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Evangelho de Lucas 2023 – prof. Pe. Claudio R.

Buss1

JESUS E SEUS DISCÍPULOS (Lc 4,31 – 6,16)


A intervenção de Jesus na sinagoga de Nazaré ilustra o programa da sua viagem.
É um momento relevante que inaugura a sua missão e constitui um episódio
paradigmático, porque os textos de Isaías que Jesus cita descrevem, acompanham e
interpretam a sua obra no arco de toda a sua vida.
Depois do anúncio na sinagoga de Nazaré, Jesus inicia a sua viajem que Lucas
assim descreve: “E andava pregando pelas sinagogas da Judéia” (Lc 4,4).
Se emprega o imperfeito (h=n): um tempo solene que apresenta não somente a
reação de Jesus à rejeição dos seus compatriotas, mas também a sorte dos profetas. Jesus
deve andar dali não porque quer, mas porque vem expulso; é constrangido a distanciar-
se da instituição, neste caso da sinagoga: é a sorte dos profetas.
Ele neste caso se vai/ caminha, porque é perseguido, porque há risco de ser morto.
Mas este distanciamento não é fuga, mas uma exigência inusitada do projeto de Deus
expresso no verbo grego dei, verbo encontrado já em 13,33 – “mas hoje, amanhã e depois
da manhã, devo prosseguir o meu caminho...”: plh.n dei/ me sh,meron kai. au;rion kai. th/|
evcome,nh| poreu,esqai( o[ti ouvk evnde,cetai profh,thn avpole,sqai e;xw VIerousalh,mÅ
A viagem de Jesus é uma necessidade: não é somente o sinal da rejeição humana,
mas é um modo de realizar o projeto divino. Frequentemente a rejeição humana vem
assumida por Deus e vem recapitulada, reproposta, revisitada. Jesus deve viajar e
Jerusalém, a cidade que mata os profetas, é a sua meta.
Jesus é o primeiro viajante e associa a si outros: os discípulos. Jesus não caminha
simplesmente para outros lugares, mas diferentemente, num caminho de
responsabilidade e sentido, para anunciar a boa notícia aos pobres, libertando-os da
escravidão e da opressão: este é o seu caminho!
A narração que segue, localizada em Cafarnaum, na beira do lago, tem a função
de manifestar que Jesus é verdadeiramente o libertador dos oprimidos, como o
evangelista o apresenta no episódio de Nazaré (4,31-44). Depois das palavras de Jesus,
Lucas mostra suas obras, fiel à qualificação que ele faz de Jesus como “profeta poderoso
em obras e palavras” (Lc 24,19). Palavras e ações se iluminam reciprocamente. Se Nazaré
foi o momento da pregação de Jesus, Cafarnaum é o momento da sua atuação concreta.
Especificando que o lugar é uma “cidade da Galiléia” (v. 31). Lucas, desde já, parece
indicar a importância de a evangelização atingir os centros urbanos, como destacará com
frequência em Atos dos Apóstolos.
Como em Nazaré, a atividade de Jesus começa ainda na sinagoga, em dia de
sábado. Não se trata de provocação dos chefes religiosos hebraicos, mas do desejo de
encontrar o povo reunido. Também os missionários da Igreja primitiva continuarão com
a mesma estratégia.
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Jesus manifesta a força de sua “palavra” salvífica em dois episódios de libertação:


um exorcismo público na sinagoga, que deixa uma forte impressão no povo, e uma cura
numa casa particular, a de Pedro, em favor da sogra do discípulo. Seguem mais duas
cenas coletivas: à tarde, uma série de curas e confrontos com as potências do mal
(demônios) e, de manhã cedo, a partida e a despedida da multidão que tenta segurá-lo.
PRIMEIRO ARCO NARRATIVO
Primeira cena: Lc 4,31-37: “Jesus cura um endemoniado”
Depois do manifesto programático, o episódio que Lucas retoma de Marcos (Mc 1,23-
28) assume uma conotação toda particular: o endemoniado na sinagoga é a melhor
representação do homem escravo, alienado e necessitado de libertação. Jesus veio para
anunciar a boa notícia aos pobres. Eis um pobre, um escravo que não há liberdade nem
salvação!
Lucas, ao contrário de Marcos não se interessa pela disputa com os escribas, mas a
libertação daquele homem, e para sublinhar esta atenção, evidencia a palavra libertadora:
“Cala-te, e sai dele”! É um comando direto para o demônio calar; e o demônio se submete
à palavra: lança a terra o homem, sai dele, sem fazer-lhe nenhum mal. Aqui nota-se uma
total submissão à palavra que liberta, a uma palavra de autoridade que liberta.
Lucas se utiliza de uma “forma estereotipada” que provavelmente remonta à tradição
catequética ou missionária que transmitiu o material evangélico. Mas, através deste
modelo literário, Lucas deixa entrev er uma mensagem importante e atual: a “palavra”
de Jesus opera com eficácia e força contra as potências da morte e da exclusão que
mantêm escravizado o homem. Aqui está a novidade da sua pessoa e de sua atividade.
Ele não é um mestre douto ou um fascinante demagogo, mas um homem que opera com
a força do espírito em favor dos oprimidos pelo mal: daí as suas palavras recebem
autoridade e força.
Na outra cena Jesus passa da sinagoga à casa de Simão. Notar o deslocamento de Jesus
– que não é para um lugar qualquer, mas a um “outro lugar”.
Segunda cena: Lc 4,38-41: “Jesus cura a sogra de Simão”/ diversas outras curas
A diferença de Marcos, Lucas anota que a febre era muito alta; a mulher, portanto, se
encontra em um estado de grave enfermidade física. Jesus está em pé e se inclina para
ela, mas não a toca e contemporaneamente com autoridade comanda. Ele domina a
situação, não a toca com a mão, mas somente com a palavra; ameaça a febre e esta deixa
a mulher. É bonito esse inclinar-se de Jesus em direção ao doente, mas é próprio de
Jesus também a manifestação de uma autoridade que comanda e liberta: o efeito da
libertação é que a mulher passa da servidão ao serviço. Da escravidão passa a servi-los.
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É relevante notar como Jesus, ao pôr-do-sol, cura os doentes, impondo as mãos sobre
cada um deles; é um trato muito significativo na obra de Lucas (uma delicadeza do
autor): Jesus é médico, é amigo de cada um deles. Lucas é muito sensível, muito delicado
sobretudo à certas categorias de pessoas.
É interessante notar que a expressão, referente à atitude de Jesus a respeito do demônio
e da febre: “o/a conjurou severamente” (v. 35.39), se repete quer na cena da sinagoga
quer naquela da casa. A frase indica que Jesus atua como um exorcista. Não se trata só
de aparência; Jesus é filho do seu tempo e se comporta exteriormente como os
curandeiros da sua época, conjurando, impondo as mãos, cuspindo. O evangelista
distingue, porém, acuradamente entre exorcismos (v. 31-37.41) e curas (v. 38-39.40),
coisa não frequente na antiguidade e destaca que o que opera os milagres é a palavra,
cheia de autoridade, de Jesus que anuncia a chegada do Reino de Deus (4,43). Segue-se
que a novidade de Jesus não consiste tanto na maneira de atuar, mas depende do sentido
dos seus gestos, que apontam para a grandeza misteriosa da sua pessoa. Nas obras de
Jesus se manifesta, pois, a ação poderosa de Deus que, derrotando as forças do mal,
instaura seu domínio, libertando o homem de toda alienação e reintegrando-o em sua
dignidade.
Sumário: Lc 4,42-44
Observar o esquema:
Cafarnaum
• Durante o dia
- na sinagoga (v. 33)
- em casa (v. 38)
• Ao pôr-do-sol (v. 40)
• Ao raiar do dia (v. 42)

Judéia
Nos encontramos diante de um sumário que descreve a obra de Jesus. Nos parece que
ele operou curas durante toda a noite. Na manhã do novo dia ele vai a um lugar deserto:
uma nota frequente da teologia lucana. São interrupções da viajem muito significativas,
durante as quais Jesus vai a um lugar deserto, onde, segundo o evangelista, ora.
Ainda mais relevante é a afirmação:
“Devo anunciar também a outras cidades a Boa Nova do Reino de Deus, pois é para
isto que fui enviado” (Lc 4,43): o` de. ei=pen pro.j auvtou.j o[ti kai. tai/j e`te,raij po,lesin
euvaggeli,sasqai, me dei/ th.n basilei,an tou/ qeou/( o[ti evpi. tou/to avpesta,lhnÅ
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É a primeira vez que se menciona a boa notícia do Reino. Para Lucas o Reino é
somente boa-notícia, e para isto Jesus veio, para anunciar a boa-nova.
O termo “reino” pode induzir por associação a pensar num território sobre o qual uma
autoridade exerce algum poder. Na Escritura, tal metáfora não designa uma realidade
semelhante, mesmo se na história da Igreja e na nossa história pessoal frequentemente o
anuncio do reino corresponde a um modelo de possessão, a um modelo de afirmação da
própria autoridade. O anúncio do reino poderia tornar-se uma ocasião para exercitar de
modo improprio a autoridade pessoal, um exercício de poder. Assim, temos o risco e trair
o reino de Deus anunciado.
Para a Escritura, ao invés, o reino é a atividade reinante e libertadora de Deus; não é
um território sobre o qual afirmar-se, mas é a atividade que liberta o homem, que o faz
filho. A basiléia é um evento dinâmico. Não se trata de submeter alguém. A função de
evangelizador não consiste em uma reivindicação de poder; a boa notícia é uma atividade
libertadora em favor dos pobres, dos oprimidos. Por isto o reino é boa-notícia: em dar
novamente a dignidade a quem se perdeu, a saúde a quem é enfermo, a liberdade e a
verdade de uma vida lá onde se perdeu...
Assim, termina o primeiro arco narrativo: “e se andava...”
SEGUNDO ARCO NARRATIVO
Vocação dos primeiros discípulos (Lc 5,1-11)
Se inicia com um Kai egeneto/ e aconteceu, VEge,neto de. incipit que Lucas usa para
evidenciar situações particulares.
De fato, está para acontecer alguma coisa de importante: a chamada dos discípulos.
Aqui uma diferença substancial entre Lucas e outros sinóticos. Em Marcos Jesus não faz
nada sozinho. A chamada dos discípulos é colocada ao início do Evangelho: Jesus
anuncia o Reino e chama os irmãos. A chamada das duas duplas de discípulos é em
Mateus ao início, ou seja, Jesus não está jamais sozinho.
Talvez aqui temos um trato de historicidade de Lucas que não coloca a chamada
ao início, mas depois que Jesus já operou e a sua fama já se difundiu. A segunda
especificidade de Lucas é que a narrativa é muito mais articulada em respeito à de Marcos
e Mateus.
Temos aqui a construção ao redor de Jesus de um grupo de discípulos, a futura
comunidade cristã, que o segue no caminho missionário; e ao interno deste grupo, um
cerco ainda mais íntimo, dos apóstolos, que serão o fundamento da Igreja.
O texto é construído com um movimento que lhe dá uma orientação eclesial: ao
início (Lc 5,1-3), Jesus é apresentado em meio à multidão, e depois a sua manifestação a
Pedro e aos seus companheiros na “solidão” do mar (Lc 5,4-11: a pesca milagrosa).
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Temos um movimento invertido: em geral se vai da intimidade dos discípulos com


Jesus na solidão da montanha para o encontro da multidão que aguarda o evangelho.
Aqui temos: “a chamada realizada por Jesus “traz fora” do mundo habitado dos homens,
para a “solidão”, para depois, certamente, reconduzir “os chamados” ao encontro dos
homens. O significado da “solidão da montanha” é diferente da do “mar”. Esta recorda o
mundo do mal e da morte, onde são enviados os discípulos ao anúncio do Reino. A
montanha, ao invés, é o lugar da oração e do encontro com Deus, indispensável para
depois descer ao mundo dos homens.
Através da “imagem de Cristo” que se move em toda a Palestina, que ensina, cura
e proclama, transparece também, pouco a pouco, a imagem de uma Igreja estreitamente
unida ao seu Senhor, e no seu movimento missionário, estimulada constantemente a
abrir-se às multidões, a entrar na casa dos “pecadores”.
Assim, de uma visão primeiramente cristológica (Lc 4,14-44), se passa a uma
leitura eclesiológica.
A VOCAÇÃO DOS PRIMEIROS DISCÍPULOS (Lc 5,1-11)
Lucas 5,1-11:
VEge,neto de. evn tw/| to.n o;clon evpikei/sqai auvtw/| kai. avkou,ein to.n lo,gon tou/ qeou/ kai.
auvto.j h=n e`stw.j para. th.n li,mnhn Gennhsare,t 2 kai. ei=den du,o ploi/a e`stw/ta para. th.n
li,mnhn\ oi` de. a`liei/j avpV auvtw/n avpoba,ntej e;plunon ta. di,ktuaÅ 3 evmba.j de. eivj e]n tw/n
ploi,wn( o] h=n Si,mwnoj( hvrw,thsen auvto.n avpo. th/j gh/j evpanagagei/n ovli,gon\ kaqi,saj de.
evk tou/ ploi,ou evdi,dasken tou.j o;cloujÅ
4
~Wj de. evpau,sato lalw/n( ei=pen pro.j to.n Si,mwna\ evpana,gage eivj to. ba,qoj kai. cala,sate
ta. di,ktua u`mw/n eivj a;granÅ 5 kai. avpokriqei.j Si,mwn ei=pen\ evpista,ta( diV o[lhj nukto.j
kopia,santej ouvde.n evla,bomen\ evpi. de. tw/| r`h,mati, sou cala,sw ta. di,ktuaÅ 6 kai. tou/to
poih,santej sune,kleisan plh/qoj ivcqu,wn polu,( dierrh,sseto de. ta. di,ktua auvtw/nÅ 7 kai.
kate,neusan toi/j meto,coij evn tw/| e`te,rw| ploi,w| tou/ evlqo,ntaj sullabe,sqai auvtoi/j \ kai.
h=lqon kai. e;plhsan avmfo,tera ta. ploi/a w[ste buqi,zesqai auvta,Å
8
ivdw.n de. Si,mwn Pe,troj prose,pesen toi/j go,nasin VIhsou/ le,gwn\ e;xelqe avpV evmou/( o[ti
avnh.r a`martwlo,j eivmi( ku,rieÅ 9 qa,mboj ga.r perie,scen auvto.n kai. pa,ntaj tou.j su.n auvtw/|
evpi. th/| a;gra| tw/n ivcqu,wn w-n sune,labon( 10 o`moi,wj de. kai. VIa,kwbon kai. VIwa,nnhn ui`ou.j
Zebedai,ou( oi] h=san koinwnoi. tw/| Si,mwniÅ kai. ei=pen pro.j to.n Si,mwna o` VIhsou/j\ mh.
fobou/\ avpo. tou/ nu/n avnqrw,pouj e;sh| zwgrw/nÅ 11 kai. katagago,ntej ta. ploi/a evpi. th.n
gh/n avfe,ntej pa,nta hvkolou,qhsan auvtw/|Å
1
Certa vez em que a multidão se comprimia ao redor dele para ouvir a palavra de Deus,
à margem do lago de Genesaré, 2viu dois pequenos barcos parados à margem do lago; os
pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. 3Subindo num dos barcos, o de
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Simão, pediu-lhes que se afastassem um pouco da terra; depois, sentando-se ensinava do


barco às multidões.
Quando acabou de falar, disse à Simão: “Faze-me ao largo; lançai vossas redes para
4

a pesca”. 5Simão respondeu: “Mestre, trabalhamos a noite inteira sem nada apanhar; mas,
porque mandas, lançarei as redes”. 6Fizeram isso e apanharam tamanha quantidade de
peixes que suas redes se rompiam. 7Fizeram então sinais aos sócios do outro barco para
virem em seu auxílio. Eles vieram e encheram os dois barcos, a ponto de quase
afundarem.
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À vista disso, Simão Pedro atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Afasta-te de mim,
Senhor, porque sou pecador! ” 9O espanto, com efeito, se apoderava dele e de todos os
que estavam em sua companhia, por causa da pesca que haviam acabado de fazer; 10e
também de Tiago e João, filhos de Zebedeu, que eram companheiros de Simão. Jesus,
porém, disse a Simão: “Não tenhas medo! Doravante serás pescador de homens”.
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Então, reconduzindo os barcos à terra e deixando tudo, eles o seguiram.
ESTRUTURA
A narrativa é dividida em três partes:
1. vv. 1-3: a multidão entorno ao mestre de Nazaré. Neste meio vem apresentados
também os protagonistas: Jesus que se coloca a ensinar a palavra de Deus; o povo
numeroso que está em atitude de escuta; os pescadores que lavam as redes e em
particular Pedro, proprietário da barca. Todavia, o interesse é convergente sobre
Jesus, que primeiro está à margem do lago e depois pela presença da multidão sobe
na barca, de onde se coloca a ensinar.
2. vv. 4-7. É baseada sobre o contraste entre a situação dos pescadores que
trabalharam toda a noite sem nenhum resultado e a “palavra” de Jesus que ordena
de retornar à pesca. A fé nesta palavra provoca o êxito de uma pesca
exageradamente abundante.
3. vv. 8-11: traz presente a reação de Pedro que se ajoelha diante de Jesus e
reconhece o próprio estatuto de pecador. Este quadro se alarga descrevendo
também a reação de estupor da parte de todos e mencionando de forma particular,
Tiago e João. O clímax da narrativa é dado da palavra de promessa-chamado de
Jesus: “Doravante serás pescador de homens” e da resposta não só de Pedro, mas
também de Tiago e João que deixam tudo para segui-lo.
O filão de toda esta narrativa está no tema da palavra, a qual é a razão da
convocação e reunião da multidão. Esta se realiza em uma pesca copiosa e enfim
se cumpre na chamada dos discípulos.
Nos outros sinóticos a chamada dos discípulos é o primeiro ato da atividade
pública de Jesus; no terceiro evangelho ele conhece primeiro Pedro, tanto que está
na sua casa e cura a sogra (4,38-39) antes de pedir a ele para segui-lo.
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Os três primeiros versículos servem de quadro introdutivo – coloca a narrativa num


contexto eclesiológico: em relação a esta multidão bem-disposta e que comprime, que
Pedro e os seus companheiros são chamados.
Lucas tomou a narrativa da pesca milagrosa de uma fonte própria e a enquadrou com
material marcano, fazendo uma espécie de relato de vocação.
Enquanto que em Mc 1,16-20 a vocação dos discípulos é fundada sobre a autoridade
da palavra de Jesus que chama ao seguimento, na narração de Lucas não é um chamado
próprio, mas uma narrativa de uma experiência feita por Pedro em relação ao poder da
palavra de Jesus, tal a garantir a eficácia da promessa dada a Pedro (v. 10b) em vista da
missão futura. O empenho apostólico se encontra, portanto, motivado e encorajado.
A prospectiva eclesial da passagem é inegável. Emerge a figura de Pedro. A ele de
modo especial Jesus reserva a palavra sobre a missão de “pescar homens” (v. 10b). O seu
primado entre os Doze é fundado sobre uma palavra de Jesus dirigida pessoalmente a ele
e garantida por um ato milagroso.
Ao lado de Pedro, o evangelista, inspirando-se em Mc 1,16-20, coloca Tiago e João
(v. 10a), os filhos de Zebedeu, omitindo, porém, a figura de André. Lucas coloca,
portanto, junto o grupo de três que a tradição considera os íntimos de Jesus, e os apresenta
como os primeiros discípulos chamados pelo Senhor entre os Doze.
Notas Filológicas
5,1: Primeira vez que aparece a expressão Palavra de Deus, usada por Lucas
especialmente para referir-se à mensagem cristã (At 4,31; 6,2.7; 8,14 etc.), e
ocasionalmente à própria mensagem de Jesus (Lc 8,11.21; 11,28). Genesaré (Quineret
no Antigo Testamento: Js 11,2; 12,3) é o nome da fértil região ao sul de Cafarnaum, que
dava seu nome ao lago, conhecido também como mar da Galileia (Mt 4,18; Mc 1,16) e
mar de Tiberíades (Jo 21,1).
O evangelista constrói uma cena de ensinamento na margem do lago. É um quadro ideal:
Jesus, majestosamente, está em pé próximo ao lago onde depois se realizará o milagre.
Ele ensina a Palavra de Deus: termo técnico para a pregação apostólica (cf. At 4,31; 6,2.7
; 8,14). Existe, portanto, continuidade entre o ensinamento de Jesus e a pregação pós-
pascal: esta última prossegue a de Jesus e a leva até os confins da terra.
Em torno de Jesus, uma multidão que quer escutar a Palavra de Deus, prefiguração de
todos aqueles aos quais os apóstolos deverão pregar a mesma “palavra de Deus”. Para o
evangelista, o mundo é em “espera desta Palavra”.
5,2-3: Jesus vê duas barcas: o número provém certamente de Mc 1,16-20. A ocupação
dos pescadores diverge da descrita por Mc. Em Lucas é mais lógico: não pescando nada
durante a última noite (v. 5), restava lavar as redes (não de consertá-las!) e prepara-las
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para a próxima pesca. “Para hoje, nos parece que não havia nenhuma intenção de retornar
à pesca”!
Não por acaso, é na barca de Simão – Lucas não o chama ainda de Pedro – a escolhida
por Jesus. Ele se senta, na forma de um “mestre”; e da barca do futuro Pedro, Jesus ensina
a multidão. Depois da Páscoa, o ensinamento de Jesus será através das testemunhas,
Pedro e os Doze. Lucas, sem dúvida, privilegia a figura de Pedro.
5,4-5: Depois do ensinamento de Jesus temos a narrativa da “pesca milagrosa”. Jesus dá
a Simão uma ordem inesperada (os pescadores já haviam terminado o trabalho do dia) e
inadequada: pescar de dia, quando já durante a noite – ou seja, no tempo propício – já
trabalharam em vão.
evpista,ta de evpista,thj – (“aquele que está acima de outro”). Só se encontra em Lc,
sempre nos lábios dos discípulos. Deve indicar uma fé mais profunda que o habitual
didáskalos, que também se traduz por mestre.
Uma situação humanamente sem solução, uma ordem humanamente absurda, à qual é
pedido à Simão de colocar em xeque o seu conhecimento de pescador e a sua reputação,
para apoiar-se somente na palavra do Mestre.
E, Simão, “sobre sua Palavra”, arrisca; um risco verdadeiro e sensato, não absurdo e
cego, porque o fez com conhecimento de causa: ele já havia visto a poder da palavra do
Senhor (cf. Lc 4,38ss: a cura da sua sogra). É o primeiro autenticamente ato de fé
apresentado no ministério público. A atenção do narrador se concentra na pessoa de
Simão, mesmo que os outros companheiros estejam supostamente presentes.
5,6-7: Lucas descreve uma cena (as redes estavam ao ponto de romper-se) com o objetivo
de sublinhar a grandeza do milagre. Há a necessidade da ajuda dos sócios da barca: pela
primeira vez mencionados. As duas barcas correm o risco de afundar pela quantidade de
peixes.
A grandeza do milagre demonstra o poder divino da Palavra de Jesus e justifica a absoluta
confiança nela.
5,8-9: explica o gesto e a palavra de Simão, que pela primeira vez, e provavelmente com
relação com a sua chamada (v. 10), recebe o nome de Pedro: diante de Jesus, ele
experimenta a proximidade de Deus. E tudo, o cair de joelhos diante de Jesus, o título de
Senhor, a exclamação de indignidade, manifesta este encontro com o Divino, uma
experiência teofânica semelhante à de Moisés, de Isaías...
“Sou um homem pecador”: não devemos entender esta afirmação sobre o plano moral,
mas como a experiência da distância entre o homem e Deus. “De agora em diante
pescarás homens (tomar vivos) ”! Isto nos diz que a função de Pedro não é calcada sobre
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as qualidades pessoais do apóstolo, e que o “sucesso” missionário da Igreja não está sob
as capacidades humanas.
No v. 9 temos a reação de medo de Simão e dos sócios diante do milagre: é a conclusão
normal de uma narrativa de milagre, e podia mesmo constituir o final da narração pré-
lucana.
5,10: Os dois últimos versículos podem ser considerados uma junção posterior a partir
de Mc 1,16-20. O autor entrelaçou à narrativa da pesca milagrosa a vocação de Pedro e
dos dois filhos de Zebedeu.
Tiago e João saem do anonimato para serem incluídos no chamado de Jesus. Mesmo
sendo eles inclusos, Jesus, todavia se volta somente a Simão. Depois do milagre da pesca
e da confissão de Pedro, a intervenção de Jesus se apresenta como uma verdadeira
teofania: “Não tenhais medo”! Em seguida não temos uma ordem, mas uma palavra
profética que se torna eficaz. Anuncia a futura missão do apóstolo, o coloca em uma nova
vida. *A função apostólica se encontra ancorada nesta palavra eficaz do Senhor,
precedida por um milagre destinado a colocar “em luz” o poder da Sua palavra e a fazer
da escolha dos discípulos uma ocasião “razoável/compreensível”.
Os ministérios não se fundamentam unicamente sobre um poder que lhes constituído –
experiência e na atitude de confiança para com o Mestre.
“O milagre e a palavra dão à Simão um novo início, e este evento de graça é claramente
o verdadeiro e próprio ‘milagre’ da narrativa”!
• O termo “pesca” (v. 4.9) da narrativa tem seu vocábulo traduzido como “tomar
vivos”/ “pescarás homens vivos”, para descrever a função do apóstolo: tornar à
vida! Lucas define a missão cristão como um levar os homens à vida. A BÍBLIA:
“Os discípulos não precisarão capturar peixes mortos para ser vendidos no
mercado, mas capturar pessoas – com a Palavra de Deus / Jesus – para conduzi-las
a uma vida nova”.
5,11: A conclusão é breve: os três futuros apóstolos “deixam tudo e seguem Jesus”!
A narração termina com o tema da vocação, mesmo que o acento não está sobre o
chamado, quanto sobre o encontro com Cristo no fundamento e na função apostólica de
Pedro: seguir Jesus é a premissa para concretizar sua palavra (v. 10).
A concisa anotação: “deixaram tudo” não deve ser tomada ao pé da letra no nosso
contexto, mas foca um processo complexo na existência do discípulo, que o faz ao longo
do caminho, na incondicionada sequela de Cristo. kai. katagago,ntej ta. ploi/a evpi. th.n
gh/n avfe,ntej pa,nta hvkolou,qhsan auvtw/|Å
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A ESCOLHA DOS DOZE: (Lc 6,12-16)


12
Naqueles dias, ele foi à montanha para orar e passou a noite inteira em oração a Deus.
13
Depois que amanheceu, chamou os discípulos e dentre eles escolheu doze, aos quais
deu o nome de apóstolos: 14Simão, a quem impôs o nome de Pedro, seu irmão André,
Tiago, João, Filipe, Bartolomeu, 15Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Simão, chamado
Zelota, 16Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariot, que se tornou traidor.

• Antes do “Discurso da Planície”, introduzido pelas chamadas “Bem-


Aventuranças” (6,20-49), introduz a “Escolha dos Doze” (6,12-16). Constrói um
quadro grandioso, na qual a escolha dos Doze é fundamental: o conteúdo da
pregação de Jesus é precedido da eleição dos apóstolos, daqueles que serão
propriamente encarregados de transmitir o ensinamento de Jesus. + No Kerygma
anunciado pelos “servidores da Palavra”, Lucas convida os seus leitores a
reconhecer a voz do Senhor que continua a falar à Igreja e a cada um.
Somente Lucas diz que Jesus antes de escolher os doze vai ao monte para orar. É como
que uma interrupção da viagem. Frequentemente em Lucas Ele se retira, sozinho. Uma
solidão contrastante ao mesmo tempo com o pensamento do terceiro evangelista que
frequentemente é muito atento ao aspecto comunitário. Para Lucas a salvação é
comunitária. A sua teologia insiste sobre a comunidade de bens, do acolhimento da
Palavra, da comunhão de vida. Aqui, ao invés temos um trato da solidão de Jesus: “Passar
a noite em oração” é uma expressão que sublinha a importância do momento. Os doze
são somente aqueles “doze” e são os apóstolos por excelência, diversamente de Paulo,
que para Lucas é a “testemunha do ressuscitado”.
Para Lucas, ao invés, os apóstolos são somente estes e sobre eles se fundamenta a
Igreja. Tanto é verdade que quando se tornam somente onze, há a necessidade de um
outro para completar “os doze” (cf. At 1,10). Este grupo é fundamental para a Igreja,
veremos nos Atos dos Apóstolos. Eis porque é um momento importante. Sempre os
momentos importantes da vida de Jesus são acompanhados da solidão e da oração.
Na narrativa do batismo, por exemplo, somente Lucas anota que Jesus ora enquanto
recebe a investidura messiânica. Em 5,15 a multidão cerca Jesus, enquanto ele se retira
para um lugar solitário. Somente Lucas diz que Jesus ora durante o evento da
transfiguração (9,29). Todos os sinóticos dizem que durante a agonia Jesus ora, mas
Lucas acrescenta que ele ora de joelhos e com intensidade (22,41-42). Na crucifixão
Lucas não põe sobre os lábios de Jesus o grito: “Meus Deus, meu Deus, porque me
abandonastes? ”, mas duas orações: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” e
“Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Em Lucas, Jesus é orante.
Jesus sobe à Montanha. Inicialmente é a solidão de Jesus sobre o monte que Lucas
quer evidenciar: alusão à subida de Moisés no Monte Sinai? H. Schürmann: “Como Deus
fez vir a si Moisés no Monte, que depois deverá descer para anunciar aos Anciãos e ao
Evangelho de Lucas 2023 – prof. Pe. Claudio R. Buss11

povo a Lei de Deus, assim também Jesus sobe à Montanha, e escolhe os seus Doze
apóstolos, e depois desce com eles para levar aos discípulos e à multidão os novos
ensinamentos de Deus”.
De qualquer forma, para o autor sacro, o Monte é o lugar da oração, da proximidade
pessoal com Deus. Jesus ora sempre sozinho: é surpreendente em um ambiente que dá
tanto valor à oração comunitária; o encontro de Jesus com Deus é único, incomunicável.
Ainda nota H. Schürmann: “Este comportamento de Jesus deve permanecer como
normativo para a transmissão dos ministérios no tempo da Igreja”.
Na obra de Lucas, os Doze são um grupo distinto dos discípulos; a estes nominados,
juntamente com a multidão, é que Jesus com os apóstolos dirige o seu “discurso da
planície” (cf. Lc 6,17). Os discípulos prefiguram a Igreja em meio ao mundo.
Lucas é o único evangelista que especifica que Jesus em pessoa deu aos Doze o nome
de apóstolos.
Para Lucas, o número dos Doze – símbolo das doze tribos – em relação com o envio
pré-pascal a Israel, no contexto da proximidade do Reino de Deus. Para Lucas, o número
de doze apóstolos é uma grande histórica e corresponde ao número de discípulos
especificadamente eleitos por Cristo para serem as testemunhas do seu ministério, e da
sua ressurreição na constituição da tradição apostólica (cf. At 1,15ss).
- Simão é um nome um tanto semítico (Symeone: “Deus cumpriu, realizou”), como
também no mundo grego. Oriundo de Betsaida (Jo 1,44), cidade do lago, de influência
helenista. Se transferiu a Cafarnaum; é pescador; esposado (Mc 1,29ss). No elenco de
Lucas, é o único a receber um nome novo, o que sublinha o primado entre os discípulos.
Recebe o nome aramaico Kêpâ’, grecizado em Kêphas = rocha, pedra (Jo 1,42); tradução
grega Petros. De agora em diante, Jesus sempre o chamará de Pedro – indicando assim
sua posição como o primeiro entre os apóstolos.
- André é um nome grego (= viril, valoroso), irmão de Pedro. Também ele proveniente
da helenizada Betsaida.
- Os irmãos Tiago e João, filhos de Zebedeu. Pescadores. Recebem o sobrenome de
Boanêrges, filhos do trovão (Mc 3,17), provavelmente pelo caráter impulsivo. Na Igreja,
a figura de João tem a sua prevalência à de Tiago, morto no ano de 44 d.C. (não confundir
com Tiago, “irmão do Senhor”).
- Filipe, assim como Simão e André, provém de Betsaida (Jo 1,44; 12,21). Ele com
André faz como que um tramite de alguns Gregos que querem falar com Jesus (Jo 12,22).
André e Filipe conhecem provavelmente a língua grega. Filipe é nominado, sobretudo no
Quarto Evangelho (Jo 1,43-48; 6,5.7; 12,21ss; 14,8ss).
- Bartolomeu. O seu verdadeiro nome era Natanael? (Jo 1,45-49; 21,2)? Segundo
Eusébio de Cesaréia levou o evangelho de Mateus (hebraico/aramaico) para a Índia.
Evangelho de Lucas 2023 – prof. Pe. Claudio R. Buss12

- Mateus, aramaico (“dom de Deus”). Cf. Mt 9,9; 10,3. Mateus é o nome de Levi dado
por Jesus?
- Tomé, chamado Didymos, ou seja, gêmeo (Jo 11,16). Possui uma grande relevância
no Quarto Evangelho (Jo 11,16; 14,5; 20,24-27.28; 21,2).
- Tiago de Alfeu, as vezes identificado com Levi (ou seu irmão), porque, como ele,
são filhos de Alfeu; outras vezes com Tiago, o Menor, do qual vem nominada a mãe,
uma Maria, ao momento da morte de Jesus (Mc 15,40; 16,1; Lc 24,10).
- Simão, o Zelota, tradução grega de Kananaios (Mc/Mt), do aramaico qan ‘anâ, nome
dos extremistas nacionalistas da guerra judaica (66-70 d.C.), que como tais não existiam
ainda na época de Jesus. Pode ter o sentido técnico de “zelante”.
- Lucas omite Tadeu, do grego Theodotos (dom de Deus) ou do aramaico Taddaj
(vivaz, intrépido, corajoso). Mas conhece um Judas de Tiago, ignorado de Mc/Mt, e
nominado somente ainda em Jo 14,22.
- Judas Iscariot: etimologia di Iskarioth é obscura: “filho de Kerioth” (Js 15,25); o do
latim grecizado: sicarius (homem da espada, terrorista); o do aramaico sheqar: mentiroso,
traidor.
Lucas acrescenta que se torna traidor, colocando em luz sua infidelidade. A sombra da
paixão acompanha já o ministério de Jesus.

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