, 548 b, m DIDER.OT. Rêve de d'Alembert (1769). ln: Oeuvfl'!S complhc$ (t. 2), 1875, p. U3.
m VIGO. Sdm.:-a ,mwa. (vol. 1). Bari, 1928, 1, 4; l, 3, p. 128,117, 91 (cf. nota 156). m VOLTAIRE. Remarque;de l'e"-Saburlesmoeurs (1763), In: Oe1,1vrescomplêtes (t.24), 1879,p, 547.
m FONTENELLB, Sur l'histoite. In: Om11m(M1plhu(1, 2). Pnris, l8t8(reimp1e~,o em Genebn, m Albrecht \'On Haller, em "Überden Unprungdes Übols" (1734), modifica, na 4'edição(1748),
1968, p. 424 e seg;.). o pluul "Cesdtíd11m" !Hístôti:u) pau o coleti\'O dugul3t: "Oh verdadd Diga você mesm1,
m DIECKMANN, Herbert. Ciuq lerom rn, Didercl. Gentbra, 1959, p. 49. te!temunha d;:,. Hhtória", ln: Grdid11t, 5. Aufl., Zurique, 1750, p. SS,

108 109
lli,i~tltt!fi,Ji;,;;:·:,:,';::~~.; :,'.
tn;c \\S\I>rÍiniiiroCpfossupostó lnquestionado foi que a História não era prati-
l/f t{:.t5\\)V(<}4ir,Pó~:'eJflnéSnià .:..a•coisa que somente o Historicismo, mais tarde,
' la nun1 tipo
para en.quadra- . d .
e sistema"'"E
. aqm'lo que aqui''d
crito como decorrente do método, ou até só da didática, Gatterer
e es-

atribui, alguns anos depois, à própria coisa: "A rigor, existe apenas
uma Historie, a História dos povos, e esta é a verdadeira e efetiva
/H\{i{;\;:\pôde pleiteár -, mas para um fim. Queria se obter ~lgum ganho História universal; uma obra que ainda não foi escrita". Ele pode
e imaginava-se encontrá-lo no fato de que ela ensinaria e
~-, >;:' ,,._._.,-,:.--..Côirt da~ afirmar que "a História ... deve ser toda ela uma interconexão", e
tornaria aplicáveis as experiências dos outros. A maior dificuldade manifestar o desejo de que "o mais alto grau de pragmatismo na
se encontrava na pesquisa e na representação da verdade, e um História seria a ideia da interconexão geral das coisas no mundo
objetivo que ia além dos citados estava na memória, que a escrita (nexus remm ,miversalis). Pois nenhum acontecimento no mundo é,
da História possibilitava reproduzit. por assim dizer1 insular". 223
A mudança do conceito de "História" pode ser verificada na . b) Magistra vitae, capacidade de ensinar e utilidade. Só
utilização e na interpretação dos topoi. Restringimo-nos aqui a agora 11 a Híst6ria" pode ensinar, comprovar ou exigiri e a mais
esquematizar essa mudança, além dos temas capacidade de ensinar, recortada parte do topos ciceroniano - H liistoría magistra vitae'\ que
verdade e memória. serviu de epígrafe para as disputas seculares em torno da capaci-
a) Das "Hlstorien" para a "Gescl,ichte". Nenhuma frase é dade de ensinar e de servir de exemplo, da experiência histórica,
citad.a com tanta frequência na bibliografia histórica quanto a . h. , . m
e ct\ja dissolução pode ser interpretada pe1a teoria istonca -,
louvação de Cícero sobre as cinco utilidades da Historie para o essa parte agora é parafraseada da seguinte forma: "A História é
retonco: "Historia vero testis tempomm lux veritatis, vita memoriae,
1 a mais confiável mestra da moral".'" Essa fixação daquilo que é
magistra vitae, mmtia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris im,nortalítati historicamente possível ensinar à moral identifica mna tendência
commendatur?"."0 No alemão do final do século XVI, a primeira importante, mas não é representativa do todo. Na década de 1730,
metade (em geral citada sozinha) diz assim: "Historien são um tes- Schmauss classificou a Historie- num sentido polêmico, contra seu
temunho dos tempos, / uma luz da verdade, /avida da memória, abuso edificante - como umna escola dos servos do Estado'\2 26 e
/ uma indicação da antiga forma de ser, / e mestra e educadora da quase um século antes, encontramos a seguinte feliz formulação:
221
vida humana". E, nesse caso, o plural "Historien" indica uma lei~ E a vida política não sobrevive sen1 Historieit. 227
11

tura correta do texto, e, ao tnesmo tempo, a concepção don1inante As diferentes traduções indicam, que não só o conceito de
de História no início da Era Moderna, isto é, que são os relatos de "História" havia mudado, mas também o de vida, e o daquilo que
acontecimentos individuais que trazem esse benefício. A unidade
da História e sua tradição, formulada bastante cedo, como vimos,
m POTTER, Johann Stephan. Gnmdriss der Staa/Jveimderung_w des 1ê11tulwi Rdd,s. 2. Auí-1.,
só se torna palpável, na ciência histórica da Alemanha, a partir dos
Gõtting:en, 1755 (Vorrede 2ur L AuAage, 1752), p. V.
anos 1750. Assim, Pütter refere, em 1752: "Fiz um grande esforço m GATTERE.R, Johann Christoph. Vorn histothchen Plan und der duauf skh gdlndel\den
para enquadrar a História em certo nexo, de um modo adequado Zusanuncnfligung der lkz3hlung. ln: GATTERER. Histo1is'1ie B/Wotfrek (vol. 1), 1767, p.

para apresentação em aulas acadê1nicas, e, não sei se posso dizer, ~--~~ .


m KOSELLECK, Rdnhatt. Historia magistta vit:r.e. ln: BRAUN, Hcnnann; RlEDBL, Manfrd
(eds.). Natur 1md GtuJ1ichte. Perndirift flir Karl Lõwith. Stuttgart, 1967, p. 196 e segs.
m CICBR.0, De orafote, 2, 36; cf, 3, 51. m AOELUNG (vol. 2}, 1775, p. 60).
111 m Johannjakob &hm1u;s, num parecersobre a fundação d~ Universidade de GOttingen, citado por
FOR.BERGER, Georg {mdutor), Fr,mdsri Gufrd,udltii G11l11d1lid1e wmd wafirhaffiigt brnlrrdbimg SELLE, Gi;it-z. v. Die Cca,g•A11gUJt•U11fvw!Uít ~li G6rlhrgm 1737-1837. Gõttingen, 1937, p. 21 e ~eg.
aflujümw;en M11orfr1m. D:uileh, 1574 (Dedikation), p. 2v.
m GARZONI, Thomas. Pia;zza 1mivmalf. Frnnkfurt, 1641, p. 408.

110
111
PwSM'H,rfO ffiSlô:t<O NO IM<iO OA tom MooHNA

era. ensinável ou digno de ser ensinado. No próprio Cícero, "»w .. em situações semelhantes, deva voltar a ser aplicado, Assim, Patrizi
11
gistra vitae não é unia distinção exclusiva da História - en1 outro pode sugerir que, ao contrário do surgimento do Estado e da ma-
lugar se atribui o mesmo à Filosofia.'" Mas a História conquista, nutenção da dominação, se relate apenas resumidamente, ou nen1 se
dessa forma, um lugar dentro da Retórica, e isso significa, para a relate, sua decadência, já que não se consegue derivar daí nenhum
Antiguidade e para as repúblicas do Renascimento, que, ao lado ensinamento para a felicidade do Estado (all'altmi felictd cívile). 234 É
da Estr~tégia e da Economia, as três possuem a capacidade, junto aqui que o interesse do tempo de Montesquieu e.de Gibbon sofrerá
com a Etica, de estar subordinadas à Ciência Política. 229 Por causa urn deslocamento significativo. E já os poli-historiadores do século
de sua abundância de exemplos, a Historie fornece a parte empírica XVII não querem mais transformar conhecimento histórico em
viva da Filosofia moral, menos para os historiadores que para o ação (como propunham Baudouin, Patrizi e Bodin), mas enxergam
ensino, complementando a parte dogmática. Sêneca reduziu a coisa o objetivo da Historie no fato de que os acontecin1entos se tornem
à cutta, mas muito citada, fórn1ula: "longum iter est per praecepta, conhecidos (ui sdantur)."'
breve e/ efficax per exempla","º Aquilo que aqui recebe uma funda- É por esse caminho que vai se preparando lentamente uma
mentação didática, porém, não deve ser generalizado; o próprio transformação na compreensão daquilo que é ensinável na 1-Iistó-
Sêneca alerta contra o recurso irracional a exemplos: "Inter casuas ria. Máximas para a ação ela não pode mais fornecer, depois das
malornm nostromm est, quod vivimos ad exempla; nec ratíone componimur, experiências vividas com a Revolução Francesa. 11 Mas aquilo que
sed consuetudine adducimul'. 231 Contra o cientificisn10 que acredita a experiência e a I-Iíst6ria ensinam é que povos e governos nun-
em exemplos, Roger Bacon ainda - ou já - pode se servir dessa ca aprenderam algo a partir da História" - é o que Hegel pode
arma."' De maneira geral, talvez seja Sir Philip Sidney quem, na constatar. "Aquilo que, na História, tem alguma serventia para a
Idade Moderna, contesta, pela primeira vez, o valor de exemplos formação está na atividade do Espírito, no reconhecimento da-
históricos: "The Hístoría11 wantíng the precept, is so tyed, not do what quilo ... que ele é: esse processo de auxiliar o Espírito a chegar a
shoulde bee, but to what is, to the particular tmth of things, and not to the ele próprio, a seus conceitos, isto é História". 236 Continuidade na
general reason of things, that hys exemple draweth no necessary conseq11ence, consdentização histórica do espírito é a Historie con10 HHíst6ria
and therefore a lesse fmitfiil doctrine"."' compreendida' 1•1:.\7 ºCom isso, também a frase 'Historia magistra vitae'
Por essa época, os teóricos da Hist6ria do final do século XVI adquire um sentido superior, mas ao mesmo tempo mais modesto.
haviam desenvolvido critérios que iam além da utilidade expressa no Através da experiência, queremos nos munir de prudência {para uma
topos de Cícero. Mas aquilo que se mantém é a conclusão possível outra vez), mas de sabedoria (para sempre)".'" Dessa forma, Jacob
de que é um direito do historiador fazer um julgamento sobre seu Burckhardt tenta resolver a contenda, n1as mesmo assim, economia
objeto, partindo do passado em direção ao futuro, e se mantém política e sociologia tentarão prever transformações estruturais a
igualmente o pressuposto óbvio de que o conhecimento do passado, partir da análise de acontecimentos históricos, e, assim, fundamentar

m CICE.RO. Tusw{miae diJputallonu Nic.mU1cl1M erhi<a, 2, 16; d. 2, 49; 5, $, rn PATRIZI, Dtlfo lriI101Ítl dfrci dialo_glu' {cf. nota 179), p, 34v,
m ARISTOT_BLES. Nit,m1,ulu:;1 uhi<a, 1094 b. m Tipico para o caso é VOSS, Gerhard, Ars '1i11&1irn (1623}; 2. cd., Lddeu, 1653, p. 15.
<>-s Hegel. ln: HOFFMEISTER,Joh:1.nne1 (Ed.), Die Vtrm11if1 ln duGwhirhte. 5. Aufl. Hamburgo,
m SENECA, Ep/s111/at, 6, 5.
1955, p, 19, 183, 72; cf. DroyJen. fu: HÜ0NER, Rudolf (e<l.). Hi~torik, 4. Aull., Dar1nstadt,
m SENE:Cô, Epiit11/ae, 123, 6.
1960, p, 353 e seg1.
m BACON, Roger. Opw urlium, Londru, 1859, i;, 22, p. 72 (ditado por J. S. Dtewer), m HEGEL. Phfoornenologie de~ Geistes. 111: Sâmtliche Werke (vol. 2), 1964, p. 620.
m Sll)NEY, Sir Phfüp. Au apologiefór po~Jr/c, Londre1, 1595; reimpresm em AnHtecdam/New m J~cob Burckh:irdt. ln: OERI, Jacon (Ed.}. Wtl1gm/Jid11/idre Be1rad111mg_w. 2. Aufl., Berlim/
York, 1971, D 3'. Stuttg,m, 1910, _p, 9.

112 113
P(NSAMfNTO Hl5TÓRK:O "º l~(IO (li, !o,,~ Moomv..

cientificamente ações possíveis. E praticamente nenhum dos his- daí o "espelho criador'\ que Fausto exige de Mefisto; 246 e com essa
toriadores mais importantes do século XIX resistiu à tentação de imagem Friedrich Meinecke pensava dever caracterizar o Histo-
atuar, ao menos por algum tempo, na política, e assirn prestar ao rídsmo como a evocaçao - do passaclo pratica' d a por e Ia 1nes1na. w
topos algum tributo em sentido passado. Mas 1 e1n meio à preocupação em torno da inevitável intromissão da
c) Lux ver/ta/is, verdade e reprodutibilidade. De uma ma- individualidade do historiador, também há que distinguir atitudes
neira geral, o historiador moderno se dedica sobretudo ao presente, contrátias. A fé de Ranke na objetividade de uma "História mundial
enquanto o antigo trabalha em especial para o mundo posterior ainda desconhecida , 248 que primeiro deveria ser descoberta, era
11

e sua utilidade ou seu conhecimento, 239 Com isso, a busca por tão forte que só a contragosto aceitou a expressão provavelmente
objetividade se desloca. A pergunta de Cícero se não seria óbvio utilizada pela primeira vez por Goethe em 1neio à consciência de um
para o historiador "ne quid fi,lsi dicere m1deat? deinde ne quid 11eri 110n "tempo progressivo" de que "a História mundial [Weltgeschichte], de
'"º'
au deat. e muito ·e i.orma l para que a segunda parte não 1notivasse. tempos em tempos, deveria ser reescrita". 249 Ele ansiava por tomar,
uma crítica fundamentada. 241 Mas a exigência pela verdade faz com uatravés de uma visão baseada e1n simpatia, uma co-ciência do
que Luciano elaborasse o ideal de um historiador tão imparcial que universo" 25 º: "gostaria de, por assim dizer, apagar o n1eu próprio
não consegue ser socialmente localizado em lugar algum: "con10 .
eu, e deornr .
aparecer apenas as coisas, ,.
as 1orças po derosas »251E
. 1n
estranho, se encontra s6 nos livros, não se sente ern casa em ne- contrapartida, Jacob Burckhardt diz, ern vista da "cegueira de nossos
nhuma cidade, está comprometido unicamente com sua própria desejos" frente ao futuro: use pudéssen1os abrir mão por cmnpleto
lei, e com nenhum senhor, não avalia as opiniões deste ou daquele, de nossa individualidade e encarar a História do tempo que vem
mas apenas constata fatosn. 242 Para isso, se prestava a metáfora do com tanta tranquilidade e intranquilidade quanto ... o espetáculo
243 ,
espeIh o, que se 1nantem como un1 topos pern1anente, na qual a da natureza ... , então talvez vivenciaríamos, de forma consciente,
epistemologia se transforma na imagem do espelho vivo, em que um dos maiores capítulos da História do espírito". E diante das
primeiro se interpreta Deus ("specu/11111 aetemitatis viv11111, quod est profundas transformações - sem temer ou depositar esperança -,
fa rma fiormarum ") 244 e d . o hometn em seu pos1c1onamento
ep01s ·· devido à importância do objeto, fica-se praticamente obrigado a
frente ao mundo: "et ín q11oc1mq11e loco cuncta mundi statueris enfia: in buscar apenas ºconhedmento". 252
ei11s opposito abs te col/ocand11s et recipíendus est homo, 111 sit universorum Mais subjetividade se encontra na comparação com o dese-
2
spec11/u111". " No circuito nebuloso de concepções mágicas, surge nho, a pintura, o tableau. Nas discussões estéticas do século XVIII,
existe uma preferência por explicar a peculiaridade da literatura
.m MOMIGLlANO, Arn.tldo. Trad!tion ;rnd the duslcal histotian. History al/l'I '11/f.:Jty, ,1. 11, p.
297 e ~egs,, em especial p. 291, 1972.
Hô C{CERO, De (lr(lfore, 2, 62 em LEIBNIZ, Nouveam~ emh sur l'entendemcnt hmnain. ln: GER.HJ\RDT, C. J. (Ed.).
iii VOLTAIRE. Verbete "Hhtoriog-r:i.phe". !n: Oeuvw tompWes (t. 19). 1879, p. 3?2. PhifoNpiiische Scluiftw {vol, S}. Berlim, 1882, 2, 21, § 72, p. 196,
~u LUKIAN, Q11omoJ., Mmtia {.:J11mibrnda sit, 41, t: "Çtroçév rorç p,plicm;, Kal á,;o,tfç, aúróvoJ!OÇ, m GOETHE. Pamt 1, Paralipornenon n. 11. [r.i: Wtllmr,et Atugabe (vol. 14), 1887, p. 29l.
20 MEINECKE, Friedrich. Sch<1.[{c11du Spftgef. Stuttgart, 1948, p. 7.
ôfaull.tt1roç, oútí rqMe, 11 rQJJeôóçu,,\oy1(óµe1'0ç, áJJ.á ti KfapQX(<uAéJ,wv" [na tr.1.du~o de J.tcyntho
Lms Dno.ndâo, lê-se: "em,rngelro .tto5 livros e ap,hrid;, autônomo, ~em r~i, uào so preocupaude> ~,~ Lcopold von Ranke, em carta a Hcimkh Ritter, de 22 de março de 1828. {11: Srfm1fid1e IV.·,ke
com o que àchad i,ste ou àquele, m~s dizendo o que H:r passou", LUCIANO DE SAMÓSATA. (vol. 53/54}. 2• J,) 3' ed$,, 1890, p. 195.
C"m" se. devt tmevua his16ti11, Belo Hori?-onte; Teuitura, 2009, p. 71- nota de Sfrgio da Mat.:iJ. ti? GOETHE. Geschichte der P~rbenlehre, 4' seçlo, século XVI, Baco von VetUlam {1810}. ln:
20
Jbid., Sl, L
I)le Sd11iftrn ;rnr Naturwinemrheft (vol. 6/t), Weimar, 1957, p. 149.
111
KUES, Nikofaus von, De visione Dei. ln: Opc,11 (e. l}. Paris, 1514, p. 107'. w.i RANI<E. Tagebuchbl:ittcr. ln: Samttldzt Weike (vol. 53/54), p, 569 o seg.
m BOVlllUS, Carolus. lJberde sapirnte. P:irú/Amiens, 1510, reimt>resso in: CASSIRBR, Ernst. m RANKE. Englische Gmhichte. ln: Siimtfr'che Wake (vol. 15), 1370, p. 103.
llldivtd11111111md KMmos ln der Rwaimrnce. 3. AuR., Darn1stadt, 1969, p. 353; cf. "mirolrvlvant"
m BURKHARDT, We/1gmhi1/fr/;e Bttr11d1tun,&w, p. 273 e 1eg.

114
115
0 cONCroô N HiSTOOA

1nediante recurso à pintura, isso n1csn10 depois que Lessing --- no as 'revolutiones, evetltus rerum' pode-se ver ali". 257 Isso indica para
seu Laokoon - havia postulado, em 1766, a incomparabilidade uma espacialização, que também se encontra na ciência natura],
através das categorias temporais de sucessão e simultaneidade. onde se deve estudar dentro de um bem-montado "cabinet d'hisoire
Ramler, na tradução de Batteux, parte do pressuposto de que naturel/e" o "systeme de la nature e/le-même". 208
tanto Lebrun quanto Curcio Rufo tenham "pintado" as batalhas Com a representação pictórica, liga-se a imagem da "verdade
de Alexandre: "Este com sinais arbitrários e inventados, isto éJ nua, não enfeitada" 259 que o historiador deve tentar atingir1 mas ao
com tintas e pinceladas; aquele com sinais naturais e imitativos, lado também está a concepção corrente na Antiguidade de uma
isto é, com palavras. Se eles se mantiveram fiéis à verdade, ambos verdade só gradativamente desvendada no decorrer do tempo
são autores de Historien". E de forma muito vaga, pode-se falar (clzronos): "veritas filia temporis". 2'° Metáforas ópticas e espacialização
"da pintura geral do gênero humano". 253 Bodmer, na comparação levam Comenius a elaborar uma caricatura dos historiadores, na
entre acontecimentos históricos e ficcionais, atribui aos primeiros qual eles estariam olhando "com um tipo de trombones retorci-
a vantagem "de que são pintados exatamente de acordo com a dos ... por sobre os ombros, olhando para trás", situação em que
natureza, e são menos enganosos". 254 O uso das palavras sugere cada um enxerga um quadro diferente, motivado pela perspectiva
que o caráter de alguém seja pintado, que se forneça um quadro de retorcida (= binóculos).'" Enfocado de forma positiva, na tradi-
uma personalidade histórica. Saint-Évremond enxerga a vantagem ção da doutrina das mónadas de Leibniz, Chtadenius só consegue
dos historiadores rornanos sobre os posteriores nessa arte, no fato enxergar a História através de determinados "pontos de vista,,, e
de que lá aqueles que escreviam a História também participavam representáveis através de uimagens rejuvenescidas". 262
dela, e que a carreira administrativa em Roma levava a um amplo Por mais plausível que seja, essa comparação contradiz o fun-
conhecimento dos homens, através da religião, do comando do cionarnento da rnemória hurnana, e exatamente também o efeito
exército e da política. Por isso, a "gra11de délicatesse de discernement" de exemplos históricos, que podem ser muito mais eficientes que
na "peinture" de um Salústio ou Tácito: "C'est une certaine différence, aqueles que são conhecidos por serem do tempo presente. 263 As
dont diaque vice ou clzaque vertu est marq,de par /'impressio11 particuliere rnetáforas óptico-espaciais são substituídas por metáforas mecânicas
qu'elle pre11d dans les esprits ou el/e se l!~uve"."' Numa comparação e dinâmicas, das quais basta citar aqui o Triebwerk der Begebenheiten
panorâmica, o cardeal de Retz pode conduzir seu leitor de uma [motor dos acontecimentos] de Gatterer. 264
antessala insuficientemente iluminada - que contém o esboço dos
antecedentes da guerra civil - para a galeria dos quadros em tama- m GUNDLlNG, NicQlau5 Hieronimiu. Auifil/nlícltu 1111d mlt il/11stre11 Exempdn aw der Hüto,ie
nho natural. 256 Mais geral é a concepção de Gunling: ''A Historie wuf Staalm Notiz erliintet/er Diswim ilhe, Jo. Fum!-. Ruddei PhUornph/ae P,aairne P1J1t. lll. Die
Politic. Frankfurt/Leipzig, 1733 (Prolegomena), p. 4.
é um gabinete onde se pode ver tudo aquilo que aconteceu; todas m IlOMARE, V::ilmont de. Diafom1ain· r,i/so1mé 1111ivtml d'Mitoirr m!/11,elle (1. 5). (SuípJ, 1780, p.
414; c:f. p. 430.
m DODMER, Er2~hlungcn ...• p. 73.
m RAMLER, Karl Wilhelm. Eit1/eifw1g i11 dfo Sd1õ11w Wim1m!111ftm. Nach dem .Fr;rnzõsischen
wi Cf. nota 196; e P1\NOFSKY, Erwin. StmfieJ in fomcfo,gy (1939) (cap. 3: "Father time"). New
des Henn füttcux (\·ol. 4). 4. Aufl., Leipzig, 1774, p. 263 e Jeg., 276.
York, 1972, p. 69 e seg;,
m l30DMER,Johann Jacob. Hinorische Etzlhl1111gtn, dle Deokungs~rt und Sitten der Alten rn COMBNIUS,Johrnn Amos. Dai Litbythlrh du Wtlt u11rl d,u Paraáfes du Httzrns (1631).Jena,
:rn entdecken (1769). ln: ERNST, Fritz (Ed.). Srl1riftrn. Fuuenfdd/Zudque, 1938, p. 73. 1908, p. 107 [traduzido do tcheco pm: Z<lenko fündnick].
m SAINT~ÉVREMONO. Discours sur les hiltoricns françois. ln: Oeuvm (t. 3). Arnsterdam, m CHLADBNIUS, Joliann Martin. Elllltlluug ::111 rfd1tigt11 A11sleg111tg vui1ú1iftigu Redt11 und
1726, p. 219,223. Sd1djú11. Leipzig, 1742; reimprrno em DUsseldorí, 1969, §§ 309,353.
m CARDINAL DE RETZ. Mémoim. ln: ALLEM, Mauriçe; THOMAS, Edíth (E<:ls.). Paris, H> CARDINAL DE RETZ, Mémoires, p. 161.
1956, p. 152. m GATTERER, Vom historhchl!n Pl:m ... (cf. nota 223), p. 68.

116 117
d) VitànÍemoriae, lembrança do não passado. Se as metáfo- V
ras ópticas estão relacionadas com a etÍinologia cotreta da iaropía.
grega, que deriva de ofóa, fupev (°eu sei'\ aparentado com "vídeo"),
A configuração do moderno
as metáforas dinâmicas estão relacionadas à etimologia de Platão,
pintada em tons irônicos. 265 A transição de uma fonria de concep..., conceito de História
ção para outra está esclarecida em Besold: "Est vita memoriae, quía,
quae prisds novique seculís acdderimt, fad/e e momoria e.widere soletll. Rei11/iart Koselleck
Proinde memoria sa/11/are q11ase remedium s11ae infirmilatis et inconstantiae
ex Historia haurit: et veluti revíviscit, cum in ilia, tanquam in amplissimo
aliquo theatro el specu/o tersissímo 1zitídíssimique, praeteritorum temporum
acta contemplat11r. Unde Historiam áirà wv írnácr0w n)v r,Jç µv1w1ç
pvcr1v P/atonem derivasse aj1111t, q11od memoriam labilem ac vad//antem, 1. O percurso históríco do termo
ceH perennem jfuvium, sistat". 266
É nesse deter e segurar a memória que já se pode compreen- Quando hoje se fala de "História", estamos diante de uma ex-
der a intenção de Tucídides de criar, para além da utilidade e do pressão Ct\ÍO significado e cqjo conteúdo só se consolidou no último
prazer, uma uposse para sempre", HKT1jµa rs éç alei". 267 Faz parte terço do século XVIII. "A História" é um conceito moderno que
da teoria do conhecimento da Era Moderna afastar-se da teoria - apesar de resultar da evolução continuada de antigos significados
da reprodução e encarar aquilo que é reconhecido como uma da palavra -, na prática, corresponde a mna configuração nova.
construção, como produto criado pelo espírito que reconhece. No Naquilo que tange à História do termo, o conceito se cristaliza a
conhecimento histórico, essa visão deve ser atdbuída prirneiro a partir de dois processos de longa duração, que no final vão confluir
Vico, e depois sobretudo a Hegel e a Humboldt. Conseguir que e, assim, desbravar um campo de experiência que antes não podia
ela também se impusesse na pesquisa histórica, esse foi o esforço ser formulado. Por um lado, trata-se da criação do coletivo sin-
apaixonado de Droysen. "Não um quadro do acontecido, mas gular, que reúne a sorna das hist6rias individuais em um conceito
11
aquilo que do passado ... ainda é não passado" constitui o objeto da comum. Por outro lado, trata-se da fusão de Hist6ria" (conto
pesquisa que deve ser obtido através do processo da compreensão. E conjunto de acontecimentos) e "Historien (como conhecimento1
"o fato pesquisado encontra-se numa relação cotn as condições em narrativa e ciência históricos),
que ele se insere, seu contraponto) sua critica e seu julgamento,,, 268 a) O surgimento do singular coletivo. A configuração fe-
11
minina no a1e1não antigo 11giscihtu e no alemão 1nedieval ''geschíht
(ao lado de ºsâht)I ou "schíht") deriva do alernão arcaico "scehan",
verbo que deu origem a "gesc/,e/,en" [acontecer] e significa "acon-
tecünento, acaso, processo"; e no alen1ão medievali significa ainda:
''aquilo que faz parte de uma coisa, característica, 1nodo" [Weise],
m FRISK, Hjalmar, G,iuhi0m tlymoloilulieJ Wõ',te1b1uli (vol. 1). Heidelberg, 1960, p. 7•!0; (vol. e, de forma mais geral: "essência [Wesen], coisa"; e ainda, sobretu-
2) 1970, p. 357; PL_ATON. Krt1tyfor, 437 b. do no alemão do início da Era Moderna: "acontecilnento, coisa"
l¼ l3ESOLD, edição de 1697, p. 394.
w TH:UKYDIDBS, l, 22.
[Sache], mas também "aquilo que acontece a partir de alguém,
2
i.i. DROYS.EN, HiJtMik (d. nota 236). p. 316, 20 e seg., 166. ato, obra,,, alérn disso: ('mna sequência de acontecimentos, acaso,

118 119
0 CCN<:E,10 Dt HiSTc'.fü...\ A CôNr.GUMÇÃO 00 l . ~ O CON<tll'O Df His-r&.-iA

desígnio"; e, finalmente, no alemão do início da Era Moderna Em 1775, Adelung registra os dois empregos pàralelÓs;" "A\•·
como '' historie": "narrativa daquilo que aconteceun. Com isso, fois~ História, plur[al] et nom[inativo] sing[ular] ... Aquilo que ácorite- i·•· •·
definindo gradativamente o âmbito humano do fazer e do padecer; ceu, uma coisa acontecida, tanto e1n sentido mais amplo, qualquer.-:··
a expressão podia substituir pragmata, res gestae, gesta,facta, aaidms, mudança, tanto ativa quanto passiva, que acontece a mna. coisa'\
casus, eve11tus,fart11na, e outros equivalentes. Em torno do ano 1300 Em sentido ,imais restrito e mais usual'', a palavra. visa a "divers·as ·
veio se juntar à forma neutra "daz geschichte", que foi se difundind~ mudanças interligadas, as quais, tomadas em conjunto, perfazem
e ainda constitui a forma usual em Lutero, com os significados de: um todo ... E exatamente nessa compreensão, ela se encontrai muitas
"aconteci1nento, classificação, ordem". 269 vezes, de forma coletiva e sen1 plural, para vários episódios acon-
• ;•0274
A partir daí, "die Geschíchte" ["a História"] (ao lado de "díe tecidos, de uma mesma espec1e .
Geschicht", e, desde o século XV, "die Gesd1ichte11" ["as Histórias"]) Quando Adelung se deu conta do novo coletivo singular,
foi, até pleno século XVIJI, uma forma plural, que designava a soma acabou definindo também sua função, qual seja, a de unificar
de histórias individuais. "A História são" - lê-se emJablonski,"º em mn série de acontecitnentos e1n um todo inter-relacionado. A
1748 - "um espelho das virtudes e dos vícios através da qual se pode "História" recebeu um significado que ultrapassava os diagnós-
aprender, a partir da experiência alheia, aquilo que se pode fazer ou ticos e os fatos individuais, como a Historie iluminista gostava de
se deve deixar de fazer; elas são um monumento tanto das más ações destacar. Assim, em 1765, Carl Friedrich Flõgel escreveu uma
quanto das louváveis". Da mesma forma, Baumgarten define, em 1744, Gesc/,ichte des menschlichm Verstandes [História da razão huma-
na velha tradição"': "A História são, sem dúvida, a parte mais educativa na), na qual exa1ninava as causas "que a levavam a evoluir e a se
e útil, o mais engraçado da erudição". E inclusive Herder utilizou, aperfeiçoar1'.275 Em termos modernos, se diria que se t~atava ~e um
eventualmente 1 "a História11 no seu significado aditivo) plural, 2 n esboço antropológico e social-histórico, que pretendia explicar o
Do ponto de vista gramatical, a velha forma plural "a História" surgimento do homem racional. Que tais processos e sua análise
podia agora ser lida também como feminino singular. Mas do ponto de fossem chamados de "História" soou estranho, no início. Ainda
vista conceituat é possível reconhecer um ato consciente na migração em 1778, um resenhista criticava: "A palavra 'História', que est:í
do vocábulo "a História" do plural para o singular. Essa migração, na moda, constitui um abuso formal da linguagem,já que na obra
, , 1n276Q
porém, começou apenas na segunda metade do século XVI!l, a partit- (de Flõgel), no máximo, aparecem narrativas nos exemp os ,
de um grande número de escritos histórico-teóricos. E desde e11tão, significado narrativo ou exemplar da palavra, que fora dominante
é o coletivo singular que designa a soma das Histórias individuais até então, e se referia a histórias individuais, foi perdendo espaço.
como "essência de tudo aquilo que aconteceu no mundoº (Griinm).273 O novo slogan expresso pela palavra "História" identificava um
grau de abstração mais elevado, que podia caracterizar unidades
111
sobrepostas de movimento histórico. •
GRIMM, vol. 4/1,2, 1897, p. 3857 e segs.; cf. BENECKE; MÜLLER; ZARNCKE (vol. "A História" tinha uma complexidade maior que aquela das
212), 186-ó, p. 115 e seg5.
77
~ JA.8LONSKI, 2. ed., vol. 1, 1748, p. 386, 2. Aufl. histórias individuais com que se lidava até então. O conceito subja-
m Tnd\1\ão da HiJto,le genl do 111undo, cm alemào por Sicgmurtd Jacob llaumgart.:n {vol. cente à "palavra da moda" pretendia apreender essa complexidade
l), Halle, 1744, p. 59 {Vonede); cf. GEIGER., l'aul E. Das Woa "Gmhichtt" und ul,u
Zuu;m11w1u1:.:1111g. Frdburg. 1908, p. 16 [tese de doutorado).
m HEROEil... Überdíe neuere Deut~che Literatur (1767/68). ln: Sdmtlid1,: Wuk-l'! (vol. J). 1877.
p. 262. 211 h,DELUNG, vol. 2, 1775, p. 600 e seg.
m Cf. GEIGER, Das Wotl ''Gmh!âttE",.., 9; GR!MM, vol. 4/1,2, p. 386:l e seg; cf. HENN(G, m flÕGEL, Cul Friedrich. Gwlúdite fo me1~ch/icl1eu Vmta11dts. Dmhu, 1765 (Vorrede).
Johanncs. Oie Geichichte de~ Worte.t "Gesdiichte". DeillHlu Viemljafiwsd,rift flir ~1t Resenha da 3' ediçic (1776) da obr.i citada na 11cta 275. Al(gtmelne deut!die Bihliolhek, n. 34,
Utua/11rwlmmrh_afi 1111d Gtffüsgud1id1fr, n. 16, 1938, p. 511 eseg.~. 1778, p. 473.

120 121
o CONctao m HSTÓ"'iA

como.~m~ realidade genuína. Cmn üso, se explorava unla nova "Uma série de acontecimentos é chamada u1na História",
exper1encia de mundo - exatamente a da História. Um indício define Chaldeníus, e1n 1752. 280 Mas a palavra 'série' aqui não sig-
11

s~guro Pª.~~ isso sã~ as várias formas de quaHficação: "História e1n nifica ... apenas uma 1nultiplicidade ou grande número; mas mostra
s1 e para s1 [Gesc/11chte an 11ndfilr sich], "História em si" [Geschichte também as relações entre eles, e mostta que eles formam um con-
an sích], [a] "própria História" (Geschichte selbst], ou "História como junto''. Essa visão de conjunto - que 1 em geral, era pragmaticamente
tal" [Geschichte iiberhm,pt]. Até então, fota impossível imaginar 0 interpretado corno um emaranhado de causas e efeitos - colocou-se
termo sem um sttjeito - H história.o se referia a Carlos Magno, à num nível mais elevado que os simples acontecimentos e episódios.
França, etc. Nas palavras de Chaldenius: "Os acontecimentos, e "É a grande História"~ cotno disse Planck, em 1781 ~ que, "como
p~rtanto, tat~~ém a :História, são 1nudanças. Eles, porétn, pressu~ mna planta trepadeira, perpassa n1uitas histórias pequenas". 281
poe1n um SUJCJto, uma essência duradoura ou uma substância". 277 Para a História do conceito, foi decisivo que a questão dos
:/ Ou ent_ão, uma hist6ria - conto narrativa - visava a u1n objeto
q~e fazia parte dela. Isso mudou tão logo os historiadores ilumi-
efeitos não foi interpretada apenas como urna construção racional
- é sobre isso que trata a próxima seção -, mas que ele tenha sido
nistas começaram a tentar apreender a "História em si". A "his- reconhecido como um campo autônon10, que, na sua cmnplexidade,
tória en: si;' para si" podia ser pensada sem um sujeito que lhe orienta toda a experiência humana. A História sofreu uma alteração
fosse at':'bmdo. Comparada com a facticidade das pessoas e dos linguística, que a transformou no seu próprio objeto.
acon:ec1mentos, a "História e1n si" constituía um 1netaconceito. Em 1767, Iselin perguntou se não teria sido melhor chamar
,. _E evidente que, no início, essa guinada se referia apenas ao sua Gesclzíchte der Menschlteit [História da humanidade] de Von
amb1to dos acontecimentos, como Gundling o formulou 1 em 1734· dem Geiste der Gesc/1ichte [Sobre o espírito da História). Segundo
11
~ Hís~or!e ~:11
si mesn_-ia, qt·-ta·fenr,s ,,.res gestas complec.títur, não agu~
11
ele, esse título nâo ficaria mal para expressar n1ais claramen-
d1za o Jmzo - o que mclu1na a logica históríca.21s Ou, como o te a intenção e o conteúdo da obra". 282 Assim, Thomas Abbt
expressou Haussen, com a palavra alemã: "A História etn e diante fala metaforicamente da "majestade da História", contra a gual
d~ si é uma.série ~e acontecitnentos, ela não possui princípios ge- não se deveria pecar, aplicando-lhe uma interpretação, Ou en-
rais, e, por 1sso1 nao pode ser encarada como ciência". 219 Mas não tão ele pensa que "a .História se desenrola continuamente, se1n
se ficou imobilizado nessa contraposição racional de um âmbito cessar, a partir do ponto de que partiu'\ e que ela, como uni
de ~comecimentos, e o trabalho científico com eles. A genuína corpo da natureza, possui causas e consequências ordenadas,
te1vmd1cação de uma realidade por parte da História cresceu tão possuindo, por isso, sua própria "velocidade". 283 Etn analogia
logo ela passou a abranger mais que a soma de todos os fatos_ uma com o "teatro do mundo", Hausen podia falar agora também
acusação reiterada dos iluministas contra seus antecessores fora a de do teatro da História", que teria influência sobre os corações
11

que estes se haviam restringido à enumeração dos fatos. humanos. 284 E, quatro anos depois, en1 1774, Herder, Hem meio

1'~ CHLAD.ENlUS, Af(jemtine GcHhiclits11Jimmd1flft, .. , p. 7.


m CHLA~E:'I~S,Johann Martin. Allgemc/11e GtuflidmwiswucJ,4r, IV<'riunrn de, Grund zu duu H1 (PLANCK, Gottlieb Jakob). Gm/ifdite de, EnWdumg, der f'friindmmgw mui dtt Bildm1g wrs,wI
IIWett Emmht III t1lfw Am11 der Ge/11(1111uilgtl("~I wi,d. f.eip,ig 1752 11 p11mstat1//ulu11 Lel1rbei1iffi (vol. 1). Leipzig, 1781, p. IV.
11• 4 • , p. ,
<~l lSELIN, !~;1ak. Tagebuch (Dihio], em l" de março de 1767, dtádo por HOF, Ulrkh Im. lsa,i.k
GUNDLING, Nicolaus Hieronymus. Ak11dm1luhe, Oi.wu,; übu des Fuyhe,m Samuel v.,i 1
lull11 wrd die Drntsclie SpiittHifklilnmg. Bem/Munique, 1967, p. 90.
Pufiiulo,jft E/11/tihmg -:u der Histo,ie dtr wmel11mtt11 Rt1'1ie 11/Hl Staaftll. Fuukfun 1737 2
m HAUSEN C 1 ' 'p. · m ADBT, Thomas.Brfof,dieneue.\teLittecatutbeteffend, 12, 1762,p. 259, l96(cnt;i); AJ)OT, ThomM.
, ar Renatus. Rede \'On <lerTheodeder Ge1chidite. Jn: ~,mird,tr&h,[ftw. Halle,
1766, p. 131. Vom Vom;i.gder GeKhkhte. ln: Vi·m1i.uhl,; Werke (vol. 6). ft.1nkfun/leipzig, 1783, p. 124 e ,eg.
ni H.AUSE.N, C. R. Vim Jem Eilifluss du Cmliid11e '11if di11 menuhlidu Herz. H~lle, 1770, p. 8.

122
123
0 (CNa,Tó oi= HSTé¼..i,
A coNF!G\,':l.Aç.l.o oo lll')O'f#,'Ó coNàrro oe Hist6l>JA

a un1a crise estranha do espírito humano 11 - na qual se estaria - desemboque na perfeição, sem qualquer erro, pois "a História em
propos " íl
procurar o sumo e o cerne de toda História". 2ss '
todos os tempos conseguiu vencer os mais obstinados equívocos". 269
U1na vez descoberta a História como autônotna e autoativa Há motivos para enxergar nessa nova conceitualização - que
ela pa_ssa ~ cl;s_sificar sua própria representação: ''A classificação é ~ remete a História, como agens, a si mes1na - a velada ou modificada
própna H1stona que nos fornece".'" Mais, ela habilita O historiador providência divina, o que - naquilo que tange aos efeitos históri-
1
a esfriar 'a ânsia por heroís1no 11, própria dos príncipes, "ern especial cos - está correto. No sentido de uma História revelada por Dells,
quando a própria História transforma os historiadores em filósofos"."' Agostinho, por exemplo, havia constatado que as representações
Passo a passo, essa História também vai aumentando sua pretensão históricas trntan1 de instituições humanas, mas que a própria 1-Iis-
à verdade, a partir de seu genuíno e complexo conteúdo realista. "A tória ("ipsa historia") não é uma instituição humana. Pois aquilo
própria História, quando vista em geral, nos dá a melhor indicação que aconteceu e não pode ser revertido, isso faz parte da sequência
das condições de todos os seres sensatos, n1orais e sociaisu, escreve dos tempos ("in ordine tempomtn liabenda s11111"), cujo fundador e
Wege!in, em 1783. O Direito Natural e o Direito Internacional adnünistrador seria Deus. 2 1}0
PúbliSo se baseiam nela, liberdade e moralidade não são viáveis sem Não há dúvida de que a historicidade de Jesus como fonte
ela. "E daí que surge o conceito do mundo moral, ou da relação empírica da revelação contribuiu em muito para dar ao conceito de
11
entre todos os seres pensantes e ativos. Esse c011ceito geral não é outra História un1a pretensão enfática à verdade. Pois o sacramento ou
coisa que a expressão da História como tal". 288 A fundamentação do a História, e as palavras, / quando se fala do sacramento, / são duas
Iluminismo histórico em uma História não mais derivada, mas na coisas diferentes" (Lutero). 291 Hamannjá utiliza o singular coletivo,
11 11
I--:list6ria como tal", tinha se definido como conceito. quando definiu a História, a natureza e a revelação" como as três
A História se eleva a algo como uma última instiincia. Ela se fontes de conhecimento sensato 1 ou ainda mais, quando confronta a
transforn1a em agente do destino humano ou do progresso social. História co1n o acontecido: HSem autoridade, a verdade da História
Nesse sentido, Adam Weishaupt - abstraindo conscientemente (desaparece) junto com o próprio acontecido". 292 Foi, sobretudo,
de acontecimentos individuais - escrevera sua Geschid,te der Ver- com Herder, e, no campo suábio, com os pietistas teológico-
vol/kommntmg des menschlichen Geschlechts (História do aperfeiçoa- -federais [foderaltheologische Pietisten]* que a moderna utilização
mento do gênero humano]. "Esta foi u1na História sem ano nctn
no1neº, registrou, com orgulho; "a 1--Iistória do surgitnento e do m \Y/E[Sf-lAUPT, Adam. Ge$ê/1id11t der Vu110Ilkom1mttmg det me1tu/Jlfrhm Gwhluhts (voL 1}.
desenvolvimento de nossas paixões e de nossos instintos'\ que, de rrankfurt/Leipiig, 1788, p. 228.
i:n r,UGUSTIN, De doctrinl (hristi:ma, 2, 28 (4-4), ln: Coip:11 d,rli1i.-momm (\·oi. 32), p. 63 (cf. neta 22).
agora em diante, deven1 ser racionalmente controlados: fjQue agora rn LUTHER, Vom Abcndmahl Chrilti, fiekeniltl'IÍS (1528}, [n: IH/mata Awgabe (vol. 26), 1909,
se apresenten1 os atores e representern eles 1nesmos". Mas a "própria p. 410. "Drn11da1 sacwnmtudrlergtsdrfrfrl 1111d diewo1t / so 11/<fll t'CIU ratn1111w/ udet / Jind ;i:wttedey".
História" [Geschichte selbsíl continuará a cuidar para que tudo :n HAMANN,Johann Georg. Briefeeine, V:1ters 1(em torno de 1755). ln: NADLER,Joscf(Ed.).
Sãmtliche Werke (vol. 4). Vkn.'\, 1952, p. 217; G0Jg3th1 und Scheblemini (1784). Siimtlt'rke
Wer.h· (vol. 3:), 1951, p. 304; cf. Sii11Jt/ld1e Werke (vol. 1), 1949, p. 9, 53, 30:}; Sffmtlidie Werlu
(vol. 2), 1950, p. 64. 176, :}86 ("Polemikgegen dcn "'Mifsínnígen Chlaáenir1s"-polêmka contra
m HERDBR. Auch eine Philosophie der Ge1chkhte 2.ur Bildung der Menuhheit (1774). Jn: o sagn Ch~dcr.ius); Siimt/{die Wuke {vol, 3), p. 311,382.
Sãmtlidze Werke (vol. 5). l89l, p. 589. O Pietismo foi um movimento religioso inkhdo no sêculo XVII, que pretendia fazer wm
m M?S~EIM, Joha1m Lorenz v, Gesúifrhte drr Kfrthe1we,bme111 11g fm sul,uJmtw Jali1h1wdat. "Reforma da Refonm.", ao contrapor-se à O(todoxia reformiHa e 305 s.;us excesso.. insütu~ion!'lis,
Leipzig, 1773, p. 4 [edicado por Johann A\lgmt Christoph von EinemJ. recuperando a import~nci~ d3 mbjetiv!cbde e da Vh'Í!ncia p,essoal da religioiid:i.<le. A "Teologia
feder.11" entendia a "Hllt6ria como a Cô!l(retiz.'\çioda graç-a" divina, Históriaqut1 trJn;:correl1a em
m [VOG1~ NikoJam). An.u{ge, wlt wfr die Cmhflh/e bekamfeltt, benutzm mui d,wtdlm werâm,
Maim:, 1783, p. 19. cinco fase~, a começar na criaç;io narrada no Vdho Test~menro, de forma que a "Hirtóri-a div{nase
trm1form.1ria cm um dram~ conuentido unitirio".JACOB, P. Fõdenltheologie. ln: Oir Rrllglon in
l!.S \VEGEUN,Jakob. Bri{(~ llber rfrn Wet1fi du Ge1chil/1le, Berlin, 1783, p. 24,
Gefffifrltte und G~rnw,irt (RGGJ. Tübi11gen:J, C. n. Mohr{Paul Siebeck), 1957, (OI, 1520 [N. T.).

124 125
A COWJGUalJ.ÇÃO 00 MOOf.iWO cct.u:r.o V. H1s16~•A

da palavra foi levada avante. A efetividade da História recebe con- Hcomo se não fosse a cronologia que deve guiar-se pela História,
sagração própria através da encarnação de Cristo.2" Wizenmann mas, ·inversamente> a r•1·1stona
, . pe1a cronologia
. ""'
.
escr~ve: _"Finalmente, chegou a hora em que se começa a tratar Com isso, Kant definita que a História é mais que a soma
a H1st~'.·ia de Jesus não só como um livro com sentenças para a temporal de dados individuais> que, em última instância, se ali-
dogmauca, mas como alta História da humanidade. [...]. Gostaria uharn num tempo natural. A revelação de un1 tempo genuina1nente
de confirmar muito mais a Filosofia a partir da História do que histórico no conceito de História coincidiu com a experiência da
a História a partir da Filosofia". Um único fato novo conseguiria "Era Moderna". Desde então, os historiadores estão obrigados a
derrubar sistemas inteiros. "História é a fonte da qual deve ema- verificar relações que não se orientam mais pela sucessão natural
nar tudo". 29" de gerações de soberanos, pelas órbitas das estrelas ou pela mística
O que caracterizou o novo conceito de uma "J--Iistória como figural do simbolismo numérico dos cristãos. A História funda sua
tal" [Geschichte tlherhaupt] foi sua capacidade de abrir mão do re- própria cronologia.
curso a Deus. Paralelamente, ocorreu a revelação de um tempo Já em 1767, Gatterer falava de "sistemas de acontecimentos",
que é peculiar à História. Ele abarca - como destaca Chladenius, pretendendo, com isso, descrever o resultado para o qual o, novo
11
em orosi?ão ao linguajar usual - todas as três dimensões tempo- conceito de História ainda não se havia institucionalizado: E ver-
rais: Coisas futuras fazem parte do historiar. [...]. Pois, mesmo dade que sistemas de acontecimentos possuem seu próprio percurso
que o conhecimento do futuro, em oposição ao conhecimento do temporal, mas ele não se orienta pela divisão civil do tempo". 298
passado, seja muito limitado e breve, mesmo assim tenios várias Através de reflexões como aquela a respeito do tempo histórico,
perspectivas de perscrutar o futuro, não só através da revelação, o conceito de História incorporou o conteúdo complexo de reali-
mas també111 da astronmnia e dos assuntos civis", bem como da dade que acabou garantindo à "própria História" [Gesc/1ic/1te selbst]
l( t "d' u UE .
ar e me 1ca . por isso, na doutrina racional da História, uma pretensão de verdade especial. A desclassificação aristotélica da
esse conceito deve ser tomado de forma tão ampla que inclua 0 Historie, que lhe atribuíra uma simples adição de fatos cronológicos,
295
futuro". E, em contraposição à expectativa cristã essa História foi, assim, abandonada. 299 Com isso, através da constituição de u1n
adquire, em Chladenius, um horizonte fundame~talmente ili- conceito, se abrira um novo espaço de experiência, que marcaria o
mitado, "pois a História em si e diante de si [Geschichte an ,md vor , período seguinte. Para resumir, vamos citar três critérios.
sichJ não tem fim", 296 A História no coletivo singular definiu as condições para as
Kant, mais tarde, polemiza de forma aberta contra a "fé mes- possíveis Histórias individuais. Todas as Histórias individuais passa-
siânica na História", a qual pretenderia interpretar e delimitar 0 ram, desde então, a se localizar numa relação complexa, cujo efeito
trans~urs~ dos acontecimentos segundo urna ordo tempomm, con10 é peculiar e autônomo. 11Acima das Histórias está a História" - assim
o tena feito Bengel, na sua interpretação do apocalipse de João: Droysen resumiu, em 18 58 1 o novo mundo v1v1 . 'do da H'1stona.
, . ,oo
Esse mundo da experiência tinha sua pretensão imanente de
verdade. Aquilo que interessava não era mais o antigo topos que
m A re.1pcito do então novo conceito de Tt1tsnd1t ou fato cf. STAATS R j h D
1 1 · h' , . , , e n an. er
t 1eo ogiegesc 1c 11thch11 H1r1tergnmd d~s Bcg:riflS ''T~t,ache". Zti1uliriftfitr Tht / f d K' J
n. 70, 1973, p . .316 e segs. o og e 1111 1u ie,
m WIZEMANN , Th onus, D'1e Gut111d11ejem· :m KANT. Der Streit der F~kuhiten (1798). ln: Ak,-.d'cmie-A11.1gi1be (vol. 7), 1907, p. 62; KANT,
nad, dem M'1llhilusa/s Selbstbewâs lfnu Zm,c,lassigJ.eit
beti,uhtct. Leipzig, 1789, p. 67, 55 (editado por Johattn Fricdrkh Kleuker), Amhropologie (1798). ln: ih/d,, p. 195.

m CHLADENIUS, A!lgemtirne Cmhfrbtswimnuheft ... , p. 15, m Gatterer, Vom histodschen Plan-. (cf. nota 223), p. 81,
Jbíd,, p. 147.
?l~ M AR1STOTELES, l'oelik, 1451 b.
m DROYSEN, Historik (cf. nou 236), p. 35~.

126
127
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·. 1
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A CO~fmAAÇÃO 00 :::;
Ó COtK[ífO Pê H,STó.lA __

costumava ser passado adiante, no sentido de que História só poderia


escrever aquele que a tivesse visto ou participado dela. História,
pelo contrário, se transformou, agora, no espaço de vivência pro-
priamente dito, e ele, por sua vez, permite fázer juízos históricos,
"A respeito de História ningttém pode julgar a não ser ~quele que
vivenciou História e1n si mesmo", constatou Goethe. 301
Finalmente, para caracterizar a autorreferenciação da His- Desde a germanização da palavra latina "historia", no·s~·c·~i§.:):
tória a si n1esma, como últitna instância, se recorrera à expressão Xlll, 3"' "Geschicht(e)" e "Historie" tinham mantido signifitÍídô.s :e
"História como tal" (Geschichte überhaupt), e a algumas fórmulas claramente distintos, como já acontece em Conrado de Megen-
correspondentes. Mas, dentro de pouco tempo, o sentido pretendido berg: " ... aquilo que as Hístoríen dizem, isso são os escritos das
se incorporou na simples palavra "História". Essa História como geschichte11 nos países e nos tempos". 305 Em 1542 Burkart fa~ u".1a
sujeito de si n1esm,a se transforrnou num !lgens autoativo, de forma rima: "quando tais Geschichten tiveram lugar, / como em Histor,en
que Hegel, mais tarde, pôde falar do "trabalho da História". 302 se pode observar". 3 º6 O campo objetivo" dos acontecimentos e d_a
11

Nas décadas das simplificações e das singularizações, quando, ação bem como o conhecitnento usubjetivo", a narrativa, ou - ma1s
a partir das liberdades, surgiu "a liberdade", e das revoh;ções surgiu tarde - a ciência a respeito, puderam, até o século XVIII, ser de-
ua revolução", a História subordinou a si as histórias individuais. signados com terminologia separada. Assim, lê-se no prefácio a un;i
", , .,. . d Hºf' 'H307E
Esse é o conceito que na economia linguística histórico-política dicionário geográfico de 1705: H,storre ou c1enc1a a is ona .
dos.alemães parece ocupar aquele lugar que "revolução" ocupa no evidente que essa contraposição raramente foi observ~da com_ tanto
francês. A "História" já aparece como conceito antes da Revolução rígor quanto em definições. O significado de urna influenciava o
Francesa, os contextos revolucionários transformarão aquilo que era da outra, ainda que com intensidade variável.
surpreendentemente único nessa nova História numa proposição A sobreposição dos dois campos semânticos pode ser constata-
axiomática de vida. da nos vocabulários do século XV: "historia" é traduzida por "um
b) A fusão de "Historie" e "Geschíchte [História]", A História, acontecitnento, uma coisa que aconteceu, geschíclrt) um discurso
308
cuja ampliação de sentido foi explicitada até aqui, não foi apenas escrito que conta como aconteceu " e "/11s· tone· (/iist ory'"
1 • Tanto
um novo conceito de realidade, mas também um novo conceito de "coisa acontecida" quanto 11 /iistorie" constam como "historia'\ que
reflexão. Depois de 1780, Herder pôde empregar o coletivo singular é definida como "res Jactd' e como "relato de uma história sobre
para os dois níveis, numa mesma frase: "O fato é o fundamento de
tudo aquilo que é divino na religião, e esta só pode ser apresentada na
História, a religião n1esma precisa se tornar constantemente História n1 R.UPP, Fleittz; KÕHLER, O~br. Historfa-Gesdüclne. Sawdum, n. 2, 1951, P· 63~.
JJl$ MEGENBERG Konrad von. B,uh iler Ndhll (cerca de 1350) {ediudo por Frati-Z Pfe1ffer, _em
viva. A História constitui, portanto, o fundamento da Bíblia". 303 Ago- Stmtgm, 1861; ~cimpresso em Hil<lesheirn, 1971), p. :ss. "s~n~ die"historien s1gent, <laz smd
ra se pretende comprovar aquilo que as citações até então apresentadas die geschriít von den geschich,en in den landen und m den zetten ,
m WALDIS, Dmkart. Strtitgedidil (1542) (.:ditado p-or F1ie<lrkh KQ!dewey em Halle, 1883, P·
33), "Wan ~okh geschichte ~ein geschehen, / Wie in histor[en ist zus~hen''.·
m Citado por GEIGER, Dai Wort "Gmhlclue"... , p. 15 corn plural típico, amd:1 qne também
l'.' 1 GOETHE. Maximen uud R.eflexionen, 11. 217. ln: Hnmbi,rgu Arugabt (vol. 12), 1953, p, 395,
com~ nova forma plural "Gescbichten".
m H.EGEL, Di,! Vmmn)i ... (cf. nota 236), p. 182. )'.él DIEFENBACH Lou:nz, Gfomu/um l./1/ÚJO•Úmmwl,mn mldi11-r ~/ hifimçe 11etM/J. Fu.nkfort,
Y,) HBRDER, lltiefe das Stu<lium derTheologie bet.reffend (1780•85), [n: Sam1/rd1e Wnke {vol, 1857, P· 279. "e;I\ geichehel\, eyn ding dz geschen ht, geschicht, eii~ gescriben red der getad
10), 1879, p. 257 e seg. A respeito, cf. STAATS, Der iheologiegeschichtliche Hinkrgrund
ases gescach" e "hhtorie (hiitory)".
dei Begrifl'.~ "T:i.tsachen", p. 327.

129
128
O CON(UO o: Hm6W.

uma coisa acontecida'\ tudo ao tnesmo tempo. 309 Essa expansão coisas acontecidas". 311 Uma versão que tivesse em vista a relação
da "Historie" para os próprios acontecimentos ou seu transcurso se dos objetos em si - con10 aparece uma vez ern Leibniz - foi extre-
mantém ininterrupta, no nível dos dicionários. 310 E1n contraposição, 1namente rara: " ... que nenhum eleitor e príncipe faça mais entre o
na bibliografia histórka, começa a se impor, por afinidade com a público, e, portanto, participa mais da História Universal [Universal
língua latina culta, a definição que tem sua origem em Cícero: "A Histon] dessa época que o eleitor de Brandenburgo". 312
Historie- diz Hederich, em 1711 - é uma narrativa verdadeira de Enquanto ''Historie" se tnantevc rclativa1nente imune a tun.t
contaminação por parte de ºGescJiíchte", a transferência do signi-
ficado de HHistorieH para "Geschichtl' se realizou de forma muito
mais rápida e profunda. Lutero já utiliza "Geschícl,t(e)" em ambos
;oi V0<ab11/d1im11 i,uipiens Teuto11iwm óllft Lr1timun (Nümbi:rg, 1482), p. 47'. 62'; V,uabufariusgw1ma
gtmm~mm {Strauburg:o, 1508), p. 58"; DASYPODIUS, Pctrus. Dfrtionari11111 Latí1111.Gtrmdulw111 os sentidos de "acontecimento" e Hnarrativl\ em certa oportu-
{latim/a.\emào) (Smssburgo, 1536; reimpre1~0 t'm Hildesheint, 1974), p. 93'. "ein g:c1chicht- nidade, até nunia mesma frase: "Mas a Hist6ría do rei Davi, as
erzelung eirter geschehenen sach".
m Voarbul<1Ti1u indpims Twtonirnm d/1/c Liitim1111, p. 47': "Cmhdrw d/11,g. Msloriri.. m1dt hisf,:i1fogr.1plmJ.
primeiras e as últimas, veja que estão escritas entre as Histórias
ei11 súirdbudtrgmhltht"; ibid., p. 62<; "Historie. liiJto,i.1. v11{({llf•'&mlic/u11 tfütg'~ Votab11!ariusgtm1wt de Samuel".'" Josua Maaler registrou, em 1561, para "Geschíchte":
gwm1,1mm, p. 58': "Hislôrla t!t m foaa: â11 gt1<hd1en ding Mu lu's10,y. His/01fog1aplms est un"ptor "narrativa ordenada e explicação de coisas verdadeiras, fundamen-
hisforiau1m: e/11 l,is101íç11 ulu}'l'll"; DASYPODIUS, Dlafo11:1ri11111, p. 93': "Híscorií!, fii11 gml1itllfl
er::ef,mg tf11ergesclielumn sad1. Hi'sto,io,,, el Historlogmplrns, el11gud1frhtsch1dber"; cf. ibld., p. 3': •~cta, tais e acontecidas'', e, ao lado: ºHistórias e ações. Acta". 314 Nos
Hd1tdlr111gtnlguú1id11m"; ibid., p. 67': "Facti1111, Eit1guchM1t oda Jh1t1"; ibid., a.lcmão-latim, p. 3.32': títulos dos livros do século XVII, são utilizadas, com frequência,
"Gudtthtn. Fitti. ordcmlit!1 Gtsd1ith1/da nllt11mb!1rndgm1tldtl 1wrdrn. Historld Gt.stlifd1tb11d1 arifljã1lirbe
lwjfloder u/11j:irb11di. A,mafu''; cí. ibid., p. 437': "Th,Mtlgmfiid11. Factom"; SCHÕPPBR,Jacob. formas duplas, como: "Historie e/ou Geschichte de ... " 315 , com que
Sy11011irna. Dmtmund, 1550 (rdmpres.são cdit.-..d.i. por Karl Schu!te-Kemminghauscn, Dortmund, se pretendia expressar a distinção, mas ao mesmo tempo também
1927), p. 29; "D,is 1st I Mamhulq .gallmigm Dwtsdzu 1W1/ulso lm Gmnd ei11ufeyhtdw1m1s haben";
"Fadmn: Th!l! / gesd1/w1/ hriwfe/"; MAALER, 1561 (cf. nota 314); FRíSIUS,Johannes. Diaionririrnn já a convergência de contexto de acontecin1entos con1 narrativa.
Latlttogumaniaim (editado em Zurique, l574), p. 630: "1-{/Jtorfo. E/11 l1/J1ory / füu gmhid,t / Eí11 No final, não foi a expressão 11 Historie 1\ 1nas sitn "Geschichtc" que
oufen{idie erztNUllJ J/1/d trkliimug uuarlUJ.ff/tr / g1u1rdtlidm 111m gud1iid1nu díngtn"; MENISCH, O eorg.
Teutsch<: Sprach und Wcissheit. ln: Thes,wws ll1Jguae ti f(lpfenfiae Ctnnn11i((1e (vol. 1), Aug1burg,
fundiu os dois campos semânticos. O famoso título do livro de
1616, p. 1530 e seg. 1534: "Gcuhehm / sid1 z11 ltagtll / btgtbm I beg.:gnm I fiai, m:11irt, Mrlne, itlddm, Johann Joachim Winckelmann Geschichte der Kunst des Alter/ums
a«fdtre, conlingut, vwirt, ewnirt.1l.1J1,gui, con.fore. Du.(/11,1//1111111) Gt1ú1idz1 / ~gmliid11/ tvuiit, auidit.
[História da arte da Antiguidade], de 1764, reduziu ambos os sig-
Gruhliht / t111nt1is, a(/a, ac/um, gestum, Jii5torilf. Cmhtlun dillg / gtsta, rts <1Uae, ™gulae. Gmhfd1t /
tsgmhltht I ,uddit, ,ontingil. Slthegmluhw. Ceu/dd1t / (dlt) hi1!o1fo. Gacldtl,t I tinu llum wuf l,u$m nificados a um denominador tão comum'" que não se consegue
I rtCl11J h11ji1s attus. Du.(í1•rttimn) Gmhi'dit I 1/iat / dUd, guM l1r'sto1ia .... GtHhfrhl(n 111rd Hamifiwgtu I mais derivar da palavra se o destaque recai sobre o objeto narrado
dlM''; OHUEZ, Nathanad(Ed.). DidfoMireffd1lfól1-1tllem1111d-lall11. lcydcn, 1642, p. 149: "Gmhfrht
I Tirar I Aae, Gts!d, fuaa. Hlstori I fliltoiu, Hlsrorla, Hfston·e, El11·GtMhí,hl / 1111d Geuhit!itbu(/1 / ou sobre a representação. Desde meados do século, o título "Ges-
H(uo,ia"; Diufonllitt Fra11roi's,alle1m111d-/afi11 (1675), p. 617: "lu'itoíte, narft, â11e Er:a!JT1111gl Gudifrlrt chiclite11 vai expulsando, gradativamente uHistoríl' das capas dos
I Hútorfa, ftd/'/11/if.), ewmalfo. Hútoirt dlguü, par s11fflt d'amdes, Ei11 Gtsd1id1tbnd1 lla!J~ 0 1dmmg du
Zdt tingakhttl I GeJ/drum rmm, annalu. hi1todu, Jum·te, Beuhuibrn / ln timr Cmhfrht n,j,,u.w /
Dmribm"; STIELER. (1691), p. 1746: "Gmhfcht / dit I J,:aum, hist01LI, aam11, rc.sgulaf. Gmhlchl
rntltfm I '111torlam 11amiu, (M11nem0Mre, Gmhid11e sdneíbt11 I wibut ,es gulas. 11101mmmta faacmm
311
HEOBRICH, Ilenj~min. Anldtung zu dm fiime/1111stfn hfslotirchen WisswufJo1jJtt1, 2 1 ed,,
compoiurt"; POMEY, Le Gro11d l)i(J.ionaire Royal (1715) (t. 1), p, 485: "Hi11cfu, l1<1u lri5toda, llífu Wittonberg, 1711, p. 186.
11arr.11fo, tfot Gtuhid,1 I CeM~!chts•Erziihfung"; ibid. (t. 2), p. 144: "HWoriiJ, /iütoirr1 rappo11 dts dims m LEIBNIZ. ln: KLOPP, Arno (Ed.). W.:-1k.c (l' série, vol. 10). Hmnover, 1877, p. 33.
v~1ltablu, eiue Hütorit, tine iruh,hef/lgt Er;:tihru11ggacluhwtr Dí11ge"; ibicl. (t. 3), p. 129: "Gtsd1lcht m LUTHER, 1. Chr<.mlk 30; 29 {Zerlmer H;ind~çhdft, 1523; contagem moderna: 29, 29J, fn:
I Tat I aac, Mtloire,guta,fart,1"; STEINBACH, Chrl>toph .Ernst, Vollstii"ndigu Dwmhu W61Ur• Weimdre, Awgabc', Deutsçhe Dibel (vol. 1), 1906, p. 281 e 'leg. "Die gmMcl11 abu du konigu
BH(h (vol. 2). Ilred.2u, 1734; rcimpre.1.10 em Hilde5lieim, 1973, p. 395: "GtS(hichte (dte)fa@m, m D1111id btyd.c d/e w1t11 1md lttl!:U11 $lhe d/e $l11d gcufrriebe11 w,ru dm gmlrid1trn Srwwd".
gwa, lii;toria"; PRISCH, De111td,.fald11isllus WMnburh (vol. 2), 1741, p. 176: "Sdiidir, Gmhfr/1tl, m MAA.LER, 1561, 195 b. "Blu Qrdt11/ir/1e Erzelfrmg rmd ttkli111mg wr1~1hafler, gmrultlidu:r mid
1st wr,1.fttt, 1md Gmhid11e 1"011 gm.hcl1en, gebltebrn (•• ,) far111111, húton'rJ, sielze H/Jtotit"; ib!J., p. 168: gesdtiic/rnudfogm"; "Gmliid11en und lrnudfougt11. Attd''.
"&l"hen, Gt;duhrn,fieri, tvl/1/rt, acddm"; lbfd. (vol. 1), p. 456: "Hiwm·e, l'ó//l l,1túhful1m hfitoria, Jil Cf. GEIGER, Das Worl "Gmhlcl11e"... , p. 14.
Geid1ilfit.Bmlruibimg cder Erz:.fhhmg dwm, inu bel et1ws nôtíg is1 ••• Eiut. Historie 1w1 awas sdmib,11, m \Y/{NCKELMANN, J. J. Geschkhte <ler Kunn des A!tertunu. ln: EISELEIN,Joseph (EJ.),
hislo,iac aliquid ma,zdau tints Dings Hist~rfe uhreibm, Mston'am uribert, m gutas uribue". Siimtlidie Wttkt (vol. 3). Donaurn:hingen, 1825.

130 131
livros hist6ricosl 17 ; os poucos títulos com 11 Historie 11 correspondein historii', 321 Puffendorf, provavelmente, foi o prin1eiro que, em
numericamente àqueles com o plural l<Geschicliten". 318 1682, chamou de ciência o conhecimento críticamente verificado
\Vinckelmann explicou o conceito, que ele entendia como das Histórias a serem ensinadas. "A Historie (seria) a ciência mais
novo, apontando em especial para as intenções sist~rnáticas que graciosa e útil". 322
estariam por trás dele: "A História da arte da Antiguidade que eu Esse significado aparentemente passou sem constrangimento
resolvi escrever não constitui um simples relato da sequência de para ua História". Pomey, em 1715, ainda precisou traduzir HHisto-
tempo das transformações da mesma, pois eu adoto a palavra His- ria" por "GescMc/1ts"Beschreib11ng [descrição da História]", ao registrar
tória em seu sentido mais amplo, sentido que ela possui na língua os topoi ciceronianos: "A descrição da História é um testemunho do
grega, e minha intenção é apresentar uma estrutura doutrinária tempo, uma luz da verdade, uma mestra da vida, e uma narradora
[Lel11geba11de]". 319 de todas as coisas que aconteceram antes de n6s". 323 O tradutor
Com isso, Winckelmann citara a segunda fonte de que se Rollins, em 1748, já pôde colocar ali o coletivo singular alemão:
alimentava o moderno coletivo singular. O fato de imaginar uma "A Geschid1te [História) é, com justiça, a testemunha do tempo".'"
"História" que fosse além da narrativa de transformações represen- Desde então, se tornou difícil distinguir entre a "verdadeiraº
tava criatividade teórica. Ela fazia com que a realidade da História História e a História ativamente refletida. Frederico, o Grande,
desembocasse num <'Lehrgebãude", numa Hestrutura doutrinária", ainda ficou desnorteado quando o bibliotecário Johann Erich Biester
sem a qual a história dos acontecimentos nem poderia ser reco- lhe disse que "se dedicava preferencialmente à Gescl1ichte [História]".
nhecida. Somente através da reflexão sobre as histórias individuais O rei perguntou "se isso significava a mesma coisa que Historie, pois
é que "a História" poderia ser desvendada. não conhecia a palavra alemã". Ele terá conhecido a palavra, mas
Naquilo que tange à História dos vocábulos, a "Historie" deu não seu sentido reflexivo contido no novo coletivo singular."' Em
sua contribuição, tal qual ela, desde o Humanismo, foi pensada 1777 já se diz de forma bem natural que [selin pretendeu "estudar
e definida, nos muitos manuais sobre arte e metodologia escritos a História' 1 e tornar-se "professor de História 11. 326
por historiadores. A "Historie" como doutrina ou como disciplina Em 1775 Adelung, finalmente, registrou a vitória da "Histó-
científica, desde sempre, pôde ser utilizada de forma reflexiva e ria". A expressão possuiria três significados equivalentes, que não
sem objeto. A partir de Cícero, o conhecimento reunido sobre se perdermn, desde então: 11
1. Aquilo que aconteceu, uma coisa
as histórias individuais fora subsumido, coletivamente, no termo acontecida ... 2. A narrativa de tal História ou de episódios acon-
Hftistoría' 1: "Historia ,nagistra vitae' 1.320 Quero citar uin comprovante tecidos; a Historie ... 3. O conhecimento dos episódios acontecidos,
historicamente importante das inúmeras variantes que destacam a o estudo da História [Geschichtsku11de], sem plural. A História é a
função pedagógica dessa l,istoria: "Porro - disse Melanchton - non mais confiável n1estra da 1noral" - como dirá ao explicar o último
alia pars /iterarum plns 11111 voluptatis aut 11tilitatis adfert stndiosis, qnam
~li Mefonchton, em caria a Christ0ph Sblberg de 1526, ln: Corpus reformMomm {vol. l), 1834, p. 837.

m l 1UfENDORF, S:"lm\lel. Efllfrilung zu der Hí~loritdu Vcmehmstfn Rdtheund Stnat~11. Fnnkfmt,


lll Cf. HEINSIOS, Wilhelm. Allgmreínes Bfidm-Le:i:im1 oder~-of/st~mlWl> A{p!Mbcfiu/us VerzeiclwiJ$ 1682, p. 1' {Vorrede).
cfer t•o11 1700/Jis ;:-um Endt 1810wd1/c,1e,m1 Bíither (2 \'oh.). 2. ed., Leip:dg, 1812, p. 82 eseg;.,
m POMEY, ú Gwrd Dfrlio11aire Roytil (t. l), 1715, p. 485.
391 e ~eg.
m KAISER, Christian Goulob. lndex {r)mpletissi1m1S libr,mmJ. Vollstãudige1 Büd1er-L.exikon, m ROLLIN, ChJrle5. HisNrie itllu Ztilen und Vdf,ku(vol. 12). Dmden/Ldpiig, 1748, p. 221.
1:nthaltend Jlle von 1750 bh w Ende de-sjahres 1832 in Deutschlandundln dcn angre11zc11den m BÔTTIGER, Hoftat. Erinnemng,m andas liter.1rische Berli.n im August 1796. ln: EJ3ERT,
L1illdun g:edrucktcn llücher (\·ol. 2). Leipzig, 1834, p. 355 e seg,s., 368; (vol. 3) 1835, p. 155. Fdedrkh Adolph. Obe,Uefuw1gw znr Gmhidite, Llttrafti, 1111d K11m1 áa V,n- imd ,\fitwtlt {\'oi.
fü WINCKELMANN, Gmliiclrte der K11111t ... , p. 9 {Vorrede). 2/l). Dre$den, 1827, p. 42.
J!(l Cf, l<OSELLECK, Hhtoria maghtra vit:i.e (cf. nota 224), p. 196 e segs, m ISEUN, 1saak (Ed.). flphenwi.-ltn dtr Mt,ischhdt (11' parte). 1177, p. 122 e seg., not~.

132 133
o CCNWfO w Hsrói:tA A CONl':GUAAÇ].O 00 MOl>.:.t".NO CON(UTO DE Hisró:w.

ponto. No breve verbete sobre ''a História", aparecem as mesmas mediante sua elaboração por meio da narrativa histórica. 329 Uma
11
definições, e Adelung acrescenta: Para todos esses sentidos, pode- coisa re1nete a outra,-e vice-versa. Ou co1no, n1ais tarde, Droysen
se utilizar agora - ao menos numa escrita elegante - a palavra. ligou a forma de ser da História à consciência sobre ela: "O co-
alemã Geschichte", 327 nhecimento a seu respeito é ela mesma":13 º
Claro, seria possível interpretar essa constataçiio - que Ade- Com isso, o novo conceito de realidade e o novo conceito de
lung certamente também registrou por razões linguístico-políticas reflexão se haviam sobreposto. No campo teórico-científico, essa
- de forma puramente onomasiológica, no sentido de que o espaço convergência levou a inúmeras imprecisões e dúvidas. Niebuhr - e
semântico de uma palavra ("Historie") simplesmente foi assumido n1uitos outros, depois dele - procuraram diferenciar novan1ente
por outra palavra ("Geschicl,te"). Mas a história vocabular mos- a utilização das palavras."' O fracasso desses esforços indica que
trou que tais convergências foran1 possíveis e corriqueiras, desde . a "Históriaº co1no conceito social e político cumpriu [uma tare-
o final da Idade Média. Também não é decisivo que "Historie" fa] menor ou maior, em todo caso, [uma tarefa] diferente: ele se
agora podia ser usada, sem restrições, no sentido de "Gescl1icllte 1 ,., transformou num conceito abrangente> supracíentífico, que pie-
coisa que a Deutsche Encyclopedie [Enciclopédia alemã] - apesar cisa incluir a experiência moderna de uma História autônoma na
de eruditas diferenciações - confirma. 328 O que é decisivo é que, reflexão dos seies humanos que a Iealizam ou são produto dela.
no último terço do século XVIII, foi transposto um patamar. Os
três níveis (situação objetiva, a representação dela, e a ciência 2. "A História" como Filosofia da História
a respeito) foram reunidos nun1 único conceito: ''Geschícl1te".
Levando-se em consideração o emprego das palavras na época, A inlportâ.ncia que teve o fato de a nova. realidade da "História
trata-se da fusão do novo conceito de realidade expresso ern como tal" [Geschichte iiberhaupt] ter conseguido evoluir para o
"História como tal" (Geschichte überhaupt], com as reflexões que status de un1 conceito através da reflexão está indicada pelo surgi-
ensinam a entender essa realidade. Numa formulação talvez um mento da palavra paralela "Filosofia da Hist6ria". O desvendamento
pouco exagerada, pode-se dizer que "Geschichte" foi um tipo de da "História como tal" coincidiu com o surgimento da Filosofia
categoria transcendental que visava às condições de possibilidade da História. Quem utiliza a nova "expressão: Filosofia da História"
de Geschichten/Histórias. - escreveu Koster, em 1790, na Deutsclie Encyclopiidie'" [Enciclo- ·
Quando Hegel escreveu: -'Geschichte reúne, e1n nossa língua, pédia Alemã] - só deveria "estar atento para o fato de que ela não
tanto o lado objetivo quanto o subjetivo, e significa tanto a histo- constitui nenhuma ciência propriamente dita e especial, con10 se
riam re11-111t gestarum quanto as pr6prias res gestas", não considerou poderia ser facilmente levado a acreditar, ao primeiro contato com
essa constatação como uma 11casualidade externa". As uações e os essa expressão. Pois, mesmo que grande parte da Historie ou toda
aconte.cünentos propriamente históricos", que se localizam além do uma ciência histórica sejam tratadas assim, não é outra coisa do
espaço pré-histórico de acontecimentos naturais, só terian1 surgido que Historie em si mesma".Já a escrita pragmática da Hist6ria, que
tiraria conclusões de experiências próprias e alheias, mereceria esse
nome, da mesma forma que a "crítica histórica", que ensinaria a
m ADELUNG (vol. 2), 1775, p. 600 e ~cg., 1210 e scg.
m KÕSTER, Hcinrich Martin. Ve,bcte "Gcschichtc". Jn: Drnt~d,e Emy<lopilrllt {vol. 12), 1787,
p. 67; KÕSTBR, Hdnrich Mar1in, V~rbcte 11 Philornphie/Phi!osophic der Historie". ln: ibid,
m HEGEL, Die Vcwmifi ... (cC nota 236), p, 164.
{vai. 15), 1799, p. 649. Além dis10, d. o excurso histórico~vocabu.b.r de HERTZBERG,
Gum.v. Verbete ''Geschichte". ln: ERSCH/GRUBER (11 seção) (vol. 62}, 1856, p. 343, nota :13) DROYSEN, HúMri'k (d, nota 236), p. 3-31; aJlim diuo: ibld., p. 325,-357.
2, o qual ,e refere a Wilhelm Wach1muth (Eulttm,f dner Theodt d~, Cmhid1re. Halle, 1820, p. ;ii Çf. nota 361.
2 e segs.), cuja.1 distin.Çliei reaparecem, neste texto, daqui p;ira frente. m KÔSTER, Verbete ''Historie'', p. 666.

134 135
distinguir verdade de plausibilidade, podendo, por isso, ser chamada a verdade nua significa narrar os eventos que aconteceram: sbn} ·
de "lógica da Geschíchte [História] ou teoria da Historie". Com o qualquer maquiagem" ~ é como Gottsched confirma essa tarefa··
registro linguístico, K0ster resumiu a nova constatação. dos historiadores.'" '·
Foi graças à Filosofia iluminista que a Historie como ciência se Contra a indiferença teórico-epistemológica contida nessas·
separou da Retórica e da Filosofia moral, e se livrou da Teologia frases, a outra posição recorria a Aristóteles.'" Aristóteles desvalori~
e da Jurisprudência, a quem estivera subordinada. zara Historie frente à poesia, porque ela se orientaria exclusivamente
Não úa óbvio que a Historie, que, até então, lidara com o in- pelo transcurso do ten1po, no qual rnuita coisa acontecer~a ao acas~.
dividual, com o peculiar e com o casual, tivesse capacidade para ser Ela relataria "aquilo que aconteceu", enquanto a poesia relataria
"Filosofia". Enquanto os métodos histórico-filológicos e as ciências "aquilo que poderia acontecer". A poesia visaria ao possível e ao
auxiliares já se haviam independizado desde o Humanismo, a His- geral, motivo pelo qual seria mais "filosófican e mais uimportante"
torie s6 se tornou uma ciência própria, quando ~ na "História como que a Historie. Lessing - o aristotélico do séc~lo ~Vlll - expressou
tal" - conquistou um novo espaço de experiência. Desde então, sua opinião da seguinte maneira: ºVerdades h1st6ncas casuais nunca
• • ,, • Jl337 t'
ela também pôde definir publicamente o "campo de seu objeto". podetn transformar-se em verdades :tac1ona1s necessanas I mo 1vo
A configuração da Filosofia da História indica esse processo. Três pelo qual "a plausibilidade interna" da poesia teda muito mais peso
,,. . ... ,, 133sAo
etapas levaram até ele: a reflexão estética, a moralização das Histórias que a verdade histonca, que, muitas vezes, e questtonave : ,, .
e a formulação de hipóteses, que tentava superar urna interpretação contrário do historiador, "o poeta [é] ... senhor sobre a Historia;
• u339
teológica da Hist6ria através do recurso a un1a História unaturat>'. e ele pode aproximar os acontecimentos tanto quanto queira. -
a) A reflexão estética. No contexto do surgimento da Filoso- como Lessing o expressa de forma mais moderna. Em funçao de
fia da História, Historik e Literatura sofreram uma nova ordenação suas reservas aristotélicas contra o conhecitnento histórico, não
recíproca, cuja relação constituía tema antigo, sempre retomado, admira que Lessing, ali onde, em 1784, aparecia como filósofo da
desde o Humanismo. De forma esquemática, a relação entre His- História - em sua Erzieh,mg des Mensc/:engesc/,/echts [Educação do
torie e produção literiiria pode ser caracterizada por duas posições gênero humano]-, acabou abrindo mão da expressão "Geschichte"
extremas, que pennitcm construir uma escalada gradativa) para [História]. Isso mostra - da perspectiva negativa - q~ão vagaros~-
agregá-las.'" mente O novo termo "Geschiclzte'\ impregnado pela Filosofia, havia
Ou se classifica o conteúdo de verdade da Historie em nível conseguido impor-se.
mais elevado que a produção literária, pois quem se dedica às res
factae precisaria mostrar a verdade) enquanto as res fictae levarfrun
m GOTTSCHED, Jobrnn Ch-dnoph. Vewuh eine, Critú!hi:11 Dichl/.:t111Jt. 3. Aufl., Leipzi~,
à mentira. Historiadores que defendiam essa posição gostavam de 1742, p. 354; cf. W!NTBRLJNG, Fritz. Dr,s Bi/d du Cmllidiu it1 Dwua ti~td Dtmnenth~"m
recorrer à metáfora do espelho, que circulava desde Luciano, para c.,wduds imd Bo.1mm. frJnkfurt, 1955, p. 15 (tese de doutorado). A respeito de tudo isso,
definir sua tarefa de descrever a "verdade nua". A 1-/istorie mostraria cf. REICHARDT, Rolf. Hislorik 1111d P,;,tll.~ iu der de11tsd1rn 1111J fr,mzõsiJditn A1ifklii11wg.
Heidelberg, 1966 (mouogufü de cuTSo); l'I respe.ito da metifora da verd1dc nua dentr~ de su~s
uma "nudité si noble et si majesteuse", escreveu Fénelon, em 1714, de transformações hlstóticl.S! BLUMENBER.G, Ham. Paradigmen einer Metaphorologie. Artltw
forma que não necessitaria de qualquer enfeite poético.'" "Dizer für Dtg.,iffigmhfrl,te, n. 6, 1960, p. 47 e segs.
m ARISTOTELES, Poetlk, 1451 b; 1459 a.
m LESSING. Oberden Beweis tles Geim:s \lnd <ler Kuft (1777), Jn: Silmtli(he Stlniftm (vol, 13),
m HEITMANN, Khus. Das v~rhliltnis \'On Dicht1.1ng m1d Ges-chichtsschreib11ng in Jltere.r 1897, p. 5,
Theorie. Ardifvfilr Kirftllfgmflidite, n, 52, 1970, p. 244 e segs. m LESSING. Abhandlungen überdie Fabd (1757). ln: Simtliche Schriften (vol, 7), 1891, l>· 446.
"
1
FÉNELON, Fr,mçois de. Lettre J. M, Dader sur les occupations de l'Ac1demle. ln: Otmws m LESSING. Briefe, die nt1ueste Literatur betreffend, Nr. 63. ln: S!imtlidu Sdr1iftu1 (voL 8), 1892,
,omp(~ta (t. 6). Paris, 1850, p. 639. p. 168.

136 137
A CC,'\fJG'J~ÇÂO 00 MODE~.NO COêKEHO OE H<SíÓHI.,

O fato de a História da Filosofia ter-se tornado viável não se História [Geschic/ite selbst], e em que me d 1.dá e1a e' pomve
' l ou nao
" ""'
.
deveu, de forma alguma, à vitória de un1 ou de outro desses dois Com isso, a Historie havia galgado um patamar, no âmbito da hie-
campos, aqui apresentados de maneira esquematica1nente reduzida. rarquização aristotélica, que a aproxim.ava da poesia. Não se per-
Nen1 os representantes da ''verdade nua", isto é, os defensores da guntava pela realidade, mas, em primeiro lugar, pelas condições de
"própria História" [Geschichte selbst), conseguiram se impor, nem sua possibilidade. Mas a Poesia tinha a mesma obrigação. Uma vez
os defensores da Poesia - considerada superior-, que submetiam submetida a uma exigência racional comum, também sua utilidade
sua representação às regras de uma possibilidade imanente, o con- podia ser definida em comum: "Le but principal de l'Histoire, aussi
seguiram. Pelo contrário, a1nbos os catnpos fizera1n uma fusão, na bien que de la poésie, doit !tre d'enseigner la pmdence et la vertu par des
qual a Historie se aproveitou da verdade mais geral da Poesia, de exemples, et puís de monster /e vice d'une nzaniere quí em donne de /'aver-
sua plausibilidade interna, enquanto, inversamente, a Poesia tentou sion, et qui prole ou serve à l'eviter''. 344
incorporar cada vez mais as exigências da realidade histórica. O No âmbito da produção literária, foi a nova categoria do
resultado acaba sendo sinalizado pela Filosofia da História. romance bmguês que agora se achava submetida ao postulado da
Bodin - ao contrário de Bacon - havia valorizado significa- fidelidade histórica aos fatos. Como em dois vasos comunicantes,
tivamente a Historie. Sem suas sagradas leis ("sacra historiae /eges"), Historie e romance foram mutuamente adaptados. A credibilidade e
ninguém se acharia na vida, e mesmo a filosofia fracassaria se1n os a capacidade de convenchnento do romance cresciam na medída en1
dicta,facta, consilia históricos: graças a ela, seria possível preparar-se que ele se aproximava de tuna Historie verdadeira". Representativa
11

para o futuro."º Seria exatamente o reino da probabilidade que - desse processo, ao qual aparentemente correspondeu mna expecta-
ao contrário da verdade matemática ou religiosa - caracterizaria tiva dos leitores no sentido de apresentar uma correspondência COln
a Hlstorie humana, e seria justam.ente de suas incertezas e de suas a realidade, é a mudança rápida de títulos, na primeira metade do
trapalhadas que os philosophútorici obteriam seus conhecimentos.341 século XVIII.'" Para satisfazer à presunção de realismo, o romance
1
É dessa modéstia que derivava, no longo prazo, o ganho, francês costumava ser chamado de "Hístoire" ou 'mémoires". A ten-
pois, no confronto seguinte cmn a crítica cartesiana e pirronista da tativa de Charles Sorel em manter a antiga divisão entre romance
incerteza e da inconfiabilidade das afirmações históricas, se abriu e Historie não conseguiu impor-se: "II ne faut ass se persuader que
aquele campo das "verités de Jaits" cujo oposto - em acordo com q11elque roman q1Je ce soit puisse jamais valoir 11ne vraie histoíre, ni que
346
Leibniz - podia ser pensado, caja factibilidade, no entanto, só podia l'on doive approuver q11e l'histoire tienne em que/que sorte du roman".
ser cientificamente investigada segundo graus de probabilidade."' Com o entrecruzamento de Poética e Historík, foi liberado
"Ainda que, na Historie, não se consiga chegar a uma certeza o novo e complexo conceito de Gcscl,ichte/História, o qual esta-
perfeita" - assim Zedler resume, em 1735, a vitória contra o pirro- beleceu uma religação da verdade superior de filosofia e poesia
nismo -, "a probabilidade, que também é um tipo de verdade, está com a facticidade histórica. Dessa forma, Diderot recorreu às
ali". Quem quiser avaliar uma Historie deve perguntar pela "própria
m ZEDLBR. Verbete "Historie'' (vol. 13}, 1735, p. 283.
rn fiODIN.Me1hodus ad facilemcognhlonemhistorim1m (1572). In: MESNARD, Pierre (Ed,), 1u LEIBNIZ. Thcodlzee, § 148. Jn: Pli/!oNp/Jfuhe Schrifirn (vol, 6), p. 198.
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J-4t lbid,, 114 e seg. 138 b. A mpeitoda hbt6riacorm:itu;il d:i plausibilidade, cf.BLUMENJ)ERO, 1939, introdução (tcJc de douto mio): a em: mpdtQ: PURET, FrançQh (Ed,). Livre ti icâül
Pandigmen ... , p. 88 e seg$, dam la F1r1nct 1/11 XVlll' sildt. Parü/J)eo Haag, 1970.
.m LEIBNIZ. Monadologie, § 33. Jn: GERHAR01~ C,J. (Ed.), í'hil01ophiulu. Srliri/ten (vai. 6). Ju. SOREL, Ch:trles. De b connaimnce de bons livre~ ou Ex:unen de plusieun auiheurs (167_1).

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Discouu de ml:taphysique. In: Phill.lsophúdir Scl1r(jten (voJ, 4), 1880, p. 427 e seg~. du toi;nan :.u 17' siedc (1. l). PGris, 1921, p. 69.

138 139
A CONF:GIJU.ÇÃO 00 MO!lHNO (ON{OTO D~ H;s16;:tA

categori~s aristotélicas do verdadeiro, do provável e do possível Portanto, muito antes que historiadores migrassem do título
par~ realizar a comparação entre II histofre" e upoésie", "I!art poétique u_Hístoríeu para ccGeschichte", os poetas já haviatn passado a utilizar
sera// donc bien avancé, si /e traité de la certitt,de historique étaít fait", 3 47 0 título mais atraente, que prometia um conteúdo de realidade su-
E seu Éloge de Richardson [Elogio a Richardson], de 1762, mostra perior. Em 1741 Bodmer reivindicou que o contexto narrado fosse
como, na mão de Diderot, o conceito de História é Íibertado de vinculado a coisas conhecidas. ºCom isso, a poesia e o romance vão
suas ~eias aristotélicas. A Historie, muitas vezes, estaria repleta de adquirindo gradativamente a dignidade da Hislorfr,_a qual _c,onsiste
mentiras, mostrando apenas recortes e episódios temporalmente no mais alto e no mais extremo grau de probabilidade; Ja que a
limitados - ainda se pode ler, em sentido convencional. Algo di- louvada verdade histórica não é outra coisa que probabilidade, que é
ferente aconteceria com o romance de Richardson, que trataria comprovada através de testemunhos comcl · 'd entes e uru'fi1cadores"'"
.
da sociedade e de seus costumes, e sua verdade abrangeria todos Enquanto a arte do romance foi se compr~metend~ com
os espaços e todos os tempos do gênero humano, "j'oserai dire que a realidade histórica, a Hislo..ie, inversamente, foi submetida ao
souvent l'hístoire est tm mauvais roman; et que le roman comme tu /'as mandamento poetol6gico de criar unidades de sentido. Passou-se
Jait, est une bonne histoife''. 348
a exigir-lhe uma maior arte de representação, em vez de narrar
Na Alemanha ocorreu uma valorização parecida. Em 1664, séries cronológicas, ela' deveria desvendar motivos secretos, e tent~r
Johann Wilheln1 von Stubenberg cunhou a expressão Geschichl- descobrir uma ordem interna em meio aos acontecimentos casuais.
Gedichl [História-Poesia] para o romance, a fim de caracterizar sua Dessa forma, através de um tipo de osmose recíproca, a1nbas as
religação com a verdade. Como dizia, os irmãos Scudéry tratariam, cateuorias levaram à descoberta de uma realidade histórica a que
em sua CWie, de "histórias todas acreditadas como verdadeiras em
si e para si mesmas [vor ,md an sich selbst], / para as quais, porém,
só s: poderia chegar através ~a reflexão. Em 1714, F~,nelon_ h~via
formulado, diante da Academia, o segurnte programa: La prmetpale
inventam e acrescentam acasos / possíveis, / prováveis, / razoáveis, pe,fection d',me /,istoii, consiste dans l'ordre e dans l'arrangement .. P~«r
/ que lhes dão oportunidade e razão / para apresentar suas doutrinas parvenir à ce bel ordre, l'historiw doit embmsser et poséder tonte son /11:101:e;
de moral e virtudelJ. Birken, em sua Poética, ainda acrescentou a i/ doit /a voir 1011 1entiere comme d',me seu/e v11e... Ilfant en montrer l ,m11é,
expressão Poesia-História [Gedicht-Gesc/1ich1],' 49 a fim de distinguir et lirer, pour aimi dire, d'nne senle sonrce tons les principa'.,x é~énemns
11
a epopeia do romance. Desde então, 0s limites da criação poética qui en dependenl". Com isso, o leitor teria proveito e divertimento
e [da criação] provável [aparecem] ... como os limites do mundo
ao 1nesmo tempo. 353
historicamente imaginável".''° E desde mais ou menos 1700, a Somente através do trabalho subjetivo do historiador, feito a
expressão "Geschichte" deslocou o r01nancen, e ainda mais a "His-
11

partir de um ponto de vista, desvenda-se a L~nida~e da Hist,ória,


torie", dos títulos dos rmnances alemães. ss1
que, a partir de então, seria cada_ ve~ mais ev1denc1~da na propria
realidade histórica. Que1n contnbum para concretizar essa tarefa
m DIDBROT, Deui.s. De b poésie dr;1mMique (1758). 111: ASSÉZAT, J. (ed.). Otiwm (r)mpUtu foi a perspectiva teológica de uma História _U'.1h,ersal vivenciada
(t, 7). Paris, 1875, p. 335, tf. p. 327 e seg.
3 pelos ctistios. Bossuet insistia que todas as Histonas estavam rnter-
ª DIDEJ';OT, Denis. Êloge de Ricardson (1761). (n: Ot11nu (e. 5), 1875, p. 221, cf. p. 215, 218.
m SCUDERY, M~deleim: ti Georges de. Clelio: Eine rOlnischc Geschkhte (vol. 1), Nürnberg, relacionadas, de forma que se poderia apreender "comme d',m co11p
1664 (Zu1chdfr), _(versão alemii de Johann Wilhelm Freiherr von Studenbcrger), citado por
VOSSKAMP, W1lhclm. Roma111!reorie ,'11 De11tschla11d. Von Martin Opit2 bis Frtedrich von
Blanckcnburs:. Stutts:azt, 1973, p, 11 e seg,, onde também se encontram an~lisei maiJ detalhadas. m llODMER, Joh:-.nn Jacob. C,i/isâre Betr~tl11rmgtt1 abtr d/e PQttisdien ?emllld( du Dfrliter. Mit
m VOSSKAMP, Rom,mtlrecrie, .. , p. 1.3.
einer Vonede von Joh:mnJacob Dreitinger. Zurique, l741, p. 548, CHàdo pôr VOSSKAMP,
J!I SINGER, Herbert. Du dwruhe R\11111111 z.wisdirn Br1tMck 1md Rokcko. Coltmfa/Graz, 1963 R.am,rntlirark.... p. 156.
(Bibliogral'hie), p. 182 e segs,
m FÊNELON, Leure à M. Dacier... (cf, not~ 334), p. 639.

140 141
O CCtsarro CE H!STOOA

r:h:
'I
d'ceil, tout l'ordre des temps". 11 La vraie science de l'histoire est de remar~
encontra justificado através de todo o conjunto interconectado da
11
História>'. A intervenção teórica prévia, o nexus rerwn imiversalis",
,1 quer dans diaque temps ces secretes dispositions qui ont prépraré /es grands
chargeme11ts, et les cotifonctures importantes qui les ont fiu't aniver'?54 é confirmado pela própria História. "Pois, nenhum acontecimento
Leibniz já recorria à muito discutida metáfora do romance no mundo é, por assim dizer, insular. Tudo interdepende, é reci-
l·Ii para descrever a unidade interna da melhor História possível dos rocamente 1notivado, produz-se mutuamente, é desencadeado, é
P . d ,, J5(,
I: homens: "Ce roman de la vie h11111aíne, quefaít l'hístoíre universelle du gerado e mot1vado 1 e gera e novo . ,,, , .
! genere hwnaín, s'est trouvé tout invente dans {'entendement divín avec une Assim, a partir do desafio para uma representaçao pragmat1-
itifinité d1autres'1. Mas Deus decidiu concretizar smnente a sequência cisava levar em conta o efeito e a utilidade da Historie,
ca.~ e Pre . .
efetiva dos acontecimentos C(cette suite d'evenemens"), pois eles se surgiu a necessidade de ta1nbém enxergar un1 s1ste1na interno no
inserem de modo perfeito em tudo o mais."' contexto de eventos pragmáticos, E merece menção o fato de que
Em que medida evidentemente a certeza teológica da provi- à primeira Philosophie der Historie [Filosofia d: Historie] escrita na
dência divina recuou para garantir a unidade da História, em termos Alemanha foi atestado - supostamente pelo proprio Gatterer - que
científicos) isso se pode verificar no caso de Gatterer, quandoj em uela não contém nada de novo". 357 K0ster, seu autor, entendia por
1767, falava do "plano histórico" e da "decorrente unificação das Filosofia da Historie, isto é, d_a História, tan'.o as regr~s da re~r.esentação
narrativas". Gatteret se envolveu, de maneira consciente, na discus- quanto da pesquisa, e ap!tcou o wnce1to tambem ao ,.51stema da
são poetológica para fundamentar a tarefa unificadora da Historie, Historie-Univet~al", que se poderia chamar também de Ontologia
que se via desafiada pelo caos de fontes teimosas. A Historie, que ou doutrina básica da História, e à qual não se pode negar o título
358
até então se encontrava na sombra da arte poética, ºenxerga agora, de Filosofia da História".
entre nós, uma carreira aberta pelos poetas". Tudo dependeria do Kilster apenas reuniu as intenções de um Chladenius, um
plano e das categorias através das quais a História deve ser conhecida Iselin, um Gatterer ou de um Schlôzer em tun conceito comum,
e representada. A forma mais "natural" de proceder seria aquela que eles próprios ainda não haviam utilizado. , . . , .
na qual "os acontecimentos são alinhados de forma sistêmica ... O plano do autor e a unidade interna que a propr,a H'.stona
Acontecünentos que não fazem parte do sistetna ... , por assin1 registrava foram se sobrepondo, aos poucos, enquanto parec'.am se
dizer, não são acontecimentos, para o historiador,,. Somente com estimular reciprocamente. Nesse sentido,Justus Moser sugenu, em
sua intervenção sistematizadora prévia, as relações pragmáticas são 1768 que se attibuísse ao império alemão desde 1495, "o movimen-
desvendadas. Se o historiador é "filósofo - e isso ele precisa ser, se to e ~ poder da epopeia''. Ao seu "plano" de uelevarn a Hist6tia à
quer manter-se pragmático-, então ele estabelece máximas gerais, "unidade" correspondeu consequentemente "uma con1pleta Historie
de como os acontecimentos costmnain ocorrer". Ele reflete sobre do império, que pode consistir única e exclusivamente na História
as condições da História possível, e, com isso, o plano histórico é ·.c. ,,, "d · , · 359
natural de uma un111caçao o 1mpeno.
revinculado à própria História. A transição é gradativa: o historia-
dor fundamenta, compara) atenta para o caráter e as motivações, ºe
ousa derivar daí um sistema de acontecimentos, uma força propul- m GATTERER, Vom historischfü Plan ... (cí. nota 223), p. 21, 16, 82 e segs.
m GATTERER, Rezenlion H. M. G. Kõstcr, úbu dit P/11/osophrc der Historie (Giemn, 1775).
sorau, que ele ou confinna através de fontes contemporâneas "ou
Histo,iul1e; Jcum.1.l, n. 6, l776, p. 165.
m KôSTER, Übu dle Phllosopl1i~ ... , p. 54, 50, 73 e segi,
~-1 MÔSER, Jumis, Osnalntickiiche Geschichrn (1763). ln: S,imtllclte Wcrlu (vo.l. 12/1), ~964,
m .BOSSUET. DIHou,; mr l'histohe 111,frwt//t (1681}. P;iris, 1966, p. 40, 354 (editado porJacque$
Trnchet), p. J<I; MÔSER, Ju.slus. Vorschlag zu einem nirnen Plan det deum:hcn Re1chsgesch1ch1e.
Pmiotische Phant;nien. ln: Siimtlld1e Werk.e (vol. 7), 1951\, P· 132 e seg.
);J. LEIBNIZ. Thcodizec, § 149. ln: Phifo1ophiu/1e Sdtr(ften (vol. 6), p. 198.

142 143
O ca-..ano ct H:srôlv.. À CO.'-íl'W?AÇÃO 00 N.COf&.'O CONCU!O N HISlói'. 1A

A ruptura filosófica que indicou o caminho foi feita por A profundidade com que essa virada transcendental entrelaçara
Kant, quando vinculou a questão da relação da História com as tarefas da representação con1 a interconexão dos acontecimentos
sua adequada representação à tarefa moral, com que historiador em uma unidade da História fica clara numa reflexão de Niebuhr,
e História esta.riam iguahnente co1uprometidos. Cmn sua ideia 11
de 1829, quando justificou o anúncio de suas preleções a respeito da
de uma História mundial [We/tgeschiclite) qne possui como que "História da era da revolução". Ele não pretenderia falar "exclusi-
um fio condutor a priori", ele não queria dispensar o trabalho vamente da revolução", 1nas ela constituiria 110 centro dos últimos
empírico dos historiadores. Mas Kant promoveu um avanço na 40 anos; é ela que confere a unidade épica ao todo", motivo pelo
discussão sobre uma representação adequada, na medida em que qual ele a tomada como ponto de partida. Evidentemente a pró-
11
vinculou a realidade histórica às condições transcendentais de pria revolução constituiria apenas '\1m produto do tempo sobre
seu conhecimento. Em tom de aprovação, cito Hume, segundo 0 qual pretenderia falar. "Mas falta-nos uma palavra para o tempo
o qual a primeira página de Tucídides seria "o único início de em geral, e, diante dessa ausência, permito-tne chamá-lo de erà
toda História verdadeirall. da revolução". 361
P◊l'
outro lado, Kant se pronunciava contra a metáfora de A revolução como que criou a unidade a ser exposta, épica, da
que se pudesse construir a História teleologicamente, con10 mn História, mas por trás dela está o tempo em geral, o tema genuíno
romance. O estabelecimento de uma unidade teleológica é muito da História moderna, a qual, na revolução, foi subsumida no seu
menos uma tarefa estética que moral. ('No conjunto, pode-se en- primeiro conceito, todo ele derivado da experiência.
xergar a História da categoria humana como a concretizaçao de Finalmente, Humboldt - em confronto com Schiller- dissol-
um plano não revelado da natureza", desde que, na prática, se age, veu a antiga disputa entre His(orik e Literatura, ao tentar derivar os
"através de nossa constituição racional", no sentido de "apressar" parâmetros de sua representação da "História como tal" [Geschichte
o futuro que se reivindica. Isso tem consequências para a forma da iiberha11pt] (1821). "Com a nua separação daquilo que realmente
representação. Ao transportar - como reivindicara Schli:izer - "o aconteceu ainda não se chegou ao esqueleto do acontecimento. O
agregado não planificado de ações humanas" para um "sistema" da que se consegue com isso é a base necessária da História, a subs-
Hist6ria, crescem as chances de concretizar esse sistema. É aí que tância para a mesma, mas não a própria História" [Geschic/zte selbst).
se localiza a fundamenwção histórico-filosófica de toda História. Para chegar à própria História [Gesclzichte selbst], haveria neces-
"Uma tentativa filosófica de abordar a História mundial [We/tges- sidade, por um lado, da "investigação critica do acontecimento",
chidzte) geral segundo um plano da natureza que tenha por objetivo isto é, da pesquisa histórico-filosófica, por outro lado, da fantasia
a unificação civil perfeita no gênero humano deve ser vista como produtiva, que vincula o historiador ao poeta. Só então se poderia
possível, e mesmo digna de ser promovida a favor das intenções da desenvolver aquele conceito de "realidade" que, "independente-
natureza". Assim, o projeto filosófico de constituir a História gera mente de sua aparente casualidade, está condicionada por uma
efeitos sobre a História real. O planejamento humano exige mais necessidade interna". Graças a esse reconhecimento, a matéria do
que o plano estético: ele se funde na intenção moral prática com acontecimento adquiriria aquela forma geral que a estruturava
o plano secreto da natureza. 36º como História. "O historiador digno desse nome precisa apresentar
qualquer episódio como parte de um todo, ou - o que significa o
lt~ KANT. Jdee zu dner allgemeinenGeschichtein weltbi."irgerlkher Ahsicht (1784), § 8" e 9º. ln:
Akadtmíe-Aiu.~d~e (vol. 8), 1912, p. 30, 29 (notas 27, 29), A n:speico da metáfora do rom:ince,
cf. KANT, Mutinmlicher Anfang der Memchengeschichte (1786). In: l1kademie-A1ugabt m NIBBUHR, Barthold Georg, Grnliir/1/l des Zeitaltm da Rtl'olut/on (vol. 1). Hambmgo,
(vol. 8), p, 109. 1845, p. 41.

144 145
0 CONtaro OE HJSTó;'IA A COW1GU~.AÇÁO DO N.OOC~NO corKOTO O!: HIS!Ó>'JA

mes1no - representar em cada un1 a História como tal" [Geschíchte século XVIII, o ônus da prova para a moralidade foi transferido
t1berha11ptJ. Nessa medida, Humboldt parece continuar seguindo as para a própria História.
regras de mna Poética que fornece os critérios formais de uma repre- Os historiadores debatia1n, de fo:rrna animada, se deverian1
sentação material. Mas, baseado em Kant e em Herder, Humboldt permitir que seu juízo fluísse para dentro da narrativa, ou se deve-
dá o passo decisivo em frente, ao atribuir a relação originalmente riam deixar que a pr6pria História falasse. Nesse sentido, Hat1sen
ínvisível de todos os acontecitnentos a enig1náticas "forças atuantes escreveu) por exe1nplo, que o historiador "fonnado de acordo com
e criadoras", que vão configurando a História, dando-lhe a forma as regras de Luciano" deveria use esconder». 364 ''A História possui
que ela tem, O que interessaria, portanto, não seria apenas "tra- sua própria forma de falar", já dizia Mosheim, em 1748, motivo
zer à tona a forma" que ordena "os labirintica1nente entrelaçados pelo qual o historiador deveria ºpintar, mas pintar sen1 cores". 35s
acontecimentos da História n1undial", mas sim ºdescolar essa forma Pois - cotno acrescentava lvloser, em 1768 -, "na Hist6da, como
deles próprios". Isso não representada nenhuma contradição, pois a numa pintura, só (deveriam) falar os atos ... Impressão, apreciação
História con10 uma interconexão. dinâmica e co1no conheciinento '
e juízo devem ser espec1ficos de ca da espectad" ·~
or .366 U ma P(?Stçao
teria uma base comum, "já que tudo aquilo que age na História retórica preferida dos historiadores - exatamente para obter um
mundial [~Ve/tgeschichteJ, também se movimenta dentro do interior efeito exemplar - era a de fazer com que a História falasse por si
do homem", 362 mesma, uma posição que se mantivera desde Luciano.
. A de:enninaç~o transcendental da História como uma catego- Do outro lado, por causa do Iluminismo, foi se fortalecen-
ria da reahdade e, simultaneamente, da reflexão, aparece aqui como do decisivamente aquele campo que exigia do historiador um
resultado de um longo processo envolvendo Literatura e Historik posicionamento enfático a favor da verdade, em especial pelo
no qual, ao fina!, a Estética foi absorvida pela Filosofia da História'. ensinamento mora] da História. A antiga versão de que medo ou
Agora era possível que Schaller, em 1838, nos Hal/ische Jahr- esperança diante do julgamento histórico possui efeito regulador
biicher, pudesse constatar, de forma lacônica: "A História como sobre o comportamento do mundo posterior já fora aceita no
representação daquilo que aconteceu, na sua perfeição, é, necessa- Humanismo, por Bodin, por exemplo. 367 A fórmula de Vipcrano,
rian1ente, ta1nbém Filosofia da História)!, JV3 segundo a qual o historiador deve ser um" bom,s judex et i11corrupt11s
b) Da moralização à processualização da História. A ta- censoi'''", foi tanto mais aceita quanto durante o século XVIII o
~efa poetológica atribuída à Historie exigira a apresentação de uma mundo posterior foi guindado à condição de fórum da justiça, em
interconexão com sentido. Essa interconexão foi atribuída, con10 substituição ao Juízo Final. O historiador, "por assim dizer, está
responsabilidade, à "própria História" [Geschichte selbst], graças a sobre os tCunulos e chama os mortos'\ sen1 atentar para títulos ou
reflexões histórico-filosóficas, com que ela seria comprovável nela séquitos, ele os contempla, "aqui com indiferença, lá com olhar
mesma. A velha tarefa moral da Historie de, através de juízos, não
só ensinar, mas também melhorar, sofreu uma mudança parecida. HAUSEN, Frcye .Beunhcilung: ilber die \Vahl, iibcr die Verbindung, und Einklejdung
JH"

Se originalmente a submissão de uma História real a normas mo- der hí1tods~hen Begebenheiten, uvd Verglekhung der neucn Gcschkhtsschrcibcr mit dM
rais era coisa do historiador, como guardião filosófico, ao final do rOmischen. In: Vtrmí;;hte St1hrifl~t1 (cf. nota 279), p. 10,
m MOSJ-lBIM, J. L. v. Verrnrh âncr 1111p.1ttl1eliul;M 1111d gtii11dlidm1 Kttzugmhidlfe. 2. Aufl,,
Gôuingen, 1748, p. 42 e se(l.!.
m MÕSER, Osnabrückische Gmhichte, Vom:de. ln: Sii.mtlic/1e Wetkc (vol. 12/1), p. 33.
m HUMBOLD'f, Über die Aufgabe des Geschichmchteibm {cf. nota 153}, p. 36, 40 e5eg. 47. m DODIN, Methadus, .. (cf. nota 340), 112 b f.
m ~CHA_LLER,J~llui, Ha/llufrefdh1biidru, n. 81, 1838, p. 641 (Rezen~ion \'0n i-:legels Vorlesungen v~, VJPERANO, Giovanni Antonio. De mibrnila /rfs/1i1ia fi6c,. Antwerpen, 1569; KESSLER,
ub~.r d1e Gm:h,chte der Philoiophie),
Tlieorttikcr... (cf. nota 179), p, 65.

146 147
0 CONC11TO D€ Hi5100A À (ONf;<;UJ>AÇÃO 00 MODfN'/0 CC>t-.'C{ITO ~ t--i;sró;tA

de juiz". % 9 Assim, até os soberanos, que sempre tentam se esquivar joim de la prosperité et du bonher". 375 A sentença histórica se transfor-
da verdade, poderiam, graças à Historie, aprender a julgar-se com n1ou ern expectativa histórica de sua execução. Não mais apenas
antecedência. Uma força 1noralizante saía dela, a Historie constituía a História individual contava como exernplo, rnas toda a História
- nas palavras de D'Alembert - um "tribunal integre et terrible". 370 Os foi processualizada, pois se passou a lhe reivindicar uma tarefa de
senhores governantes, de for1na alguma, ficariam itup~nes 1 como criar Direito e de administrar Direito, Quando Herder editou
registra em tom de elogio o tradutor de Bacon; a História é seu có- suas Ideen zur Philosophíe der Geschichte der Menschheit [Ideias sobre a
digo penal."' E é nisso que consistia sua aplicação "filosoficamente" Filosofia da História da humanidade], partiu do princípio de que,
pensada: "A História efetivamente apõe o carimbo da imortalidade como na natureza, também na História 11vigoram leis naturais que
aos atos bonitos 1 e cobre os vícios com uma marcação em brasa 1 estão na essência da coisi'. Uma dessas Hregras" dizia: "O abuso se
que séculos não conseguem apagar. Se a História, portanto, é es- punirá a si mesn10, e a desordem, com o tempo, sin1plesmente se
tudada de forma adequada, ela representa uma Filosofia, que causa transformará em orde1n, através da incansável dedicação de uma
uma impressão tanto maior em nós quanto mais ela falar através de razão crescente". 376 A moral da História foi temporalizada em
exemplos vivos". 372 A Historie que ensina pelo exemplo,já no século direção à História como processo. O hemistiquio de Schiller, do
XVII, foi definida como Filosofia: "C11t11 ergo Historia nihil ali11d sit, ano de 1784, se espalhou rapidamente: "Die Weltgeschichte ist das
quam Philosop/iia exemplis utens" - como havia escrito Morhof. 37 ' E Weltgericl,t" [A História mundial é o tribunal do mundo]. 317 Abrir
a versão adotada por Bolinbroke, de que a Historie seria a Filosofia mão de uma justiça c,~as compensações só se fazem no além levou
que ensina através de exemplos, foi muito citada; ao historiador à sua tempomlização. A História Me et mmc adquiria um caráter
moralizante se agregara, além disso, uma função judicial filosófica. incontornável: "Aquilo que a gente excluiu do minuto, / nenhuma
''.Justiça histórica é a capacidade de chegar a conclusões válidas a eternidade devolve'\
partir da verdade histórica que deriva de fatos":' 14 Em 1822 Humboldt pôde constatar que "o Direito [garante sua
Ultrapassou-se um patamar decisivo em direção à Era Mo- existência e validade] ao longo do caminho inexorável dos aconte-
derna quando a tradicional função judiciál'ia da Historie, com sua cimentos que, perpetuamente, vão se julgando e penalizando". 378
concepção do coletivo singular, pôde ser transferida para a "História Con1 isso, formulou em termos teóricos aquilo que se transformara
como tal" [Geschichte aberhaupt]. Uma fórmula que representou a em legitimação histórico-filosófica geral da ação política, quando,
transição foi utilizada por Robespiene, quando, em 1792, se dirigiu por exemplo, se invocava o "Direito da História mundial" [Welt-
à posteridade: "Postérité naissantc, c'est à toi de cro/te et d'amener les geschicl,te], que certamente estaria de seu lado."' Ou quando Ernst
Moritz Arndt exclamou: "Aqueles que querem levar o Estado para
trás são loucos ou moleques. Esse foi o julgamento da longa História,
½, ADBT, Briefe, d[e 1H:uc-ste Litter,iturbetreffend, 10, 1761, p. 221,161 (carta).
m D'ALEBER..T, Diuouts prlliminai,e de /'Eu(ycfopfllie (!751). H,1rnburgo, 1955, p. 62 (editado por
Erich Kõhler).
m R.obcJpiem:, em di.curso no Clube Jacobino ~obre a que:nfo da guerra, em 11 de novembro
m Em. é a fornmlaçio do conde sueco Tessin; citldo por BACON, Franch, Ober die Wiirde 1111d
den Forlg,wg de, Wluemdwftw. Pest, 1783; reimpreiw em Darnut~<lt, 1966, .196 (nota} (venão de 1792. In: BOULOISEAU, Mnc; LEfEBVRE, George>; SODOUL, Albert (Ed\,}, Otuvm
ale1113 de Joh~nn Hc1mat1n Pfingsten). (t. 8). Puis, 1953, p. 115.
m HALLE (vol. 1), !779, p. 52L m HBRDBR. !Jeen zur Philosopbie der Geschichte der Menschheit (1784/87). ln: Sãmtlfrhe
m MORHOF, Dwiel Georg. Pol}'lii!/()1 /itrr,1,ius, philorop/dws cl praaim1 (t. 1). 2. AuA., Liilm;k, Wuke (,·oi. 14), 1909, p. 244, 249.
1714, p. 218 (editado por Johmn Moller) [1. Aufl.: 1688}; cf, BOLJNGBROKE, Henry St. m SCHILLER. R.csignaticn. Iti: Siik1dar-Awg11bi (vol. 1), 1. d., p. 199.
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V1,1lbglück 1 {1795), p. 307. 1848. Hlllt, 1937, p. 193.

148 149
A CONf:GUl/,ÇÀO 00 MOOíP.NO <ONCEIIO Pt HISló.~:A
Ó CC\'.'(f,'TO W Hs16~A

para citar um dos inúm~ros exemplos-, I;itler a pôde _í~vo~ ar'. e1n
· e esse julgamento fornece um dos poucos ensinamentos do passado 1
1924, quando se defendia contra a acusaçao de alta tra,çao: Amda
que deveríamos aproveitar".'" E em 1820, Politz confirmou que a
II que nos declarem culpados mil vezes, a deusa do eterno tribunal
História, desde 1789, forneceu a frutífer,1.u comprovação para "a
palavra de conteúdo denso" de Schiller.'" da História rasgará sorridente o pedido do promotor e a sentença
Vivenciar a História como urn tribunal poderia àliviar o his- ' e1a nos abso1ve " .384
do trt'buna1; po1s
toriador da formulação subjetiva de seu juízo. Por isso, Hegel se e) Da formulação racional de hipóteses à razão da His-
defendeu, de consciência tranquila, contra a acusação da "presun- tória. O desafio poetológico frente ao plano histórico levou à
ção de ter-se comportado como juiz do mundoº, ao desenvolver unidade interna, ao "sistema" da História. O postulado por uma
a História como processo. Os acontecimentos da História geral moral da História levou à justiça do processo histórico. Para os
do mundo representavam para Hegel a "dialética dos espíritos contemporâneos, ambas as respostas foram resultado de reflexões
particulares dos povos, o tribunal do mundo". 382 Na transição da filosóficas sobre a Historie. A expressão em si (" la philosophíe de
formulação de um juízo moral, por parte dos historiadores, para o /'histoire") vinha de Voltaire, que, em 1765, publicara - sob o
processo como História mundial (I,Ve/tgeschichte], se firmara a visão pseudônimo de Abbé Bazin - um escrito com esse título, que logo
filosófica da História do Iluminismo em direção à Filosofia da teve várias edições e reimpressões. 33 s. Três anos depois, surgiu, en1

História da Era Moderna. tradução de JohannJacob Herder, para o alemão, Díe Philosophíe
Quando, mais tarde, a Escola Histórica se opôs a essa in- der Geschichte [A filosofia da História].'" O desafio contido no
terpretação1 não conseguiu mais anular os rastros da experiência desdobramento do novo conceito foi resumido pelo editor alemão
então vivida. O topos acompanha, desde então, a História Moderna na seguinte observação: ele não lembraria "de nenhum livro em
- seja de forma crítica, seja de forma ideológica -, pois ele indica que se encontrariam tantas objeções à fé histórica na Sagrada Es-
pata a unicidade e a direção das vivências modernas, que vão se critura quanto na Filosofia da História". 387 E, em notas de rodapé
superando de forma constante. Em 1841, \Vilheln1 Schulz escreveu que eram mais extensas que o próprio texto de Voltaire, procurou
no Brockha11s der Gegenwart (Brockhaus da atualidade]'": "À ação refutar os ataques à Bíblia, à História da criação e à te histórica
unilateral seguiu imediatamente o castigo da História mundial na providência. A ICFilosofia da história'\ de fato, no início, foi .
[I,Veltgeschichte] como tribunal do mundo, no qual, para a Restau- um conceito polêmico - se voltava criticamente contra a fé nas
ração, o desmedido salto para o passado se transformou num salto Escrituras, e metafisicatnente contra a providência divina, que,
morta/e, da mesma forma que, para a Revolução, se tornara o salto segundo a interpretação teológica, criava a conexão in.terna da
para o futuro". História. Voltaire se encontrava na esteira de Sitnon, Sp1noza ou
Também como palavra de ordem, e destituído de qualquer de Bayle, dos pinonistas e racionalistas, retomando os desafios
significado hegeliano, a metáfora do tribunal se alimenta da pressu- apresentados por estes contra a Teologia.
posição de uma justiça que se realiza através da História. Por isso - só

n• Adolff-lil!cr, n-a pal:wu final ant~1 àa leitura da sentença, em 24 de matço de 1924. ln: Det
™ ARNDT, Ernst Moritz. Dtr Bamrml.tnd- piilithc/1 bttrad1ut. Berlim, 1810, p. 113. HMu-l'mmi vllr dem flá/Jugtridit /ri Mfhrdun (parte 2), Munique, 1924, p. 91.
111
PÔLlTZ, K;1.d Heinrich Ludwig. Die Wd1gmhicf1Uflir gtblld,u [m1 mid S1r1dfm11de (vol. 4}. m DAZ[N, Abbê ("" Voltaire). La philoso_phie de l'JJi.;toirt (Amsterdam, \765). Genebu, 1963
3' 1:d., Leipzig, 1920, p. 1.
(editado por J. H. Drumfüt).
m HEGEL. Eu:qklopililie du phifoscphisrlim Wimmd111f1tn im Gm11d1is1e (3. Aull., 1830). Hambur_go,
m Die PM/owphie du Cmhidlfe dej msto,beuw Hu,11 Abtu B,iún, Leipzig, 1768 (versio alemã de
1959, p. 24, 246 (Vorworc e§ 548) (editado por Priedhelm Njcolin e Oito POggder),
m SCMULZ, W. Verbete .,Zeitgeist", ln: (Enciclopédia) B,c<klwu, ConveHatiom-lexicon der Jph. Jacob Hw:ler),
Gegenwart (vol. 4/2), 1841, p. 462. m [{,id., Vorbericht.

150 151
A CONFIGVAAÇÀO DO MOOUNO CON<'.MO Ol HISfÓê:IA

No .mesmo ato, a Historie se via provocada. Pois, se o plano da História, quando Iselin - um ano antes do escrito de Voltaire -
divino deixava de existir, a Historie se via obrigada a desenvolver editou, em 1764, suas Philosophische lvíutmassunge11 iiber die Gechichte
interconexões, que - caso existissen1 - deveriam derivar da própria der Menschheit [Conjecturações filosóficas a respeito da História
História. "La phi/osophie de /'histoire est fondé sur les 111odifications et da humanidade). 391 E quando lselin tentou explicar a História
l'ordre sucessif des faits mfmes" - como formulou Wegelin, quando, humana, de forma progressiva, a partir de motivações internas,
nos anos de 1770 a 1776, apresentou sua Philosophie de /'h/stoire à ad1nitiu) de forma sincera: "As revoluções que descrevemos neste
Academia de Berlim. 388 Tratava-se de conseguir interptetar de livro constituem 1 no entanto, muito mais hipóteses filosóficas que
forma filosoficamente consistente a multiplicidade e a sucessão verdades históricasª,.192
de realidades históricas, eliminando o acaso e os milagres, através Independentemente de a providência divina ou um plano na-
de fundamentações racionais. Para cumprir essa tarefa, a Historie tural continuarem a agir nos bastidores, foi a coragem de formular
se serviu cada vez mais de hipóteses, que possibilitavam superar hipóteses que permitiu a elaboração filosófica de uma nova História.
lacunas no conhecimento dos fatos e tirar conclusões sobre o des- Os historiadores e filósofos morais escoceses, que haviam escrito
conhecido a partir do conhecido. Importava - como disse Wegelin, as histórias universais [U11íversalgesc/iic/,1en] sobre a surgimento do
recorrendo a wna n1etáfora de Bacon - consertar e complementar inundo moderno, numa linha histórico-social e prática, tambén1
"uin quadro meio apagado'\ ou "uma coluna danificada, a partir formularam esta premissa"': "ln examinating lhe history of mankínd,
de algumas partes originais". O pressuposto teórico da "pesquisa" as we/1 as in examiníng the phenomena ef the material world, when we
histórica consistia em "diferenciar entre a ciên,cia histórica possí- camwt trace tl,e process by whic/1 an event has been produced, ít is eften of
veI e a verdadeira . ""'. C om isso,
. ta1n b'e1n aqm· - em acordo com a importance to be able to show how it may /,ave been prodi,ced by na/i,ral
hierarquia adstotélica - a Historie se aproximou da Filosofia. causes... To thís species ofphilosophical investigation, which has no appro-
No seu Discours, de 1754, sobre a origem da desigualdade priated name in our language, I s/,a/l take the liberty of giving the title of
humana, Rousseau havia elaborado uma histoire hypotétique, cLtjas Theoretical or Conjectura/ History, as employed by Mr. Rume, and with
conJectures se transforman1 em ntotivos racionais, "quand elles sont what some Frene/, writers have wf/ed Histoire Raisonée". '"
les plm probab/es qu'on puisse tb,r de la nature des choses", Constitui- Também na Alenianha, foi esse "eterno burilar uma teoria da
ria tarefa da Historie estabelecer relações entre os fatos, "c'est à la História" - de que foi acusado Gatterei' 95 - que clareou os princí- ·
philosop/,/e à son dlfaut, de detenniner /es faits semblables qui peuvent /es pios racionais de construção necessários para o conhecimento do
lier", 390 Graças a essa ligação entre Filosofia e História, no século mundo histórico. Friedrich Schlegel resumiu o stattis de reflexão
XVHI a doutrina do Direito natural foi historicizada. Era preciso científico-teórica que havia sido alcançado em torno de 1800,
se certificar da natureza da HistÓl'Ía, para conseguir entender in-
terconexões, se111 precisar recorrer a razões ou fins supra-históricos. m ISELIN, !saak. Philoscpnisd1t M11//J/11MS11!lgm. Ueberdie Geschkhte. der Meruchheit. frinkfurt/
Nesse sentido, estamos diante de uma fundamentação antropológica Leipzig, 1764. 2. Aufl.: Urber die Geschichte du Mwsd1hei( (2, vok). Zurique, 1768.
m JSBLIN, Ueber Jie Gcu/Jidrte der Mtuuhhe/1 (vol. !), p. 201.
MEDICK, Hans. N,1.w,zwt,md und N,11urgm/1lchtedabilrge,lichm Cmlluhaft. Gõuingen, 1973,
J~i

p, 137, 190, 203, 306 e Hgs.; a mpelto da hin6ria da p;ilavr;1 "history", cf. ibid., p. 154 e seg,
m WEGELIN,Jlkob. Sm la philorni,hie de l'histoir~. Novemix mtm,,lru de l'A,ddlmit royi:de, <11111
1770. Berlim, 1772, p. 362. (nota 55), 200 (nota 84).
3
}i STEWART, Ougakl, Accounto(the lifeand writingsôfAdainSmith (1793}. fo: HAMILTON,
m WEGELIN,Jakob, Bdde(r::f. nota 288), p. 4; a mpeito, r::f, BACON, Francis. Theadv.incemcnt William (Ed.). Colfated Wo,b (vol. lO). EdimbUtgo, 1858, p. 34.
oflearning 2, 2, 1 e segs. ln: Wc1Ju (vol. 1) (reímprc~lo de 1963), p. 329 e segs.
m {Anônimo). Si:hrelben :'11.lS D .. , an cinen Freund in London i.ib6r den gegenwli,tigen Zumnd
l•,, ROUSSEAU. Discouu sur !'origine et l~s fondemem de l'inég:'llité parmi les homme;. ln: der historhchen LittetMur in Teuuchla.nd. DuTeutuhe Mukur, vol. 2, 1773, p. 253. Agr~deço
Owv,c; wmplhes (t. 3}, 1964, p. 127, 162 e scg, aJürgen Vo1s pela indkaçfo.

152 153
0 CCtKffi0 O: Hmó.lA

da seguinte forma: 'Já que se fala tanto contra hipóteses, está na vai mostrando aos poucos ?)ª HNo conceito da História~ [e·st·arià:
11

hora de alguém, um dia, tentar começar a História sem hipóteses. contido] o conceito de uma progressividade infinita", que age no.·
Não se consegue dizer que algmna coisa é, se1n dizer o que ela sentido "de acelerar o progresso da humanidade na construção de .·
é. Enquanto se pensa neles os fatos já são referidos a conceitos, e
1
uma concepção geral do Direito". Por isso, em 1800, Schelling ie .. ·
não é indiferente a que conceitos eles são referidos11, Q~em abríria deu por satisfeito com o fato de que "o único objeto verdadeiro dá
mão da reflexão teórica ficaria entregue a uma escolha aleatória se Historie só pode ser o surgimento gradativo da constituição civil
vangloriaria de "possuir s61ida ernpiria pura totalmente aposterio~i'', universal, pois exatamente este é o único n1otivo de uma História 11
;

nias estaria perseguindo, de fato e sern percebê-lo, "uma visão a 11


toda e qualquer outra História)) seria puramente "pragmátican. 399
priori, muito unilateral, muito dogmática e transcendental" - foi Depois que a Filosofia havia sistematizado a Hist6ria, essa
assim que Schlegel retomou a crítica kantiana. 396 Na formulação História podia retroagir sobre a Filosofia e compreendê-la histo-
de hipóteses, foram unificadas demandas científico-teóricas es- ricamente. Para Fichte - em 1794 -, "a Filosofia ... [era] a História
pecíficas da disciplina com reflexões transcendental-filosóficas. sistemática do espírito humano em suas formas gerais de agir".4° 0
Assin1, a "prin1eira pergunta" que o joven1 Schelling fazia "a uma Assim, "por motivos racionais, mediante o pressuposto de mna
Filosofia da História" foi a seguinte: "como uma História como tal experiência como tal, antes de qualquer experiência determinada
[Geschíchte iiberhaupt] seria imaginável,já que, se tudo aquilo que é, anterior, [se poderia) calcular a marcha do gênero humano". Como
para cada um, só é posto através de sua consciência, ta1nbé1n toda filósofo, seria possível mostrar quais são os degraus de cultura que
a História passada, para cada um, só pode ser posta através de sua uma sociedade deve percorrer, como historiador se estaria perscru-
consciência". 397 tando a experiência para saber que degrau, em determinado tempo,
A partir da Filosofia da consciência, o Idealismo alemão de- teria sido efetivamente alcançado. Constituiria tarefa simultânea
senvolveu Filosofias da História que incorporaram os pressupostos dos filósofos e dos historiadores reconhecer os futuros meios de
até aqui descritos da época do Iluniinistno, e as síntonizararn entre satisfação das necessidades.'º'
si. A unidade de sentido estética das representações históricas, a Para Hegel, a convergência de Filosofia e História fora inte-
moral atnbuída ou buscada na História e, finalmente, a construção gralmente alcançada. O autodesdobramento do Espírito se reàli-
racional de uma História possível - todos esses fatores foram articu- zaria tanto na Hist6ria quanto na Filosofia - e isso se mostraria
la~o~ n_u'.;'a Filos~fia da História, que acabou estatuindo a "própria também na historiografia. Tanto em sequência sistemática quanto
Histona [Gesc/11c/11e selber] como racional, e a reconhecia como em diacrônica, Hegel classificou a escrita da História em três tipos:
racional. Aquilo que Kant ainda havia formulado como postulado a original, a refletida e a filosófica.'º' Nesse aspecto, ainda não se
moral, e elaborado de forma hipotética, foi compreendido agora distinguiu de seus predecessores, quando, para ele, "a Filosofia da
como emancipação do Direito ou do Espírito ou da Razão, e de História não [era) outra coisa que a apreciação pensada da mesma".
suas ideias no processo da História. Schelling disse mais adiante: Era decisiva "a simples ideia da razão de que também na História
"A História como un1 todo é uma revelação progressiva 1 que se
m SCHELLING, Splem ... , p. 603.
m Jbid., p. 591 e seg.
~~ SCHLEGEL, friedrich, Athenfom~-fragment Nr. 226. 111: Siimtlidu Wake (1' seção vol 2)
•:.l PICHTE. Über dcn Untem:hied de1 Geim:s und dcs Duchstabcm in der Philomphie. ln:
1967, p. 201 e seg. ' · '
3 1 .Akadcmit-Amgabt (\•ol, 2/3), 1974, p. 334,
' SCHELLl~G. Sy.tem des tonmndcnt~leu fdc2lismu~ 4,3 (1800). ln: Werk, {vol. 2), 1965, p. 4
JI FJCHTE. Einige Vorlesungen über die De.tlmnmng des Gelehrten (179-1}. (n: Akademfc-
~90; a respeito, cf. MOL!TOR, Franz Joseph. ldu11 z11 einrr kt1,ifrigc11 Dy1111mik da Gaditclite.
Fr,1nkfort, 1805. Amgabt (vol. l/3), 1966, F· 53.
w, HEGEL, Die Vumuifl ... (cf. JlOt~ 236), p. 4.

154
155
ciú~di~j •:~•ir CÔfaa~· aé:onteceram de fortna racional. Essa convicção da Filosofia da História. Graças ao transcendentalismo, a "História'.'
'e·=es.se reconhecimento constitue1n um pressuposto decorrente da se transformou em conceito de uma religião secular da consciênci'a,
apreciação da História como tal" [Geschichte iiberhaupt].'" Com isso, que continuava a atribuir à História, como revelação do Espírito,
. . " pois
as estruturas d e uma teo d 1ceia> . - corno escreveu N ova 1·1s406 -
"a.História", como coletivo singular de todas as Histórias indivi-
duais, não é apenas resultado de reflexão racional, mas.ela própria toda a História é Evangelho, tudo aquilo que é divino possui uma
constitui a forma em que se manifesta o Espírito, que se desdobra História".4º7 "Deixa que eles m.eçam e pesem - a_ssegurou Droysen
no trabalho da História mundial. "Esse processo de ajudar o Espírito -, nosso negócio é a teodiceia".408 Essa História produziu un1 ex-
a chegar a si mes1no, a seu conceito, é a História",4º4 Do ponto de cedente de fundamentação para toda a experiência já vivida e para
vista de seu conteúdo, esse processo constitui uma continuidade aquela ainda a ser vivida. Também as reservas metodológicas da
no desenvolvimento da liberdade, que se concretiza na humanida- Escola Histórica não conseguiam se opor a que toda ação dentro da
de. Evidentemente, para si mesmo, o Espírito, que se exterioriza História, desde então, fosse compreendida como ação para a História,
nas suas formas de manifestação históricas, permanece igual. Sua para uma História que atribula a todo ato de fazer um objetivo; e a
concretização crescente no tempo não se perde no infinito de um todo sofrimento um sentido. A nação como portadora do Espmto
futuro ou de u1n passado, mas constitui sempre tempo realizado. do mundo; a política como realização de ideias e de tendências,
Por essa razão, Hegel também compreende a História como forças ou poderes; o fim inerente a todo acontecimento de executar
"uma História que ao mesmo tempo não o é, pois os pensalnentos, . o Direito; a "astúcia da razão" de Hegel; a concretização da liber-
os princípios, as ideias que temos diante nós, são algo presente ... dade humana ou da igualdade ou da humanidade no transcurso dos
Algo histórico, isto é, o passado como tal não existe mais, está acontecimentos - todos esses topoi da linguagem social e política
morto. A tendência histórica abstrata de se ocupar com objetos ina- tentaram, pelo final do século XVIII, incorporar o conteúdo "da
nimados difundiu-se muito, nos tempos 1nais novos" - acrescentou História como tal" [Geschichte überha11pt] em seu conceito.
ele. jjMas se uma determinada era trata tudo historicamente, e, Em 1830, Karl Heinrich Hermes constatou retrospectiva-
portanto, só se preocupa com o mundo que não existe mais, isto mente que só então - assitn con10 a verdadeira ciência da natureza
é, quando só se frequentam ce1nitérios, então o Espírito acaba com - tambérn a ciência da História estaria começando. O "conceito
sua própria vida, que consiste em pet1sar a si mesn10"."º5 Hegel, de História" até agora utilizado seria imprestável e tautológico:
ao reunir no seu pensamento a unicidade de qualquer situação "A História é a representação de acontecimentos curiosos, apa-
com a determinação de toda a História como História da razão, rentemente, não significa outra coisa que a História é a Histól'ia ...
antecipou a crítica àquele Historicismo que não mais podia lidar Somente cotn os mais recentes progressos na ciência do Espírito
com essa tensão, e se recolheu para o tempo perdido do passado. conseguimos penetrar mais profundamente no significado da His-
Por outro lado, a Filosofia da História do Idealismo alemão tória; somente através de Fichte, Schelling e Hegel descobrimos
- con1 base nas suas premissas iluministas - forneceu a estrutura aquilo que antigamente só era intuído por raríssimos espíritos, isto
duradoura da qual a Escola Histórica não conseguiu mais desven- é, que História é o desenvolvünento do Espírito na humanidade, e
cilhar-se, independentemente de sua critica ao caráter especulativo
m NOVALIS, fo.gmente und Studien 1799~1800, Nt. 214. h1: GnmHmt!re Werkl (vol. 3), 1968,
Hl lbld,, P· 25. 28. p. 5-86 .
lôl Ibid., p. 72; cf. HEGEL. Ein!âtu11g ln dit Grnliid11, de, Philosophie. }famlmrgo, 1959 (rei111preuo de .,,, {'./ovJlü. Die Lehdinge :zu Sais. Gmmmrdlt Wcrke (vol. 1), 1960, p. 99.
1966), p. 111 (editado potJolunne1 Hoffmehter, 3. A\1t1. Resumid;,; e por Fdedhc1mNkclin}. .v,s Joh:mn Gunav Droysrn) em orca a Wilhelm Artndt, de_ 30 dé setembro de 1854. ln:
•c·s HEGEL, E/11/eitung ... , p. !33 e.Jeg1.
HÜEINER, Rudolf {ed.). Bn'tjwa!uel (vol, 2), Stuttgart/Berhm, 1929, p. 283.

156 157
O CON.<rro D! H;1.rOR'.A . '. , . .
:··

cabe agora a nós - depois desse reconhecimento - tnontar, a partir é, se na Hist6ria sempre acontece algo mais ou algo n:i.enos.dia~uil6ú
do material bruto que até agora nos foi oferecido com o nome de que está contido nas preliminares, então nenhuma ai1áli~e.-_":c~µ-7
História 1 o editicio científico da Históría".4º9 sal consegue dar conta da singularidade de uma situação:-._N,urn;t
d) Resultados da guinada lústórico-filosófica ao tempo da formulação de Creuzer, se lê o seguinte: "O Espírito ptócura;pó{
revolução. As Filosofias idealistas da História tentaram fundamentar uma unidade que está acima do próprio nexo causal... Somente
a unidade da História em sua extensão temporal e no modo de sua essa unidade pode ser chamada de histórica ... ou de unidade de
uma ideia •413
11
movitnentação. uEvoluções progressivas, sempre crescentes, são a
matéria da História" (Novalis).410 "Aquilo que não é progressivo Herder, Hegel e Humboldt, cada um a seu modo, descartaram
não é objeto da História" (Schelling)."' Ainda que se especulasse como banal a abordagem pragmática, que busca causas e efeitos - a
sobre o inicio e o destino da História nmndiat isso sempre acontecia liberdade se perderia na necessidade. Com isso, o abandono de um
com vistas a um diagnóstico sobre o próprio tempo. Só então o nexo causal entendido de forma mecânica - baseado em fatores
conceito de 11 História" se tornou capaz de preencher1 para além de que, por natureza, são iguais - levou à visualização de um te~po
qualquer método científico, o espaço antes ocupado pela religião histórico que é inerente a todos os fatores e, com isso, os qualifica
eclesiástica, só então o conceito estava apropriado a trabalhar com de forma historicamente diferente. Nunca é indiferente "q11a11do algo
as experiências da revolução. Vamos citar três critérios que foram aconteceu, ou teria acontecido, ou irá acontecer", disse Herder. "Na
decisivos para a liberação de um novo tempo, que, na reflexão verdade toda coisa mutável tem em si a medida de seu tempo; essa
histórico-filosófica) levou ao novo conceito de "Históriau. medida :xiste mesmo se não existisse outra; não existem duas coisas
Primeiro, a Filosofia idealista da História introduziu o axioma que tivessem a mesma medida do tempo ... Portanto (pode-se dizê-
do caráter único [Efomaligkeit], sobre o qual se baseavam tanto o lo de maneira sincera e audaciosa), no universo existe, ao n1esmo
"progresso" quanto a Escola Histórica. A soma das histórias indi- tempo, uma infinidade de tempos". Com iss~, Herder resumi~a,
viduais foi elevada à unidade da própria História [Geschíchte selbst], · numa formula, a vivência básica da modernidade, na qual estao
que é única, por natureza. Essa concepção, que tentava dar conta contidos tanto o progresso quan t o a "H1'sto"}.•·ià"
11 ))
414
, , fórnmla que
da experiência da Revolução Francesa, fez com que inicialmente a quase O assustou - a conte1nporaneidade do não contemporâneo.
análise causal pragmática do lluminismo fosse relativizada. Schlozer ou a não contemporaneidade do contempodneo. Por isso - como
ainda havia destacado, de forma aditiva e mais quantificante, que o Herder aventou contra a determinação kantiana do tempo como
conceito de História, "no seu significado mais nobre, ... [incluiria) pura forma de concepção interna-, o te1npo seria ''um co1:c~ito
o conceito secundário de completude e de interconexão ininterrup- de experíência". 415 Ou, como Novalis deduziu de fornla afor1st1ca:
ta". Essa História se transforniaría em "Filosofian quando ''setnpre "O tempo e, o h.1stona. dor n1a1s
· seguro "-116
.
vincula efeitos a causas". 412 Mas se a História se1npre é única, isto

m CRBUZBR, Gcoq; Friedrich. Di~ hislcriuhc Kar1H du C,lalmi in iluu Ettuttlumg rrnd
-1❖9 HERMES, K;ul Heinrich. 8ffrkc a1u dtr Zeil i11 di'e Zeit, Randbemerkungen zu der Po11biltf111:g. Leipzig, 1803, p. 230 e nota 37.
Tagesgeschkhte deriewcn fiinfundzwaruigJahre (vol. 1). Dramuchweig. 1845,p. 11. Tut;Mc 111 Cf. 0 verbete "Fortrduilt" (progres10], no vç\. 2, p, 355 e seg,s. [de Gmlil<hllirhe Cr1111dbeg,,iffe,
de uma prcleçlo dada em Munique, no verão de 1830, ~obre a Revolução Franceu.
Hhtorhche$ Lexikon im politisch-~ozi~len Sprache in Deutschland, no qml eHá também o
.m NOVAUS. Dic Chrhtcnheit oder Europa (1799), Jn: Gua111md1e Wake (vol, 3), p. 510.
pmente texto (N,T.)).
m SCHELLING. Aus der"J\Ugemclncn Übenlcht der neuenen ph!losophischtin Lhemur". In:
m HERDER. Veutand undErfahrnng. Eine Metakritlk zurKritikdcr rcinen Vcrnunft, 1' partc
Werke (vai. 1), 1958, p. 394.
m. SCHLÕZER, August Ludwig. P,m~w:1wg da alltgmthu11 Wdtliütcrf~ (vol. 31). Halle, 1771. (1799), In: Siimtliclie We,ke (vol. 21), 1881, p. 59
p. 256; SCI-{LÕZER, Augmt Ludwig. We/1Cesrhl,htt 11<1cl1 ihrw HrmptTbtifrn im Au;~ug 1111d m NOVALIS. Das. Allgemeine Drouillon (1798/99), Nr. 256. ln: Gwmrmelte Wuke (vol. 3),
Ztwmimrnharige (vol. 1). 3. Aufl,, Gi:Sttingen, 1'785, p. 8. p. 286.

158 ]59
A CONriGV>'.AÇÃO 00 l!ôof.t\.10 C:ON<ffiO OE Hsr&:!A

Herder também introduziu o conceito de "força" [Kreft] na para o próprio comportamento. Schlozer, cujas análises causais ha-
reflexão sobre a Hist6ria, que, em sua orientação temporal, igual- viam "despido" todos os acontecimentos "de qualquer casualidade",
mente escondia dentro de si a capacidade para a individuação, para coerente 1 ainda partia do pressuposto "de que não acontece mais
a unicidade hist6rica. Dos impulsos mecanicistas de eventuais ra- nada de novo sob o sol".421 Dessa concepção de que haveria fatores
zões psicol6gicas constantes se originaram forças din~micas. 417 Essa permanentes, é que derivavam o caráter pedagógico da História e
perspectiva foi utilizada por Humboldt para criticar outro legado a previsibilidade do comportamento político. 422
do Iluminismo - as determinações finais da História. "A assim Mas Kant derivou da mesma premissa - da const~ncia dos
chamada Hist6ria filosófica" - de Schiller, por exemplo"' - ante- "efeitos e contraefeitos 11
a conclusão oposta: ºque as coisas fi-
-

poria à História "um objetivo, como se fosse un1 adendo estranho. carão como sempre foram", motivo pelo qual não se pode prever
Não se deve perscrutar as causas finais, mas as que movimentan1; nada. 423 Tal comporta1nento Jevaria à "inanição", e todo o esforço
não se deve enumerar acontecimentos antecedentes dos quais sur- histórico-filos6fico de Kant visava a fundamentar uma previsão de
giram os posteriores; deve-se comprovar as forças às quais ambas que a "História da humanidade", no futuro, seria diferente - e isso
devem sua origem". Ali onde caberia avançar "até as forças agentes em sentido melhor. Se toda a História é única, também o futuro
e criadoras", não bastaria mais o recurso à análise causal - que, deve sê-lo.
em tese, é admissível e necessária. Etn última instância, as forças Assim, a Filosofia da História levou a uma reversão do fu-
estão enraizadas nas "ideias" que são orientí\doras e Hperpassam ... , turo. Do prognóstico pragmático de um futuro possivel, surgiu
como produção de força, a História mundial" [Weltgescl,ichte]. Mas a expectativa de longo prazo sobre um novo futuro, que deveria
não seria possível "derivá-las de circunstâncias conconlitantesn. 419 determinar o comportamento. Essa nova determinação temporal
Assim, de História - como conceito transcendental de refle- teve reflexos sobre o conceito de História: transformou-se também
xão - surgiu um conceito reflexivo. Na formulação de Novalis: "A num conceito de ação. Evidente1nente, a frase muitas vezes citada
História se produz a si mesma"."º A incomparabilidade, a unicidade de Kant de que o homem pode prever os acontecimentos que ele
de situações hist6ricas concretas - também efeito da Revolução mesmo desencadeia, continha uma conotação irônica. Ela se vol-
Francesa - levou à Hist6ria criadora, produtiva. tava contra o anden régime, o qual, co1n sua política anti-humana,
Com isso, em segundo lugar, se modificou o potencial prog- estaria, ele próprio, produzindo as consequências que tanto temia.
nosticador das velhas Historien. Sua tarefa tradicional de servir de Kant era mais cuidadoso nas suas medições da História como es-
mestra para a vida deixou de existir tão logo não foi mais possível paço de ação moralmente determinável. À sua pergunta "como é
comprovar situações análogas das quais se pudesse tirar conclusões possível uma 1--Iistória a priori", deu mna resposta apenas indireta,
pois aquilo que os homens devem fazer eles não o fazem, de forma
111
C(, o posfácio de Hans-Georg Gadanler a Hcrdet:Ai/Ch eine Phifosophiedes Cmhfc/itt ~ur Bild1mg alguma. Sin1ultanea1nente 1 enxergava no eco rnoral frente à Re-
der Mamhhút. Frankfurt, 1967, p. M6 e sess,, em especial p. 163 e segs. volução Francesa um "sinal da História" ("signum rememorativum,
m Cf. SCHILLER. WH heim und zu welchem Ende studiert m:Hl Univemlgeschichte? fo;
&hillu-Amgs~e (vol. 13), s. d., p, 20 e ,eg: "0 esplri10 filosôfko ... produt umacmsa racional demonstrativ11111, prog11ostiko11"), que indicaria para uma tendência geral
11
pua o traJHcurso do mundo e um pri1,cipio tdeológko para a Históda do mu!ldo" - se esse ao progresso. Desde então, considerava certo que 0 ensinamento
enfoque se confirma ou é refutado, üso ficari;1. em 1berto, também quando a vomade de aceler.u
o futuro tt.iz dificuldades o.o homem para $\13 ..:oncretizaçio.
m HUMBOLDI. Betr~chtut1-gc1, über die bewegenden Ur.1ach,m in der Wcltgeschichte
{l8t8). Jn: Ak,1demfe-Awgabe (vol. 3}, 1904, p. 360; HUMBOLDT, Über tlie Aufg~be des m SCHLÔZER, WdtGmlifrht, (vol. 1), 3. AuR., p. 9.
Géschichuchreibm (cf. notJ. 153), p. 46 e seg., 51 e seg.a m KOSELLECK, Historia m1gima vit~e (cf. nolõl: 224), onde h.i ni~i~ citações.
4H NOVAL!S. Fragmente und Studiel'I 1799~t800, Nr. 541. ln: Cmmmelte Wake (vol. J), p. 648. m KANT, {dce .. , (cf. nora 360). ln: Aktidw1/e-Ausgabe (vol. 8), p. 25.

160 161
A COl-ifK>WAÇÃO DO H.Oor~.NO <.OKWlO OI: H,sró!M

através da experiência repetidan levaria os hornens a pron10ver elaboração do passado se transformou em um processo de educação
uma constituição na qual, en1 consonância cotn o plano naturat que progredia junto com a História, e que, por sua vez, tinha efeitos
vigotariam a liberdade e o Direito.'" Enquanto Kant criticava sobre a vida. E, nesse processo, a revolução, em sua classificação
os teólogos naquilo que tange ao passado, dizendo gue "é uma histórico-filosófica, ocupou o lugar das Histórias que vigoravam
superstição" a afinnação de 11 que a fé na História é um dever e até então. Nas palavras de Garres: "Todo presente deve apostar
que leva à bem-aventurança", ele próprio investigou o futuro da em si mesmo, pois ele mesmo sabe aquilo que melhor lhe agrada e
História com intenções práticas, como sendo planificável."' "Vê- serve ... A História consegue ensinar pouco a vocês. Mas se vocês
se: a Filosofia também pode ter seu quiliasn10". 426 querem aprender com ela, tomem a revolução como mestra, [já
Assim, o tratamento histórico-filosófico da Revolução France- que] o andar preguiçoso de muitos séculos acelerou-se com ela,
sa conduziu a un1 novo alinhan1ento entre experiência e expectativa. para se transformar num ciclo de anos".429
A diferença entre todas as Histórias até aqui e a História do futuro A aceleração, que na época foi reiteradamente destacada, cons-
foi temporalizada num processo em que se torna dever do homem titui urn indício seguro da existência de forças imanentes à His-
intervir com sua ação. Com isso, a Filosofia da História deslocou tória, as quais dão origem a um tempo histórico próprio e pelas
de forma fundamental a antiga importância da Historie. Desde o quais a Era Moderna se distinguiria do passado. Para dar conta da
momento em que o tempo adquirira uma qualidade histórico- unicidade de toda a História e da distinção entre passado e futuro,
dinâmica, não foi mais possível - como se fosse um retorno natural itnportava reconhecer a História con10 um todo, a realidade, seu
- aplicar as mesmas regras de antigamente ao presente, regras que transcurso e sua direção, que leva do passado ao futuro. Os esforços
tinham sido elaboradas de forma exemplar até o século XVIII. "A dos filósofos da História se concentravam na solução dessa tarefa.
Revolução Francesa foi, para o mundo, um fenômeno que pare- Na tentativa de cumprir essa tarefa, a velha Historie perdeu sua
cia zombar de toda a sabedoria histórica, e diariamente foram se utilidade, que consistia em recuperar os achados do passado para
desenvolvendo a partir dela novos fenômenos, a respeito dos quais a situação contemporânea. Hegel dizia: "Aquilo que traz algum
ficou cada vez mais difícil buscar respostas na História" - escreveu ensinamento na História é algo diferente das reflexões dela deri-
Woltmann, em 1799, para tentar fazer algo em sentido inverso. 427 vadas. Nenhum caso é totalmente semelhante ao outro ... Aquilo
Em consequência - em terceiro lugar-, também a importância que a experiência e a História ensinam é que povos e governos
do passado na História se modificou. A História temporalizada e nunca aprenderam com a História nem agiram de acordo com os
processualizada como unicidade permanente não podia ser mais ensinamentos que ela poderia ter fornecido".''° Do diagnóstico
aprendida de forma exemplar - "portanto, o objetivo didático é de Hegel se pode deduzir teoricamente o lugar das novas ciências
incompatível com a Historie". A História deveria, muito mais - co1no históricas. Como ciência do passado, ela só poderia ser praticada
continuou Creuzer-, "ser encarada e explicada de forma nova por por si mesma - a não ser que ela, pela via da formação histórica,
cada nova geração da humanidade que está em progressão"."' A interfira de forma direta na vida.
Humboldt deduziu desse diagnóstico exatamente a mesma
m KANT. Strdt der F:ikultãten (cf. 1101:\ 297), § 2. ln: Akarfw1ie•A11-1gabt (vol. 7}, p. 81 e ~cg., 79
coisa. Também a História na compreensão da Era Moderna seria
e ~eg., 84, 88. "aparentada da vida ativa pois ela não prestaria 1nais seu serviço
1
',

,u lbid., § l, p. 65.
m KANT, idee ... , 8, S:it'..!, ln: Akademie-Amg<1be (vol. 8), p. 27; cf, KANT, Screit der faku!t:iten,
p. 81. m GÓRRES,Joseph. Teu~chhnd und dieRcvolution (1819), ln: Gm11m1f/1e S'11riftet1 (vol. 13),
m WOL'fMANN, KarJ Ludwig (ed.). Gmliidtte wrd Pclilik. Eine Zeitschdft, Berlim, 1800, p. 3, 1929, p. 81.
m CREUZER, ffütorisdie Kmut (cf. not;'.I 413), p. 232 e seg. tYl HEGEL, Die Vmw1tfi . . (cf, 1101a 236), p. 19.

162 163
O cwcaro oe H,stól/.:A A <::ONflGtl.:tJ.ÇÃO 00 MODW-.'O CON<fllOOE H,sr&IA

"através de exemplos individuais para aquilo que deve ser seguido 3. A "História" se define como conceito
ou evitado, pois [esses exemplos], nmitas vezes, induze111 a erros, e
raramente ensinam algutna coisa. Sua verdadeira e incomensurável
A História narrativa, o ato de contar [Erzah/img); encontra-se
utilidade está muito mais em avivar e esclarecer o sentido para lidar
entre as formas mais antigas de interação humana, e isso ela continua.
com a realidade a partir da forma inerente ao acontecimento do que
sendo até hoje. Nesse sentido, seria possível considerar "História"
através de si mesma":u 1 Em termos modernos: existen1 estruturas
como um conceito fundamental permanente da sociedade, em
formais que se mantêm ao longo dos acontecimentos, condições
especial da sociabilidade. Se, no século XVIII, "a História" - cuj~
para Histórias possíveis, cujo conhecimento antes se refere à prática
fundamentação terminológica e teórica tentamos conhecer ate
do que o conhecimento das condições.
aqui - foi configurada como conceito fundamental da linguagem
Dessa forma, a Filosofia da História explorou um moderno
social e política, isso aconteceu porque o conceito adquiriu o _status
espaço de experiência através do novo alinhamento de passado e
de princípio regulador de toda experiência e expectativa possível.
futuro, através da qualidade histórica que o tempo adquirira - e é
Com isso, se n1odificou a in1portância da "Historie" como ciência
daí que toda a Escola Histórica, desde então, busca inspiração. A
propedêutica - como se pretende mostrar de forma esquemática,
unicidade das forças e das ideias, das tendências e das épocas que
a seguir: "a f.-Iistória" foi abarcando de forma crescente todos os
se produziam a si mesmas, mas também dos povos e dos Estados,
âmbitos de vida, enquanto sin1ultanea1nente ia sendo guindada à
não podia ser neutralizada através de nenhuma crítica de fontes. Era
posição de uma ciência central. .
natural que, quanto mais bem-sucedido fosse o método histórico-
As eruditas árvores genealógicas, que desde o Humanismo
crítico em derivar fatos duros do material encontrado nas fontes,
foram classificando todas as áreas do saber da historia e ordenando-as
tanto mais forte se tornava a crítica à especulação histórico-filo-
nurn espaço que ado1itia algumas variações, utilizavam invariavel-
sófica, de cujas premissas teóricas a Escola Histórica, não obstante,
mente os mesmos esquemas classificatórios: em primeiro lugar, a
continuava a se nutrir. Por isso, Ferdinand Christian Baur podia
historia foi estruturada temporalmente, de acordo com os quatro
dizer, com razão, em 1845: "Com essa assim chamada crítica das
impérios, por exemplo, ou então (forma popularizada desde Celário)
fontes, por si só, se avançou muito pouco, enquanto não se reco-
co1no História antiga, medieval e n1oderna 433 ; em segundo lugar1
nheceu que a História como tal (Geschic/1te überhaupt) é crítica".
a historia foi classificada em áreas, quando a tripartição em historia
Na História, aconteceria uma 111ediação entre passado e presente,
mas somente na medida em que o sLtjeito teria conscíência crítica
divina, âvilis, naturalis se tornou a mais usual ~ ainda que crescen-
temente questionada, desde Bacon; em tel'ceiro lugar, a historia
dessa n1ediação. Só então o "processo histórico externo" se trans-
foi deterrninada por critérios fonnais, con10 historia imiversalís ou
forma num "processo mental, através do qual o homem chega ao
conhecimento de sua essência. Pois, para saber que ele é, precisa spedalis; em quarto lugar, segundo formas de repre.sentaç:o, ~endo
definida, por exemplo, como arte narrativa ou descrmva. É evidente
saber "co1110 chegou a ser". A crítica é que permite relacionai- a
objetividade da História e sua elaboração subjetiva. "Na crítica, a que cada uma dessas redefinições nesses esque~as... tivesse ~-efl~xos
História por si só se transforma na Filosofia da Hfotórian. 432 sobre os outros, na medida em que todas as afihaçoes da lmtona se
encontravam numa relação sistemática entre si.

1
''HUM.13OLDT, Die Aufgabe des Geschichtschrcihers, Jj. 40.
m BAUR, Ferdinmd Christfon. Kritische Beitdge rnt Kirchengeschichte der eutenJal1thundeae, m çf, 0 verbete "Zút, Zcifaltd' [Ao concrfriodoq_ue prevj,1 Kosellecknest.:i ?ºt-', o Vérbet_e wbr:
mit besot1due, Riic~icht ttuf d(e Werke von Nemdcr und Gie1eler. Tfrecf.,glttl1ejaf1rbilchu, n. "tempo" e "époc,1" não apar.:!ccu nos Gmhld1//!(he G,undbigriffc, ni;m foi por ek pubhcaclo'
4, 1845, p. 207 é seg. parte posteriormente (nota do revisor cécnico)J.

164 165
A configuração da História como conceito que está na base de presente, se baseava em experiências próprias, naquilo que tange,':
tudo pode ser mostrada à mão de três processos: [primeiro], na elimi- ao passado, em experiências alheias. Desse aspecto temporal duplo ,
nação da historia 11aturalís do cosmos histórico, fato que, no entanto, - que pressupõe a unidade do mundo da natureza e dos homens e"; ,,
1
trouxe consígo a historicização da ' História Natural"; s~gundo na 1
também derivava a velha dualidade da representação, isto é; qu,!'à' :
fusão da historia sacra corn a História Geral; e, terceiro, na conceitu- Historie tanto descreve quanto narra.Justus Lipsius foi mais longe;,, ,
alização da História mundial [Weltgeschichte] como ciência-mestra, contrapondo a historia 11aturalis descritiva à historia narrativa, a qual,
que transformou a antiga História universal (Universalhistoríe). por sua vez, se estenderia à historia divina e hmnana.438
a) Da '' ltlstorla nat11ralis" para a 11 História da natureza" Foi sobretudo a historia natura/is, o estudo da natureza, que, até
[Naturgeschicltte]. Conhecimentos históricos foram considerados Linné, descreveu situações derivadas de observações e de classificações
,
ate o século XVIII, co1no pressuposto ernpírico de todas as ciências
' da terra, dos reinos animal e vegetal, e do espaço estelar. Também
assim que Heckermann podia afirmar que devem existir tanta; quando a expressão "História da Natureza" (Nat11r-Geschichte] des-
Historíen quantas são as ciências. 434 Como conhecimento geral das bancou a "hístoría naturalisn - como e1n Zedler, por exemploü9-, essa
experiências, a Historie tratava do individual, do específico, enquan- expressão continuava visando a situações da natureza, sem interpretá-
to as ciências e a Filosofia visavam ao geral. Jônsío escreveu que se -las "historicamente". A historicização da natureza que - em tern1os
11
saberia que Jundamentum omnis sdentiae esse historia,n, observatíotzes, modernos- se ia configurando, no longo prazo, isto é, sua classificação
exempla, experíentiam, e quib11s tanquam síngularíbus, scientia universa- temporal - de forma que ela mesma ganhasse uma "História" - não
les suas propositiones Jormat'~135 , ou, co1no escreveu, de forma tnais se deu sob o título de "histo,ia natura/is", pois essa expressão estava re-
e'.1'.ática, Johann Mathias Gesner, em 1774: "lta HistorÍcl est qt1ase servada para a descrição daquilo que está dado de forma permanente.
c1vllas magna1 ex qua progreditmtur omnes alíae dísciplinae", 43 6 Bacon - que classificou a historia em apenas natura/is e âvilis -
Dentro desse campo de experiência, ainda era óbvio que 0 ainda compreendera a natureza como a-histórica. Mas ele a definiu
como mutável, através da arte humana, motivo pelo qual colocava
conhecimento sobre a natureza fosse parte tão integrante da His-
a historia artÍlmz na historia natura/is440 , situação que explicava através
torie quanto o conhecin1ento sobre os hmnens e suas ações. Assim,
da expressão experimentalis.441 Mas a investigação sobre as causas que
Johann Georg Biisch - com base nos modelos de Reimaro - ini-
levavam à mutabilidade da natureza ele não mais incluía na l,istoria
ciou em 1775 sua Encyclopiidie der Wissenscluiften [Enciclopédia das
naturalis, mas sim entre as ciências teóricas a Física: uEtenim in hisce
1
Ciências] com o primeiro livro: "Da Historie como tal (iiberlumpt)
omnibtzs Historia Nat11ralis factum ipsum perscrutat11r et referi, at Physica
e, em especial, da História da natureza ... Historie ou Geschiclzte
itidem causasº.'142
[História] denominamos todas as notícias daquilo que efetivamente
é ou efetivamente foi '1."37 Essa Histofie, con10 um saber sobre a rea-
lidade, era uma ciência de experiências que, naquilo que tange ao •).\ Citado por Mcnke-Glückert, Die Cucl1trhtsul1rdb1111g... , p. 34. O Sr. Galli ch~mou minha atenção
pat:i o fato de que foram, sobretudo, eruditos<:atólkos- Beurer e Gbser -que, enqua.11to faziam
a contraposição teológica entre cdador e criatura, também faliam a bipartição entre fii11Mia
n,muafü (que abarcavJ, simultaneamente, o. Hist6ria d3 natureza e~ dos homeos) e histc,fodivina.
m MENKE-GLÚCKERT, Emil. Die Gwhfrh1m/míb111rg de, Refi>m1r1tio11 imd Ctgeiirefi>rmMlan
Osterwiek/Harz, 1912, p. 131. ' m ZEOLER (vol. 23), 1740, p. 1063.
m BACON. De digttilatect augmrntitscientiarum, 2, 2. Jn: Wo,kr(vol. :1), 1864, p. 495; Pfingiten
m J~_NS!US, Johannes. Dt mfpti>tlbm hlstoríae phUoiophic,u, 2. AufL, Jem, 1916; reimpreHo
cham~ de "Muhanik", mas "no sentido mais amplo que apalavra ArteHistórfa {K1uu1Gmhidiu]
Dusieldorf, 1968, p. 2 (edi1ada porjohann Cbristoph Dom),
ou .. , melhor Tec1101ôgia posrni". Würde wtd f·Mgang Ju Wiswm/1aftu1 (d. nota 371), p. 178
m GESNER,Johann Mi\uhias. lragcge /11 tmditiomm 1mivm:1le111 (t. 1). Ltip,ig 1774 p 331 (com nota).
a111n·· , , • •
~SCH, Johann Goorg. Btuydopiidle der histc,iulwi, phlloiophluhrn 1111d malltcmilllsdwi m BACON, Novum Organum 1, 111. ln: Wcr,1.,J (vol. 1), p. 209.
W1su1mhaflm. H~mburgo, l775, p. 12. m BACON, De augmeutis, 3, 4 (p. 551).

166 167
A CONfiGlJ~AÇÂO 00 /.\OllUNO COl-.'CUTO OE HISTÓ~

Com a abertura do futuro através do conhecimento progressivo 1775: "Numa compreensão muito inadequada, utiliza:se a'pala"h,}i
da natureza e com a ocupação de novas terras no além-mar, cotn História da natureza [Naturgesdtichte] para designar o r~gÍst~</e a.·
a descoberta de novos continentes e de novos povos, a expansão descrição dos corpos pertencentes ao reino natural"."'· •·.. : :.·eh\)
temporal também atingiu o passado. Já no século XVII, ela atingiu É verdade que Kõster ainda registra, ao lado da narratlva·•,Ii,, : ....
espaços temporais que se localizavam além da cronologia da criação acontecirnentos, Htambéin a descrição _de coisas que se mantê·ffi:a◊·--.:, . _.\:=.-'.:· :: ·
da Bíblia."' Leibniz, por exemplo, com sua Protogaea - pensada longo do tempou como pertencente à Historie) 1nas a "simplesmérit~.·:: ::•-i-_
como introdução à sua história dos guelfos -, avançou sobre esse assim chamada Historie" trataria somente de homens e de acontecic' • · ·
pré-passado da natureza. Mas ele não chamou seu esboço diacrônico mentes que os envolvem."' Em Campe, finalmente, a separação se.
de /iístoria 11atura/ís. "Inicio pela mais profunda antiguidade dessas completa: HA descrição da natureza ... , isto é, das coisas na natureza,
terras, provavelmente muito antes que elas fossem habitadas por em especial na terra, de acordo com sua forma e suas características.
seres humanos, de forma que vão muito além de quaisquer Histo- Caso seja narrado seu surgimento, a fonna como se mantém, suas
rien1 buscando-Jhes as características deixadas pela natureza". 444 Na modificações enquanto durar, o tempo de sua duração, etc., então
verµade, tratava-se de uma "teoria da infância de nossa terra que 11
, estamos diante de uma História da Natureza [Naturgesdtid,te], que
possiveln1ente viria a fundan1entar uma nova ciência, a ºGeografia deve ser diferenciada da simples descrição".' 50
da Natureza" [Natur-Geographie]. Não se tratava de urna Historie, Com a separação da antiga historia natura/is descritiva, também
pois a fundamentação das relações permanecia hipotética.'" Pela se torna palpável o processo correspondente: o novo significado da
mesma razão, Kant, em 1755, recorreu a um título duplo - "História História da Natureza que se impusera no meio século anterior. A
geral da natureza e teoria do firmamento" [Al{ge111ei11e Naturgeschichte própria natureza foi dinamizada e, com isso, se tornou passível de
tmd Tlteorie des Hi111mels] -, porque só através dessa expressão podia mna História, no sentido moderno. Como escreveu Bu-ffon, em
caracterizar seu esboço repleto de hipóteses, que temporalizara a sua Histoire 11at11relle, de 1764: A natureza não é uma coisa m1 um
natureza, como um "aperfeiçoamento sucessivo da criaçãd'. 446 ser, ela é uma força viva, <'une puíssance vive ... c'est en mfme temps
A temporalização da natureza, que abre seu passado finito em la cause et l'ejfect, /e mode et la s11bsta11ce, /e dessein et /'ouvrage". Ela é
direção a um futuro infinito, e preparava sua interpretação hist6rica, utm ouvrage perpétuallement vivant" e "1m ouvrier sans cesse actif', ao
realizou-se no âmbito da teoria, e não da historia natura/is - e isso mesmo tempo."' Com esse avanço, que lhe permitiu classificar a
corresponde à nossa Hist6ria conceituai do século XVIll. Por isso, natureza em períodos hist6ricos, fora encontrada uma definição que
não admira que essa tradicional pesquisa da natureza fosse sendo se aproximava bastante do conceito de História, o qual foi, então,
gradativarncnte excluída do cosn10s das ciências históricas. Natu- desenvolvido, na Alemanha, a partir de Herder: "Toda a História
reza e História foram separadas. Voltaire falou, na E11cydopédie, de da humanidade é uma pura História da natureza de forças, ações
"l'ltistoire 11aturelle, improprement dite histoire, ... qui est ,me parte essett- e instintos humanos loca 11za . dos no espaço e no ten1po ""2H . erder
tiel/e de la pltysiqne". 441 Adelung retomou esse distanciamento, cm concretizou a guinada. A natureza hístoticizada podia servir agora
também como característica estrutural da Hist6ria humana.
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19; ibld,, p. 171 (vmão alemã de Wolfv. .Engelhard!). ~ 1 ~ CAMPE {vol. 3), 1809, p. 46l.

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168 169
O cet..xaro o;; HsSTóM

do individual cotn um todo", Ela é um "processo do vir a ser no


Também aqui foi Kant quem, pela primeira vez, havia reivin-
tempo ... , onde todo O reino das coisas visíveis - da pedra ao ho-
dicado abertamente a mudança da histori<1 natura/is de velho estilo
mem _ aparece con10 un1 todo inter-relacionado, desenvolv1d~
para a História temporalizada da natureza. "Por mais que se odeie
etn diferentes níveisJ como resultado de mn processo lento de vir
- e con1 razão - a impertinência das opiniões, deve-se arriscar , li 457
uma História da natureza que seja uma ciência separada, que possa a ser e vu· a acontecer .
b) Da "historia sacra" para a "História da salvação" [Heil-
progredir) gradativamente, de opiniões para conhecímento". 453
sgeschic/1te]. "Historiae, id est, verae 11arratio11is tria sunt ge11era: /rn111a-
Em 1788, Kant procurou ga~antir "História da natureza" para a
t1um, naturale, divinum". A Historie humana trataria daqut~o que
investigação científica, que derivaria a "configuração [atual] da
é provável, a História da natureza d~quilo que_ é necessário, e a
natureza de causas localizadas em tempos mais antigos, de acordo
divina da verdade da religião. 458 Bodm, que orientava essa sequ-
com leis naturais ... das forças da natureza". Essa ciência deveria se
ência nas três doutrinas do Direito, enxergava nelas uma escala
conscientizar das limitações inerentes a seus princípios racionais e,
de certeza crescente. Mas no seu Jvfethod11s, só abordou a historia
por isso, concretizar sua teoria através de hipóteses - ao contrário
da descrição da natureza, que poderia concretizar um sistema cotn-
humana, colocando-se, assim, na tradição da escrita te,mporal da
História, como ela fora desenvolvida pela alta Idade Media e pelo
pleto. K~nt estava cons:iente das dificuldades terminológicas que
Hun1anismo. A Hist6ria sagrada, na sequência, era tratada ou
apareceriam em decorrenc1a de sua historicização da 1 (História da
11
natureza'\ já que História" e ''Historie" são utilizadas ao mesmo separa.da da Historie política ou então> ca~a vez 1:'1~is, c01no ~n1a
História secular, das Igrejas, ou das doutrmas rehg1osas, ou amda
tempo no sentido de narrativa e de descrição. Para destacar o aspecto
temporal decisivo da nova ciência 1 sugeriu denominacões alterna- totalmente integrada nessa História secular."' Com isso, també~
tivas, como "fisiogonia" (Physiogonie] ou - na Critica dafawldade de a interpretação teológica de todos os acontecimentos seculares f01
juízo [Kritík der Urteilskraft] - "arqueologia da natureza"."' "Mas perdendo cada vez mais sua força. . ,
Um indicador dessa transformação está, em pmne1ro lugar, na
a dificuldade linguística para distinguir não consegue eliminar a
diferença das coisas". 455 Estava aberto o caminho para as teorias eliminação da historia divitta do cosmos do conhecimento hi~tórico.
da evolução do século seguinte, 456 no qual a História se mostraria Freigius, com sua Historiae synopsis, de 1580, parece te_r s1~0, um
como setor que orientava a pesquisa sobre a natureza. Nas palavras precursor, nesse campo. Ele só conhecia a Historia 11rnnd111taJOY1S.da
de füedermann (1862): a História da natureza [Nattugeschíchte), ao natureza corno um todo, e a Historia mundi minoris de todas as açoes
contrário da ciência da natureza [Naturk,mde], começa "somente ali human,s, bem como as opiniones circa religionem aut pl,i/osophiam,
onde aparece uma interconexão, urna permanência, uma ligação em particular.''° Bacon também ~ed~zit'. a _Historie," apen~s d01s
campos: a Historia nat,m1/is e a f],stor1a civ1lts, d1v1dmdo a ultima
em três categorias: "primo, Sacram) sive Ecdesiastícam; deinde eant quae
i}J KANT, Von den venchicdenen Rassen d<!r Menschen (1775). ln: Akadtmie•ArHg.tbt (vol. 2), . A' "46tA"
19?5, p. 443. Os cofundadores d.a Geologia na Alem:'tnhaj~ utiliuvain o novo conceito de generis nomen retinet, Cívilem; postremo, L1terarum et rtmm . ss1m,
Hmórfa.'. LBHMANN, Johann Gotdob. Vtr111Ch eine, Gmh/d1tt ~•óJI F/01~-Gtblllgen. DerJim,
1?56; PVCHSEL, Georg Christian. E11tw11rf .w der ãftutt11 E,J. 1md Memrhengudiidite, 11ebst
mum Vusud1, den Uupmng de, Spr,uht z11finden. Fnnkfurt/Leipzig, 1773. m BIEDERMANN, Friedrkh Karl. Verbete ,,Gci.chkhtt". ln: ROTTECK; WELCKER {vo!.
01
KANT. Über den Gebr~uch teleologisi:her Pdn2ipien in der Philosophie (1788), Akadmde,
AiugJbe {vol, 8), p. 16! e scg., 163 (nota l); KANT, Kritlk der Urteihkraft (1790) 2 1 p:irte 6), 3. Aufl., 1862, p. 428.
ai,exo, § 82. ln: Akarlc111ie-A1ugabe (vol, 5), 1908, p. 428 (11oc1). ' ' m BODIN, Methodus ... (cf. not.i 340), 114b.
HS KANT, Über den Gebrauch tcleologischer Prinzipiefl... , p. 163. m KLEMPT, Die Sii~ularlflwmg... , p. 42 e segs,
me:. o ~erh~te ,,~nt1vitld1111g". ~evo!tiçâ?/desenvolvimentoJ [em Gwhlditliche Gtt1ndbegii0t. m lbid., p. 44.
Hmorl.$che~ Le.x1ko112:ur pol1tuch-so21:iten Sprache jn Deuuchb.nd, no qual est:i tamb~m 0
m BACON, De augm.éntis, 2, 4 {p. 502),
presente texto (N.T.)J,

171
170
o CONCmo (): Hisr&"t\

a Histoire_ci:i~, pela primeira vez, se transfonnou eni conceito geral elasn. 465 Experiências extrassensoriais eram eliminadas em favor de
para a H1stona sagrada ou eclesiástica. fatos históricos que podiam ser incluídos na perspectiva de uma
Leibniz - que adotou a bipartição - já classificou entre a moral que avançava ou, então, eram interpretados de forma psico-
I-l'.stoir~ ht11~ai11e, uma grande quantidade de campos cien;ificos: A lógica. A primeira experiência temporal historicamente imanente
H1stón~ un,ver_sal [_Unive;sa/1,istorie] e a Geografia, as antiguidades, a - a do progresso - historicizou coerentemente também os dogmas,
Filolog1a e a I-l,storie da literatura, costumes e leis, por fim também até agora considerados imutáveis. Semler esperava convencer seus
"Histoire des re/igions, et surtout celle de la veritable Religion revelée, avec leitores de "que nunca existiu uma concepção estabelecida e imu-
l'H'IS 1o,re
' Ea1estasttque
· · ""' . D essa r,orma, em Leibniz, correspondendo tável do conteúdo da doutrina e da religião cristã".'" A irrupção
à experiência planetária de uma multiplicidade de religiões e de da nova uHistória" nas verdades até agora consideradas eternas se
Igrejas cristãs, a historia sacra se transfonnou numa historia religiornm fundamentava e era impulsionada pela nova convicção - que tam-
dentro da História humana. ' bém abrangia a religião - "de que a evolução do mundo moral, de
Quan~o Voltaire faz, na Encydopédie - assim como alguns acordo com a ordem de Deus, também possui seus períodos e suas
11
contemporaneos - uma referência tradicional à histoire sacrée, ele etapas 1 como o conhecimento e a descoberta do mundo fisico •467
acrescenta, de fonna irônica: 11Je ne touchemi poínt à cette matiere Desde que a História adquirira uma qualidade que se modificava
respeclable".'" E, finalmente, quando Krug, em 1796, mais uma vez no decorrer do tempo, também a historia saem podia ser interpre-
elaborou um sistetna de todas as ciências, surgiu, em meio à "História tada, nesse sentido, de forma 11 histórica", como a historia natura/is.
da humanidade ou do gênero humano (preferencialmente chamada É verdade que na ascensão do velho conceito de História que
História)", em posição secundária, também a religião de Jesus de vinha se impondo, por mais novo que fosse, o impulso teológico
Naza_ré - isso no âmbito da História da cultura [Kult11t;geschichte], não esteve ausente. Justamente a historia sacra, uma História que ia
dep01s de profissões, artes, costumes, erudição e literatura e dentro além da revelação bíblica, tal como era ensinada, por exemplo, no
da História da cultura religiosa, depois da religião natural; da "His- âmbito da Teologia federal', trouxe alguns aspectos cristãos para
tória do fanatismo'>, como uma entre várias religiões reveladas,-164 dentro do conceito moderno de História. O esquema reproduzido
A inclusão da História sagrada [heilige Gescl,ichte] na História e reproduzível pela expectativa escatológica, com suas promessas
do ~un~o [Weltgescl,icl,te] vinha sendo preparada pela historiografia e realizações, desde sempre se prestara a atribuir ao transcurso
ecles1ást1ca protestante, na medida em que esta - sobretudo a Escola temporal uma qualidade histórica no sentido da unicidade e até
de Gottingen, no século XVlII - tinha feito da Historia ecclesiastica da mudança para um nível ascensional. Também a conversão do
uma História das sociedades eclesiásticas e de suas opiniões doutri-
nárias. "Na História da Igreja, é, se1n dúvida, muito conveniente 115 PLANCK, Gottlieb Jakob. Efo/eí11111g fo die 1lw;lo;e_lulm1 Wiswiuli,iftw (vol. 2). Leipzig, 1795,
p, 223; cf. VÕLKER, Karl. Dle Kl1dwigmhichtmf1uib1mg der Aitfklii,ung, Tübingcn, 1921, p.
partir do pressuposto de que se deve visar, em cada um de seus
22, com outras citaçõe1.
períodos, ... àquilo que é peculiar e característico das formas sociais m SEMLER,Johann S;i.lomo, Versuch duesfmdilubarrn AuszugJ llllí der Kir,lrt1igeuhfrhte (vol. 2).
a que se ligam ... e apenas seguir as relações que estabelecem com Halle, 1774 (Vomde); citado por MEINHOLD, P<:ter. Gmliidrtt der kitthlldw1 Hfstoriographit
(vol. 2). Frdburgo/Munique, 1967, p. 46.
1~7 SEMLER,J. S. übmtbesd1reib1rng 110111/un. sdbst vufaut (\·ol. 2). Halle, 1782, p. 157; citado por

Meinhold, GtJd,frhtt ... (vol. 2), p. 64.


m LE!DNlZ. Mémoire pout dts personnes édairées e1 de bonne lnteutio 11 {1694?), fo.: KLOPP,
A "T~ologia fedeu!" en1cnd\a a "Hist6d.t corno a concretiuçfo da graça" diviM, Hht6ria
Am~ (Ed.). W.-,ke (vol. 10), Hamnov~r, 1877, p. 13; cf. KONZE, Werner. Leibniz alr }li~l()ti.l:u.
que transcorruia em cinco Cates, a começar na criaçfo 11;1.ruda no Velho Testamento, de
Berhni, 19SJ, p. 36 e segs, com outras dt:1çôe1.
10
fornu que a "Hiuóda divina se namformuia em um dr;'lma com sentido unitlrio",JACOB,
VOLTAIRE, verbeie "Hi~1orie" (cf. norn 447), p. 221. P. FOdenltheologie. ln: )){e fü/{gfon in Gmlu"á11e 1md Ctgcnwa,t {RGG]. Tübíngen: J. C. D.
H-1 KRUG, E11:qtcfpiidie (vo!. 1), 1796, p, 49 e !Cgs, 79. Mohr (Paul Siebeck), 1957, coL 1520 [N. T.].

172 173
1
A CONfiGIJR.t,ÇÀO co I.IOC'W(O C().';.arro C'f HISlô.<•A

futuro escatológico em um processo que avança com o tempo foi por causa de sua concepção de uma revelação que tenha sentido e
impulsionada pelas expectativas religiosas. "A realização não deve ser seja progressiva. O reino de Deus se tornou, ele próprio, um processo
localizada - cmno acontece em geral - nos primeiros séculos nen1 nos histórico, A convergência co1n um conceito Hsecular" de progresso
tempos futuros, ntas sim, numa divisão não necessariamente desigual, da História se realizou via inspiração recíproca. Isso acontece, por
por toda a linha de tempo do Novo Testamento, de t~l forma que exemplo, cotn Thomas Wfae1nann, que derivou o "plano" de Deus
1 todo o verdadeiro sistema de toda a Historie sirva de explicação para
Judeus e gentios, cristãos e turcos)). 468 Para Bengel, toda a História
11
do "desenvolvimento históricou: 0 homem está em eterno 1novi-
mento, e cada recaída constitui um passo adiante no aperfeiçoamento
se transformou em uma História da revelação, que se desvendava do todo ... Jtmtamente com sua História, seu conhecimento também
em forma crescente, com que o ônus da prova para a interpretação avança e constitui verdade política e teológica que o verdadeiro co-
se deslocava do Testamento para a História pós-bíblica. Ninguém nhecimento efetivo só pode se tornar mais transcendente na medida
poderia explicar a revelação, "se não incluir as Histórias eclesiástica . ' . tamb'em se torna [n1ais
em que a H 1storia . t ranscenden t e_]".472
e mundial [Kilrhen- u11d Weltgeschic/11en]". 4" É nelas que se mostra a O testemunho a favor da verdade divina, com Wizemann,
unidade sistemática da Historie. O intérprete apenas deve "esgotar deslocou-se, por c01np1eto 1 das "doutnnas · n para os "f:atos " , da B't-
a verdadeira soma da Histól'ia mundial e da História eclesiástica, e blia para a História: "Aquilo que, na minha opinião, requer ;'ma
absorvê-la dentro de si, mas, ao fazê-lo, não deve atentar para as atenção especial nas nossas sagradas escrituras é a História. E ela
partes, e s1n1 para o todo, para as coisas básicas> os tempos básicos e que diferencia essas escrituras de todos os demais livros de religião,
os lugares básicos, como, por exemplo, Roma e Jerusalém"."º e a transforn1a em revelação divina". 473 Com isso, estava aberto o
O gradual desvendamento do Apocalipse de João pela História caminho para- na sequência da Filosofia idealista da História - tam-
se revelou, então, como um tipo de fenomenologia do espírito, a bém dissolver processualmente a escatologia cristã. Assim, Richard
qual vai corrigindo de forma sucessiva todos os erros das interpre- Rothe descreve o "transcurso do processo histórico" de tal forma
tações do passado e, com isso, revela seu sentido futuro, verdadeiro, que a igreja cristã estaria se integrando e se fundindo cada vez mais
o qual será idêntico com o fim da História até aqui. Oetinger - no Estado cristão do futuro. O Juizo Final- a crise - é, por assim
um discípulo de Bengel - disse o seguinte: "Cada século depois dizer estendido para a. ºsucessão do desenvolvi1nento histórico'\
de Cnsto possuí sua própria medida de conhecimento verdadeiro de forma "que toda a História cristã se transforma numa grande·
ainda que não integral". Mas Deus mandaria, "de te1npos en~ crise continuada do nosso gênero", que, no decorrer do te1npo,
te1npos, instru1hentos que, na medida do conhecimento crescente moralizaria a Igreja e a tornaria supérflua. 474
produzem, a cada século, uma abertura maior". 47J ' Influenciado por Ranke e por Schelling, Johann Christian
Na formulação de conceitos da História, na Alemanha, o grupo von Hofmann adotou, em 1841, a expressão "História da salvação"
de teólogos de inspiração pietista (Arnold, Bengel - também Ha- [Hei/sgeschichte], que antes fora pouco usada. E aqui não se tratava de
mann -, Oetinger, Wízemann on Hess) não pode ser subestimado,
n GOLTZ, Alex:111der Prdhczr von der (Ed.). Thomas Wi;:ema,m, der Fmmd F1/edrid1 Heimfrli
4

iu BENG.EL,Johann. Erkfiirlc Offiubdru1tgjo/Ja1111i$odrrvitlnulir]uu Chrisll. (2' ed., 1747) (editado jM~bis (vol. J). Goth11, 1859, p. 147, A respeito de "plano" e "desenvolvhnento", d.
por Wtlhelm Hoffinmn, Suttgart, 1834), p. 75. {WIZEMANN, Thomas]. Giirlli,1,e Entwl<kfongáe$ &ltans dmt.h J,u i\fomliengmMulit. Drnau,
m lbid., p. l37. 1792, p. 2, 18, 28, 57 e p,mimi W[ZEM,\NN, 'Thoma;. Godu'd1fe]em (d, n,ôtõl 294), p. 8 e 46
im lbid., p. 654. esegs. Cf. DENZ, Ernst. Verheiisung 11nclErfüllung. Uberdie tl1eologischen Grundl;i.gen des
11 deuuchen Geschichubewum1elns, Zfftuhrifl]ilr Kirthmgwhidite, n. $4, 1935, p. 484 e segi.
" OETJ~GER., Friedtkh Chri.11oph. PudlgtM iibtt die So111-1-, Fut- u11d PtiuUiglfr/un 13pl1tdu. m WIZEMANN, Ci!llliclu: füllwfr.1:/Jmg du Saiam, p. 1 e seg.
R~mh.ngen, 1.852, p, J 1 (editado por Karl Christian Eberhard Ehmann); OETINGI!R,
m ROTHE, R.ichHd. Die A,ifa'rigt derChiútUclm, Kiuhe 1md ilmr Ve[{ammg (\/ôL 1). Wittenberg,
Fnednch Chmtoph. E11ar1gdicnpredigte11 (\lo], 2). Reutlinge 11 , 1853, p. 110.
1837, p. 59.

174 175
l A CONl':GUMÇÃO 00 MOc:€.~'O CONCUTO Oã H!Stó~,

uma tradução dajá meio apagada" historia saem", rnas de um conceito Depois que a velha historia sacra tinha sido superada pela His-
que pretendia dar conta - como conceito cristão - das exigências tória da salvação, a compreensão do cristianismo sobre si r11.es1n6>,
de uma História baseada em princípios histórico-filosóficos que se entrou numa linha de historicização - também da metodologia::
difundiam cada vez mais."' histórico-crítica -, de forma que, desde então, vem pendulandó. ·
Edgar Bauer formulou, na década crítica que ántecedeu a entre duas respostas extre1nas. Por wn lado, o cristianismo é sim..,·.
revolução de 1848, de forma polêmica: ''Através da religião, a His- plesmente declarado incompatível com a História. Nesse sentido,
tória se transforma numa fábula, através da História a religião se Overbeck registra "o desejo moderno de submeter o cristianismo
tra11Sforma num mito, na História a verdade de hoje refuta aquela à História", deduzindo que, "deslocado para o terreno da avaliação
de ontem, para novamente ser refutada pela de amanhã, na religião histórica, o cristianismo está irren1ediavelmente exposto ao con-
só deve existir uma verdade"."' As imposições alternativas forçaram ceito da finitude ou ... da decadência".'" Ou a História como um
a historicização. Diante dos desafios por elas exercido surgira o ter- todo deve permanecer referida a Deus, de forma que a diferença
mo "História da salvação". Retrospectivamente pode-se formular entre uma História cristã e u1na História não cristã desaparece.
da seguinte forma o resultado da lenta mudança ocorrida desde o Nas palavras de Karl Barth: "Toda História religiosa e eclesiástica
século XVII: enquanto na "Mstoria sacra" a indicação para a salvação se desdobra por completo dentro do mundo. A assim chamada
eterna caracterizara o conceito, no conceito composto de História 'História da salvação', porém, só representa a permanente crise de
da salvação a [própria] História assumiu o papel fundamental. É toda a História, não uma História ou ao lado da História"."' O
dela que derivou o caminho para a salvação. componente progressista do conceito perdeu importância, mas o
De qualquer forma, o legado judaico-cristão ficou preservado, momento processual, que deriva da presença existencial do juízo
e sinalizava a contemporaneidade do não conte1nporâneo no novo eterno, se manteve, incluindo um legado da Teologia federal.'
conceito de História, mostrando que a antiga expectativa escatológica c) Da "historia 111u'versalls" à "História mundial" [Weltgeschi-
agora também tinha efeito sobre ele e sobretudo combinava com cl,te]. A incorporação da natureza e da /,ístoría sacra no processo his-
ele. Por isso, não admira que Moses Hess - também na linha do tórico geral fez com que o conceito de História passasse a constituir
idealismo alemão - pôde, em 1837, escrever Díe Heilíge Gescl,ichte der um conceito-chave da experiência e das expectativas humanas. O
Menschheit [A História sagrada da humanidade], na qual, de acordo conceito de "História mundial" [l¼ltgesc/1íchte] se adequava muito
com o esquelna joaquin1ista, o terceiro e último período, "a última bem a uma definição desse processo.
renovação da humanidade, cujo processo ainda não se cop.cluiu"477, Na perspectiva da História vocabular, a transição da "História
teria começado com a Revolução Francesa. A expectativa de salvação universal" [Uuíversalhistolie] para a "História mundial" [Weltgeschíc/1te]
pennaneceu, como em camadas, inerente ao conceito de Hist6ria, se realizou de forma gradativa e sem muita insistência. No século
e se manteve nos mais diferentes campos, desde o protestantismo, XV!Il, ambos os termos podiam ser utilizados de maneira alternativa.
com sua fidelidade ao Estado, até o socialismo.
<11 OVERBECK, Franz. C/11iffrnlrm1 mid KHl/ll1. Gedanb::n und A11merkungon wr mo<lernen
Theolog:ie. Base!, t919; rdmpre;50 em D,rnntadt, 1963,p. 7 e seg. {editado por CHI Albre.:ht
.n; I-IOFMANN, Johann Chtlscian Konrad von. Wârn:1g1ms und E,fi/J/1111g im alfm uni! 1ierw1
1ht11111tttte (2 vols,). Nõrdlingen, 1841/44; cf. WDTH, Gustav. Dle HeilJgutMdue, München, fütnoulli).
193,1, p. 81 e segs, •~• BAR'TH, I<nrl. Du RQ11ierbtief. 10' edição d:n·etsão reformuladitdc 1922, Zuriqut, 1967, p. 32.
~,~ GEISMAR, Martin von (= Edgar Baucr) (Bd,). 8iblfot/rd,: d~r Deufu/1en A1ifk/iue1(vol. 2, sepmt A "Teologia feder;1.l" entendia a "Hht6ria como a c<increti.oçlo <h guça" divina, História.
5). Leipzig, 1847; reimprwo em DJrnutndc, :1963, p. 127. que nauscotreda em cinco fases, a começar na criação narrada no yeiho .T_ei_u,~1ento, de
m HESS, Moses. Oie f-leilige Geschichte der Mt!nsd1hdt. Von cinern Jünger Splnor.Js. ln; foima que a "História divina se tran~fortnuia cm um drama com sentido umt~no ,JACOB,
COR NU, Auguste; MÕNKE, \Y/olfgang (eds.). PhUó!ophiuhe 1md 511,dalistiuhe Sduiftm 1837- P. Põderaltheologie. ln: Die Rtligion in Gud1frl11t und GEgrnwatl [RGG). TObrngen:j. C, B.
1850. Berlim, 1961, p. 33. Mohr (Paul Sicbeck), 1957, col. 1520. [N. T.).

176 177
o CONCmo DE HtSió;?lA A coi-.r.<MAÇÁO 00 1,'.00ERNQ CON<UO 0€ Hi.sr&.IA

. A expressão twerltgesk(hten já fora utilizada por Notker (fa- Chladenius pôde constatar, em 1752: "As História gerais do mundo
leC1do em 1022) - referido à providência divina -, mas a palavra [gemeinen We/tgeschichte] costumam lidar com ações de homens, mas
não conseguira se ímpor. 480 A primeira referência concreta a unia a revelação lida com as grandes obras de Deus".486 Foi jmtamente
Historia tmiversalis só é encontrada mais tarde. Em 1304, surgiu uma esse campo semântico, (até então] antiteticamente excluído do
tal obra, que pouco depois recebeu o certeiro título de Compen- mundo humano, que deu maior força à nova expressão, fr<:nte à
dium historiarum."' Historie" deste mundo que tentavam unificar tradicional uUniversalhistorie".
mna soma de Hfat6rias individuais co1n pretensões universais só Os temas referidos ao mundo todo se difundiam e exigiam um
surgiram - nas palavras de Borst - quando a imagem do mundo do conceito adequado. Em 1773, o Teutscl,e Merk11r registrava como
povo cristão de Deus se esfacelou. Na medida em que a conquista "estranhou que unas últimos dois ou três anos" tenham surgido
de terras no além-mar progredia, e a unidade da Igteja se rompia, tantas Histórias universais [Uni11ersall,istorien]"', e Schlozer, um de
corneçam a se multiplicar os títulos hist6rico-universais, os quais seus aurores, constatou, no mesmo ano, que "o conceito da História
deveriam registrar e unificar as novas e heterogêneas experiências. mundial [Weltgeschichte]" continuaria indefinido e vago. Deveria se
11
Nesse contexto, também ressurge, no século XVII, a desaparecida desenvolver "u1n plano, uma teoria, mn ideal dessa ciência 1 para
palavra "História mundial" [Weltgeschichte], que talvez tivesse sido que conquistasse a posição fundamental que lhe compete.'"
inspirada na History ef the world, de Sir Walter Raleigh."' Stieler Uma década mais tarde, em 1785, já fazia uma avaliação re-
registra Weltgeschic/1telhistoria 1111mdi sive uni11ersalis"', e, desde o sé- trospectiva: "Historie universal antigamente não foi outra coisa do
culo ~Vlll, _preferem-se formas mistas, como "Universalgesclticltte" que 'uma misturança de alguns dados históricos"', que serviam aos
[HIStona umversal] ou "Welthistorie" [Historie mundial]. teólogos e aos filólogos como "ciência auxiliar». Outra coisa era a
Apesar das variações terminológicas, o avanço da expressão História mundial [IMeltgeschichte], que agora assumira posição de desta-
"Weltgeschicltte" [Histól'ia mundial] denota uma profunda mudança que no título de sua obra: WeltGeschicltte [Mundo!-list6ria] - Schlozer
conceituai. Um sinal disso já fora dado com a tradução do Essai zur preferia essa forma de escrever, para caracterizar o caráter composto
l'ltistoi.-e géném/e de Voltaire, em 1762, por Versuch einer t1//gemeinen do conceito; "estudar WeltGesc/1ichte significa pensar como um con-
Weltgesc/,íchte [Ensaio de uma História geral do mundo], quando junto as principais transformações da terra e do gênero humano, a
se tratava de desacreditar a providência. 484 fim de reconhecer a situação atual de ambos, a partir de suas bases". 489
Com isso, Schlozer já citara os dois critérios que caracteriza-
A forma plural - como as "n1ais curiosas Histórias do mundo"
vam a nova História mundial: espacialmente, ela se referia a todo
[merkwardigste Weltgeschichten] - estava consolidada desde O final
o globo e, ten1pora1mente, a todo o gênero humano, cttjas inter-
do século XVII, no sentido de Histórias seculares.485 E, por isso,
conexões deveriain ser reconhecidas e explicadas, con1 vistas ao
presente. Retomando algumas sugestões de Gatterer e de Herder,
;:; SEHR~, Edwnd H.; e STARCK, Taylor{Eds.). Notku$ Jes Deumhm Werke. Halle, 1952, p. 33. e se antecipando a Kant/90 avançou no sentido de criticar a "s0111a
A mpetto, d. DóRST, Weltgeschichtcn im Mittclaltcr {cf. not.'I lSO) p. 452 e seg>.
m RAl.BIGH, Sir W;1lter. Tht h/Jto,y of ll1t m,r/d, Lond.re5, 1614. '
m STJELER, 1691; relmpresi;i.o de 1963, p. 1747. m CHLADEN[US, Allg~mtlne Cmhfrlitswiswmluift... (cf, not~ 277) (V.:,mdc), sem paginação.
,u ~oltaire. E uai sur l'hi~toire géaérale ~t rnr les moeurs et l'e~prit des mtiom depuis Ch.11demagne "' Schreibcn aus D ... (cf. nota 395), _p. 262,
;sq~'à nosjours <?. vols.), Genebra, 1756; e alemão: AUguutint Welrgmlildrlt, wi,dmitll zug/dch m SCHLÕZER, A. L. Vimtdltmg sci11u U11h>usal-Hij/01ie ('l.'ól. 2). Gõttingen/Gotha, 1773,
tt S11ttt1 m1d doj Et.gmt duer Võ/kwrhaftw von Carl d~m Gn,smi bis arif dii Zâtm L 11 dwl.gs XIV. (Vorbufrht), $MO paginação.
budulebln wudm (4 vols.), Dresdtn, 1760/62. m SCHLÕZER, A. L. Wtf1Gruliichte (vol. 1} (cf. nota 412), p. l e 71.
m ~ATTER~R,Joh~~n Christ~ph; Hrmdh11d1de, U11ivmalliütorlenad1 ihre,ugut1mten Umfange. Vol. m GATTBRER, Vom hhtorhche11 Pbn ... (cf. nou 223), p. 25, 28 e seg., panim; HEROER, A .
.1. Nebst emer vorlautigen Emlemmg Von der Hi!toric überh3Upt und der Univenalhütorie L. Schlozecs Vomdlung seinerUnivseual-His1orie (1772). ln: Sãmtlid1t H'e,ke (\·oL 5), 1891, p.
insbesonder..:. 2. Aull,, Gi:ittingen, 1765, p. 127 e seg. 436 e !Cg!; KANT, Idee ... (cf. nota 360), 9• sentenç,a. ln: Akadrmir-A1ugabe (vol. 8), p. 29.

178 179
A CCNfiGWAÇÃO DO MOOfR.','O CO.'«:flTO DE H,sró.<JA

[histórico-universal] de todas as Histórias especiais" [Specia/Ges- uma Historie mais detalhada"."' Três décadas mais tarde, em 1790,
chichten] como um simples "agregado", e abrir espaço para o novo Koster resumiu, na Deutsche Encyclopiidie, o debate entrementes
11
sistema da 1V1undoHistórian. O sistema alcançou, num patamar- desencadeado, e seu resultado. 494 A relação entre as Historiet1 geral
mais elevado de abstração, uma pretensão de realidade superior. e especial seria relativa, dependendo da definição dos objetos e,
Ele faz a intermediação entre causas pequenas e grandes, com que por consequência, "ambivalente ... Mas existe uma outra Historie
a História mundial se transformaria em "Filosofia". Sobretudo universal [Ut1iversal/1istorie] - simplesmente assim denominada-, que
seria importante que a "interconexão real" [Rea/Z11sam111enhangJ também se chama de História mundial geral [al(gemeine Weltgeschi-
dos acontecimentos fosse distinguida de sua "interconexão tempo- chte]". Ela trataria de todo o gênero humano, e da "superfície da
ral" [ZeitZusmnmenhangJ, que uma não é redutível à outra, ainda terra" como seu campo de ação. Ela n10straria, upor que o gênero
que ambas se condicionassem mutuamente. Disso resultariam humano se tornou aquilo que realmente é, ou aquilo que ele foi,
dificuldades para a representação, para as quais Gatterer já apon- em cada período".
tara1 1nas cuja solução estava em reconhecer a interdependência No último terço do século XVIII, se estabeleceu certa unani-
global das Histórias modernas. Pontos de vista "cronológicos"
e Hsincronísticos'' - em tertnos modernos: diacronia e sincronia
- devem se complementar reciprocamente, a fim de classificar a
História mundial de acordo com critérios imanentes. Corn isso, se
tornam dispensáveis as quatro monarquias da profecia divina, e as
midade de que essa História do mundo seria uma ciência mestra,
que 110 enwnto, ainda não teria sido escrita - nas palavras de Kant:
ela ainda
' não teria encontrado seu Kepler ou seu Newton.
Mas, ao mesmo tempo, esses autores constatam - e isso indica
aquela experiência moderna que só pôde ser exf!orada atra~é~ ~a
-
novas etapas derivam da importância que os "povos principais" e "História mundial" [Weltgesc/1ic/1teJ - que a escrita de tal H1stona
os "povos secundários" tiveram para a História mundial. Apenas mundial somente agora seria possível. É nisso que consistia a
1
'as revoluções, não a I~istória específica dos reis e dos sobera- verdadeira superioridàde, o ganho de experiência em relação à
nos, sim, nem todos os nomes deles'\ contavam, como destacara antiga.496 As mudanças constitucionais e a expansão da Europa
Gatterer."' "Na verdade, ela [História do mundo] é a Historie dos sobre todo o globo teriam tornado os ' interc~mbios mundiais"
1

acontecimentos maiores, das revoluções, refiram-se aos próprios cada vez mais "entrelaçados", de forma que não seria n1ais possível
homens ou aos povos, ou a sua relação com a religião, o Estado, as escrever a História de Estados individ~1ais, já que a interconexão
ciências, as artes e aos ofícios; aconteçam em tempos 1nais remotos real perpassaria tudo. 497 Em parte, o intercâmbio europeu suge-
ou mais recentes". 192 ria ser aquele "em que parece se dissolver gradativamente toda
Com isso, o novo campo semântico estava definido. Abrindo a História mundial" [Weltgesc/1i/1reJ.'" Em 1783, foi possível que
1não da transcendência, pela priineira vez, o gênero humano foi uma tese de doutorado apresentada em Mainz iniciasse de forma
encarado c01no o sujeito presuntivo de sua História, neste mun-
do. Ainda em 1759, Sulzer, num ato de desespero, exclamara: "A
m [SULZER,Johal)n GeorgJ. Kurxer &,grfjfal/er Wism1sduiflt11 umf ,mrfun Tlrd/e dcrC&lirsamkdt,
Historie geral, Historia Universalis, de todos os tempos e de todos 2. Auil., Frankfurt/Leipzig, 1759, P· 35.
os povos só pode ser muito breve a respeito de acontecimentos m KÕSTER, verbete "Historie" (d. nota 328), p. 651, 654.

individuais. Ela, portanto, não pode apresentar toda a utilidade de KANT, ldee ... ln: Ak11dmit-Amg11bt- (vol. 8), p. 18.
4•.r>

oiGATTERER, Vom historhchen Plan .. ,, p. 16 e seg5,


m BÜSCH, Emydopiidr'e (d. nota 437), p. 123; cf. ibld., p. 133, 165. Além dh>o, HALLE (vol.
m GATTBRER, Vom historischen Pl.t.n .... p. 66 e seg~. !), 1779, p. ,37.
m FORSTBR, Georg. Die Nordwes1kfüte von Amerika und der rlortige Pehhrndel (1791), h1:
m GA1TERER,Joh~nn Christoph. Efnlelrrmg i11 dinynclmmistisdie U11i~•ma!lr(sloríe. Gõttlligen,
1771, p, J e seg. Wtike, (vol. 2), s. d., p. 258.

181
180
A CóM:GWAÇÀó e<> NOOf.'.NO CCNWló OE HS!ól1A

enfática e assintática, con1 as seguintes palavras: HO gênero hu- a Era Moderna 1 aprendeu a se ver como utn novo tempo, ela se
n_iano chegou a um ponto em que, através de revoluções conhe- certificou de sua totalidade espaço-temporal, a partir da ideia de
cidas, foram derrubados os muros que separavam continente de 11
1-Iistória 1nundial ''. Por isso, a expressão, como pressuposto e de-
continente, povo de povo, e os diferentes setores humanos se limitação de experiências possíveis, também se transformou nmna
fundiram num grande todo, o qual é avivado por um espírito - 0 característica estrutural de Histórias possíveis: uTodas as Histórias
mesmo espírito que aviva a História - de que o mundo é um só só são compreensíveis através da História mundial e na História
povo, da mesma forma que a História geral mundial [allgemeine mundial n; 5º2 ou - como Novalis formulou de forma ainda n1ais
WeltgeschichteJ, motivo pelo qual ela deve ser tratada como tendo coerente: uToda História deve ser História mundial, e smnente
utilidade e influência para o rnundo", A História educaria os po- através de uma relação a toda a História o tratamento histórico de
vos, aos poucos, para uma cidadania mundial geral, ampliando-se uma matéria individual é possível".'º'
para uma História mundial [Weltgeschichte]. "Essa é uma verdade O novo conceito adquirira uma conotação coesa de totalidade,
que tem base na própria História 11 ,-199 o qual excluía modelos explicativos concorrentes. Por essa razão,
O conceito de História moderna, que, por assitn dizer, recor- Friedrich Schlegel p6de abrir suas Vor/es,mgm über Univwalgescl,i-
ria a si rnesmo para se definir, procurava encontrar na "História cl,te [Preleções sobre História universal], de 1805, com a seguinte
mundial" sua âncora empírica. Aqui se localizava O campo de ação frase: "Como toda ciência é genética, se deduz que a História
daquele ~ujeito hipotético chamado gênero humano, que s6 podia deve ser a mais universal, a mais geral e a mais elevada de todas
ser 1mag1nado como unidade na sua extensão temporalmente aberta. as ciências". Enquanto se falasse exclusivamente da História dos
Paralelamente às tentativas de escrever uma História mundial [Wel- hon1ens, ela se eh amana . u s1mp
' lesmente I--1·1stona
, . H ,S04 F01' a "H"1s-
tgeschic'.11~), surgiram, por iss_o, muitos métodos antropológicos sobre tória mundial" que, no período da Revolução Francesa, atribuíra
a Historia da humanidade.'ºº Aquilo que lhe faltava em termos de ao conceito de História sua função mestra - que, desde então,
concretização contemporânea esperava-se, de forma compensatória) não mais perdeu. Em 1845, Marx e Engels dizem a respeito da
~ara o futuro. "O verdadeiro ideal de uma tal História - que não ideologia ale1nã: HNós conhecemos apenas mna única ciência, a
e nada menos que um agregado de todas as HistÓl'Ías particulares ciência da História". E ela abarcaria a História da natureza e a dos
e especiais --, porém, só foi elaborado em tempos n1ais recentes", homens. "Mas ambos os lados não podem ser separados; enquanto
como Krug se refel'iu a Kant, quando definiu a História da huma- existirem homens 1 História da natureza e História dos ho1nens se
condicionatn mutuarnente". 5 º5 uHistória só era imaginável como
11
nidade con10 uma ºHistória da cultura humana". soi
A famosa pergunta de Schiller, na sua aula inaugural, emJena História natural e cmno História humana, isto é, como História
(1789) - "Que significa e com que finalidade se estuda História mundial, de forma que esse significado foi superado, absorvido e
universal [Univmalgeschichte]?" -, resumiu, de forma precisa e bri- transcendido [mif.gehoben] naquele conceito.
lhante, todos os argumentos que haviam transformado a História
mundial em ciência-mestra de todas as experiências e de todas as
expectativas. Assim corno, a partir da ideia 1
de '
progresso", a Neuzeit)
m LUDBN, Heinrich. Ueber den Vorw,g der Univers:1.!gc1chkhte, ln: Kfeint A1!fsiltze (vol. }).
Gôtting~n. 1807, p. 281. A res1;1elto de Schiller, cf. 11ot.3 418, Cf. KESSEL, Eberhard. R:mkes
Ide-e <lr.:r Univem.\hütorie, 1-llm•r/ulze Zdtic/nift, n, 178, 195~, p. 269 e .icss,
sr,; NOVALIS. Fugmente und Studien, Nr. 77. ln: Cesmnmc/te Wuke (vol. 3), p. 566.
m VOGT, A11,:li~... (t'Í. nota 287), p. 3 e ~egs. i~i SCHLEG.EL. Vorlemngcn über Univcmlg,;Hhkhte {1805/06), li\: Sr/1111/fr/1e- Werk<' (2' seçiio,
Y.>J Cf. CARtJ_S, ~riedrich Augun. Ideen zur Ge~chicht~ der Menschhfit. ln: Muligcl,mwe We,ke vol. 14) 1960, p, 3.
(vol. 6), L<!1pz1g, 1809, com urna ampla. bibliografia, p. 10 e segs. m MAR.X; ENGELS. Dic Deumhe ldcologie. ln: MBW [.\farx-Engels-We1ke} (vol. 3), 1962,
1 1
' KRUG, Enzy(/op:Mie {vol. l), p. 66 e segs. p. 18 (not:1.),

182 183
0 CON<ffi0 Df H.s1ó~,

- . As representações histórico-universais abrangentes perderam VI


segundo
. a giande
, concepção
. ,, . geral de Ranke - sua 10rça,
r
em ,
pat te porque d o meto do
. . lustonco-crítico aumentou as pt·et " ·
ensoes,
:romJven_ º,a. espec,ahzação, em parte porque a inconclusividade .
"História" como conceito '
e _to a H~~:ona foz com que crescessem as críticas coni'ra projetos ·.. ,_•\'/êfüfl:'i'. mestre moderno
um;ersa1s. Irrefletidas [as representações históricas], continuaram
sen o _sobretudo aqmlo que Hans Freyer subsumiu em 1948 no ·... :-.•"••·•"" 11•>.
conceito "História mundial da Europa"'º', que só no século XX Reín/iart Kosel/eck

e . a transitar para. u1na "História mundial propriatn me~.


c01neça t d" "
fc om !Sso, as
. expectativas que o século XVIII vinculav a ao conceito.
oram mod1-ficadasi mas não ultrapassadas.
H" A. única tentativa
. efetivamente bem-suced1·,ta para retirar . a
istó:ia mt'.ndial de sua unicidade processual, em constante re- Quando Friedrich Schlegel disse, em 1795, que "o caminho
novaç~o, ve10 de Oswald Spengler, quando derivou a decadência e a direção da formação moderna são determinados por conceitos
do ocidente de uma "morfologia da História mundial do d donünantes", esse reconhecimento já pressupunha o mode.rno
con1o H' tJ , n . J tnun o 1
conceito de Históda. , 09 Schlegel se serviu de uma série de deter-
1
. is ona_ ' c1c ica, natural. sos Em que medida seus círculos
cukt'.r~is pluralistas, em sua analogia estrutural, influenciam a futura minações atuais de movimento, todas abrangidas pelo conceito
H1stona do mundo fica, por enquanto, em aberto. de História. Nessa medida, valia para a "História", em especial,
aquilo que Schlegel reivindicava para os conceitos dominantes: "Sua
influência é itnensamente importante, decisivaº. História somente
pôde se tornar o 1noderno conceito mestre, porque, no período
do Iluminismo e através dos efeitos da revolução, todas as ações
precursoras até então descritas tinham influenciado esse conceito.

1. Funções sociais e políticos do conceito dE;i História


A configuração do conceito moderno, reflexivo de História se
deu tanto através de discussões científicas quanto através de diálogos
político-sociais do cotidiano. Quem fez a ligação entre os dois níveis
de diálogo foram os círculos do Bíldungsbfirgertum, a assim chamada
burguesia culta composta por intelectuais de formação acadêmica,
seus livros e suas revistas, que foram amnentando cada vez mais,
~~$ Cf· TROELTSCH , E mst. ·
Du l-lu/01/smru 1111d sâm P,ohlemr T!ibingen 1922 .
A~l•m, 1961, p. 652, 706·• e DILTl-'EY no último terço do século XVIIl, sendo seguidos, no século XIX,
• , \""Ih
,.,., em,l E'me1tung1ndieG
I. ' . . • 't :teuopresioent
• 1 r.
(1922), ln: Cw1mmtllt Sdulftm (vol. 1). Leipzi.-,./Berli 1n 1922 9., eis tSWJ5$ensc ia,ten
m FI ., , ,p. .:Jese_gs.
tEYER, H~ns. Wdtgeuhitl1te Bimpas {2 vol.l.). Wlubadcn 1948
s~s SPENGLER, Oswald Du U ite d ,1b d ' . SCHLEGBL. Übçr d1$ Studium der gtiechisd1~n Poesie (1797), ln: RASCH, Wolfdictrid1
Weltgi:sd1ichte. 52. Au.fJ,, Mun~q::~~t2;' p. 6~11 landes, Umris'.le einer Morphologic der 1N
(ed.). Krillsdtt Srh,iftw. Munique, 1964, p. 156.

184 185
por inúmeras associações e instituições. O surgimento de uma Bildttngsbiirgertwn. A utilidade pragmática da escrita da História
ciência histórica autônoma pode ser atribuído a essa classe médi deveria beneficiar todos os estratos - como Abbt já exigira-, e,
. 1 a
1nte ectualizad.a, a qual, simultaneamente cotn o desenvolvimento no ano de 1765, Christian Kestner fez, em Giittingen, a seguinte
de uma consciência hist6rica, se apropriava de sua identidade. Nessa pergunta, muito sugestiva: "Se a utilidade da nova História tam-
medida, a gênese do moderno conceito de História coincide com bém se estende a pessoas privadas?" Evidentemente "o historiador
sua função social e política - sem naturalmente se limitar a ela. deve nos descrever o homem em sua totalidade, e não só nas raras
Gatterer se orgulhava de ser catedrático de História, sem precisar situações especiais em que ele domina povos e conquista paísesn.sJt
ser - como historiógrafo da corte - servo de nenhum príncipe. A 11
A grande destinaçãoª que SchlOzer atribuiu à "História"
despeito de sua autoavaliação, as questões teórico-científicas que ele servia para o "esclarecimento e a felicidade da sociedade civil"."'
formulou continuam tendo validade duradoura. Foi justamente 0 Dai decorreram as ampliações na organização e na abrangência do
reivindica.do carát_er científico do conceito de História que reforçou objeto. "Toda a escrevinhação da História" deveria ser encarada
sua força mtegrat1va social e política. como "uma grande fábrica, composta por uma infinidade de coi-
A ciência histórica, que alcançou seu auge na Alemanha no sas'>, na qual colecionar, pesquisar e representar constituem tarefas
, 1 ' diversas. 513 Do ponto de vista do conteúdo, colocaram-se, no século
secu o XIX, reuniu em si duas etapas precursoras. Em primeiro
lugar, a zelosa atividade de colecionar, e a elaboração de ciências XVIII, ao lado da tradicional História das Igrejas e dos Estados,
auxiliares, que vinham se desenvolvendo desde o Humanismo. Em aquelas áreas reivindicadas por Bacon, como História da literatura,
segundo lugar, a reflexão teórica e crítica com que o Iluminis~o Híst6ria da arte e da técnica) do comércio, a História da ciência e a
reagira a seus predecessores. Ambas as etapas encontraran1 na his- História da cultura; enfim - nas palavras de Gatterer -, a História
toriografia alemã desde Niebuhr, sua frutífera síntese. dos povos, que abrangia tudo. "Portanto, para falar a verdade, só
Co1n isso, a Historie conquistou seu espaço científico, à medida existe uma Historie, a História dos povos". SH
que foi ~e desligando da função servil nas faculdades de Teologia e A nova sociedade civil se projeta c01no povo, como nação,
de Direito. O resultado desse ganho de autonomia se evidenciou e, por isso) Krug leva esse fator en1 consideração, quando uniu o
no último terço do século XVIII, quando também o novo conceito cosmos de todas as ciências históricas parciais - seria "prejudicial,,
de _História passou a ser definido."º Ele indica, por um lado, a con- separar a História do Estado e do povo, "pois, em função da estreita
qmstada autonomia da ciência histórica. Paralelamente, por outro ligação" entre ambos, "a História de un1 setn a História do outro
515
nen1 pode ser Colnpreendida".
lado, "História" alterou sua posição dentro da linguagem política.
11
Depois que a Históriau se transformara num conceito sobre o
Enquanto a expressão foi transformada em conceito central da in-
qual se refletia e que - explicando, fundamentando e legitimando -
terpretação do mundo, ela também estilizava a consciência daquela
estabelece uma ligação do futuro com o passado, essa sua tarefa pôde
burg~es1a que, nesses decênios, se ampliou de uma burguesia de
eruditos, um Ge/ehrtenbiirger/11111, para uma burguesia culta, um
m KESTNER, Chrilti;i.n, Unters11~hung det Fuge; Obskhdcr Nuucn de{neueren Geschichtc
auch auf Priv;Upersoncn wtn:cke:? Iu: GATTERER, Aflgtmelru Hisl,,riuhe Bib/fothek ... (vol.
51
° Cf. SC.Hl~DER, Th~odor (Ed.). HundertJ1hr1! f-fütori;chc Zeitschrift 1859-1959. Deitrâge 4), 1767, p, 214 e segs,
zur Geich1chte dtt 1-hstQdographie iu den deuuçhsprachigen Undern. Hislorisdie Ztfuduifi m Preíácio de Schlõzer a: MABLY, Abbé. Von de, Art die Ctu/Ji(J1te z11 sthtcil,e11. Stussbmg, 1784,
1
L 189, 1959; V'?SSKAMP, Wilhelm. Untmud111t1gw wr Ztfl- und Gml,i<hltdusff,mmg im p. 7 (ve,sào .ileml de F. R. Salzmann).
17.ja~rhw_idert ~ti GrypMm 1111d Lo/1wstei11. Eonn, 1967; HAMMERSTEIN, Notker,]Ht ,md m lbid., p. 1.3.
H'._sM1te. Bin Be_mag zur Geschichte des historhchen De1ikem an dcutsehen Universitãten im su GATTERER., Vom hhtodschcn Phn ... (cf. no1a 223), p. 25.
spaten 17. und 1m 18.Jahrh11nden. Gõtringen, t972.
m KRUG, EnzydopMle (vol. 1), p. Sl.

186 187
"HISTóttA" COMO CCNWTO M:Srf.E N.QO<J..\,'O

ser percebida de diversas formas. Nações, classes, partidos, seitas qual possamos encará-la com dignidaden.s2o ''História' 1, portanto,
ou outros grupos de interesse podiam - e até deveriam - recorrer de forma alguma, era apenas conhecimento especial que se res-
à História, na medida em que a derivação genética da posição que tringia ao passado e à sua 1nemória, ela continuava politicamente
o respectivo grupo defendia lhe dava o direito à existência dentro ativa e apresentava seu desafio social frente aos contemporâneos,
do campo de ação político ou social. A grande disputa entre Thi- qualidades que adquirira ao final do período iluminista. Por isso,
baut e Savigny (1814) a respeito da possibilidade de uma legislação Jacob Burckhardt fundamentou em 1846 sua famosa fuga "para o
gerá], ou o intenso confronto, de 1861, entre Sybel e Ficker sobre belo e indolente sul" com o argumento de que esse sul ((morreu
o sentido da política externa em relação à Itália, no passado - e aí para a Hist6ria".5'21 A viagem à Itália, portantoi não representou
estava contida também a do presente -, mostram a evidência geral uma fuga para a História, mas, sín1, para fora da _História - na
que caracteriza fundamentações históricas, independente de se medida em que Burckhardt procurou se esquivar da aguda crise
objetivar mais uma renovação ou mais uma estabilização. 516 política. Inversamente, Sybel - com o mesmo argumento - recor-
No sentido da Escola Histórica do Direito, Savigny destaca- reu em 1889 às suas "convicções prussianas e nacional-liberais".
va a superioridade da origem: "A dominação do passado sobre o Ele esperava que sua História da fundação do império (alemão),
presente também poderá se manifestar ali onde o presente tenta se "como visualização detalhada da doença e da crise, pudesse servir
opor de forma proposital ao passado". 517 Ficker insistiu muito mais para o fortalecimento da saúde e da concórdia adquiridas"."' De
na fungibilidade de juízos históricos e, com isso, para o perigo da forma mais drástica e sem pejo, Treitschke formulou sua intenção
unilateralidade partidária: "Sempre será muito dificil estabelecer análoga: "Minha intenção foi destacar com toda ênfase, dentro do
uma unidade [dos pesquisadores] ali onde ela seria mais importante, caos dos acontecimentos, os pontos de vista mais importantes - os
isto é, ali onde se trata de concepções históricas que se encontram homens e as instituições, as ideias e as nmdanças de destino - que
numa relação estreita com questões práticas do presente". 518 Ambas ·
deratn ongen1 ao nosso novo povo " [" vo lk st um] ."' "D e 1nane1ra
.
as considerações - provindas do campo conservador - reforçam nm ainda mais clara que seu predecessor, o presente volume mostra
provérbio muito usado no século XIX, de que se pode provar tudo que a História política da Confederação Alemã só pode ser obser-
a partir da História. 519 O que é decisivo, no caso, é que a disputa vada a partir do ponto de vista prussiano, pois somente aquele que .
se desenvolveu na plataforma comum de evidências históricas, está numa posição firme consegue julgar a mudança das coisas". 524
isto é, de evidências controvertidas, para se defink nos campos ou Após a fundação do império alemão, a disputa entre Treitschke e
jurídico, ou político, ou social. Luden desejou em 1810 "que nós Schmoller mostra em que medida pressupostos teórico-científicos
alemães ouvíssemos a Históda dos alemães" e assegurou isso para - e metodológicos - assumem funções políticas e sociais, e podem
si e para seus ouvintes, "para nos colocar no ponto a partir do qual influenciar a forma em que são percebidas. Treitschke argumentava,
devemos olhar para essa História, e nos imbuir do clima a partir do
m, LUDEN, Heimkh. Binige W,.:nte abrr &u SIJ//Umn der vatdandis,hen Cmhfrhlt. Jeua, 18l0;
11 ~Cf. STERN, Jacquei {Ed.}. TliibtH1I 1111d S,iv~11y. Ein programnu.tischer Rechtmreit mf reimpnessfo em Darrnm.dt, s. d,, p. 1L
Grund ihrer Schrif\en (19M}. Darmstad, 1959 (reimpmio}: SCHNBIDER, Fricdrich (Ed.). si, Carta de Jacob Durckhardt a Hernann Schauenbure:, de 28 de fevereiro de 1846. ln:
Uuivwalstaat váer Nafionalrlnat, Mad,l mui Bnde du c111t11 dtnfs(hen Rtldiu, Dic Strdt!chrifl.en DURCKHARDT, Max (ed.). Britft (vol. 2). Ha~ileiJ, 1952, p. 208.
wm Heinrich von Sybel und Julius Ficker zur deuuchen I{.aiserpolitik des Mitteb.lters. 2, ~ 1 SYBEL, Heinrich von. Dfr Btg11111d1mg du deu11-dien Rrídiu drmli Wilhclm I (vol. 1}. Munique/

Aufl., ltuubruck, 1943. Leipzig, 1889, p. Xlll e scg.


m STERN, Thi'baut imd &vlp1y, p. 137. m TRE.lTSCHKE, Heinrich von. Dtuts<he Gmliltlite im 19.JahrJmnJut (vol. l) (1879). Leipzig,
~ ~ SCHNEJDER, Ut1ivmJ!.;taat .. ,, p. 31.
1
1921, p. vm.
m WANDER (vol. 1), 1867, p. 1593, m lbid., vol. 3 {1885), p. VIII.

188 189
Ó (ON(ffrl) N Kisrów.

a partir de pressupostos ariscotélicos, a favor de uma estabilidade XIX deve deixar que os tnortos enterrem seus mortos, para chegar
da dominação, em confronto com mna socíal-democracia, que · ao seu próprio conteúdo'\ 528 Mas ele próprio produziu acuradas
Schmolle1~ por sua vez, tentava conquistarJ a partir de teoremas anáHses contemporâneas- corno O 18 Bwmário de Luís Bonaparte-,
histórico-social-evolucionistas e reformistas. para instruir o proletariado, a partir dos fracassos de revoluções
A utilização política direta da "História", que atingia um anteriores, e treiná-lo no "espírito da nova linguagem",
amplo público de ouvintes e leitores, só foi possível porque a His- Dependendo da posição, diferentes passados serviam - e con-
tória foi entendida não apenas como ciência do passado, rnas shn tinuam servindo - para a autodefinição pol!tica e social, e para os
como espaço de experiência c meio de reflexão da unidade de prognósticos que podem fornecer. Mas esse aspecto multifraturado
ação social e política que se te1n em vista. "De modo nenhum" a dessa uma História não significa, de forma alguma, subjetivismo
ciência histórica lidaria "só com a máscara mortuária dos passa- desenfreado ou um Historicismo, como o caracterizou Theodor
dos ... Compreendendo e compreendido, sua História representa, Lessing, em 1921: ele esconderia dentro de si "a presunção adoi-
para eles, uma consciência de si mesmos, uma cornpreensão de dada ... de que o pensar um processo e, o propno ,.
processo "529
.
si. Assim, nossa ciência vai conquistando sua posição e sua tarefa Pelo contrário, a relatividade de juízos históricos na ciência e na
naquilo que está surgindo; aquilo que acontece ao nosso redor e poHtica faz parte dos reconhecimentos que ajudaram a constituir
conosco não é outra coisa que o presente da História, a História o conceito de História. Sem prejuízo para a busca da verdade por
do presente".'" Ou, numa formulação singela de Schopenhauer: parte da História, cOino ciência, a referenciação às condições de
"Somente através da História um povo vem a se tornar plenamente produção do conhecimento a respeito de uma experiência ajudou
consciente de si mesn10". 526 a descobrir o mundo da História, no século XVIII.
Aquilo que é válido para a consciência nacional burguesa
Marx e Engels tentaram conquistar também para a consciência 2. Relatividade hist6rica e temporalidade
de classe dos trabalhadores, a ser desdobrada por meio da reflexão
histórica. Assim, Engels escreveu em 1850, a respeito da guerra Em 1623 Comenius comparou a atividade dos historiadores
dos camponeses, na Alemanha: "As classes e frações de classe, que com um olhar através de um binóculo que, na forma curva de um
em 1848 e 1849 foram traidoras, por toda parte,já as encontramos, trombone, tivesse voltado sua lente para trás. Assim se tentaria
em 1525, como traidoras, mesmo que então ainda num nível mais buscar no passado ensinamentos para o presente e o futuro. Mas
baixo de desenvolvimento,,. 527 Marx ironizava aquelas "invocações aquilo que impressionaria seriam as perspectivas retorcidas, que
dos mortos da Hist6ria mundial" que apenas serviram para a auto- mostrariam tudo sob uma luz diferente. Por isso, de forma algu-
estilização política. "A revolução social do século XIX não pode 11
1na seria possível confiar... que uma coisa reahnente se comporta
buscar sua poesia no passado, mas apenas no futuro ... As revoluções assim como ela aparece ao observador". Cada um confiaria nos
de antigamente necessitavam da lembrança da História mundial, seus próprios óculos, e disso decorreriam disputas e desavenças.''°
a fim de anestesiar seu próprio conteúdo. A revolução do século
rn MARX, Ki'lrl, Der achtiehnte Brumaire des louis Bonapwo (1852). (n: MEW (,•oi, 8), 1960,
m DROYSEN,Joharm Gumv. Geuhichte de, prwssisd1e11 Polilik (vol. J). Derlim, 1855, p.1H. p. 115, 117.
m LESSING, 'Theodor. Ceuhichte a/1 Sitwgtbimg riu Similosw. Munique, l92l, p. 21.
m SCHOPENHAUER., Arthur. Die Wclt 3Js \Ville und Vorstdlung {1819). In: SilmtUcht Werke
(vol. 2). Müuchcn, 19ll, p. 507. m COMENIUS,Johmn Amos. Dils L.'lbyrimh der Wclt und das Paradies des Herzem (1623).
ln: KOHUT, Pavel (Ed.). Lutcrna/Frankíurt, 1970, 11, 15, p. 105 e 1eg5. (veido alemã de
"' ENGELS, Fricdrkh. Oer deutsche :füuemkrieg. ln: ME\V {vol. 7), 1960, p. .329. Zdonko füudnik),

190 191
A transferência da teoria da perspectiva, vinda das ciências Chladenius partiu do princípio de que a Hist6ria e a concep-
naturais, para a Historie ganhou evidência no século das guerras ção a seu respeito costumam coincidir, Mas para poder interpretar
religiosas e de seus libelos confessionais - na medida em que os e julgar uma Hist6ria 1 seria necessárfa uma separação rígida: l(A
autores estavam dispostos a reconhecet posições dogmátkas corno História é umâ coisa, mas a concepção a seu respeito é diferente e
relativas, Mas isso não significava que a nova posição, racional múltipla"."' Uma Hist6ria em si [Geschicl,te an ;ich] só seria pensável
e supraconfessional, fosse relativizável. O antigo topos de que o sem contradições, mas qualquer relato a respeito sofreria quebras de
historiador deveria ser apolis, isto é apáttida, para poder servir perspectiva. "Aquilo que acontece na História é visto de diferentes
à verdade e apenas relatar "aquilo que aconteceu'\ 531 perpassa, maneiras por pessoas diferentes>>. s35 Aquilo que seria decisivo seria
como postulado científico e ético, todos os séculos. Bayle e Vol- se uma intercone:xão de acontecimentos é avaliada por u1n inte-
taire estiveram tão comprometidos com ele quanto Wieland ou ressado ou um estranho> um amigo ou um inilnigo1 mn erudito
Ranke: "Tudo interdepende: estudo crítico das fontes autênticas, ou um leigo ► um nobre) um burguês ou utn ca1nponês, por um
concepções apartidárias, representação objetiva; o objetivo é revólucionário ou um súdito fiel. A partir desse diagn6stico feito a
que verdade plena se faça presente", ainda que ela não possa ser partir do mundo da vida, Chladenius deduz duas coisas: primeiro, a
atingida de todo. 532 incontornável relatividade de todos os "juízos opinativos", de toda
O autoafastamento de uma posição partidária histoticamente a experiência, Podem existir dois relatos mutuamente contraditó-
sempre se volta contra partidos concretos mas diferentes. Do ponto rios que reivindicam ser verdadeiros. Pois, "existe uma razão para
de vista epistemol6gico, encontra-se, por detrás do postulado do que reconheçamos as coisas de uma fonna e não de outra, este é
suprapartidarismo que visa reproduzir a realidade do passado de o ponto de vista sobre uma mesma coisa ... Do conceito de ponto
uma forma pr6xima à verdade plena, um tipo de realismo ingênuo,
de vista decorre que pessoas que encaram uma coisa de diferentes
Não foi essa inflexão metodologicamente antiga e imprescindível
pontos de vista também devem possuir concepções diferentes da
no procedimento da pesquisa de tentar ser suprapartidário que coisa ... ; quot capita, tot sensus'i-5?'6
construiu o mundo histórico. Pelo contrário) é a referenciação da
Em segundo lugar, Chladenius deriva de sua análise da tes-
Hist6ria a seus pr6prios pressupostos de conhecimento que resume
temunha ocular e do seu comportamento o perspectivismo da
a Hist6ria moderna, tanto no campo científico quanto no pré-
pesquisa e da representação posteriores, É claro que, através do
científico, tanto no político quanto no social.
questionamento adequado de testemunhos contrários e através
Ainda orientado no ideal realista do conhecimento, Zedler
da busca por evidências, deve-se tentar reconhecer a pr6pria
escreveu de forma resignada que ºseria difícil, quase impossíveli ser
Hist6ria [Gesd1ic/1te selbst] - com que também Chladenius reco--
um historiador perfeito, Quem quisesse sê-lo deveria, se necessário,
nhece uni moderado ideal realista de conhecimento - nrns os 1
não pertencer a uma orden1 nem a uni partido, nem a uma pátria,
1
acontecin1entos do passado jan1ais poderiam ser reconstituídos
nem a uma religião","' Foi mérito de Chladenius ter demonstrado
em sua totalidade, através de qualquer representação. Sobretudo
que exatamente isso é impossível.
aquele historiador que queira relatar mna 11 História com senti-
do" não pode evitar que ela seja reproduzida através de "imagens
s.i1 LUKIAN, Wi! ma11 Gu,Mc/ite sdmibe11 sol/. Munique, 1965, p. 41. 148 (veuão alenli de H.
Homeyer).
Ili RANKE. Einleitung zu den Analekun der englisd1en Geschichte. h1: Sií1111/id1e Wt,kt (vol. ~,i CHLADBNIUS, Ef11(dtu11g.. , (d. nota 262)1 p. 195.
21). 3. A\1ll, 1879, p. 114. m lbid., p. 185; e CHLADENlUS, Al/gm1efoe Gmhid1trn,fmmd1aft (cf. nota 277), p. 151.
Sll PamiinusS1n1.d1 (1572~1649), cit1<fo porZEDLBR (vol. 13), 1735, p. 286 {verbW: "Hi5torie"), m CHLADBNEUS, Ei1r/eiti111g... , p. 188 e seg.

192 193
o CONCHfO DE Hasr&!A

rejuvcnescidas". 537 Ele terá de escolher, resmnir e se servir de con- que não se deram conta de que estão pedindo algo impossível'\ O
ceitos gerais - mas, com isso 1 se expõe de fonna inevitável a novas historiador- como o pr6prio participante - não conseguiriâ evitar.
an1bivalências~ que por sua vez necessitain de explicações. Pois, de trazer consigo seus pontos de vista, que dependem da origem,
"quando um escritor de Hist6ria escreve imagens rejuvenescidas, do status, dos interesses e da posição, de forma que uma História
setnpre visa a algo" - algo que o leitor precisa reconhecer, caso post evenwm sempre se transforma."' E Chladenius deu mais um
queira avaliar a História em questão. 538 passo adiante ao diferenciar o perspectivismo em relação à Históriâ
Desde a Hist6ria vivida até a História cientificamente elabo- da "narrativa partidária.'\ que, contra "o saber e a consciência",
rada, "História" sempre se concretiza nu1na perspectiva que possui ''distorce e obscurece, de forrna premeditada", os acontecimentos ...
sentido e que cria sentido, perspectivas nas quais uma remete à Uma narrativa apartidária também não pode significar o relato de
outra. Desde Chladenius, os historiadores estavam mais seguros uma coisa sem pomo de vista, porque isso, simplesmente, não é
do que até então para ver na plausibilidade uma verdade própria, possível; e narrar partidariamente não pode significar narrar uma
exatamente uma forma hist6rica de verdade. E como devessem coisa e uma História de acordo com seu ponto de vista, porque,
ter seu ponto de vista [Se/Jeptmkt], também tiveram a coragem de nesse caso, todas as narrativas seriam partidárias'\
11
assumir aberta e conscientemente um posicionainento" [Standort]. Com essa constatação de que a formação de juízo perspectivista
Assim, estava claro para Abbt "que a História de qualquer povo e o partidarismo não são idênticos, Chladenius traçou uma mol-
na Ásia soa diferente que na Europa", 539 Gatterer escreveu uma dura teórica que até hoje não foi ultrapassada. Pois a exigência da
Abhand/ung vom Standort tmd Gesichtspunkt des Geschichtsschreibers compreensão, o postulado de que também os outros e o adversário
[Tratado sobre o posicionamento e o ponto de vista do historiador], devem ser levados em consideração, a doutrina que, desde Herder,
um trabalho de comparação, no qual Lívio é avaliado à mão de um atribui a cada época, a cada povo e a cada indivíduo seu próprio
possível "Lívio alemão"."º Também Schlozer, Wegelin, Semler ou direito - essas coisas todas só podem ser cumpridas quando os cri-•
K.Oster falavam de "ponto de vista" ou ''posicionamento". Assim térios da formação do juízo e da representação não são redutíveis
também Hess, em 1744, escolheu um que lhe possibilitasse uma a uma simples tomada de partido.
"forma de conceber", !(que considerei a mais apropriada, tanto Num outro sentido, Chladenius ficou retido na antessala do
como retrospectiva ein relação às coisas do passado quanto con10 mundo histórico, c1úa hermenêutica fora o primeiro a delinear:
prospectiva en1 relação às coisas do futurd 1• 541 Dessa forn1a 1 a visão sua crítica e suas metáforas do conhecimento se referiam sobretudo
de Chladenius se transformou num lugar-comum. ao espaço. A História transcorrida como tal representava, para ele,
"Enganam-se muito aqueles que exigem que um historiador um objeto inarredável, para o qual os homens apenas dirigem seu
se comporte como alguém sem religião, sem pátria, sem fanúlia - é olhar diferenciado. Chladenius ainda não conseguiu imaginar que
também o transcurso temporal pode modificar ex post a qualidade
de uma História.
m lbid,, p. 221; "GeJdiichte" aqui alllda é pluoll
~)& lbid,, p. 237.
O componente temporal do perspectivismo, porém, vai se im-
},, ABBT, Thomas, Gesd1ld11t des muisdr(frht11 Gwh/allft, s,nwit selbige ili Eur"p,1 [ftkannt wordw, pondo rapidamente, justamente motivado por Chladenius. Gatterer
vom Anfangtder Weltbisarif11usm Zeltw. Ausdem groHen Werkeder allgemeincn Welthhtodc já ficou em dúvida: "A verdade da História se mantém, no essencial,
:msgezogen. ln: Altt Histode (vol. t). Halle, 1766, p. 219.
,;o GATIERER,J. C. Abh~ndlungvomSt~ndort und Ct.sJclmpunkt de.1 Gcschichuchrdbers oder a 1nesn1a ~ ao menos é isso que pressuponho aqui '") ainda que eu
der temsehe Li vim. ln: GATIERER, Allgtmeiue Hi's/01/sdit Bibl(othtk (vol, 5), 1768, p. 219.
m HESS,JohannJ2kob. Von dtm Rtithe Ccttes. Ein Vcnud1 Uberden Pbn dergottlichen Amulten
uud Offenbarung,en (vol. t). Zudque, 1774, p. XXIV. rn CHLADENIUS, Al(,:ctr.ânc Cesd1frl1tswi1w1ichafl, p. 166, 151.

194 195
•H,sr&•A" COMO CONCffiO /Af.WE ,',IOOW.0

saiba que não se possa pressupô-lo sen1pre". 543 Büsch constatou, que agora - como em Lessing - permitia interpretar progressiva-
em 1775: "Novos acontecimentos podetn tornar importante rnente as transformações históricas. Nunca existe uma Historie
uma História que não nos interessava ou nos interessava pou ... imutável - disse Semler, em 1788. A soma transversal de dados,
co" - e ele se referia à Hist6ria do lndustão, o qual só. teria sido o conteúdo e a elaboração apresentam uma diferença, de tempos
incluído uns 20 anos antes no campo das interconexões gerais, em tempos. "Essa diferença é simplesmente inevitável... Ela é
pelos ingleses. 544 uma consequência da mais sublime economia de Deus dentro
Que a própria História [Geschichte selbst] só vem a ser construída do mundo humano". 547
em virtude dos seus efeitos interconectados é a próxima dedução Desigualdade, mudanças e variações de todas as circunstâncias
que Schliizer tirou - ainda que de passagem -, em 1784: "Um uperduraJn indefinida1nCnte, para mna educação moral dos homens,
fato pode parecer extremamente insignificante para agora, n1as, que vai nrndando constante1nente'\ Antes de ler seus textos, .teria
110 decorrer do tempo, pode se tornar extremamente importante sido dada muito pouca atenção "a essa História ... de todos os
para a própria História ou então para a crítica", 545 No horizonte historiadores, que se estende para frente". É daí que seria possível
da História mundial, concebida como unitária, os pressupostos derivar as etapas do conhecimento crescente, o qual habilita aqueles
podiam retroativamente mudar de posição. que nasceram depois a desmascarar os interesses partidários das
Finalmente, não s6 a distância temporal crescente em relação gerações anteriores e de seus historiadores, É exatamente isso que
ao passado foi vista como constitutiva para sua mudança. Também Semler tenta fazer com os três primeiros séculos do cristianismo.
se deduziu que com a distância temporal crescente aumentavam as Quem pleiteia "a imutabilidade do sistema eclesiástico", na sua
possibilidades de conhecimento. Com isso, também a testemunha Histórh. 1 estaria incorrendo em preconceitos e servindo a interesses
ocular, que até então ocupava uma posição privilegiada - ainda que hierárquicos de dominação. Estaria impedindo o desdobramento
já relativizada por Chladenius -, perdeu sua posição como fonte moral da religião cristã, "e não pode haver ... pecado maior contra
principal: a lembrança do passado não é mais mantida através da toda a verdade histórica". 548
tradição oral ou escrita, ela é, muito antes, reconstruída através Desde que se estabeleceu a perspectiva temporal de seu desen-
de um processo crítico. ºCada grande acontechnento está envol- volvi111ento, surgiu da verdade histórica-relativa uma verdade supe-
to numa névoa para os contemporâneos sobre os quais ela age rior. Pressuposto dessa posição superior foi a alteridade perspectivis-
de forma direta, névoa que vai se dissipando aos poucos, muitas ta, e - daí decorrente, como em Semler - efetiva do passado, medida
vezes depois de algumas gerações". Uma vez decorrido tempo pelo presente e pelo futuro. "Que a Hist6ria do mundo precisa ser
suficiente, o passado aparece graças à "crítica histórica", que sabe reescrita de tempos em tempos, sobre isso creio que não resta maís
calcular as exigências de verdade do espírito de partido, "sob uma dúvida, nos dias de hoje" - escreveu Goethe, pouco depois. "Mas
fonna bem diferente". 54 (. tal necessidade não decorre do fato de que tenha sido descoberta
Com a temporalização da História, a perspectiva temporal
1nuita coisa nova, nias do fato de que aparecem novas concepções,
adquiriu status metodológico. Também aqui foi a economia salvífica porque o cidadão de um tempo que progride é levado a posições a
partir das quais aquilo que passou é visto e avaliado sob uma nova
543GATTERP.R, Ahhandlung vom Standort. .. , p. 7.
iH nüSCH, En:erd,,pJdie (e( nota 437), p. L1&,
S1i SEMLBR, Johann S3lomo. Neue Vmruhe die KiuhenhiJtorit der Wft/1 Jr.hrh1111dett? meh,
Hs SCHLÕZER. Vorrccle rn MabJy (d. nota 512), p. 15 (nota),
<11if.:rnkfãrm. Ldvzig, 178"/, p. 1 e segs.
~n PLANCK, Gwliid11.-der E111ml1rmg,,, (d. nota 281) {vol. l}, p. Vf!; PLANCK, El11fdr11113 . . (cf.
nota 465) (v-01. 2), 1795, p. 243.
111 Ibld., p. 101 ç seg.

197
196
O cet,.'airO DE H.srOOA

forma".'" Desde então também a Hist6ria como tal [Geschichte partido ... Devemos tomar panido pelo bem e pelo divino, ... mas
iiberha11pt) adquiriu uma qualidade genuinamente temporal. Goethe nunca devetnos ser partidon, ou até "fazer partido". 552
expressara uma experiência histórica que crescia vagarosamente e Naquilo que tange à aporia que se abre entre a busca por ver-
se acumulava desde Chladenius: que a referência a uma. posição é dade e seu condicionamento hist6rico, Schlegel contornou a posição
constitutiva para a experiência histórica, be1n como para o conhe- de Hegel. Hegel queria, por nm lado, levar em consideração "a
cimento hist6rico. Com a temporalização dessa História rompida totalidade de todos os pontos de vista", ao apresentar sua História
ern função da perspectiva, se tornou necessário refletir também filos6fica do mundo."' Por outro lado, exigiu a irrestrita tomada
sobre o pr6prio posicionamento, já que ele se modifica dentro e de partido a favor da razão, a favor do Direito. Somente ela poderia
com o movimento da Hist6ria. Essa experiência foi confirmada querer reconhecer a verdadeira Hist6ria, "ela toma partido pelo
com os acontecimentos que se desenrolaram na Revolução Francesa: essencial.'" [...]. Uma sabedoria antiga diz qne se deve proceder
foram eles que forçaram concretamente a se tomar partido. É por de forma históricaº. A exigência de apartidarismo só teria senti-
isso que Friedrich Schlegel exige uma reflexão aberta a respeito do do enquanto se tentasse proteger aquilo que se encontrou contra
pr6prio posicionamento. Ele pedia que o historiador apresentasse, juízos unilaterais. Mas ampliar o apartidarismo a tal ponto que o
Hde coração aberto", usuas opiniões e seus juízos, sem os quais não historiador seja relegado ao simples papel de "espectador" - que
se consegue escrever nenhuma História, ao menos uma História relataria tudo, sem qualquer objetivo - significaria transformar o
expositiva'\ bem como apresentasse seus princípios básicos a respeito próprio apartidarismo em algo sem sentido: "Sem juízo, a Hist6ria
do Direito e da fé. "Não se deve acusá-lo de partidaris1no, ainda perde seu interesse".
11
que sejamos de opinião diferente - acrescentou, no n1es1no sen- Com a tomada de partido a favor da razão - que, per defini-
550
tido de Chladenius. Enquanto os partidos do passado perduram tíonen-1, na verdade, não permite outro partido-, Hegel continuou
para dentro do presente, até un1 utrata1nento duplo 11 da História aplicando o formato lingu1stico da Revolução Francesa à Hist6-
seria '1inevitável e necessário". Constituiria ilusão evidente quando ria. Desde então, se mantém como dilema de toda representação
se tentada encontrar "a verdade hist6rica única e exclusivamente histórica o dever de contornar a tomada de partido, sabendo, ao
entre os assiin chamados escritores apartidários ou neutrosª. 551 A mesmo tempo, que a referência a ela constitui mandamento prévio
questão que ficava em aberto era qual seria "o partido correto", de qualquer conhecimento hist6rico. Assim Gervinus - como pro-
cuja posição se deveria assumir. A pressão política por uma decisão pagador de uma política liberal-, defendeu o postulado tradicional
desembocou na busca por um juízo adequado. Schlegel tentou en- de ser "imparcial e apartidário". "Conciliar contradições parece ser
contrar a resposta pelo caminho hist6rico-filosófico, procurando o destino do historiador". Fé, autoridade ou pátria não deveriam
se elevar "à grande posição da Hist6ria", que indica a direção de confundir seus sentidos: "e, mesmo assim, ele deve ser mn parti-
longo prazo das inovações duradouras. Ou, como formulou mais dário do destino, um defensor natural do progresso". Representar
tarde - em Signalur des Zeitaltets [Selo da época] -, de forma mais a causa da liberdade é inevitável.'"
contida: deve-se apenas "não permitir que o partido valha pelo
m SCHLEGEL, Überdie neuere Geschkhte, p. 129; SCHLEGEL, F. DieSigoatutde5 Zeit~lters
m GOETHE. Materialien zur Ge!chichte der Farbdehre. ln: Hambmger Awgabt (vol. 14), 1960, {1820/23). lo: ibld., p. 519 e seg.
p. 93. m HEGEL, Dit Vemu,ifi ... (cf. nou 236), p. 32.
S$o> SCHLEGEL, E Über dic ncuerc Gcschichte, Volernngi:n 18I0/11. ln: Sif,nt/idit Wakt {1. füHEGEL, Ef,1/d11111g ... (cf. nota 404), p. 283; cf. HEGEL, Enzyklopi!die ... (d. nota 382), § 549,
Abt., vol. 7), t966, 129. p. 427 e seg:s,
;;, SCHLEGEL, F. Über Fox und demn historisçhen Nachbss (1810). ln: lbid,, p. 115 e seg. m GllRVINUS, Georg Gottfried. Gmnd~)gt dtr Hi!torik. Leip2lg, 1837, p. 92 e segs.

198 199
0 (0NCE(T0 t>t H/$TÕ;¾A

Contra essa identificação do posicionamento com urna tomada depende muito mais da posição, e no anterior dependia muito mais
de posição política, Rànke defendeu uma posição que ficava num do conhecimento históricd1. 557
outro extremo, a - aparente - abstração temporal da ciência his- Stein aceitara o condicionamento histórico da respectiva po-
tórica: "Gen•inus (diz ele no necrológio'") repete muitas vezes a sição corno pressuposto do conhecimento histórico. Pois se os
intenção de que a ciência deve intervir na vida. É verdade: Mas, para próprios ritmos de tempo da História se modificam, há necessidade
ter efeito, ela deve ser, em primeiro lugar, ciência; pois é impossível de perspectivas que lhes sejam adequadas. Por isso, Stein procurou
que se assuma uma posição na vida, e transferir essa posição para a conhecer as leis do movimento da História, isto é, da Era Moder-
ciência - nesse caso a vida age sobre a ciência, e não a ciência sobre na, para poder derivar delas um futuro, que ele queria, ao mesmo
a vida ... Só podemos exercer um verdadeiro efeito sobre o presen- tempo, influenciar, através do esclarecimento de sua posição. O
te, se, antes disso, abstraímos dele, e nos colocamos numa posição diagnóstico consegue arriscar melhor um prognóstico, quando se
elevada de uma ciência livre e objetiva". Ranke buscava, em última certifica de seus condicionamentos e de seus limites históricos. En-
instância, desvencilhar-se do condicionamento histórico de seus quanto a História de antigamente estava preparada para todo tipo de
juízos históricos, ao refutar categoricamente, qualquer intenção
1
11
surpresas, já que suas Histórias não sofriam nenhuma modificação
que enxerga tudo aquilo que passou sob o ponto de vista do dia de fundamental, a Era Moderna parece despreparada para surpresas,
hoje, sobretudo, porque esse muda constantemente". Para Ranke, porque o futuro não pode mais ser derivado de forma não mediada da
o condíciona.mento histórico se manteve como uma restrição ao experiência do passado. Nas palavras de Feuerbach (1830), "História
conhecimento histórico. só possui aquilo que é o princípio de suas transformações".'" Com
É característico não só da tomada de posição que foi assumida isso, o perspectivismo histórico se transformou, por completo, de uma
nessa controvérsia, mas também, e talvez ainda 1nais 1 a ambivalên- "categoria de conhecimento" em uma determinação fundamental
cia da "própria História" [Geschichte selber], que ela própria fornece de toda a experiência e de todas as expectativas, que tem sua origem
todas as restrições que podem ser levantadas contra ela. Isso faz na própria História. A diferença temporal entre passado e futuro
parte da couceitualidade de um conceito mestre, que, dependendo conquistou sua qualidade própria, uma qualidade histórica, que só
da posição e do partido, pôde ser preenchido de forma diferente. pode ser avaliada através de abordagens que guardam a consciência.
Que a perspectiva temporal se referia a um movimento que de sua relatividade, de sua "temporalidade". Por isso, um contem-
sofria modificações constantes e, no final, se acelerava, isso já fora porâneo procurou '"'sua salvação ... unicatnente ... na compreensão
formulado, de forma muito clara, por Lorenz Stein, em 1843. e na utilização de nosso próprio tempo, que é instrutivo, porque
Há 50 anos, a vida estaria se acelerando. "Tem-se a sensação de não mais recebe, como o tempo passado, uma História feita, para
que a historiografia não consegue mais acompanhar a História. transmiti-la 1 sem modificações, aos descendentes". 559
E mesmo assim, numa aná1ise mais precisa, se verifica que é jus- Um tempo que sempre é esperado como tempo novo nem
tamente o contrário que acontece. Da mes1na forn1a corno todas pode ser diferente que fazer emanar de si uma História que só pode
aquelas diferentes formações surgiram, de repente, elas podem ser
abarcadas numa única visualização. E a mais importante diferença m STEIN, Lon:nz, Díe s'•,fu11iâpdlmfammg Ftankrdch;. Leipzig, 1843, p. 68.
desse período em relação ao anterior, é que nele o juízo correto ~ 1 PEUERDACB, Ludwig. Todesgedanken (1830). BOLIN, Wilhelm; eJODL, Friedrkh (&is.).
Samtlkhe Werke (vol. 1). 2. Aufl., 1960, p. 48; d, BLUMENBERG, Hms. Die LtgiflmltJ/ der
Nwzdt. Fn..1lkfort, 1966, p. 74.
m RANKE. Gt:otg Gottfrtcd Gt!tvinm: "Gedkhtnisrede" (no dia 27 de H:ttmbro d~ 1871). m PERTHES, C!emenl Theodôr. Ftitdrlch PutheJ' ü.bm (vol. 3). 6' ed., Gotha, 1872, p. 360 (da
l-lí$Mrisd1e Zdtsd11ift, n. 27, 1872, p. 142 e seg. carta de um amigo a Perthe-s).

200 201
ser experimentada de forma perspectívista. Com cada novo futuro, significado incomensurável desses anos, quando se reconhecer que
surgem novos passados. "Não se pode netn prever o que uni dia todo o nosso continente se encontra num período de transição,
ainda será História. O passado talvez continue fundamentalmente no qual as contradições de um meio século em desaparecimento
não descoberto! Ainda necessitamos de tantas forças retroativas!" . secu
se c110cam corn outro me10 ' 1o que esta' 'v1n
d o".562 At roca de
(Nietzsche).S 60 correspondência de Perthes represent.~ uma caixa de ressonância da
opinião pública da época, e, assim, várias passagens de suas cartas
3. A irrupção do distanciamento remetem àquela experiência de aceleração que fora apontada como
entre experiência e expectativa específica para o novo tempo que iniciava. ºQuanto mais a História
compacta os fatos que se sucedem, tanto mais intensa e geral será a
A História - escreveu Novalis, em 1799- se compõe de coisas disputa". Períodos anteriores conheceram mudanças de rumo que
do passado e de coisas do futuro, de esperança e de lembrança. 561 se estenderam por séculos: unosso te1npo 1 porém, reuniu aquilo
Essa equação clara se transformou num problema. O perspectivis- que era totalmente irreconciliável dentro das atuais três gerações,
1110 temporal derivou de uma História que parecia se afastar> con1 convivendo simultaneamente. As enormes contradições dos anos
velocidade crescente, de seus dados prévios. A experiência de uma 1750, 1789 e 1815 dispensam a transição, e não aparecem como
ruptura que estaria separando, de forma violenta, as dimensões do algo e1n Hnha de sucessão, mas cmno algo sitnultâneo dentro dos
passado e do futuro, a consciência de um período de transição está h01nens que vivem nesse momento - dependendo se são avós, pais
amplamente registrado, desde a grande revolução. Desde então, ou netos". Com esse diagnóstico da contemporaneidade do não
também vão se afastando os enfoques em direção a um futuro a contemporâneo, Perthes estabeleceu mn parâmetro para a "incrível
ser criado, por um lado, e um passado que· vai se perdendo cada velocidade" da mudança. 56 '
vez mais, que só pode ser reconquistado historicamente, por ou- A experiência existencial de um passado que ia se afastando
tro lado, - ainda que inicialmente ambos ainda sejam cobenos cada vez n1ais rápido desencadeou, em sentido inverso - e, por
pelo conceito de História. No decorrer do século XlX, vai se assim dizer, de form.a cotnpensatória -, em todo lugar, "prazer e
desenvolvendo cetta distinção que atribui a dimensão de futuro simpatia para a História. Em todos os cantos - escreveu Perthes,
mais ao "progresso", e a dimensão do passado 1naís à "HlStóda'1,
por ocasião de sua divulgação da A1omm:euta Gemumíae historica -,
ainda que esse par de conceitos, de forma alguma, fosse utilizado os livros de ocasião, os jornais de província, os progratnas escola-
exclusivan1ente de maneira antitética. Na História pensada como
res surgidos fora do mercado da grande literatura voltam-se para a
"Entwíckl1mg'\ como 11 evoluçãon ou como ''desenvolvimento", História, em geral para a História local, e dão conta do primeiro
a1nbas se juntaram. . antes d e nos
, » ." '
amor con-1 que é encara do o tcn1po que se 1oca l1za
A consciência de estar no limiar de uma guinada estava ampla-
Foi numa situação de mercado aparentemente tão favorável
mente difundida, em torno do ano de 1800. "Quaisquer compara-
que Perthes tentou lançar sua E11ropaísche Staatsgeschíchte [História
ções de nosso tempo com as guinadas na História de determinados
dos Estados europeus]. Mas enfrentou dificuldades, que justamente
povos e de determinados séculos são muito mesquinhas" - escreveu
derivavam da nova experiência histórica da aceleração. Ela fez com
Perthes, depois da queda de Napoleão; "só se poderá aquilatar o

m PERTHES, Lt/;w (vol. 2), p. 240 e seg.


wi NIETZSCHE, Die frOhliche Wissenschaft {!882/86), Nr, 3--4. In: Wuke {vol. 2), 1955, p. 62. m Jl!/d., p. 146 e ~eg.
m NOVALIS. Heinrich von Ofterdingen, 1, 5. In: Ge.iamwdtt WuJu (vol. 1), 1960, p. '258. ~ 1 Jbid, (vol. 3), p. 22.

202 203
"Hlsró.:JA~ CO.',\() CONC.fllô Mf$TU 11.00!RNO

que os lústoriadores profissiomis hesitassem em escrever sobre História as expectativas do futuro que iam surgindo e ganhando espaço.
moderna, em especial sobre uma que - como se costtunava fazer Logo pareceu a amarga afirmação de Dahlmann sobre "uma Historie
- chegava até a uHistória contemporânea 11
• muito elegante para se estender até o dia de hoje". 566
As três dimensões do tempo pareciam se desagregar.. O pre- Nas palavras da enciclopédia Brockhau, der Gegenwart (Bro-
sente seria muito veloz e provisório. "Falta-nos um ponto fixo a 1 ckhaus do Presente], a Revolução Francesa traçara um "limite
partir do qual os fenômenos pudessem ser encarados, avaliados e sangrento entre passado e futurd', 567 que rompeu de forma pers-
permitissem conduzir até nós" - escteveu Rist [a Perthes). Se estaria pectivista o conceito de História, e lhe deu um rosto de Jano, de-
vivendo "em tempos de uma decadência, que apenas começou". pendendo da direção em que era apontàdo. Jmmermann, envolvido
E Poel confirmou: "Em todas as instâncias da vida - na civil, na na discussão atual sobre literatura histórica, distinguiu, na época,
política, na religiosa e na financeira-, a situação não é provisória? três estágios de um acontecimento histórico: a primeira fase de
Mas o objetivo da História não é o vir a ser, mas sim aquilo que já seu surgimento como "mítica'', a segunda, do aconteci1nento eni
é". Seria cada vez mais difícil reconhecer isso, porque o futuro se si, ele chamou de uhistórica'', e, finalmente, a terceira. de histo-
modificaria de forma cada vez mais rápida. "Onde está o homem riográfica. HAí a História propriainente dita acaba, e se entra na
que consegue enxergar os enormes processos de mudança, ainda pesquisa histórica,,. 568
que apenas na penumbra? O processo de mudança" seria muito A descontinuidade se transforma ein critério pritneiro e de-
profondo, para que se pudesse escrever agora já uma História do cisivo da experiência moderna de História, na medida em que
passado. Mesmo os Jegitimistas, que estariam se opondo à "marcha esteve marcada pela grande revolução. Macaulay mostrou isso
do ten1poº, não estariam se apoiando uno passado',. O historiador numa comparação entre a França e a Inglaterra. Na Inglaterra,
distanciado estaria proibido de escrever uma História do presente, a Historie continuaria envenenada pelo "espírito partidário", pois
pois ela, no máximo, ajudaria a desencadear o partidarismo. O onde a "História [é vista) como um repertório de documentos",
resultado de todas essas coqjecturações foi que "de uma História continuariam "a valer os acontecimentos da Idade Média". O pas-
escrita agora não se pode esperar nada de duradouro, nenhuma sado continuava presente, na medida em que tinha efeito jur!dico.
verdadeira História". A "História" dos historiadores - ao contrário A situação seria diferente na França, onde a História poderia ser
da linguagem de nosso editor - foi, portanto, associada à dura- tratada de forma distanciada: "O abismo de uma grande revolução
bilidade. Em outras palavras, a aceleração da História atrapalhava ·
separa por comp 1eto o sistema novo do antigo· ,,.561)
os historiadores na sua profissão. Na verdade, porém, ela alterou "Através da revolução, os franceses se libertaram de sua Histó-
a direção de seu trabalho - eles se atiraram a uma pesquisa que ria" - con10 o expressou Rosenkranz 1 nun1a referência à História
deveria reconstruir um passado que estava se perdendo. Coisa que do passado.''° Inversamente, Sohm pôde acusar, em 1880, a Escola
também foi admitida por nossas testemunhas de 1822: "que os
acontecünentos de nosso te1npo despertara1n ern alguns indivíduos
H~ DAHLMANN, Friedrich Chdstov. Die Politik, 3. Aufl., Leipzig, 1847, p. 291.
a necessidade de uma profunda pesquisa histórica"."' A fundação
m SCHULZ, verbete "Zeitgeist'' (d, nota 383), p. 464.
da "História" como pesquisa rigidamente metodológica do passa-
m !MMERMANN, Karl, Memorabilicn (1839). Jn: MAYNC, Harry (Ed.), H'crk, {vol. S).
do - como Hegel já a ironizara - se dá exatamente nesses anos em Leip!dg/Viena. {1906], p. 230 e seg.
que as experiências tradicionais tinham cada vez n1enos a ver con1 ii, ,\1ACAULAY, ThomH Babingion. Díe Grn:hfrhte Bnghmds uir dem Regfe,1111gSt11Hri11ejMoh 11
(vol. 1). Leipzig, 1949, p. 22 e seg. (tnduçâo pua o alemão de Fridric:h Bülau).
sn ROSBNKRANZ, Karl, A11s ânem 'f'ageburli, Kõnig~btrg Herbsc 1833 bis Ptilhjahr 1846.
m lhid., p. 24 e ~egs, Leipzig, 1854, p. 199 (a notici~ data de 1834).

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Histórica alen1ã de - naquilo que tange à "História" atual - Hter não ser através da ruptura mais incisiva com ele" - escreveu Ruge 1
ajudado a promover a ruptura com a História". 571 em 1843, a Marx, o qual, porém, - mais próximo a Hegel - se
11
Dessa forma, o conceito de História varia correspondente- referiu ao movimento interno da História: Ficará claro que não
mente à experiência de ruptura que o determina. Por. um lado, se trata de um grande traço de união entre passado e futuro, mas
podia não apenas se referir à durabilidade do passado em processo da concretização das ideias do passado'>. 577
de desaparecimento, mas também requerer a preocupação per- Marx, que localizava a Alemanha "abaixo do nível da
manente com o futuro, indicando o rumo a ser seguido. Schlegel História" 578 , e que pretendia recuperar esse atraso, de forma acele-
anotou em 1799 que "o desejo revolucionário de realizar o rei- rada, através da concretização de sua Filosofia, esse próprio Marx
no de Deus constitui o ponto elástico da formação progressiva e deslocou a ruptura entre passado e futuro para o futuro: quando se
o início da História inoderna". 512 Isso caracteriza a expectativa, atingissem as condições de ausência de dmninação no c01nunisn10 1
quando não a linguagem dos revolucionários - na Alemanha, então toda a Hist6ria pregressa se transformaria em Pré-História.
11
mais tarde, os hegelianos, em especial os de esquerda entre eles. Com essa forn1ação social termina, portanto, a Pré-História da
HA História quer desenvolvimento, nova organização, progresso e sociedade humana". 579 A História efetiva é degradada à preparação
mudanças" - como destacou Bruno Bauer."' A orientação para o de um futuro cuja expectativa é reproduzida, de forma permanente,
futuro - num distanciamento em relação a um Hegel entendido e se mantém reprodutível. Marx e Engels imaginavam - na Ideo-
11
como quietista - podia ser levada a tal ponto que a História como logia alemã - empirica1nente fundamentado, que com a revolução
tal [Gesc/1ic/1te iiberhaupt) só podia ser entendida como História do comunista ... a libertação de cada indivíduo se imporia na mesma
futuro. Feuerbach, em um escrito a Hegel, de 1828, esperava por medida em que a História se transforma, de maneira plena, en1
"uma nova História, uma segunda criação'\ e pelo fim "da História História mundial" [Weltgesd1ic/1te]."º "O comunismo constitui o
ate, agora""'
. "Por isso,. " d a poss1'b'l'd
a constataçao 1 1 ad e de con l1e- enigma desvendado da História e se enxerga como essa solução""'
cimento do futuro constitui uma questão prévia necessária para o - a expectativa engoliu, por completo, a experiência.
organismo da História" - deduziu Cienszkowski, em 1838. 575 O Assim, o conceito de História teve de servir para cobrir todas
atraso das experiências feitas até então, medidas pelo futuro que se as extensões temporais - desde a expectativa de futuro, sem base na
esperava, caracterizavam o horizonte das expectativas utópicas que experiência, até a pesquisa sobre o passado, destituída de qualquer·
estavam sendo exploradas. Assim, Bruno Bauer pretendeu "preparar expectativa. O terceiro componente - aqui não abordado -, que
de uma vez por todas o novo caminho para a História". 576 "Nós tentou mediar ambas as coisas através do conceito de "evoluçãd1562 ,
foi o mais utilizado na linguagem cotidiana do século XIX. O
não podemos dar continuidade a nosso passado de outra forma a

m Cana de Arnold Ruge a Marx, de ago!to de 1843. Deuruli-Fr1111:i:i1Jisd1e)~/11bild1fr, Paris, 184-1


m SOHM, Rudo\f. Frankisches und rOmischcs Recht. Zdtuliriftflir Rech1sgud1frhu(gcrmaninhche
(rclmprc~so em Amsterdam, 1965, p. 36); Cana de Mao; a Ruge de $Ctembro de 1843. lbid, 1
Abc. l), 1880, p. 80; cf. BÕCKENFÕRDE, Ernst-Wolfgmg. Dic Historische Rechmchule
p. 39, e In: MEW (vol. 1) 1957, p, 346.
und du Problem der Guchkhtlkhkcitdt$ Rcchts. In: Colltgfom Phlfosophfrum. Pestschrfft für 57}
Joachim Rítter. B.uilcfa/Stuctgart, 1965, p. 24. MARX, Zur Krilik der Hcgelschcn Rcchtspliilosoph!e. ln: MllW (vol. 1}, p. 380.
m MARX. ZurKdtik derpolitischen Ôkortomic (Vorwort), 1859. In: MEW (vo\, 13), 1961, p. 9.
m SCHLEGEL, Athenfoms-Fragmenl Nr. 222. ln: Silmtlidie Wukt (vol. 2), p. 201.
~ MAR.X; e ENGELS. Dcutsche [deolôgie. íu: MEW (vol. 3}, p. 37.
51
m BAUER, llruno. DleJudc,,~Prage. Drutsd1ej11hrliiid1u, n. 274, 1842, p. 1094,
s.si MARX. ÔkonomllçhMph.ilornphi!che Mrnuskripte (1844), ln: MEW (volume complementar
11
~ HOfFMElSTBR,Johanncs (cd,). Brlift ~·M 11t1d 1111 Hc.gel (vol. 3). Hamburgo, 1954, p. 246 e seg. 1), 1969, p. 536.
m CIESZKOWSKI, August GNf. Proltjonuna .2:ur Hi11orfo10,phit. Bedirn, 1838. p, 9. S.\I C(. o verbete ,,Bmwitklung" [evoluç:io/desenvolvimento] [em Gmliichtliclie Crmidbtg,[O~.
m BAUER, J3nmo. Dieg11te Sa<ht der Fui/1eif 11ml mei,i,: âgtne Angeltgrnlrtit. Zurique/Wimenhur, Hinori1ches Lexikon zur politisch-sozialen Spr.ache ÍI\ úeutschland, no qual estl tambêm o
1842, p. 209. Sobre tudo ino, cf. STUl(E, Horst. Philoscphit der Tal. Stuttgut, t963. presente texto {N,T.)],

206 207
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O cct-Kmo oe H.sr&.!A "H,sr&:~~ co.~•.o CCNCErTO J;.ESJH MODERNO

apelo a Hurna História" descoberta produziu tantos ecos quantos racionais" - essa foi a definição dada em 1852 por Felix Dahn, ao
11
era1n os uposicíona1nentos De qualquer tnaneira, a diferença
• se referir a seu professor Prantl. '"
entre experiência e expectativa induziu a uma tensão temporal Somente no século XX, o significado negativo criado por
permanente da qual parecia emanar "História" em sua ,micidade. Feuerbach se difundiu, querendo se referir à ruína de um passado
Característico dessa situação também é o emprego ambiva- já morto. Em contrapartida, Troeltsch, Meinecke ou Rothacker
lente da expressão '(Historicismo'\ na época em que surgiu, A destacavam a insuperável experiência da relatividade histórica e de
palavra "Historism" - pela primeira vez documentada em Novalis, sua elaboração científica. Assim, a História moderna trouxe à tona
e ali associada, de forma imprecisa, com ºsisterna confusionalu - cerca de 100 anos depois de seu surgimento - um conceito que
[Co1ift1sio11sSyste111] e "misticismo" [Mystizism]"' - só ingressa na envolvia movimento e reflexão, como ela própria, o qual hoje está
linguagem científica quando da revolução de 1848. novamente sob forte crítica ideol6gica.' Evidentemente, faz parte
Peuerbach designa c01n "Histol'icismo", nos anos 1840, '\lma do conceito moderno de História a ideia de que ele desde o início
consciência deformada por uma falsa relação com a História",S 84 e era passível de se tornar ideológico e, por isso, também ser questio-
pôde chamar o historiador Heinrich Leo "a inveja personificada do nado a partir de uma crítica da ideologia. Essa ambivalência - que
Historicismo contra as gotas sadias de sangue do presente". 585 En- estava contida nos diferentes significados apresentados - o conceito
quanto Feuerbach, em função da expressão negativa "Historicismo", compartilha com os demais conceitos mestres da modernidade.
já separa a História de sua referência à vida e à verdade, Braniss,
na mesma época, ainda pôde designar, com a mesma palavra, uma 4. "História" entre ideologia e crítica da ideologia
Filosofia da História voltada para o futuro. Essa ciência abrangente
- ao contrário do "naturistnoll - fundamentaria uo grande tempo {(A I-Iistória é invocada como árbitro, m.as apenas aparen-
da História mundial" [Weltgcscl,ichte], que já começou, e "que está temente, pois, na verdade cada um só utiliza os fatos históricos
se autorrealizando". 586 como meio para fundamentar e justificar, de forma sofistica, sua já
Também a terceira posição, que dava destaque ao contexto do existente opinião inabalável" - essa observação foi foit~ pelo conde
desenvolvimento geral, pôde ser designada de "Histoticismo": 'io Cajus Reventlow em 1820, quando descreveu o então desencadeado·
verdadeiro Historicismo" estaria fundamentado nas doutrinas de debate sobre a nobreza. 588 Acontece que a utilização de argumentos
Lessing e de Kant, e entenderia "a Hist6ria do mundo [Weltgeschi- históricos faz parte desde sempre da retórica para reforçar posi-
chte], no sentido mais amplo, como um todo, como o desenvolvi- ções jurídicas ou sociais, teológicas, morais ou políticas. Mas taís
mento necessário de um processo, unitário e e1n acordo com leis argumentos adquiriram maior peso quando a História conseguiu

m NOVAL!S. Das .1Ugemeine BcouUon, Nr. 927, ln: Ge1,m111:dte Wuke (vol. 3}, p. 446, m DAHN, Felix. Filr freie Porschung gegen Dogmcnzwrng in den Wissenschafteu, ln;
m SCHOLTZ, Gunter, "H1°sforfom1J" ais spek11fa111,e Gmhfdiuplii/owphiE: ChristliebJulins Branin Phlfosciphüche Studím. Berlim, 1883, p. 95 t segi. Ci1ado por SCHOLTZ, "!-fütorhmus", p.
1792-1873. Frankfurt, 1973, p. 130. Ali se encontra a até agora mús completa Hi!t6ria do 132 e $egs,
co1\ceitQ de "Hinoricismo", que umbém é utilizada mqul\o que s~gue. Ao falar em "<:dtica ideo!6gica" (Id~cfogfrl11itik), Kmelleck emprega um conceito caro àfucola di:
m FEUERBACH, Über das Wunder (1839). ln: Siim11/tlu Wtrke (vol. 7) 2, Au6, (cf. Mt:& 558), FrankfurE, então no auge de ma influência, Pouco antes de aparecer o primeiro volume do Uxico
1960, p. 44. de Conceito1 Hht6ricos Fundamentais, vier3 a público o debate entre Jürgcn Habermas e Hans-
sg DRANISS, Christlieb Julim. D{e wlmmcheftlidu A1~4bt der Gegemmrl afs ltitwde Jdu i111 Georg Gad:uner. Cf. HADERMAS,Jürgen. ''A pretensfo à unlvenalídade da he,mcnêurica".
<1k11demluhe11 Swdlmn, Brnslau, 1848, p. 106 e segf. A respeito, cf. SCHOLZ, ''1--fütorimms", In: VVAA. Ht1111rnwt1'k tmd Jdrcfogirkritik. Frankfun am r-.üin, 1971; p. 120-159. A Rtplik de
p. 12S e segs, SCHOLZ. Verbete "Histodsmus.". ln: Hi1foriuhes WMttbud1 der PhifosopMt (voL Gadamer aparece no mesmo volume, p. 283-317 (nou de Sérgfo da MataJ.
3). 1974, p. l 141 e segs. m Cit~do por PERTHES, Ubtu (vol. 2), (cf. nota 559), p. 192,

208 209
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galgar a posição de um tipo de última instância para fundamentar Mas como se poderia evitar a arbitrariedade a não ser revelando
algo. Simultaneamente, esses argumentos perderam seu caráter as premissas teóricas? Não fazê-lo, invocando "a Hist6tiau - foi a
inequívoco, porque de imediato resvalaram para as linhas de fuga acusação critico-ideológica que Karl Heinrich Hermes formulou,
perspectivistas, que caracterizaram o conceito tnoderno de Hist6ria. em 1837, contra a Escola Histórica. "Existem poucas expressões na
Comprovações históricas incorreram em ambiguidades, desde que nossa língua con1 que se pratica um abuso tão criminoso quanto a
"Bistóriau se transformou num conceito reflexivo. Elas podiam ser palavra 1 históricd. História 1 como se sabe, chama-se tudo aquilo
utilizadas para criticar ideologias, mas podiam, na mesma medida, que acontece e vai acontecer" - a dimensão do passado é cuida-
sucumbir à ideologia. dosamente excluída por Hermes. Mas não é aí que reside o cerne
GOrres registrou com pesar es~e processo irreversível, Até en- de sua posição, ele destaca o mais alto grau de generalidade que
tão, a História teria sido mestra da vida, quando ainda se acreditava 11
caracterizaria o conceito de História, de forn1a que ele, a rigor, não
corajosamente na existência de uma grande, indestrutível verdade pernlite excluir nada. "Da mesma. forma que, ao final, não existe
objetiva ... O novo tempo perdeu essa fé por completo, a regra de nada que ficasse fora da História, também não existe nada que não
toda a verdade foi implantada na razão subjetiva; e tudo aquilo que fosse histórico e1n un1 ou outro sentido".
era historicamente objetivo, um produto de preconceitos, de erros, Constituiria arbítrio total quando os representantes da Escola
de parcialidade acumulados em séculos obscuros, precisa primeiro I-listórica acreditan1 "não necessitar de mais nenhuma prova, tão
se justificar frente a esse guarda". logo denominam de histórico qualquer coisa que aparece na sua
Os esforços até aqui relatados do Iluminismo e da Filosofia frenteº. Da 1nesma forma, se poderia dizer 11 a-hist6dco 11, pois,
da História de reconhecer a "própria História" [Geschichte selber] naquilo que tange ao uso vocabular1 se trataria exclusivarnente
em seu caráter processual são reduzidos por GOrres a seu prindpio de opiniões preconcebidas. Seria totalmente incompreensível
subjetivista. Depois da natureza autoconstruída, do Estado autofa- por que "tudo aquilo que é histórico" seria apenas "aquilo que
bricado, da igreja automo11tada e da tanibém automontada imagem tem durabilidade eterna". Por que a evolução seria mais histórica
de Deus, "ainda se precisou fornecer uma autocríada I-Iistória, que a revolução, o surgimento mais que o desaparecimento? Por
para complementar o aparelho. E se puseram rapidamente mãos à que se poderia afirmar - com Steffens - "que tudo aquilo que a
obra - em vez da História achada, foi introduzida a História in- História quer conosco aconteceda de forma inconsciente,,? Aí só
ventada". E se trataria de uma uI-Iistória que anda para trás'\ que, valeria como histórico aquilo de que não sabemos como e por
a partir de um ponto de observação atual, seria ensinada de forma que acontece. 590
um tanto forçada. 589 A crítica de Hermes se voltava, portanto, de forma especial,
GOrres, portanto, dera um passo adiante na sua crítica, Não são contra a utilização unilateralmente referida ao passado e centrada
tanto as mentiras decorrentes do contexto que ele questiona - ele vê, na duração do conceito de História - é nisso que ele enxergava uma
muito mais, no princípio transcendental de trabalhar com a História mentira interna da Escola Histórica. Além disso, Hermes apontou
unicamente a partir de teorias de Histórias possíveis uma inevitável para aquele resultado semântico que estava disponível a qualquer
interpretação errada. Tal historiografia nem poderia agir diferente do pessoa. A "História", a "coisa histórica" [das Gesc/1íchtliclie) eram
11
que distorcer os fatos", de acordo cmn as opiniões preconcebidas.

m HERMES. Stetfens und dic gmhichtliche Schufo (1837), ln: HERMES. Bffckt 1111s de, Zeit
m GÔRRES. Dlc wahre und fahchc Geschkhte. EM, n. 59, 1828, ln: CeS1111wulre S<l1tifr~11 (vol. (\·oi. 1), (cf. MU. 409), p. .}14, Hermes tivcrà dificuldades em obter t1ma livre-docência ei;n
15}, 195S, p. 49 I! scg. Br~slrn; Btvd,h'1W, Cc,wm<1tt,:mr-Lcxic<l11 du G~gmwa,t (vol. 2), 1839, p. 851.

210 211
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O (ON(ffi0 OE Hlsr6~

palavras vazias, que podiam ser rapidamente substituídas e ficar seus bestas cultos ignorantes!".'" Quem deslocou de fomia mais
destituídas de qualquer conteúdo, em função de seu sentido uni- clara o sentido da História para um contexto revolucionário foi
versal e de sua aplicabilidade generalizada. É nisso que residia sua Friedrich von Sallet: "No nosso dicionário, ela se chama: ações, /
afetabilidade ideol6gica - e semântica. Mas nisso também residia aquilo que virá a ser, e não a velharia petrificada ... / História! Sim,
sua aplicabilidade política e social. ó elemento da vida! / ... História se chama o assalto às bastilhas /
A controvérsia em torno de História, em especial em torno do e as tormentas dos debates nos conventos ...". 594
seu conceito, não era só uma controvérsia metodológica, te6rico- Dependendo das intenções políticas, o significado do conceito
científica ou científico-política. Ela atingiu de forma profunda a geral elástico podia ser deslocado, e é a1 que residia a eficiência de
dimensão política e social do campo linguístico, pois o conceito sua utilização. Pois cada um estava potencialmente atingido, e não
carregava dentro de si - como conceito geral de movimento - se tratava de tun conhecitnento do passado, mas - nas palavras de
aquela força integradora e distanciadora que podia motivar ações Nietzsche - da "falsificação da História, por princípio; para que ela
políticas. Isso fica claro na política de censura e no movimento que forneça a prova para a valoração moral ". 59; Quanto mais funcional em
a ironizava, o lirismo político. relação a interesses políticos a "História" era ntilizada, tanto mais ela
Tão logo as massas estamentalrnente desarticuladas desafiaram se expunha a falsificações de princípio - nem sempre propositais -, a
para uma nova organização social e política, cresceu o papel do mna ideologia, à qual, por simples razões de automanutenção 1noral
ensino da História. Na revolução e durante a restauração, ele era daqueles que utilizavam o vocábulo, ela parecia não poder fugir.
defendido por argumentações contraditórias, cláusulas de amnésia En1 que medida se compreendia "História" como instrumento
foram introduzidas, motivando o seguinte veredicto de Droysen: funciona] para a ação - sem naturalrnente se esgotar nisso -, fica
"Ordens provenientes dos escalões mais elevados estabelecem aquilo claro no emprego do conceito para atingir e para integrar as classes
que deve valer con10 acontecido na História". 591 subalternas, em especial a classe dos trabalhadores fabris, que estava
Contra esse tipo de práticas manipuladoras é que se voltava o surgindo. Em 1843, Wilhelm Schulz imaginava que "os povos so-
lirismo político, levando para dentro do público conceitos critica- mente agora estão começando a sentir sua importância. É por isso
mente desconstruídos. Hoffmann von Fallersleben ridicularizou "a que ainda apresentam sensibilidade limitada para sua História, e
escola histórica'\ que se postava perto do trono. "Vocês se apoiam não a terão antes que eles próprios façam a História, até que sejam
em História, / e não procuram aquilo que devem procurar, / e mais que uma matéria inanimada, da qual a História é feita por
acham aquilo que vocês querem achar. / Isso vocês chamam de algumas classes privilegiadas'1. 596
História! / E as coisas velhas, mesmo assim, viram pó)J. 592 Glas-
sbrenner seguiu, em 1844, ao debochar "[d]os historiastas" [díe m GLASSBRF.NNER, Adolf. Dié Ceschkhtlit\ge (em torno de 1844), fo: VOLKMANN,
Gesd,idttlinge): "Nem agora nem nunca, nos submetemos ao tribunal Ernst (Ed.). Um Einheit und Frdbeit 1815-1848. Iu: D.:wuhe Lfrera/111 ln B11twfrk/ungmihe11
- Politischc Dichtung (vol. 3). Leipzig, 1936, p. 223. ,.Wlr /ra11gm li/IS ulbu m-111 11nd nfe I Am
mundial da História, / pois também odiamos seu despotismo, / Wd{gtrid,r da Gesd1fd1M -1 Deirn wirlldm11 muh i!ue Despo1íe, / Ilirdw11mrngelel1r1w Wfchftl' 1•
stt SALLET, Friedrich \'0O, Ceschichtliche Hntwicklung. {n: 8ENNING, Max {Ed.), Awgew:ihlte
Cedfrhte. Frankfurt, 1913, p. 190 t': seg. "111111nw11 W61fub1nbr hti.ul sfr: Tatm, I DiH Wu-dmde,
s•ii DROYSEN,Johann Gumv. D11J Ztltaftu der Frdlieltskrfrgt {1843/46), Berlin, [1918], p, 256 uml w'd1t d,u Altwlarrte ... / Ge;diilhtdja, du Elemcnl des úbem! I ... Cmhidrle he$t das Stiirmrn
(tdi1acio pot E. E. Lehmann). der Bastilft11 / Und da Drbam SWrmni im K111wt11te ...",
m FAlUiRSLI!UEN, Heinrich Hoffmann von. Dit Historhche Schule, ln; FALLERSLE13EN, m NIETZSCHE. Am dem N:ichlass der Achtzigerjihre. ln: Wu!u (vol. 3), 1956, p. 518,
Heinrich Hotfniann von, Unpoliti!rlie Liuffr (n1l. 2), Hamburgo, 1841, p. 51. "lhr Jfi//zl eruh si~ SCHULZ, Wllhdn1. Dlt Bfwtgwrg der Produc1io11. Einc geichichtlkh-statistische Abh~nd!ung
mif Gmbi(hte, / U11d m.:l1t nlchr w,u ihr S11rht11Jillfl, / Undfindel w,n ihrfinde11 wollt- / Das 1u1wet zur Grundlegung eimr neuen \Vim~nscha(t des Staats und der Gesellsch:ift, Zurique/
iht Cesd1fclitd U,id d,a Alt~ g~h,:t dod1 21mid11e". Wintherhur, 1843, p. 155 e scg.

212 213
---------- - - - - - - - -

0 CCT-KffiO CE H STÓ?iA

E todo o engajamento literário de Schulz se concentrou na História se transforma, assim 1 como a verdade} em mna pessoa à
tentativa de colocar em moví1nento esse povo, através do esclare- parte, um sujeito metafísico, cujos portadores são os efetivos indi-
cimento de seu potencial histórico. "Que o significado histórico víduos hutnanos". E Marx n1ostra isso à mão de uma série de frases:
mundial das máquinas" fortalece a "consciência da força", em 11
A História não permite que se zombe dela; a História investiu
especial dos trabalhadores das fábricas, foi um dos diagnósticos de seus maiores esforços e1ni a História tem sido ocupada com; para
Hildebrand. Em ritmo crescente, "o trabalhador do presente que que serviria a História?" etc. 5 9 <.J

se criou no contato com as máquinas (sentiria] que, com as habi- Os argumentos históricos e teóricos para provar a crítica ide-
lidades de sua cabeça e de seu braço, também está participando da ológica de Marx só tiveram reflexos no nosso tempo, por causa
grande construção da História'\ 5tJ7 da publicação póstuma da Ideologia alemã. Nas passagens iniciais,
!(História" servia tanto para convocar para a luta quanto po- Marx e Engels fornecem uma rede formal de categorias de toda
dia servir para a integração social. Afinal, num mes1no contexto, História possível, que, desde o início, é pensada com vistas a um
o conceito foi utilizado para amenizar e acalmar. O trabalhador movimento, que suscita contradições e soluções novas. O ho1nen1
da fábrica não teria família nem pátria, como Riehl disse, pouco é definido como un1 ser social que se produz a si 1nes1no, a partir
depois, ele procuraria "seus companheiros não no passado ou no de suas necessidades e a partir do trabalho que satisfaz e aumenta
presente, mas na amplidão ilimitada cio futuro ... Ele não possui suas necessidades. Nessa visão anti-idealista 1 a consciência é en-
História; toda a essência da moderna indústria de máquinas desvia tendida apenas como funcional em relação ao processo ativo da
sua mente das coisas históricas''. Dessa forma, a mesn1a constatação, vida. "Ideologia e ... formas de consciência", quando vistas em
a partir do n1esmo conceito, gerou um diagnóstico quase dian1e- si, não possuem "História, elas não possuem desenvolvimento 11•
tralmente oposto. E depois que formulara sua crítica ideológica a Pelo contrário, a consciência, desde o inicio, "já é mn produto
partir da perspectiva cio passado, Riehl formulou um programa 11
sociaJl', motivo pelo qual constituiria ilusão dos ideólogos'\ esses
que Schulz antes havia desmascarado de um ponto de vista opos- "fabricadores da História", querer escrever a História a partir de
11
to. "Compete, portanto>\ - concluiu Riehl - ir gradativamente ideias mestras ou de conceitos dominantes. Conceitos dominantes
criando uma História [para o trabalhador da fábrica], uma pátria, indicam classes dominantes.
uma delimitação social", que ele deveda encontrar em primeiro A crítica de Marx - que se voltava contra "toda a concepção
lugar numa família. 596 de História até aqui" - é mais profunda. Ela critica não apenas
Nessa situação de utilização do conceito em sentidos opostos e o conceito de História, mas também toda História de conceitos.
divergentes, Marx produziu uma crítica ideológica que decifrava a Independentemente do fato de que essa crítica pode ser aplicada
utilização linguística dominante a partir de uma teoria própria da metodologicamente a seus próprios conceitos - e isso tanto mais
História. Marx ironizou Bruno Bauer perguntando como poderia que ele imputava, de forma massiva, objetivos utópicos a seus con-
recorrer à 1-listória "para servir de ato de consumação do banquete ceitos-, Marx leva uma vantagem decisiva. Sua critica ideológica
teórico, de prova". E formulava a pergunta sugestiva sobre que pressupõe teoricamente um conceito processual de História, que
História seria essa upara que a verdade atingisse a consciência. A requer invariavelmente um preenchimento empírico, no qual forças

~~ 1
H!tDEBRAND, Bruno. Dft Na1fonafêko11omlt du Gegww<lrl 1111d Zukun/1 (1848).Jena, 1922,
m MARX; .ENGELS. Die heilige Familie oder Kritik der kritischen Kritik (j843), Jn: MEW
p. 185 e ;eg. (editado por H. Gehrh1g),
(vol, 2), 1957, p. 83 e seg. Cf. também MARX. 21.zr Judenfr.tge (l844). ln: MEW (vol. l), p,
m RIEHL, Wilhclm Hcinrich. Dfr bilrgttlfrhc Gmllulieft, Stuttg.att/Tübingen, 1851, p. 345 e seg, 372, or1de ele tenta "quebur a v,mão teológica" da1 p-ergunta.s de Bauer,

214 215
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produtjvas, condições sociais e consciência precisatn ser colocadas justíssirna, onisciente, e, finaln1ente a gente se tornou responsá-
1

numa relação recíproca variável. 60° Com isso, Marx tentou juntar vel diante dela. Como algo semissecularizado, foram atribuídos à
no seu pensamento aqueles dois polos que na linguagem comum História significados religiosos, que dificilmente poderiam ter sido
sempre foram utilizados de forma unilateral e, assim, prejudicados: derivados do próprio conceito.
a factibilidade da História, por um lado, e o superpoder que exer- A utilização como palavra de ordem torna confusa a distinção
ce sobre os homens, por outro lado. Marx juntou as duas coisas: entre a História narrada e a que se cria por si mesma - e, em be-
"Os homens fazem a sua própria História, mas eles não a fazem neficio da ideologia, certamente também precisa estabelecer certa
livremente, não sob condições escolhidas, mas sim sob condições confusão. Isso pode ser comprovado ali onde a expressão desemboca
encontradas, dadas e transmitidas".6º1 numa substância. Em 1831, a ordem jesuíta teve de admitir que
Ao contrário dessa premissa teórica, a linguagern cotidiana estava sendo 11 desterrada pela Hist6ria". 6º5 11 Sem revolução, não
11
costuma se mover em um desses níveis, abrindo 1 com isso, flancos inicia uma nova História assegura Meses Hess. 606 O judaísn10
-

que podem ser apontados numa crítica ideológica. A História é ou colidiria com os "interesses da História" - sabe Bruno Bauer. 607
desclassificada como simples produto da ação humana ou substan- Ernst Moritz Arndt evoca, em 1848 1 a uhonra da História alemãl)608 ,
cializada e adquire um caráter supra-humano. e Treitschke alerta contra o amigo dos judeus, que "comete pecado
Depois que "a História" havia desembocado no coletivo sin- ... contra a glória da História alemâ" 609 , interpretando de forma
gular, tornou-se possível encará-la também como sujeito de si teológica uma substância nacional. "História precisamos pintar,
mesma. Com isso, a expressão - do ponto de vista puramente História é a religião de nosso tempo, somente História está em
linguístico - pôde ser transformada em slogan. E, de fato, pouco acordo com nosso ternpa1' - é o que se ouvia como máximas, em
depois de sua invenção, o conceito mestre teoricamente pretensioso 1876.610 "Mas a História também pode criar o novo, aquilo que se
foi transformado numa palavra de ordem que pode ser utilizada apresenta pela primeira vez", assegurava Julius Leber, em 1933, a
de forma ingênua e patética. Clausewitz depositou em 1812 suas fim de dissipar a dúvida "que o passado poderia depositar dentro
frias confissões, cotno homem da resistência, uno sagrado altar da de 116s", 611
História".'°' Três anos depois, Dahlmann pôde falar da "santidade Mas basta de exemplos. O "poder da História", de que falava
da História",'°' e em 1845 Weerth entoou hinos de louvor ao tra- Droysen 612 para caracterizar sua força supraindividual, moral, foi
balho industrial, que libertaria o homem para si mesmo: "Então ampliado, modificado, como conceito, porque ele aparentemente
está consumado! E no grande livro / que, sonoro, anuncia os mi-
lagres da História'' será registrada a boa-nova. 604 Foi dessa forma tt) KUNI-IARPT, J. H. D. Du Pr~ms du !etztm Minlílet Ca,l's X. Lübe<:k, 1831, p. 8.
v.~ HESS, Mo ses. Phi!osophie derTat (1843). ln: Phifosvp/ii5ihe mrd Sr;~r'11Us1lulie S(}u!frrn (d. noc:i.
que a "História", perpassando campos diversos, foi colecionando
477). p. 221.
epítetos que antigan1ente eratn divinos. Ela se tornou onipotente, ~,) BAUER.Ju<lenfol.ge. J)eu/Jcheja/ub!lrlier, n. 275, 1842, p. 1097.
m Stwograplu'sd1e fürfrhtt der Dmmhm Natio11alvm11mm/1mg (vol. 2), 1846, p, 1292.
01 TR.EITSCHKE, H. von, No(h einiga Demerkung,m zurJudenfrage. In: DÕHLJNG, Walter
(w MARX; ENGELS. Dic deut~che iàeologie, ln: ME\V (\'OI. 3), p. 26 e seg., 31, 49, 39. (ed.). Dtr Berflncr A11liumit1'w11mlre/t. Fr~nkfmt, 1965, p. 86.
(oi MARX. Der achtzehntc Brumairc. ln: MEW (vol. 8), p. 115. m Zdt1lh1!ftfii, bi/dwâe Kumt (1876), p. 264, dw:lo em RGG [Rtl1gio11 in Gmhit:hte 1111d Crgt.genwMI)
6111 CLAUSEWlTZ, C3rl von. Bekeuntnimhrlft (1812). ln: RO'rHf'ELS, Hans (Ed.). Pofit(uhe (vol, 4), 3• ed., 1960, p. 687.
Sd11if1e11 ,md Brlefe. Munique, 1922, p. 86. 611
LEBER, Juliui. Ged:1.nken ;rnm Verbot der deutichen Sozialdemokratie {escrito em junho
uii DAHLMANN, F, Chdsthn, Eiu J.Yc,1 iiber Veifr,uu11g (1815), Leipzig, 1919, p. 17. de 1933). In:J1i/i11s Lebu, Ein Mann geht seim~n Weg. Schriftcn, Rede-n und Briefe. Berlim/
0-! WEERTH, George. Die Industrie {1845). Jn: KAISER, Bruno (Ed.). Di~ Ad1tu111fvie1.úgtr, Frankfurt, 1952, p. 245.
Weimar, 1960, p. 285. 611 DROYSEN, Histcrik {e(. nota 236), p. 323,

216 217
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se manteve insubstituível. Foi exatamente a palavra de ordem que elaborar uma teoria a priori, daquilo não se pode fazer uma História,
evocava expectativas e ordenava experiências, cujas qualidades co- e, inversamente, só aquilo que não possui uma teoria a priori, possui
muns supra ou inter-humanas não podiam ser designadas de outra. Hist6ria'\ Por essa razão) o hon1e1n possuiria Hist6ria, "porque ele
forma. "História" se transformou num desaguadouro de. todas as não traz sua História consigo, mas somente a produz".615
ideologias imagináveis. Isso fica ainda mais claro quando se mostra Para Scheidler, que transmitiu o legado do idealismo alemão
o outro plano argumentativo, a factibilidade da História. para a burguesia alemã, não havia dúvida a respeito. "É por isso que
A 1nes1na expressão "História,, podia designar mn conjunto somente o homem possui uma H-ist6ria no verdadeiro sentido; pois
de objetos de ações humanas seguras de si. Uma situação interme- suas ações não estão presas dentro de determinado ciclo, como o
diária está indicada pelas palavras utilizadas por Droysen em uma do animal'\ Só o homem pode dar uma direção à sua vida 1 (jfaz.er}}
carta a Gustav Freytag."' A nobreza prussiana teria "tirado a nossa a sua "própria" I-Iistória, 616
História dos trilhos, e arruinando-a por alguns séculos" - com História - no alemão, continuando a ser perpassada por um
que a verdadeira História é apresentada como vítima da violência, sopro de providência divina - não podia ser transportada, sem
indicando-se uma História desejável como sendo a verdadeira. resistência, para o âmbito da factibilidade. Perthes, nascido em
Admitir essa multiplicidade semântica dentro de um conceito 1772, titubeia, em 1822, em utilizar o verbo [gescliehen]. Ele dizia
significa aceitar argumentos passíveis de ideologtzação) a não ser que queria editar suas publicações históricas para os práticos, para
que se admita como legítimo que uma palavra de ordem foque de 11
0s comerciantes", pois ºsão eles, e não os eruditos) que intervêtn
forma misturada situações de ânimo e desejos. na realidade, e, por assim dizer, fazem a História".611
A "História como ação" constitui uma versão em franca con- Pouco tempo depois, ele se pronunciou favorável a mna classe n1é-
tradição com significados verbais que também queriam dizer" desti- dia consciente, que, orientada para o sucesso, deveria deixar de levar en1
no". Também essa versão só se tornou viável depois que a expressão conta doutrinas do passado, como a velha historia magistra vitae: "Se cada
desembocara no coletivo singular. Desde então, "Histótia" também partido, numa determinada sequência, viesse a governar e a presidir as
podia se tornar factível - e não no sentido de sua narrativa - na instituições, ao menos unia vez, então, através dessa História autocria-
forma em que Eichendorf confronta o sentido novo com o antigo: dai todos os partidos se tornarian1 mais tolerantes e mais inteligentes.
uum faz a História) o outro a registra". 614 História feita por outros - por mais que seja estudada e por mais que
A História que "aconteceuu antigamente, e em certo sentido se escreva sobre ela - dificilmente leva à avaliação justa e à sabedoria
se passava com os homens, só podia ser vista como campo de ação, política, É isso que nos ensina a Histórii'.618 O coletivo singular 11Histó-
como factível e como produtível, depois que fora elaborada pelo ria", como categoria transcendental, sempre estava referido à ação. Não
idealismo alemão como processo de autorrealização humana. Não só a descoberta da "História", em especial o desvendamento de uma
há dúvida de que Fichte e, no início, o jovem Schelling tiveram História factível, faz parte do selo do mundo burguês que despontava.
influência sobre o uso linguístico político de "História". Assim,
Schelling se voltou em 1789 contra o projeto kantiano de uma
m (SCHELLING, F. \V. G.]. AUgemelne Übersicht der neuesten philosophhdien Litcramr.
História mundial [WeltgeschíchteJ a priori. "Daquilo que se pode Plli/01ophiulits],mmal, n. 8, 1798, p. 145.
~16 SCHElDLER, Hermaun. Verbete "Emanzipai!on", In:ERSCH/GRUBER (t•seçlo, vol. 34),
1840, p. 5. Sobre a Pré-Hhtórh. teórica dem prática linguística, cf, LÕW!TH, Karl. Vicos
m Carla de Droysen a Gumv Freyt.\g, de 14 de dezembro de 1853. ln: Drlefwulml (vol. 2) (cf. Grundsatz; verum et factum convert\rntur. Scíne thcolog-isdté Pdmim: und dcrén s:ikuhre
OQt;\ 408), P· 205. Konsequenzen. ln: Akadeniische-Abh,mdlrmgm Htide/~ag. Hcidelbcrg, 1968.
m Citado por BAUER, Gerhard. "Grnhid11lid1ktit". Wege und frrwegc dues Degrífü. Berlim, ~11 PERJ'HES, I.~ben ... (vol. 3), (d. nota 559), p. 23.

1963, p. 2. m IbiJ,, p. 271 e seg.

218 219
o CONCmo OI: HtST&!A ~H,sr&.tA· COW) <.:ONCffTO ,','.<SIR.E J.'.OOUNO

Mas, com isso, também 11a reação ... se transfonnara numa conseguem fazer". 623 A uma conclusão oposta chegou Erigels;
força histórica", que, nas palavras de Stirner (1852), se preparava quando anunciou a "organização conscientemente planificadan d~: ..'·
11
para fazer História". 619 Bismarck, naturalmente, sempre negou futuro. "As estranhas forças objetivas que até agora dominavatri' :. ·
poder fazer História, "Uma intervenção arbitrária e determinada a História ficam submetidas ao controle dos próprios homens ..
por motivações subjetivas no desenvolvimento da História sempre Somente a partir daí, os homens farão a própria História con1
teve como única consequência derrubar frutos verdes .. , Podemos plena consciência ... Será o salto da humanidade do reino da ne-
adiantar os relógios, e nem por isso o tempo anda mais rápido""º cessidade para o reino da liberdade".'" A maior proximidade de
- foi isso que ele escreveu num decreto de '1869, e, já idoso, viu Engels das origens idealistas comuns resulta aqui num grau mais
confirmada sua posição: "De forma alguma se pode fazer História, elevado de expectativas utópicas. Com vistas ao futuro domínio
mas sempre se pode aprender como se deve dirigir a vida política da História, sua visão se aproxima do uso vocabular dos panger-
de um grande povo em acordo com seu desenvolvi111et1to e sua manistas, que, en1 1898, atestaram ao 11 povo-senhorialll alemão
determinação histórica".'" A desistência em relação à possibilidade de ter "o direito e o dever ... de participar da direção da História
de planejamento de transcursos históricos faz com que, de ime- de todo o mundo". 625
diato, se manifeste o outro complexo de sentidos do desenvolvi- Finalmente, Hitler e seus asseclas se excediam na utilização da
mento de longo prazo que está embutida no conceito de História, palavra ('Hist6ria", a qual tanto era evocada como destino quanto
Dessa forma, a utilização da palavra, em especial o alinhamento vista como factível; mas a inconsistência da versão propagandís-
das possibilidades polares de seu significado, pode representar um tica revela, por si mesma - quando questionada a respeito -, seu
teste de utopia, conteúdo ideológico, "Os valores eternos de um povo somente
Constantin Frantz, adversário intelectual de Bismarck e ad- sob o malho da História mundial [We/tgesc/1ichte] se transformam
mirador de Schelling, divisou, em 1879, "na História, um reino naquele aço e ferro con1 que então se faz História111 disse Hitler,
especial .. ,, que não provém de Deus, mas que os homens criaram num livro de 1928. 626 E uma expressão da campanha eleitoral em
e continuatn criando indefinidamente». 622 Lippe, de 30 de janeiro de 1933, mostra que mesmo concepções
Os campos políticos, de forma alguma, coincidem integral- ideológicas forçadas possuem seu sentido prognóstico: "Em última
mente com as linhas de confronto que derivam da semântica po- instância, é indiferente quantos por cento do povo alemão fazem
lítica. Existem estruturas conceituais que possuem afinidades pró- História. O que importa é que os últimos que fazem História na
prias, Lorenz von Stein imaginava que com a ascensão da História Alemanha somos nós". 627 Não havia forma melhor para formular
mundial [vVeltgescl,ichte] o espaço de liberdade diminuiria: "Quão os autoultimatos sob cuja coerção Hitler fazia política e, com isso,
1naior a História mundiali tanto menor se torna aquilo que não imaginava fazer História, E ele, de fato, fez História - mas diferente
só o indivíduo mas, em ídtirna instância, todos os indivíduos do que ele imaginava.

(·!~STIRNER, lvhx. Gmhhhte du Re1ufiN1 (2. Abt.: Die moderne Reaction). Berlim, 1852, p. V. m STEIN, L. von. Zrr, pmm/ulit11 Vifamm.gsfrase (1852). Dwnst:1.dt, 1961, p. 1.
21
~Y> fHSMARCK. Erla1sanden Gc1i11dten in München Frdhe1i;von Werthecn, de ?.6 de fevereiro • ENGELS. Herrn Eugen Oüringi Umw:ilz.ung der \Y/im:nschaft (1$78). ln: ME\V (vol. 20),
de 1869. ln: Friedrichsmhtr A1ugo1be (vol. 6 h), 1931, p, 2. 1962, p. 264.
rn D1S1\.·1ARCK. Dis,::urso perante a delegação da Univmida<le de Jena, 30 de julho de 1892. m Conclamação pua ;1de1fo à Ligi Pan-Gennânict. Citado por GRELL, Hugo. Du Al/dm1stlu:
ln: F1/ed,ldwulrer Atug11b~ {vol. iJ), s. d., p. 468 e seg. Virband, sti11e GeuMd1te, .w'ne Bestubiwgm mrd E,jolge. Munique, 1898, p. 7.
m FRANTZ, Conwmtln. Da FMtr<1li1r!/IH 11/s das li/tende P,iuzlp fii, dit !o,fofe, sta111licl1t 11nd <,iG WEINBERG, Gerhard L. (ed.). Hltlm .zw~an Bm/1. Suttgart, 1961, p. 138.

l11temarionr1/e Org:1Uit<1tfo11, 11/llU hu~11deter Bt.tugnalwit a1ifDt111Já1fo11rl, aitlsd111,u}tgtwiem1 ,md w Discurso de Hitler de 4 de al;,rilde 1933 cm Dctrnold. 111: DOMARUS, M;i,x (ed.}. Reden um/
(omtriutlv d111gnr,llt. Mainz, 1879; reimpresso em Ailen, 1962, p. 441 Pr(Jkft1111allo11e11 1932 bis 1945 {vol. l/1). 2. Auil., Munique, 1965, p. 176.

220 221
Assim, o sentido plural do moderno conceito de História - VII
ao poder realizar um movimento pendular e_ntre factibilidade e
superpoder - abre uma brecha para sua utilização ideológica. Mas
no mesmo diagnóstico linguístico estão contidos critérios para
Perspectiva
desmascarar o caráter ideológico dessa utilização.
Reinhart Kosel/eck

A ambiguidade fundamental elo conceito ele História, desde


seu surgimento, teve influência profunda sobre a linguagem coti-
diana da política. A possibilidade ele sua afetação por sentimentos
enfáticos, e sua utilização para fins ideológicos, tem suas raízes
na formulação da palavra no coletivo singular. Como categoria
transcendental, ela abrange, simultaneamente, Historie e História; o
conceito 11 Histórian passa por uma escala cambiante de experiências
possíveis: espaço de ação e processo, progresso e evolução, criação
de sentido e destino, acontecimento e ação. Parece que o velho
sentido de narrativa foi empurrado para a margem.
Da grande quantidade de significados que podem ser utilizados
como palavras de ordem, se desenvolveram algumas posições teó-
ricas, que por sua vez exercen1 influência sobre os campos políticos
que elas diagnosticaram. Com sua consideração extemporânea Vom
N11tze11 111,d Nachteil der I-listorie JUr das Lehen [Das vantagens e das
desvantagens da História para a vida], Nietzsche produziu, em 1874,
uma crítica arrasadora da ideologia. Ao confrontar critérios internos
da atividade cientlfica e seus efeitos para fora, Nietzsche constatou
a existência de três tipos de Historie: a antiquária, a monumental e
a crítica. Vista como funcional em relação àquilo que ele chamava
de vida, a Historie como um todo apareceu como sintoma de se-
nilização, como empecilho para a vida. Por essa razão, Nietzsche
exige - e isso não acontece sem consequências - da juventude a
coragem para "o ahistórico e o supra-histórico", 628

m NIETZSCHE. Vom Nm.2-en und N~chteil der Historie filr<las Leben. Jn: We,kc (vol. 1}, {954,
p. 281.

222 223
Desde então, são oferecidas posições alternativas de tipolo- O ataque rnais forte contra o conceito de "História" ocorrido
gização, provindas da natureza e da Antropologia', sem que uma até agora talvez tenha sido formulado por Mauthner, que partia do
deshistorização da consciência geral ou até da ciência tenha tido pressuposto de que o Historicismo bem como a expressão uHistó-
um sucesso efetivo, 629 ria" somente são possíveis desde Kant, mas que, ao mesmo tempo,
A tentativa multifacetada de Dilthey de fazer uma crítica da já foram superados com Kant. Teriam sido frustradas as buscas por
razão histórica continua projetando sua influência profunda para leis históricas. Mas os conceitos costumariam sobreviver como
dentro das ciências sociais e humanas [Sozial- tmd Geisteswisse11sc/uif- fantasmas às coisas por eles designadas. "E aí não é de admirar
/e11], aparentemente mais profunda que o enfoque teórico-científico que o pequeno conceito de História, mesmo bem próximo de sua
morte, ainda seja considerado vivd 6:n Un1á continuidade mais
1
dos neokantianos de garantir para a ciência histórica um genuíno •

campo de conhecimento, ao lado das ciências da natureza. convincente dessa crítica sen1ântica pode ser encontrada na análise
Com a "historicidade", a Filosofia existencialista e a Herme- de Popper sobre o ºHistoricisrno".
nêutica se apropriaram de uma categoria que permite fündamentar, Também no nível da pesquisa empírica, oportunamente se fala do
meta-historicamente, a relatividade autossuperante de tudo aquilo "fim da História", interpretando com isso, de forma secular, a Teologia
que é histórico, para dessa forma lhe retirai· os aspectos irritantes!'º escatológica. Com isso, se pensa naquilo que Cournot prognosticou
A "historicidade" expressa, de alguma forma, aquilo que no século no século passado, mna nova situação de relativa estabilidade, que
XVIII se pretendia com a "História como tal" [Geschichte iiberltaupt] estaria se instalando depois da modernização, sem coerção nem per-
- como condição para Hist6rias possíveis, turbações de crescimento. Com tais fórmulas, fica claro o quanto a
expressão "a Histórian anunciava o início da Era Moderna, podendo,
Outros aspectos destacados pelo enfoque transcendental de
antigamente foram reforçados, de forma unilateral. Assim, Theodor portanto, também desaparecer com seu fim. Mesmo assim - apesar
de seu significado múltiplo e por causa dele -, em lugar nenhum, há
Lessing, com sua Gescltichte ais Si1111geb1mg des Si1111/osen [História
tentativas sérias de abrir mão do conceito. Versões como "a perdau
como atribuição de sentido àquilo que não tem sentido] colocou
ou "o deslocarnento da I--Iistódall, ern geral, visan1 à sua preservação.
sob rigorosa avaliação os pressupostos subjetivistas.631 Inversamente,
Por fim, deve-se lembrar que, desde a Segunda Guerra Mun-
pode-se afirmar - no campo marxista: "A realidade é partidária!
dial, pela primeira vez, ingressamos na etapa da História mundial
Partidária a favor do novo frente ao velho, partidária a favor daquilo
global, ettjos centros de ação se espalham de forma pluralista da
que é mais elevado frente àquilo que é inferior".'"
Europa para o globo. É evidente que, com isso, se desenham novas
Histórias, que, porém, acabam criando um novo espaço de expe-
Koselleck nao se rdere ;i.qui l tradiçio anglo-ux:i da Curtriral Antfrc,p~lógy, rn.3~.à Phi(osophiu/Je
Authrop,,fogi~, cujos principais representante!! no século XX for.un Max Scheler, Helmuth riência conmn1. Cotn isso, dentro da ciência histórica, também a
Ple!sncre Arnold Gehlen. Cf. ARL'f, Gerhard, AntropolcgiafibJJfra, Petrópolis: Vozes, 2008 velha História dos acontecirnentos deverá manter, sen1 grande con--
{nota de Sérgio da f,,fata].
1
testação, sua tarefa, ao lado da qual se estabeleceu a História social,
~ Cf. ,HEUSSf, Karl, Die Klüls dn HWorlrnms, Tilbingen, 1932; MARQUARD, Odo
Sd1wie1ig.~âte111ntt du GeHhidrllp!Ji/o!()phie. Frankfurt, 1973. como ramo próprio de pesquisa a fim de investigar as mudanças
1

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