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RESUMO
No vídeo “A Terra é uma Mulher e o meu Útero, o Universo”, transmitido no palco do
TEDxUnirio, Mónica Guerra da Rocha apresenta, em 18 minutos, a sua estória de vida, abordando
cenas da sua infância, as dores relacionadas à sua menstruação, e a forma como ressignifica sua
menstruação e o modo como lida com a natureza, com o trabalho e com outras mulheres.
Observando elementos do ecofeminismo e do sagrado feminino na narrativa da palestra,
objetivou-se refletir, a partir do vídeo, como essas temáticas comparecem na fala da palestrante,
e suas possíveis interconexões. Conclui-se que a palestra traz um relato de vida sem fazer
referência direta a nenhuma abordagem teórica metodológica, sem mencionar diretamente o
movimento ecofeminista ou o resgate do sagrado feminino, no entanto, através da narrativa,
identificam-se importantes aspectos do ecofeminismo espiritualista e de práticas relacionadas ao
respeito ao sagrado feminino.
ABSTRACT
In the video “The Earth is a Woman and my uterus is the Universe”, broadcasted on the stage of
TEDxUnirio, Mónica Guerra da Rocha presents, in 18 minutes, her life story, addressing scenes
from her childhood, the pains related to her menstruation, and the way in which she reframes her
menstruation and her way to deal with nature, work and other women. Observing elements of
ecofeminism and the sacred feminine in the narrative of the lecture, the objective was to reflect,
through the video, how these themes appear in the lecturer's speech, and their possible
interconnections. It is concluded that the lecture brings a life report without making direct
reference to any theoretical methodological approach, without directly mentioning the
ecofeminist movement or the rescue of the sacred feminine, however, through the narrative,
important aspects of spiritualist ecofeminism and of practices related to respect for the sacred
feminine are identified.
Keywords: Ecofeminism. Sacred Feminine. Women.
INTRODUÇÃO
1
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sNRi9A6LaHM. Acesso em: out. 2021.
2
Disponível em: https://www.linkedin.com/in/m%C3%B3nica-guerra-rocha-
179b8289/?originalSubdomain=br. Acesso em: out. 2021.
sagrado feminino. Na fundamentação, encontra-se um esclarecimento acerca dos
movimentos do ecofeminismo e do sagrado feminino, e na discussão a e na discussão o
modo como esses assuntos são identificados na fala da Mónica Guerra. A metodologia
utilizada foi a análise do discurso (GILL, 2008), por permitir situar historicamente um
conjunto enunciativo, as falas da autora do vídeo, e explicitar construções teórico-
ideológicas presentes nos atos da fala.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
3
No livro “Ecofeminismo”, Mies e Shiva usam a expressão países do Terceiro Mundo.
divisão de classe, gênero, raça. Essa teoria também critica o androcentrismo e entende
que a mesma lógica de dominação aplicada à natureza é aplicada às mulheres. Traz, ainda,
a ética do cuidado, para repensar todos os seres vivos, humanos e não humanos.
Independentemente da corrente, observam-se no “ecofeminismo” lutas a favor da
libertação das mulheres do domínio do patriarcado, de modo intimamente associado à
pauta ambiental. Nesse sentido, Mies e Shiva (2014) destacam que a libertação do
feminino não pode ser alcançada se organizada de forma isolada, devendo ser parte de
uma luta maior para a preservação da vida no planeta. Pode-se entender esse movimento
que ampara a preservação da vida com o que Ariel Salleh4 sugere ao propor a perspectiva
de “apenas conectar”. Em seu ponto de vista, o ecofeminismo permite vínculos históricos
entre capitalismo neoliberal e os mais diversos tipos de violências sociais, e fornece
soluções como a organização da vida cotidiana em torno da subsistência, a soberania
alimentar, e a democracia participativa com os ecossistemas naturais.
Considerando a hipótese de que a palestra de Mónica Guerra reflete muitos dos
ensinamentos compartilhados por Vandana Shiva5 em seus livros, artigos e palestras, este
trabalho será baseado na corrente do Ecofeminismo espiritualista apresentado pela autora.
Mies e Shiva (2014) afirmam que essa espiritualidade representada no movimento foi
negada e denegrida por um materialismo capitalista e marxista. Essa dimensão espiritual
emergiu da compreensão de feministas acerca de uma espiritualidade originária,
especialmente das mulheres (mas, por vezes, também de homens), que eram consideradas
bruxas por possuírem conhecimentos e sabedorias alcançados através da estreita relação
com a natureza. As autoras explicam que as primeiras ecofeministas entendiam que essa
compreensão vem na forma de uma religião, mas não uma religião de origem cristã,
judaica ou islâmica, e sim baseada em uma religião da Deusa, ou seja, em cultos a deusas
que são reverenciadas em religiões pagãs. A outra forma, chamada de “princípio
feminino”, que habita em todas as coisas e em todos os seres humanos, trata da
indissociabilidade do espiritual e do corpo material. As autoras consideram a importância
desta dimensão espiritual, uma vez que ela “encontra o redescobrimento do caráter
sagrado da vida, e a sua preservação só será possível se as pessoas voltarem a considerar
4
Ariel Salleh faz essa proposta, “apenas conectar”, no prólogo do livro “Ecofeminismo”, de Mies e Shiva,
2014, referenciado ao final do artigo.
5
Vandana Shiva é uma ativista ambiental indiana, conhecida pela trajetória em estudos ecofeministas.
sagradas todas as formas de vida e as respeitá-las como tal” (MIES; SHIVA, 2014, p. 17-
18, tradução nossa6).
Essa compreensão de um ecofeminismo cuja vertente espiritual está baseada em
uma religião da Deusa ou um princípio feminino desperta a importância de entender um
pouco mais o que se conhece por movimentos do sagrado feminino. De acordo com Faur
(2020), o sagrado feminino se origina na reverência a um divino feminino que nutre a
existência humana. A natureza é representada como a Grande Mãe, a Terra, o próprio
mundo e, como mãe, tem na figura da “Deusa” sua expressão. O culto ao sagrado
feminino permite não apenas a possibilidade da vivência de uma espiritualidade na qual
as mulheres são representações do sagrado, uma vez que seu próprio corpo simboliza a
energia da Deusa e a sacralidade da terra, mas também uma melhor relação com o planeta,
uma vez que a Deusa se torna um símbolo da consciência ecológica (FAUR, 2020).
A difusão do sagrado feminino normalmente acontece através de movimentos
espiritualistas que promovem a união de mulheres por meio da formação de círculos
sagrados (FAUR, 2018). Bolen (2003) defende que a iniciativa dos círculos sagrados
proporciona uma mudança ética, política e social, e que permite que as mulheres possam
renovar seu espírito, celebrar seu poder e, além de sanar as feridas da Terra, promover,
através da cultura, a paz entre os povos. A autora exemplifica as várias maneiras que as
mulheres podem se posicionar em um círculo: ouvir, testemunhar, reagir, chorar,
aprender, etc. Também exemplifica os tipos de círculos: de sabedoria, de cura, de
mulheres sábias, de anciãs, de trabalho, etc.
Círculos Xamânicos, Círculos das Guardiãs, Círculos da Tenda Vermelha,
Círculos Tenda da Lua, Círculos das Anciãs das 13 luas, Círculos Lunares são exemplos
de círculos sagrados no Brasil. O que esses círculos têm em comum é o culto ao sagrado
feminino, seja através do empoderamento das mulheres pelo resgate e ressignificação da
menstruação (a exemplo dos círculos que se referenciam nas autoras DeAnna L´am, que
difunde os grupos da Tenda Vermelha, e Miranda Gray, que é precursora em uma prática
de Benção do útero), seja através dos cultos às deusas, com o apoio das referências de
Mirella Faur, que fundou no Brasil uma Teia de Thea, que difunde o culto e a tradição da
Deusa, ou ainda através dos diversos outros círculos que abordam a potencialidade de
6
“The ecological relevance of this emphasis on 'spirituality' lies i n the rediscovery of the sacredness of
life, according to which life on earth can be preserved only if people again begin to perceive all life forms
as sacred and respect them as such.”. Expressão exata in Mies e Shiva (2014, p. 17-18).
uma energia feminina que fortalece as mulheres, e que reconhecem a sacralidade dos seres
vivos, homens, mulheres, animais ou outros entes da natureza.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
7
Sabbat vem do verbo grego sabatu, que significa descansar. As celebrações dos Sabbats têm múltiplos e
complexos significados, reverenciando a dualidade – Deus/Deusa, homem/mulher, vida/morte,
transitório/permanente –, os ciclos das estações, e a passagem do tempo (FAUR, 2020, p. 426-428).
A minha adentrada em Perséfone, meu primeiro momento de Perséfone, eu
tinha 12 anos. Eu cheguei em casa com uma cólica estranha, eu baixei a calça,
eu baixei calcinha, sentei. Eu não acreditava no que estava acontecendo. Eu
chorei muito, eu chorei muita tristeza. Eu chorei muita dor, porque eu sabia
que a partir daquele momento nunca mais eu voltaria a essa primavera eterna
(GUERRA, 2018, 1m26s).
Para Faur (2020), essa tristeza da menina, como relatado por Mónica ao vivenciar
a sua menarca, se dá pelo fato de que essa passagem é acompanhada de medo, vergonha
e insegurança, pelo fato de a menina tornar-se mulher da noite para o dia, sem uma
preparação, sem apoio, sem aprender os significados sagrados deste momento. E como
não chorar ao perceber que a vida muda completamente quando uma menina se torna
mulher? Afinal, o que é ser mulher em uma sociedade patriarcal e capitalista? Como
abordado por Mies e Shiva (2014), desde o início desta sociedade, as mulheres foram
tratadas como natureza, desprovidas de racionalidade, portanto, podiam ser oprimidas,
exploradas e dominadas pelo homem. Mesmo vivendo em países onde as mulheres
conquistaram direitos, quantos comportamentos uma menina/criança precisa mudar
quando menstrua e se transforma em jovem/mulher? “Submissa, vulnerável, fecha a
perna, fala baixo...” (GUERRA, 2018, 1m50s).
Esse conjunto de palavras enunciadas permite refletir as experiências de mulheres
em uma sociedade ainda regida fortemente pelo patriarcado. Lemgruber (2020) cita
Despentes (2007) ao apresentar essa orientação quanto ao comportamento da mulher e a
traduz como uma “hipócrita arte de ser servil”. A autora lembra que a feminilidade
conceituada pelo patriarcado coloca as mulheres em uma posição inferior, uma vez que,
além de não se sentarem de pernas abertas, elas também não devem rir alto ou falar em
dinheiro e, acima de tudo, não devem desejar “tomar o poder”. Sob essa hipocrisia,
meninas seguem aprendendo em suas casas, escolas, igrejas, trabalhos e vida política a
manter comportamentos de submissão às figuras masculinas com as quais se deparam em
seu amadurecimento.
Sobre essa condição, Mónica afirma se dar conta de ser “Submissa, escassa, frágil,
infértil, atrás de um grande homem… ou será que eu posso mudar tudo isso?” (GUERRA,
2018, 3m11s). Vários são os movimentos que enfrentam o patriarcado e proporcionam às
mulheres o direito de tentar mudar este cenário: os movimentos feministas, de feminismos
indígenas, de feminismos negros, de ativismos ambientais e os movimentos
ecofeministas. Os movimentos do ecofeminismo espiritualista e os movimentos do
sagrado feminino proporcionam à mulher o entendimento de que uma forma de “mudar
tudo isso” é o empoderamento, o entendimento de sua força, do poder de conexão com a
natureza, da força com a qual pode se posicionar no mundo, uma vez que, através da
possibilidade de gerar, ela é a própria representação da terra.
Para esses movimentos, uma das formas possíveis para que as mulheres consigam
abandonar os comportamentos e sentimentos adquiridos por uma educação patriarcal é a
ressignificação do seu corpo, do seu entendimento acerca dos próprios ciclos:
(...) nós estamos, na verdade, cada vez mais desconectadas da natureza, cada
vez mais desconectados dos ciclos naturais que existem dentro do nosso
próprio corpo, e que essa desconexão que faz com queiram que a gente
acredite, que precisa de plantar toneladas de soja e de milho para alimentar
todo planeta porque a terra não é soberana (GUERRA, 2018, 4m5s).
Então entendi que na verdade natureza, ela tem uma conspiração silenciosa,
para que eu possa existir em prazer profundo e amor incondicional. O que é
que ela me pede em retorno? Que eu plante as sementes dela. Ela me seduz
com uma manga maravilhosa para que eu jogue a semente de volta na Terra
(GUERRA, 2018, 6m6s).
Quem se atreve a dizer que mulher não trabalha com mulher, que mulher não
é amiga de mulher, que a gente só compete, quando nós, quando “tamos” juntas
e sabemos disso, as nossas menstruações se alinham? Se isso não é para a gente
ficar junto, eu não sei o que que é (GUERRA, 2018, 15m19s).
Faur (2011) traz, em seu guia para os círculos sagrados, a lembrança de que o
conceito da rivalidade entre mulheres foi introduzido e alimentado pelas estruturas
patriarcais, que promoviam, além das conquistas de poder, a rivalidade, a desunião e o
enfraquecimento da solidariedade feminina. Até mesmo durante a realização dos círculos
sagrados de mulheres, a condutora precisa saber lidar com essa cultura, para evitar os
choques entre as participantes e promover o acolhimento dos medos, complexos e
experiências traumatizantes e dolorosas relacionadas a mulheres em convivência.
Importante salientar que tais estruturas patriarcais são heranças de uma cultura
judaico-cristã, uma cultura europeia, que não só traz uma política de dominação da mulher
e da natureza, mas que também dita costumes a toda uma sociedade.
Mies e Shiva (2014) abordam esse fenômeno como uma mudança de estilo de vida
em grande escala, no qual, além de uma destruição da ecologia, os países do Norte
promovem uma fascinação do desenvolvimento, e, consequentemente, um “consumo
imitativo” (MIES; SHIVA, 2014, p. 145), que, na promessa de proporcionar bem-estar
aos povos, promove desequilíbrios e perda da identidade cultural. As autoras consideram
importante que os países do Sul busquem sua sustentabilidade e autonomia através do
abandono dos hábitos de consumo impostos.
Sobre os costumes natalinos brasileiros que não refletem a estação do ano, Faur
(2020) explica que a mudança deles pode proporcionar a quebra de uma magia apreendida
ao longo de milênios, já que muitas das celebrações cristãs são oriundas de celebrações
dos povos antigos. No entanto, ela também orienta, em seu anuário, sobre rituais
praticados no Sul do continente, que proporcionam vivências espirituais condizentes com
o clima e com a estação do ano. Ao longo do fortalecimento de movimentos de
descolonização difundidos nos movimentos sociais, as condutoras de círculos e grandes
influenciadoras na prática do sagrado feminino também proporcionam vivências e rituais
conectados com a natureza e, com isso, com a lógica pertinente à estação do ano.
Há que se pensar em quantas ações conduzem o comportamento da sociedade. A
colonização dos países do Sul dita a religião, a alimentação, a cultura, a dominação. Sem
utopias ou demagogias, é possível entender que os caminhos para o enfrentamento das
desigualdades de gênero e da devastação da natureza estão sendo traçados. Quão poderosa
é a união das pessoas em prol de algo em comum? Quão poderosos são os movimentos
ecofeministas que lutam contra a dominação da mulher e do planeta, que buscam o
fortalecimento das comunidades sustentáveis, que buscam o direito das mulheres de se
sentirem fortes, sagradas, que permitem que as mulheres ressignifiquem a sua relação
consigo mesmas e com a natureza? Esses movimentos trazem esperança. E essa esperança
vem através da ressignificação do choro de cada mulher que se deparou com o seu sangue
e com a sua inferioridade, mas que, em determinado momento, descobriu-se forte, em que
esse choro primeiro se torna um choro de fúria contra todas as mazelas praticadas contra
as mulheres, mas também contra a terra, mas que é transformado em um choro de
esperança, que Mónica anuncia:
E isso é parte do movimento que transforma uma cultura que venera a tradição
falocêntrica, que empodera os homens e coloca as mulheres como seres incompletos. Para
essas mulheres que nasceram com um útero, ou que sentem que possuem um, elas podem
gerar vidas, seja uterinamente, ou seja através de suas ações no mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS