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No entanto, para os outros três evangelistas (Mateus, Marcos e Lucas), esse não
foi o primeiro milagre realizado por Jesus. Nem sequer se inteiraram deste. Para
eles, não existe. E, em seu lugar, cada um relata outro “primeiro” milagre.
Por que os evangelistas não estão de acordo sobre o primeiro milagre de Jesus?
Por que cada um dá uma versão diferente? Porque eles não pretenderam contar
a seus leitores o que historicamente fez Jesus com sua atividade milagrosa,
senão transmitir-lhes uma mensagem religiosa, que cada um adequou como
melhor lhe pareceu.
OS ESPÍRITOS DA SINAGOGA
AR CHEIO DE ESPÍRITOS
Para entender o porquê Marcos conta este milagre como o primeiro de Jesus,
deve-se considerar que ele escreve seu evangelho para os cristãos de Roma, isto
é, para os cristãos de origem pagã. E quer convencê-los do enorme poder e da
autoridade de Jesus.
Mas havia mais. A raiz da planta usada no exorcismo não era fácil de ser
conseguida. E, uma vez encontrada, era difícil retirá-la, pois escorregava das
mãos. Para poder extraí-la, jogava-se urina de mulher sobre ela. E, depois de ser
arrancada, quem a tocasse morria, a não ser que a enrolasse no braço mediante
um rito especial.
EXORCISMOS DE FRONTEIRA
Por isso, como para os leitores de Marcos o exorcismo tinha uma significação
especial, cada vez que ele conta um exorcismo (quatro ao todo) localiza-o nas
fronteiras do país. Sendo assim, o primeiro, o do homem da sinagoga (1, 22-28),
ocorre em Cafarnaum, cidade limítrofe com o país de Gaulanítide. O segundo,
do endemoniado de Gerasa (5, 1-20), “na outra orla do mar”, isto é, em terras
pagãs na fronteira da Palestina. O terceiro, da filha da mulher siro-fenícia (7,
24-30), “na região de Tiro”, país ao norte da Palestina. E o quarto, do jovem
epiléptico (9, 14-24), é feito (segundo as indicações geográficas de Marcos) na
região de Cesárea de Filipe (8, 27), isto é, no território não judeu, ao lado da
Galileia.
Dez anos depois de Marcos, Mateus escreve seu evangelho. Seus destinatários já
não são (como no caso de Marcos) de origem pagã, a maioria é formada por
crentes de origem judaica, portanto, impregnados pela mentalidade e cultura
deste povo. Por isso Mateus escolherá como primeiro milagre de Jesus a cura de
um leproso.
O relato diz: “Quando Jesus desceu o morro, uma grande multidão o seguiu.
Então, aproximou-se dele um leproso e se ajoelhou diante dele, dizendo-lhe:
‘Senhor, se quiser pode limpar-me dessa lepra’. Jesus estendeu a mão, tocou-o e
lhe disse: ‘Quero, que você fique limpo’. E ao instante o homem se livrou de sua
doença. E Jesus lhe disse: ‘Olhe, não conte isso para ninguém. Vá embora e
procure o sacerdote, leva-lhe a oferenda que Moisés ordenou, para que lhes
sirva de testemunho’” (Mt 8, 1-4).
Por que Mateus escolheu este caso como o primeiro milagre de Jesus? Porque
para a mentalidade judia daquele tempo (como para muitas culturas antigas)
não havia doença mais assustadora e horrível que a lepra.
A lepra causava um terror tão grande aos judeus, que a Bíblia conservou dois
capítulos inteiros dedicados a ela e a sua prevenção (Levítico 13-14), o que não
ocorreu com outra doença.
UM MORTO EM VIDA
Mas se o sofrimento físico do leproso era terrível, sua situação social era pior
ainda. Quando diagnosticavam lepra a pessoa imediatamente era expulsa de sua
família e do lugar onde vivia, não podia entrar na cidade. Estava condenado a
viver só no campo (Lv 13, 46), vestir-se com farrapos, usar cabelo despenteado,
a boca coberta de vendas e, ao caminhar, devia gritar: “Impuro, impuro” (Lv 13,
45). Era, realmente, um morto em vida.
Havia mestres judeus que se gabavam de nunca ter comido um ovo comprado
numa rua por onde havia passado um leproso. Outros, de jogar pedras neles,
para que fossem embora. Outros, de se esconderem ou sair correndo quando os
avistavam de longe.
ANTEPASSADOS SANATIVOS
A purificação de um leproso, portanto, deve ter sido um milagre o
suficientemente impressionante para um judeu, para que Mateus o colocasse em
primeiro lugar na lista dos prodígios feitos por Jesus. Sobretudo pela forma
assombrosa como o fez: tocando-o. Algo jamais visto por um judeu. Talvez não
seja exagerado pensar que, para os leitores de Mateus, a frase mais horripilante
de seu evangelho tenha sido: “Jesus estendeu a mão e o tocou” (8, 3).
Mas havia uma segunda razão pela qual Mateus colocou este relato como o
primeiro milagre de Jesus. É que os grandes personagens da tradição judaica
possuíram o poder de curar leprosos. Assim, a Bíblia contava que Moisés havia
curado a lepra de sua irmã Maria (Nm 12, 9-16) e que o profeta Eliseu fez o
mesmo com o general sírio Naaman (2 Re 5, 1-14). Portanto, com este milagre
Mateus quis também ensinar que Jesus estava no mesmo nível de Moisés e do
profeta Elias, os dois grandes antepassados do povo de Israel.
O DEMÔNIO REPETIDO
Mais ou menos nesta mesma época, Lucas escreveu seu evangelho. E , assim
como Marcos, dirige-se a um grupo de cristãos de origem pagã. Portanto, em
seus escritos ele preferiu voltar ao outro “primeiro milagre” de Jesus. Isto é, à
cura do endemoniado na sinagoga de Cafarnaum (Lc 4, 31-37). Desta maneira,
esperava causar o mesmo efeito que obtivera Marcos em seus leitores pagãos.
São João escreve seu evangelho em último lugar. Mas, divergindo dos outros
três evangelistas (que ao longo de suas obras tinham querido mostrar que Jesus
estava dotado de um poder impressionante e de uma grande autoridade), ele
pretende ensinar outra coisa.
Por que João relata este milagre como o primeiro de Jesus? É que, segundo a
crença judaica, quando o Messias chegasse, Deus o festejaria com uma grande
festa de casamento, na qual o noivo seria Deus e a noiva, o povo de Israel. Nesse
dia, Deus se casaria com seu povo e, a partir daí, o cuidaria e serviria com amor
eterno, e não o abandonaria jamais. Assim era anunciado pelo profeta Isaías:
“Como um jovem se casa com uma moça, assim seu Criador se casará com você;
a alegria que o esposo sente por sua noiva, Deus a sentirá por você” (Is 62, 5). O
profeta Oséias também: “Eu farei de você minha esposa, Israel, para sempre; eu
me casarei com você, porque a amo muito; você se unirá com Javé” (Os 2, 21-
22). E assim, outros profetas.
ADEUS ÀS ÁGUAS
Ao mostrar Jesus numa festa de casamentos, São João mostra que a boda
escatológica, isto é, a que Deus havia preparado para o final dos tempos, já
chegara com Jesus.
O milagre das bodas de Caná (e todos os milagres de Jesus, em São João) não
pretende mostrar o poder “exterior” de Jesus, senão sua pessoa “interior”. Não
quer revelar “o que Jesus pode fazer”, senão “quem é Jesus” . Por isso, João não
chama tais fatos de “milagres”, senão “signos”. Porque um signo é um sinal de
outra coisa (não do que se vê); é a impressão de outra realidade mais profunda,
que o leitor deve descobrir.
Enfim, se notamos que os seiscentos litros de água que Jesus substitui por vinho
não estavam em qualquer recipiente, mas sim “nas vasilhas que os judeus
usavam para suas purificações”, a mensagem é bem mais impactante: os ritos e
as práticas judaicas deixaram de ter valor; foram substituídas pelo vinho da
Eucaristia.
Cada evangelista anunciou esta Boa Notícia para suas comunidades da maneira
que pôde e com a linguagem que soube. No mundo de hoje, em que as pessoas
vivem pressionadas por opressões internas e segregações sociais externas, nós,
cristãos, devemos mostrar que o poder do Messias continua vigente em nós e
que podemos repetir o milagre de liberar os homens das forças sombrias que os
oprimem por dentro e por fora.